Musica Camara - Luciana
Musica Camara - Luciana
Musica Camara - Luciana
Instituto de Artes
Luciana Rodrigues Gifoni
MSICA DE CMARA
E PS-MODERNISMO:
os grupos Syntagma (CE) e Anima (SP)
So Paulo-SP
2008
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho
Instituto de Artes
Luciana Rodrigues Gifoni
MSICA DE CMARA
E PS-MODERNISMO:
os grupos Syntagma (CE) e Anima (SP)
Dissertao apresentada ao programa de
Ps-graduao em Msica do Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista -
UNESP, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de Mestre em Msica.
Pesquisa desenvolvida com o apoio da
Fundao de Amparo Pesquisa do
Estado de So Paulo FAPESP.
Orientador: Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda
So Paulo-SP
2008
Ficha catalogrfica preparada pelo Servio de Biblioteca e Documentao do
Instituto de Artes da UNESP
Gifoni, Luciana
G458m Msica de cmara e ps-modernismo: os grupos
Syntagma (CE) e Anima (SP) / Luciana Gifoni. - So Paulo :
[s.n.], 2008.
223f. + 02 Cd's + 01 DVD
Bibliografia
Orientador: Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda
Dissertao (Mestrado em Msica) - Universidade
Estadual Paulista, Instituto de Artes.
1. Msica de cmara Ps-modernismo Brasil. I.
Ikeda, Alberto Tsuyoshi. II. Grupo Syntagma (CE) III.
Grupo Anima (SP) IV. Universidade Estadual Paulista,
Instituto de Artes. V. Ttulo.
CDD - 785.7
AOS MEU PAIS, ANGELA E MAURO.
AGRADECIMENTOS
A meus pais, Angela Maria e Jos Mauro Gifoni, modelos de dedicao e tica profissional,
pelo apoio e incentivo de todas as horas. Neles, encontro sempre a inspirao e o amor,
motores do fazer e do sonhar.
A meus irmos, ngela e Giovanni, pelo companheirismo e pela compreenso nos momentos
mais difceis. Muito obrigada.
Ao professor Ikeda, acolhedor das minhas ansiedades e teimosias com pacincia e sabedoria,
pela orientao franca, com abertura de idias e dilogo respeitoso. Obrigada pela confiana,
ateno e disponibilidade.
Aos integrantes do grupo Anima:
Isa Taube, Dalga Larrondo, Luiz Fiaminghi, Patrcia Gatti, Ricardo Matsuda e Valria Bittar.
Agradeo a seriedade, a ateno e o carinho com que me receberam, em tantos concertos e
tantas conversas, especialmente o casal Valria e Fia.
Aos integrantes e ex-integrantes do grupo Syntagma, especialmente:
Angelita Ribeiro, Duda di Cavalcanti, Heriberto Porto, Jorge Santa Rosa, Liduno Pitombeira,
Mardnio Oliveira, Rainer Beckmann, Solange Gomes, Valder Freire e Vernica Lapa. Muito
obrigada e muitos sorrisos. O tamanho da minha gratido ultrapassaria o volume das pginas
aqui escritas... Consolo-me na certeza de que minha histria com cada um de vocs nem
comea nem se encerra neste trabalho.
Aos professores:
Elba Braga, pelos esclarecimentos prestados sobre o incio das prticas de Msica Antiga no
Cear.
Ewelter Rocha, que me ajudou desde o projeto inicial, colaborando com idias, sugestes,
correes e at mesmo na edio de algumas partituras inseridas no trabalho. Obrigada por dar
ateno aos meus devaneios tericos, e pelos conselhos to sinceros, detalhistas e objetivos.
Gilmar de Carvalho, pela recepo generosa antes mesmo de qualquer projeto, quando o
procurei apenas com a conversa queria fazer mestrado. Agradeo o ouvido atento e
perspicaz, o corao grande e os inmeros conselhos de vida, de pesquisa e de bibliografia.
Marcos Napolitano, pelas sugestes bibliogrficas e por apontar alguns caminhos tericos.
Marisa Fonterrada e Paulo de Tarso Salles, pela ateno com que receberam meu trabalho
desde a qualificao, apontando valiosos caminhos metodolgicos e interpretativos.
Paulo Castagna, por tentar me fazer compreender melhor a querela dos modos e pelo
material sobre a msica de Lobo de Mesquita. Obrigada por me atender, sempre, de forma to
rpida e eficiente.
Ao compositor Tarcsio Jos de Lima, por conceder entrevista elucidativa e generosa acerca da
Sutes Americanas n 1.
A todos os amigos e colegas que me apoiaram, especialmente:
Adriano Meyer, pela edio de grande parte das partituras, alm dos conhecimentos imperiais
acerca de Piratininga e de seus notveis. Obrigada tambm pela preocupao contnua com
meu rendimento: quantas pginas mais?
Bruno Sales e Liliana Albuquerque, pela ajuda nas tradues e tambm nas trocas de
experincias sobre o mestrado, seja em Msica, Fsica ou Cinema.
Cntia Bisconsin, Cristina Machado, Dalton Martins, Luciana Kiefer, Simone Cabrera, Zoica
Caldeira e todos os outros colegas da ps-graduao, com os quais compartilhei os momentos
alegres e dolororos deste percurso.
Leonardo Torres, pela ajuda com o material do Syntagma e com as idias para o Banho-nho.
Luciano Carneiro, pela colaborao na fase de amadurecimento do projeto.
Marcelo Romcy, pela digitalizao do material audiovisual do Syntagma, alm da herica
tentativa de cpia e edio dos DVDs.
Marcos Pantaleoni, pelas idias para a Incelena, alm de parte da edio das partituras, por
meio da editora Presto.
Marlus Joca e ao primo Sylvio David, pelo acolhimento e suporte em Campinas.
Priscila Malfitani, pelo design grfico dos mapas e dos quadros sobre os discos, e pelos
suportes diversos na vida-fora-do-mestrado. Obrigada para sempre.
Ramiro Melo, el mito, pela edio e preparao do DVD, tantas vezes. Obrigadssima por todo
o empenho, todo o apoio e toda a disponibilidade em me ajudar, nos horrios mais impossveis.
Tephilo Augusto Pinto, que recuperou dos abismos tecnolgicos um arquivo de texto com
parte do terceiro captulo, salvando todo o contedo escrito, no dia do meu aniversrio.
Por fim, agradeo Fapesp, por acreditar no projeto e apoiar a realizao deste trabalho.
Se algum pergunta o porqu do se fazer,
Responde-se o porqu do perguntar.
O tecer no tem um porqu,
enquanto ato de entrelaar.
O entrelaar significa.
(Jos Eduardo Gramani, Alm de Olinda)
RESUMO
A partir do interesse pelas dinmicas artstico-culturais brasileiras e seus olhares
para as tradies populares, diante do fenmeno da Ps-modernidade, observamos a atuao
de dois grupos de msica de cmara, objetos deste estudo: so eles o Syntagma, de Fortaleza-
CE, e o Anima, de Campinas-SP. Iniciadas com propostas similares, voltadas para o
repertrio de Msica Antiga europia medieval, renascentista e barroca e utilizao de
rplicas de instrumentos histricos, como o cravo, as flautas doce, dentre outros, aos poucos,
suas experincias de prtica em conjunto se direcionam para a msica brasileira de tradio
oral popular, propondo leituras particulares a este universo, cada um a sua maneira. Como
recorte metodolgico, busca-se apreender, especialmente, as representaes simblicas feitas
pelos grupos em relao ao universo sonoro que se convencionou associar ao Nordeste
brasileiro.
Que leitura estes grupos fazem do universo sonoro nordestino? Para compreender
estas construes de significados, pretende-se analisar no apenas os elementos musicais
intrnsecos, mas interpret-los frente a outras construes simblicas (cf. Kramer, Stokes,
Blacking), como o processo de valorizao das culturas populares, iniciado, no Brasil, pelo
movimento modernista, reavaliado pelas idias armoriais, e que teve suas matizes
questionadas e ressignificadas pelos pensamentos ps-estruturalistas e ps-modernos.
Pretende-se, tambm, apreender o sentido de tradio (cf. Hobsbawm) no fazer musical dos
grupos, por buscarem um sentido de continuidade histrica pela pesquisa de smbolos e
rituais associados a um passado que se pretende recriar para no se perder.
ABSTRACT
From the interest for artistic-cultural brazilian dynamics and its views to popular
traditions, before the post-modernism, we observe the performance of two chamber musical
groups for this study: Syntagma, from Fortaleza-CE, and Anima, from Campinas-SP. Both
started with similar proposals, guided to Early Music repertoire european middle ages,
renaissance and baroque and use of historical instruments replics, such as harpsichord,
recorders, among others. Slowly their group practice experiences turn to brazilian music of
oral popular tradition, suggesting particular interpretations to this universe, each in their own
manner. As methodological approach, this work searchs to apprehend, specially, the
symbolic representations made by the groups in relation to the musical universe stipulated to
associate the brazilian northeast.
Which interpretation these groups do about the northeastern musical universe? To
understand these meaning constructions, it is intended to analize not only the intrinsic
musical elements, but interpret them before other symbolic constructions (ie. Kramer, Stokes,
Blacking), as a valorization process of the popular cultures, started in Brazil by the
modernism movement, reevaluated by the Armorial Movement ideas, and with their shades
questioned and reinterpreted by post-structuralism and post-modernism thoughts. This work
also aims to apprehend the meaning of tradition (ie. Hobsbawm) in the musical work of both
groups, for searching one meaning of historical continuinity in the research of symbols and
rituals associated to the past intended to recreate for not being forgotten.
SMARIO
INTRODUO ......................................................................................................................... 10
1 ANIMA E SYNTAGMA: UM PONTO DE VISTA SIMBLICO-MUSICAL .................................... 21
1.1 Entre a autonomia e a contingncia .......................................................................... 21
1.2 Sobre a noo de representao simblica na msica .............................................. 24
1.3 Significados musicais: relaes entre a dimenso autnoma e a dimenso
contingente ................................................................................................................... 28
1.4 Realidades e representaes: conflito ou confluncia? ............................................ 33
2 CULTURA NORDESTINA: AVALIAO, VALORIZAO E CONFLITOS ................................. 36
2.1 Norte versus Sul: do conflito inveno ................................................................... 40
2.2 Norte mais Sul: o drama dos irmos ......................................................................... 46
2.3 A virada modernista ................................................................................................... 50
2.4 Nordeste: pela cultura, contra a civilizao ............................................................. 52
2.5 Na dialtica do encantamento .................................................................................... 58
3 TRADIO E PS-MODERNISMO: PERCURSOS MUSICAIS ................................................... 63
3.1 Nem razo nem sensibilidade: os (des)encantos ps-modernos .............................. 64
3.2 Nordeste: imagens, sons e discursos musicais .......................................................... 70
3.2.1 Sobre os modos .................................................................................................... 73
3.2.2 Possveis hibridaes modernistas ...................................................................... 74
3.2.3 Modalismos nordestinos e o retorno s origens .................................................. 78
3.2.4 Serto barroco: a (re)leitura armorial ................................................................ 83
3.2.5 Luiz Gonzaga e o serto na Msica Popular Brasileira (MPB) ......................... 90
3.3 Consideraes sobre o renascimento da Msica Antiga: por outras razes e
sensibilidades ............................................................................................................... 95
4 A REPRESENTAO SIMBLICA DO NORDESTE NO SYNTAGMA ..................................... 107
4.1 Um laboratrio musical: experincias camersticas .............................................. 108
4.2 Entre o antigo e o novo: os tempos do grupo .......................................................... 111
4.3 Contexto social: avaliao, valorizaes e dilemas ................................................ 114
4.4 O Nordeste do Syntagma .......................................................................................... 120
4.4.1 Syntagma, o primeiro ......................................................................................... 122
4.4.2 Miracula, o segundo .......................................................................................... 125
4.4.3 Seresta n 9: Incelena ....................................................................................... 130
4.5 Syntagma nordestino: leituras possveis ................................................................. 139
5 GRUPO ANIMA E A REPRESENTAO SIMBLICA DO NORDESTE .................................... 144
5.1 O nome e o sobrenome .............................................................................................. 144
5.2 Uma proposta mundana, humana e instrumental ................................................. 145
5.3 O estmulo e as inquietaes ..................................................................................... 147
5.4 Anima e o Nordeste ................................................................................................... 153
5.4.1 Espiral do Tempo ............................................................................................... 154
5.4.2 Especiarias ......................................................................................................... 159
5.4.3 Amares ............................................................................................................... 162
5.4.4 Espelho ............................................................................................................... 164
5.4.5 Banho-nho ...................................................................................................... 167
5.5 Anima e o Nordeste: conexes armoriais, modernistas e ps-modernistas ......... 171
CONCLUSO ......................................................................................................................... 175
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 179
ANEXOS: 1 DVD E CDS DE UDIO ....................................................................................... 192
2 SYNTAGMA: LISTA DE INTEGRANTES ................................................................ 193
3 SYNTAGMA: FOTOS ............................................................................................ 195
4 PARTITURA: SERESTA N 9 ................................................................................ 204
5 ANIMA: FOTOS ................................................................................................... 214
6 PARTITURA: BANHO-NHO ............................................................................. 221
10
INTRODUO
Nesta pesquisa, busca-se identificar quais elementos musicais utilizados pelos grupos
Anima e Syntagma simbolizam e conectam sua sonoridade ao universo da cultura nordestina.
A escolha dos grupos Anima, de Campinas, no interior paulista, e Syntagma, de Fortaleza,
Cear, se deu por terem surgido com propostas similares, de se constiturem grupos de Msica
Antiga - medieval, renascentista e barroca - cujas experincias foram levando suas pesquisas
em direo s razes da msica popular brasileira. Alm disso, os grupos tm um histrico
consolidado atuantes desde o final da dcada de 80 -, composies e arranjos prprios,
extenso currculo de apresentaes e rico material em coberturas da imprensa, o que
certamente tornou a pesquisa mais vivel.
A busca desta representao simblica deve levar em conta elementos da cultura
nordestina presentes na sonoridade, na instrumentao, na performance, nas composies, nos
arranjos e na prpria experincia cultural dos seus respectivos integrantes. Vale ressaltar que
tal sonoridade construda, tambm, por elementos externos cultura nordestina, como por
exemplo, formas de composio modernas, estruturas dissonantes, melodias e instrumentao
medievais, interpretao barroca etc. Estas observaes gerais nos levam hiptese de situar
estes grupos dentro de uma esttica ps-moderna, cujos traos principais a se considerar so,
no dizer de Featherstone (1997, p. 69), o afastamento das "ambies universalsticas das
narrativas mestras, em que a nfase se aplica totalidade, ao sistema e unidade, e caminha
em direo a uma nfase no conhecimento local, na fragmentao, no sincretismo, na
alteridade e na diferena", bem como a "dissoluo das hierarquias simblicas que acarretam
julgamentos cannicos de gosto e de valor, indo em direo ao colapso populista da distino
entre a alta cultura e a cultura popular". Por outro lado, preciso considerar at que ponto
aquelas construes sonoras podem ser ps-modernas, visto que no prprio movimento
modernista brasileiro - que por sua vez tomou como base para renovao esttica, em um
primeiro momento, os movimentos de vanguarda europeus - j havia uma srie de
caractersticas que podemos identificar na musicalidade dos grupos. Seria, portanto, tal
configurao sonora resultado esttico de uma proposta bem anterior?
De fato, alguns aspectos do pensamento ps-moderno integram as hipteses acerca da
esttica dos grupos. Por outro lado, a partir da leitura de alguns autores sobre o tema do ps-
modernismo (Anthony Giddens, Terry Eagleton, Mike Featherstone, David Harvey), notamos
que a percepo desta condio ps-moderna explicaria apenas parcialmente sobre suas
prticas e suas interpretaes do fenmeno musical. No decorrer da pesquisa, constatamos que
11
as simples confirmaes se estes fazem um trabalho moderno ou ps-moderno, por exemplo,
no responderiam algumas questes fundamentais, a saber, o porqu dos integrantes do Anima
e do Syntagma se voltarem para determinadas sonoridades, e no outras; por que o Nordeste,
ou por que a tradio oral? E por que esta configurao sonora especfica, e no outras? Estes
questionamentos vieram tona, e para explic-los, detivemo-nos mais em condies scio-
histricas, em perceber o trabalho dos grupos dentro de uma tradio musical de valorizao
da cultura popular, em geral, e da cultura nordestina, em particular, no meio artstico e
intelectual brasileiro, desde incios do sculo XX. Assim, percebemos que a esttica do ps-
modernismo entraria como parte de um processo interpretativo anterior, e no como cerne
explicativo dos grupos.
Observamos tambm que, apesar do interesse de pesquisadores para as dinmicas
artstico-culturais brasileiras e seus olhares para as tradies populares, diante do fenmeno da
Ps-modernidade, ainda no se realizou at o presente momento nenhum estudo sobre essas
dinmicas em conjuntos de msica de cmara, especificamente. Alm disso, em relao
temtica em si, mais de um autor destacou a importncia de trabalhos interdisciplinares, que
busquem a compreenso dos fenmenos artsticos luz dos aspectos culturais que lhes
envolvem. Garcia Canclini (2003, p. XL) vincula a possibilidade da arte e da cultura se
constiturem tradutoras do que ainda permanece em ns "desmembrado, beligerante ou
incompreensvel, ou qui chegue a hibridar-se". Por sua vez, Featherstone (1995, p. 93-94)
ressalta que "para compreender a cultura ps-moderna, no preciso apenas ler os signos, mas
olhar como os signos so usados por configuraes de pessoas em suas prticas cotidianas".
Vale ressaltar que o intercmbio entre as disciplinas das Cincias Humanas e a pesquisa sobre
aspectos do fazer musical enquanto prtica scio-cultural trata-se de desafio enfrentado por
ainda poucos estudiosos de Msica no Brasil.
Em relao aos pressupostos tericos, toma-se como base a seguinte problemtica
central: quais elementos musicais utilizados pelos grupos Anima e Syntagma simbolizam e
conectam sua sonoridade ao universo da cultura nordestina, e de que forma os grupos fazem
isso? Ora, tal questo parte de duas premissas que, do ponto de vista cientfico, no podem ser
tomadas como bvias e merecem uma discusso mais aprofundada, antes de buscar respond-
la. A primeira sugere-nos que a Msica capaz de representar simbolicamente uma cultura, e a
segunda premissa que os grupos, objetos deste estudo, fazem, afirmativamente, uma
representao da cultura nordestina, em alguma dimenso, dentro de suas prticas musicais.
Portanto, antes de se chegar ao objeto, s anlises e aos resultados de campo, propriamente
ditos, necessrio discutir tais questes em captulos introdutrios.
12
Nesta pesquisa, compartilha-se a idia de que o fazer musical envolve no somente a
msica enquanto produto simblico acabado, dotado de um contedo e uma mensagem
especfica, mas tambm todas as atividades que a possibilitam acontecer. Deste modo, as
partituras, os arranjos, as harmonias, os timbres, sero estudados paralelamente aos discursos e
s prticas dos grupos, com nfase na compreenso da forma com que os grupos utilizam e
conseguem incorporar os diferentes tipos de experincia de seus integrantes, especialmente
suas experincias musicais, percebendo como os elementos estritamente esttico-musicais se
relacionam com possveis significados simblicos, pela prpria situao social e histrica na
qual esto circunscritos.
No se pretende estabelecer relaes causais entre as estruturas estticas e o contexto
scio-histrico, por entender que o objeto artstico no integra uma teoria dos espelhos, isto ,
no se reduz condio de reflexo em um plano transcendental de uma suposta realidade
ordinria. O resultado sonoro das propostas estticas dos grupos entendido numa perspectiva
dialtica, que considera tanto as convenes coletivas que podem servir de guia para suas
prticas, como as capacidades criadoras de construir novos significantes, que tornam o trabalho
de cada grupo singular. Tais reflexes so apontadas no captulo 1.
Aps este prembulo, j que se pretende relacionar os signos sonoros com uma
cultura especfica, a nordestina, importante esclarecer o sentido de cultura que integra a
abordagem. Delimitando-se o conceito de cultura no contexto brasileiro e a construo da
identidade nordestina, possvel discutir as preocupaes modernistas e ps-modernistas,
confrontando suas posies frente s questes mais amplas de identidade cultural e dos
processos de hibridao no fazer artstico.
Outro ponto essencial para se compreender a aproximao que o Anima e o Syntagma
fazem com as sonoridades chamadas de tradicionais do Nordeste significa inserir os grupos
dentro de determinadas linhas histricas, sociais, e at mesmo polticas. Configura-se, ento, o
conceito de tradio (cf. Hobsbawm, 1997), no sentido de uma inveno do Nordeste e, mais
ainda, da inveno de uma erudio nordestina
1
. Algumas noes correntes a respeito da
cultura nordestina por parte de artistas e intelectuais, ao longo do sculo XX, so levantadas,
como o sentido de uma regio perifrica, guardi das razes e revelada como a infncia do pas.
Essas so algumas das caractersticas presentes quando da construo de um projeto nacional
modernista de cultura, que assimilava os regionalismos, na busca do elemento popular como
formador autntico da cultura brasileira. De certa forma, o Movimento Armorial (1970-1976)
faz uma releitura daquele projeto nacional, com algumas diferenas que buscamos explicitar, j
1
Este termo e as noes conceituais que o permeiam me foram sugeridas pelo prof. Dr. Gilmar de Carvalho, em
conversa informal, em junho de 2005.
13
que os grupos aqui estudados podem ser interpretados, ainda, como ps-armoriais, ao mesmo
tempo herdeiros e crticos da esttica do movimento, fazendo uma releitura deste. Vale
ressaltar que a esttica armorial foi responsvel pela pesquisa e valorizao das aproximaes
simblico-culturais entre a Idade Mdia europia, especialmente mouro-ibrica, e boa parte dos
gneros populares nordestinos.
Buscamos, assim, estabelecer este fio condutor entre os captulos 2 e 3. Adotamos um
caminho que discute as questes scio-histricas mais abrangentes, sobre o processo de
valorizao da cultura nordestina, ao longo do sculo XX, para depois apontar as questes de
valorizao e identidade musical da regio, pontuadas a partir das hipteses sobre as leituras
possveis dos grupos acerca do universo simblico nordestino. Desta forma, a partir das
discusses sobre o ps-modernismo, inclumos as questes sobre a tradio, vivenciada pela
utilizao dos modos nordestinos, tanto nas construes modernistas para a msica erudita,
segundo as idias de Mrio de Andrade, quanto nas formas modernas da incipiente cultura de
massa, pela msica de Luiz Gonzaga, e ainda as idias armoriais que, conforme destacamos,
propem uma dimenso diferenciada das relaes entre arte erudita e arte popular. Sobre as
correntes artstico-musicais s quais os grupos se vinculam, cabe fazer as distines acerca do
renascimento da Msica Antiga, que traz a discusso sobre a performance histrica, dentre
outros questionamentos em relao tradio musical clssico-romntica.
Com base nesta fundamentao terica e insero histrica, aprofundadas nos
captulo 1, 2 e 3, chegamos anlise dos objetos propriamente ditos, mantendo uma unidade
em torno do tema, por um percurso que vai das argumentaes mais gerais para as mais
especficas ao longo da dissertao, sem perder o foco no problema da pesquisa. Para tanto,
utilizaremos a metodologia interpretativa descrita por John B. Thompson
2
como a maneira
mais apropriada de se analisar as formas simblicas, nas quais se incluem tambm as obras
musicais.
Thompson (id., p. 355) aponta uma diviso persistente entre discusso terica e
anlise prtica nos estudos das Cincias Sociais que acaba prejudicando o conhecimento dos
fenmenos, por sua fragmentao e separao excessiva. Ele utiliza esse mtodo como maneira
de reagir contra essas abordagens segmentadas e propor um modo de investigao que
estabelea um elo entre as discusses tericas sobre cultura, ideologia e comunicao de massa
seus temas de interesse -, e a anlise prtica das formas simblicas, de seu contedo,
transmisso e recepo. Assim, o autor considera que o estudo das formas simblicas
2
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crtica na era dos meios de comunicao de
massa. Traduo do Grupo de Estudos sobre Ideologia, comunicao e representaes sociais da ps-graduao
do Instituto de Psicologia da PURCS. 4. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2000.
14
pressupe o uso de um referencial metodolgico que leve em conta os processos de
interpretao do objeto, que o evidencie enquanto construo simblica significativa. De
nossa parte, consideramos a mesma necessidade em relao s pesquisas musicais, visto que
tambm se observa a prtica de uma segmentao entre o trabalho musicogrfico e a sua
anlise musical, e o trabalho interpretativo de redimensionar aqueles dados em uma perspectiva
musicolgica propriamente dita, de carter mais crtico
3
.
Neste caso particular, buscamos contemplar tanto o processo de atuao musical do
Syntagma e do Anima por seus integrantes, quanto a anlise do resultado deste trabalho, ou
seja, suas produes, discos e msicas. Assim, obteremos subsdios mais amplos para realizar
uma sntese interpretativa, com foco na problemtica sobre a representao simblica do
Nordeste feita pelos grupos, colocando os dados dos objetos estudados em dilogo com o
processo histrico-cultural, discutido nos captulos anteriores.
Assim como Thompson (id., p. 362), concordamos que a abordagem interpretativa
deve levar em conta que os seres humanos so sujeitos histricos, participantes ativos e no
meros espectadores, de modo que, mesmo que o objetivo deste trabalho sejam os aspectos
simblico-musicais, no pretendemos supervalorizar a autonomia semntica das msicas
isoladamente, o que acabaria preterindo o contexto e suas condies scio-histricas de
produo e recepo. Em outros termos, esta abordagem distribui sua nfase entre a anlise das
msicas interpretadas pelos grupos, os elementos histricos que envolvem a elaborao,
gravao e apresentao destas msicas por seus integrantes, e as maneiras como aquelas
propostas musicais so percebidas e apreciadas pelo pblico.
Para evitar possveis lacunas, descrevemos a seguir a soluo proposta por
Thompson, e explicamos o modo de utilizao empregado na presente pesquisa. vlido
acrescentar que, para elaborar sua metodologia, Thompson toma como base um referencial
metodolgico da hermenutica de profundidade, a partir das reflexes de autores como Paul
Ricoeur, Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, dentre outros, e busca, com recursos desta
tradio terica da hermenutica, traar seu referencial para a investigao scio-histrica,
adaptada aos seus objetivos de anlise da ideologia e da comunicao de massa. vlido
ressaltar que foge aos objetivos do presente trabalho a investigao ou questionamento da
corrente hermenutica que inspira Thompson, e que, se utilizamos seu mtodo aqui, de forma
readaptada aos nossos objetivos, deve-se apenas ao interesse e consonncia que tal
3
Conforme discusso colocada por: IKEDA, Alberto. Musicologia ou musicografia? Algumas reflexes sobre a
pequisa em msica. I Simpsio latino-americano de musicologia, Curitiba, 10-12 jan. 1997. Anais. Curitiba:
Fundao Cultural de Curitiba, 1998. p. 63-68; id. Pesquisa em msica; algumas questes. Cadernos da Ps-
Graduao, Campinas, v. 5, n. 2, p. 43-45. 2001
15
referencial despertou em relao a tais objetivos. A busca de um autor de outra disciplina,
ligado a teoria social crtica, deu-se pela constatao de referenciais ainda insuficientes na rea
de Etnomusicologia, quanto aos objetivos aqui pretendidos.
Como estgio inicial deste referencial metodolgico, Thompson prope a realizao
de uma pesquisa etnogrfica (entrevistas, observao participante etc.), que possibilitaria uma
reconstruo do mundo social quotidiano ligado forma simblica em estudo, processo o qual
ele denomina interpretao da doxa, ou seja, uma interpretao das opinies, crenas e
compreenses que so sustentadas e partilhadas pelas pessoas que constituem o mundo social.
(id., p. 364) Esse procedimento preliminar apenas uma parte do processo interpretativo do
objeto e a pesquisa no pode se reduzir apenas ela, mas deve levar em conta tambm as
estruturas sociais e histricas nas quais aquele campo-objeto se insere. Assim, ao longo da
pesquisa, aliadas s leituras tericas e levantamento de dados nos acervos dos grupos
4
,
realizamos entrevistas, formais e informais, com os participantes, tanto do Anima quanto do
Syntagma, seja ao vivo, ou por telefone, correio eletrnico, webchats etc. Observamos tambm
ensaios, reunies informais, concertos, captando opinies no apenas dos membros mas do
pblico ou do crculo pessoal que acompanha o trabalho deles de perto. Em relao ao grupo
Syntagma, tive uma experincia de trs anos como participante que, longe de comprometer o
olhar, acredito que tenha facilitado a compreenso de suas dinmicas internas, em todos os
aspectos. Em relao ao Anima, acompanhei, ao longo do segundo semestre de 2005, boa parte
dos espetculos da turn de lanamento do disco Espelho, nas cidades de So Paulo, Campinas
e Rio de Janeiro.
Auxiliado continuamente pela interpretao da doxa, o referencial metodolgico de
Thompson compreende trs procedimentos principais: (a) a anlise scio-histrica, (b) a
anlise formal, semitica ou discursiva, e (c) a sntese interpretativa ou reinterpretao.
Segundo o autor (id., p. 365), essas fases devem ser vistas no tanto como estgios separados
de um mtodo seqencial, mas antes como dimenses analiticamente distintas de um processo
interpretativo complexo. O autor elaborou o diagrama exposto a seguir, representativo dessas
formas de investigao hermenutica.
Percebemos ainda que a aplicao deste referencial metodolgico no estudo dos
grupos Anima e Syntagma vai ao encontro da idia de John Blacking
5
para investigar o
fenmeno musical, que deve levar em conta mais que a organizao dos materiais isolados,
deve considerar a experincia dos indivduos sociais que organizam esses materiais em um
4
especialmente partituras, livros tericos e materiais de divulgao. Tambm encontram-se recortes de jornais,
fotografias, projetos, programas de concertos etc.
5
A ser desenvolvida no captulo 1.
16
sentido mais amplo, a experincia de todos que se envolvem com o fenmeno musical, que
compartilham sentidos atravs dele. Portanto, decidimos separar um captulo para cada grupo e
dividir a anlise conforme os estgios propostos por Thompson.
Hermenutica da
Vida Cotidiana
Interpretao da Doxa
Situaes espao-temporais
Campos de interao
Instituies sociais
Estrutura social
Meios tcnicos de transmisso
Anlise semitica
Anlise da conversao
Anlise sinttica
Anlise narrativa
Anlise argumentativa
Referencial
Metodolgico da
Hermenutica de
Profundidade
Anlise
scio-histrica
Anlise Formal
ou Discursiva
Interpretao/
Re-interpretao
Diagrama - Formas de Investigao Hermenutica (id., p. 356)
A anlise scio-histrica tem o objetivo de reconstruir as condies sociais e
histricas de produo, circulao e recepo das formas simblicas, e deve identificar e
descrever as situaes espao-temporais especficas dessas formas simblicas e tambm os
meios tcnicos de construo de mensagens e de transmisso. (id., p. 366; 368) Para
contemplar estes aspectos, esta parte da anlise de cada grupo compreender dois momentos,
para os quais so fundamentais a pesquisa etnogrfica.
O primeiro momento se refere produo de sentidos, est mais ligado aos
emissores, ou seja, aos integrantes dos grupos: o contexto do surgimento, a idia do nome, a
proposta esttica, a dimenso da sonoridade nordestina dentro da proposta, a formao
instrumental, um breve histrico, destacando as principais realizaes, o funcionamento dos
ensaios, relaes inter-pessoais, destaques de alguns componentes mais significativos etc.
O segundo momento da anlise scio-histrica diz respeito circulao e recepo do
trabalho dos grupos, ou seja, os meios tcnicos de que se utilizam, a forma de distribuio, de
divulgao e a receptividade deste trabalho. Diante da enorme quantidade de aspectos,
selecionamos alguns, descritos a seguir. Em relao aos meios tcnicos utilizados, os CDs, as
17
partituras e a Internet
6
. J a distribuio e divulgao necessitam de um entendimento quanto
parte administrativa dos grupos, e tambm a realizao de projetos, a parte financeira e a
presena de apoios culturais. Quanto recepo, envolveria uma pesquisa qualitativa parte,
bastante complexa e da qual no dispusemos de tempo hbil a cumprir, porm alguns aspectos
referentes receptividade podem ser abordados de uma forma mais geral, considerando fatores
como os locais de apresentao, a performance no palco e a interao com os diferentes
pblicos. Outra forma de receptividade abordada a forma como os grupos se relacionam com
a imprensa (programas de TV e jornais impressos), os modos como, por exemplo, estes
veculos apresentam o fazer musical dos grupos, enquanto mediadores sociais. Este enfoque
percebe a transformao nas interaes sociais dos artistas com o seu pblico devido ao
desenvolvimento dos meios de comunicao de massa, nas sociedades modernas, que
ampliaram as possibilidades de acesso ao trabalho artstico no tempo e no espao,
proporcionando-lhes maior visibilidade, embora no sem distores. Leva-se em conta, ainda,
a mediao social da indstria cultural
7
, o modo como os grupos se relacionam diante da
indstria fonogrfica e o modo como esta os classificam no mercado cultural. Por fim,
importante considerar tambm o papel dos incentivos governamentais e mesmo empresariais,
viabilizando alguns dos projetos musicais dos grupos.
Consideramos a informao audiovisual importante para uma melhor compreenso
destes discursos e performances. Assim, selecionamos alguns desses registros audiovisuais,
profissionais e/ou caseiros, disponibilizados gentilmente pelos grupos, e inclumos em DVD,
incluso no anexo 1. Do Syntagma, constam algumas matrias de jornais e participaes em
programas de TV. A maior parte desse material encontrava-se em formato de vdeo VHS,
sendo registrado de forma caseira pelos integrantes. Portanto, realizamos um trabalho de
sistematizao
8
, recuperao e digitalizao de todo o acervo, e fizemos uma montagem e uma
seleo para o DVD. Outra parte do material do Syntagma, e todo o material do Anima incluso
no DVD j se encontrava em formato digital, sendo necessria apenas fazer a seleo e edio
9
.
O vdeo do Anima contm os bastidores da gravao do CD Espelho, com realizao do
6
Os grupos possuem sites particulares e comunidades de discusso, feitas por fs e interessados em seus
respectivos trabalhos, na pgina de comunidades virtuais do Orkut.
7
No sentido ao qual se referiam Adorno e Horkheimer para tratar sobre as indstrias que se especializaram na
mercantilizao das formas simblicas, tomando-as como produtos adaptados ao consumo das massas e que em
grande medida determinam esse consumo. (ADORNO, A indstria cultural. In: COHN (org.), 1987, p. 287)
Alguns autores utilizam o termo cultura de massa. Este assunto ser melhor desenvolvido no captulo 3.
8
Por serem registros para fins pessoais, o material gravado encontrava-se disperso ao longo das fitas de vdeo
cassete, junto com outras gravaes de interesse pessoal, que no possuam qualquer relao com o grupo. No
total, foram oito fitas.
9
Agradeo a colaborao fundamental dos amigos Ramiro Melo (edio e montagem) e Marcelo Weyne
(digitalizao) pelo suporte tcnico na preparao deste DVD.
18
Laboratrio Cisco e Kinostudio Cinema Digital (Campinas-SP). Alm do DVD, inclumos
registros fotogrficos do Syntagma e do Anima, nos anexos 3 e 5, respectivamente.
Aps essa anlise scio-histrica, prosseguimos com a segunda etapa da abordagem
hermenutica de Thompson (id., p. 369), denominada de anlise formal ou discursiva, que
consiste em um tipo de anlise que est interessada primariamente com a organizao interna
das formas simblicas, com suas caractersticas estruturais, seus padres e relaes
10
.
Conforme se observa no diagrama, esta anlise formal pode ser feita de vrias maneiras, de
acordo com as caractersticas da forma simblica em questo, e dos objetivos a serem
extrados. Como forma mais global de analisar a representao do contedo do imaginrio
sonoro nordestino na produo dos grupos, consideramos mais apropriado realizar o que
Thompson classifica de anlise semitica. Este termo possui diversas acepes, baseadas nos
amplos entendimentos do que seja o signo, conforme se verifica no captulo 1. Em
continuidade com o raciocnio a ser explicitado neste, especificamos este processo analtico-
semitico, nas palavras de Thompson (id., p. 370):
Estudo das relaes entre os elementos que compem a forma simblica, ou
o signo, e das relaes entre esses elementos e os do sistema mais amplo, do
qual a forma simblica, ou o signo, podem ser parte. A anlise semitica,
entendida neste sentido, implica geralmente numa abstrao metodolgica
das condies scio-histricas de produo e recepo das formas
simblicas. Ela se centra nas prprias formas simblicas, e procura analisar
suas caractersticas estruturais internas, seus elementos constitutivos e inter-
relaes, interligando-os aos sistemas e cdigos dos quais eles fazem parte.
O autor salienta que o termo semitica aplicado, neste caso, de uma forma bastante
geral, e que este tipo de anlise pode ser til para compreender o processo de construo das
formas simblicas, embora se constitua em um enfoque apenas parcial para o estudo dessas
formas, devendo ser visto como um passo parcial de um procedimento interpretativo mais
compreensivo. (id. p. 371) De acordo com o autor, tomadas desta maneira, estas anlises
podem ajudar a identificar os elementos constitutivos e suas inter-relaes, em virtude dos
quais o sentido de uma mensagem construdo e transmitido. (id., p. 370)
Deste modo, como seria invivel realizar a anlise de todas as msicas executadas
pelos grupos, contornamos esta dificuldade fazendo uma anlise semitica, nos moldes bem
gerais acima descritos - e com base tambm nas consideraes sobre os meios tcnicos de
transmisso cultural nas sociedades modernas -, dos CDs lanados, observando tanto as
caractersticas gerais das msicas, como as imagens do encarte, textos, escolha do repertrio,
ordem das msicas, tendncias sonoras e outras impresses gerais de escuta, priorizando o
10
No constitui, portanto, qualquer relao direta e necessria com o conceito de forma usualmente utilizado no
meio musical, embora dentro das anlises se tenha levado em conta tambm esse aspecto interno especfico.
19
modo como destacam a temtica nordestina. Do Syntagma, so os discos Syntagma (1997) e
Miracula (2004). Do Anima, so: Espiral do Tempo (1997), Especiarias (2000), Amares
(2004) e Espelho (2006).
Alm disso, analisamos, ainda, as estruturas musicais de uma pea de cada grupo. A
seleo destas peas obedeceram ao critrios de terem sido compostas por inspirao livre,
partindo de algum gnero, ritmo ou configurao meldica que nos remeta ao universo sonoro
do Nordeste, em alguma medida. No caso do grupo Syntagma, selecionamos a Seresta n 9, na
qual analisamos o primeiro movimento, Incelena, de Liduno Pitombeira
11
, cuja gravao
encontra-se no segundo CD do grupo (Miracula, 2004). Do grupo Anima, analisamos a msica
Banho-nho, de Jos Eduardo Gramani
12
, escrita originalmente para rabeca e cravo, e
reelaborada em arranjo criado coletivamente pelo grupo, registrado no terceiro disco, Amares
(2004).
Disponibilizamos, tambm, no anexo 1, uma compilao de msicas do Syntagma e do
Anima em dois CDs de adio, de gravaes registradas em seus diversos discos, gentilmente
cedidas por seus integrantes para esta pesquisa. Alm das obras analisadas com mais
profundidade, Incelena e Banho-nho, a compilao contempla outras msicas que fazem
alguma referncia ao universo simblico associado regio Nordeste.
O terceiro estgio do procedimento metodolgico sugerido por Thompson prev uma
interpretao mediada pelos mtodos analticos anteriores. Ou melhor, a partir das anlises
scio-histrica e semitica, possvel projetar alguns significados do fazer musical dos grupos
que podem, inclusive, divergir daqueles construdos pelos integrantes dos prprios grupos nas
interpretaes pessoais contnuas de suas prticas musicais. Por causa disso, o autor prefere
chamar esse processo de reinterpretao, e chama ateno para suas implicaes imediatas:
como uma reinterpretao de um campo objetivo pr-interpretado, o processo de interpretao
necessariamente arriscado, cheio de conflito e aberto discusso. (id., p. 376) Apesar do
risco, consideramos esta parte da pesquisa fundamental, pois nela constam as interpretaes
mais gerais em torno do fazer musical dos grupos, a leitura que eles realizam do universo
sonoro nordestino, suas relaes com as estticas modernista, armorial e ps-modernista, quais
os principais enfoques temticos e que gneros e recursos utilizam mais, em que medida o som
que fazem pode ser classificado como erudito ou como popular, as aproximaes que buscam
com a tradio oral, as linguagens sonoras e os hibridismos utilizados etc. Tomamos como
11
Agradecemos ao compositor a disponibilizao da partitura (inclusa no anexo 4) e a valiosa colaborao com a
anlise.
12
Agradecemos cravista Patrcia Gatti, pela disponibilizao de fotocpia da partitura original para rabeca e
cravo, inclusa no anexo 6.
20
base para fazer esta sntese interpretativa a discusso conceitual sobre o Nordeste, realizada
nos captulos 2 e 3.
Estas interpretaes gerais so feitas com cada grupo individualmente: uma anlise
comparada no objetivo desta pesquisa. Na concluso, pretendemos aproxim-las nos
aspectos necessrios, como parte de uma determinada configurao social, de acordo com o
estudo feito. Em relao s suas propostas estticas, s suas maneiras de organizar as estruturas
musicais, aos valores que conservam e legitimam em relao cultura nordestina, bem como
aos valores que excluem, em que medida esses grupos podem ser considerados modernos ou
ps-modernos, buscaremos uma resposta para essas questes.
21
1 ANIMA E SYNTAGMA: UM PONTO DE VISTA SIMBLICO-CULTURAL
A problemtica central desta pesquisa passa pela relao entre prtica e criao
musicais em conjuntos camersticos e a construo de significados culturais. Trata-se de
investigar quais representaes simblicas do Nordeste os grupos Syntagma e Anima
constituem em suas composies e interpretaes. De uma forma mais abrangente,
questiona-se que leitura(s) os grupos fazem do imaginrio
13
nordestino. Cada um dos termos
destacados possui amplo referencial terico, de autores especializados em reas as mais
diversas (Sociologia, Antropologia, Filosofia, Lingstica, Semitica, Histria etc.), com
idias por vezes contrastantes entre si. Faz-se necessrio, portanto, situar com preciso os
conceitos trabalhados nesta abordagem.
1.1 Entre a autonomia e a contingncia
Em primeiro lugar, no se pretende investigar o significado da msica desses
conjuntos afirmando que os signos sonoros apresentam uma nordestinidade em sua
natureza intrnseca, como se isso de fato existisse. Prope-se, ao invs disso, procurar o
significado deste fazer musical para as pessoas que dele participam, sejam compositores,
intrpretes ou ouvintes, em suas expresses individuais, sociais e culturais. Afinal, quem
decide o que ou no um som musical so os seres humanos, e esta deciso passa no apenas
por quem o elabora ou compe, mas tambm por quem o percebe, ouve ou consome. Assim,
as perguntas aqui postas dizem respeito menos a o que significa e mais a como e por qu.
O problema da significao da msica, na tradio ocidental europia, envolve duas
grandes tendncias distintas: de um lado, um sentido de autonomia, que preza um
universalismo transcendente; de outro, um sentido de contingncia, que preza a
inteligibilidade da produo musical atrelada s construes histricas. Lawrence Kramer
(2002, p. 2) arrisca comparar esse dualismo caracterstico da msica com o famoso quadro
em cujos traos se pode identificar tanto um pato como um coelho, mas nunca ambas ao
mesmo tempo, conforme discutido por Wittgeinstein no seu livro Investigaes Filosficas.
O mesmo dilema apresentado por Jean-Jacques Nattiez (2005) sob a metfora de um
combate entre Cronos e Orfeu
14
, em que Cronos representa as contingncias temporais contra
13
No sentido daquilo que se imagina como o conjunto de caractersticas, traos e smbolos da vida de um povo.
14
Na mitologia grega, Orfeu e Eurdice se apaixonam, mas ocorre uma tragdia e Eurdice morre, no dia do
casamento. Orfeu desce ao Reino dos Mortos a fim de resgat-la e comove o deus Pluto com o toque de sua
harpa, de tal modo intenso que este lhe permite levar a noiva de volta, com a condio de que Orfeu s olhasse
para ela quando retornassem ao Reino dos Vivos. Orfeu no resiste tentao, desobedece, e Eurdice
22
as quais a msica, ou Orfeu, pelo decurso sonoro que nos prende a ateno, nos encanta ou
nos entretm, busca sua perpetuao.
Em palavras menos alegricas, possvel investigar o fenmeno musical tendo
como base tanto seus aspectos internos, formais e estruturais, como os aspectos externos,
histricos e culturais. Ambos os aspectos podem remeter a msica a mltiplos significados,
de modo ambivalente, e com referncias a discursos anteriores, tanto no mbito interno das
obras quanto no externo das prticas musicais. Porm, dificilmente os estudos musicolgicos
apontam para uma interao entre os dois aspectos. Quando no se apresentam como
excludentes, so, no mximo, colocados como subordinados um do outro, dependendo da
posio que se busca defender.
A defesa da autonomia est ligada a uma posio formalista, cujas idias
principais se definem, na classificao de Giovanni Piana (2001, p. 290-291), do seguinte
modo:
A msica basta a si mesma. Por isso, voc no deve ir procura de algo
que est abaixo ou alm da superfcie sonora. (...) O que foi pensado pelo
musicista so justamente estes sons os seus pensamentos so
precisamente pensamentos musicais, isto , pensamentos feitos de sons
15
.
Podem-se considerar adeptos dessa posio formalista estudiosos e compositores
como Eduard Hanslick (1825-1904), Igor Stravinsky (1882-1971), Arnold Schoenberg
(1874-1951), Pierre Boulez (1925-), dentre outros. certo que estes autores possuem
diferentes argumentos para definir aquela posio, porm todos esto de acordo com uma
orientao antipsicologista da obra, no dizer de Piana (id., p. 292), que busca defini-la
mais no seu ser, do que na sua origem e na sua destinao. Uma tomada de posio que,
obviamente, no vale somente na orientao da produo, mas tambm naquela da execuo,
da escuta e do discurso crtico
16
.
Vale ressaltar que estas preocupaes em delimitar espaos e estabelecer limites
para o campo de significao musical so caractersticas marcantes do sculo XX, bem como
a predominncia dessa tendncia formalista, de forma genrica, que se colocou fortemente
desaparece para sempre. Nattiez (2005, p. 9) explica a metfora contida no mito da seguinte forma: atravs da
msica, Orfeu tenta arrancar todos aqueles que o ouvem do curso inexorvel do Tempo. Cronos deixa o aedo
crer por um momento em sua vitria, mas, depois de fingir ceder seduo de sua voz, provoca sua morte.
Definitivamente?
15
Os grifos nas citaes, ao longo do trabalho, quando no houver ressalva, so sempre do autor.
16
O detalhamento dessas diferenas foge aos objetivos desta pesquisa, cuja abordagem metodolgica vai de
encontro perspectiva formalista. A ttulo de ilustrao, apresenta-se algumas afirmaes desta perspectiva:
Julgar, questionar e criticar o princpio da vontade especulativa que est na origem de toda criao , assim,
definitivamente intil. Em seu estado puro, msica especulao livre. (STRAVINSKY, 1996, p. 52-53)
Tomaremos ainda a deciso de desprezar contextos e esquecer o tempo de cuja onipresena os manuais
tiranicamente nos lembram? Poderamos ignorar as circunstncias, bani-las de nossa memria, enterr-las no
esquecimento para nos guiarmos seno pela interioridade da obra? (BOULEZ, 1985 apud NATTIEZ, op. cit.,
p. 88)
23
contra a perspectiva romntica, em diversos aspectos. Os compositores do sculo XX
costumam, por exemplo, prevenir-se e explicar-se em relao a qualquer referncia
extramusical que possa ter servido de ponto de partida, guia ou referencial para suas criaes,
como uma obra plstica ou literria. Tais problemticas, em geral, sequer eram questionadas
pelos msicos no sculo XIX
17
. No lhes parecia preocupante que a fico das remisses
extrnsecas fosse explicitamente separada do real contedo das combinaes de sons: o
fundamental se constitua em transmitir pensamentos e sentimentos por meio daquela forma
de expresso musical.
Do ponto de vista etnomusicolgico aqui adotado, estuda-se a msica como uma
produo de sons estruturados pelos seres humanos, dentro de uma perspectiva
comunicacional
18
, ou seja, como afirma John Blacking
19
(1995, p. 223), toma-se como
premissa que a msica se faz tanto pela capacidade criativa humana como pela relao dos
homens com as convenes do sistema cultural no qual se inserem. Assim, os pensamentos
musicais podem ser considerados, ao mesmo tempo, individuais e coletivos, posto que se
enfatiza no o fenmeno acstico isolado da combinao de sons, mas o processo deste fazer
musical que estabelece ligaes entre um ou mais indivduos com outrem. Blacking
20
(id., p.
127) ressalta este carter do fenmeno musical da seguinte forma:
O fazer musical no simplesmente um exerccio de organizao do som;
uma expresso simblica de organizao social e cultural, que reflete
21
os
valores e os modos de vida passados e presentes dos seres humanos que a
criam. Assim, a lgica e o significado dos parmetros musicais no podem
jamais ser entendidos completamente sem referncia a outros fenmenos
culturais dos quais eles fazem parte
22
. (grifo meu)
17
Posies como as de E. Hanslick e Friedrich Nietzsche (1844-1900) podiam ser consideradas, na poca, vozes
dissonantes do discurso esttico dominante.
18
De acordo com o pensamento de Anthony Seeger (2004, p. 5): Msica um sistema de comunicao que
envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunicam com outros
membros. (...) Diferentes comunidades tero diferentes idias de como distinguir entre diversas formas de sons
humanamente organizados.
19
Tomamos como referncia o artigo Music, Culture, and Experience, reimpresso em coletnea homnima
deste autor. A primeira publicao data de 1984.
20
Em outro artigo da mesma coletnea, intitulado Music and the Historical Process in Vendaland. A primeira
verso foi publicada em 1971.
21
Adiante (na p. 26), faz-se uma ressalva empregabilidade deste termo por parte do autor.
22
Traduo de: Music-making is not simply an exercise in the organization of sound; it is a symbolic
expression of social and cultural organization, which reflects the values and the past and present ways of life of
the human beings who create it. Thus the logic and meaning of musical patterns can never be understood fully
without reference to other phenomena in the culture of which they are a part. Ao longo da dissertao, sempre
que o idioma original for referenciado no rodap, a citao corresponde a uma traduo pessoal.
24
1.2 Sobre a noo de representao simblica na msica
Foge ao mbito desta pesquisa a enumerao e discusso das diversas acepes que
o termo smbolo vem recebendo ao longo da histria, inclusive no mbito musical. Roland
Barthes (1999, p. 44) j afirmara que a palavra envelheceu um pouco, e que houve um
deslizamento terminolgico em direo aos termos signo, ou ainda, significao. Em todo
caso, a temtica em torno da semiologia, ou semitica, permanece. Conforme apontado por
Jos Miguel Wisnik (2002, p. 82), a origem etimolgica grega do termo smbolo quer dizer
aquele que joga unindo, o que nos conduz a partilhar, independentemente da nomenclatura
ou da corrente semiolgica, as linhas gerais em torno do que chamamos de representao
simblica nesta pesquisa. Para isso, especificamos, a seguir, as diferenas conceituais aqui
adotadas entre smbolo e signo. Em seguida, explicamos as solues propostas para a anlise
dos grupos na difcil problemtica entre a realidade e suas representaes.
O signo remisso de qualquer coisa a alguma outra coisa, acrescentando-se, para
algum (NATTIEZ, op. cit., p. 23). Alm do mero aspecto fsico, o contato dos seres
humanos com o mundo exterior ocorre pelos signos
23
. Estes contm ou representam
determinados sentidos, compartilhados culturalmente. Terry Eagleton (2005, p. 141) aponta
com bastante lucidez as implicaes paradoxais deste ato humano de conferir sentido:
O que peculiar a respeito de uma criatura criadora de smbolos que
pertence sua natureza transcender a si mesma. o signo que abre aquela
distncia operativa entre ns mesmos e nossos arredores materiais e que
nos permite transform-los em histria. No apenas o signo, certamente,
mas em primeiro lugar a forma como nossos corpos so moldados, capazes
tanto de trabalho complexo como daquela comunicao que deve
necessariamente sustent-lo. A linguagem ajuda a nos libertar da priso de
nossos sentidos, ao mesmo tempo que nos abstrai nocivamente deles.
Entende-se o smbolo como um tipo de signo que concretiza sua remisso de um
modo menos direto, idntico ou similar ao objeto ao qual se refere: um signo que evoca um
outro signo ou signos, percebido por associaes abstratas, sejam elas por afinidade,
analogia, experincias psquicas individuais ou conveno. Alis, Chevalier (2006, p. XVIII)
adverte-nos que, mais do que um signo qualquer, o smbolo transcende o significado e
depende da interpretao que, por sua vez, depende de certa predisposio. Est carregado de
23
Conforme idias de Mikhail Bakhtin, em obra assinada por seu colaborador, V. N. Volochnov (1986, p. 49).
Na mesma obra, em outra passagem: A significao pertence a uma palavra enquanto trao de unio entre os
interlocutores, isto , ela s se realiza no processo de compreenso ativa e responsiva. A significao no est
na palavra nem na alma do falante, assim como tambm no est na alma do interlocutor. Ela o efeito da
interao do locutor e do receptor produzido atravs do material de um determinado complexo sonoro. (id., p.
132)
25
afetividade e de dinamismo. Assim, ao afirmar que a msica contm uma funo simblica,
queremos dizer que ela capaz de nos conduzir a significados cuja natureza no se esgota
apenas nos traos constitutivos da estrutura musical em si, enquanto matria sonora
organizada. As estruturas e os parmetros sonoros da msica podem se relacionar com outros
objetos culturais, e at mesmo com sentimentos e estados de esprito humanos. Tais
configuraes simblicas nem sempre so intencionais por parte do compositor ou dos
intrpretes, e o sentido que se lhes atribui pode ser diferente entre culturas distintas, e
tambm dentro de uma mesma cultura ao longo do tempo.
O conceito de representao aqui entendido em concordncia com a linha de
estudos da histria cultural, que busca compreender como a realidade social construda ou
pensada pelos indivduos em diferentes lugares ou momentos histricos. De acordo com
Roger Chartier (2002), um dos sentidos clssicos do termo representao seria a imagem
construda de um objeto ausente, pela qual este objeto se faz ver, de forma que a imagem
vale pelo objeto. A partir da, o autor prope enxergar o mundo social como uma luta de
representaes, donde a noo de leitura como processo de construo de sentidos (id., p. 23-
24):
A problemtica do mundo como representao, moldado atravs das sries
de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a
uma reflexo sobre o modo como uma figurao desse tipo pode ser
apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que do a ver e a
pensar o real. Da, (...) o interesse manifestado pelo processo por
intermdio do qual historicamente produzido um sentido e
diferenciadamente construda uma significao.
No seria arriscado afirmar que este conceito pode se aplicar tambm aos leitores
dos sons, e que por meio dele se possa afirmar a presena, no mbito simblico j
especificado, do imaginrio nordestino no trabalho dos grupos e compreender como eles
constrem estas significaes. A noo de leitura
24
, assim adotada, evita explicaes do tipo
causal entre as estruturas musicais e outros fenmenos culturais. Esta preocupao parece
perpassar tambm o pensamento de Blacking
25
(op. cit., p. 174), quando ele afirma:
A eficcia dos smbolos musicais depende tanto da ao humana e do
contexto social quanto da estrututura dos smbolos em si. Eu questiono a
idia de que haja uma relao causal direta entre os sons da msica e as
respostas humanas a eles (...) Coisas no acontecem automaticamente com
as pessoas porque os sons musicais chegam aos seus ouvidos: para os sons
organizados afetarem os sentimentos e as aes das pessoas, elas devem
24
Conforme apontado por Maria Manuela Galhardo, tradutora do livro citado de Chartier, em nota de
apresentao, o conceito-chave de leitura ser para Chartier o que as relaes de interdependncia so para
Norbert Elias e a noo de campo para Bourdieu. (id., p. 11)
25
Na citada coletnea, em artigo intitulado Reflections on the Effectiveness of Symbols, publicado originalmente
em 1985.
26
no apenas estarem predispostas a ouv-los, como tambm precisam ter
adquirido certos hbitos de assimilao sensorial.
26
Embora enfatize a autonomia dos indivduos quanto ao fazer musical, em vez de
adotar determinismos scio-histricos redutores, Blacking, de certa forma, acaba
compartilhando dessa viso quando se utiliza da analogia do espelho da arte que reflete os
valores sociais, conforme citado na pgina 23.
Alguns pesquisadores discordam dessa analogia, apresentando argumentos, a nosso
ver, mais pertinentes. Christopher Alan Waterman (1990, apud STOKES, 1997, p. 5)
considera importante perceber na msica, mais que um objeto simblico fixado num
momento histrico permeado de um contexto, mas perceb-la, e ao fazer musical, como
agentes que interferem e interpenetram outras configuraes sociais
27
. Por seu turno, Vanda
Freire (1994, p. 129) tambm critica essa explicao dos significados inerentes msica
como simples reflexos da sociedade. Ela afirma que os significados so parte da existncia e
da realidade, e tambm possuem responsabilidade efetiva na construo da sociedade. No se
pode, portanto, considerar os signos sonoros e o imaginrio a que se vinculam como
pertencentes a planos distintos: a sociedade se exprime, tambm, por meio de signos sonoros
musicais. Isso no implica que haja uma predeterminao do social, nem elimina novas
possibilidades de significao, sejam elas referenciadas no presente ou no passado histrico,
conforme explica a autora (id., ibid.):
Os signos utilizados na linguagem musical reportam-se rede simblica
presente no momento histrico de sua elaborao, mas, tambm, os signos
utilizados podem ser investidos de outras significaes que no
correspondem a esse mesmo momento histrico, assim como podem
portar, residualmente, significados elaborados em momentos histricos
outros, e que, portanto, esto sendo utilizados atravs de um processo de
ressignificao.
Essa questo da msica como reflexo da sociedade pode ser fruto de uma
interpretao marxista que perdura, em certo sentido, uma viso determinista da infra-
estrutura (ou seja, da produo de mercadorias) sobre a superestrutura (ou seja, a produo
simblica). Tal viso de mundo entende que as relaes econmicas de uma sociedade
determinam as outras formas de sua organizao e que a arte se configuraria, neste caso, em
uma representao ideolgica das tenses existentes nas relaes sociais de produo. Seria,
26
Traduo de: The effectiveness of musical symbols depends as much on human agency and social context as
on the structure of the symbols themselves. I question the idea that there is any direct causal relationship
between the sounds of music and human responses to them () Things do not happen to people automatically
because musical sounds reach their ears: if organized sounds are to affect peoples feelings and actions, people
must not only be predisposed to listen to them, they must also have acquired certain habits of assimilating
sensory experience.
27
Por exemplo, nos ambientes familiares, no trabalho, no lazer, nas relaes de amizade, na religio, na guerra,
na poltica, na morte, nos cuidados com a sade fsica e mental etc.
27
portanto, um reflexo da realidade scio-econmica e da vida quotidiana
28
. Os signos e as
representaes simblicas seriam, nessa perspectiva, explicados como desvios ou reflexos de
um real, equivalente ao mundo social em transformao. Esta preocupao com a ideologia
29
,
explicando as conexes entre a arte e a estrutura social tambm leva a um outro problema,
assim destacado por Garca Canclini (1980, p. 22):
Separar, dentro da obra, o contedo da forma, privilegiando o primeiro
pela maior clareza com que exibe os condicionamentos externos, e reduzir
as diversas linguagens artsticas s idias que se crem encontrar nelas
(fala-se de idias musicais no mesmo sentido de idias poticas ou
novelsticas, esquecendo-se as diferentes relaes semnticas que cada arte
estabelece com seus condicionamentos sociais, seus diversos sistemas de
signos e tcnicas de composio).
Por seu turno, as correntes sociolgicas, histricas e musicolgicas ligadas, de
algum modo, ao pensamento hegeliano, tambm contriburam para esta fragmentao dos
aspectos material e espiritual do processo artstico, na medida em que tal pensamento dava
maior nfase idia da liberdade de criao intelectual ou esttica, baseada na capacidade de
inveno individual. A explicao do fenmeno artstico, neste caso, pode se dar pelas
influncias entre indivduos com maior ou menor aptido ou dom, no havendo, em
geral, qualquer questionamento entre suas intenes e o resultado da obra.
Para conceber a representao simblica que o Anima e o Syntagma fazem do
Nordeste brasileiro, procura-se, nesta pesquisa, recusar tanto as concepes metafsicas ou
transcendentais da liberdade absoluta humana, quanto as concepes deterministas
limitadoras. No se trata de uma interpretao abstrata de uma realidade concreta, a
msica como metfora da sociedade. A este respeito, considera-se mais apropriado a
perspectiva de uma liberdade interdependente, proposta de Norbert Elias para compreender
a complexa rede de dependncias recprocas entre as aes individuais e a configurao do
jogo social, conforme explica Chartier (op. cit., p. 102):
Contra uma concepo empobrecedora do real muitas vezes encontrada
no meio dos historiadores, e que s tem em conta o concreto de existncias
individuais bem identificveis, Elias prope uma outra maneira de pensar,
que considera de igual modo reais as relaes, evidentemente invisveis,
que associam essas existncias individuais, determinando assim a natureza
da formao social em que elas se inscrevem.
A perspectiva etnomusicolgica considera as obras musicais como formas
simblicas, no transcendentes, no acabadas, no desvinculadas do contexto histrico-
28
Alis, o prprio quotidiano dos indivduos seria, de certo modo, condicionado s bases materiais e estrutura
econmica (modo de produo).
29
Na acepo crtica do termo, conforme Marx e Engels no texto A ideologia alem, significando uma falsa
conscincia, ou efeito de iluso ou alienao que se produz como mascaramento necessrio dominao de
classe. (AMORIM, 2004, p. 143)
28
cultural, e neste sentido se aproxima dos estudos antropolgicos e sociolgicos que
problematizam os fenmenos culturais, dentre eles as obras de arte, os produtos miditicos,
os rituais, os gestos, as manifestaes escritas e verbais etc, como modos de expresso social
dos seres humanos. No caso particular desta pesquisa, a msica dos grupos Anima e
Syntagma um tipo de forma simblica, na acepo do termo colocada por John Thompson
(2000, p. 34):
As formas simblicas no subsistem num vcuo: elas so fenmenos
sociais contextualizados, so produzidas, circulam e so recebidas dentro
de condies scio-histricas especficas que podem ser reconstrudas com
a ajuda de mtodos empricos, observacionais e documentrios.
1.3 Significados musicais: relaes entre a dimenso autnoma e a dimenso
contingente
interessante observar que a universalidade pretendida pela nfase da autonomia,
fundamentada por argumentos racionalistas, com mtodos pertinentes, est vinculada aos
interesses comuns dos indivduos que dela partilham ou mesmo que a elaboram. Blacking,
por seu turno, reconhece um carter no-referencial
30
da msica em si, e afirma que
justamente esse carter o que nos permite atribuir, de modo freqentemente arbitrrio,
quantos significados e valores nos for possvel imaginar. Sob este aspecto, Kramer (op. cit.,
p. 3-4) compartilha o pensamento de Blacking, quando exemplifica de forma bastante efetiva
ainda a interao dual entre o carter contingente e o autnomo na msica:
Virtualmente, [a msica] se mistura com qualquer coisa, palavras, imagens,
movimento, narrativa, ao, inrcia, comida, bebida, sexo, e morte. (...) Por
outro lado, a msica permanece inteiramente impassvel diante das coisas
com as quais ela se mistura, no importando o quanto elas possam guiar ou
at coagir sua expressividade
31
.
Nattiez (op. cit., p. 30) divide a capacidade perceptiva do ordenamento sonoro
musical em duas dimenses. A primeira seria de ordem sinttica, fazendo uma analogia entre
as notas e os fonemas lingsticos, j que elas so as unidades que constituem as escalas, as
30
Conforme se observa neste trecho do artigo The Study of Musical Change, publicado originalmente em 1977,
e reimpresso na coletnea j citada: In so far as music is in itself non-referential, almost any meaning or value
can be assigned to it. (BLACKING, op. cit., p. 151) De nossa parte, consideramos o uso do termo no-
referencial pouco apropriado, por remeter a uma ausncia de significado ou uma espcie de niilismo da
msica. Entende-se que, talvez, seja mais indicada a expresso auto-referente. Em todo caso, ambas as
expresses acabam se aproximando, num sentido filosfico, conforme argumenta Piana (op. cit., p. 307): [a
msica] fala de nada, ou simplesmente no fala. Mesmo assim, nestas negaes existe a afirmao de todas as
coisas extremamente grandes que ela faz transparecer justamente neste seu no-falar. A ausncia de sentido
deve ter como contrapeso o excesso de sentido, a insistncia sobre uma noo de signo cuja relao indicativa
se prope desde o incio como um enigma obscuro, mas que prepara o salto para a nfase do sinal indecifrvel.
31
Traduo de: [Music] mixes with virtually anything, words, images, movement, narrative, action, inaction,
eating, drinking, sex, and death. () On the other hand, music remains entirely unaffected by the things with
which it mixes, no matter how they may direct or even coerce its expressivity.
29
formas, os perfis meldicos e harmnicos. Neste mbito, o autor considera que o significado
musical se esvazia, se neutraliza ou ainda que coincide com a prpria forma. A outra
dimenso seria a semntica, a capacidade da experincia humana musical dialogar com
outras experincias culturais, sejam polticas, filosficas, religiosas, ldicas, dentre outras.
Para Nattiez, a compreenso do significado da msica, ou a semiologia musical, no pode se
restringir aos objetivos dos mtodos convencionais de anlise, pois estes levam em conta
somente as remisses intrnsecas. Afirma o autor (id., p. 30):
Para explicar plenamente o funcionamento semiolgico de uma obra ou de
uma prtica musical, preciso ir alm das estruturas imanentes
recorrendo, no dizer de Molino anlise do nvel neutro e considerar
as estratgias de criao que originaram tais estruturas (poitica) e as
estratgias de percepo por elas desencadeadas (estsica).
Blacking
32
(op. cit., p. 225) chega a mesma concluso, apresentando um argumento
diferente: Assim, os signos no tm qualquer significado a menos que o significado seja
compartilhado, de modo que os processos de compartilhamento tornam-se to cruciais para a
semitica da msica quanto o produto sonoro que proporciona o foco da anlise
33
.
No entanto, Blacking, em artigo anterior
34
, prope que o pesquisador trate o objeto
musical como moralmente neutro, que no avalie as mudanas da manifestao musical
como boas ou ms, mas apenas as observe, descrevendo-as e relacionando-as a outras
mudanas sociais dos indivduos que produzem, tocam e consomem determinada msica
35
.
Ao propor essa neutralidade cientfica, na tentativa de evitar um posicionamento
ideolgico ou poltico do pesquisador, o autor acaba por reforar a legitimao de um
discurso aparentemente objetivo, da mesma forma que critica nos ditos formalistas ou
estruturalistas, utilizando seus critrios como armas nas lutas simblicas pelo conhecimento
e pelo reconhecimento, conforme aponta Pierre Bourdieu (2000, p. 119-120) a respeito dos
efeitos simblicos exercidos pelo discurso cientfico.
Na classificao de Piana, as dimenses sinttica e semntica da msica so
apresentadas, respectivamente, como dois componentes de princpio: um componente
estruturalista e um simbolista. As figuras musicais se relacionam e se articulam entre si, e
neste sentido se pode falar em pensamentos exclusivamente musicais. A posio formalista,
que enfatiza a dimenso estruturalista em sua abordagem, tende a considerar prejudicial os
32
Em artigo j citado, Music, Culture, and Experience.
33
Traduo de: Thus the signs have no meaning until that meaning is shared, so that the processes of sharing
become as crucial to the semiotics of music as the sonic product which provides the focus for analysis.
34
Referimo-nos ao tambm citado The Study of Musical Change.
35
Unless music in itself has more than the often arbitrary significance assigned to it by the social groups that
perform it and listen to it, it must be treated as morally neutral, and musical change can be neither deplored nor
welcomed: it can only be described and related to other changes in the society of the music-makers and
consumers. (id., p. 157)
30
aspectos simblicos ou qualquer ligao sugestiva externa que venha a se corresponder com
as articulaes internas da msica, como se aqueles aspectos atrapalhassem ou impedissem
uma possvel descoberta ontolgica da obra musical. Porm, o aspecto simblico tambm
uma possibilidade originria da msica, posto que os sons, articulados naquelas
configuraes internas, constituem, eles mesmos, dinamismos imaginativos latentes. (op.
cit., p. 326)
Assim, os elementos intrnsecos de uma obra musical, como em qualquer obra de
arte, so dotados de uma sintaxe particular que confere estrutura total da obra uma
autonomia como objeto de valor em si. Isto no quer dizer que a msica no possa conter
uma significao no mbito semntico nem que ela deva ser analisada isolada e
independentemente de seu contexto. Em outras palavras, no se trata, portanto, de
simplesmente reconhecer ou constatar as diferentes dimenses da msica, mas de destacar e
enfatizar essas dimenses, seus pesos e possibilidades: trata-se de perceber a msica como
uma experincia mediada socialmente (KRAMER, op. cit., p. 4), na tentativa de estabelecer
uma interao entre as esferas autnoma e contingente
36
. Para isso, Kramer prope a seguinte
soluo: tomar a questo da autonomia musical como uma construo histrica. Assim,
mantm-se o foco na dimenso semntica, de modo que nela se incluam os aspectos
estruturais concernentes dimenso sinttica. Em vez de menosprezar a autonomia, leva-se-
lhe em conta como um aspecto indispensvel na teia de significados das prticas
contingentes. Nattiez (op. cit., p. 31) prope algo similar, quando diz que no se trata de
esquecer as estruturas, porm de se apoiar nelas ou as integrar em uma perspectiva que as
ultrapasse. A autonomia e a contingncia podem ser consideradas formas de pesos
equivalentes na abordagem musicolgica, cada uma com suas especificidades, vantagens e
desvantagens, porm, a interao entre elas encontra-se no seio das dinmicas culturais,
produzidas no mbito contingente, o que implica, segundo Kramer (op. cit., p. 27), uma
dvida secreta do aspecto autnomo em relao ao contingente: Cronos venceria,
invariavelmente, portanto, Orfeu.
No que diz respeito neutralidade do objeto musical, seja no sentido tomado por
Molino e Nattiez, do nvel neutro dos elementos internos musicais e suas combinaes, seja
no sentido relativista de Blacking que prope uma iseno de julgamento aos signos musicais
36
Piana (op. cit., p. 334) tambm concorda com esta posio, quando afirma: so com certeza as formas de ser
e as maneiras de pensar dos homens que determinam o horizonte de motivos que permite imaginao musical
comear o seu curso, colocando em movimento aquela dialtica da qual nascem as suas obras. Nenhum
pensamento musical poderia nascer se no existissem outros pensamentos. Por isso, ser certamente errado
sustentar que estes outros pensamentos no podem de modo algum penetrar no interior da pea musical,
contribuindo para determinar o seu sentido.
31
constitudos socialmente, possvel apresentar uma soluo com base nas idias de Bakhtin
(apud AMORIM, 2004, p. 134) em relao palavra, isto , ao ato de enunciao
37
:
As palavras da lngua no so de ningum, mas, ao mesmo tempo, s as
ouvimos sob forma de enunciados individuais, s as lemos em obras
individuais e elas possuem uma expresso que no somente tpica, mas
tambm individualizada (segundo o gnero onde ela aparece) em funo do
contexto individual, no reprodutvel do enunciado. (...) Podemos dizer que
a palavra existe para o locutor sob trs aspectos: enquanto palavra neutra
da lngua e que no pertence a ningum, enquanto palavra de outrem
pertencente aos outros e plena do eco dos enunciados dos outros, e,
finalmente, palavra sua, pois na medida em que lido com esta palavra
numa situao dada, com uma inteno discursiva, ela j est penetrada por
minha expresso.
Bakhtin argumenta que a palavra seria um signo, ao mesmo tempo, neutro e
dotado de maior ideologia
38
. Ele destaca suas propriedades semiticas e suas implicaes na
comunicao humana do dia-a-dia, sua possibilidade de se encontrar interiorizada e difusa
nos indivduos, ou de estar presentificada em forma de ato consciente. Enfim, a palavra
acompanha qualquer outro sistema de signos que constitui qualquer domnio ideolgico, seja
ele esttico, religioso, cientfico, e tambm o domnio musical. Bakhtin enfatiza que cada
domnio apresenta suas especificidades na elaborao e articulao de signos, smbolos e
materiais, mas estes fenmenos no seriam totalmente inteligveis sem a operao do
discurso, sem a palavra, cujo sentido se determina mltiplo ou uno quantos forem os
contextos possveis. A unicidade da palavra encontra-se tanto na forma que tomam suas
estruturas fonticas como em cada significao particular a que ela remete. Sua
multiplicidade encontra-se na capacidade de remeter a diversas significaes em diversos
contextos. Para ele, este problema da interao entre a unicidade e os aspectos polissmicos
da palavra pode ser resolvido pela dialtica, assim como tambm dialtica a relao da
palavra que atua nos diversos sistemas de signos. Desta forma, ele explica que a palavra no
est acima dos outros signos ideolgicos, inclusive os musicais, conforme a afirmao
(BAKHTIN; VOLOCHNOV, op. cit., p. 38):
impossvel, em ltima anlise, exprimir em palavras, de modo adequado,
uma composio musical ou uma representao pictrica. (...) Negar isso
conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiros. Todavia, embora
nenhum desses signos ideolgicos seja substituvel por palavras, cada um
deles, ao mesmo tempo, se apia nas palavras e acompanhado por elas,
exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical.
37
Conforme Marlia Amorim: Quando Bakhtin fala de palavra (...) ser preciso entend-lo, a rigor, como
palavra-enunciado. (id., ibid.)
38
O termo ideologia utilizado por Bakhtin num sentido diferente daquele sentido marxista clssico. Designa
simplesmente uma viso de mundo, um ponto de vista, de natureza social mas no necessariamente
vinculado luta de classes. (id., p. 143)
32
Dar ouvidos s palavras que acompanham o discurso musical, neste sentido
bakhtiniano, coloca-se em perfeita sintonia com a posio de Blacking
39
(op. cit., p. 37),
quando ele ressalta que o estudo do fenmeno musical no se restringe apenas ao estudo dos
elementos internos da msica, e tambm quando ele chama a ateno para a experincia
cultural dos indivduos na distino entre, por exemplo, a msica e o rudo, o caos e o
equilbrio, ou a dissonncia e a consonncia. Tambm em conformidade com Bakhtin, e
complementando a argumentao, esto as idias de Piana (op. cit., p. 321), que resumem a
abordagem aqui pretendida em relao aos grupos Anima e Syntagma: Se possvel
levantar uma problemtica do sentido com relao msica, ela no implica a sua suposta
natureza lingustica ou no lingustica, mas sim a forma em que acontece o encontro entre a
imaginao e o universo dos sons.
A questo da polissemia da palavra conduz s construes dos significados
musicais e apreenso do discurso sonoro com base nas diferentes vozes participantes no
fenmeno musical: compositores, intrpretes, ouvintes. Neste sentido, Blacking (op. cit., p.
224) tambm se aproxima de Bakhtin, quando afirma uma relativizao do controle do
significado das prticas musicais, tanto por parte dos intrpretes quanto dos ouvintes e
destaca que a gramtica musical dos primeiros, assim como suas experincias pessoais,
podem ser to importantes quanto a partitura, sendo esta apenas um guia aproximado que o
intrprete toma como base para a performance
40
. Certamente, os ttulos das msicas, os
textos dos encartes dos CDs, as declaraes em veculos da imprensa e os discursos
explicativos durante os concertos podem induzir significados, ou melhor, possvel que haja,
de um lado, uma integrao forjada entre os sons e os significados que as peas musicais, por
si mesmas, no representem de forma alguma. Porm, de outro lado, necessrio reconhecer
que a palavra, conforme insiste Piana (op. cit., p. 331), pelas suas referncias narrativas e
descritivas e por meio dos seus fantasmas retroage sobre os dinamismos imaginativos da
composio sonora, conferindo-lhe os prprios contornos.
Trata-se, portanto, mais uma vez, de analisar a msica no de forma isolada, mas
em conjunto com a palavra proposta, ou o resultado de sua escuta vinculado s convenes
estabelecidas tanto no componente estrutural quanto no simblico. Ao se tomar o objeto
musical como forma simblica, tal anlise torna-se possvel por implicar os aspectos de
produo, circulao e recepo daquele objeto, que obedecem a certos cdigos ou
convenes interpretativos tanto de quem elabora a msica quanto de quem a recebe. Estes
cdigos, mesmo que no sejam claros ou explcitos, esto ligados direta e implicitamente
39
Em artigo intitulado Expressing Human Experience through Music, publicado originalmente em 1969.
40
Artigo idem rodap 7 (p. 23).
33
com situaes prticas de convvio social, cujas configuraes de sentidos encontram-se
sempre abertas a possveis modificaes e at mesmo sanes por parte daqueles que delas
compactuam. Se enfatizarmos o aspecto de transmisso cultural do objeto musical como
forma simblica, tem-se, de um lado, os meios tcnicos empregados (discos, fotografias,
partituras, textos publicados em mdias impressas, audiovisuais, eletrnicas etc.) que
garantem determinados graus de fixao e reproduo material e simblica; de outro, tem-se
um aparato organizacional e estratgico dos grupos que torna possvel desenvolver estas
atividades culturais, bem como o desenrolar de suas repercusses junto ao pblico,
imprensa e ao mercado cultural. Alm disso, a transmisso cultural implica um
distanciamento espao-temporal, que nos leva a examinar tanto a justaposio de contextos
sociais quanto a extenso da acessibilidade e disponibilidade daquela msica.
importante ressaltar que o substrato material, por si s, apenas dotado de
propriedades com diferentes mecanismos de estocagem de informao (THOMPSON, op.
cit., p. 222). A fixao e transmisso das formas simblicas ocorre, de fato, em virtude de
outros aspectos culturais, tais como a faculdade da memria, o estabelecimento de rotinas e
das prticas ritualizadas. Estes aspectos, em conjunto com as diferentes relaes hierrquicas
que os integrantes mantm com as instituies de poder, seja econmico, poltico ou cultural,
tambm interferem nos graus de controle, por parte dos grupos, sobre o processo de
transmisso cultural de suas msicas.
1.4 Realidades e representaes: conflito ou confluncia?
Deste modo, a ligao entre os elementos internos articulados das peas musicais
aqui analisadas, dentro das prticas dos grupos Anima e Syntagma, e o imaginrio sonoro
com o qual eles dialogam, que aqui chamamos de sua representao simblica, pode ser
identificada se considerarmos um sentido e uma memria musical que se encontra alm
daquelas configuraes puramente internas de combinaes sonoras, que acompanham o
evento da msica no decorrer do tempo em que executada ou ouvida. Posto que o
imaginrio sonoro encontra-se num grau diferente daquele da imaginao contida na criao
das formas composicionais dos sons, necessrio tomar as peas musicais como estruturas
semanticamente abertas. O modo como a imaginao criativa dos grupos, em suas
interpretaes, arranjos, e composies se relaciona com o imaginrio sonoro de seus
referenciais culturais e de seus pblicos no uma fico, e no deslegitima o entendimento
de suas msicas, pelo contrrio. A relao entre as representaes que os grupos fazem da
cultura nordestina e a prpria cultura nordestina, que, convencionalmente e de forma
34
displicente, se colocaria como o real, est definida, em primeiro lugar, a partir da prpria
concepo musical que os grupos apresentam daquele real, do modo como (re)constrem
este universo utilizando aquele referencial externo. Essas construes obedecem a
determinados modelos composicionais e contm certas delimitaes temticas, passveis de
identificao. Deste modo, a cultura nordestina assume novos significados, deixando de ser
um simples referencial do mundo exterior aos grupos, e se presentificando no ato consciente
de criao musical, nos processos interpretativos e performticos do fazer musical, e na
historicidade da produo musical.
Umberto Eco (197-, p. 96) afirma que, com base num processo interpretativo
adquirido pela tradio cultural, possvel conferir a determinado estilo ou obra uma carga
semntica quase convencionalizada:
O mais das vezes, a eficcia semntica de tais mensagens [poticas]
41
produzida justamente pelo valor de conhecimento que se costuma conferir
ao sistema de relaes contextuais. (...) Isso tambm acontece com os
modos de formar musicais, que a tal ponto adquirem valor de referncia
precisa a situaes ideolgicas que podem ser usados com funo
semntica.
A maneira como esses valores de referncia se constituem nos seres humanos no
pode ser explicada de forma fragmentada, mas sim levando em conta um sistema complexo
de comunicao humana, que envolve, dialeticamente, uma experincia existencial e um
saber constitudo, no dizer de Edgar Morin (1977, p. 77). Segundo o autor (2001, p. 25-26):
As nossas percepes esto sob controle, no apenas de constantes
fisiolgicas e psicolgicas, mas, tambm, de variveis culturais e
histricas. A percepo visual submetida a categorizaes,
conceitualizaes, taxinomias, que influenciaro o reconhecimento e a
identificao das cores, das formas, dos objetos. O conhecimento
intelectual organiza-se em funo de paradigmas que selecionam,
hierarquizam, rejeitam as idias e as informaes, bem como em funo de
significaes mitolgicas e de projees imaginrias. Assim se opera a
construo social da realidade (digamos antes a co-construo social da
realidade, visto que a realidade se constri tambm a partir de dispositivos
cerebrais), em que o real se substancializa e dissocia do irreal, em que se
arquiteta a viso de mundo, em que se concretizam a verdade, o erro, a
mentira.
Assim, a problemtica da capacidade simblica das msicas no deve ser
negligenciada, pois ela o cerne do entendimento das prticas destes grupos, seja na
41
Eco distingue a mensagem artstica das demais categorias de mensagens comunicacionais, tomando como
ponto de partida o conceito de funo potica da linguagem, de Roman Jakobson. Para este autor, a
comunicao da linguagem potica, ou a linguagem utilizada na literatura e, para Eco, tambm nas artes
visuais e musical tem como foco principal a prpria mensagem. Apesar disso, Eco reconhece a necessidade de
se considerar uma obra de arte no de modo isolado, observando apenas seus aspectos formais internos, mas
consider-la dentro de um conjunto de relaes, tais como a recepo do pblico e o contexto histrico-cultural
no qual a obra se insere.
35
produo, circulao ou recepo de seus trabalhos musicais. Conforme se ver adiante, a
questo mais ampla do que uma simples associao de idias musicais (modos, escalas,
padres rtmicos ou parfrases meldicas) a convenes sociais historicamente fixadas. A
questo apresentar, no dizer de Piana (op. cit., p. 335), a idia de uma memria do mundo
mergulhada profundamente nas ressonncias dos sons e que atravessa, portanto, as operaes
que valorizam a imaginao. Este mergulho tem o intuito de desvelar, nas significaes da
msica destes grupos, um sentido ativo de construo cultural. Entendemos que a dimenso
simblica apresenta-se em confluncia com as estruturas musicais e com o mundo social, em
concordncia com as idias de Chevalier (op. cit., p. XXIII):
Reabilitar o valor do smbolo no , de modo algum, professar um
subjetivismo esttico ou dogmtico. No se trata absolutamente de eliminar
da obra de arte seus elementos intelectuais e suas qualidades de expresso
direta e, muito menos, de privar os dogmas e a revelao de suas bases
histricas. O smbolo permanece na histria, no suprime a realidade, nem
abole o signo. Acrescenta-lhes uma dimenso, o relevo, a verticalidade;
estabelece, a partir deles: fato, objeto, sinal, relaes extra-racionais,
imaginativas, entre os nveis de existncia e entre os mundos csmico,
humano, divino.
Com base nas idias de Jacques Derrida, em La Diffrance, Marcel Cobussen
42
explica que o real, destitudo de suas representaes, tornar-se-ia inapreensvel ou apenas um
ideal inatingvel para os seres humanos. Donde o autor conclui que as representaes devem,
portanto, constituir-se no ponto de partida. Estas reflexes nos conduzem a questionar,
inclusive, a suposta realidade que os grupos representam, o fato de que aquilo que se
entende por cultura nordestina ou, mais especificamente, por msica tipicamente nordestina,
tambm fruto de uma construo simblica atrelada a um processo histrico de formao e
valorizao da cultura nacional, conforme se destaca no captulo seguinte.
42
s/d (http://www.cobussen.com/navbar/index.html).
36
2 CULTURA NORDESTINA: AVALIAO, VALORIZAO E CONFLITOS
O problema da cultura nordestina na leitura dos grupos Anima e Syntagma nos
coloca diante da temtica da representao e da presentificao do outro na msica. O tema
da representao nos remete aos sujeitos integrantes dos grupos e seus discursos, ao processo
criativo que perpassa suas atividades em conjunto (ou tarefas individuais para o conjunto),
seja na elaborao de arranjos e composies, seja nos ensaios, gravaes, apresentaes etc.
Enfim, o modo como os sujeitos vo construindo aquelas representaes. O tema da
presentificao, por seu turno, remete-nos aos objetos criados pelos grupos, suas obras
musicais. Tomadas como objetos culturais, essas obras so portadoras de alteridade
43
: portam
significados particulares no apenas aos membros dos grupos, mas tambm ao pblico (os
futuros outros) que ouve os discos ou vai aos recitais. No so significados abstratos, mas
presentes no processo de escuta
44
.
De acordo com Marlia Amorim (op. cit.., p. 164): O texto como objeto cultural
coloca em cena diferentes enunciaes, realizadas e realizveis, atravs do tempo. O gnero
escolhido ou tocado impe ao escritor certas formas de representao do outro e presentifica
toda alteridade capaz de habit-lo. [grifo meu] Pode-se afirmar o mesmo em relao
msica e aos msicos. possvel traar uma rede simblica de representaes do universo
cultural nordestino na medida em que os grupos escolhem, s para citar alguns exemplos:
compor e tocar um arranjo de um baio j popularizado; incluir versos e melodias de canes
conhecidas da tradio oral; tocar composies inditas utilizando instrumentos como a
rabeca, de construo artesanal, feita por um construtor nordestino; tocar composies
inditas utilizando como referencial arquetpico o gnero incelena etc.
Os grupos Anima e Syntagma, em seu fazer musical, presentificam determinadas
noes a respeito de um espao o Nordeste que superam as fronteiras geogrficas ou
jurdico-polticas de uma regio. Este outro que se faz objeto em seus discursos musicais,
43
Tomamos como ponto de partida as seguintes reflexes de Marlia Amorim (op. cit., p. 132-133): Para alm
da representao que possa trazer um texto, existe um nvel de alteridade que constitutivo de todo enunciado
(...). que todo enunciado, que ele saiba ou no, responde a enunciados anteriores. O objeto de que se fala j foi
falado antes. A palavra com que se fala j foi utilizada antes. E, de acordo com Bakhtin, ambos trazem sempre
com eles suas respectivas memrias. A pluralidade de contextos de enunciao habita assim cada texto e suas
vozes sero tanto mais audveis quanto o permita a memria discursiva do leitor.
44
Estas idias tambm apiam-se no raciocnio desenvolvido por Amorim a respeito do outro no discurso
cientfico, a partir do pensamento bakhtiniano, conforme apontado a seguir: O termo representao remete ao
sujeito que escreve, a um processo subjetivo mais ou menos consciente e que se marca no texto. O termo
presentificao permite colocar a nfase sobre a condio do objeto textual, ela efeito de objeto. O objeto
cultural circula entre os sujeitos que nele deixam suas marcas e a circulao que produz efeitos de presena.
(id.., p. 164)
37
constitui-se ao mesmo tempo em leitura e enunciado, e no se apresenta como um dado
externo, considerado fixo, natural, bvio, ou auto-evidente. necessrio problematizar a
prpria temtica nordestina junto ao debate contemporneo sobre identidade cultural, para
compreend-la na dimenso em que explorada no trabalho musical dos grupos. Trata-se de
manter um olhar crtico sobre a rede simblica que institui o mbito semntico do objeto
musical, tomando-a como um conjunto de narrativas construdas culturalmente, como nos
sugere Piana (op. cit., p. 19):
Um trecho musical eminentemente um objeto cultural a msica
antes de mais nada uma prxis social que deve ser considerada na sua
integrao com a cultura a que ela pertence. Isso significa que a msica
traz consigo o peso de uma tradio que determina no s as modalidades
da ao musical, mas obviamente tambm as modalidades da escuta.
A colocao de Piana, ao relacionar o componente estruturalista da msica com o
simbolista
45
, insere uma discusso sobre as condies da prtica musical, fazendo referncia
a dois conceitos-chave cultura e tradio que nos permitem pensar no significado da
msica em um contexto mais amplo. Assim, realiza-se uma reflexo sobre os processos
socialmente estruturados (THOMPSON, op. cit., p. 182) que percorrem a idia de Nordeste
na trajetria de construo das identidades nacional e regional no Brasil. A msica
presentifica as questes culturais e atualiza a tradio, envolvendo-se, de forma dialtica, em
processos complexos de valorizao, avaliao e conflito.(id., p. 23)
A seguir, so expostos alguns parmetros do processo de valorizao da cultura
nordestina, ocorrido ao longo do sculo XX, com nfase para a tradio que fomenta e para
as identidades que so conectadas ao seu universo simblico. Um processo cultural que
continua sendo debatido, analisado, (re)criado, projetado e vivenciado na sociedade
brasileira. Estes parmetros, portanto, no devem ser tomados como uma proposta definitiva
acerca da percepo sobre o Nordeste, menos ainda uma tentativa de descobrir o sentido
verdadeiro da regio. Antes, os parmetros devem ser considerados como um caminho
interpretativo, que destacam os aspectos fundamentais para se pensar a representao
simblica da regio na atuao dos grupos. Conforme advertira Albuquerque (2001, p. 193):
Quando se toma o objeto Nordeste como tema de um trabalho, seja
acadmico, seja artstico, este no um objeto neutro. Ele j traz em si
imagens e enunciados que foram fruto de vrias estratgias de poder que se
cruzaram; de vrias convenes que esto dadas, de uma ordenao
consagrada historicamente. So configuraes possveis dentro daquele
universo; so tipos e esteretipos construdos como essenciais.
45
Conforme exposto no captulo 1 (p. 30).
38
Pretende-se, a fim de compreender o Nordeste presentificado nas msicas do
Anima e do Syntagma, perceber os dilogos de suas respectivas leituras daquele universo
simblico com outras leituras da regio, especialmente as idias ligadas ao Movimento
Armorial (1970-1976), e aos pensamentos modernistas e ps-modernistas. Assim,
desenvolve-se, neste captulo, um percurso que situa a construo simblica do Nordeste
dentro de uma agenda temtica da intelectualidade brasileira: so colocados em relevo alguns
aspectos do pensamento de Slvio Romero (identificado historicamente com a gerao
modernista de 1870), de Gilberto Freyre e da gerao literria dos modernistas de 1930
(conhecidos como escritores regionalistas), e tambm dos modernistas ligados Semana de
1922, com algumas distines internas ao longo do movimento, especialmente entre a
antropofagia de Oswald de Andrade e o projeto nacional de Mrio de Andrade. Em seguida,
destaca-se o pensamento de Ariano Suassuna e a concepo armorial de Nordeste,
explicitando suas rupturas e continuidades em relao s idias modernistas. Enfatizam-se as
polmicas em torno da formao de uma conscincia nacional, deixando as propostas
esttico-musicais para o captulo seguinte.
A anlise desta agenda possibilita-nos traar aspectos recorrentes naquelas
configuraes possveis de que fala Albuquerque. Para se obter uma reflexo apropriada
sobre a regio, este autor prope tomar o Nordeste no apenas como um recorte natural,
poltico ou econmico, mas como uma construo imagtico-discursiva, uma constelao de
sentidos. (ALBUQUERQUE, op. cit., p. 307)
Alm das configuraes que se entrecruzam nas estratgias de poder, Albuquerque
se refere aos tipos e esteretipos associados ao nordestino, formados no debate social, em
discursos e prticas regionalistas que buscaram instituir uma verdade sobre a regio e um
espao comum, onde as pessoas compartilhariam experincias econmicas, histricas,
estticas, polticas. A idia de Nordeste foi sendo construda em torno deste corpo de
smbolos, mitos e imagens concernentes vida prtica e vida imaginria, um sistema de
projees e de identificaes especficas
46
, que nos permite pensar a cultura da regio como
uma unidade, cujos vnculos so reconhecidos por repertrios de aes, gestos, modos de
falar, costumes etc
47
. que caracterizariam a identidade do nordestino. De conformidade com
este autor (ALBUQUERQUE, op. cit., p. 22-23):
Esta formulao, Nordeste, dar-se- a partir do agrupamento conceitual de
uma srie de experincias, erigidas como caracterizadoras deste espao e
de uma identidade regional. Essas experincias histricas sero agrupadas,
fundadas num discurso terico que pretende ser o conhecimento da regio
em sua essncia, em seus traos definidores, sejam dos vencedores, sejam
46
Conforme Morin (1977a, p. 15), sobre o conceito de cultura.
47
Conforme Jean-Pierre Warnier (2000, p. 16), sobre o conceito de identidade.
39
dos vencidos, com fragmentos de memria de situaes passadas, que so
tomadas como prenunciadoras do momento que se vive, de pice da
conscincia regional.
As formas simblicas, em seus diversos meios de transmisso cinema, rdio,
jornais, programas de televiso, teatro, literatura, msica etc. - tambm reforam tais padres
imagticos. Pode-se citar, por exemplo, sobre os tipos e esteretipos associados ao
nordestino: os retirantes, os cantadores, os cangaceiros, os profetas, os coronis, os beatos.
Em relao s imagens e aos enunciados acerca do Nordeste, pode-se destacar:
ambiente rural, prximo natureza, pr-capitalista, artesanal, arcaico, atrasado;
espao afetivo, da saudade, preso no passado, lugar da memria, da infncia;
espao do serto, da seca, da misria humana, da valentia e da resignao;
paisagem sonora modal, pr-clssica;
espao conservador, guardio da tradio, do folclore, da sabedoria popular;
espao fantstico, mgico, sobrenatural, de religiosidade mstica;
portador de uma cultura autntica, dionisaca, primitivista, de gente simples,
ingnua, espontnea.
No se pretende questionar a veracidade ou a falsidade destas construes
48
, mas
compreender a dinmica produtiva que as tornaram hegemnicas, que atravessam e
alimentam o imaginrio de dentro e de fora da regio, seja no pensamento intelectual, seja no
senso comum. Tal compreenso leva-nos a perceber as narrativas sobre a regio, que
permanecem no universo simblico at os dias atuais, servindo como referenciais
importantes para a produo musical dos grupos. Tambm no se considera oportuno colocar
aquelas imagens e enunciados como emblemas de uma classe dominante vitoriosa nas lutas
simblicas. Como observa Albuquerque (id., p. 312), a construo simblica do Nordeste
ultrapassa uma simples perspectiva classista: estas imagens e textos alcanaram tal nvel de
consenso e foram agenciadas pelos mais diferentes grupos, que se tornaram verdades
regionais . Entende-se que a identidade cultural nordestina construda com o
agrupamento de determinadas imagens e enunciados do antigo Norte, em relao s novas
configuraes sociais republicanas que faziam do Sul, principalmente So Paulo, o plo
dominante da nao, na virada do sculo XIX para o XX. Reagindo perda de importncia
48
vlido observar, inclusive, que uma outra construo simblica sobre o Nordeste comea a ter destaque a
partir da dcada de 1970, a idia de uma regio paradisaca, com belas praias e pessoas de esprito alegre,
festeiro. Tal universo vivenciado nos eventos de carnavais fora de poca, conhecidos como micaretas, e
presentificado nas msicas de samba-reggae e outras hibridaes rtmicas, comercialmente denominadas de ax
music. Esta noo intensificou-se sobretudo nos anos 90, com forte investimento empresarial e dos governos
estaduais no setor de Turismo, acompanhados pela indstria do entretenimento.
40
econmica e poltica, o Nordeste a parte seca do Norte - apegava-se s tradies, e
reforava seu significado no cenrio nacional. (CARVALHO, 2005, p. 18)
2.1 Norte versus Sul: do conflito inveno
Incorporando algumas reflexes contemporneas sobre identidade na discusso da
cultura nordestina, toma-se como ponto de partida a idia de extraposio cultural, de
Bakhtin (apud MACHADO, 2003, p. 28), segundo a qual a cultura alheia s se manifesta
mais completa e profundamente aos olhos de outra cultura. Diante dessa perspectiva, pode-
se perceber que, na construo simblica das identidades, estas noes estigmatizadas
servem tanto para reforar o vnculo regional dos nordestinos quanto para se fazer notar o
regionalismo do plo dominante, que vai se formando, mesmo com a presena to
diversificada de imigrantes, a partir da defesa contra esse sentimento antipaulista,
consoante destacara Amadeu Amaral
49
(1875-1929) em artigo jornalstico, j em 1920.
Essa necessidade da perspectiva do outro nos remete releitura lacaniana a respeito
do pensamento de Freud sobre a formao parcial, gradual, rdua e complexa da idia do eu
inteiro e unificado na auto-imagem da criana. Lacan denomina de fase do espelho esta
poca em que a criana ainda no consegue se imaginar como uma pessoa inteira ao se olhar
no espelho ou em relao ao olhar dos outros que lhe cercam. o que explica Stuart Hall
(2000, p. 37-38):
A formao do eu no olhar do outro, de acordo com Lacan, inicia a
relao da criana com os sistemas simblicos fora dela mesma e , assim,
o momento da sua entrada nos vrios sistemas de representao simblica
incluindo a lngua, a cultura e a diferena sexual. (...) Embora o sujeito
esteja sempre partido ou dividido, ele vivencia sua prpria identidade como
se ela estivesse reunida e resolvida, ou unificada, como resultado da
fantasia de si mesmo como uma pessoa unificada que ele formou na fase
do espelho.
Na concepo deste autor, o mesmo raciocnio que nos leva, no nvel psicanaltico,
a buscar esta identidade ao longo da vida, como sujeitos - projetando um significado
unificado para os nossos eus divididos, dialogando com a percepo que os outros (que o
mundo ao nosso redor) fazem de ns -, pode ser levado em conta na formao das culturas
nacionais nas sociedades modernas. Embora sejam representadas como uma comunidade
inteira, unificada, elas so atravessadas por profundas divises e diferenas internas, sendo
unificadas apenas atravs do exerccio de diferentes formas de poder cultural. (id., p. 61-
62) Neste sentido, o conflito Norte-Sul, que serviu de base para a construo simblica do
49
Apud Albuquerque, op. cit, p. 106.
41
Nordeste, tambm se confunde com a luta pela legitimidade de discursos e mitos de origem
para a construo simblica da prpria nao. O Nordeste, como identidade espacial, para
utilizar a expresso de Albuquerque (op. cit., p. 22), existe pelo reconhecimento do Sul e
para o reconhecimento do Sul. De acordo com o autor (id., p. 101):
A instituio sociolgica e histrica do Nordeste no feita apenas por
seus intelectuais, no nasce apenas de um discurso sobre si, mas se elabora
a partir de um discurso sobre e do seu outro, o Sul. O Nordeste uma
inveno no apenas nortista, mas, em grande parte, uma inveno do Sul,
de seus intelectuais que discutiam com os intelectuais nortistas a
hegemonia no interior do discurso histrico e sociolgico.
Os tipos, esteretipos, imagens e enunciados do Nordeste, que nos permitem falar
de uma cultura regional, no se formam pela coeso harmnica de vozes em torno de uma
idia, mas surgem em processos de negociao, confrontos, observaes, aprendizados e
projees em relao ao outro sulista. Tais aspectos culturais ligados ao Nordeste poderiam
ser facilmente desconstrudos, ao constatarmos que: fenmenos como o cangao e o
messianismo tambm ocorreram em outras regies do pas; geograficamente, o espao do
serto no se resume apenas ao Nordeste; as prticas e poderes das oligarquias no foram
exclusividade dos coronis nordestinos; o xodo rural e as migraes em busca de melhores
condies de trabalho e de vida no foram ou no so um drama sofrido unicamente pelos
retirantes das secas nordestinas; os saberes populares e todas as manifestaes que se referem
tradio oral, inclusive o uso do modalismo nas prticas musicais, podem ser encontradas
tambm em outras partes do espao nacional; alm disso, o fenmeno urbano tambm se deu
em vrias cidades nordestinas
50
, muitas delas voltadas ao comrcio e com caractersticas
cosmopolitas desde os tempos coloniais; e assim por diante. Como explicar a valorizao
daqueles aspectos associados ao universo simblico nordestino, que acabaram se instituindo
como elementos de verdadeira conscincia regional?
Para Albuquerque (id., p. 49), essa escolha no casual, e tambm no se d pela
iniciativa individual ou de um pequeno grupo privilegiado, mas sim:
dirigida pelos interesses em jogo, tanto no interior da regio que se forma,
como na sua relao com outras regies. (...) O Nordeste uma produo
imagtico-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais
especfica, gestada historicamente, em relao a uma dada rea do pas, e
tal a consistncia desta formulao discursiva e imagtica que dificulta, at
hoje, a produo de uma nova configurao de verdades sobre este
espao.
Esta sensibilidade impulsionada pelo modelo cultural que a regio adquire para se
constituir e se legitimar como unidade, em torno da criao de autocaractersticas e da
50
Vale ressaltar que as capitais da regio, excetuando-se Teresina-PI, localizam-se no litoral.
42
percepo de uma conscincia particular, que se constri na dialtica entre o ponto de vista
dos prprios nordestinos ou seja, no seu mito de origem e a viso externa do Sul/ So
Paulo
51
, que interage como modelo dominante. Conforme comentrio de Eagleton (op. cit.,
p. 59):
Pessoas que pertencem ao mesmo lugar, profisso ou gerao nem por isso
constituem uma cultura; elas o fazem somente quando comeam a
compartilhar modos de falar, saber comum, modos de proceder, sistemas
de valor, uma auto-imagem coletiva. (...) Um modo caracterstico de ver o
mundo, mas no necessariamente um modo de ver singular.
Desta forma, entende-se que aquelas imagens e discursos se tornaram
caractersticos do Nordeste, embora no exclusivos da regio. Sob este ngulo, a cultura
nordestina no designaria propriamente um modo de vida especfico daquela regio, mas se
tornaria uma espcie de modelo, que acaba exercendo um controle simblico sobre o que se
imagina, criando um conjunto de espectativas sobre seu povo. Quanto a este, ainda sob essa
perspectiva de cultura unificada, tambm lhe serve como identificao de suas condies
sociais, tomando como referncia a de outros nordestinos, no presente ou no passado. Certas
crenas so reconhecidas e compartilhadas, alm de consentidas de modo positivo no mbito
regional e tambm externamente a ele. Por outro lado, se isolamos o Nordeste de sua
posio nas estratgias de poder no pas, possvel perceber que, internamente, a cultura
nordestina bastante heterognea: existe uma realidade mltipla de vidas, histrias, prticas
e costumes no que hoje chamamos Nordeste. o apagamento desta multiplicidade, no
entanto, que permitiu se pensar esta unidade imagtico-discursiva. (ALBUQUERQUE, op.
cit., p. 66)
O discurso e a prtica regionalistas, que procuraram caracterizar o Nordeste com
aqueles traos culturais, vo se formando no debate social, entre o que se quer mostrar e o
que se v. Pierre Bourdieu (2000, p. 116) salienta esse aspecto em sua reflexo crtica sobre a
idia de regio:
O discurso regionalista um discurso performativo, que tem em vista
impor como legtima uma nova definio das fronteiras e dar a conhecer e
fazer reconhecer a regio assim delimitada e, como tal, desconhecida
contra a definio dominante, portanto, reconhecida e legtima, que a
ignora. O acto de categorizao, quando consegue fazer-se reconhecer ou
quando exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si: as
categorias tnicas ou regionais, como as categorias de parentesco,
instituem uma realidade usando poder de revelao e de construo
exercido pela objetivao no discurso.
51
O homem do Sul confundia-se, por vezes, com a noo de paulista, ainda no incio do sculo XX. Euclides da
Cunha assim o descreve, em trecho do romance Os Sertes (1902): O paulista e a significao histrica deste
nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regies do Sul erigiu-se como um tipo autnomo,
aventuroso, rebelde, librrimo, com a feio perfeita de um dominador da terra (...). (CUNHA, 1998, p. 88)
43
Albuquerque destaca, em sua pesquisa, que aquelas verses acerca do Nordeste
vieram sendo repetidas, no de forma homognea, mas por meio de conflitos discursivos, em
contextos variados, nas lutas simblicas pela legitimao cultural
52
de um espao imbudo de
tradio que, historicamente, entretanto, construiu-se como unidade apenas por volta de
1920. A partir da, evidenciam-se os centros promotores deste debate: Recife, Rio de
Janeiro e So Paulo.
Nessa poca, as fronteiras culturais ainda no se delimitavam precisamente entre o
Norte e o Nordeste, as noes confundiam-se, equiparavam-se. No Congresso Nacional, as
bancadas do Bloco do Norte uniam foras e discutiam os interesses comuns.
Institucionalmente, o termo Nordeste utilizado a partir de 1919 pela Inspetoria Federal de
Obras Contra as Secas (IFOCS), rgo criado pelo governo para combater o problema das
estiagens daquela parte do Norte. No ano seguinte, as elites econmicas da regio se renem
no Congresso de Produtores de Acar, para discutir solues conjuntas diante da situao
desprivilegiada por que passavam em relao aos produtores de caf. Eles tambm se
identificaram no combate ao cangao e s revoltas messinicas, alm dos problemas da seca.
Albuquerque (op. cit., p. 70-71) observa a importncia deste encontro para realar o conflito
cultural instalado:
Os promotores deste Congresso buscam unificar seus discursos e falam em
nome de um espao nico, sob o signo da discriminao e da vitimizao
53
.
Esboa-se todo o eixo de confronto entre Nordeste e So Paulo que vai
direcionar as discusses, a partir da, em torno da questo da nao, da
regio e da identidade nacional.
Por seu turno, os filhos daqueles donos de terras que iam perdendo prestgio e poder
no cenrio nacional sedimentavam uma tradio intelectual que discutia esses conflitos
regionais no ambiente acadmico, posto que a maior parte daquela gerao ia para Recife a
fim de estudar na Faculdade de Direito ou no Seminrio de Olinda. O debate tambm era
fomentado pelo Dirio de Pernambuco, que vai se constituir no principal veculo
disseminador da idia de uma cultura regional nordestina. Albuquerque (id. p. 72) destaca a
publicao, em 1925, do Livro do Nordeste, em comemorao ao centenrio daquele jornal,
como a primeira tentativa de dar ao recorte espacial Nordeste, mais do que uma definio
52
Especialmente na formao da identidade brasileira, segundo os discursos em torno da cultura nacional-
popular, entre as dcadas de 1920 e 1960.
53
O autor destaca que a idia de espao-vtima seria incorporada por setores da crtica marxista brasileira,
sem que se questionasse seu aspecto forjado nas intenes das oligarquias em manter benesses econmicas e
polticas. Para Albuquerque, o discurso-denncia da realidade nordestina, de autores como Graciliano Ramos,
Jorge Amado, e posteriormente, Joo Cabral de Melo Neto, a produo do Cinema Novo, dentre outros, inverte
a problemtica a favor do povo-proletrio, mas acaba reforando as mesmas imagens e enunciados em torno da
seca, por exemplo. Tal perspectiva, no entanto, percebia o espao nordestino como o mais emblemtico da
dominao de classes no pas, por isso mesmo tornava-se o melhor lugar para iniciar um projeto revolucionrio
na sociedade brasileira.
44
geogrfica, natural, econmica ou poltica, mas sobretudo um contedo cultural e artstico,
com o resgate do que seriam as suas tradies, a sua memoria, a sua histria.
Neste sentido, e com base na repetio daquelas prticas discursivas, possvel
pensar o Nordeste como uma tradio cultural inventada recentemente
54
. Na acepo de Eric
Hobsbawm (2002, p. 10), independente de serem inventadas ou no, as tradies so regidas
pelo princpio da invariabilidade, isto , as pessoas as tomam como prticas fixadas num
passado, seja este real ou forjado, que permanecem no presente, numa relao de
continuidade. Seu risco posto em questo diante de novas configuraes sociais, quando a
necessidade e importncia de sua manuteno so levantados em discursos de respeito e
preservao. Este imaginrio fixo percebido como um legado transmitido entre as geraes,
por discursos ou aes, operacionalizados pelas dinmicas culturais, ou, nos termos de
Hobsbawm (id. ibid.), pelos costumes:
O costume, nas sociedades tradicionais, tem a dupla funo de motor e
volante. No impede as inovaes e pode mudar at certo ponto, embora
evidentemente seja tolhido pela exigncia de que deve parecer compatvel
ou idntico ao precedente. Sua funo dar a qualquer mudana desejada
(ou resistncia inovao) a sano do precedente, continuidade histrica e
direitos naturais conforme o expresso na histria.
Albuquerque (op. cit., p. 42) salienta que a prpria idia do costume serve de
elemento diferencial, para se imaginar e se falar do outro, elegendo certas prticas como
tpicas e generalizando os modos de vida das regies:
Inventa-se o paulista ou o nordestino, por exemplo, atentando para as
diferenas entre o espao do sujeito do discurso e o que ele est visitando,
ao qual, quase sempre, se impe uma imagem e um texto homogneo, no
atentando para suas diferenas internas. Muitas vezes o que se descreve so
aspectos, costumes encontrados em um Estado ou uma rea que so
apresentados e descritos como costumes do Norte ou do Nordeste ou
costumes de So Paulo.
Associa-se ao espao nordestino o lugar das prticas tradicionais, existentes h
longo tempo, enquanto So Paulo seria o lugar do desenvolvimento, do progresso.
Historicamente, busca-se definir a singularidade do territrio regional, atribuindo uma
continuidade das aes do presente em relao a um passado determinado. O momento
efervescente de debates culturais do Dirio de Pernambuco, dos intelectuais em torno da
Faculdade de Direito
55
, busca recuperar uma historicidade de lutas da regio, como os
efeitos da invaso holandesa, a Insurreio Pernambucana (1645-1648), a Revoluo
Pernambucana (1817), a Confederao do Equador (1824), e a Revolta Praieira (1848).
54
Conforme a tese de Albuquerque, op. cit..
55
Aventando a prpria tradio da instituio, criada em 1845, mas herdeira da mudana do Curso Jurdico de
Olinda, fundado em 1827, para uma faculdade em Recife.
45
Albuquerque (id., p. 75) afirma que estes argumentos histricos reforam a legitimao do
recorte regional nordestino:
Olha-se para o passado e alinha-se uma srie de fatos, para demonstrar que
a identidade regional j estava l. Passa-se a falar de histria do Nordeste,
desde o sculo XVI, lanando para trs uma problemtica regional e um
recorte espacial, dado ao saber s no incio do sculo XX.
Alm disso, a condio geogrfica tambm se somava nessa construo simblica
como forte argumento natural, como aponta o mesmo autor (id., p. 121):
O fato de a seca ser um fenmeno que ocorria secularmente na rea era
fundamental para se instituir a regio como um espao tambm portador de
uma histria secular. Se as secas sempre existiram, o Nordeste, terra das
secas, tambm sempre estivera l. Ela era a garantia da continuidade e da
eternidade deste espao regional, mesmo que fosse na desgraa e na
misria.
Em vez de se contrapor, esta interpretao do Nordeste como inveno refora o
entendimento da fora da identidade cultural que se formou, na mesma poca em que se
firmavam os processos de industrializao e desenvolvimento capitalista na sociedade
brasileira. A partir desta questo, o autor (id., p. 158-159) ressalta sua tese:
Como uma regio cada vez mais subordinada poltica e economicamente,
com uma populao que migra com constncia dentro e para fora da
regio, portanto sofrendo sucessivos processos de desenraizamento
cultural, conseguiu preservar as suas razes, as suas tradies culturais?
Isto se deve exatamente ao fato de a cultura nordestina ser uma inveno
recente, assim como o Nordeste, fruto em grande parte deste prprio
desenraizamento. Esse espao e essa cultura da memria, do passado, no
so apenas evocao, mas principalmente, criao de um espao imaginado
e de tradies feitas em contraponto realidade urbana e sulista, enfrentada
pelos migrantes. A migrao refora a identidade com este espao e
possibilita a inveno desta cultura.
Desta maneira, a idia dessa cultura nordestina torna-se crtica de uma forma de
vida dominante por parte de uma forma de vida perifrica (EAGLETON, op. cit., p. 68),
sendo formada como resistncia s foras massificadoras do capitalismo industrial,
valorizando suas expresses locais em contraponto com a mundializao da cultura, e
tambm com a burocracia centralizadora do poder nacional. Aos poucos, a cultura nortista se
inventava como anttese da cultura paulista, gerando rejeio, estranhamento, curiosidade. O
Norte era o outro, o diferente: o Norte o exemplo do que o Sul no deveria ser. o
modelo contra o qual se elabora a imagem civilizada do Sul. (ALBUQUERQUE, op. cit.,
p. 61) Este autor (id., p. 314) sintetiza a questo da seguinte maneira:
O que se chama hoje de cultura nordestina um complexo cultural,
historicamente datvel. fruto de uma criao poltico-cultural, que tende
a diluir as prprias diversidades e heterogeneidades existentes neste
espao, em nome da defesa de seus interesses e de sua cultura regionais,
contra o processo de diluio no nacional ou no internacional.
46
2.2 Norte mais Sul: o drama dos irmos
Por outro lado, a idia de unidade nacional tambm inspirava um olhar fraterno
para o Norte, especialmente na problemtica da seca, que, sem dvida, representou a imagem
e o enunciado mais significativo a respeito da regio para o Sul do pas, quando a imprensa e
os polticos teciam um discurso de solidariedade e organizavam campanhas para ajudar os
flagelados da seca. Aproveitando-se destas solues assistencialistas, as oligarquias
nordestinas enfatizavam um discurso que transferia a culpa dos problemas sociais e das ms
condies de vida do povo nordestino, exclusivamente para a seca, desviando a ateno de
suas prprias responsabilidades na explorao da mo-de-obra, na manuteno dos
privilgios etc.
Os mesmos pontos que se colocam para definir o espao da regio podem ser
utilizados para reforar a idia de nao brasileira, que justifica o discurso conciliador no
caso das problemticas que so levantadas pelas elites nordestinas seca, cangao,
messianismo. Hall (op. cit., p. 59) explica esta noo de fraternidade entre as regies, unidas
apesar das diferenas, do seguinte modo:
No importa quo diferentes seus membros possam ser em termos de
classe, gnero ou raa, uma cultura nacional busca unific-los numa
identidade cultural, para represent-los todos como pertencendo mesma e
grande famlia nacional. (...) Uma cultura nacional nunca foi um simples
ponto de lealdade, unio e identificao simblica. Ela tambm uma
estutura de poder cultural.
No prefcio do seu romance O Cabeleira, Franklin Tvora (s/d, p. 4-5) disserta
sobre algumas das peculiaridades do conflito Norte-Sul, em sua perspectiva de nortista,
habitando, porm, no Rio de Janeiro. Eis alguns trechos de suas reflexes, escritas em forma
de carta, datada de 1876 e destinada ao editor em Genebra:
As letras tm, como a poltica, um certo carter geogrfico; mais no Norte,
porm, do que no Sul abundam os elementos para a formao de uma
literatura propriamente brasileira, filha da terra.
A razo bvia: o Norte ainda no foi invadido como est sendo o Sul de
dia em dia pelo estrangeiro.
A feio primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raas, as
ndoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se
afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuna
expresso.
(...)
Quando, pois, est o Sul em to favorveis condies, que at conta entre
os primeiros luminares das suas letras este distinto cearense, tm os
escritores do Norte que verdadeiramente estimam seu torro, o dever de
levantar ainda com luta e esforos os nobres foros dessa grande regio,
exumar seus tipos legendrios, fazer conhecidos seus costumes, suas
47
lendas, sua poesia mscula, nova, vvida e lou to ignorada no prprio
templo onde se sagram as reputaes, assim literrias, como polticas, que
se enviam s provncias.
No vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que no
aninho em meu corao brasileiro. Proclamo uma verdade irrecusvel.
Norte e Sul so irmos, mas so dois. Cada um h de ter uma literatura sua,
porque o gnio de um no se confunde com o do outro. Cada um tem suas
aspiraes, seus interesses, e h de ter, se j no tem, sua poltica.
O tom conciliatrio do discurso regional no texto do escritor naturalista, que busca
harmonizar as diferenas nacionais, no pode mais se sustentar com a prpria crise do
paradigma naturalista, a partir da modernizao da sociedade brasileira, que o questionou em
diversos aspectos. Conforme se observa pelas colocaes de Franklin Tvora, o pensamento
regionalista j existia, tendo se configurado em certa medida desde a Independncia do pas.
Entretanto, os novos rumos que possibilitaram o fortalecimento deste discurso se
concretizaram apenas com o paradigma modernista, com seu novo modo de pensar a nao e
o povo (ALBUQUERQUE, op. cit., p. 48):
Diante da crescente presso para se conhecer a nao, form-la, integr-la,
os diversos discursos regionais chocam-se, na tentativa de fazer com que
os costumes, as crenas, as relaes sociais, as prticas sociais de cada
regio que se institui neste momento, pudessem representar o modelo a ser
generalizado para o restante do pas, o que significava a generalizao de
sua hegemonia.
A disputa destes modelos resultou na idealizao de mitos de origem que
enfatizassem a mestiagem do povo brasileiro e do discurso nacional-popular, que inclua o
povo como valor simblico, um povo misturado, abstrato, essencial para a formao de um
sentimento nacional que conseguisse unir as diferenas e fornecer um sentido a esta
comunidade imaginada, na expresso de Benedict Anderson (1989, p. 14). A modernidade
brasileira tem como cerne essa redefinio cultural e esttica a partir da conscincia do
elemento popular, da procura da identidade nacional neste outro que seria, ao mesmo tempo,
outro e si mesmo. Este paradoxo perpassa todas as correntes modernistas e, mais tarde, torna-
se o prprio tema de reflexo ou crtica, no pensamento ps-modernista.
Alguns autores nos foram teis ao entendimento do emprego do adjetivo
modernista
56
em um sentido mais amplo, evitando reduzi-lo, nesta anlise, ao uso que o
associa s idias e valores estticos e culturais propagados pela Semana de Arte Moderna de
56
Garcia Canclini (2003, p. 23) adota em Culturas Hbridas a distino - com base na leitura de diversos
autores, dos quais cita Habermas e Berman - que tambm utilizamos neste trabalho: o uso do termo
modernidade se refere etapa histrica; modernizao, ao processo socioeconmico que vai construindo a
modernidade; e os modernismos, no plural, seriam os projetos culturais que renovam as prticas simblicas
com um sentido experimental ou crtico. Enquanto o termo modernizao leva-nos a considerar a expanso do
capitalismo, o desenvolvimento industrial, cientfico e tecnolgico, o surgimento do Estado-nao moderno, o
modernismo nos remete aos movimentos de artistas e intelectuais, e s mudanas estticas e culturais que eles
suscitaram.
48
1922, e a partir dela. Conforme Francisco Foot Hardman (1992, p. 290), essa reduo - assim
como aquela que reduz a idia de modernidade e de modernizao aos sentidos poltico-
ideolgicos que vinculam esses termos a aes desenvolvimentistas do Estado a partir de
1930 no Brasil traz efeitos paralelos e nocivos, enumerados pelo autor da seguinte forma:
a) expulso de amplo e multifacetado universo sociocultural, poltico,
regional que no se enquadrava nos cnones de 1922, em se tratando,
embora, de processos intrnsecos aos avatares da modernidade; b) reduo
das relaes internacionais na cultura brasileira a eventuais contatos entre
artistas brasileiros e movimentos estticos europeus, quando, na verdade, o
internacionalismo e o simultanesmo espacio-temporal j se tinham
configurado como experincias arraigadas na vida cotidiana do pas; c)
definio esteticista para o sentido prprio de modernismo, abandonando-
se, com isso, outras dimenses polticas, sociais, filosficas e culturais
decisivas percepo das temporalidades em choque que pem em
movimento e fazem alterar os significados da oposio antigo/moderno
muito antes de 1922.
A chave para o entendimento da idia de Nordeste inventado a partir da dcada de
1920 encontra-se na oposio antigo/moderno, que se evidenciou no debate com o
movimento modernista de 1922, mas se configurou no surgimento do paradigma modernista
de forma mais ampla e anterior
57
, desde os conflitos entre Norte e Sul diante da nova
realidade social. De acordo com Foot Hardman (id., p. 293):
O drama da modernidade constitui-se precisamente no choque que
interrompe o fluxo da experincia tradicional, na destruio sistemtica
desses espao-tempos insulados, no esquecimento produzido pelo
desencontro de linguagens, na lgica desestruturante das identidades
comunitrias, na violncia como apangio legal do Estado.
Pode-se observar, claramente, a diferena entre o entendimento pacfico de
Franklin Tvora e a militncia presente no contedo do Livro do Nordeste, que prenuncia o
discurso alarmista que tomar conta, no ano seguinte, do Congresso Regionalista do Recife
(1926), segundo o qual era preciso salvar o esprito nordestino da destruio lenta, mas
inevitvel, que ameaava o Rio de Janeiro e So Paulo, da influncia estrangeira e do
cosmopolitismo que destrua o esprito paulista e carioca, pondo em risco a cultura
nacional
58
. Embora se construsse em outro tom, a viso da condio privilegiada do Sul j
estava presente no escritor, bem como a ligao do Norte com um espao de autenticidade
cultural, por seu isolamento, e a necessidade de se fazer conhecer, de tematizar e por em
evidncia os nobres foros dessa grande regio para o seu irmo sulista.
57
Conforme observa Alberto Schneider (2005, p. 198): De certo modo a intelectualidade brasileira posterior ao
modernismo tendeu a acatar a premissa dos prprios modernistas de que eles estavam criando uma imagem
inteiramente nova do pas, o que bloqueou a percepo do quanto esses autores recolheram da tradio
intelectual herdada do sculo XIX.
58
Conforme Albuquerque, op. cit., p. 72-73.
49
Alberto Schneider (2005, p. 15) chama a ateno para a importncia dos textos
produzidos no debate intelectual, tambm de escritores e outros artistas, no caso brasileiro,
no qual, embora houvesse um Estado republicano proclamado, no predominava um
sentimento nacional, menos ainda uma conscincia do que seria a cultura que caracterizava
esta nao. Se a disputa pela hegemonia econmica e poltica no foi bem sucedida, a forte
assimetria que constituiu a modernizao no Brasil, em benefcio do Sul, resultou em lutas no
plano simblico e cultural que fizeram do Nordeste, no dizer de Albuquerque (op. cit., p.
306), a elaborao regional mais sofisticada do pas. Sob essa perspectiva, o autor
considera o Nordeste um filho reacionrio da nao moderna brasileira, uma regio que se
gesta em relao questo da nao, da identidade nacional; questes que se cruzaro,
permanentemente, mas sempre de maneira nova.
O paradigma modernista traz um olhar renovado para a questo regional, que
contesta a viso naturalista da sociedade. Segundo esta viso, a inferioridade do Norte
respaldava-se cientificamente nas caractersticas do clima seco e da raa mestia, e o
progresso seria invivel se o Estado no tomasse providncias no sentido de modernizar e
embranquecer a regio. O Sul, ao contrrio, desenvolvia-se rapidamente, porque tanto o seu
clima como a raa eram superiores, posto que recebia maior contingente de imigrantes
europeus. Era natural. Com uma estrutura social presa no passado, mantida desde os tempos
coloniais, o Norte atrasava o Brasil, enquanto o Sul levava-o para o futuro, para o mundo
industrial e moderno do sculo XX. O discurso da vitimizao, produzido pelas elites do
bloco nortista, somou-se aos problemas de que estes reclamavam das secas, do cangao e
do messianismo -, como um elemento de constatao desta sociedade arcaica, com
mentalidade conservadora tanto no barbarismo de sua populao mais simples quanto nos
interesses que moviam os conchavos polticos das elites locais. Por sua vez, estas elites
ressaltavam sabiamente, nas lutas simblicas internas, o inimigo externo comum contra o
qual a identidade regional deveria se fortalecer, desviando os alvos das revoltas populares da
explorao local para uma revolta conjunta contra o esprito modernista que ameaava suas
tradies, esprito personificado no Sul. No movimento de 1930, a aliana regional fortaleceu
a manuteno de cargos polticos e benefcios concedidos por um pacto de poder contra os
paulistas, embora o Estado Novo viesse a acirrar ainda mais a posio de inferioridade do
Nordeste, com sua poltica nacionalista de modernizao e desenvolvimento industrial.
Albuquerque (id., p. 104) define esta ciso Norte/ Sul em termos psicolgicos, evidenciando
certas representaes simblicas que permanecem no imaginrio nacional:
O Brasil seria um pas cindido entre a inteligncia do Sul, mais bem
aparelhada em seus conceitos de realidade; e, de outro lado, o nortista,
fantasioso, imaginoso e sensitivo, delirante e compadecido. Razo e
50
sentimento, dilema em que se cindia a identidade nacional, representada
pela diviso entre suas duas regies.
2.3 A virada modernista
As explicaes deterministas, que tomavam como premissa a teoria evolucionista
das raas, tendo a sociedade branca europia ocidental no topo da cadeia evolutiva, foram
fortemente questionadas pela perspectiva modernista, em suas mais diversas vertentes. A
atualizao da sociedade brasileira, naqueles moldes cientficos, dava ao intelectual ps-
romntico a constatao nada otimista de um outro tipo de dominao, no mais da
metrpole portuguesa ou do poder monarquista, e dificilmente reversvel. O pensamento
modernista brasileiro fruto dessa constatao, construiu-se em dilogo com ela e por causa
dela, assim como a idia de Nordeste se forma diante da constatao do fracasso das
estratgias de poder dentro do espao nacional, e por causa dele. O Brasil estava bem distante
do topo da cadeia evolutiva: a mestiagem era fato irrecusvel, assim como as desigualdades
regionais. Pouco a pouco, observa-se que o discurso pessimista sobre o destino de uma nao
mestia vai se (re)significando at ser bastante valorizado no discurso modernista, e at
mesmo celebrado pelos ps-modernos.
Um dos primeiros intelectuais a evidenciar essa problemtica, Slvio Romero
59
(1851-1914) assume a condio mestia da nao como ponto de partida para sua
interpretao do Brasil, e realiza estudos sobre a cultura popular como forma objetiva de se
conhecer a brasilidade. O Norte era estratgico nessa busca de razes nacionais, ao passo que
o isolamento das colnias europias no Sul era criticado. Romero propunha um equilbrio da
imigrao entre as regies, e aprovava a miscigenao para garantir o abrasileiramento, caso
contrrio, a unidade nacional estaria comprometida. A soluo, para Romero (apud
SCHNEIDER, op. cit., p. 81), surge a partir da denncia das desigualdades, exposta em sua
obra Histria da literatura brasileira, publicada no Rio de Janeiro em 1888, da seguinte
forma:
Deve-se acabar com o sistema de cuidar s do Sul, deixando o Norte e o
Centro em completo esquecimento; preciso acabar de uma vez por todas
com o descrdito que estultamente foi lanado sobre o clima do Norte e o
Oeste do pas, reconhecendo que em todo o vasto planalto brasileiro h
zonas perfeitamente apropriadas colonizao europia.
59
Nascido em Sergipe, estudou na Faculdade de Direito do Recife e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1879.
Informaes mais detalhadas sobre o seu pensamento podem ser encontradas em: SCHNEIDER, Alberto Luiz.
Slvio Romero: hermeneuta do Brasil. So Paulo: Annablume, 2005.
51
A viso cientificista de Romero incorpora a idia de progresso, que coloca as
sociedades em diferentes nveis de desenvolvimento. Inspirado no pensamento de Henry
Thomas Buckle (1821-1862), acreditava que os estgios culturais eram cumulativos, de
forma que as sociedades que estivessem fora do padro cultural europeu seriam infantis,
primitivas, irracionais. Entretanto, ao contrrio de seus contemporneos, ele compe um
discurso otimista para o caso brasileiro. Schneider (id., p. 31) pondera que, apesar de no
questionar a premissa evolucionista em sua teoria sobre o Brasil, Slvio Romero percebeu a
mestiagem racial como a essncia da nacionalidade
60
, inaugurando um novo olhar para a
cultura brasileira. Para ele, os escritores brasileiros deveriam comprometer-se com a
descrio dos dramas e dos costumes propriamente nacionais, no de modo idealizado, como
faziam os romnticos, mas com uma narrativa realista, que funcionasse como um documento
literrio. Como explica Schneider (id., p. 41): o tema e o interesse deveriam ser locais, mas
o tratamento deveria ser universal, em outras palavras, cientfico. A mestiagem e a natureza
tropical representariam as particularidades brasileiras, j o concurso das idias a Cincia
seria universal, ou seja, europeu.
Entre a etnografia, o trabalho jornalstico e a literatura, Os Sertes (1902), de
Euclides da Cunha (1866-1909), obra emblemtica da modernidade brasileira, que expe de
forma marcante os conflitos Norte/ Sul, litoral/ serto, tradio/ progresso, dentre outros.
Embora mantenha a viso pessimista do mestio como ser inferior, ele atribui uma
superioridade ao mestio do serto, em relao ao do litoral. Essa idia ter uma profunda
repercusso na construo simblica do Nordeste, pela valorizao cultural do povo
sertanejo, que mostrou toda a sua fora, honra e coragem na defesa do arraial de Canudos.
Como ressalta Albuquerque (op. cit., p. 53-54), dependendo da estratgia de quem fala,
Euclides atualizado de uma forma diferente, j que seu livro, tenso entre ambigidades,
entre mito e histria, entre cincia e arte, assim o permite. Euclides coloca em pauta,
sistematicamente, o universo imagtico dos tipos regionais - vaqueiros, cangaceiros, profetas,
beatos etc. -, que, a partir da dcada de 1930, ser reforado por uma srie de romances
regionalistas, de escritores como Jos Lins do Rgo, Rachel de Queiroz, Jos Amrico de
Almeida, Graciliano Ramos, Jorge Amado, para citar alguns.
Alm disso, como Slvio Romero tambm defendia, Euclides da Cunha manteve do
pensamento romntico a idia de uma essncia nacional, presente na cultura popular, mais
autntica naqueles habitantes do serto, que no mantinham contato com os costumes
60
Mais tarde, Gilberto Freyre reinterpretaria o mito de origem das trs raas (branco, negro e ndio), observando
que o mestio racial era tambm um mestio cultural, constituindo-se na essncia do povo brasileiro. Ariano
Suassuna utiliza o mesmo referencial para pensar a alma castanha do povo sertanejo, como representante da
nossa cultura mais autntica.
52
modernos, trazidos pelos imigrantes estrangeiros, conservando a verdadeira brasilidade.
Idias to caras ao pensamento modernista, ao Movimento Armorial e ao projeto nacional-
popular em tantas vertentes ao longo do sculo XX. Segundo Albuquerque (id., p. 53), os
crticos literrios das geraes seguintes consideram Os Sertes o incio da procura pelo
verdadeiro pas, pelo seu povo, tendo posto por terra a iluso de nos proclamarmos uma
nao europia e mostrado a importncia de sermos americanos.
2.4. Nordeste: pela cultura, contra a civilizao
Para aqueles primeiros modernistas, a essncia no estava num pedestal inatingvel,
mas poderia - e deveria ser apreendida cientificamente, com a pesquisa emprica e
compromisso com a divulgao racional e objetiva do folclore nacional. Eles acreditavam,
conforme destaca Albuquerque (id., p. 54-55), que s uma vanguarda modernizadora podia
recuperar o serto para a civilizao. Percebe-se que o drama da modernidade, a que se
referia Foot Hardman, aparece nas palavras destes autores em dimenses conflitivas,
contraditrias, paradoxais. Enquanto Slvio Romero criticava Machado de Assis, acusando-o
de descompromisso com a questo nacional, Euclides da Cunha tecia comentrios contra o
comportamento das elites intelectuais brasileiras, que teimavam em copiar os modelos
europeus. Schneider (op. cit., p. 56) observa que, a partir dessa trincheira modernista,
cientificista e impessoal, Romero atacava o romantismo indianista por lhe parecer a
falsificao do esprito nacional, e no por buscar a nacionalidade. O pensamento de
Romero sintetizado, desta forma (id., p. 191):
O autor construiu uma teoria do Brasil (...) entendida como um sistema
interpretativo da sociedade brasileira que partia da premissa de que o Brasil
deveria ser uma nao moderna, ocidental e singular. No centro dessa
interpretao estava a percepo das trs raas em mestiagem. (...) A
essncia nacional do Brasil estaria no encontro dos trs povos, sob a
liderana portuguesa, capaz de gerar uma nao mestia, mas
embranquecida, integrando singularmente o rol das naes ocidentais.
Para compreender a ligao da crena em uma essncia nacional, originada pela
miscigenao das trs raas, com a construo simblica do Nordeste em torno daquelas
imagens e enunciados que continuam sendo repetidos e compartilhados, faz-se necessrio
detalhar o referencial terico no qual essa crena se baseia, e a partir da discutir algumas
particularidades do processo de valorizao da cultura nordestina na sociedade moderna
brasileira. O ponto de partida encontra-se na idia de cultura tal como foi construda pelos
intelectuais alemes da segunda metade do sculo XVIII, especialmente Johann Gottfried
53
Herder
61
(1744-1803). Naquele momento, houve um esforo no sentido da conscientizao
da nao alem para constituir a unidade de um povo que compartilhasse a mesma Histria e
a mesma lngua, ao mesmo tempo em que contestava os modos da nobreza europia,
considerados frvolos e artificiais. Os modos de ser do povo, ao contrrio, portavam
autenticidade, originalidade e o verdadeiro esprito alemo.
Herder questionou a dominao cultural francesa, com seu discurso civilizatrio em
torno do racionalismo e do classicismo, convidando outras naes a buscarem suas
identidades culturais, com base nas prprias tradies populares
62
. Ao negar o modelo
iluminista como o topo do desenvolvimento humano, Herder, e outros pensadores do
romantismo alemo, seguidos pelos espanhis, contestaram o sentido de cultura como
civilizao
63
, presente na Frana e na Inglaterra. Nestes pases, ser culto significava ser
civilizado, mas a concepo alem passou a conceber a Zivilisation com um sentido diverso
de Kultur, conforme explica Eagleton (op. cit., p. 22):
Enquanto civilizao um termo de carter socivel, uma questo de
esprito cordial e maneiras agradveis, cultura algo inteiramente mais
solene, espiritual, crtico e de altos princpios, em vez do estar alegremente
vontade com o mundo. Se a primeira prototipicamente francesa, a
segunda estereotipadamente germnica.
Esta nova acepo do termo cultura ganhou fora e novas conotaes nas
sociedades quando os fenmenos da industrializao, da urbanizao e do modelo capitalista,
em geral, foram predominando. Para Eagleton (id., ibid.), a Kurtur concebida no romantismo
alemo pode ser considerada uma forma de crtica pr-marxista ao capitalismo industrial
primitivo. O autor (id., p. 42) afirma ainda: com nacionalistas romnticos como Herder e
Fichte que aflora pela primeira vez a idia de uma cultura tnica distinta, com direitos
polticos simplesmente em virtude dessa peculiaridade tnica.
61
Os autores utilizados como fonte (Maria Thereza Didier, Alberto Schneider, Eduardo Jardim de Moraes,
Elisabeth Travassos, Durval Muniz de Albuquerque, Suzel Ana Reily) citam os mesmos referenciais do
romantismo alemo, tendo estudado a problemtica cultural brasileira com temas e enfoques diversos.
Schneider (op. cit., p. 49) lembra, por exemplo, que as idias de Herder e dos irmos Grimm foram lidas,
interpretadas, e mesmo citadas, tanto por Slvio Romero quanto por Mrio de Andrade. De outro lado, Didier
afirma a importncia que Ariano Suassuna concede ao pensamento de Slvio Romero e de Gilberto Freyre para
a construo das idias armoriais. Dentre os principais autores que, por sua vez, serviram de fontes para estes
estudiosos brasileiros, sobre os referencias romnticos na valorizao da cultura popular, citam-se,
especialmente, Peter Burke e Raymond Williams. De minha parte, tomei como referncia para as questes entre
cultura e civilizao, as reflexes de Renato Ortiz, Terry Eagleton, John Thompson e Edgar Morin.
62
importante salientar, ainda, a atuao dos irmos Grimm na pesquisa da tradio popular e na formao de
um imaginrio germnico, reforando a teoria do romantismo em torno de um projeto em prol da unidade
nacional.
63
Com um toque de ironia, Eagleton (id., p. 20) esclarece o conceito: Civilizao era em grande parte uma
noo francesa ento, como agora, supunha-se que os franceses tivessem o monoplio de ser civilizados e
nomeava tanto o processo gradual de refinamento social como o tlos utpico rumo ao qual se estava
desenvolvendo.
54
A cultura como civilizao pressupunha uma ao consciente em relao ao mundo,
raciocnio lgico, planejamento urbano. Sob o ponto de vista do Iluminismo, os apegos
romnticos, com sua ligao sentimental a um lugar, nostalgia pela tradio, preferncia
pela tribo, desviavam o homem dos passos para uma cidadania evoluda e universal. (id., p.
48-49)
A construo em torno da autenticidade da cultura popular expe um conflito por
uma legitimidade que se deseja evidenciar, sob o signo da busca de razes, do
autoconhecimento, de uma verdade interior. Logo, percebeu-se que a expresso legtima da
intelectualidade, da Arte ou das questes espirituais aproximavam-se daquela pureza e
emoo sincera encontrada nas pessoas simples do povo. Essa emoo, no evolucionismo
rousseauniano, era atribuda tambm aos povos primitivos, distantes das sociedades no-
ocidentais. No estgio de civilizao alcanado pela Europa Iluminista, aquela capacidade
expressiva ficou esquecida, perdeu-se. Donde a noo de resgate cultural do romantismo
alemo, que ainda permanece nas pesquisas antropolgicas, etnomusicolgicas etc.,
conforme aponta Eagleton (ib. p. 46):
A cultura, ento, o verso inconsciente cujo anverso a vida civilizada, as
crenas e predilees tomadas como certas que tm de estar vagamente
presentes para que sejamos, de alguma forma, capazes de agir. Ela aquilo
que surge instintivamente, algo profundamente arraigado na carne em vez
de concebido na mente. No surpreendente, portanto, que o conceito
tenha encontrado um lugar to acolhedor no estudo de sociedades
primitivas, as quais, aos olhos do antroplogo, permitiam que seus mitos,
rituais, sistemas de parentesco e tradies ancestrais pensassem por elas.
O povo, na construo simblica desses intelectuais romnticos, continha uma
simplicidade ingnua, era constitudo de pessoas intuitivas e espontneas, que guardavam e
seguiam as tradies que caracterizavam verdadeiramente a nao. Conforme Ortiz (2000, p.
37-38):
Povo no significa uma categoria histrica concreta, permeada pelos
conflitos e pelas contradies sociais; trata-se de um ideal, uma dimenso
esquecida, mas inclume ao mundo das letras e da razo. Viajar pela
cultura popular seria, assim, uma forma de encantamento do mundo, e
no propriamente um conhecimento cientfico da sociedade.
Se para a cultura-civilizao, o povo era visto como um mar de ignorncia, a
viso romntica passou a valorizar a cultura popular, como guardi das relquias do
passado: a busca pela suposta autenticidade popular era a busca pelo Graal nacional.
(SCHNEIDER, op. cit., p. 46) Por sua vez, Maria Thereza Didier (2000, p. 80) acrescenta-
nos que esse elo entre o espontneo/passado/popular resvala num esvaziamento do popular
como conceito que pode expressar formas diversas de lutas e experincias, inclusive no
presente.
55
Os estudos do folclore e a antropologia estruturalista buscaram, de certa forma,
solucionar essa querela entre tradio e modernidade, implicada, em ltima instncia, nos
conflitos entre cultura e civilizao. (EAGLETON, op. cit., p. 23) A tentativa de apreender a
cultura popular sob cdigos cientficos, ao mesmo tempo em que denuncia ou afirma uma
outra forma de vida, como crtica ao racionalismo iluminista ou tecnocracia capitalista,
tambm confirma a prpria racionalidade, em sua prpria metodologia e forma de discurso.
Tal impasse exposto, assim, nas palavras de Eagleton (id., p. 47):
Se os hbitos de pensamento supostamente concretos e sensveis dessas
culturas apresentavam-se como uma reprimenda razo ressecada do
Ocidente, os cdigos inconscientes que governavam esse pensamento
tinham todo o rigor exigente da lgebra ou da Lingstica. (...) A
mentalidade mais avant-garde, assim, fazia uma meia-volta completa para
se encontrar com a mais arcaica; com efeito, para alguns pensadores
romnticos era s dessa forma que uma cultura ocidental dissoluta podia
ser regenerada. Tendo chegado a um ponto de decadncia complexa, a
civilizao podia refrescar-se somente na fonte da cultura, olhando para
trs a fim de caminhar para frente.
Desde Slvio Romero, possvel observar esta mesma tentativa de inserir a cultura
popular no contexto moderno da questo nacional brasileira. Neste cenrio, o conflito Norte-
Sul configurava-se, conforme j abordamos, na querela interna entre a cultura e a civilizao,
entre a tradio e a modernidade
64
. Ao apontar uma distino valorativa entre o sertanejo e o
mestio do litoral, Euclides da Cunha tambm expe as bases simblicas para se compor a
fonte legtima da nossa autenticidade nacional, o lugar e o povo que se elegia para possuir
nossas relquias culturais, o guardio das razes. Didier (op. cit., p. 73) sintetiza:
A representao da regio Nordeste, numa viso de pressuposto
evolucionista, [aparece] como base de uma identidade cultural brasileira,
pois precedeu historicamente as demais regies. Nesse sentido,
estabelece-se um vnculo entre o Nordeste, a cultura popular e um passado
linear e gerador de uma identidade nacional.
O sertanejo se diferenciava pela honra, pela coragem e tambm pelo
conservadorismo, ao contrrio do mestio litorneo, que seria mais comunicativo e mais
aberto s trocas culturais, demonstrando uma fraqueza de vnculos. Darcy Ribeiro (1998, p.
355) assim define os traos deste mestio forte:
O sertanejo arcaico caracteriza-se por sua religiosidade singela tendente ao
messianismo fantico, por seu carrancismo de hbitos, por seu laconismo e
rusticidade, por sua predisposio ao sacrifcio e violncia. E, ainda,
pelas qualidades morais caractersticas das formaes pastoris do mundo
64
importante observar que este conflito teria ocorrido, de modo semelhante, entre reas desprivilegiadas e os
centros de poder poltico e econmico. Conforme lembra Laura de Mello e Souza (1992, p. 46), Peter Burke
indica o mesmo fenmeno, por exemplo: na Esccia, em relao Inglaterra; na Bretanha em relao Ile-de-
France; e no Sul da Itlia em relao ao Norte.
56
inteiro, como o culto a honra pessoal, o brio e a fidelidade a suas
chefaturas.
Albuquerque (op. cit., p. 122) ressalta que os romancistas da gerao de 1930, como
Rachel de Queiroz e Jos Amrico de Almeida, enfatizam aquelas qualidades morais e
valorizam o modo de vida comunitrio do sertanejo, em contraste ao individualismo burgus.
Para este olhar civilizado, por outro lado, o migrante vindo do serto nordestino representa
um homem primitivo, que age por instinto e no pela razo. Estereotipado pela imagem do
cangaceiro, o migrante associado a um perigo social iminente. (id., p. 126)
Com o acirramento da problemtica regional, que ia, ao mesmo tempo, formando e
desfavorecendo a parte seca do Norte como identidade espacial e poltica, expande-se, por
meio de discursos e imagens j levantados, o lugar e o povo dotado de pureza e autenticidade
a toda a configurao regional Nordeste (id., p. 117):
O serto deixa de ser aquele espao abstrato que se definia a partir da
fronteira da civilizao, como todo o espao interior do pas, para ser
apropriado pelo Nordeste. S o Nordeste passa a ter serto e este passa a
ser o corao do Nordeste, terra da seca, do cangao, do coronel e do
profeta.
Conforme argumenta ainda Albuquerque (id., p. 105), este seria o espao nacional
da memria, enquanto no Sul/ So Paulo dava-se a histria. A memria, despertada por um
afeto saudosista tanto para os intelectuais, filhos de proprietrios rurais em crise econmica e
poltica, quanto para os migrantes pobres que buscavam melhores condies de vida nos
centros urbanos, era construda pela seleo e ordenamento de determinadas lembranas que
reservavam ao Nordeste um papel de passado cultural na formao do Estado moderno
brasileiro. Assim como Eagleton (op. cit., p. 49) se referira cultura, segundo os romnticos,
o Nordeste no mais era uma descrio do que se era, mas do que poderia ser ou costumava
ser. Por sua vez, Albuquerque afirma (op. cit., p. 104-105):
So Paulo visto, na maioria das vezes, como a rea da cultura moderna e
urbano-industrial, omitindo-se sua cultura tradicional e a realidade do
campo. J com o Nordeste se verifica o inverso. Este quase sempre
pensado como regio rural, em que as cidades, mesmo sendo desde longa
data algumas das maiores do pas, so totalmente negligenciadas, seja na
produo artstica, seja na produo cientfica. As cidades nordestinas,
quando tematizadas, parecem ter parado no perodo colonial, so abordadas
como cidades folclricas, alegres, cheias de luz e arquitetura barroca. J
So Paulo vista como uma cidade que passou do burgo pobre, feio, triste
e sem luz do perodo colonial, para a cidade moderna, rica, movimentada,
multicolorida, polifnica e cheia de luminosidades contemporneas.
.Lugar das recordaes de infncia daqueles homens e mulheres, o Nordeste
confunde-se, nas teias discursivas evolucionistas, com a prpria infncia do pas (passado
57
histrico, pr-industrial, pr-capitalista), e a noo de primitivismo sertanejo direciona a
classificao de povo infantil (ingnuo, espontneo, fantasioso)
65
. Os escritores regionalistas
faziam um modernismo nostlgico em relao a um mundo de certezas, ordem, hieraquia e
estabilidade, que havia sido dilacerado pela fragmentao moderna, que vista com
desconfiana. Ao contrrio disso, o modernismo de So Paulo vai assumir esse dilaceramento
sob o prisma da atualizao esttica, e depois poltico-cultural.
Se, de um lado, So Paulo congregava, hegemonicamente, o universo simblico da
modernidade, de outro, as correntes modernistas de todo o pas tinham a mesma crtica em
relao a postura das elites urbanas nacionais: a transplantao cultural europia, tendo como
modelo principal a Frana. Seja sob o olhar dominante paulista ou pela viso do outro
regional, dos nordestinos, os modernistas contestavam, enfaticamente, o artificialismo de
uma elite que copiava, por vezes de forma grotesta e risvel, os costumes da burguesia
francesa. Eram contra a linguagem rebuscada e plstica da poesia simbolista parnasiana, o
detalhamento excessivo do naturalismo. Sobretudo, havia uma crtica incapacidade da elite
brasileira de produzir modelos, de expressar costumes genunos, exercendo uma cultura
importada e desprezando as produes nacionais.
Os modernistas da Semana de 1922 acompanharam um questionamento da prpria
vanguarda francesa contra sua elite, propondo uma linguagem condizente com os novos
cenrios urbanos, com as demandas das sociedades modernas, a favor de uma renovao
esttica e uma ruptura com o passado. Albuquerque (id., p. 55) aponta que esta projeo
anti-francesa desviava uma caracterstica regional do movimento paulista nas estratgias
discursivas, frente pedominncia cultural do Rio de Janeiro: Incomodava aos modernistas
que o Rio continuasse sendo o centro cultural do pas, quando So Paulo j era o grande
centro econmico e detinha grande influncia poltica. O modernismo se alimentou do
regionalismo paulista, como reconhece Mrio de Andrade.
Por outro lado, ligados ao pensamento sociolgico de Gilberto Freyre, os
modernistas da nova configurao regional, o Nordeste, acusavam a manuteno do
referencial europeu pelos paulistas, que apenas trocaram os conservadores pelos
vanguardistas, e propuseram uma ruptura apenas na viso naturalista, que descrevia as
65
Amorim (op. cit., p. 37-38) observa: Soulez e Vigarello indicam claramente a proximidade entre as noes
de criana e de primitivo na histria das idias. A partir do momento em que o carter cumulativo das
cincias, das artes e das tcnicas torna-se objeto de uma valorizao especial e que o luxo e a abundncia
passam ao discurso como um projeto social, a noo de primitivo e a idia de que alguns povos ainda esto na
infncia podem ser construdas. Do mesmo modo, a noo de infncia supe uma longa histria na
diferenciao e valorizao de um espao social que lhe seja prprio. O termo comum psicologia e
economia poltica que revela as ligaes profundas entre a representao da criana e do primitivo o termo de
desenvolvimento .
58
paisagens e os tipos regionais de uma forma artificial e com um olhar civilizado. Conforme
avalia Schneider (op. cit., p. 224):
Imbuda de outro modernismo, a obra de Gilberto Freyre representou um
esforo em demonstrar o quanto o Nordeste brasileiro, no raro
identificado como conservador e atrasado, deteria uma rica experincia
histrica, capaz de impedir rupturas intransponveis, alm de ter
viabilizado a formao de uma coeso social, cultural e lingstica. Essa
tradio no deveria ser descartada no processo de modernizao que o
pas vivia e viveria em futuro prximo.
Desta maneira, os modernistas do chamado romance de trinta optaram por uma
expresso simples, que facilitasse a comunicao com o pblico, e uma nova sensibilidade
que aliasse a modernidade tradio, primordial para a nacionalidade. No tiveram, portanto,
a preocupao com a forma e o experimentalismo da fase inicial do modernismo paulista
66
,
considerado desnacionalizador. Desta forma, o modernismo regionalista faz uma crtica aos
padres de sociabilidade modernos do capitalismo industrial, e defende uma produo
simblica voltada para a memria e os valores nacionais, preservados na cultura sertaneja.
Albuquerque (op. cit., p. 80) diferencia da seguinte maneira a viso regional em relao ao
movimento modernista:
Eles [os romancistas de trinta] resgatam a prpria narrativa como
manifestao cultural tradicional e popular, ameaada pelo mundo
moderno, e a tomam como expresso do regional. Enquanto em So Paulo
os modernistas procuravam romper com a narrativa tradicional, assumindo
a prpria crise do romance no mundo moderno, no Nordeste o movimento
regionalista e tradicionalista volta-se para resgatar as narrativas populares,
a memria como nico lugar de vida para este homem moderno dilacerado
entre mquinas, a narrativa como o lugar de reencontro do homem consigo
mesmo, de um espao com sua identidade ameaada.
2.5 Na dialtica do encantamento
A partir de 1924, com o Manifesto pau-brasil
67
, a problemtica nacional adentrou o
movimento modernista no apenas no mbito esttico-literrio mas como um projeto cultural
ampliado. A idia era, pelo particular, atingir o universal, e obter uma visibilidade e uma
identidade prpria no rol das naes. Conforme explica Jardim de Moraes (1978, p. 83), no
se trata mais de combater o passado em nome da atualizao/modernizao, mas de
introduzir a tica do nacionalismo no processo de renovao: s seremos modernos se
formos nacionais. Desta forma, a prpria idia de nao brasileira se constitua no pano de
66
Conforme anlise de Eduardo Jardim de Moraes (1978), o movimento teve uma fase inicial de atualizao-
modernizao (1917-1924), de preocupaes estticas, seguida de uma fase nacionalista (1924-1929),
concentrada na elaborao de um projeto cultural para o pas.
67
De autoria de Oswald de Andrade, foi publicado no jornal Correio da Manh, edio de 18 de maro de
1924.
59
fundo para a renovao artstica, a busca de novas tcnicas e estticas, uma expresso
diferente que representasse, de fato, nossa identidade
68
. Donde a valorizao da cultura
popular como fonte da produo simblica intelectual.
Para Mrio de Andrade (1893-1945), caberia ao intelectual investigar essa cultura a
fim de criar uma idia de unidade nacional. Era necessrio conhecer as culturas regionais a
fim de super-las, a fim de instituir uma sntese expressiva. Em Macunama (1928), Mrio
expressa sua idia de que o carter do brasileiro exatamente a falta de um carter
especfico. Em seu ponto de vista, o intelectual modernista deveria se comprometer na
construo desse carter, na criao de uma tradio nacional. O modernismo ps-1924,
portanto, no tinha como tarefa o rompimento com a tradio, como estavam fazendo as
vanguardas europias, mas criar esta tradio, institu-la, nas palavras de Albuquerque. (op.
cit., p. 51) Seja no discurso de ruptura ou no respeito s tradies, esses modernistas das
dcadas 1920 e 1930 voltaram-se para o povo a fim de constituir uma identidade nacional,
valorizando determinados eventos do passado. De acordo com Schneider (op. cit., p. 196),
eles reinventaram o cnone cultural e reorganizaram a biblioteca imaginria.
Do Manifesto pau-brasil em diante, os modernistas autores ou grupos -
propuseram formas distintas de se atingir a brasilidade. Em geral, pode-se afirmar dois
grandes caminhos: uma perspectiva analtica, de Mrio de Andrade, por exemplo,
desencadeando uma linha de estudos sociais e antropolgicos sobre o Brasil, e neste sentido,
em continuidade com Slvio Romero; e uma perspectiva sinttica, como props Oswald de
Andrade (1890-1954), valorizando a apreenso intuitiva da brasilidade e rejeitando o
racionalismo acadmico.
Ariano Suassuna, em sua proposta armorial, retoma a questo do universal pelo
particular para a criao de uma arte erudita, mas ao contrrio de Mrio de Andrade, que
propunha instituir a brasilidade, modernamente, o autor paraibano considera o legado da
tradio popular sertaneja e tambm o legado intelectual do Nordeste, naquilo que
68
Os pormenores das propostas modernistas, em suas diversas vertentes, tais como a antropofagia, o movimento
da Anta, o verde-amarelismo, bem como suas dissidncias internas fogem ao mbito desta pesquisa. Para mais
detalhes, consultar: MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista: sua dimenso filosofica. Rio de
Janeiro: Edies Graal, 1978. Para uma contextualizao mais aprofundada da modernizao paulista,
consultar: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes
anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.
60
denominou de Grande Escola Nordestina
69
. Neste sentido, possvel pensar no apenas em
um Nordeste inventado, mas na inveno de uma erudio nordestina
70
.
O Movimento Armorial (1970-1976) apresenta, assim como os modernistas, um
desejo de construo da identidade nacional calcado nas tradies populares. Porm,
fundamenta essa construo no em aspectos sociolgicos, como fez Gilberto Freyre, ou na
linha moderna cosmopolita de Mrio de Andrade, mas sim em uma proposta artstica e
esttica, em sentido amplo
71
, de descobrir e valorizar o belo no universo popular, de
estabelecer conexes entre o erudito e o popular, afrouxando essas definies. Suassuna
discordava tanto do realismo excessivamente sociolgico dos escritores regionalistas
quanto da idia de ruptura, incentivada pelos modernistas de 1922. Conforme destaca Didier
(op. cit., p. 35-36), a perspectiva armorial privilegia a Regio Nordeste como espao
geogrfico que manteve as caractersticas puras e definidoras da cultura brasileira. regio
nordestina, no geral, e sertaneja, em particular, creditado um espao singular no mundo
mgico, explorado pelas atividades artsticas armoriais.
Observa-se, nesta valorizao do aspecto dionisaco do povo sertanejo,
aparentemente, uma proximidade com a proposta antropofgica
72
de Oswald de Andrade.
Este propunha uma sntese dos antagonismos da nao, de modo que se revelasse
intuitivamente o lado moderno e o atrasado, o urbano e o rural, o presente e o passado, o
erudito e o popular. As duas palavras de ordem seriam a intuio para apreender a
brasilidade - e a integrao para envolver o todo nacional como unidade dentro e fora do
pas. Percebe-se que estas palavras tambm circulam o pensamento de Suassuna, quase como
uma releitura, quando ele se posiciona contra as estticas racionalistas e coloca a afirmao
do carter intuitivo do povo em primeiro plano em sua proposta armorial. Didier (id., p. 17-
69
Essa Escola englobaria toda a reflexo regional, dividida entre o perodo Barroco (no qual o autor inclui todo
o pensamento de trs sculos, do XVI ao VXIII), a Escola do Recife (a partir da segunda metade do sc. XIX),
seguidos pelas obras Os Sertes (Euclides da Cunha) e Eu (Augusto dos Anjos), e o movimento regionalista
(Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Jos Lins do Rgo, Graciliano Ramos etc.). Conforme Didier (op. cit., p.
138).
70
Esta expresso e as noes conceituais que o permeiam me foram sugeridas pelo prof. Dr. Gilmar de
Carvalho, em conversa informal, em junho de 2005.
71
Albuquerque (op. cit., p. 170) nos descreve essa esttica, presente na obra de Suassuna e idealizada por ele no
movimento armorial, como uma viso totalizadora, capaz de perscrutar o essencial desta sociedade sertaneja,
no fazendo o corte racionalista entre o real e o mtico. Adiante, o autor explica que seu romance e teatro
armorial e romanal partem do pressuposto que o espao da arte no apenas representao, mas apresentao
de uma nova realidade criada pelo artista.
72
Lanado em 1928, o movimento antropofgico desenvolve as idias contidas no Manifesto pau-brasil.
Jardim de Moraes (op. cit., p. 144) assim explica o procedimento da antropofagia cultural: O instinto
antropofgico, por um lado, destri, pela deglutio, elementos de cultura importados; por outro, assegura a sua
manuteno em nossa realidade, atravs de um processo de transformao/absoro de certos elementos
aliengenas. Ou seja: antes do processo colonizador, havia no pas uma cultura na qual a antropofagia era
praticada, e que reagiu, sempre antropofagicamente mas com pesos diferentes, ao contato dos diversos
elementos novos trazidos pelos povos europeus.
61
18) aponta que Suassuna tambm atribua a singularidade do povo brasileiro reunio de
elementos opostos, cuja expresso mxima se encontrava no espao mtico do serto. A
autora observa ainda que uma caracterstica importante na obra de Suassuna a tendncia
unificadora de contrrios, destacada, inclusive, pelo prprio autor. Com base nas formas
narrativas da literatura de cordel, Suassuna apresenta um espao onde no existiriam
fronteiras entre o real e o imaginrio, entre o sentimental e o antipotico; entre o divino e o
pago; entre o trgico e o cmico; entre a loucura e a razo. (ALBUQUERQUE, op. cit., p.
85)
Ao propor uma construo ficcional do espao nordestino, rejeitando a construo
documental de outros autores, Suassuna coloca a temtica da saudade e da tradio sob uma
viso inovadora. Tal como Albuquerque (id., p. 172) observa, este aspecto eminentemente
moderno em seu teatro, embora renegue a modernidade burguesa do teatro. Em sua poca,
Gilberto Freyre condenara o cinema americano, a luz eltrica e a perda do hbito de contar
histrias para crianas como sinais do desenraizamento cultural do pas. Pode-se observar
uma similaridade com o discurso anti-cosmopolita
73
e anti-anglicista de Suassuna. Ele possui
reservas quanto ao uso da guitarra eltrica na msica brasileira, por exemplo, e tambm
denuncia a americanizao via Internet e meios publicitrios. Em depoimento revista
Entrelivros, edio de julho de 2005, o autor (apud DIAS, 2005, p. 34-35) esclarece seu
ponto de vista:
Hoje as pessoas me chamam de contraditrio e dizem: voc gosta da
cultura popular, mas detesta a de massa. Mas elas no so a mesma coisa.
Cultura de massa, por definio, baseada no gosto mdio, o que no vale
para a cultura popular. A cultura popular feita pelas pessoas do Brasil
real de bom gosto. E essa cultura no subsiste apenas na zona rural, no,
porque nas cidades ela tambm se manifesta. H uma cultura popular
urbana que sobrevive margem da cultura de massa. O fato que a cultura
popular tem uma capacidade enorme de assimilao, sem abrir mo de sua
identidade. (...) O que eu no concordo com a uniformizao. Porque
nessa grande sinfonia que a cultura universal cada regio tem de fornecer
a sua nota peculiar. Para mim, o homem o mesmo em todo o canto, os
fundamentos so os mesmos.
Neste aspecto, h profunda discordncia com a antropofagia. Embora esta tambm
tomasse como premissa a idia do universal pelo particular, da cultura brasileira buscar um
lugar no concerto das naes, Oswald de Andrade, por outro lado, abraava a tecnologia
como umas das formas de integrao, conforme explica Jardim de Moraes (op. cit., p. 160):
73
importante ressaltar a diferena entre as dimenses universal e cosmopolita, assim explicada pelas palavras
do compositor Igor Stravinsky: A universalidade cujos benefcios vamos gradualmente perdendo uma coisa
inteiramente diferente do cosmopolitismo que vai se apossando de ns. A universalidade pressupe a
fecundidade de uma cultura que se espalha e se comunica por toda parte, enquanto o cosmopolitismo no
oferece nem ao nem doutrina, e leva passividade indiferente de um ecletismo estril. (STRAVINSKY, op.
cit., p. 73)
62
O ndio devora o colonizador e, atribuindo-lhe novo valor, utiliza-se dos
elementos aproveitveis da figura do devorado. Neste sentido que o
nacionalismo antropofgico no um simples primitivismo. Ele pretende
sintetizar a pureza natural e os resultados da tcnica moderna.
Ao contrrio, observa-se, no pensamento de Suassuna, uma posio de conflito
contra uma tentativa de colonizao cultural: a idia de uma cultura popular espontnea e
criativa que est sendo padronizada nos moldes racionalizantes da sociedade de massas. Sua
proposta de integrao sugere um caminho para a arte brasileira que rene o erudito e o
popular, alimentado-se de fontes culturais diversas, mas sempre voltadas para as tradies
nacionais
74
. O termo armorial, neste sentido, torna-se uma adjetivao bastante apropriada.
O ponto de reflexo que perpassa essa valorizao da cultura popular como
detentora da essncia nacional coloca-se no apenas na relao idealista entre intelectual e
povo, mas nas conseqncias limitadoras que esta postura implica. Renato Ortiz (op. cit., p.
34) sublinha que o folclorista supe a existncia de universos estanques, de limites no
interior dos quais as manifestaes populares necessariamente evoluem. Abordamos as
bases romnticas desse pensamento, que avalia o grau de legitimidade e autenticidade quanto
menos contato a cultura mantiver com a civilizao. O discurso cientfico modernista,
primeiramente nas correntes evolucionistas e depois em algumas correntes antropolgicas,
alinha-se idia de progresso inevitvel. Suas pesquisas so importantes para preservar,
conservar e registrar um fenmeno social isolado, tomado como unidade orgnica, que
certamente desaparecer. O problema se d na perspectiva imobilista, que no percebe nem
aceita a interao daquela cultura, ou sempre a enquadra em uma viso negativa e
desagregadora
75
. Tal viso ser contestada sob diversas formas pelas Artes e pelas Cincias
Humanas na perspectiva ps-modernista. Alguns parmetros dessa crtica sero discutidos no
prximo captulo.
74
cf. Didier, op. cit.., p. 40. A autora ressalta que tal perspectiva era, ideologicamente, bastante oportuna ao
governo militar, aproximando-se da proposta de integrao nacional, estabelecida, oficialmente, pela Poltica
Nacional de Cultura (PNC), do Ministro da Educao Ney Braga (1976), no governo Geisel (1974-1979).
75
No apenas os intelectuais e artistas que valorizam a cultura popular em suas reflexes e temticas podem
portar essa viso essencialista, mas tambm aqueles que valorizam a cultura-civilizao, seja por alguma
esttica vanguardista ou pela integrao na indstra cultural: muitas vezes, o elemento popular-folclrico
rejeitado exatamente pela mesma crena em seu imobilismo, neste caso, sinnimo de atraso e de
conservadorismo criativo.
63
3 TRADIO E PS-MODERNISMO: PERCURSOS MUSICAIS
Uma vez expostas as principais questes quanto construo simblica do
Nordeste, na discusso cultural das estratgias que elaboram enunciados e imagens repetidas
ao ponto de instituir uma tradio regional, faz-se necessria uma considerao mais
aprofundada sobre algumas (re)criaes artstico-musicais da tradio nordestina, no dilogo
entre a modernidade e a ps-modernidade, peculiar aos processos culturais latino-
americanos.
A presena da temtica nordestina nos grupos Anima e Syntagma conduz-nos a
consider-los como construtores de sentidos, no apenas do Nordeste ou do Brasil: suas
estticas dialogam tambm com outras constelaes simblicas, cujos referenciais no
podem ser menosprezados, sob o risco de tornar as concluses deste trabalho por demais
fixas, ou naturalizadas em apenas uma direo, como se incorporssemos os grupos a
determinada linhagem artstica ou intelectual do pas. Para evitar tal direcionamento
interpretativo, introduz-se, neste captulo, a perspectiva simblica nordestina frente a outras
representaes observadas nas msicas do Anima e do Syntagma. Refiro-me ao que possuem
em comum: tipo de formao instrumental camerstico, com interesse pelo repertrio de
Msica Antiga europia, fazendo conexes deste com as sonoridades da tradio nordestina,
e brasileira
76
.
O modo como (re)constroem estes universos em suas msicas leva-nos a discutir
alguns aspectos da perspectiva ps-modernista, considerando ainda as especificidades do
fenmeno do renascimento da Msica Antiga, no debate sobre autenticidade da interpretao
musical, bem como a condio da esttica ps-moderna na realidade latino-americana. Tais
aspectos sero apresentados frente s propostas esttico-musicais de Mrio de Andrade, do
Movimento Armorial e da atuao de artistas como Luiz Gonzaga na divulgao e
modernizao de ritmos, cantares, gestos e costumes da regio Nordeste via cultura de
massa
77
com incentivo governamental, ressaltando os pontos de possveis hibridaes na
76
Conforme se verifica nos captulos seguintes, embora compartilhem estes interesses culturais, h uma
diferena nas propostas musicais dos grupos, e nos referenciais semnticos de que se utilizam, seja no repertrio
brasileiro, seja no europeu antigo.
77
Alguns autores questionam a expresso pois tais prticas culturais no seriam feitas pelas massas, mas para
as massas alis, outro termo bastante vago e equvoco. Theodor Adorno (apud COHN (org.), 1987, p. 287)
prefere a expresso indstria cultural, que se refere aos produtos adaptados ao consumo das massas e que em
grande medida determinam esse consumo. Preferimos manter a expresso porque, conforme se ver adiante, a
proposta de msica regional de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira no possua um aparato mercadolgico
comparvel s organizaes da indstria fonogrfica tal qual reconhecemos contemporaneamente. Alm disso, a
cultura de massa envolve no apenas as indstrias do entretenimento mas tambm um complexo cultural
mediado pela imprensa, rdio, cinema, televiso, mdias e redes eletrnicas etc. Conforme salienta Edgar
64
elaborao musical dos grupos, a serem observados nos captulos seguintes. Considera-se
que este encontro de universos simblico-musicais diversos, em suas respectivas prticas,
atualiza a prpria leitura da regio.
3.1 Nem razo nem sensibilidade: os (des)encantos ps-modernos
Seja como superao, negao ou resultado do aprofundamento do pensamento
modernista, a perspectiva ps-moderna questiona os valores da modernidade, pondo em
xeque as narrativas universalizantes em diversos nveis, dentre as quais a idia de Estado-
Nao e as teorias cientficas com explicaes totalizantes. O ps-modernismo contesta tanto
o essencialismo da Kultur romntica quanto o progresso inelutvel da Zivilisation. As
tendncias ps-modernas vem a racionalidade da Zivilisation com desconfiana, ao passo
que sentimentalismo da Kultur vista com impacincia, ironia e sarcasmo.
O pensamento ps-moderno questiona a idia iluminista do indivduo soberano e
rejeita o culto aos cnones artsticos. Em seu lugar, afirma a idia de um sujeito descentrado
(HALL, op. cit.), fragmentado em mltiplas identidades, bem como prope a dessacralizao
das obras de arte, valorizando a heterogeneidade e a diferena cultural. Embora valorize uma
viso de mundo cosmopolita, no compartilha do elitismo da cultura-civilizao, pelo que
muitas vezes acusado de populista.
Estes questionamentos se intensificaram aps a Segunda Guerra Mundial, com as
redefinies geopolticas e sociais que levaram a uma acelerao da produo e a
globalizao
78
de mercados, inclusive dos bens simblicos. Os processos comunicativos
adquiriram uma velocidade e um alcance significativos, tanto nos meios de transporte como
nas transmisses culturais de massa. Para David Harvey (apud OLIVEIRA, 2000, p. 92-93),
configura-se uma nova sensibilidade a partir de uma compresso espao-temporal, percebida
no contexto scio-cultural submetido ao aumento do tempo de giro do capital. Conforme
observa Emanuel de Oliveira (id. ibid.):
A partir de ento se acentuaram a volatilidade e a efemeridade das modas,
dos produtos, das tcnicas de produo, dos processos de trabalho, e
Morin: A cultura de massa uma cultura: ela constitui um corpo de smbolos, mitos e imagens concernentes
vida prtica e vida imaginria, um sistema de projees e de identificaes especficas. (MORIN. 1977a, p.
15)
78
Conforme a definio de Anthony McGrew (apud HALL, op. cit., p. 67), o termo globalizao refere-se
queles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando
comunidades e organizaes em novas combinaes de espao-tempo, tornando o mundo, em realidade e em
experincia, mais interconectado. Mais adiante em seu texto, contudo, Hall cita Kevin Robins (id., p. 78-79),
que apresenta uma perspectiva crtica sobre o processo da globalizao: O capitalismo global , na verdade,
um processo de ocidentalizao a exportao das mercadorias, dos valores, das prioridades, das formas de
vida ocidentais.
65
tambm das idias, valores e prticas estabelecidas socialmente. Os valores
e as virtudes da instantaneidade e da descartabilidade ganham uma
primazia inusitada.
De outro lado, os movimentos sociais da dcada de 1960 reforaram a fragmentao
poltica na pluralidade de suas contestaes contra a burocracia, o autoritarismo, o tecnicismo
e outras posturas associadas ao processo civilizatrio moderno. Consoante observa Hall (op.
cit., p. 21), percebe-se uma fratura das noes estruturais de classes, s quais sobrepe-se
um cenrio de identificaes rivais e deslocantes, cujo marco poltico associa-se s
manifestaes de 1968. So os novos movimentos sociais: o feminismo; gays e outras lutas
de respeito sexualidade; as lutas negras; as lutas tnicas de libertao nacional; pela paz,
antinucleares; estudantis; ecolgicos; de contracultura juvenil; as lutas pelos direitos civis
etc. (id., p. 43-44). Uma das caractersticas marcantes da ps-modernidade refere-se
politizao da esfera cultural.
Neste contexto, a idia da cultura popular como portadora da expresso mais
autntica da nao perde fora. O projeto cultural modernista, com pretenses universais,
torna-se obsoleto frente ao discurso particularista ps-moderno, que incorpora as questes
regionais ao debate das polticas de identidade. Eagleton (op. cit., p. 113) aponta que o
particularismo ps-moderno mais provisrio do que enraizado, mais hbrido do que um
todo. (...) Suas simpatias populares nascem mais de um ceticismo quanto a hierarquias do que
(...) de um compromisso com os expropriados. Desta forma, a prpria fixao hierrquica
dos segmentos popular e erudito torna-se obsoleta, principalmente diante da inelutvel
presena da cultura de massa. Observa o autor (id., p. 80):
Belas-artes e vida refinada no so um monoplio do Ocidente. Nem pode
a alta cultura ser hoje em dia limitada arte burguesa tradicional, j que
abrange um campo muito mais diverso, guiado pelo mercado. Alta
certamente no significa no comercial, nem tampouco de massa
significa necessariamente no radical.
Garca Canclini (2003, p. 51) adverte, contudo, que a separao das esferas
erudita e popular - se mantm reproduzida por meios institucionais e acadmicos,
sustentando necessidades culturais de conferir um significado mais denso ao presente e
necessidades polticas de legitimar a hegemonia atual mediante o prestgio do patrimnio
histrico. Ou ainda, como acrescenta-nos Eagleton (op. cit., p. 80-81), a separao funciona
como o emblema espiritual de um grupo privilegiado. Estas reflexes se aproximam da
idia de distino de Pierre Bourdieu, que estuda os procedimentos que as elites utilizam
para construir campos especficos de conhecimentos e de gostos, atribuindo valores
simblicos a determinados produtos culturais. Garca Canclini (op. cit., p. 36) toma estas
idias como ponto de partida quando afirma que, em sociedades modernas e democrticas,
66
onde no h superioridade de sangue nem ttulos de nobreza, o consumo se torna uma rea
fundamental para instaurar e comunicar as diferenas. Tais reflexes so aprofundadas,
assim, nas palavras do mesmo autor (id., p. 354):
H setores de elite e populares que restabelecem a especificidade de seus
patrimnios ou procuram novos signos para diferenciar-se. As lutas para
defender a autonomia regional ou nacional na administrao da cultura
continuam sendo necessrias frente subordinao que as empresas
transnacionais buscam. Mas em geral todos reformulam seus capitais
simblicos em meio a cruzamentos e intercmbios. A sociabilidade hbrida
que as cidades contemporneas induzem nos leva a participar de forma
intermitente de grupos cultos e populares, tradicionais e modernos. A
afirmao do regional ou do nacional no tem sentido nem eficcia como
condenao geral do exgeno: deve ser concebida agora como a
capacidade de interagir com as mltiplas ofertas simblicas internacionais
a partir de posies prprias.
Alm disso, h uma acentuao da postura esttica, em vez da tica, diante da vida,
e associada antes ao estilo e ao prazer do que eleio e preservao de cnones artsticos. A
valorizao da esttica permite-nos evocar a complexidade das representaes simblicas no
campo artstico e intelectual contemporneo, embora contenha um aspecto primitivista
tambm, em certo sentido. Morin (1977b, p. 80) chama a ateno para este renascimento da
relao esttica, que se constitui no encantamento do jogo, do canto, da dana, da poesia, da
imagem, da fbula, tendo sido, desde sempre, reprimida em favor da vida prtica e
encoberta pelas reificaes mgicas. Assim, o autor explica este renascimento (id., p. 79):
A finalidade cultural ou ritual das obras do passado se atrofiou ou
desapareceu progressivamente para deixar emergir uma finalidade
propriamente esttica. (...) O mundo imaginrio no mais apenas
consumido sob forma de ritos, de cultos, de mitos religiosos, de festas
sagradas nas quais os espritos se encarnam, mas tambm sob forma de
espetculos, de relaes estticas. s vezes at as significaes imaginrias
desaparecem; assim, as danas modernas ressuscitam as danas arcaicas de
possesso, mas os espritos no esto nelas.
Assim como na dana, a atividade musical na perspectiva ps-moderna tambm
desloca significados entre as ordens prtica, mgico-religiosa e esttica, de modo que no se
pode delimitar exatamente o espao de cada uma na experincia social. Se, por um lado, o
carter simblico se aproxima do aspecto sagrado da esfera mgico-religiosa, por outro, o
carter mediado do fazer musical desperta os aspectos profanos ligados ao afeto, s
sensaes, no apenas pela convivncia com o outro como tambm por vnculos culturais
com grupos maiores, sejam familiares, profissionais, tnicos, regionais, nacionais etc.
H, ainda, uma dimenso antropolgica da ps-modernidade que, no dizer de
Eagleton (op.cit., p. 113), inclui clubes, casas de moda, arquitetura e shopping centers tanto
quanto textos e vdeos. Estes microcosmos tornam-se ncleos sociais ps-modernos, nos
67
quais se observam as prticas e representaes do cosmopolitismo, da esttica, do particular
desenraizado, do efmero etc. Os cdigos desses ncleos particulares so reconhecidos e
compartilhados por pessoas de diferentes origens e formaes, em diversos lugares do
planeta, constituindo um vnculo ps-moderno global, conforme explica Hall (op. cit., p. 73-
74):
Os fluxos culturais, entre as naes, e o consumismo global criam
possibilidades de identidades partilhadas como consumidores para os
mesmos bens, clientes para os mesmos servios, pblicos para as
mesmas mensagens e imagens entre pessoas que esto bastante distantes
umas das outras no espao e no tempo.
A dificuldade em se definir a esttica ps-moderna encontra-se em sua abertura,
diversidade, e por sua prpria rejeio de padres, por sua recusa em prender-se a modelos
estereotipados, realizando uma arte que enfatiza as incertezas, a indeterminao. vlido
ressalvar que tais caractersticas j haviam sido exploradas de modo amplo pela esttica
modernista, no campo artstico. Dentre elas, Mike Featherstone (1995, p. 24-25) destaca,
baseado nos estudos de Eugene Lunn:
reflexividade e autoconscincia esttica; rejeio da estrutura narrativa em
favor da simultaneidade e da montagem; explorao da natureza paradoxal,
ambgua e indeterminada da realidade e rejeio da noo de uma
personalidade integrada, em favor da nfase no sujeito desestruturado e
desumanizado.
No entanto, observa-se que, em geral, estes recursos eram utilizados com vistas a
um adensamento do sujeito ou da existncia humana: tratava-se de uma forma de exprimir
um ser profundo, inconsciente, que se encontrava ali apesar da realidade social, da presso
trabalhista, do esnobismo burgus, ou do horror das guerras mundiais, por exemplo. Um
olhar menos otimista da esttica ps-moderna pode se voltar para o exacerbamento acrtico
daquelas caractersticas. De acordo com Harvey (apud OLIVEIRA, op. cit., p. 92-93),
algumas respostas ps-modernas, em termos psicolgicos, ao bombardeio de informaes e
tecnologia no cotidiano das grandes metrpoles, por exemplo, so: o bloqueio dos estmulos
sensoriais, a negao e o cultivo da atitude blase, a especializao mope, a reverso a
imagens de um passado perdido e a excessiva simplificao (na apresentao de si mesmo ou
na interpretao dos eventos). Os meios de comunicao de massa, por exemplo,
possibilitariam o contato entre realidades distintas e simultneas, em geral, com a mesma
abordagem fragmentada e superficial. Em outras palavras, ao mesmo tempo, a eficincia e o
alcance dos veculos de comunicao de massa trazem facilidades e visibilidades
divulgao e prestgio para pessoas e bens simblicos, desde que adaptados a certos
moldes, que delimitam e reduzem, seno subvalorizam o sentido de cultura. Renato Janine
68
Ribeiro (1997, p. 23-4) observa que esta reduo se repete tambm nas instituies
governamentais e na viso empresarial. O autor descreve, desta maneira, a problemtica da
cultura, tal como entendida por essas instncias:
Cultura, tal como aparece nos nomes de secretarias, pr-reitorias e at
ministrios, bem como nos de cadernos de jornais, poderia ser mais ou
menos definida como uma produo que, antes de mais nada, se distingue
por um diferencial em face da utilidade. No pertence quilo que se faz
para ganhar dinheiro ou para a profisso, mas caracteriza, vista pelo ngulo
de seu consumo ou recepo, o tempo de lazer. (...) Tentemos sintetizar
essa idia de cultura: ela a mais usual, e toma conta tanto das instituies
de poder quanto do senso comum veiculado na imprensa, refere-se mais
sensibilidade e intuio do que razo, mais ao consumo do que
produo, mais ao lazer do que ao trabalho, mesmo que isso implique, na
compreenso assim definida, uma dificuldade extraordinria de se entender
o que o trabalho prprio do artista, sua criao, de que nada ou quase
nada se diz seno mitos, termos vagos, equivocados.
Por isso, considera-se apropriado, para compreender possveis aproximaes da
esttica ps-moderna na msica de cmara dos grupos analisados, nesta pesquisa, o
entendimento de Garca Canclini (op. cit., p. 329) sobre a questo: O ps-modernismo no
um estilo mas a co-presena tumultuada de todos, o lugar onde os captulos da histria da
arte e do folclore cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais. O autor concebe a
ps-modernidade como uma etapa que problematiza a modernidade, e no como aquela que
veio para tomar seu lugar. Sua abertura permite-nos relativizar tanto as posturas
fundamentalistas como as evolucionistas em relao ao erudito, ao popular e ao massivo,
abarcando as interaes e integraes entre os nveis, gneros e formas da sensibilidade
coletiva. (id., p. 28) Sua diversidade facilita a compreenso das dinmicas culturais no
cenrio latino-americano, j que lana um olhar pluralista em relao s combinaes dos
mundos tradicional, moderno e ps-moderno -, expondo, de certo modo, as contradies
e assimetrias destas combinaes frente bandeira modernizadora que norteou a Amrica
Latina durante o sculo XX. Assim, o autor sintetiza (id., p. 352):
A crise conjunta da modernidade e das tradies, de sua combinao
histrica, conduz a uma problemtica (no uma etapa) ps-moderna, no
sentido de que o moderno se fragmenta e se mistura com o que no ,
afirmado e discutido ao mesmo tempo. (...) Os artistas usam as tecnologias
avanadas e ao mesmo tempo olham para o passado no qual buscam certa
densidade histrica ou estmulos para imaginar.
A idia de hibridao na (re)criao musical dos grupos toma como referncia o
conceito de Garcia Canclini (id., p. XIX), para o qual o termo envolve processos
socioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existiam de forma separada, se
combinam para gerar novas estruturas, objetos e prticas. Ao contrrio do que a expresso
possa remeter, o autor esclarece que o conceito no pressupe combinaes de estruturas ou
69
prticas puras, e sim j hibridizadas. Alis, a idia supe, exatamente, retirar das
explicaes essencialistas o discurso da autenticidade, colocando-o como parte das
estratgias de poder simblico. Portanto, o processo no ocorre de modo harmonioso, mas
possibilita pensar as trocas simblico-culturais em seus dilogos e conflitos interculturais,
em vez de pens-las, por outro lado, sob a perspectiva segregadora da multiculturalidade. De
acordo com o autor (id., p. XXXI):
Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moderna
quando criam mercados mundiais de bens materiais e dinheiro, mensagens
e migrantes. Os fluxos e as interaes que ocorrem nesses processos
diminuram fronteiras e alfndegas, assim como a autonomia das tradies
locais propiciam mais formas de hibridao produtiva, comunicacional e
nos estilos de consumo do que no passado.
O ps-modernismo questionou a estabilidade das fronteiras culturais dos Estados
modernos, mas a hibridao permite questionar tambm os limites desta diversidade, bem
como analisar o que no se deixa, ou no quer ou no pode ser hibridado. (id., p. XXVII) O
autor exemplifica alguns dos setores resistentes, que rejeitam a hibridao, tais como: os
fundamentalismos religiosos; os grupos racistas; de uma forma menos radical, aquelas
resistncias culturais que percebem suas tradies ameaadas; e ainda, aquelas resistncias
intelectuais que conservam, nas palavras do autor, o pensamento moderno de tipo analtico,
acostumado a separar binariamente o civilizado do selvagem, o nacional do estrangeiro, o
anglo do latino. (id., p. XXXII-XXXIII)
A hibridao constitui-se em um processo de (re)criaes individuais e coletivas,
que se notabilizou no ps-modernismo pela maior acessibilidade comunicativa, que facilita a
combinao de elementos de vrias culturas, porm, como adverte o autor (id. p. XXXIII),
isto no implica que as aceitemos indiscriminadamente. Embora o consideremos, aqui, no
mbito musical, o conceito se aplica no somente ao domnio artstico, mas pode ser
encontrado tambm nas prticas sociais do dia-a-dia e no desenvolvimento tecnolgico.
Polticas de identidade, estetizao da vida, criaes hbridas. Como explicar que
prticas to distintas estejam conectadas sob o mesmo grande signo, o ps-moderno? Para
Eagleton (op. cit., p. 35), a resposta encontra-se no que elas rejeitam em comum. O autor
destaca que, de maneiras diferentes, essas prticas se constituem por reaes ao fracasso da
cultura como civilizao real como a grande narrativa do autodesenvolvimento humano.
Com base neste grupo referencial reativo, discute-se, a seguir, os planos particulares de ao
prtica, simblica e discursiva da cultura nordestina, com nfase para o campo artstico e,
mais especificamente, musical.
70
3.2 Nordeste: imagens, sons e discursos musicais
De acordo com a perspectiva etnomusicolgica comunicacional
79
, problematiza-se,
aqui, o fazer musical vinculado ao contexto histrico-cultural brasileiro, destacando alguns
caminhos de expresso simblica da identidade nordestina, e evidenciando as relaes entre a
msica e as prticas scio-culturais que alimentam a compreenso de sua dimenso
semntica
80
. Relaciona-se, portanto, a construo esttico-simblica de uma sonoridade
associada regio Nordeste com os lugares sociais que a msica nordestina ocupa nas
propostas modernistas e ps-modernistas. Estas conexes inserem a msica na discusso da
avaliao, valorizao e conflito dos entrecruzamentos de olhares, ou melhor, de escutas, que
referenciam a regio, distinguindo e ampliando suas fronteiras simblico-culturais. Conforme
afirmao de Kramer (op. cit., p. 6): A msica tem o poder de oferecer tanto aos produtores
quanto aos ouvintes um sentido profundo de suas prprias identidades, formando um tipo de
materializao preciosa de seus mais autnticos eus, de maneira tanto individual quanto
coletiva
81
.
A msica desempenhou um papel fundamental na modernidade, na formao das
identidades regionais e nacionais, tanto na releitura cultural do romantismo, feita pelos
modernistas, quanto no desenvolvimento do capitalismo industrial, nos termos do
racionalismo iluminista da cultura-civilizao. Um dos focos de crtica da ps-modernidade,
entre alguns autores, envolve a constatao de que, nas sociedades contemporneas, a
produo, a prtica e o consumo de msica possuem, principalmente, uma funo de
entretenimento, que por sua vez, ocupa um lugar perifrico no mundo do trabalho. Nos bares,
nas danceterias, nos concertos, no rdio do carro ou ouvindo um mp3 player, enquanto
estudamos ou fazemos exerccios fsicos, a msica nos acompanha, preenchendo espao-
tempos e silncios, no apenas estruturais dos sons, mas tambm simblico-culturais.
O discurso do autntico, na msica nordestina, neste percurso, passa de fonte
legtima para a criao de uma msica nacional a fim de inserir o Brasil no concerto das
naes, at uma atribuio de msica tpica por parte da indstria cultural, que confere ao
produto musical um valor econmico e, tambm, simblico - que se atualiza de acordo com
modismos e outros padres de mercado.
79
referida no captulo 1 (p. 23).
80
para retomar a acepo de Nattiez (cf. p. 29).
81
Traduo de: Music has the power to give its makers and auditors alike a profound sense of their own
identities, to form a kind of precious materialization of their most authentic selves, in the mode of both personal
and group identity.
71
Para Malcolm Chapman (1997, p. 36), por exemplo, este pertencimento tnico
que a msica provoca, nas sociedades de consumo, minimiza o significado das assimetrias
pelas quais se constituram tais etnias como o outro na relao com sua cultura dominante.
Ele afirma que este sentimento ocorre para aqueles cujo comprometimento pequeno, e
para quem requer diverso mais do que o esforo
82
(id. ibid.). Estudioso dos povos de
tradio celta, o antroplogo tece uma crtica aos festivais tnicos e feiras de livros
celtas, na Esccia e na Britnia, nos quais as pessoas consomem, cantam, danam, e a
questo poltica fica restrita a uma roupagem musical que, para o autor, oferece para o
pblico diletante uma participao prazeirosa e fcil
83
. (id. p. 35)
Edgar Morin (1977b, p. 45) analisa a mesma questo sob um outro aspecto: As
fronteiras que separam os reinos imaginrios so sempre fluidas, diferentemente daquelas
que separam os reinos da terra. Um homem pode mais facilmente participar das lendas de
uma outra civilizao do que se adaptar vida desta civilizao. A msica e as atividades
musicais tambm possuem esta fluidez, mas o problema pode surgir exatamente nas
negociaes e dilogos entre os dois reinos. Alguns estudiosos brasileiros tambm tecem
crticas semelhantes, em relao a grupos teatrais e/ou musicais pra-folclricos, que
espetacularizam manifestaes tradicionais, assumindo um papel simulado de representantes
daquelas tradies: um fenmeno que Jos Jorge de Carvalho (2004, p. 79) denomina de
canibalizao esttica, simblica e econmica. Investigando a questo sob a perspectiva do
conflito entre negros e brancos, o autor acrescenta: O que preocupa muitos de ns
atualmente a expropriao de tradies para fins de entretenimento pago ou como um
exerccio inusitado de poder
84
.
Ainda assim, como ressalta Stokes (1997, p. 3), a msica informa o nosso senso de
lugar, mesmo que este lugar no seja sempre um espao geogrfico fixado, e nos tempos
ps-modernos esteja cada vez mais deslocado ou recolocado. O autor explica (id. p. 3):
O evento musical, das danas coletivas ao ato de colocar uma fita-cassete
ou um CD em uma mquina, evoca e organiza lembranas coletivas e
apresenta experincias de lugar com intensidade, fora e simplicidade
independente de qualquer outra atividade social. Os lugares construdos
atravs da msica envolvem noes de diferena e fronteira social. Eles
tambm organizam hierarquias de ordem poltica e moral
85
.
82
Music provides an entry into the practices and sentiments of ethnic belonging, for those whose commitment
is small, and who require entertainment rather than effort.
83
Music (...) offers a pleasant and easy participation for the dilettante. (...) Music is the attraction for the
majority of contestants, performers and attenders. Politics, if it is present at all, is often given musical clothes.
84
Agradeo ao prof. Dr. Alberto Ikeda por chamar a ateno deste fenmeno ao longo das orientaes, que ele
aponta como uma onda etnicista, identificada principalmente nos grandes centros urbanos.
85
Traduo de: The musical event, from collective dances to the act of putting a cassette or CD into a machine,
evokes and organizes collective memories and present experiences of place with an intensity, power and
72
O autor toma como referncia as idias de Anthony Giddens (1991) sobre o lugar e
o desencaixe
86
, e demonstra como o sentido de identidade se mantm na complexidade da
vida (ps-)moderna. Basta observarmos, por exemplo, uma coleo particular qualquer de
discos. Referindo-nos s reflexes de Stokes, explicamos, em texto anterior, como tais
deslocamentos poderiam ser configurados:
Uma observao simples do conjunto de material sonoro organizado,
reproduzido tecnicamente, colecionado e consumido por um indivduo, nos
d informaes valiosas quanto ao seu sentido de lugar, e seus limites ou
fronteiras, ao mesmo tempo que o conectam e o aproximam trazem para
a comodidade do lar, deslocam uma experincia musical pblica para o
ambiente privado de um imaginrio que lhe significativo. (GIFONI,
2006, p. 4)
O desencaixe ocorre no apenas por meio do consumo ou da fruio musical. Como
lembra Stokes (op. cit., p. 98), os msicos populares, eruditos, profissionais ou amadores -
constituem uma categoria viajante: eles, habitualmente, se deslocam geograficamente,
lidando com culturas diferentes, com pblicos heterogneos. O autor (id., ibid.) ressalta que
suas habilidades sociais so aquelas de pessoas capazes de se dirigir a grupos variados e
heterogneos, e seu valor em uma localidade , em geral, percebido exatamente como sua
habilidade de transcender as fronteiras culturais daquela localidade
87
. Eles assimilam,
negociam e avaliam constantemente sua prtica, no de uma maneira sistemtica ou
necessariamente consciente, refletida. O deslocamento ocorre tambm em suas produes,
seja na composio ou na performance, com os significados musicais estritos, na
organizao dos sons (relaes sintticas e semnticas).
Como se observa em relao ao Nordeste, as fronteiras culturais so constantemente
remodeladas, o que, ao mesmo tempo, possibilita sua manuteno histrica pela repetio
temtica, e dificulta a preciso, desgastando, inclusive, as fronteiras entre o erudito e o
popular. A seguir, destacam-se alguns traos deste percurso musical que localiza o Nordeste
no debate cultural brasileiro e que nos permitem conect-lo simbolicamente a determinados
significados em nossa experincia vivencial.
simplicity unmatched by any other social activity. The places constructed through music involve notions of
difference and social boundary. They also organize hierarchies of a moral and political order.
86
De acordo com Giddens (1991, p. 26-27), Lugar melhor conceitualizado por meio da idia de localidade,
que se refere ao cenrio fsico da atividade social como situado geograficamente. J a noo de desencaixe
refere-se ao deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao e sua reestruturao atravs de
extenses indefinidas de tempo-espao. (id., p. 29)
87
Their social skills are those of people capable of addressing varied and heterogeneous groups, and their
value in a locality is often perceived to be precisely their ability to transcend the cultural boundaries of that
locality.
73
3.2.1. Sobre os modos
No captulo anterior, observou-se a paisagem sonora modal dentre as imagens e
enunciados que compem a idia de Nordeste. Trata-se de um ponto fundamental na fixao
da configurao simblica deste espao como tradicional, autntico, conservador etc. O
sentido de tradio se mantm na utilizao deste universo sonoro modal nas produes
musicais, constituindo um terreno comum, ainda que as maneiras de organizar e compor os
sons possam resultar em prticas e percepes musicais bastante diferenciadas.
Entende-se por modo um tipo de movimento meldico que se observa em diversas
manifestaes musicais na tradio oral da regio, cuja recorrncia nos permite sistematiz-lo
como paradigma escalar. Os modos nordestinos so, portanto, combinaes ordenadas de
intervalos e alturas de sons, que, associadas a determinadas prticas de festas e/ou rituais
populares, produzem a noo de um territrio, uma provncia ou uma paisagem sonora, nos
termos de Jos Miguel Wisnik (2002, p. 71-72; 85), ou ainda de uma identidade espacial,
para retomar a expresso de Albuquerque
88
.
Segundo Wisnik (id. p. 74), uma das particularidades deste territrio sonoro o
carter circular de que se investem as estruturas rtmicas e meldico-harmnicas da msica
modal, bem como a experincia de tempo que ela produz. O autor (id. p. 77) associa esta
circularidade da msica modal prpria formao social, que compartilharia uma cultura
conservadora, baseada na repetio ritual de suas frmulas e suas escalas recorrentes, e
resistente s mudanas do ritmo progressivo da histria. Assim, explica Wisnik (id., p.
228):
As msicas modais passam evidentemente por transformaes histricas as
mais diversas mas no no sentido evolutivo aplicado s articulaes do
plano harmnico, que caracteriza especificamente a histria tonal (como
metfora ou sintoma da modernidade ocidental, ligada ao desenvolvimento
do capitalismo).
Espao-som da tradio, o universo modal nordestino vem sendo construdo na
cultura brasileira por artistas de vrias vertentes, em ambientes ldicos ou oficiais, pelo rdio,
cinema, televiso etc., atraindo nossa escuta para aquele territrio, instituindo uma ligao
entre nossa experincia vivencial, seja particular ou socializada, e uma memria que a
transcende. Os grupos Anima e Syntagma tambm dialogam com este sentido tradicional
pelo uso do modalismo, dentre outros recursos esttico-musicais. Ainda neste captulo,
apresento a descrio dos tipos escalares recorrentes no Nordeste, e esclareo questes
terminolgicas que delimitam as anlises musicais realizadas nos captulos seguintes.
88
referida no captulo 2 (p. 42).
74
3.2.2. Possveis hibridaes modernistas
As propostas estticas de Mrio de Andrade, na fase nacionalista do modernismo
musical, tomavam como base a idia, j esboada no captulo anterior, do potencial de
expresso da brasilidade pela cultura popular. Caberia ao compositor erudito, neste contexto,
o compromisso de instituir um som moderno e nacional, buscando solues tcnicas e
estticas que sintonizassem sua expresso individual com aquelas expresses coletivas do
povo brasileiro, assim, de modo que o universal fosse atingido pelo particular. A arte
moderna nacional realizar-se-ia, segundo este projeto, pela juno ideal entre a expresso do
povo (o instinto) e o trabalho consciente dos artistas, como observa Elisabeth Travassos
(1997, p. 158): A inconscincia do povo forneceria a expresso imediata da entidade
nacional, como o sub-eu os impulsos lricos da poesia. Tomada pelos artistas, tal expresso
seria transfigurada numa arte culta, moderna e nacional porque gerada no fundo vital do
indivduo grande.
Esta sntese da msica culta-moderna-nacional no seria obtida apenas com uso da
intuio, como sugeria a esttica antropofgica, e sim com pesquisa e anlise do elemento
primitivo, o folclore. Tendo delineado a construo e a primazia do Nordeste, especialmente
do espao do serto, como o lugar da tradio e do passado nacional, no difcil perceber o
interesse e a necessidade de conhecer de forma mais profunda o cenrio nordestino. Mrio de
Andrade viajou ao Nordeste entre 1928 e 1929 para coletar canes e outras prticas
musicais consideradas folclricas da regio.
Essa descoberta das razes culturais brasileiras, para compreenso e
modernizao do carter nacional, foi idia perseguida por outros pesquisadores
89
, e
despertou uma srie de indagaes e crticas sobre a conduo e legitimidade dos
procedimentos ticos e terico-metodolgicos envolvidos. Uma das preocupaes, por
exemplo, deu-se quanto maneira de se relacionar com os artistas populares no momento da
pesquisa e a prpria necessidade de sistematizao da coleta, como uma etapa mediadora
entre o popular e o erudito. O rigor na coleta contaria com o auxlio de equipamentos para a
captao do udio, o cuidado com o ambiente da gravao e os conhecimentos de percepo
musical do pesquisador para anotar as msicas. O material deveria ser, posteriormente,
sistematizado e/ou analisado, e disponibilizado aos artistas eruditos em livros, coletneas,
guias, artigos, estudos cientficos, dentre outros formatos textuais.
89
A partir da dcada de 1950, os estudos de folclore de institucionalizaram, e os pesquisadores, chamados
folcloristas, passaram a atuar sistematicamente em museus, intitutos, rgos governamentais etc.
75
Elisabeth Travassos observa que, embora aliasse recursos tcnicos a uma
abordagem antropolgica, contextualizada, do material musical, a empreitada modernista
acaba por adaptar e transpor uma srie de termos e formas analticas da expresso erudita, o
que resultaria em um manejamento excludente da expresso popular. A autora explica (id.,
p. 211):
Apesar de se socorrerem de teorias da cultura e da civilizao, de
conhecimentos lingsticos e etno-histricos, muitos dos temas que os
coletores privilegiaram justificam que se fale de um modo literrio-musical
de aproximao da cultura do povo: perfeio, estilos, criao, imitao e
emprstimo, lngua materna, arte pura e interessada, expresso,
espontaneidade e artifcio, interpretao e deformao parecem ter
migrado, todos, dos conservatrios para o estudo de grupos sociais que no
freqentavam conservatrios. Trata-se de um modo peculiar de abordagem
que faz do povo o espelho de uma fantasia sobre as origens (sobre nossas
origens), tirando partido, eventualmente, da impreciso de sentido da
palavra. A abordagem silencia sobre o lugar do povo na sociedade moderna
porque precisa coloc-lo fora dela e desconhece a existncia de outras
escalas de valores, sobretudo quando est em jogo a apreciao esttica.
O cenrio nordestino torna-se o celeiro deste potencial criativo popular, e a sua
msica pode ser modernizada enquanto o seu povo se mantm a margem dos processos
modernizadores. A tradio oral nordestina funcionaria, neste contexto, como gnese
annima e coletiva da nacionalidade, associada ao mundo modal e rural, vista pelo olhar
distante do msico erudito das grandes capitais, como Rio de Janeiro e So Paulo. Um olhar
que anula seus aspectos contraditrios intrnsecos, que se admira da espontaneidade e do
virtuosismo dos artistas populares, em seus improvisos inconscientes da qualidade
nacional. Conforme adverte Stokes (op. cit., p. 7-8), quando ns observamos a maneira
como as etnias e as identidades so colocadas na performance musical, no poderamos
esquecer que a msica uma das maneiras menos inocentes em que as categorias dominantes
so reforadas e resistidas
90
. Para Mrio de Andrade, no meio popular, tanto os artistas
quanto as pessoas comuns conteriam essa expresso inconsciente da nacionalidade, que
deveria ser perseguida pelos artistas eruditos. A partir de uma interpretao evolucionista da
msica brasileira, o autor prope um projeto nacionalista cujas etapas passariam pela tese,
pelo sentimento e, finalmente, pela inconscincia na esttica composicional brasileira.
Conforme aponta Travassos (op. cit., p. 163):
Mediante o sacrifcio dos impulsos lricos individuais e a adeso a uma
tese, o artista moldaria sua prpria interioridade no contato com o material
popular para que essa se tornasse uma adeso de sentimento. Por fim, a
90
when we are looking at the way in which ethnicities and identities are put into play in musical performance,
we should not forget that music is one of the less innocent ways in which dominant categories are enforced and
resisted.
76
nacionalidade seria inconsciente. (...) Nesse dia, os dois inconscientes, do
indivduo e da nao, coincidiriam.
Neste sentido, o resgate da sonoridade nordestina se tornaria quase to difcil de se
apreender e quase to estrangeiro ao compositor intelectual quanto as tcnicas de
composio modernas europias, como o dodecafonismo e o serialismo. A proposta do
nacionalismo na msica erudita brasileira se realizara, em grande parte, pelo conflito com as
correntes de vanguarda, na defesa da tradio contra o experimentalismo, em uma discusso
esttica e intelectual que elaboraria formas legtimas de se trabalhar o material popular
91
.
Um dos pontos do embate seria a falta de originalidade temtica, j que o
compositor retira e copia os temas das fontes populares. Neste aspecto, Mrio de Andrade
ressaltou alguns pontos vlidos para se chegar, de modo consciente, inconscientizao da
msica nacional. Como destaca Travassos (id., p. 206), para a perspectiva nacionalista, a
originalidade da obra no se encontra em uma suposta criao temtica original, mas sim na
composio de uma msica que supere a artificialidade dos modelos civilizatrios e recupere
a espontaneidade da msica popular: a obra original revela a personalidade de um autor
capaz de assimilar elementos algenos e convert-los com sua fora endgena. Em seu
estudo, que estabelece elos entre o pensamento de Mrio de Andrade e de Bla Bartk sobre
a arte e a etnografia, a autora explica alguns dos recursos musicais aceitos ou estimulados
para que se realizasse a converso dos tais elementos algenos-populares em fora original-
endgena do compositor.
Um dos recursos legtimos seria harmonizar as canes de tradio popular, criando
uma introduo e uma finalizao, mas preservando o seu formato. Outra possibilidade seria
compor um tema original, imitando a maneira do estilo popular. Contudo, este recurso
caberia apenas aos compositores mais experientes e familiarizados com o universo popular,
para no resultar em grosseiras caricaturas, transformando o popular em popularesco. Este
uso do popular de forma erudita, que Bartk aponta nas obras de Kodly e Stravinsky, e
Mrio de Andrade, em Villa-Lobos, dentre outros, garantiria a apoteose da msica
popular, sua elevao ao olimpo das artes. (id., p. 207)
Alis, sobre a questo da imitao grosseira, vale destacar outro ngulo do mesmo
olhar modernista, que se fecha para as produes e prticas da msica popular urbana, como
o samba e as modinhas comerciais, conferindo uma autenticidade ao popular folclrico,
91
Vale destacar a polarizao do debate entre Hans-Joachim Koellreutter e Camargo Guarnieri, marcada pela
polmica poltica e ideolgica apresentada, de um lado, pelo Manifesto Msica Viva, de 1946, e de outro, pela
Carta Aberta aos Msicos e Crticos do Brasil, publicada em 1950 por Guarnieri. De acordo com Mariana
Martins Villaa (2004, p. 137): O embate ideolgico entre Guarnieri e Koellreutter, e os simpatizantes de suas
idias, testemunha a tensa convivncia de uma linha de pensamento musical inaugurada por Mrio de Andrade
e o desejo de absoro (principalmente por parte dos msicos jovens) das novidades da msica contempornea.
77
devidamente separado do popularesco das cidades. Wisnik (2004, p. 133) observa que esta
excluso evitava o conflito e a exposio das contradies sociais no espao urbano:
O popular pode ser admitido na esfera da arte quando, olhado distncia
pela lente da estetizao, passa a caber dentro do estojo museolgico das
sutes nacionalistas, mas no quando, rebelde classificao imediata pelo
seu prprio movimento ascendente e pela sua vizinhana invasiva, ameaa
entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a prpria
concepo de arte do intelectual erudito.
Este direcionamento nacionalista proposto por Mrio de Andrade continua
permeando o interesse esttico de diversos compositores brasileiros, uma esttica que se
alimenta, por exemplo, da pesquisa em torno do imaginrio sonoro da tradio popular
nordestina, do uso de suas escalas e ritmos caractersticos. Alm de Villa-Lobos, podemos
citar os compositores Camargo Guarnieri, Csar Guerra-Peixe, os irmos Joo Baptista
Siqueira e Jos Siqueira e, de uma gerao mais recente, Marlos Nobre, Osvaldo Lacerda,
Ernst Mahle, Jos Alberto Kaplan etc. Cada um a seu modo, estes compositores buscam ou
buscaram solues para aliar a tradio nacional ao experimentalismo e/ou s novas
linguagens musicais.
A proposta nacionalista de Mrio de Andrade dotava a msica de um importante
papel na sociedade brasileira, para a formao, o conhecimento, a pesquisa e a integrao de
nosso povo, idias que foram sabiamente utilizadas pelo governo do Estado Novo, de Getlio
Vargas, com fins de propaganda poltica e para amenizar/ coibir os conflitos culturais e
regionais. O governo subvencionava e apoiava as atividades musicais eruditas e populares de
vertente nacionalista, assim como a coleta de material folclrico, que passou a ser feita, cada
vez mais, como um gesto de resgate ou preservao, em vez de problematizadas sob uma
perspectiva crtica ou antropolgica. Conforme afirma Suzel Ana Reily (1997, p. 93):
O Estado Novo revelou as implicaes obscuras da astuta percepo de
Mrio: a transformao social efetiva pela arte requer um policiamento
cultural coerente do estado. De fato, o estado condescendente reproduziu
uma aliana das elites culturais condescendentes com as perspectivas
folcloristas tradicionalistas
92
.
As ltimas reflexes escritas de Mrio de Andrade
93
apresentam forte inclinao
marxista - ou, como prefere Moacir Werneck de Castro (apud TRAVASSOS, op. cit., p.
168), uma simpatia pelo comunismo, e apontam uma preocupao com as diferenas de
classe que, inelutavelmente, impediriam a utopia do coletivo nacional por meio da msica
erudita. Em 1943, so publicadas na Folha de So Paulo (Folha da Manh) as lies
92
Traduo de: The Estado Novo revealed the dark implications of Mrios astute perceptions: effective social
transformation through art requires coherent state cultural policies. Indeed, the patronizing state bred a league of
patronizing cultural elites with traditionalist folkloristic perspectives.
93
O Banquete (1944-45), obra inacabada.
78
aprendidas com o cantador potiguar Chico Antnio, que conheceu na viagem ao Nordeste.
As seis lies, intituladas Vida de Cantador, foram tranformadas, posteriormente, em livro
homnimo. O trecho a seguir exemplifica algumas das inquietaes que se colocavam no
pensamento de Mrio de Andrade (1944-1945 apud TRAVASSOS, id., p. 189-190), em sua
relao com o artista popular:
Eu, vai, me alfabetizo, estudo, me desabuso, xingo as coisas de supersties,
me individualizo, e hei-de cantar com o meu verso e minha idia. E com
essas possveis superioridades, no consigo ter mais que os cinqenta anos
duma vida deserta. O cantador improvisa e o seu tema tem sete sculos de
antepassados, e os seus gostos se ligam, na pr-histria, s formas mais
necessrias da razo. bem fatigante isso de viver cinqenta anos, em vez de
duzentos sculos.
crise do artista erudito moderno, limitado em sua racionalidade e especializao,
contrape-se a estabilidade do artista popular, este, por sua vez, embebido e inserido em uma
tradio que lhe permite criar e improvisar de maneira hbil e espontnea. Nesta passagem de
Mrio de Andrade, percebe-se uma questo que fundamenta tanto as concepes armoriais
quanto as correntes que valorizam o repertrio de Msica Antiga.
3.2.3 Modalismos nordestinos e o retorno s origens
Alguns estudiosos voltaram seus interesses para desvelar as matrizes musicais
daquele imaginrio tradicional, buscando associar elementos sintticos e semnticos do fazer
musical prpria tese da mestiagem, avaliando de que maneira as matrizes culturais
contriburam para a formao da msica nordestina. Autores como Andrade Muricy (apud
SOUZA, 1959) e Pe. Jos Geraldo de Souza (apud PAZ, 2002, p. 27) fazem conexes entre
as caractersticas da voz anasalada no canto indgena e o modo peculiar de interpretao dos
cantos gregorianos, ensinados pelos jesutas, por exemplo, como uma explicao para a
origem da sonoridade modal do povo sertanejo:
Resqucios, inesperados repontes do Gregoriano, da sua peculiar
declamao podem ser vislumbrados e, se devidamente pesquisados, estou
certo, at nitidamente acusados em certas inflexes, em certas alteraes da
escala. A hiptese de que a volubilidade declamatria da embolada
nordestina tenha longnquas razes na ladainha gregoriana pelo menos
digna de viva ateno.
Porm, os estudos de compositores como Guerra-Peixe e Joo Baptista Siqueira
questionam esta verso de que a msica de tradio nordestina seria uma espcie de cpia
79
mal-suscedida dos modos eclesisticos
94
, afirmando a tese de um modalismo autctone,
criado especialmente pela matriz indgena e seus descendentes
95
. Este ltimo autor (1951
apud PAZ, op. cit., p. 28), por exemplo, argumenta da seguinte maneira, sobre as origens
musicais da regio: A msica do folclore nordestino no se enquadra em qualquer dos
sistemas modais conhecidos. Foram precipitados os autores que declaravam que esses
sistemas se baseavam no gregoriano.
Baptista Siqueira estabelece um referencial meldico-escalar para as prticas
musicais de tradio popular nordestina, em que destaca o uso de cinco modos principais,
sendo dois hexacordais e trs eufonicamente equivalentes aos modos mixoldio, elio e
drico. Contudo, o autor os descreve de forma a evidenciar suas estruturas sintticas e
rejeitar a nomenclatura dos modos antigos
96
e acrescenta que, ao contrrio destes, todos
conservam uma direcionalidade descendente. Com base em anotaes levantadas em curso
ministrado por Hlio Sena, no Festival 140 anos da Escola de Msica da UFRJ (01-05 ago.
1988), sobre as estruturas modais da msica nordestina, Ermelinda Paz (id., p. 93), tece as
seguintes reflexes acerca desta direcionalidade:
A tpica resoluo direta ou indireta da sensvel subindo tnica - no
encontra resqucios no universo modal. O VII grau no possui esta
tendncia atrativa, induzindo o mesmo a um movimento meldico
descendente. A mesma ocorrncia verificamos com relao s terminaes
de frases e perodos.
Mrio de Andrade e Oneyda Alvarenga tambm inturam esta direcionalidade ao
relacionar a recorrncia de escalas modais na msica nordestina aos modos antigos, embora
utilizassem outra terminologia. Dentre os modos detectados em suas pesquisas, destacam-se
os modos antigos drico, frgio, ldio, mixoldio, jnio e elio, respectivamente (ver
exemplos na tabela da pgina seguinte).
Partindo de experincias e estudos sobre o pife, instrumento dos mais populares na
regio nordestina, Jos Siqueira (1981 apud PAZ, op. cit., p. 31) observa algumas
caractersticas sonoras que poderiam explicar a origem do que se denomina de modo
94
De acordo com Donald Grout e Claude Palisca (1994, p. 77): O desenvolvimento do sistema de modos
medieval foi um processo gradual, de que no possvel reconstituir claramente todas as etapas. Na sua forma
acabada, atingida por alturas do sculo XI, o sistema inclua oito modos, diferenciados segundo a posio dos
tons inteiros ou meios-tons numa oitava diatnica construda a partir da finalis, ou final; na prtica esta era
geralmente embora nem sempre a ltima nota da melodia.
95
Dentre os trabalhos musicolgicos significativos de Baptista Siqueira sobre o assunto, destacam-se o ensaio
Influncia amerndia na msica folclrica do Nordeste (1951), apresentado e debatido no I Congresso
Brasileiro de Folclore; o ensaio Pentamodalismo nordestino (1956) e o livro Os Cariris do Nordeste (1978).
96
Diferenciamos a terminologia em relao aos eclesisticos, optando por uma nomenclatura mais geral, por
considerarmos inclusos os modos elio e jnio, utilizados na msica secular, e sistematizados em teoria musical
a partir de meados do sculo XVI.
80
nordestino, ou aquele modo tpico encontrado em diversas prticas e produes musicais da
regio. O autor explica:
Tratando-se o instrumento de uma coluna de ar, quando posta em vibrao
atravs de seu tubo, o som fundamental ou gerador contm uma srie de
sons parciais ou harmnicos, figurando entre estes os harmnicos n 7 e 11,
que correspondem, respectivamente, s alteraes contidas nos trs modos
brasileiros.
Os trs modos brasileiros a que Jos Siqueira se refere, denominados por ele de
modos reais, equivalem, eufonicamente, aos modos antigos mixoldio, ldio e uma
combinao dos dois citados anteriormente, um modo original composto de quarto grau
aumentado e stimo abaixado: o modo nordestino. O autor observa ainda que os dados
adquiridos com o estudo do pife vo ao encontro da pedagogia musical jesutica, que
provavelmente estimularia a prtica destes intervalos para se evitar o pecado do trtono
97
.
A seguir, apresenta-se um esquema resumido das equivalncias eufnicas dos
diversos modos, demonstrando as particularidades regionais conforme os estudos de Baptista
Siqueira e Jos Siqueira, comparando-os aos modos antigos.
97
Intervalo de quarta aumentada ou quinta diminuta (no temperamento igual), denominado tambm de o
diabolus in musica, rejeitado por grande parte dos tericos na Idade Mdia e na Renascena, alegando-se
seu aspecto dissonante e instvel.
81
Fig. 1
Ao analisar a utilizao destes modos pelas msicas do Anima e do Syntagma, nos
captulos seguintes, preferimos o critrio de maior familiaridade, mantendo a terminologia
que nos parece mais inteligvel, talvez por ser mais difundida nos livros de harmonia sejam
eruditos, de msica popular brasileira, ou de jazz -, por motivos que fogem ao alcance desta
pesquisa. Assim, optamos por denominar de modos nordestinos, maior e menor, as escalas
82
correspondentes, respectivamente, ao III modo real e derivado de Jos Siqueira. Quanto aos
demais modos, mantemos a terminologia descrita na coluna dos modos antigos. Os exemplos
da figura foram selecionados como uma comparao ilustrativa de determinada linha
investigativa brasileira. Sem dvida, as mesmas combinaes intervalares dos modos
nordestinos caberiam, por exemplo, em algumas sonoridades modais da Hungria, nos modos
sintticos de Olivier Messiaen, em escalas octatnicas etc. Debussy utilizava recorrentemente
a mesma escala, compondo um modo hbrido com o ldio e o mixoldio, mas partia da
justaposio entre dois acordes de stima menor (do-mi-sol-sib e re-fa#-la-do)
98
,
apresentando um resultado sonoro completamente distinto do empregado no modo
nordestino. Neste ponto, o plano semntico se faz imprescindvel para a compreenso do
fenmeno musical, avaliando a representao simblica de um serto ou de um Nordeste que
faz uso de determinados cdigos musicais, compartilhados ou pelo menos reconhecidos
nacionalmente como parte daquele contexto social. Os modos se associam no somente a um
territrio, mas tambm a uma prtica: a entoao, os timbres, as recorrncias meldicas e
rtmicas, as emoes que despertam, todos estes fatores so fundamentais para a identificao
modal
99
.
Em todo caso, a polmica gerada por estas pesquisas musicolgicas possibilita-nos
apontar um outro caminho discursivo e um outro olhar para as tradies, diferenciado da
proposta modernista de arte musical por conferir uma valorao peculiar criatividade
musical do povo sertanejo que, aos poucos, transfigura-se de embrio potencial da
nacionalidade ao prprio detentor atuante da potncia. Ao mesmo tempo, a discusso em
torno dos modos levou o interesse esttico dos compositores eruditos para a msica antiga
europia, mais condizente com a sonoridade trazida pelos portugueses e vivenciada em
nossas origens, ao invs das formas musicais romnticas, impressionistas e neoclassicistas,
seguidas pelo modernismo brasileiro oficializado no governo Vargas, tendo no trabalho de
Villa-Lobos e na escola nacionalista de Camargo Guarnieri os modelos mais significativos.
Alm disso, a partir do foco nos elementos da cultura ibrica, surgiram outras
aproximaes que enfatizaram, tambm, a presena rabe na cultura sertaneja, pela prpria
fora cultural dos mouros nos povos ibricos, compartilhada por aqueles colonizadores que
aportaram na ilha brasileira. A entoao melismtica encontrada nos aboios, por exemplo,
possui uma semelhana com os cantos dos viajantes rabes. Tal manifestao espalhou-se
98
Conforme explicado por Stefan Kosta e Dorothy Payne (1999, p. 493-494).
99
Agradeo a contribuio do prof. M. Ewelter Rocha, pelos valiosos comentrios sobre estes aspectos da
linguagem modal.
83
fortemente no serto brasileiro desde, pelo menos, o comeo do sculo XVIII, pela ocupao
economicamente perifrica do territrio brasileiro conhecida como a civilizao do couro.
Portanto, possvel considerar uma linha de pensamento entre a intelectualidade
brasileira que valoriza a identidade espacial nordestina pela investigao dos seus elementos
formadores, cuja mestiagem conteria a brasilidade mais profunda. Este processo de
valorizao, explicado no captulo anterior, destaca, nas prticas culturais sertanejas,
influncias ibrico-mouriscas, indgenas e africanas, numa construo identitria que parte do
pensamento regional de Gilberto Freyre at o pensamento armorial de Ariano Suassuna, com
a contribuio musicolgica de autores interessados em desvelar as origens do modalismo
nordestino, como Gustavo Barroso, Guilherme Melo, Luis Soler, Leonardo S etc., alm dos
citados Guerra-Peixe e Baptista Siqueira.
3.2.4. Serto barroco: a (re)leitura armorial
Desde o final do sc. XIX, este povo detentor da legtima brasilidade, situado no
espao nordestino, transfigurado, por sua vez, no smbolo serto, assegurara sua
originalidade pela mistura racial, em Silvio Romero, cultural, em Gilberto Freyre, e
imaginal, em Ariano Suassuna. Maria Thereza Didier (op. cit., p. 180) explica, deste modo,
tal imaginrio armorial:
Smbolos e imagens da cosmologia medieval, vindos para o Brasil sob a
vertente ibero-moura e misturando-se aqui com os negros e ndios
formando o ser castanho, so elementos da imagtica armorial que a
relacionam com um passado de tradies autnticas brasileiras. A
significao que os armoriais demarcam em direo ao universo
emblemtico medieval e ao popular nordestino a garantia da
singularidade cultural brasileira, fundamentada no que consideram como
fsseis culturais encontrados no serto da regio Nordeste.
A msica armorial rejeita o ideal de Belo da tradio clssico-romntica ocidental,
bem como os experimentalismos da vanguarda, voltando-se para uma aproximao de
mundos sonoros entre a cultura europia pr-clssica que aqui aportou dos sculos XVI ao
XVIII e outras prticas musicais com as quais se fundiu - africanas, mouras, indgenas -
inserindo uma perspectiva sonora barroca nas prticas dos povos castanhos do serto. O
barroco de Suassuna aquele que constitui o mundo ibrico do colonizador, um barroco,
segundo ele (1973 apud SUASSUNA, 1974, p. 61), muito mais aproximado do esprito
medieval e pr-renascentista do que, por exemplo, da Arte do sculo XVIII europeu. Na
concepo armorial, o esprito sertanejo seria preservado, do ponto de vista musical
(SUASSUNA apud LEITO, p. 104),
84
atravs da utilizao de instrumentos populares e de um repertrio que
percorria canes ibro-provenais, assim como cantigas rabes ou
judaico-latinas dos sculos XV e XVI, alm de outras composies em que
a influncia indgena maior, ou ainda, outras composies onde h certa
influncia africana.
A idia consistiria na recriao artstica e literria a partir da Arte e da Literatura
populares, seguindo o caminho do Barroco, caracterstico destas manifestaes, por sua
capacidade dialtica de unir contrastes. (SUASSUNA, 1969, p. 39) Este autor (id., p. 40-
41) exemplifica as criaes pelas quais se interessam estes recriadores armoriais, ou seja, o
universo da cultura popular:
o conjunto dos espetculos como o bumba-meu-boi, dos versos do
Romanceiro, dos contos orais, das xilogravuras das capas dos folhetos, das
esculturas em barro queimado, das talhas, dos ornamentos, das bandeiras e
dos estandartes de Cavalhadas enfim, de tudo aquilo que o Povo cria para
viver ou para se deleitar e que, tendo sido criado margem da civilizao
europia e industrial, , por isso, mesmo, mais peculiar e singular.
A msica armorial utiliza, por exemplo, instrumentos populares como a rabeca, a
viola sertaneja, o marimbau, o pfano, zabumba etc., e tambm o violino, a flauta transversa,
a viola erudita, dentre outros, em composies que respeitam o ritmo e a forma
caractersticos das prticas musicais sertanejas. Busca-se ressaltar a proximidade timbrstica
entre aqueles instrumentos populares e os instrumentos europeus, utilizados na msica
medieval, renascentista e barroca. No primeiro long-play do Quinteto Armorial
100
, Do
Romance ao galope nordestino (1974), os integrantes gravaram msicas inditas, intituladas,
por exemplo, Toada e desafio (Capiba), Repente (Antnio Jos Madureira), Bendito (Egildo
Vieira), e gravaram outras msicas com temas de tradio popular, como o Romance da bela
infanta e Excelncia, ambos recriados por Antnio Jos Madureira a partir das tradies
ibricas e sertanejas, respectivamente. As melodias armoriais se apresentam, em geral, como
monodia (a uma s voz) mas no h uma rejeio ou proibio efusiva quanto ao uso de
polifonia (duas ou mais vozes simultneas). A harmonia baseia-se na pesquisa dos modos
nordestinos e na observao de suas recorrncias intervalares.
O que nos parece pouco preciso na esttica armorial, pelo menos quanto msica,
essa fronteira possvel com o mundo europeu fixada no Barroco. A base terica do
movimento consideraria o contato e as dinmicas de produo cultural legtimas at o sculo
XVIII, quando as matrizes interagiam e criavam seu imaginrio mstico, dionisaco,
100
Formado por Antnio Nbrega, Antnio Jos Madureira, EgildoVieira e Fernando Barbosa e Eullio Cabral.
Em Recife, as cpias do primeiro LP esgotaram-se em apenas uma semana. Alm deste, o grupo lanou tambm
os lbuns Aralume (1976), Quinteto Armorial (1978), Sete flechas (1980). Todos foram gravados por Discos
Marcus Pereira.
85
espontneo. Mas, afinal, como denominar Barroco trs sculos de vivncia esttico-artstica
ibrica?
Compreende-se que, de fato, o pedao de Europa para o qual o Brasil serviu de
colnia adentrou no universo esttico do Barroco tardiamente em relao a outros espaos-
pases europeus. Donde se explica aquela aproximao a que se refere Suassuna, do
imaginrio sertanejo com o imaginrio medieval dos ciganos, dos jesutas, e dos povos
mouro-africanos que habitavam a Metrpole. Porm, outro ponto de confuso se estabelece,
por exemplo, quando observamos o repertrio cujo paralelo musical pretendera destacar. No
programa estreado pelo Quinteto Armorial, em 26 de novembro de 1971, o planejamento do
repertrio deu-se no sentido de estabelecer conexes estticas entre o Barroco europeu, o
Barroco nordestino e a msica armorial. O cenrio do concerto era a Igreja Rosrio dos
Pretos, na cidade de Recife. Na parte do barroco europeu, o Quinteto apresentou uma sonata
de Scarlatti, uma contradana de Fernando Ferandiere, um andante de Vivaldi e um allegro
de Haendel
101
. Contudo, Suassuna (1973, apud SUASSUNA, 1974, p. 61) afirma que, ao
falar na importncia, para a Msica armorial, dos cantares que nos vieram para c nos
sculos XVI, XVII e XVIII, pensando em algo muito mais spero e primitivo do que a
msica de Mozart. Ora, se as composies armoriais buscaram este objetivo, parece-nos que
existe alguma confuso, pelo menos, quanto aos paralelos estabelecidos.
Por outro lado, talvez a compreenso da proposta musical armorial no comporte
simples demarcaes de influncias estrangeiras, de compositores, seus estilos e suas
localidades. Tais escolhas, alm de uma preferncia particular, constituem formas simblicas
mais amplas para situar historicamente o pblico. Alm disso, ao mesmo tempo em que
conferem ao popular uma notoriedade, enquanto saber singular, as ligaes de parentesco
imaginal com o mundo pr-clssico europeu servem para enobrecer o mundo sertanejo.
Assim, aquele barroco de origem ibrica, que j continha uma srie de sincretismos
populares, abrasileirado pelo nosso povo. Sob outro ngulo ainda, pode-se perceber estas
escolhas estrangeiras por um critrio hermenutico, ou seja, pelo mbito das impresses de
escuta, pelos sentimentos que esta desperta intimamente, e no se consegue nem se deseja
uma explicao inteligvel. Neste sentido, seria uma escolha coerente com a defesa da
101
As informaes sobre o programa de concerto tomam como referncia Didier, op. cit., p. 113-114. Para
facilitar as localizaes, identificam-se a seguir as origens dos compositores segundo so atribudos pela atual
configurao geopoltica, pois como se sabe, na poca em que viveram ainda no haviam se constitudo os
Estados Nacionais em tais regies: Fernando Ferandiere (1740-1816), compositor espanhol; Antonio Vivaldi
(1678-1741), compositor italiano; George Friedrich Haendel (1685-1759), compositor alemo, radicado em
Londres; quanto Scarlatti, a autora no indica se foi o pai, Alessandro Scarlatti (1660-1725), ou o filho,
Domenico Scarlatti (1685-1757), compositor italiano do Barroco tardio. De qualquer modo, nenhum dos
compositores apresenta uma trajetria musical voltada aos cantares ibricos referidos por Ariano Suassuna.
86
posio dionisaca popular frente aos parmetros apolneos habitualmente atribudos aos
rituais de concertos eruditos.
Em seu estudo sobre a obra teatral de Suassuna, Ligia Vassalo identifica como
principais referncias estruturais do autor os modelos presentes na Baixa Idade Mdia
europia at meados do sculo XVII, correspondendo, de acordo com a autora (1993, p. 25),
em linhas gerais, superao dos cnones medievais pela implantao daqueles da
Renascena neoclssica. Os primeiros perdem a vez e a voz na Europa, mas sero legados s
Amricas, onde subsistem paralelamente aos outros. Assim, Suassuna recria um teatro
nacional com base nas tradies herdeiras daqueles legados, como as narrativas dos cegos
das feiras populares, o teatro de mamulengos, os autos religiosos etc., e tendo como
referenciais literrios autores como Gil Vicente, Miguel de Cervantes e Dostoievsky. A partir
destes elementos torna-se possvel a construo de verses de um povo nordestino, a cuja
imagem-discurso de fora, como j se dissera
102
, acrescia-se, ento, a de nobreza. De acordo
com Albuquerque (op. cit., p. 170), esta a imagem-discurso do Nordeste de Ariano
Suassuna:
Um Nordeste em que se misturam as imagens e os temas j cristalizados
em torno da regio, como os temas da seca, da misria, do cangao, dos
beatos e coronis, mas estas imagens se transmutam por meio das imagens
ligadas ao medievo, sociedade de cavalaria, da herldica. Ele enobrece o
serto, tornando este passado da regio uma miragem, um sonho de um
futuro, em que o tempo perdido volte transfigurado pela beleza, pela
grandiosidade, pelo resgate de sua essncia herica e cavalheiresca.
O ponto de vista dos armoriais, ainda que valorize as tradies populares e
pretenda conservar e preservar, diferencia-se da viso modernista na forma como cristaliza
esse carter. Aquela legitimidade das trocas culturais at o sculo XVIII continuaria presente
no povo castanho sertanejo brasileiro at o mundo contemporneo, resistindo contra o
racionalismo clssico, o iluminismo educador, a cincia estranguladora do fantstico, dos
sonhos, e, finalmente, contra a indstria cultural massificadora, homogeneizadora e
atomizante. Quando propem o resgate destas razes culturais brasileiras, os armoriais
possuem uma certa continuidade com a perspectiva nacionalista, porm, ao contrrio do olhar
urbano dos modernistas, pretendiam construir um olhar, ao mesmo tempo, rural, sertanejo e
erudito.
O compositor no seria mais o indviduo genial que representaria a nao-cosmos
pela apreenso dos embries potenciais encontrados no folclore. Para os armoriais, esta
potncia genial est presente, de maneira plena, no prprio povo, nos prprios artistas
102
Na clebre construo de Euclides da Cunha (1998, p. 118) em Os Sertes (1902), que tornou-se arqutipo
do nordestino: O sertanejo , antes de tudo, um forte.
87
populares. A proposta armorial, assim, dilui as fronteiras entre popular e erudito,
reconhecendo no popular uma nova forma de erudio. Em vez de tomar as convenes
europias quanto s estruturas e formas musicais como molde para a composio acusao
atribuda aos compositores modernistas e da escola nacionalista -, a base das composies
armoriais viria das formas do romanceiro popular, representadas pelos cantadores,
rabequeiros, violeiros, aboiadores etc. Os compositores ligados ao movimento escrevem
msicas para conjuntos de cmara, evitando elaboraes orquestrais maiores, para evitar,
segundo Suassuna (apud DIDIER, op. cit., p. 110), uma europeizao, mesmo que no-
intencional. Conforme observa Didier (id. ibid.), as influncias europias que no estavam
circunscritas ao barroco so vistas como elementos externos cultura brasileira, um
barroco cuja autenticidade se garantia pela matriz ibrica na formao da cultura brasileira.
importante ressaltar que a esttica armorial considerada at o momento, refere-se
idealizada por Ariano Suassuna. Retomando a noite de estria do Quinteto Armorial
(1971), podemos aludir quele evento sob outros aspectos que revelam as divergncias
internas do movimento. Tanto o Quinteto quanto a apresentao foram organizados a partir
de uma discordncia entre Suassuna e o maestro Cussy de Almeida, que participara do
lanamento oficial do Movimento Armorial, em outubro de 1970. Na ocasio, o maestro
sugeriu que, em vez do quinteto um outro quinteto, com o qual Suassuna vinha discutindo e
acompanhando ensaios para a construo da msica armorial -, este fosse incorporado
Orquestra Armorial de Cmera, apresentando um grupo maior. Formado por msicos do
Conservatrio Pernambucano de Msica, a orquestra apresentou-se, ento, no lanamento, na
Igreja de So Pedro dos Clrigos. Um ano depois, com o Quinteto reformulado, Suassuna
pretendia apresentar ao pblico, finalmente, a verdadeira proposta armorial. Alm do
concerto, tambm fez parte do evento uma exposio de artes plsticas, com mostra de
desenhos, cermica, escultura em madeira e tapearia. Desta forma, a estria do Quinteto
oficializava tambm a querela armorial.
De um lado, a linha de Suassuna apontava para uma sonoridade mais rural,
valorizando os timbres e modos de cor local sertaneja, bem como o trabalho de criao e
aprendizado das tcnicas dos msicos populares, e apostava na formao camerstica de
menor porte, mais condizente com os pequenos conjuntos trovadorescos. Por sua vez, a
orquestra de Cussy, que poderia ter resultado em uma aproximao com as bandas populares,
acabou sendo alvo de comparaes com a proposta das correntes nacionalistas do
modernismo brasileiro, por realizar uma transposio do universo sonoro popular para as
regras europias ocidentais. A nfase na afinao segundo orquestras europias, os
instrumentos utilizados, a tcnica, e at mesmo a contratao de msicos estrangeiros
88
ocupando quase metade do corpo da orquestra frustrou as expectativas iniciais de Suassuna e
provocou um debate cultural interessante na imprensa recifense. Para Suassuna, a Orquestra
Armorial representava uma viso apolnea da realidade, uma cpia do modelo esttico-
musical do estrangeiro colonizador, situando-se, portanto, fora da sua concepo de cultura
popular castanha brasileira. Para Cussy de Almeida, Suassuna era um leigo musical incapaz
de compreender o processo de conduo e formao de um trabalho de boa qualidade dentro
de uma orquestra. A discusso dos dois contribuiu para uma assimilao confusa do que
significava o Armorial, no plano terico e simblico.
Juntamente com as questes estticas, havia a dimenso poltica do debate, a
disputa por verbas, apoios e espaos, alm do uso legtimo do nome Armorial, que se acirrou
quando Suassuna assumiu o cargo de Secretrio da Educao e Cultura de Recife, em maro
de 1975. Em setembro do mesmo ano, Cussy de Almeida chegou a solicitar sem sucesso
ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial o registro do termo armorial, aps t-lo
patenteado junto Agncia Pernambucana de Marcas, em nome do Conservatrio
Pernambucano de Msica. Todo o empenho se deu quando da criao, por idia de Suassuna,
da Orquestra Armorial Brasileira, formada por jovens de treze a vinte e cinco anos, com base
no trabalho de criao e interpretao do Quinteto Armorial, e tendo como regente o
violonista do prprio quinteto, Antnio Jos Madureira. A proposta se distanciava totalmente
da orquestra de Cussy, mas os nomes se confundiam e o receio da concorrncia por verbas e
espaos, alm das comparaes qualitativas inevitveis por parte do pblico, alimentava os
ataques mtuos. Finalmente, Suassuna decidiu atendendo aos apelos do ento secretrio da
Educao e Cultura, Jos Jorge de Vasconcelos Lima, e at do secretrio da Fazenda,
Gustavo Krause alterar o nome da orquestra de jovens para Romanal
103
. Como destaca
Didier (id., p. 131): Reafirmando que o romanceiro popular nordestino teria sua origem no
romanceiro popular ibrico, Suassuna lanava com o nome de Romanal a representao,
em sua opinio, legtima da msica armorial.
As idias de Suassuna contemplavam um movimento artstico amplo, envolvendo
no apenas a msica, mas tambm o teatro, a dana, as artes plsticas, o cinema e a literatura.
A matriz da arte armorial, fonte popular primordial embora no exclusiva - que agregaria
103
A complexa relao entre as idias armorias e a poltica cultural dos governos do perodo da ditadura militar
foge ao alcance especulativo deste trabalho. No intuito de exemplificar tal complexidade, e ao mesmo tempo
sugerir ao leitor novos prismas analticos, acrescenta-se, aqui, uma declarao feita por Suassuna para a revista
Entre Livros (jul. 2005, p. 35): preciso distinguir o nacionalismo de direita e o de esquerda. Essa distino
existiu, nos pases pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil. claro que o ideal de todo mundo, e o meu
inclusive, o internacionalismo. Mas esse internacionalismo no pode ser brandido, como est sendo, pelos
pases poderosos para escamotear um novo imperialismo.
89
todos estes elementos, seria a literatura de cordel. De acordo com o prprio autor (1974, p.
7):
O folheto da nossa Literatura de Cordel pode, realmente, servir-nos de
bandeira, porque rene trs caminhos: um, para a Literatura, o Cinema e o
Teatro, atravs da Poesia narrativa de seus versos; outro, para as Artes
plsticas como a Gravura, a Pintura, a Escultura, a Talha, a Cermica ou a
Tapearia, atravs dos entalhes feitos em casca-de-caj para as
xilogravuras que ilustram suas capas; e finalmente um terceiro caminho
para a Msica, atravs das solfas e ponteados que acompanham ou
constituem seus cantares, o canto de seus versos e estrofes.
Atuante na dcada de 1970, o movimento armorial, alm de dialogar com as
questes modernistas e ps-modernistas, confrontou-se com uma srie de tendncias estticas
medida em que seus trabalhos artsticos se desenvolviam, como, por exemplo, a arte
engajada, o tropicalismo, a vanguarda erudita. Suassuna no concordava com a arte
condicionada a um projeto poltico, nem com a pretenso de revelao que essa arte
continha. Ressaltando o aspecto dionisaco do povo castanho, tambm se posiciona contra a
postura conscientizadora da arte engajada, por exemplo, do Centro Popular de Cultura (CPC)
ou do Movimento de Cultura Popular (MCP). Ainda em 1969, num artigo para a Revista
Brasileira de Cultura
104
, Suassuna declararia (p. 39):
Quando ns afirmamos a existncia de uma Literatura popular brasileira,
os crticos e tericos de Esquerda na mesma hora batem palmas, juntando
entusiasticamente suas vozes nossa. Mas, a partir da, no se conformam
com as liberdades amplas da criao: querem, tambm, purificar e
expurgar, limitando os intersses dos artistas e do Povo, de acrdo com
cartilhas e esquemas. No se conformam com o fato de o Povo no se
pautar, em suas criaes, por tais cartilhas.
Tendo participado da fundao do MCP, em Recife, Suassuna romperia com as
outras lideranas e se desligaria do movimento. Didier (op. cit., p. 96-97) explica que ele
defendia o ldico como ponto de partida para a criao, contrariamente posio de outros
intelectuais, que colocavam a necessidade de priorizar a veiculao da conscincia poltica
atravs da criao artstica. Nesta reao da arte engajada, o armorial possui uma ligao
com o movimento tropicalista. A participao poltica de Suassuna na universidade e no
governo resultaria em vrios projetos de incentivo tanto para a arte armorial quanto para os
prprios artistas populares. Alm disso, costumeiramente, ele exercia outra forma de
participao, quando, nos concertos, seja na orquestra ou no quinteto, entre as msicas,
apresentava as idias armoriais e tecia comentrios ilustrativos, por vezes acompanhados de
slides.
104
Publicao do Conselho Federal de Cultura, do qual Suassuna participara, desde 1967, sustentando uma
posio de apoio ao golpe militar, mesmo que mantivesse uma viso, nas palavras de Albuquerque (op. cit., p.
169), nem de direita nem de esquerda, mas uma terceira viso, a viso divina, sagrada, catlico-sertaneja.
90
O armorial propunha um outro tipo de resistncia: a defesa das artes populares, em
respeito ao que estas possuam de espontneo, de alegre. A bandeira armorial representa a
resistncia da cultura sertaneja frente cultura cosmopolita ps-moderna, posicionando-se
contra as interferncias da cultura de massa, consideradas, em grande parte, tentativas de se
firmar um novo imperialismo norte-americano. Este aspecto, por sua vez, manteria o
movimento armorial em profundo conflito tanto com o tropicalismo quanto com a vanguarda,
e posteriormente com o movimento mangue-beat. As alegorias do serto medieval
nordestino, com sua religiosidade primitiva uma combinao do sebastianismo e do
milenarismo, do catolicismo popular portugus, com o animismo e o fetichismo das culturas
negras e indgenas -, contrapem-se ao racionalismo do mundo capitalista,abraado pelo
Sul, ou ainda religiosidade elaborada presente nas utopias scio-polticas. Um dos pontos
de crtica ao armorial d-se por sua tentativa de elevao da arte popular sertaneja, enquanto
as condies sociais, polticas e econmicas dos sertanejos, artistas ou no, permaneceriam
em situao desfavorvel. De seu lado, Suassuna afirmava acreditar na possibilidade de
reunio entre melhor condio de vida para o povo e a preservao dos valores culturais
prprios do pas, conforme explica Didier (id. p. 74). Para ele, o desenvolvimento no
implica, necessariamente, em uma cpia de modelos culturais exteriores.
3.2.5. Luiz Gonzaga e o serto na Msica Popular Brasileira (MPB)
Enquanto o repertrio erudito se unia ao folclore, na construo discursiva da
autenticidade, a partir dos anos 1940, pelo menos, a incipiente indstria cultural brasileira
passaria a incorporar tambm o tipo regional ao consumo e ao entretenimento. Naquela
poca, o samba e as marchinhas populares obtinham uma visibilidade maior apenas no
perodo do Carnaval, e o consumo urbano de msica voltava-se para o bolero, para as
canes de temticas amorosas - destacadas nos vozeires, inspirados no bel canto italiano -,
e a outros ritmos estrangeiros, como o tango e o foxtrote. Neste contexto, o modalismo
nordestino, com toda a intensidade emocional do serto, ser representado na inveno do
baio, por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. O baio insere o Nordeste na Msica Popular
Brasileira. O rdio constitui-se no principal meio de divulgao deste som que apresentaria
ao Brasil o espao afetivo e saudoso do serto. Albuquerque (op. cit., p. 152-153) lembra
que, encurtando distncias e promovendo a divulgao da cultura nacional,
o rdio ser tutelado, inclusive pela censura, para se engajar nesta politica
nacionalista e populista, partida do Estado. O rdio, ao mesmo tempo em
que estimulado a falar do pas, revela a sua diversidade cultural. (...)
91
nelas [estaes de rdio] que nasce, concentra-se e se dispersa o que se vai
chamar de Msica Popular Brasileira.
No Cancioneiro Humberto Teixeira: biografia, Ricardo Cravo Albin (2006, p. 77)
cita um ensaio escrito pelo prprio Humberto Teixeira (s/d), que exemplifica bem a
construo deste espao-som nordestino. Reproduzo alguns trechos a seguir:
Em perfeito acordo com um ritmo cadenciado e mais ou menos uniforme, o
passo mido e recatado, tal como se at na dana manifestasse o caboclo
nordestino a sua forma paradoxal de pudor do sofrimento... A linha
meldica setentrional, de uma beleza mstica e singela, tpica da gleba e
que a tcnica da msica do Sul tenta debalde fixar na pauta ou prender a
um binrio aceitvel, bem longe porm do genuno e do perfeito... (...) O
quinze de Rachel de Queiroz... O balanceio de Lauro Maia... A viola do
cego Aderaldo... O cantocho do boiadeiro consolando o boi magro e
sedento no seu xodo da terra calcinada de onde desapareceu o ltimo
xique-xique... (...) A sanfona mgica de Luiz Gonzaga, a sua musicalidade
e sua voz mil por cento nordestina... A contribuio rtmica e meldica das
terras ensolaradas ao grande concerto orquestral da ptria comum... A
sonoridade triste da minha lira canhestra... As endechas sem mtrica da
minha musa capenga... Isso, tudo isso, o BAIO...
A idia de lanar o ritmo nordestino na sociedade de consumo urbana surgiu em
meados de 1945, quando Lauro Maia recusou o convite de parceria de Luiz Gonzaga mas
decidiu apresent-lo a seu cunhado Humberto Teixeira. Cearense de Iguatu, este j havia
composto sambas e outros ritmos populares urbanos, no relacionados msica nordestina.
Da mesma forma, Luiz Gonzaga, emigrado de Exu-PE, tocava valsas, choros, tangos etc., em
sua sanfona, em bares e casas noturnas do Rio, mas vinha alimentando o desejo de
diferenciar-se no cenrio artstico-musical, lanando um ritmo tipicamente nordestino. A
partir daquele encontro, no escritrio de Humberto Teixeira, a dupla iniciou o trabalho
imediatamente, j esboando o que viria a ser Asa Branca e decidindo apostar no baio.
Tocava-se o baio nas feiras, nas festas populares, nas cantigas de cegos, nos
repentes, em uma vasta rea do serto, que compreendia, principalmente, os Estados do
Piau, Cear, Pernambuco, Paraba e Rio Grande do Norte. O ritmo era dedilhado na viola,
com uma marcao sincopada, que teria origem, provavelmente, no lundu baiano, do qual
pode ter declinado, inclusive, a corruptela corriqueira baio.
Embora no tivessem uma equipe de mercado para formular uma campanha
publicitria que assegurasse as vendas, Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga elaboraram uma
estratgia, com base na observao e na experincia musical anterior, que visava a urbanizar
um ritmo to presente em suas infncias - nas feiras, nas festas populares, nas cantigas de
cegos e dos repentistas - e possivelmente no passado de tantos migrantes nordestinos que se
estabeleceram no Rio e em So Paulo, para buscar melhores condies de vida. Acertaram a
tal ponto que o baio obteve uma supremacia comercial nas rdios, nas gravadoras e nas
92
prticas musicais da vida urbana por quase uma dcada, de 1946 a 1955. o que se constata
pelas declaraes do prprio Humberto Teixeira, citadas por Ricardo Cravo Albin (id., p.
74):
A verdade que se passou a saber que no Nordeste havia uma poesia
popular ligada Msica Popular Brasileira depois que ns, eu e Luiz
Gonzaga, deflagramos esse movimento do baio. Primeiramente, naquelas
horas de conversa, no meu escritrio, fizemos um levantamento de todos os
ritmos nordestinos. E entre os vrios ritmos que levantamos, verificando
quais poderiam ser aproveitados para os grandes temas folclricos que a
gente conhecia l do Norte, nos detivemos no baio. Sobretudo pela
facilidade rtmica que apresenta, a facilidade de qualquer orquestra de
qualquer parte executar aquilo de uma maneira uniforme, tal como ns o
lanamos e o criamos.
A inveno do baio, tal como foi noticiado pela imprensa embora Humberto
Teixeira tenha sempre negado o invento, explicando sua adaptao ao contexto urbano e
enfatizando a presena do ritmo nas tradies populares -, foi seguida, rapidamente, pela
divulgao comercial de uma srie de ritmos regionais danantes genericamente chamados
de forr
105
, como o arrasta-p, o xote, o xaxado, e tambm de ritmos mais lentos como as
toadas nordestinas. De acordo com Gilmar de Carvalho (2005, p. 61), pode-se falar em Luiz
Gonzaga como o fundador (sistematizador) de uma msica enraizada, buscando, nos ocos do
Nordeste, referenciais que trabalhou com seus parceiros, fazendo dos ritmos populares
sertanejos matria-prima para a recriao de uma srie de clssicos do nosso cancioneiro.
Luiz Gonzaga constri uma personalidade artstica vinculada ao imaginrio do
serto nordestino. Adota uma forma de cantar anasalada, assume o sotaque, as expresses
locais, chiados, interjeies, e um modo despojado de cantar, que se diferenciava bastante
dos vozeires de maior sucesso na poca, como Vicente Celestino e Nelson Gonalves. Alm
disso, adota uma indumentria prpria, estilizando uma vestimenta regional: gibo de
vaqueiro, chapu e sandlias de couro, dentre outros acessrios. Albuquerque (op. cit., p.
155-156) ressalta que esta postura de Luiz Gonzaga, principalmente em relao ao sotaque e
a forma de cantar, provoca uma alterao substancial no regime de escuta em nossa
sociedade. O autor (id., p. 204) argumenta que no apenas a atitude do artista, mas a
repercusso feita pelos discursos do rdio e da imprensa instituem a voz como smbolo,
como identidade de um artista e, por extenso, como identidade de uma regio ou de uma
nao.
Suas composies narram a condio do migrante, o seu estranhamento diante da
civilizao, a saudade do serto, a problemtica da seca e tambm a descontrao das danas,
aspectos ldicos do dia-a-dia, sempre do ponto de vista do tipo regional. Conforme aponta
105
Termo que denomina tanto o baile (a festa) como a dana.
93
Albuquerque (id., p. 160): As letras, como os prprios arranjos, suscitam lembranas,
emoes, idias, ligadas a este espao distante e abstato nomeado de Nordeste. Suas
msicas inseriram a linguagem modal na MPB de modo marcante, especialmente do modo
mixoldio, inspirando outros artistas a trazerem esse universo sonoro associado ao folclore
para o meio urbano
106
. Exemplifica-se o ritmo no trecho a seguir, lanado e consagrado pela
msica homnima, Baio (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1946):
Fig. 2
Comentando a respeito deste uso do folclore pela cultura de massa, Jos Jorge de
Carvalho (1992, p. 32) explica:
H algo de especfico no folclore que no se perdeu: ele ainda funciona
como um ncleo simblico para expressar um certo tipo de sentimento, de
convvio social e de viso de mundo que, ainda quando totalmente
reinterpretado e revestido das modernas tcnicas de difuso, continua
sendo importante, porque remete memria longa. (...) Se no fosse assim,
a indstria cultural poderia, perfeitamente, inventar smbolos novos todo o
tempo, em vez de apropriar-se dos smbolos clssicos e tradicionais e dar-
lhes uma nova roupagem. Se o faz porque necessita tambm manter
acesa, numa crnica e agonstica negao de si mesma, a idia de
permanncia. esse modelo da cultura folk e no sua manifestao
autntica o que a cultura de massa no destruiu.
Aps 1954, os sons regionais nordestinos perdem espao para o samba no mercado,
depois valorizado e estilizado pela bossa nova. A versatilidade, o empenho e o carisma da
figura de Luiz Gonzaga conseguiram estender a identidade nordestina para todo o pas,
colocando-a no pice de uma construo artstica regional, com toda a fora de transmisso
106
Alguns exemplos do uso do modalismo nordestino podem ser encontrados nas msicas de: Sivuca, Tom
Jobim, Chico Buarque, Capinam, Geraldo Vandr, Hermeto Pascoal, Geraldo Azevedo, Alceu Valena, Djavan,
Egberto Gismonti, Elomar, Xangai, Capiba, Fagner, Ednardo etc.
94
simblica da cultura de massa. Podem-se esboar algumas razes para a perda de espao e o
declnio do sucesso de Seu Luiz, como era conhecido. O fim do Estado Novo conduziu o
Brasil a novas perspectivas sociais: alm de moderno e industrial, o pas tinha que se tornar
desenvolvido. Este plano desenvolvimentista se tornou cada vez mais forte na dcada de
1950. Por mais talentoso e verstil que fosse, Luiz Gonzaga era um artista regional, que se
manteve fiel ao personagem, enquanto a moda regionalista passou. Alm da caracterstica
do efmero, observada nas sociedades de consumo, j apresentamos, em tpico anterior, as
dinmicas culturais globalizantes que possibilitaram a maior circulao de bens materiais e
simblicos, cuja velocidade e alcance aumentariam substancialmente com o advento da
televiso. A Msica Popular Brasileira precisava ser internacional, sofisticada mas sem
perder a brasilidade, e no regional, presa a uma tradio passadista. Enquanto o pas se
desenvolvia, no apenas Luiz Gonzaga, mas todo o Nordeste representava o arcaico, o
agrrio, o outro apreensivo que observava tudo de longe.
Do ponto de vista scio-histrico, Albuquerque (op. cit., p. 162-163) avalia a
produo musical de Luiz Gonzaga da seguinte maneira:
A msica de Luiz Gonzaga atravessada pela ambigidade entre um
contedo tradicional e uma forma moderna. Enquanto as letras de suas
canes mostravam um Nordeste tradicional, antimoderno, antiurbano, seu
ritmo, sua harmonia eram uma inveno urbana, moderna. Ao mesmo
tempo que falava de um espao que rejeitava as relaes mercantins
burguesas, era eminentemente comercial, voltada para um pblico urbano.
Uma msica que, identificada como popular e regional, viveu por quase
dez anos a condio de msica nacional, at de exportao e presena
indispensvel nos sales da alta sociedade. Era o baio a prpria
expresso da conciliao entre formas modernas e contedos tradicionais;
era a expresso da separao entre estes dois momentos da produo
cultural, que caracterizava a vida cultural do nacional-populismo.
Se o projeto cultural modernista fechava-se para a msica popular urbana, como j
foi colocado, o ps-modernismo vai inserir a lgica de mercado e de consumo no debate
cultural. Frente a esta problemtica ps-moderna, Luiz Gonzaga obtm uma nova
visibilidade. Com a globalizao, a acessibilidade das informaes torna a idia de cultura
nacional algo mais amplo e mais complexo que um projeto de uma pequena elite intelectual.
A partir dos anos 1960, experincias artsticas como a poesia concreta, o Cinema Novo, o
tropicalismo, e tantas outras, redimensionaram e reavaliaram aquelas noes de moderno e de
tradicional, fazendo-as circularem e se combinarem com outras idias, compondo novos
significados. Durante o perodo da ditadura militar, a problemtica nordestina seria ressaltada
95
como denncia pelos movimentos de resistncia, e algumas msicas de Luiz Gonzaga seriam
retomadas, alimentando sua circulao pela indstria do protesto
107
.
A Asa Branca receberia a conotao poltica de um canto de protesto na voz de
Geraldo Vandr, em 1965. Caetano Veloso tambm grava essa mesma msica quando
exilado em Londres, em 1970, nas palavras de Trik de Sousa (2006, p. 15), acrescentando
um improviso mastigado de cantiga de cego, como no baio primevo. Desde o esboo
inicial, ainda da primeira vez em que se encontraram naquele escritrio, e a partir do seu
lanamento em 1947, Asa Branca realizou um percurso simblico-cultural, com o passar dos
anos, que lhe instituiria, popularmente (de modo no-oficial), o ttulo de Hino do Serto, ou
ainda Hino do Nordeste. Trata-se de uma das msicas mais gravadas e tocadas por artistas
nacionais e estrangeiros das mais diversas vertentes, alm de fazer parte, no ensino de msica
brasileiro, do repertrio inicial dos estudantes de instrumentos os mais variados. O seu
lamento modal condensa toda a dramaticidade associada regio, todos os aspectos
simblicos levantados no captulo anterior: um Nordeste-serto rido, seco, arcaico, de
gentes simples, prximas da natureza (o pssaro e o sertanejo esto juntos na mesma
condio de misria), migrantes, protegidas por Deus (e por Nossa Senhora) e que guardam
consigo a saudade de seus parentes e de suas tradies.
O movimento tropicalista colocaria o baio e o ritmo regional nordestino em uma
espcie de releitura antropofgica, buscando uma sonoridade que reuniria, ao mesmo tempo,
o arcaico, o moderno e a cultura de massa. A cantora Gal Costa, por exemplo, revisitaria
sucessos de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, tendo gravado junto com este. A banda Os
Mutantes grava, em 1968, uma verso tropicalista para Adeus Maria Ful, um baio de
Humberto Teixeira e Sivuca, de grande sucesso em 1951, na voz de Carmlia Alves.
3.3 Consideraes sobre o renascimento da Msica Antiga: por outras razes e
sensibilidades
J vimos que um ponto fundamental da ressignificao da cultura nordestina, no
mbito musical, d-se pelas (re)criaes que utilizam como fonte o universo sonoro modal.
Ao dialogarem com outras linguagens, estas (re)criaes constituem um mecanismo
importante de construo e negociao de fronteiras tnicas, que nos permitem formar
107
Expresso utilizada por Ikeda (1995, p. 199), em relao ao aspecto mercadolgico que se observou junto
aos movimentos de resistncia cultural nas dcadas de 1960 e 1970, no Brasil. O autor afirma: Aproveitando o
potencial de consumo dos segmentos jovens e dos setores politicamente engajados, houve todo um trabalho de
incorporao desses movimentos na indstria cultural, transformando artistas engajados em dolos nacionais e
internacionais.
96
imagens e discursos sobre a regio. Entende-se, ainda, que tais (re)criaes ocorrem de
acordo com processos de hibridao, seja no plano sinttico, das organizaes e relaes
internas dos sons musicais, seja no plano semntico, dos contextos em que se desenvolvem
tais prticas.
O movimento armorial direcionou o dilogo cultural da msica sertaneja nordestina
com a msica medieval, renascentista e barroca. Se a idia, na teoria, consistia em conectar
as tradies orais nordestina e ibrica no plano artstico, destacando suas semelhanas
imaginais, na prtica, o repertrio musical do passado europeu pr-clssico foi explorado de
forma mais ampla e flexvel. Na dcada de 1970, at meados dos anos 1980, no Brasil, o
interesse pela Msica Antiga encontrava-se no auge, seja entre msicos experientes,
iniciantes ou entusiastas de outras reas profissionais.
Este interesse, embora no se conjugue em um movimento organizado, ocorre pelo
questionamento de valores convencionais da tradio musical erudita clssica europia, no
apenas quanto ao repertrio mas quanto ao fazer musical de modo mais amplo, na relao da
msica - e dos msicos - com o mundo. Colocaram-se em evidncia questes como a
formalidade nas salas de concerto, o culto do virtuosismo, a postura arrogante dos msicos,
os protocolos que envolvem a conduta orquestral, a canonizao de determinado repertrio
clssico-romntico. O renascimento da Msica Antiga no sculo XX constitui-se em um
fenmeno profundamente relacionado com a crtica da modernidade, que toma fora,
paradoxalmente, no momento em que o avano tcnico, comunicacional e econmico vai se
configurando em nveis globais, aps a Segunda Guerra Mundial. Conforme sintetiza
Kristina Augustin (1997, p. 107-108):
A msica medieval e renascentista predominantemente uma msica
coletiva. Mesmo na msica barroca, que j apresenta linhas meldicas mais
virtuosas, o ideal de cumplicidade com os outros instrumentos permanece,
e a linha do baixo era, invariavelmente, o pilar de sustentao da
composio musical. Os msicos foram atrados pelo fazer coletivo. Se no
incio a escolha desse repertrio foi a reao ao virtuosismo exagerado do
romantismo, ao cansao do esquema de trabalho das orquestras na busca de
uma uniformizao, constata-se que, ao se buscar institucionalizar a
Msica Antiga na Europa, esse panorama mudou. Com a criao de escolas
voltadas especificamente para a formao de msicos especialistas em
Msica Antiga, cujo intuito era acabar com o diletantismo, pouco a pouco
essas escolas foram abandonando a prtica salutar da msica em conjunto e
iniciando um processo de formao de msicos solistas, extremamente
competitivo. (...) As gravadoras exercem muita presso, impondo um
padro e estimulando os malabarismos musicais.
certo que, em seu incio, na Europa do sculo XIX, o renascimento da Msica
Antiga esteve relacionado aos movimentos nacionalistas, que buscavam glorificar o passado
de suas culturas nacionais, no apenas descobrindo elementos folclricos como
97
resgatando a msica de compositores antigos, inserindo-os no legado artstico da cultura-
civilizao. Costuma-se atribuir ao concerto dirigido por Felix Mendelssohn, em 1829, da
Paixo Segundo So Mateus, de J. S. Bach, como o marco do ressurgimento dos antigos
mestres da msica europia. A repercusso desta apresentao provocou o interesse de um
maior nmero de pessoas para a msica do Barroco e do Renascimento, especialmente na
Inglaterra e na Alemanha, alm do que j vinha sendo alimentado, ao longo do sculo XIX,
por uma pequena elite aristocrtica de amadores musicais, e pelos colecionadores particulares
e donos de antiqurios, cujo gosto pelo antigo associava-se ao fascnio pelo extico, pelo
mistrio, pelo bizarro etc.
O percurso deste interesse adquiriu outros contornos no comeo do sculo XX, com
o desenvolvimento tecnolgico e industrial e o adensamento das sociedades modernas. Por
um lado, os compositores procuraram incorporar aquele retorno ao passado pr-capitalista
como elemento renovador para suas prprias linguagens musicais, seguindo o que se
denominou linha neoclassicista. Por outro, formavam-se pequenos crculos sociais
motivados, possivelmente, pelo colecionismo, ou pela curiosidade dos sons exticos dos
instrumentos antigos. Porm, se estas tendncias contriburam para manter a temtica da
Msica Antiga em pauta, e despertaram a ateno e o interesse do pblico, especialista ou
no, para este universo sonoro to amplo, suas idias no correspondem ao renascimento
proposto no ps-guerra, ligando-se a ele apenas tangencialmente.
Em vez do universalismo neoclassicista, ou da segmentao especialista do
colecionismo, o renascimento da Msica Antiga tal como se configurou no ps-guerra um
fenmeno cosmopolita, mais aproximado do ps-modernismo, contendo uma perspectiva
crtica da modernidade. Este cosmopolitismo se tornou possvel quando o interesse se
expandiu significativamente ao Novo Mundo
108
, seja pela imigrao de msicos europeus,
por causa da guerra, seja pela difuso cultural de edies e gravaes de Msica Antiga
109
.
Pode-se afirmar que as pessoas envolvidas neste renascimento passam a compartilhar
determinados gostos, vises de mundo, saberes, interesses, modos de vida, e at um
vocabulrio peculiar, formando uma cultura especfica, dentro daquela dimenso
108
Alm de ter se desenvolvido em outros centros europeus, como ustria, Holanda, Sucia, Finlndia,
Dinamarca, Suia, Frana, Espanha, Itlia, a onda da Msica Antiga tambm atingiu Estados Unidos, Canad,
Austrlia, Chile, Argentina, Brasil, dentre outros.
109
No Brasil, Kristina Augustin destaca a participao, nos anos 50, do blgaro Borislav Tschorbov (violino e
viola) e da ucraniana Violetta Kundert (piano e cravo), alm da atuao importante de Koellreutter em So
Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia, dentre outros estados, que se estendeu at os anos 1980, com a
disseminao dos Seminrios de Msica Pr-Arte. Segundo Augustin (id., p. 54), este curso assumiu de
imediato uma atitude crtica e polmica face ao tradicionalismo do ensino de msica nos conservatrios.
Koellreutter enfatizava a necessidade do estudo da Msica Antiga para a compreenso da evoluo da histria
da msica. Para msicos, professores e alunos esse foi o espao propcio para o estudo e difuso da Msica
Antiga.
98
antropolgica de que nos fala Eagleton
110
, que vivenciada de uma forma parecida em
diversas partes do mundo, por pessoas de origens diferentes. Estas pessoas organizam
associaes, festivais, seminrios, dentre outras formas de encontros para promover o
intercmbio de idias e incentivar a participao social dos interessados.
A formao desta cultura cosmopolita de Msica Antiga se explica, exatamente, por
sua caracterstica reativa a um fenmeno tambm compartilhado nas sociedades de consumo:
a reproduo em srie de produtos culturais para um pblico de massa. Como foi explicado,
vrios artistas expuseram, no incio do sculo, sua insatisfao diante desta industrializao
cultural em movimentos que questionavam a banalizao da obra de arte, inserida no sistema
mecanicista das sociedades modernas. Walter Benjamin avaliara, em texto publicado em
1936, tal fenmeno como a perda da aura da obra de arte, devido sua reprodutibilidade
tcnica
111
. Neste aspecto, possvel observar uma aproximao entre o movimento de
Msica Antiga no incio do sculo XX at pelo menos o perodo entre guerras - e o
modernismo regionalista brasileiro, na negao do progresso e na reconduo de valores de
um passado pr-capitalista. Esta motivao reativa constitui o cerne do renascimento da
Msica Antiga no sculo XX, cuja fomentao ocorre, na Inglaterra, em torno da figura de
Arnold Dolmetsch (1858-1940). Neste sentido aponta Kristina Augustin (id., p. 17):
Juntamente com seu amigo e admirador William Moris o lder do
movimento Arts and Craft [Dolmetsch] defendeu a beleza do trabalho
artesanal na fabricao dos instrumentos, repudiando a produo serial.
Contra a crescente individualizao, props a volta dos concertos caseiros,
para os quais os amantes da msica e msicos estariam unidos em um
pequeno ambiente, em atmosfera informal e acolhedora.
Dolmetsch dedicara-se ao estudo sobre os instrumentos de poca e valorizao
dos timbres originais e das convenes estilsticas para a performance. Contra a
grandiloqncia da msica de concerto do romantismo, propunha um retorno msica de
cmara, feita em ambientes informais, com simplicidade. Esta prtica, disseminada tambm
na Alemanha nos anos 1930, recebeu o nome de Hausmusik, ou msica caseira
112
. O
intercmbio destas idias a outras partes do mundo deu-se tanto pela leva de refugiados
110
Referido no tpico 3.1 deste captulo (p. 69).
111
Conforme destacamos em texto anterior (GIFONI, op. cit., p. 2): Benjamin define a aura como uma figura
singular, composta de elementos espaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante, por mais perto
que ela esteja. (BENJAMIN, 1994, p. 170). Segundo ele, as sociedades modernas ocidentais, em sua busca
frentica de aproximao com os objetos culturais, conseguem superar sua unicidade atravs da
reprodutibilidade, com nveis cada vez mais eficientes de qualidade tcnica, o que acaba promovendo a
destruio da aura, ou seja, a padronizao ou banalizao do objeto. Ao mesmo tempo, permanece o desejo e a
associao, de acordo com Benjamin de base teolgica, por mais remota e estranha que parea, presente nos
mais profanos rituais estticos, com a idia de obras artsticas autnticas.
112
Musiclogos alemes como Riemann e Gurlitt criaram grupos acadmicos inspirados no modelo do
Collegium musicum barroco, um espao alternativo s cortes e igreja ligado vida burguesa dos sculos
XVI ao XVIII, onde msicos profissionais e amadores se encontravam para tocar e aprender, em ambiente
ldico.
99
europeus quanto pelo prprio empenho do governo nazista em investir na consolidao dos
gnios da msica alem, em seu projeto pan-germanista, o que resultou no apoio a pesquisa
de manuscritos de compositores como J. S. Bach e G. Handel, por exemplo, e edies de
partituras, dentre outras aes de incentivo. Posteriormente, o repertrio escrito circularia no
mundo, aumentando o interesse por sua execuo.
As idias de Dolmetsh fomentaram a pesquisa musicolgica e a fabricao de
rplicas de instrumentos antigos, a preocupao com a prtica musical em conjunto, com os
timbres, os fraseados, as ornamentaes e todo um estudo em torno do estilo e da sonoridade
das pocas barrocas, renascentistas e medievais. Tais estudos contariam com uma viso
articulada das Artes, aliando elementos das pesquisas sobre a iconografia e a dana antiga,
por exemplo. Logo, os resultados destes estudos passaram a interferir nas performances
113
musicais, na medida em que tambm se criavam as escolas interpretativas, agregando um
valor de autenticidade histrica ao trabalho musicolgico. Dolmetsch no concordava que se
cumprissem apenas critrios objetivos na interpretao da Msica Antiga, mas que se
buscasse algo mais abstrato, uma maneira de expressar o sentimento ou o esprito da poca,
constituindo uma linha subjetivista. A linha objetivista, por seu turno, sustentava um rano
contra a expresso e o sentimento, pelo receio da forte associao dos termos ao romantismo,
defendendo, por isso, a idia de uma interpretao mais comedida, introvertida, objetiva,
fiel s notas. Em discordncia, a linha subjetivista alega o teor especulativo intrnseco a
reconstituio da Msica Antiga, cuja impreciso aumenta quanto mais antiga seja. A
despeito das controvrsias, a linha de Dolmetsch teve repercusso bastante significativa no
Brasil, conforme se observa no depoimento de um dos pioneiros, Roberto de Regina (apud
AUGUSTIN, op. cit., p. 52), em 1976:
Hoje os conjuntos de Msica Antiga tm uma preocupao extrema com
autenticidade. Eles se armam de uma parafernlia incrvel de
instrumentos e se preocupam com uma pesquisa arquolgica extenuante.
(...) Acho, enfim, que no essa parte externa, essa parte fsica, que a
mais importante quando se quer recriar uma obra de arte. A autenticidade
que se deve procurar em primeiro lugar, parece-me, a autenticidade
emocional. (...) Esse rendimento emocional, intrnseco, interior da msica
, e foi sempre, a minha principal preocupao.
Alm disso, esta movimentao cultural vivenciada em torno da Msica Antiga
estabelece um dilogo com as idias dos movimentos polticos da sociedade civil dos tempos
113
Quando nos referimos a este termo, pensamos tanto no desempenho do artista ao executar uma msica
quanto no seu entendimento a respeito dela, interferindo no tal desempenho. Esta acepo aproxima a idias de
performance e interpretao musical, como nos sugere Joseph Kerman (1987, p. 271): A interpretao [] o
processo pelo qual uma personalidade musical mpar atua sobre a msica a fim de revelar sua substncia,
contedo ou significado. A performance (...) pode ser encarada como uma forma de crtica. Pode-se admirar a
interpretao de um artista, assim como a de um crtico, por qualidades como brilho, integridade, distino e
coerncia, mesmo quando se est convencido de que ela no alcana o objetivo desejado.
100
ps-modernos, especialmente os movimentos ecolgicos e de contracultura juvenil. A prtica
musical de Msica Antiga se coloca como alternativa para o fazer racionalista autnomo,
evolucionista e especializado - associado musica erudita no mundo capitalista. Augustin
(id., p. 56) comenta tal aspecto da seguinte forma:
Assim como a Msica Antiga foi aceita como msica alternativa quela
tocada nas salas de concerto tradicionais, alguns traos do movimento
hippie foram incorporados pelos que a executavam. Os msicos, na
maioria, eram jovens e buscavam fugir do conservadorismo e da seriedade
da chamada msica erudita. Escolheram espaos alternativos para realizar
os concertos, como galerias de artes, igrejas, museus; optaram por um
visual mais descontrado, substituindo a casaca ou smoking pelas batas e
roupas indianas. Introduziram ainda o hbito de se dirigirem verbalmente
ao pblico, rompendo a barreira que separava o artista e o ouvinte.
Ao contrrio de alguns segmentos do multiculturalismo ps-moderno, o movimento
cultural da Msica Antiga apresenta uma atitude questionadora diante das relaes
contratuais e efmeras das sociedades de consumo. Apesar dessa crtica, presente desde
Dolmetsch, questionador da reproduo em srie, os intrpretes de Msica Antiga no
rejeitam ou recusam a cultura de massa, apocalipticamente, mas procuram se integrar
114
,
interagindo de forma flexvel com outras prticas artsticas e buscando espaos de atuao.
Embora suas propostas no correspondam s tendncias dominantes do mercado cultural
(mainstream), os msicos so abertos ao uso das novas mdias, no desejo de construir e
oferecer ao pblico um mercado tambm alternativo.
Enquanto os circuitos musicais dominantes ligados aos concertos eruditos no se
mostrariam receptivos incluso da Msica Antiga, o mesmo no ocorreria com as pequenas
gravadoras
115
, com interesse em se estabelecer no mercado com uma proposta diferenciada.
Este mercado alternativo dialoga com as necessidades espirituais de determinado pblico
consumidor urbano, trabalhando com a questo das identidades descentradas. J mostramos
como a autenticidade atribuda ao povo sertanejo resultara numa valorizao temtica de suas
manifestaes artsticas nos meios urbanos, tanto na msica erudita quanto na msica
popular urbana, ambas adaptando aquelas manifestaes s suas linguagens e aos seus
pblicos especficos. Mesmo a msica folclrica, ou de tradio oral, feita por artistas
sertanejos, encontra certa receptividade no pblico urbano. Ao abrir espaos para estes
artistas, as pequenas gravadoras, selos e fundaes culturais buscam vincular aos produtos
um valor simblico, que tambm compartilhado no consumo cultural na formao de um
114
Destacamos, assim, o movimento de Msica Antiga frente a um debate bastante frtil na dcada de 1970,
sobre a postura dos intelectuais e artistas de esquerda em relao cultura de massa, que na leitura de Umberto
Eco (op. cit.), dividiam suas posies entre apocalpticos ou integrados ao sistema.
115
Harry Haskell (1996, p. 127) aponta como exceo o projeto Archiv Produktion da Deutsche Grammophon,
uma gravadora de grande porte que investiu na formao de uma antologia musical significativa de Msica
Antiga, com um repertrio que compreendia desde o canto gregoriano at Mozart.
101
pblico especializado. Neste contexto do alternativo, a Msica Antiga e a msica nordestina
recebem um arqutipo semelhante: o selo do autntico.
Por outro lado, o multiculturalismo contra o qual as propostas contraculturais
desejam reagir, acaba por incorpor-las, segundo a prpria lgica do ps-moderno: o
mercado alternativo aberto e relativista, musicalmente ecltico, ou seja, ao mesmo tempo
em que consegue valorizar outros critrios de repertrio e performance, apresenta este
diferencial do autntico como uma opo possvel, dentre outras igualmente vlidas, de
interpretao musical. Desta forma, os movimentos contraculturais adquirem uma
visibilidade poltica que, ao serem equiparados entre si, na perspectiva ps-moderna, tornam-
se equivalentes e, por conseguinte, nulos. Harry Haskell (1996, p. 11) analisa da seguinte
forma esta problemtica, que atravessa tambm o movimento da Msica Antiga:
Eu tenho utilizado os termos subcultura e contracultura para descrever o
movimento da msica antiga do ps-guerra porque eu acredito que o
movimento se definia como uma alternativa para a cultura musical
predominante. Uma contracultura pode existir somente ainda na medida em
que h algo contra o que reagir. Isso est se tornando cada vez menos
verdadeiro no momento em que muitos msicos de mainstream esto
atentos para as particularidades histricas e em que a prpria cultura
mainstream encontra-se cada vez mais pluralista e fragmentada
116
.
Assim, o mercado alternativo se lana contra o dominante, mas com o desejo de
atingir o mesmo nvel de domnio. No se pode desconsiderar que o interesse das pequenas
gravadoras pela Msica Antiga e seus msicos desconhecidos ocorreria, em grande parte,
porque estas no possuiriam capital para investir em intrpretes famosos de um repertrio
cannico. Com o tempo, o mercado de Msica Antiga constitui os seus prprios
famosos
117
, bem como institui seu prprio cnone: um repertrio que cativa tambm os
msicos ligados aos mercados do pop, do rock, do jazz, alm do interesse que desperta no
mundo do cinema, da moda e da publicidade. At os compositores de vanguarda
aproveitariam a redescoberta dos instrumentos antigos para a explorao de seus timbres,
dentre outras possibilidades, na elaborao de msicas com linguagens contemporneas
118
.
116
Traduo de: I have used the terms subculture and counterculture to describe the post-war early music
movement because I believe the movement defined itself as an alternative to the prevailing musical culture.Yet
a counterculture can exist only so long as it has something to react against. This is becoming less true at a time
when many mainstream musicians are attuned to historical issues and when mainstream culture itself is
increasingly pluralistic and fragmented.
117
Taskell (id., p. 130) cita alguns intrpretes que se destacaram, comparveis aos colegas do mainstream,
inclusive sob critrios de tcnica e virtuosismo, tais como Frans Brggen, Nicolaus Harnoncourt, Christopher
Hogwood, Emma Kikby, Gustav Leonhardt etc.
118
Apesar do notvel interesse destas diversas esferas sociais, o mesmo no se pode afirmar em relao ao
ensino tradicional de msica, para o que nos chama a ateno Augustin (op. cit., p. 102): O tema Msica
Antiga normalmente abordado nos conservatrios e universidades de forma superficial e terica, inserido na
conhecida matria obrigatria Histria da Msica. A abordagem prtica, quando existe, se limita s atividades
de canto coral ou aos grupos de flauta-doce.
102
Interessados menos nos aspectos histricos do que na sonoridade, estes compositores
atualizam a utilizao de instrumentos como o cravo, a viola da gamba ou a flauta doce,
ampliando seus repertrios e suas combinaes camersticas. Em todo caso, esta relao
ambivalente do alternativo com o mainstream consegue alterar certos padres
comportamentais na msica erudita, renovando suas formas de comunicao com o pblico.
Tal aspecto comunicacional traz a questo da ambivalncia para os prprios artistas, no modo
como estes lidam com a tradio ou o antigo nos tempos (ps)-modernos
119
.
Por outro lado, as gravaes ditas histricas, mesmo feitas sob grande especulao
criativa, instituem parmetros interpretativos, ajudando a definir os limites do aceitvel nas
(re)criaes. Assim como Mrio de Andrade previa o perigo da imitao fcil do popular
120
,
alguns crticos e musiclogos chamaram a ateno para o risco da fixao caricata de
modelos interpretativos, provocada pela profissionalizao da Msica Antiga, que
selecionaria indivduos, escolas e/ou gravaes de grupos camersticos como referenciais de
gosto e autenticidade. Assim adverte Taskell (op. cit., p. 170): na medida em que o
movimento de msica antiga floresce com o individualismo e a rebeldia, a imitao fcil,
indubitavelmente, torna-se uma sria ameaa manuteno de sua vitalidade
121
. Deste
modo, percebe-se que, pelo menos em parte, o movimento de Msica Antiga incorporado
mesma lgica evolucionista da cultura-civilizao, que tanto criticara a respeito da tradio
clssico-romntica. Por conseguinte, o selo do autntico contribuiria, de certa forma, para
forjar autoridades interpretativas e impor critrios de execuo e escuta, construdos muitas
vezes sobre experincias musicais que no se pretendiam nicas ou oficiais, dentro da
proposta de Dolmestch. Este carter especulativo percorre toda a discusso interpretativa da
Msica Antiga, que se constri em torno do debate entre o autntico e a cpia, e na
(re)definio de limites interpretativos.
Por outro lado, o excesso de historicismo no ocorreria sem questionamentos no
renascimento da Msica Antiga, ao ponto de provocarem, em algumas tendncias, a perda do
interesse nos preciosismos da pesquisa histrica, e um retorno utilizao de instrumentos
modernos no momento da performance. A rejeio dar-se-ia, principalmente, em relao ao
repertrio medieval e algum renascentista -, por ser maior o nvel de especulao: as
notaes eram imprecisas, esperava-se do intrprete, muitas vezes, habilidade improvisatria,
119
Referimo-nos aos processos de hibridao e categoria viajante, conforme exposto nas pp. 71 e 74,
respectivamente.
120
Estabelecendo caminhos estticos para se evitar o popularesco, conforme exposto na p.79.
121
To the extent that the early music movement thrives on individualism and rebellion, facile imitation
unquestionably poses a serious threat to its continuing vitality.
103
alm do que os compositores antigos no costumavam definir rigorosamente que
instrumentos musicais deveriam ser utilizados.
A idia era retomar uma prtica musical que evitasse considerar a performance
apenas como uma disciplina cientfica, um problema que, conforme aponta Taskell (id., p.
185), pode levar crena de que a interpretao correta seria alcanada pelo simples acmulo
de dados. Esta postura anti-dogmtica mantm boa parte do movimento de Msica Antiga,
em certo sentido, fiel linha subjetivista de Dolmetsch. Taskell (id., p. 187) considera que
esta liberdade criativa no se confunde com irresponsabilidade, menos ainda com um desejo
revolucionrio radical, mas est profundamente relacionada com a idia de performance na
atualidade:
Agora que os artistas esto tentando reafirmar esta liberdade, assim
fazendo-no dentro do contexto de um senso realado de responsabilidade e
conscincia histrica. Em outras palavras, a liberdade encorajada no por
ser a prerrogativa do artista, mas porque o conceito contemporneo de
autenticidade assim demanda
122
.
De acordo com Richard Taruskin (1982, apud TASKELL, id., p. 186), tal noo de
autenticidade deve significar que os intrpretes estejam aptos a construir pontes
imaginativas em suas prticas. Dentro desta perspectiva, configura-se um alargamento na
noo de Msica Antiga, tornando esta expresso um tanto obsoleta para quem se utiliza
destas pontes
123
. A pesquisa e interpretao histrica passam a atingir tambm o repertrio
do sculo XIX e despertam o interesse de estudiosos de outras tradies musicais.
Se considerarmos o renascimento da Msica Antiga no Brasil, a perspectiva da
liberdade criativa foi, de modo geral, mais bem-vinda entre os msicos e entusiastas, seja
pela ausncia de recursos e necessidade de adaptao, seja pela vontade de criar sob o
esprito informal da Hausmusik, seja pelo diletantismo etc. Diante da problemtica ps-
moderna
124
, a idia de se tocar a Msica Antiga europia no Brasil obteve contornos
diferenciados no fazer musical de alguns artistas, na tentativa de inserir uma perspectiva
nacional e questionar a noo de cpia do modelo europeu, to cara cultura brasileira.
Alguns indivduos e grupos musicais iniciaram uma reflexo e uma prtica voltada
para a atualizao da Msica Antiga nacional, que seria a Msica Colonial Brasileira. Por
122
Traduo de: Now that performers are tentatively reasserting that freedom, they are doing so within the
context of an enhanced sense of historical awareness and responsability. In other words, freedom is encouraged
not because it is the performers accustomed prerogative, but because the contemporary concept of authenticity
demands it.
123
Augustin aponta as sugestes Performance Histrica, utilizada amplamente na Inglaterra, e Msica
Histrica, expresso proposta por Harnoncourt. A autora observa ainda a necessidade de uma expresso mais
abrangente, que d conta das novas estticas e temticas musicais associadas ao movimento.
124
De acordo com Garca Canclini, referido na p. 70.
104
exemplo, o trabalho de Anna Maria Kieffer e Thais Veiga Borges no grupo Confraria, criado
em 1975. Embora tenha sido mais experimental e intuitivo do que musicolgico ou
cientfico, o trabalho do grupo, que perdurou por oito anos, procurava estabelecer ligaes
entre o repertrio profano medieval e renascentista com as tradies brasileiras. Kieffer
inseriu tambm uma perspectiva mais ampla de apresentao musical, mais parecida com um
espetculo teatral, com uma produo e equipe profissional mais abrangente. Aps o
Confraria, Kieffer seguiu aprofundando esta linha temtica de pesquisa e prtica musical,
voltando-se para as modinhas e os lundus, na tentativa de amadurecer um repertrio de
msica profana brasileira antiga
125
. Um de seus projetos posteriores (CD Teatro do
Descobrimento, 1999) teve direo musical do grupo Anima, que participou tambm das
gravaes.
Outro exemplo que merece destaque, inclusive para a melhor compreenso da
proposta musical do grupo Anima, so as idias de Fernando Carvalhaes. Se o movimento
armorial buscara as pontes imaginativas com a tradio oral ibrica, partindo da tradio
oral sertaneja brasileira, por seu turno, as pesquisas de Carvalhaes, iniciadas no fim da
dcada de 1970, partem da via oposta, ou seja, do interesse pela msica medieval do mundo
colonizador, encontrando eixos surpreendentes com as tradies orais brasileiras. Conforme
depoimento do autor a Augustin (op. cit., p. 81-82):
Sempre vi a musica medieval como uma msica de tradio oral. (...) A
linguagem musical medieval muito parecida com a msica da tradio
oral brasileira por ser uma linguagem modal, comparando em termos de
temas e estrutura musical. A improvisao (na Idade Mdia) era muito
importante e presente no trabalho do msico. A partitura no era para ser
seguida fielmente, era apenas um lembrete. (...) A Idade Mdia nos permite
fazer associaes com as temticas atuais porque a msica e o texto so
muito alegricos e de certa forma universais.
Dentre as diversas contribuies de Carvalhaes, Augustin (id., p. 80) destaca sua
dedicao especial prosdia e idia de uma emisso vocal especfica para a msica
medieval. Alm disso, Carvalhaes tambm propunha um tipo de performance musical com
perspectiva cnica mais ampla. Ainda conforme Augustin (id., p. 81), ele percebeu e soube
aplicar nos concertos o universo alegrico presente tanto no mundo medieval quanto no
barroco. A autora afirma (id., p. 81-82):
Ao traduzir e trazer para a nossa realidade a temtica medieval, Fernando
sempre buscou mostrar que a msica medieval estava intimamente ligada
msica popular, notadamente cantoria nordestina ou brasileira, como
alguns preferem. Certamente ele no foi o primeiro e nico a perceber os
elementos comuns, mas teria coragem de mesclar esses aspectos em seus
125
Estas informaes sobre o trabalho de Anna Maria Kieffer se baseiam em Augustin, op. cit., p. 77.
105
concertos, numa poca em que os msicos, principalmente de Msica
Antiga, ainda no pensavam nessa direo.
O trabalho de Carvalhaes
126
influenciou uma gerao de intrpretes de Msica
Antiga, principalmente no Paran e em So Paulo, inclusive o grupo Anima. Suas idias vo
ao encontro da perspectiva subjetivista de Dolmetsch, e assim como o armorial, tambm
apresentam uma preocupao esttica que valoriza a dimenso do encantamento no fazer
artstico, mas sem idealizaes puristas, donde se avalia a problemtica ps-moderna.
Buscamos, neste captulo, traar algumas pontes histricas e conceituais para auxiliar
no estabelecimento de conexes simblicas do fazer musical dos grupos Syntagma e Anima
com a identidade espacial nordestina. Com base nos referenciais expostos, veremos, nos
captulos seguintes, a maneira como so tecidas estas conexes, em cada grupo, em suas
relaes com a tradio, o moderno e o ps-moderno.
126
Aps vrios anos de dedicao, dentre os diversos frutos de sua pesquisa, citamos o espetculo Fauvel: a
carreira de um asno, apresentado em vrias cidades brasileiras a partir de 1991, pelo grupo Tlea, fundado pelo
prprio Carvalhaes. Alm do espetculo, destacamos tambm a sua tese de doutoramento O Silncio de
Fortuna: artefato e performance no Roman de Fauvel, na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-
SP), defendida em 2000.
106
107
4 A REPRESENTAO SIMBLICA DO NORDESTE NO GRUPO SYNTAGMA
O Syntagma o grupo de cmara, em atividade, mais antigo do Cear. Surgiu em
novembro de 1986, da reunio de alguns integrantes de dois outros grupos, pela vontade de
aprofundar conhecimentos prticos e tericos sobre a Msica Antiga europia ocidental. Um
era o quarteto Aulos, de flautas doces, formado por Angelita Ribeiro, Cludia Leito, Lia
Parente e Nara Vasconcelos, que apresentava uma linha mais ecltica e aberta ao repertrio
para flauta doce, em geral; o outro era o Ars Mvsiqva, coordenado por Valder Freire. Este
grupo era formado por Anamaria Conde, Csar Moura, Liduno Pitombeira e Valder Freire,
tinha um repertrio concentrado na Msica Antiga. Embora procurassem parmetros
interpretativos, por meio de livros e cursos, seguiam uma linha condizente com o subjetivismo
de Dolmetsch, ou seja, com uma idia de autenticidade mais voltada para a busca do esprito da
poca do que para a fidelidade s notas, ou somente ao texto musical.
A maioria dos integrantes se conhecia do ambiente universitrio, e alguns j possuam
vnculos de amizade. Em meados de julho de 1986, a partir de conversas informais entre os
componentes de ambos os grupos, surgiu a idia de unir as experincias musicais e formar um
outro, com carter mais profissional. A princpio, este grupo novo manteve o nome de Ars
Mvsiqva, mas com uma proposta estendida e com os membros j reunidos. Em novembro,
decidiram procurar um novo nome, mais conveniente em termos de pronncia e fixao.
A sugesto partiu de Valder Freire e faz referncia ao tratado do organista alemo
Michael Praetorius (1571-1621): a obra Syntagma musicum (1615-19), de propores
enciclopdicas, contm informaes valiosas sobre a msica europia - alem, francesa,
italiana e inglesa - no sculo XVII, alm de diversas sugestes e indicaes de interpretao
musical. Logo reduzido a Syntagma, por questes de uso prtico, corriqueiro e de tratamento
carinhoso, o grupo decide levar ao pblico essa miscelnea de sonoridades, que se constitui,
ao mesmo tempo, uma sntese do entendimento musical de seus integrantes, em relao aos
objetivos de interligar as sonoridades da msica antiga com a msica nordestina.
Assim, descrevem-se os objetivos do grupo, em um release
127
datado de 1989:
(a) interpretao da Msica Antiga com instrumentos originais; (b)
interpretao da Msica Nordestina utilizando basicamente instrumentos
antigos (enfatizando, com isto, o elo de ligao entre a Msica Antiga e a
Msica Nordestina); (c) Divulgao do repertrio contemporneo para este
tipo de instrumental, em especial com relao flauta doce, que como
instrumento foi o marco inicial do renascimento da Msica Antiga.
127
Documento disponvel apenas no acervo particular do Syntagma, cedido gentilmente para a realizao desta
pesquisa.
108
Pode-se considerar que, com o passar dos anos, o grupo foi se preocupando menos
com a questo dos instrumentos originais, tendo incorporado outros como violo, clarinete e
flautas transversais. O repertrio contemporneo que o grupo divulga tambm se restringe a
compositores que trabalham os elementos da tradio nordestina junto a formas e linguagens
musicais contemporneas, como Elomar, Clvis Pereira, Tarcsio Lima, Eli Eri Moura e um de
seus fundadores, Liduno Pitombeira, que o principal arranjador e compositor do repertrio
nordestino executado.
O trabalho do Syntagma apontado como uma das referncias importantes na
pesquisa de Kristina Augustin a respeito da presena da Msica Antiga no Brasil, a qual nos
referimos no captulo anterior. A autora destaca a possvel influncia da msica armorial na
proposta do grupo, em reunir os mundos passado e presente, em associar a sonoridade da
msica antiga com a msica regional. Baseada em conversas com Pitombeira, Augustin
exemplifica a forma como o Syntagma realiza tal ligao musical:
Segundo Liduno as caractersticas harmnicas modais e a similaridade dos
timbres so o elo entre as duas pocas to distantes. O som da flauta-doce
encontra similar nos pfaros, a sonoridade do cravo faz lembrar a da viola de
dez cordas, e as melodias tocadas no saltrio se assemelham s da ctara.
(AUGUSTIN, op. cit., p. 102-103)
Por outro lado, seu olhar para a msica popular nordestina rendeu-lhe um verbete no
Dicionrio Houaiss da Msica Popular Brasileira (2006, p. 716), donde se percebe uma
ambivalncia em sua classificao, ainda que em pequena quantidade, por parte da literatura
especializada.
4.1 Um laboratrio musical: experincias camersticas
O projeto inicial do Syntagma envolvia tambm pesquisa em msica antiga, grupo de
estudos, tradues de textos, organizao de palestras e cursos abertos comunidade, alm de
recitais, oficinas, seminrios etc., realizados pelos prprios membros ou por professores e
msicos convidados de diversos lugares do Brasil. Para viabilizar estas atividades, os
integrantes da poca
128
criaram a Associao dos Amigos da Msica Antiga (AAMA), que
perdurou at 1998, ano da sada de Pitombeira do Cear
129
.
A AAMA consistia em uma entidade sem fins lucrativos, com o intuito de:
promover e divulgar a msica antiga, incentivando ao mesmo tempo o
estudo, a pesquisa ou quaisquer atividades relacionadas ao exerccio da
128
Em 1988, Anamaria Conde, Angelita Ribeiro, Ceclia do Valle, Csar Moura, Cludia Leito, Henrique Torres,
Liduno Pitombeira, Nara Vasconcelos e Vlder Freire.
129
Para estudos de ps-graduao na rea de Composio e Teoria Musical em Louisiana, nos Estados Unidos.
109
mesma. (...) Cumpre ainda AAMA promover o seu intercmbio com
entidades de carter cultural, e, em especial aquelas ligadas Msica
Antiga
130
.
Alm das mensalidades dos scios, a AAMA podia receber doaes e patrocnios de
rgos pblicos e empresas privadas, conforme certificado emitido pelo Ministrio da Cultura
em 22 de abril de 1988, e de acordo com a Lei 7.505/86, conhecida como Lei Sarney. Vale
destacar que a flautista do grupo Anima, Valria Bittar, realizou um workshop
131
direcionado
ao Syntagma. Relembrando as atividades e as trocas de experincias, Valria conta:
O Liduno me mostrou um monte de msicas que ele tinha feito arranjos, arranjos
super bem feitos, eles tocaram. Ento, eu trabalhava de manh, de tarde e de noite,
individualmente e em conjunto, nessa semana, a gente fez um concerto juntos, o
David [Castelo], eu, a Duda [di Cavalcanti], acho que o Liduno tocou tambm, l no
Theatro Jos de Alencar.
Desta forma, foi possvel ao grupo manter um intercmbio com os msicos de outros
estados, interessados em Msica Antiga, alm de obter material em livros de musicologia e de
partituras. Ainda por meio da AAMA, tornou-se vivel adquirir os instrumentos antigos
como o cravo, o saltrio, o Krumhorn, alguns instrumentos de percusso, algumas flautas
doces, alade etc. A aquisio de outros instrumentos, bem como a manuteno daqueles
dependia, e ainda depende, da iniciativa e investimento pessoal dos integrantes. Valder Freire
era um dos membros com maior entusiasmo quanto pesquisa e performance em Msica
Antiga. Doutor em Fsica, com intensa produo cientfica, aproveitava as viagens acadmicas
para adquirir diversos instrumentos antigos em vrias partes do Brasil e da Europa, como por
exemplo, cornetos (soprano e contralto), cornamuse (tenor), viola da gamba (baixo), harpa
cltica etc. O Syntagma podia, ento, utilizar estes instrumentos, at 1997, ano da sada de
Valder do grupo.
A maioria destes instrumentos antigos eram inditos nas formaes camersticas do
Cear. Embora no haja registros oficiais, provvel que os nicos cravos existentes no estado
sejam os encontrados na residncia da atual cravista, Vernica Lapa
132
. O primeiro um
modelo Taskan, com dois manuais, de Abel Vargas, adquirido pelo grupo atravs da
associao, e atualmente no est sendo utilizado, pela dificuldade de transporte e necessidade
130
Texto retirado do estatuto da associao (captulo 1, art. 1), publicado pela Imprensa Oficial do Cear, em 2 de
junho de 1988.
131
Nem os integrantes nem Valria se recordam da data ou a durao precisa, mas a flautista acredita que tenha
sido por cerca de uma semana, no incio dos anos 90, em 1991 ou 1992 (de acordo com entrevista concedida em
15 de feveveiro de 2007, em Campinas-SP). Encontramos no acervo uma carta informal da flautista Valria Bittar
ao ento componente do Syntagma Liduno Pitombeira, datada de 20 de maio de 1993, com informaes valiosas
sobre a troca de experincias entre os grupos.
132
No Cear, Piau e Maranho, que eu saiba, s existem esses dois, afirma Vernica, em entrevista realizada
em 09 de maro de 2006, em Fortaleza-CE.
110
de manuteno. O outro pertence prpria cravista, modelo de Roberto de Regina, e vem
sendo utilizado por ser um modelo mais prtico e menor.
Desde sua aquisio, os ensaios passaram a ocorrer em funo da localizao do
cravo. Atualmente, ocorrem na casa da cravista, onde fica tambm a maior parte do acervo de
partituras do grupo. Porm, podem acontecer tambm ensaios especficos com o grupo de
flautas. Cada membro possui uma pasta com suas partes individuais, mas a grade completa fica
no acervo, e quando um membro sai do grupo devolve a pasta.
O cerne instrumental do grupo o conjunto de flautas doce. O Syntagma apresenta
uma variabilidade grande na participao de integrantes. Dentre amadores, estudantes e
profissionais de msica, desde sua fundao, mais de cinqenta pessoas j passaram por ele,
nestes vinte anos
133
. Atuante em um estado com poucas orquestras, o grupo se orgulha de
servir como um laboratrio de prtica musical extra-acadmica para diversos profissionais
que dele fizeram parte. O convite aos integrantes, em geral, feito de forma flexvel, em
termos como gostaria de experimentar?, e os que gostam permanecem, j os que no se
adaptam ou no podem se dedicar, por outros afazeres, acabam por ser substitudos. Heriberto
Porto, diretor do grupo desde 1998, explica este funcionamento da seguinte maneira:
Todo novo que entra, entra pra ter uma experincia, pra ver se gosta, pra ver
se d certo. Ento, funciona assim, eu acho que de uma maneira informal
uma escola, quer dizer, o antigo ensina o novo, ensina o repertrio, s vezes
o antigo tem tambm todo aquele prazer puxa, ele vai errar, vamos tocar
aquela msica (risos) a o novo vai errar naquele compasso que eu sei, a eu
vou ensinar pra ele como que , mesmo o antigo que no sabe muito,
aquele que no evoluiu muito, mas ele vai receber ali
134
.
Por mais que procurem manter uma coerncia na proposta, tal rotatividade de
material humano interfere significativamente nos resultados de sua prtica musical, nas
escolhas repertoriais, instrumentais e operacionais. Observamos, por exemplo, a orientao de
um repertrio antigo mais voltado para o perodo barroco e renascentista e menos para o
medieval, a partir de 1998, o que pode ser constatado pelas msicas selecionadas para gravao
dos CDs. Alm disso, a rotatividade tambm insere no autoreconhecimento do grupo uma
funo de escola aos seus integrantes, idia apontada inclusive no texto do encarte do primeiro
disco:
O Syntagma tem sido, alm de um grupo de cmara, uma verdadeira escola
para uma grande quantidade de msicos que por ele tem passado e tambm
para os que atualmente o compem. E, essa escola, por ser de natureza
extremamente prtica, onde se vivencia o som, a performance no palco, a
133
A lista com os integrantes que j passaram pelo grupo est inclusa no anexo 2. Algumas fotografias com as
formaes diversas se encontram no anexo 3.
134
Entrevista concedida em 07 de maro de 2006, em Fortaleza-CE.
111
cultura adjacente produo musical e o prprio relacionamento de grupo ,
por vezes, mais eficiente que o ensino acadmico.
4.2 Entre o antigo e o novo: os tempos do grupo
O grupo possui dois discos lanados: Syntagma, em 1997 e Miracula, em 2005.
Ambos foram gravados em Fortaleza, graas aprovao de projetos enviados aos governos
estadual e federal, respectivamente. A viabilizao do primeiro disco deu-se pela Lei Estadual
de Incentivo Cultura n 12.464/95, conhecida tambm como Lei Jereissati, com apoio cultural
da Telecear, enquanto o segundo deu-se pela Lei Federal de Incentivo Cultura n 8.313/91,
ou Lei Rouanet, com apoio cultural do Banco do Estado do Cear e do Banco do Nordeste.
Devido ao disco lanado e todo o trabalho desenvolvido em 1997, o Syntagma foi um dos
indicados, na categoria de Msica Erudita, ao I Prmio Drago do Mar de Arte e Cultura,
criado em 1998 pela Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Cear e pela Fundao
Demcrito Rocha.
Os anos de 1997 a 1999 foram um perodo conturbado e produtivo, de fortes
mudanas e difcil assimilao para os integrantes. Aps o lanamento do CD, houve tambm
uma saturao do repertrio anterior e a vontade de renovar. Estas mudanas constituram uma
espcie de divisor de guas para os seus membros: eles costumam reconhecer e falar sobre um
Syntagma antigo e um Syntagma novo. Esta separao tambm foi observada e sentida por
um pequeno pblico fiel, que acompanhava a trajetria do grupo desde o incio.
Estas fronteiras temporais no so muito precisas na memria de cada integrante e
variam tambm na significao e valorao pessoal, tanto dos membros antigos quanto dos
novos, mas pode-se considerar como marco do fim do Syntagma antigo a sada de
Pitombeira, o ltimo membro fundador remanescente. Assim, os depoimentos sobre o tempo
antigo do Syntagma associam-se ao tempo da AAMA, tempo do Liduno, tempo dos
fundadores, tempo da Angelita Ribeiro
135
ou ainda tempo do primeiro CD. Para a maioria
dos membros, este tempo antigo valorizado com nostalgia, saudosismo e respeito. Os
integrantes que entraram no grupo ainda neste tempo antigo, conviveram com aquela
realidade anterior
136
e acompanharam a transio, muitas vezes conduzindo o grupo, pois eram,
de certa forma, considerados os antigos. So eles Heriberto Porto, atual diretor musical do
grupo, Jorge Santa Rosa (gambista), Solange Gomes (flautista) e Giovanni Pacelli (flautista).
Com exceo do ltimo, os demais permanecem at o presente.
135
Angelita deixou o grupo em 1991 para formar outro grupo camerstico, com proposta mais aberta e dedicada ao
repertrio da flauta doce em geral, o Ad Libitum.
136
embora apenas no final, a partir de 1994.
112
Como j foi dito, Valder deixou o grupo, levando seus instrumentos particulares. Os
outros instrumentos antigos, pertencentes ao grupo, necessitam de constante manuteno e
tornaram-se pouco viveis como prioridades de investimento. O grupo optou por manter, alm
das flautas, apenas a viola da gamba e o cravo. vlido ressaltar que a manuteno bastante
cara e complicada, pois no existem luthiers especializados nestes instrumentos no Cear. Isso
restringiu, de certa forma, as possibilidades de execuo da msica renascentista, embora no
tenha sido totalmente eliminada.
Por outro lado, a sada de Pitombeira e de sua esposa, a cravista Duda di Cavalcanti,
demandou a entrada de outros membros que acabaram configurando um novo perfil ao grupo.
Duda foi substituda por Vernica Lapa, o que possibilitou a mudana do cravo, sugerida pelo
novo flautista do grupo, o alemo Rainer Beckmann. Outros membros tomaram iniciativa de
fazer arranjos, como Heriberto Porto e Carlos Velzquez, que entrou um pouco antes de
Rainer. Velsquez era professor e violonista mexicano com grande conhecimento em Msica
Antiga, e ficou responsvel por esta parte artstica do grupo, enquanto coube ao Heriberto a
direo da parte nordestina. Rainer constatou que seria interessante ao grupo, com aquela nova
formao, orientar-se a um novo repertrio, configurando-se menos como conjunto medieval
ou renascentista e mais como uma orquestra de cmara barroca (grupo de flautas e baixo
contnuo). Entre ensaios, reunies e discusses, o grupo foi aderindo ao novo repertrio.
Conforme explica Rainer
137
:
Olhando para o grupo, os msicos, os instrumentos, todas as flautas doce
etc., eu achei que o repertrio mais indicado para este conjunto grande seria a
msica europia do fim do sculo 16 [sic] e da primeira metade do sculo 17
[sic]. O Carlos, Heriberto e eu acreditamos que uma diversificao do
repertrio seria uma possibilidade de inspirar o grupo novamente e tambm
de apresentar algo novo ao pblico.
Giovanni Pacelli teve uma participao importante neste perodo de renovao,
especialmente na parte administrativa, que conduzia com bastante competncia, segundo
depoimento de vrios integrantes antigos. O Syntagma, que sempre atuou como um grupo
independente e se manteve por recursos dos prprios integrantes, com raras ocasies de obter
cachs individuais - ainda assim, de valor baixo -, que no fossem para investir no prprio
grupo, com a compra e manuteno de instrumentos, fotocpias de partituras e livros,
confeco de figurino etc., viu-se, pela primeira vez, como um grupo mais profissional, no
discurso dos prprios membros. Ainda pela Lei Jereissati, em 1999, o grupo conseguiu apoio
da empresa Telemar e da produtora Modo Maior, de forma que os membros recebiam uma
137
Entrevista concedida via correio eletrnico, recebido em 08 de dezembro de 2006.
113
quantia mensal (como um salrio a um msico de orquestra profissional), alm de uma verba
para investir na manuteno e compra de instrumentos.
Conforme ressalva Heriberto, comentando sobre este perodo:
A partir do momento em que a gente recebeu umas ajudas, recebeu
patrocnios, teve as leis de incentivo, ento teve essa proposta de se
profissionalizar. Nunca chegou a ser totalmente profissional porque ningum
pode viver do grupo, n? Mas, nesses momentos, a questo de cobrar mais,
porque esses grupos de msica antiga, a histria mesmo desses grupos,
assim meio um diletantismo, n? Faz parte. uma msica menos virtuose,
talvez, do que a msica romntica, voc tocar uma dancinha medieval no
requer tanto estudo assim, ento tem essa parte mais diletante, n? E o grupo
sempre foi assim, as pessoas tavam estudando um instrumento, e passavam
pelo grupo pra ter uma experincia, ento por isso que tem esse entra e sai
138
.
De fato, a presena da subveno acarretou um maior compromisso dos integrantes
com ensaios, estudos tcnicos, apresentaes, diviso de tarefas e responsabilidades, inclusive
na divulgao. Criou-se a home page do grupo na Internet
139
. Jorge Santa Rosa fazia as edies
das partes de cada integrante em programas de computador. Com o dinheiro apurado nas
vendas do primeiro disco, encomendaram-se novas flautas (contraltos e tenores) ao luthier
paulista Roberto Holz, e Jorjo, como mais conhecido o gambista, viajou a So Paulo para
comprar as flautas e depois a Niteri-RJ, para adquirir uma nova viola da gamba
140
, j que a
antiga pertencia ao ex-integrante Valder Freire. Giovanni cuidava das questes administrativas
e financeiras, auxiliado por Solange. Rainer contribua com o suporte aos flautistas,
especialmente na tcnica musical. Conforme j foi dito, Velasquez fazia a direo musical
antiga e Heriberto, a direo musical nordestina. Na mesma entrevista citada anteriormente,
assim, lembra o diretor:
Era meio estranho, eu achava meio estranho porque a msica uma coisa s,
mas o Carlos, realmente, no entendia de msica brasileira e tambm era
estranho ele assumir. E, realmente, ele entendia mais de msica antiga, da
concepo, das articulaes, e foi um perodo interessante, ele trouxe uns
arranjos, ele fez uns arranjos, adaptaes de danas da renascena, e tinha
uma viso diferente.
Quando acabou o perodo das subvenes, houve uma reduo das atividades, e muita
dificuldade em manter o seu funcionamento. Rainer e Velsquez saram (o primeiro deixou,
inclusive, o Brasil), e depois de algum tempo tambm Giovanni. Heriberto assumiu
integralmente a direo musical, um tanto sobrecarregado. Solange colaborava com a parte
administrativa, s vezes, e fazia algumas produes para os concertos, enquanto Jorjo ajudava
nas edies das partes. Alm destes antigos, compunham o grupo Vernica Lapa (cravo),
138
Entrevista concedida em 07 de maro de 2006, em Fortaleza-CE.
139
http://syntagmaceara.vilabol.uol.com.br/index.htm
140
A viola o tipo baixo, modelo Jorge e Jofer, feita por Carlos Antnio Santos em 1987.
114
Nehemias dos Santos (clarineta e flautas), Mardnio Oliveira (flautas), Marcelo Holanda
(percusso), Mirella Cavalcante (voz e percusso), Marcelo Moreira (violo) e Joseilson
(flautas), que foi substitudo por mim em julho de 2002.
Esta nova formao gravou o segundo disco, trabalhando em conjunto durante pouco
mais de trs anos. Aps as gravaes, no processo de lanamento do CD, em 2005, houve outra
srie de alteraes, com a sada em cadeia de vrios integrantes que foram residir em outros
estados
141
. Em agosto de 2006, Mardnio tambm saiu. Tendo em vista a quantidade de
modificaes, Heriberto decidiu continuar as atividades com um grupo menor, e pesquisar
outros repertrios mais adequados. O diretor resolveu no procurar substitutos para a voz e o
violo, apenas para as flautas novos que tambm esto experimentando.
Ainda neste segundo semestre, Liduno Pitombeira e Duda di Cavalcanti retornaram
Fortaleza, e j manifestaram interesse em voltar ao Syntagma, mas ainda esto organizando a
nova vida. Durante os oito anos em que residiram nos Estados Unidos, o casal manteve contato
com os integrantes do grupo, acompanhando de longe suas realizaes, dando sugestes e, no
caso de Liduno, enviando composies para o grupo executar.
4.3 Contexto social: avaliao, valorizaes e dilemas
A atuao do grupo, em apresentaes, abrange a cidade de Fortaleza e alguns
municpios do interior do Cear. O Syntagma organiza e produz seus prprios concertos:
trabalha o repertrio, discute e prepara uma proposta temtica, escolhe o figurino, apronta a
estrutura completa do concerto. Estuda e negocia um local apropriado, preferencialmente
teatros, igrejas ou espaos adequados para concertos de cmara, preparando projetos, se
necessrio. Alm desta meta coletiva e constante de prtica musical, o grupo recebe muitos
convites para tocar em eventos pblicos ou particulares, e faz apresentaes em ambientes os
mais diversos, desde praas pblicas, congressos cientficos, encontros de empresrios, feiras
de livros e at mesmo em casamentos. Este tipo de apresentao representa uma situao
delicada de conflito interno para seus integrantes, pois embora no se configure no ideal de
atuao que o grupo procura, em geral, sempre uma oportunidade de divulgar o trabalho para
um pblico diversificado e leigo e tambm de obter algum retorno financeiro.
A satisfao em realizar concertos prprios de outra ordem: nestes, pode-se afirmar
que o pblico aquele que acompanha e valoriza a trajetria do grupo e os custos de produo
acabam sendo bem maiores do que a renda dos ingressos. As entradas para os concertos do
141
Nehemias, em So Jos dos Campos-SP; Mirella, em Braslia-DF; Marcelo Moreira, em So Lus-MA; e
Luciana Gifoni, em So Paulo-SP.
115
Syntagma, quando no so gratuitas, custam preos populares
142
. Seria arriscado afirmar que se
trata de um pblico especializado, mas, em todo caso, constitui-se de pessoas interessadas em
msica antiga e/ou nordestina, ou, como alguns comentam em depoimentos informais, pessoas
com vontade de ouvir um som diferente daquele veiculado dia-a-dia nas rdios e na grande
mdia, uma msica de qualidade. Sobre este pblico, por exemplo, Rainer conta suas
primeiras impresses
143
, quando, recm-chegado da Alemanha, assistiu ao concerto de
lanamento do primeiro disco, em 1997, a convite de Angelita: Achei impressionante demais
que tinha tanta gente no Theatro Jos de Alencar assistindo ao concerto de lanamento e
como ficaram entusiasmados!! Tudo era muito diferente do que na Europa... Na ocasio,
Angelita, que j no integrava mais o Syntagma, presenciava o resultado de um trabalho que
havia ajudado a fundar, enquanto Rainer se adaptava nova realidade, mal supondo que ainda
participaria daquele grupo diferente.
No caso dos eventos que o grupo participa como convidado, os cuidados e a
estratgia necessrios, seja com a acstica adequada formao instrumental, o tamanho e a
estrutura de palco, o transporte e afinao do cravo, a pontualidade, tudo fica aqum do
esperado pelos integrantes. Alm disso, eles tm o pleno entendimento que o pblico nem
sempre possui a expectativa de assist-los, e encontra-se naquele ambiente por motivos de
natureza bem diversa.
A estria nos palcos com a nova formao deu-se nos dias 27 e 28 de maio de 1987,
no Teatro Universitrio Paschoal Carlos Magno, em Fortaleza-CE. Na pgina seguinte,
apresentamos um mapa do Estado do Cear, destacando os municpios em que o grupo j
esteve.
142
Menos de R$ 10,00, o que equivale a, aproximadamente, cinco dlares.
143
Entrevista concedida via correio eletrnico, recebido em 08 de dezembro de 2006.
116
*Datas no confirmadas. Os integrantes possuem depoimentos divergentes sobre a atuao do grupo nestas cidades.
Desde a sua fundao, o trabalho do Syntagma vem adquirindo uma maior
visibilidade pela cobertura da imprensa local. Esta receptividade significativa ao longo dos
117
vinte anos e demonstra uma abertura e interesse da imprensa cultural de Fortaleza, visto que
apenas durante os anos de 1997 e 1998 o grupo contou com a assessoria dos profissionais da
AD2M Engenharia de Comunicao. A divulgao e o contato com os veculos de
comunicao, em geral, deram-se por iniciativa e organizao interna de alguns integrantes em
escrever releases e enviar aos jornais. Portanto, considera-se que a presena de um grupo como
o Syntagma nestes veculos representa um complexo campo de influncia, que passa por
critrios de noticiabilidade das rotinas produtivas de cada veculo, gosto pessoal dos jornalistas
e acessibilidade, e o valor simblico
144
agregado msica do grupo. Percebe-se que tais
caractersticas so mais fortes do que, como ocorre em muitos casos, um possvel prestgio de
ordem comercial ou mercadolgica, j que o grupo no est vinculado a nenhuma gravadora
grande ou intermediria, ou um selo independente, ou qualquer outra instituio ligada
indstria fonogrfica, como editoras de msica, distribuidoras, produtoras de eventos, estdios,
fbricas ou lojas de discos etc. Por sua vez, o grupo se utiliza das matrias dos jornais para
conferir grau de reconhecimento ao trabalho na elaborao de projetos, a fim de obter apoios
e/ou patrocnios. Alm disso, boa parte da mediao entre o grupo e o pblico passa pelo
contedo que divulgado pela mdia impressa ou eletrnica.
A maior parte das matrias impressas analisadas constam nos dois jornais de maior
circulao no estado do Cear: o Dirio do Nordeste e o jornal O Povo
145
. O Syntagma,
inserido nos assuntos musicais, , desta forma, abordado em seus cadernos culturais, Caderno
3 e Vida & Arte, respectivamente. Em geral, os jornais noticiam o grupo em dias iguais, com
matrias equivalentes. Isso ocorre porque eles detm critrios semelhantes de noticiabilidade,
portanto, apresentam um perfil editorial semelhante, e so concorrentes tambm em contedo,
de modo que um evita levar um furo do outro
146
, alm de ambos terem acesso aos mesmos
textos de release.
Lanamentos de discos e divulgao de espetculos funcionam como um servio
diverso, e esta perspectiva do entretenimento constitui a ocasio em que o grupo aparece nos
144
Conforme John Thompson (op. cit., p. 203): Valor simblico aquele que os objetos tm em virtude dos
modos pelos quais, e na extenso em que, so estimados pelos indivduos que os produzem e recebem isto , por
eles aprovados ou condenados, apreciados ou desprezados. A atribuio de valor simblico pode ser distinguida
do que podemos chamar de valorizao econmica .
145
Ambos so editados em Fortaleza e distribudos tambm em outros municpios cearenses. Em 2004, O Povo
possua uma tiragem mdia de 22.992 exemplares, enquanto o DN possua, na mesma poca, tiragem de mais de
40 mil exemplares, o que significa a maior tiragem da regio Nordeste. Este pblico leitor representa uma minoria
populacional, se observarmos que Fortaleza possua 2.374.944 habitantes, e o Cear, mais de 7 milhes, de acordo
com a estimativa do IBGE em 2005. Mesmo considerando variveis como taxa de analfabetismo, a possiblidade
de mais de um leitor por edio, e os leitores da verso eletrnica (via Internet), importante ressaltar que esta
relao entre a populao e as tiragens dos jornais pequena em todo o Brasil, no apenas no Cear. Estes dados
(extrados de: FRANA, 2006, p. 50) so relevantes para se dimensionar os limites destes veculos como
mediadores sociais.
146
Embora se reconhea que este receio do furo seja um fator-notcia bem menos importante no que diz
respeito ao jornalismo cultural, em relao aos cadernos de poltica ou de economia, por exemplo.
118
noticirios, entremeiado com uma variedade de opes para o leitor escolher. Embora boa
parte dessas matrias apenas transcrevem o texto do release, algumas contm entrevistas e
informaes essenciais para reconstruo histrica, bem como apresentam uma abordagem
particular interessante. Outro problema recorrente encontra-se na descrio dos integrantes:
devido grande rotatividade dos membros, os jornalistas, s vezes, consultam o arquivo do
jornal e tomam como base matrias e fotos anteriores, embora o grupo sempre envie material
atualizado. Ocorrem, tambm, erros de informao, pela dificuldade de lidar com o
vocabulrio musical especfico, fato mais comum no meio televisivo. Em matria de 1997,
sobre o lanamento do primeiro CD, do Jornal Jangadeiro
147
, o jornalista se refere a viola da
gamba como um violino, por exemplo.
Observa-se, nas matrias at 1990, aproximadamente, uma tendncia em apresentar
ao pblico no apenas a novidade do grupo mas o universo da Msica Antiga, como algo
diferente da realidade cearense. Os prprios ttulos dessas matrias so bons exemplos: O belo
som dos instrumentos medievais e renascentistas (O Povo, 20/09/1986); Msica antiga na
tica nordestina (id., 27/05/1987); e Msica clssica: o Cear tem disso sim (id., 19/05/1989).
Curioso, no mesmo jornal, edio de 05/02/1988, encontra-se uma matria com o ttulo Entre o
clssico e o extico som nordestino, que ao contrrio das outras, inclusive das televisivas,
inverte a condio de estranho para o som local. O texto, contudo, no apresenta muita
coerncia com o ttulo, e explica que a reinterpretao da msica antiga medieval dentro de
uma linguagem moderna e predominantemente nordestina a principal proposta do grupo
musical Syntagma. Cabe destacar que se trata de uma matria secundria, divulgando o
concerto do Syntagma como abertura para a atrao principal, da matria e do Theatro Jos de
Alencar naquela ocasio, o pianista Artur Moreira Lima.
Uma das mais completas sobre o grupo foi a reportagem de quatro pginas da revista
Veja, edio de 18/07/1990, intitulada O Nordeste barroco: um grupo de jovens recria a
msica antiga. Alm de apresentar uma pesquisa sobre o repertrio e vrias fotos, trouxe um
histrico do grupo e de seus integrantes at ento, as expectativas e os desafios, e ouviu outras
opinies, tanto do pblico como da crtica. Comenta ainda sobre sua proposta interpretativa:
Para alcanar o elo entre os estilos nordestino e antigo, os msicos do grupo
desenvolveram um processo de recriao baseado na semelhana de timbres
e modos existentes em ambas as formas musicais. A identidade entre as
msicas antiga e nordestina comea no prprio clima que envolve as
melodias. A msica nordestina usa harmonia contempornea com escalas
medievais.
147
Telejornal local da TV Jangadeiro, retransmissora da Rede Bandeirantes de Televiso, na poca (atualmente,
retransmite o SBT). Esta matria, alm de outras utilizadas nesta anlise, encontram-se compiladas em DVD,
incluso no anexo 1.
119
A partir do lanamento do primeiro disco, as matrias tratam o Syntagma com mais
intimidade: o grupo se consolida para os jornais, que se detm menos em explicar a
sonoridade e a proposta do grupo e mais nas suas realizaes, na agenda do dia. Em outras
palavras, pode-se considerar que as matrias iniciais pautavam-se, em geral, na questo o que
este grupo, afinal? e aps o CD passaram a responder: o que o Syntagma anda fazendo
agora?
Embora os veculos ofeream um tratamento imediatista e superficial em relao aos
produtos culturais em geral, no caso particular do grupo Syntagma existe uma positividade na
inteno da cobertura, no sentido de afirmar a cultura local, mesmo que no traga maiores
reflexes sobre as questes de identidade, ou sobre diretrizes estticas e/ou polticas. Assim, o
trabalho do grupo no configurou, at o presente, qualquer questionamento ou polmica no
meio jornalstico. Alm disso, possvel observar o fenmeno da consonncia
148
na anlise do
tratamento da informao quanto ao Syntagma, ou seja, apesar de suas especificidades, os
veculos contm uma perspectiva e abordagem bastante semelhantes entre si.
A mediao menos elaborada e mais espontnea, com um alcance virtual mais
abrangente, entre os integrantes do Syntagma e o pblico, ocorre pela Internet. Alm de
divulgar as atividades, este veculo permite um contato informal entre os integrantes atuais e
antigos, e os apreciadores de diversas fases do grupo, bem como o conhecimento do trabalho a
novos interessados. O contato se d por meio de uma comunidade virtual, dentro da rede on-
line de comunidades e pessoas Orkut
149
, denominada Grupo Syntagma, que foi criada por Jorge
Santa Rosa, em 28 de agosto de 2005, em que atua um frum de discusso, com tpicos
criados pelos membros da comunidade
150
. Alm deste frum virtual, existe tambm uma
pgina na Internet
151
de divulgao de fotos, na qual os usurios podem escrever comentrios e
expressar opinies (fotoblog). Esta foi criada em maro de 2006 e vem sendo atualizada por
Heriberto Porto, contendo imagens das diversas formaes do Syntagma, desde o incio at as
mais recentes. A home page, criada por Jorjo, contm algumas informaes sobre a
proposta, o primeiro CD e alguns componentes, com fotos e msica (ao entrar na pgina de
apresentao do site, o usurio ouve um trecho de Algodo, de Luiz Gonzaga e Z Dantas, na
verso do Syntagma), mas o site no vem sendo atualizado.
148
Um dos conceitos que envolvem os estudos acerca da hiptese de agendamento dos meios de comunicao,
que verificam o estabelecimento, pelo contedo do que estes veiculam, dos assuntos tematizados pela opinio
pblica, e daqueles que ficam excludos ou silenciados.
149
<http://www.orkut.com>
150
At a data 17 de janeiro de 2007 havia 86 membros. O link direto para a comunidade :
<http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4566439> Para acess-la, o usurio precisa se cadastrar no Orkut.
151
<http://syntagma.nafoto.net/index.html>
120
Conforme se percebe pelas descries acima, o Syntagma possui uma atuao
independente em relao chamada Indstria do Entretenimento, que congrega os meios de
comunicao de massa e as tecnologias de difuso, nas sociedades modernas. vlido destacar
a dificuldade do grupo em se enquadrar nos moldes culturais reducionistas ou delimitadores
abordados no captulo anterior (p. 70), e a necessidade de adquirir uma postura malevel e
habilidosa para negociar espaos, seja na imprensa, seja nas relaes com as instituies
governamentais, com o mercado empresarial para conseguir subvenes ou ainda na viso
massificadora e excludente da indstria cultural. Ao contrrio do que ocorre com os artistas
ligados indstria fonogrfica, o grupo no recebe ampla veiculao na mdia, por meio de
investimentos em promoo e comercializao. Sua msica no obedece lgica da cultura
estandardizada, conforme os preceitos daquela indstria, ou seja, uma lgica de reproduo em
srie, comercializao e difuso de produtos por meio de diversos suportes tcnicos (CDs,
DVDs etc.) com vistas ao consumo em massa, no apenas de seus produtos mas de outros
segmentos relacionados (moda, literatura, cinema etc.).
Embora a gravao dos CDs possibilite uma ampliao do acesso ao trabalho
desenvolvido, o tipo de msica interpretada no comercial, do ponto de vista mercadolgico.
Por outro lado, o grupo possui autonomia e responsabilidade integral por todas as etapas do
processo tcnico-artstico, no se submetendo a nenhum tipo de controle, comum nos contratos
com grandes gravadoras, por exemplo. Esta autonomia na conduo de suas prticas musicais,
de outro lado, proporcionam dificuldades na direo administrativa e oramentria. O primeiro
CD teve uma tiragem de apenas - ainda sob o prisma do mercado - mil cpias, que se
esgotaram em menos de um ano aps o lanamento. O grupo j procurou apoio com
empresrios locais (de Fortaleza-CE), em alguns momentos, para sua reimpresso, pois os
pedidos para compra so constantes, mas no obteve xito nas negociaes. Por sua vez, a
tiragem do segundo CD foi de cinco mil cpias, das quais 20% deveriam ser doadas aos
patrocinadores. O disco pode ser adquirido com os integrantes, e em algumas lojas
especializadas de Fortaleza e de So Paulo. A caracterstica de (re)criar tradies permite uma
abertura junto s leis de incentivo governamentais, que apiam a cultura nacional.
4.4. O Nordeste do Syntagma
At o momento, apontamos que o Syntagma busca, em seu fazer musical, fazer um
elo entre o repertrio de Msica Antiga europia e a msica tradicional nordestina. Para
explicitar melhor o modo como estas referncias so utilizadas, descrevemos, a seguir, a
maneira como a temtica nordestina se faz presente em cada disco. A fim de melhor
121
contextualizar o recorte interpretativo, apresenta-se, antes de cada anlise, um quadro
descritivo com os dados gerais de cada disco
152
. A fim de aprofundar a questo das conexes
simblico-musicais intrnsecas com a leitura do grupo sobre o Nordeste, apresenta-se ainda
uma anlise da Incelena, primeiro movimento da Seresta N 9, de Liduno Pitombeira.
152
O mesmo procedimento se aplica ao grupo Anima, no captulo seguinte. No anexo 1, gravamos uma
compilao de msicas, em dois CDs de udio (um para cada grupo) que renem o repertrio que faz referncia
ao universo simblico nordestino.
122
4.4.1 Syntagma, o primeiro
Ano: 1997
Formao instrumental:
Duda di Cavalcanti: cravo
Giovanni Pacelli: flautas doce
Heriberto Porto: flautas doce e transversa
Jorge Santa Rosa: viola da gamba
Liduno Pitombeira: flautas doce, violo
Mirella Cavalcante: voz, percusso
Roberto Gibbs: percusso
Solange Gomes: flautas doce e transversa
Participaes especiais: Ana Maria Conde, Angelita Ribeiro, Cludia Leito, grupo musical Acorde, Henrique Torres, Lia
Parente, Mrcio Soares, Marcos Maia, Maria Helena Lage, Myrlla Muniz, Nara Vasconcelos, Ocello Mendona, Ricardo
Pereira, Valder Freire.
Msicas:
01 - Schaffertnz . Annimo medieval . 1:14
02 - Parti de Mal . Annimo medieval . 3:23
03 - Algodo . Luiz Gonzaga e Z Dantas, arranjo de Liduno Pitombeira . 3:47
04 - Basse Dance . Annimo renascentista . 2:32
05 - Saltarello . Annimo medieval . 1:26
06 - Variaes sobre o Juazeiro . Liduno Pitombeira . 5:21
07 - Pase El Agua* . Annimo renascentista . 1:48
08 - Allegro do Divertimento* . Giuseppe Sammartini . 2:48
09 - Baio . Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, arranjo de Liduno Pitombeira . 3:22
10 - Bransle . Annimo . 1:32
11 - Hoboeckentanz* . Annimo . 2:44
12 - Ajubete Jep Amo Mba . Liduino Pitombeira . 6:02
13 - Come Again . John Dowland . 3:52
14 - Courante* . Michael Praetorius . 2:04
15 - Cantiga* . Clvis Pereira . 5:07
16 - Kalenda Maya . Rambaudt de Vaqueiras . 3:45
17 - Qui nem Jil* . Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, arranjo de Liduno Pitombeira . 2:11
18 - Saltarello . Annimo medieval . 2:30
19 - Variaes sobre a Mui Rendra . Liduno Pitombeira . 4:58
Tempo total: 1:00:26
Gravao:
Direo musical: Heriberto Porto Pr-masterizao: Marclio Mendona
Tcnicos: Luis Wagner, Hamilton Silva e Jeovar Maia Produo: Letra e Msica
Mixagem: Marclio Mendona, Andr Motta e Liduno Pitombeira Local: Proaudio Studio, Fortaleza-CE
Direo musical e arranjos: Liduno Pitombeira Data: 1997
Data das faixas assinaladas (*): 1988
Outros instrumentos utilizados:
Alade, harpa, harpa cltica, cornamuse, saltrio, violoncelo, traverso
Dados do encarte:
Fotos: Celso Oliveira
Capa: Bookmaker Edies
123
4.4.1 Syntagma, o primeiro
O projeto deste disco remete aos fundadores, em 1988, quando algumas faixas
comearam a ser gravadas. Nesta poca, a partir da motivao com o trabalho camerstico,
Liduno passou a desenvolver um interesse e uma produo de arranjos e composies
dedicadas ao Syntagma. O fazer musical se define da seguinte forma, em texto do encarte,
escrito pelo prprio compositor: A recriao da msica antiga e a busca de relaes dessa
msica com as nossas origens nordestinas fazem a marca do Syntagma. Assim, a ordem das
msicas no disco procura mesclar os dois repertrios, como se traasse um paralelo. A msica
antiga no apresenta uma interpretao objetivista, mas tambm no h inteno explcita de
uma fuso interna com elementos musicais nordestinos. O grupo trabalha com a tradio
celebrizada no cancioneiro nordestino, pela voz de Luiz Gonzaga. Parte, portanto, do
enraizamento construdo e consolidado por este compositor e seus parceiros: um imaginrio
associado saudade e ao afeto do mundo sertanejo, com uma roupagem urbana e um carter
ldico.
Das dezenove msicas que compem o disco, sete possuem referncias nordestinas
explcitas. Destas, cinco so arranjos de Liduno Pitombeira: Algodo, Baio, Qui nem Jil,
Variaes sobre o Juazeiro e Variaes sobre a Mui Rendra. Sem letra, os arranjos
destacam os aspectos rtmico-meldicos com a expressividade do conjunto de flautas doce.
interessante observar que o repertrio vocal concentra-se na Msica Antiga, e os cantores
participam das msicas nordestinas auxiliando a percusso.
Por sua vez, o tema do Juazeiro contm trs variaes no arranjo de Liduno: a
primeira em tempo moderado, a segunda mais lenta e a terceira rpida. Estas Variaes,
juntamente com a da Mui Rendra por seu turno, com estilo de fantasia
153
mais que
variao -, possuem uma classificao delicada, de linha tnue entre o arranjo e a composio
original. As demais msicas so composies originais, uma ainda de Liduno, Ajubete Jep
Amo Mba, que significa qualquer coisa em tupi-guarani, e a outra Cantiga - de Clvis
Pereira, compositor representativo do Movimento Armorial.
Os arranjos de Liduno desenvolvem elementos musicais em um formato hbrido, que
destacam a ambigidade entre a modernidade e a tradio, presentes na combinao entre a
linguagem modal e o rtmo do baio, das verses de Gonzaga. A msica do Syntagma, embora
feita em contexto urbano com fortes referncias ao sentido de tradio sertaneja, no se aplica
153
Inclusive, o ttulo Variaes sobre a Mui Rendra, conforme consta no CD, foi alterado para
Fantasia sobre a Mui Rendra, possivelmente durante uma reviso de seu catlogo de obras realizada
em 1999.
124
ao contexto musical de dana de salo. A fuso de elementos modernos e tradicionais
acontece como um aspecto semntico, interno da msica. Um dos recursos que Liduno utiliza
a escala octatnica, preferncia observada e apreciada por ele em compositores bem
diferentes, como Igor Stravinsky e Hermeto Paschoal. A partir do modo nordestino, ele
trabalha em torno desta escala de oito notas, desmembrando o segundo grau da escala. Por
exemplo, o modo sol-l-si-do#-re-mi-f-(sol) transforma-se na escala sol-sol#-la#-si-do#-re-
mi-f-(sol), permitindo que as regies sonoras percorram quatro tonalidades distintas: G, A#,
C# e E. Contudo, nas Variaes sobre a Mui Rendra, ele utiliza um outro recurso que rene
aspectos da harmonia tonal com a modal, trabalhada sobre a escala pentatnica, combinada a
uma sobreposio rtmica enquanto o tema executado na flauta soprano em 3/2, as outras
vozes se mantm em 5/4.
125
4.4.2 Miracula, o segundo
Ano: 2005
Formao instrumental:
Heriberto Porto: flautas doce soprano, sopranino, e transversas em d e em sol
Jorge Santa Rosa: viola da gamba
Luciana Gifoni: flautas doce sopranino, soprano, contralto, tenor e baixo
Marcelo Holanda: percusso
Marcelo Moreira: violo
Mardnio Oliveira: flautas doce sopranino, contralto, tenor e baixo
Mirella Cavalcante: voz
Nehemias dos Santos: clarineta e flauta tenor
Solange Gomes: flautas doce soprano e contralto
Vernica Lapa: cravo
Msicas:
01 - Ductia . Annimo medieval . 1:30
02 - Sonatella . Antonio Bertali . 2:20
03 - When Daphne from fair Phoebus did fly . Annimo . 3:02
04 - Si Quaeris Miracula . Jos Joaquim Lobo de Mesquita, transcrio de Carlos Alberto Baltazar, adaptao de Carlos
Velasquez . 7:35
05 - Andante largo . 2:57
06 - Allegro . 1:44
07 - Andante . 1:32
08 - Moderato . 00: 27
09 - Allegro da capo . 00:53
10 - The Earl of Essexs Galliard . John Dowland . 2:15
11 - Sonata para sete flautas . Johann Schmelzer . 6:10
12 - Minueto . Alberto Nepomuceno . 3:46
13 - Sute Russana . Liduno Pitombeira . 3:58
14 - Pedras . 1:05
15 - Ing . 00:41
16 - Bonhu . 1:26
17 - Timbaba . 00:45
18 - Estrada de Canind . Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, arranjo de Liduno Pitombeira . 3:40
19 - Sutes Americanas N 1 . Tarcsio Lima . 11:11
20 - Galope . 2:20
21 - Ronda e Anunciao . 1:41
22 - Incelena . 2:58
23 - Estio e Arribao . 4:11
24 - Seresta N 9 . Liduno Pitombeira . 5:13
25 - Incelena . 2:04
26 - Desafio . 3:07
27 - Pedra Terra . Joo Lira e Nilton Rangel, arranjo de Heriberto Porto . 5:08
28 - Asa Branca . Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, arranjo de Liduno Pitombeira . 4:10
Tempo total: 60:20:00
Gravao:
Direo musical: Heriberto Porto Tcnico: Renato Pinto
Produo executiva: Henilton Menezes (Letra e Msica) Assistente: Michael Costa
Participao especial: talo Almeida (acordeo em Asa Branca) Local: Estdio Ararena, Fortaleza-CE
Data: 2004
Instrumental:
Cravo: Roberto de Regina
Flautas doce: Roberto Holtz; Yamaha; Moeck
Flautas tranversais: Muramatsu em d com cabea Lafin; Grassi, em sol
Percusso: sinos; guizo; caxixi; woodblock; pandeiro; derback; apito de pssaros; alfaia; tambores medievais
Viola da gamba: Jorge e Jofer
Violo: Jos Chagas
Dados do encarte:
Textos: Liduno Pitombeira, Heriberto Porto, Luciana Gifoni Capa: Concerto na Capela de Wurtemberg (1603)
Fotos: Tibico Brasil Design grfico: Bookmaker Edies
126
4.4.2 Miracula, o segundo
O disco apresenta treze msicas
154
e, diversamente do primeiro CD, que procurava
alternar os estilos musicais do repertrio, pode ser dividido em duas partes: uma de msica
antiga e outra de msica nordestina, que contempla seis faixas do disco. Inicia com uma dana
instrumental da Idade Mdia (sc. XIII) de formato semelhante estampie. Na verdade,
existem dois tipos de formas musicais a que se atribui este termo latino, ductia: a primeira seria
uma cano, tambm para homens e mulheres acompanharem danando, a respeito da qual
pouco se sabe sobre sua forma e modo de cantar; a outra, por sua vez, o tipo interpretado
nesta primeira faixa, cujos estudos sobre a forma e o modo de tocar encontram-se bem mais
desenvolvidos. Estas danas medievais dos sculos XIII e XIV podiam ser monofnicas ou
polifnicas, contendo entre quatro e sete sees, chamadas puncta, cujas frases meldicas se
repetem apenas com uma pequena diferena em cada terminao. O Syntagma toca uma ductia
a duas vozes
155
, formada por seis sees de quatro puncta cada. As trs ltimas sees (D, E e
F) podem ser consideradas variaes (A, B e C) das trs primeiras (A, B e C). A
interpretao do grupo repete estas seis sees duas vezes e explora as mudanas de sees e
variaes, contrastando quantidade de instrumentos, timbres e percusso. Assim, a primeira
exposio das sees apresentada com instrumental reduzido. As vozes so tocadas pelo duo
de flautas doces soprano e contralto, acompanhadas de uma percusso leve (woodblocks) nas
sees A, B e C, seguidas pelo bordo da viola da gamba a partir da seo B, e que nas demais
sees vai incorporando novos elementos e diversificando a rtmica dentro de um compasso
binrio composto, que se mantm do incio ao fim. Na repetio, entram o conjunto de flautas,
fazendo oitavas e quintas para enfatizar as sees.
Da Sonatella at o Minueto, com exceo da galliard de Dowland, o Syntagma
apresenta sua formao camerstica que costuma comparar s pequenas orquestras barrocas: o
conjunto de flautas e o baixo contnuo, executado pelo cravo, viola da gamba e s vezes, pelo
violo. A escolha da Sonatella e da Sonata para sete flautas so significativas, pois foram
compostas numa poca em que a forma sonata, no sentido clssico do termo, ainda no estava
completamente definida, de modo que possuem um interessante contraste dos pensamentos
harmnicos e contrapontsticos, ou por assim dizer, das configuraes verticais (sons
simultneos) e horizontais (sons sucessivos) da msica, respectivamente. Alm disso, estas
154
As msicas que possuem movimentos distintos (Si Quaeris Miracula, Sute Russana, Sutes Americanas n 1 e
Seresta n 9) tiveram suas partes separadas na contagem das faixas.
155
No sentido contrapontstico, duas linhas meldicas independentes.
127
peas so bem conhecidas do repertrio de cmara de msica antiga em geral, nas mais
diversas partes do mundo onde se pratica este som musical. No caso da pea de Schmelzer, a
gravao do Syntagma possui uma peculiaridade: por ausncia de sete flautistas, algumas
vozes foram executadas por outros instrumentos, dando um resultado timbrstico interessante.
Deste modo, a pea foi interpretada por flautas sopranino, duas sopranos, contralto, tenor, viola
da gamba, violo, e o cravo fazendo o contnuo.
A voz aparece pouco neste disco, em relao ao primeiro: apenas em When Daphne
from fair Phoebus did fly e no primeiro movimento da Seresta n 9. A primeira uma
conhecida cano da tradio oral inglesa (sc. XVI), que foi interpretada pelo Syntagma
atravs de uma combinao de arranjos. Inicia-se com a voz acompanhada pelo cravo e violo,
entoando a cano de modo livre e expressivo. Depois, entra o quarteto de flautas doces
(soprano, contralto, tenor e baixo) e percusso, que marca um ritmo mais acelerado, repetindo
a msica com a melodia na flauta soprano, que combina o arranjo annimo deste quarteto com
as variaes escritas por Jacob van Eyck, em 1646, para este tema.
O estilo polifnico renascentista est presente na galharda de John Dowland, tambm
conhecida como Can she excuse my wrongs (inspirada em uma cano popular inglesa), e que
encontrada na coletnea Lacrymae or seaven teares, de 1604
156
. A interpretao do grupo
reteve o sentido de dana animada caracterstico da galharda
157
, com auxlio da percusso, e as
cinco vozes (que seriam, originalmente, para alade e conjunto vocal) tocadas nas flautas
soprano, duas contraltos, tenor e baixo, dobrado pela viola da gamba.
Fruto da abertura da pesquisa repertorial aps o primeiro disco, a incluso das
composies de Lobo de Mesquita e Alberto Nepomuceno, interpretadas numa perspectiva
barroca, pode ser considerado, de certa forma, um gesto de ousadia do grupo. Esta inovao
talvez aponte caminhos alternativos na conduo repertorial do Syntagma, uma vez que est,
inclusive, enfatizado na escolha do ttulo do disco: Miracula. Entretanto, o ttulo pode sugerir
outras associaes, por exemplo, como lembra a cravista Vernica Lapa, diante das
adversidades enfrentadas em todo o percurso de idealizao do projeto, captao de recursos,
ensaios e gravaes, o disco saiu com a capa de Milagre, n? (Risos) Porque, realmente, foi
um milagre
158
.
156
A primeira publicao desta pea encontra-se na coletnea First Booke of Songes or Ayres of Foure Partes
with Tableture for the Lute, de 1597, que inovou por conter a escrita musical em tablatura, o que permitia uma
grande flexibilidade nos modos de se interpretar, inclusive nas combinaes instrumentais.
157
As interpretaes consagradas de alade solo so, em geral, mais lentas.
158
Entrevista concedida em 09 de maro de 2006, em Fortaleza-CE.
128
A pea de Lobo de Mesquita foi escrita, originalmente, para conjunto vocal (soprano,
contralto, tenor e baixo) e instrumentos
159
e pode ser encontrada no catlogo temtico do
acervo do Museu da Inconfidncia de Ouro Preto-MG. Trata-se do manuscrito n 129, sob o
ttulo Responsrio de Santo Antnio, santo protetor da cidade de Diamantina-MG, onde viveu
o compositor. Embora a adaptao de Carlos Velazquez tenha sido instrumental, o grupo
inseriu no encarte, de forma ilustrativa, o texto inicial da letra do responsrio. Por sua vez, a
pea de Nepomuceno faz parte da Sute Antiga para piano, de 1893, posteriormente transcrita
para cordas.
comum, nas apresentaes do Syntagma, inclurem no programa, uma parte mais
intimista, com peas de cravo solo ou pequenos ncleos camersticos, sejam duetos ou trios
destacados do grupo maior. Tal faceta est presente no disco em duas msicas do repertrio
nordestino, a Sute Russana e a Sutes Americanas n 1, ambas de compositores cearenses
contemporneos. A primeira foi composta em 1992, originalmente, para piano, e j havia sido
tocada em concerto pela antiga cravista do grupo, Duda di Cavalcanti, em uma fase anterior.
Vernica considerou apropriado reinterpret-la no cravo, e o grupo apreciou o resultado
sonoro, que se torna interessante tambm pela aproximao timbrstica com a viola de dez
cordas, utilizada pelos cantadores populares do serto. A pea foi assim descrita pelo
compositor, em texto explicativo presente no encarte do CD
160
:
Inspirada nos ciclos nordestinos de Marlos Nobre e dedicada ao meu caro
mestre e orientador Jos Alberto Kaplan, Sute Russana retrata as atmosferas
de quatro localidades do municpio onde nasci: Russas, no Vale do Jaguaribe.
Dos quatro movimentos, dois so associados melancolia da seca e ao
(sempre) triste entardecer (Bonhu e Pedras, situados numa regio distante do
rio Jaguaribe, onde nasceu minha me); e dois (Ing e Timbaba, situados na
regio onde nasceu meu pai) s festividades resultantes da fartura provinda
do rio Jaguaribe.
Conforme se infere a partir das observaes do prprio compositor, trata-se de uma
homenagem, sem qualquer remisso explcita de determinado gnero musical de tradio oral
nordestina, assemelhando-se bastante forma proposta no op. 5 de Marlus Nobre, 1 Ciclo
Nordestino, composto em 1960, tambm para piano. Os quatro movimentos exploram os
recursos dos modos nordestinos com um jogo de contraponto e imitao entre a mo direita e a
mo esquerda, com bastante uso de sncopes. Pedras e Ing utilizam o modo nordestino em F,
Timbaba o mesmo modo em D, e Bonhu utiliza uma combinao entre o modal e o tonal.
159
No manuscrito, Responorio de St Antonio/ Siqueris miracula/ Com 3 violinhos (sic) Trompas
Obos/ e Baxo/ [compos]to pr Joze Joaqm Eme[rico]. (MUSEU DA INCONFIDNCIA, 1991, p. 91) A
transcrio utilizada na adaptao do grupo de Carlos Alberto Baltazar.
160
Cabe uma observao sobre os comentrios das msicas contidos no encarte: com exceo da Sute Russana,
os textos das msicas antigas (at a faixa 10) foram escritos por mim, enquanto as demais, das msicas
nordestinas e do Minueto de Alberto Nepomuceno, foram escritas por Heriberto Porto.
129
A Sutes Americanas n 1 foi uma das primeiras msicas a integrar o repertrio
nordestino do Syntagma, em suas primeiras formaes, no final dos anos 80. Quase vinte anos
depois, o diretor musical Heriberto Porto encontrou-a no acervo do grupo e teve a idia de
recuper-la, incluindo sua gravao no disco. Composta em 1985, inicialmente, para duas
flautas transversas e violo, foi, logo em seguida, reelaborada para flautas doces, pois, de
acordo com o prprio compositor, a sonoridade destas seria mais adequada para o carter
buscado na pea: uma aproximao do Nordeste com as culturas amerndias, ou melhor,
perceber e integrar a msica nordestina ao contexto sul-americano.
Tarcsio Jos de Lima
161
denominou de Sutes..., no plural, porque pretende dar
continuidade a essa proposta temtica com outras formaes instrumentais. A idia central dos
quatro movimentos da pea trabalhar de maneira livre os ritmos populares sul-americanos, ou
seja, desvincul-los do seu sentido original de dana, e associ-los a alguns aspectos da cultura
nordestina. A interao das duas flautas, por exemplo, no Galope, Tarcsio compara poesia
dos repentistas, pela agilidade nas perguntas e respostas sobre um mesmo assunto (ou motivo
musical).
Movimento preferido do compositor, a Incelena traz a melancolia dos cnticos aos
mortos, de tradio oral muito presente no interior do Brasil - especialmente do Nordeste -,
colocada em ritmo de zamba argentina. Ao longo da pea, os motivos meldicos apresentados
no Galope so desenvolvidos de diversas formas, de modo a garantir a unidade entre os
movimentos. O segundo movimento uma aluso ao desafio de cantadores, cujo mote se
intercala com sees lentas que remetem incelena.
A Seresta n 9 tambm possui uma Incelena - que ser analisada adiante seguida
de um Desafio que, de acordo com o texto do encarte, apresenta um duelo de cantadores
intercalado por motivos lentos derivados do primeiro movimento. Este duelo representado
pelo conjunto de flautas.
Se, no primeiro disco, a ligao com o estilo armorial se deu pela incluso da Cantiga
de Clvis Pereira, o grupo mantm a referncia, neste segundo, a partir de um (re)arranjo,
adaptado por Heriberto Porto, de um arranjo feito por Joo Lira e Nilton Rangel, para
marimbau e cordas. O disco encerra com uma (re)criao de Asa Branca, em arranjo de
Liduno que traz, conforme o texto do encarte, um passeio por tons e timbres diversos, atravs
de uma interpretao contempornea do passado, alimentando a nostalgia do migrante em
relao ao serto.
161
Entrevista concedida em 29 de dezembro de 2006, em Fortaleza-CE.
130
pedido do grupo, Liduno Pitombeira escreveu o seguinte texto de apresentao
para o disco Miracula:
Em quase vinte anos de atuao, o Syntagma continua sendo uma proposta
de resistncia e um importante agente de produo cultural no Nordeste do
Brasil. Propondo-se a vivenciar, por uma leitura prpria e pela fuso esttica,
o elo que existe entre a msica antiga europia e a msica nordestina, o
Syntagma um grupo maduro que encontrou com independncia sua prpria
voz, apesar do emaranhado de problemas scio-econmicos que a todos
atinge, e um ponto de referncia ps-moderna nesse Nordeste armorial.
Esta sntese, exposta pelo compositor, contm pontos fundamentais para a
compreenso do fazer musical do grupo e sua leitura sobre o Nordeste, cujos elementos
retomaremos nas reflexes finais.
4.4.3 Seresta n. 9: Incelena
162
A Seresta n. 9 o opus 83 do compositor Liduno Pitombeira e foi dedicada ao grupo
Syntagma. Integra um ciclo de treze peas, para diversas formaes instrumentais, que se
propem a constituir um catlogo de danas, ritmos e gneros musicais do Brasil, no dizer do
prprio compositor. Segundo Pitombeira, este catlogo apresenta um carter mais abstrato e
menos rigoroso, do ponto de vista musicolgico, em relao queles gneros, ritmos e danas.
Quando a pea ficou pronta, em meados de 2004, o grupo j havia praticamente
definido o repertrio do disco Miracula e tambm j estava com as gravaes agendadas em
estdio. Alguns integrantes no acreditavam na viabilidade de se incluir uma msica nova, a
ser compreendida e ensaiada, e gravada com pouca familiaridade, ao contrrio do restante do
repertrio. Porm, logo na primeira leitura em conjunto, o grupo percebeu que valeria a pena
investir nesse desafio, intensificando o ritmo de ensaios e alterando o calendrio previsto
inicialmente. Os integrantes consideraram uma forte identificao desta pea com a proposta
do grupo, e tambm com a abertura aos novos estilos explorados no disco.
A composio contm dois movimentos, a Incelena e o Desafio. Na partitura de
Pitombeira, o primeiro movimento solicita a seguinte formao camerstica: cravo, saltrio,
viola-da-gamba, violo, flautas transversas I e II, clarinete em sib, flauta doce baixo, flauta
doce tenor e voz soprano. O saltrio no foi utilizado na gravao, pois o instrumento do grupo
precisava de manuteno, precisando trocar cordas e afinar. No segundo movimento, excluem-
se o saltrio e a voz e incluem-se as flautas doces contralto, soprano e sopranino, clarinete em
A, e percusso (tringulo, zabumba, e caxixi ou ganz).
162
A partitura completa da Incelena encontra-se no anexo 4. A interpretao do Syntagma encontra-se na faixa
17 do CD, incluso no anexo 1.
131
A incelena um tipo de canto fnebre presente nos rituais relacionados morte
conhecidos como sentinelas, vinculados tradio do catolicismo popular sertanejo.
Costumam-se entoar as incelenas nos rituais de velrio e enterro, em algumas cidades do
interior do Brasil, especialmente do Nordeste. Conforme Ewelter Rocha (2002, p. 32), a
sentinela inicia com a morte ou quando o estado do moribundo prenuncia poucas horas de vida.
Ocorrendo um destes casos, os donos do morto cuidam de providenciar a chamada de um
incelencero para puxar, ou seja, coordenar o rito. O autor destaca o uso da terminologia no
sul do Cear, na regio conhecida como Cariri: chamam-se benditos s msicas religiosas em
geral, de forma que as incelenas so tipos de benditos entoados no contexto fnebre
163
.
A Incelena de Pitombeira busca uma aproximao com esse universo religioso e
espiritual, no procurando reproduzir os mesmos cnticos dos benditos de uma forma
estilizada, mas colocando em relevo as questes fundamentais do rito: os contrastes entre o
mundo sagrado e o mundo profano, entre o cu e a terra, entre o divino e o humano.
A pea consiste na combinao de aspectos numerolgicos com os elementos
musicais, uma espcie de jogo entre os nmeros trs e quatro representando os universos
espiritual e material, respectivamente - na organizao das estruturas harmnicas, meldicas,
rtmicas e at mesmo nos aspectos formais. Conforme observa o prprio compositor, as
estruturas harmnicas no obedecem a uma lgica ou sintaxe de modelo tonal, de modo que o
estabelecimento de funes harmnicas no apropriado nesta anlise
164
.
Pode-se dividir a pea em trs sees: A (compassos 1-14), B (compassos 15-27 e C,
ou A(compassos 28-40), que retoma alguns elementos contidos na primeira seo. O
compasso ternrio, mantendo-se uniforme, sem alterao de andamento e andante (semnima
= 60).
Ao longo de todas as sees, as referncias espirituais e materiais so trabalhadas a
partir de dois elementos principais: o acorde aumentado e o acorde diminuto. Pitombeira
associa o acorde aumentado com a idia de espiritualidade, pois este acorde divide a oitava em
trs partes simtricas. No mbito simblico, estes trs elementos (as notas do acorde) podem
representar uma trindade, e, geometricamente, um tringulo eqiltero. Por sua vez, o acorde
diminuto associado ao nmero quatro, pois divide a oitava em quatro partes simtricas,
formando um quadrado. No dizer do compositor:
163
Mais especificamente, o uso do termo incelena tem duas acepes no Cariri: refere-se ao repertrio fnebre
cantado para a morte de criana, ou refere-se a um tipo caracterstico de bendito fnebre, que contm um texto
determinado que se repete de forma cclica, com apenas uma pequena diferena nas estrofes das rezas, com a
substituio do numeral um ou uma por dois ou duas e assim por diante, chegando, geralmente, at o
nmero doze.
164
Agradeo a colaborao de Liduno para a realizao desta anlise, cuja proposta toma como base,
substancialmente, anotaes fornecidas pelo prprio compositor, alm de diversas entrevistas via webchat.
132
A associao do quadrado (e portanto, do nmero quatro) com o terrenal
(efmero) se justifica pelo fato, observvel atravs de experimento, desta
figura geomtrica se transformar facilmente em losangos pela movimentao
de seus lados sem contudo alterar o comprimento destes mesmos lados. Esta
flexibilidade de movimento pode ser associada com mutabilidade e
instabilidade que so propriedades do mundo material. A rea, neste caso,
varia de zero at L
2
. O tringulo equiltero, por sua vez, uma figura
geomtrica que se mostra imutvel quando tentamos realizar o mesmo
experimento, isto , impossvel movimentar os seus lados lateralmente sem
alterar-lhes o comprimento. Tal imutabilidade se associa com as idias de
eternidade e espiritualidade
165
.
Para enfatizar esta idia de espiritualidade, os acordes aumentados so empregados
com movimentos cromticos ascendentes, representando o contraste entre o ser humano e o ser
celestial, e ao mesmo tempo a vontade e necessidade de aproximao entre essas duas esferas,
por parte dos homens. Alm disso, o uso de intervalos curtos e cromticos tem uma conotao
de melancolia, projetando a tristeza inerente ao ritual fnebre.
Observa-se, a seguir, como estes elementos destacados no plano harmnico so
organizados na primeira seo da pea. O clarinete delineia em sua melodia, do incio da pea
at o compasso 11, toda a linha cromtica:
Nos quatro primeiros compassos, juntamente com a progresso harmnica de acordes
aumentados, enquanto o cravo refora no baixo a linha cromtica do clarinete, a flauta
transversa I detm a melodia principal com a nota l que vai crescendo de um p a um mf.
Neste momento, inicia-se uma progresso em quartas no baixo (cravo) e a flauta transversa II
passa a acompanhar a linha cromtica do clarinete, mas por um intervalo de quarta diminuta
em relao quele. Observe o exemplo:
165
Esboo analtico realizado pelo compositor de modo informal, enviado por email em 15/04/2006.
133
Aps esta progresso no cravo, nota-se um adensamento do uso das quartas
aumentadas e dos cromatismos (compassos 9-12), com uma configurao que vai se tornando
cada vez mais complexa, ao mesmo tempo em que a dinmica exige um descrescendo. Ao fim
da seo, o compasso 13 se apresenta em franco contraste com aquele adensamento: um acorde
de f, sem a presena da tera. Tal simplicidade reforada no compasso 14, que prepara a
entrada da voz na segunda seo, e tambm nos sugere uma sonoridade medieval. Deste modo,
as flautas tenor e baixo fazem a quinta do acorde (d) enquanto os demais instrumentos tocam
a fundamental (f). Reproduzimos, a seguir, o trecho em questo:
134
interessante observar, durante esta configurao harmnica at a entrada da voz
(compasso 15), os contornos meldicos que se sobressaem, percorrendo timbres e alturas entre
a flauta transversa I, a flauta baixo e a flauta tenor. A melodia da flauta transversa I ser
retomada na ltima seo, como elemento conector desta com a seo B, a partir do compasso
25. O contorno meldico apresenta, ao longo da pea, sempre intervalos curtos: alm dos
cromatismos, trades maiores ou menores, quartas aumentadas, quintas justas etc., sendo o
maior intervalo a sexta.
A seo B se inicia com um vocalise mp (compasso 15) que confirma a sugesto da
sonoridade medieval: todos os instrumentos fazem pausa para este tema vocal, apenas a gamba
e o cravo acompanham com a nota f como se fosse um bordo. Por outro lado, a voz tambm
pode sugestionar a entoao dos cnticos de benditos, mas nem a escrita de Liduno nem a
interpretao do Syntagma buscam caricaturizar esta possvel aluso: a cantora interpreta a sua
maneira. A linha meldica da voz comea com o l bemol, que seria a tera menor daquele
acorde anterior. Este tema relembrado na ltima seo, a partir do compasso 35, mas com o
135
l natural, no mais constituindo uma tera mas sim a fundamental, terminando a pea em l
menor.
Os instrumentos reaparecem no compasso 17, retomando o adensamento harmnico
j explicitado no compasso 9. Pitombeira afirma que os compassos 18 a 24 constituem o cerne
da seo B e, de nossa parte, consideramos tambm o cerne de todo este primeiro movimento,
especialmente entre os compassos 19 e 22. At este momento, a organizao dos arqutipos
harmnicos
166
obedeciam a uma lgica consciente e particular do compositor, por assim dizer.
As analogias feitas com os numerais trs e quatro, e entre as formas geomtricas tringulo e
quadrado com as esferas divina e terrena, esto ligadas formao pessoal de Pitombeira, aos
seus estudos esotricos (especialmente a teosofista Helena Blavatsky) e ao gosto pela
geometria. A identificao com a incelena nordestina aparecia por (a) uma inteno de carter
sugerida pelo ttulo do movimento, e (b) as conexes simblicas entre as estruturas musicais e
os contrastes dos planos espiritual e material. Porm, nos trechos indicados, percebe-se um
dilogo, por parte do compositor, com outros arqutipos culturalmente consolidados, que se
relacionam tanto com a idia de morte como com o imaginrio nordestino.
Para afirmar o sentido de morte do canto fnebre, Pitombeira utiliza como modelo a
estrutura arquetpica conhecida por plos hexatnicos, um recurso para representar relaes de
sobrenaturalidade, morte, magia e paradoxos espirituais, presente na obra de compositores das
mais diversas pocas e tendncias, como Carlos Gesualdo, Joseph Haydn, Richard Wagner,
Edvard Grieg, Giacomo Puccini, Richard Strauss, Arnold Schoenberg, dentre outros. A
estrutura consiste na organizao de seis notas distintas, que por sua vez constituem seis
acordes distintos, dispostos em um crculo, de modo que os acordes adjacentes possuam apenas
uma nota diferente entre si
167
. As notas utilizadas por Pitombeira para formar os acordes e sua
estrutura arquetpica so: sol, si b, si, r, mi b, fa#. Conforme se observa no grfico abaixo,
feito pelo prprio compositor, os acordes que no apresentam notas em comum encontram-se
situados em plos opostos, por isso considera-se que estes acordes formam um plo
hexatnico.
166
A noo de arqutipos harmnicos entendida como relaes harmnicas culturalmente j guardadas na
memria auditiva (repertorial) da msica ocidental, memria auditiva esta viabilizada pelas suas recorrncias ou
pelos significados que tais entidades adquiriram na histria. (Menezes, 2002, p. 314)
167
Pitombeira toma como referncia para o conceito de plos hexatnicos o artigo de Richard Cohn, Uncanny
Resemblances: Tonal Signification in the Freudian Age, do Journal of the Americam Musicological Society, vol.
57, n 2 (Summer 2004): 285-323.
136
Este arqutipo aparece combinado com o desenho meldico do modo nordestino, uma
referncia intencional e explcita, colocada nas linhas do clarinete, flauta transversa I e cravo
nos compassos 21 e 22. Reproduzimos, abaixo, o trecho em questo e o modo a que se refere:
Existe uma preparao para este momento central da pea que interliga musicalmente
as idias de morte e de Nordeste. O vocalise repete o desenho meldico do compasso 15, mas
um tom acima, atingindo o ponto culminante no compasso 19. Ainda neste compasso, vale
ressaltar a entrada do violo, que at ento no havia tocado, e que executa os acordes
destacados no diagrama dos plos hexatnicos explorado por Pitombeira (si menor e mi bemol
maior). Logo aps o desenho do modo nordestino, no qual executa o sol maior com stima no
baixo, o violo reproduz a relao dos polos hexatnicos, entre si menor e mib maior
137
(compassos 23 e 24). Exemplificamos a sequncia completa do violo, no trecho abaixo, entre
os compassos 21 e 24):
Pitombeira afirma que esta relao o ponto central da pea em termos de
inteligibilidade quase verbal, uma vez que a razo de ser do movimento se chamar incelena
(canto fnebre do Nordeste).
No compasso 20, a linha da flauta tenor, da viola da gamba e do cravo fazem uma
quiltera, que de acordo com o compositor tem um sentido todo especial. A quiltera 4:3 expe
a dicotomia do terrenal versus celestial, fechando uma sonoridade de stima diminuta que foi
preparada em larga escala. O acorde (si, sol#, f, r) veio sendo constitudo horizontalmente
nos compassos 1, 10, 15 e 20, no qual finalmente se completa, tornando ainda mais denso o
jogo dos elementos simblicos. Reproduzo, abaixo, uma distribuio harmnica reduzida
destes acordes em tais compassos, para melhor compreender a referida sonoridade:
Ao mergulharmos na estrutura ritual da sentinela, no seria arriscado propor um
paralelo entre a anlise do rito com a anlise deste movimento. No contexto fnebre do serto
nordestino, o ritual em que se entoam as incelenas pode ser dividido em trs partes: antes da
morte, quando se entoam os benditos de chegada, que se voltam para uma comunicao com a
famlia; durante a morte, quando se entoam os benditos de exaltao, que procuram estabelecer
uma comunicao com o moribundo; aps a morte, quando se entoam os benditos de parte fixa
(Tero dos Mortos, Ladainha, Salve Rainha e os benditos entoados at a despedida do caixo),
que buscam uma comunicao com o divino. Rocha (op. cit., p. 45) explica que a segunda
fase da sentinela destina-se a despertar no moribundo a conscincia de seu estado de pecador e,
por conseguinte, proclamar a necessidade do arrependimento. Por isso, trata-se de um
138
momento ao qual os presentes devem prestar o mximo respeito e reverncia, em que at os
tipos de benditos entoados so especiais, diferenciados.
Embora no tenha sido conscientemente proposto por Pitombeira com base em um
estudo aprofundado da sentinela sertaneja, observamos uma aproximao simblica entre a
estruturao da msica e do rito, visto que ele tambm divide sua Incelena em trs partes, e
toma como pice do significado da composio a parte B, que corresponde ao clmax do rito
que busca representar a hora da morte. Em seu estudo, Rocha (id., p. 46-47) verifica, sobre
este clmax:
Os benditos desta etapa sempre relacionam a condio de pecador s dores
do inferno, contrapondo mais uma vez, sob uma perspectiva maniquesta, cu
e inferno.
168
A forma de cantar esses benditos retrata a inteno de levar uma
mensagem de temor ao pecador, sendo traduzida em tom imperativo. Embora
o receptor da mensagem seja, essencialmente, o moribundo, em funo da
narrativa minuciosa acerca do processo da morte que refora o temor da no-
salvao, reconhece-se a esses benditos uma importncia na converso dos
vivos.
Portanto, a essncia do rito e tambm da pea de Pitombeira -, conforme
descrevemos, consiste no relevo das instncias humana e divina, na relao paradoxal entre a
terra e o cu, em um sentido religioso. Persiste em uma idia de morte associada idia de
eternidade, mantendo esta idia rica em onipresena e fora de evocao, um tipo de prtica
cultural cada vez mais distante da realidade social burguesa e urbana
169
. Desta maneira,
percebemos, nesta composio, algumas conexes com as tendncias ps-modernas -
multiplicidade de elementos musicais justapostos, abertura de influncias, preocupao com o
mbito esttico e com o jogo simblico porm, tais conexes, em vez de possurem uma
perspectiva relativista do significado da morte, ou rejeitar os valores de uma tica mundana,
pelo contrrio, valorizam este aprofundamento da identidade e de uma prtica ritual
significativa para o nordestino do serto, buscando trazer o sentido denso de sua tradio para
outro contexto, fazendo-nos olhar para ela, com a possibilidade de refletir a respeito.
168
Cabe salientar que, embora a crena no purgatrio seja fortemente disseminada na regio, os benditos fnebres
sempre operam numa ptica maniquesta, sendo o no ir para o cu correspondente ao ir para o inferno.
169
Conforme j observara Benjamin (1994, p. 207-208) em meados dos anos 30, no texto O narrador.
Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. O autor afirma: Morrer era antes um episdio pblico na vida do
indivduo. (...) Hoje, a morte cada vez mais expulsa do universo dos vivos. Antes no havia uma s casa e quase
nenhum quarto em que no tivesse morrido algum. (...) Hoje, os burgueses vivem em espaos depurados de
qualquer morte e, quando chegar sua hora, sero depositados por seus herdeiros em sanatrios e hospitais. Ora,
no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existncia vivida (...) assumem pela
primeira vez uma forma transmissvel. Assim como no interior do agonizante desfilam inmeras imagens vises
de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecvel aflora de repente em
seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo
possui ao morrer, para os vivos em seu redor.
139
4.5 Syntagma nordestino: leituras possveis
Do ponto de vista scio-histrico, possvel redimensionar a presena de um grupo
como o Syntagma em Fortaleza por duas perspectivas: do ambiente universitrio e da tradio
cultural da cidade em relao ao ensino bsico de msica. No final da dcada de 70, um grupo
de professoras
170
do Departamento do Artes da Universidade Estadual do Cear teve a idia de
ampliar o ensino da Msica Antiga para alm dos conhecimentos tericos aplicados na
disciplina de Histria da Msica, fundando o grupo de flautas doces Kalenda Maia. A maioria
dos fundadores do grupo participaram deste grupo, em momentos distintos nos anos 80:
Angelita Ribeiro, Nara Vasconcelos, Anamaria Conde, Valder Freire e Lia Parente.
A iniciativa desta formao auxiliar no nvel superior, com a experincia camerstica,
pode se ligar grande estima cultural do povo cearense observada em relao aos instrumentos
de sopro, e s flautas em particular. As bandas de pfaros so comuns na prtica musical de
tradio oral, principalmente na regio do Cariri, sul do estado, e a flauta doce um dos
instrumentos mais utilizados na musicalizao infantil, tanto nas escolas convencionais quanto
em projetos chamados sociais ou culturais, efetuados pelos governos do estado ou de
municpios. Porm, vlido destacar que, apesar destes aspectos culturais importantes, a
formao musical oferecida dentro do estado seria insuficiente para explicar a complexidade
artstica a que se prope o grupo. Mesmo porque, como foi colocado no captulo 2 (p. 43) a
respeito da construo de identidades culturais, com base nas reflexes de Eagleton, tais
elementos apreciao e utilizao de pfaros e/ou flautas doce -, embora sejam
caractersticos, de longe no se constituem exclusividade do estado cearense.
Para constituir o repertrio de msica antiga, por exemplo, so inmeras fotocpias
de partituras e livros, obtidos com qualquer integrante ou conhecido que sasse do estado, ou,
sendo de fora, para l se dirigisse. Na parte da tcnica e da educao formal tambm, a maioria
dos integrantes buscam cursos em outros estados ou pases, de duraes curtas, mdias ou
longas. Estes intercmbios culturais so fundamentais para o crescimento musical do grupo.
Em depoimentos informais do pblico aps as apresentaes, quando eu fazia parte
do grupo, algumas pessoas comentavam que a sonoridade aguda das msicas medievais,
especialmente das flautas sopranos e sopranino (e sopranininho), lembravam o som dos pfaros
caririenses. Embora ainda se possa afirmar, com muita cautela, que a preferncia ou a escolha
deste padro mais agudo nas interpretaes das msicas medievais seja explicado por uma
170
Inicialmente, Elba Braga Ramalho, Eunice Moura e Hulda Lima Lage. Pouco tempo depois, incluram-se
outras participantes neste projeto, como Vanda Ribeiro Costa, Mrcia Pinto, Ambrosina Furtado e Leilah
Carvalho. As professoras Vanda e Mrcia faziam arranjos de repertrio tradicional nordestino para o grupo de
flautas. importante registrar que Vanda Ribeiro Costa foi professora de harmonia de Liduno Pitombeira.
140
referncia cultural forte, presente no imaginrio oitivo do lugar, no acreditamos que tal
associao seja musicalmente garantida. O grupo busca interpretar, com um entendimento
contemporneo, o que seria uma ductia, um saltarello ou qualquer outra dana medieval. Tal
fato tambm ocorre com as peas renascentistas e barrocas europias. Deste modo, a
aproximao do universo antigo europeu se d a partir das prprias msicas nordestinas, nunca
o contrrio, e este referencial interligado a outros, e apresentado de uma forma
contempornea. Outro campo de aproximao, extramusical, se d pela organizao curatorial
dos discos, pela unidade da formao instrumental para os diversos tipos de repertrio e pelos
discursos encontrados nos encartes, importantes pra compreender a vivncia musical dos
integrantes.
Em releases e declaraes imprensa, ao longo destes vinte anos, vrios integrantes
utilizam a expresso msica nordestina autntica para se referir ao repertrio que o
Syntagma toma por base para suas recriaes. Questionei o significado desta autenticidade na
viso de dois integrantes, que possuem presena marcante como lideranas, Liduno
Pitombeira e Heriberto Porto. Segundo Pitombeira:
Msica nordestina autntica, na minha opinio, um tipo de msica que
utiliza as sonoridades (ritmos, melodias e harmonias) folclricas e modais do
Nordeste brasileiro. Sonoridades folclricas so encontradas em
manifestaes musicais como o cco, o xaxado, o baio, o arrasta-p, o
frevo, o maracatu etc. Sonoridades modais utilizam os modos utilizados
nestas manifestaes folclricas, ou seja, (1) o mixoldio, (2) um modo
hbrido que combina mixoldio com ldio (C-D-E-F#-G-A-Bb-C),
denominado modo nordestino e (3) o modo drico. Msicas produzidas no
Nordeste que tm uma tendncia predominantemente tonal e um objetivo
simplesmente comercial (descartveis) no interessavam ao Syntagma na
poca, e eu acho que no interessam hoje. Como eu no conheo com
profundidade musicolgica os critrios que definem uma obra descartvel e
uma melodia pobre (se que existe definio cientfica nessa rea) delicado
separar um Luiz Gonzaga de um Calcinha Preta
171
.
Por sua vez, Heriberto Porto tece algumas reflexes sobre a leitura que o grupo faz da
msica nordestina:
Quando eu comecei a tocar essas msicas nordestinas, eu percebi que elas
no eram tanto modais, no eram completamente modais como a gente v a
cantoria, como a gente v alguns galopes, aquelas incelenas, aquelas coisas
bem tradicionais, aquelas coisas da msica tradicional que bem modal, que
tem aquele modo bem claro. Quando voc pega o Luiz Gonzaga, ele j faz
uma mistura, um modal tonal, n? O Baio, que a gente tocava era um modal
mais que mistura com o tonal, tem o Algodo tambm, que eu percebi que
era modal. Ento, tem essa coisa da msica modal, mas no aquela coisa
esttica, porque a msica do Luiz Gonzaga j anda um pouco, eu acho que
tem essa mistura na msica do Luiz Gonzaga. E as composies do Liduno,
uma coisa bem mais inspirada, numa linguagem mais recente. Tem os modos
171
Entrevista concedida por correio eletrnico, recebido no dia 18 de outubro de 2006.
141
nordestinos, esto ali bem presentes, mas vai mais longe. [...] A gente toca
uma msica contempornea, mas com essa cara, com muito contraponto e
mais outras coisas, como os ritmos, que inclusive na msica barroca era
muito presente esse, bom, no era polirritmo de uma maneira moderna, mas
tinha as emoles, as quebradas como se mudasse o compasso, n? No tem
aquela coisa na msica barroca tambm? Ento, eu no sei se isso muito
consciente, mas eu acho que muito legal, como se fosse uma polifonia
contempornea, aquela polifonia da msica antiga que acontece na msica
contempornea. diferente de outros grupos que resgatam mais a msica
tradicional, e a sonoridade, assim, armorial, das rabecas e tal, mas o grupo
aberto, ele no tem ah, ele vai ser isso e pronto e se acaba, no
172
.
O Syntagma desperta, em seu fazer musical, as imagens e enunciados de um espao
nordestino afetivo, um espao do serto, da memria, da saudade, em uma paisagem sonora
modal. Porm, estas representaes s se tornam possveis pela referencialidade associada a
este espao-identidade. Em sua proposta, a temtica nordestina se insere em uma afirmao de
identidade local (ou regional), mas no regionalista, pois seu trabalho no apresenta uma
perspectiva defensiva ou de legitimao de prticas tradicionais em um sentido poltico-
cultural. Ao contrrio, ele incorpora diferentes linguagens musicais, seja na diversidade
instrumental, dos repertrios ou dos elementos simblicos trabalhados nos arranjos e
composies.
A mescla da linguagem erudita com a popular se configura mais prxima esttica
armorial do que ao modernismo proposto por Mrio de Andrade. Esta aproximao
confirmada verbalmente pelo prprio Ariano Suassuna, quando o grupo se apresentou aps
uma palestra por ele proferida, por ocasio da abertura oficial da 5 Bienal Internacional do
Livro do Cear
173
, na qual o escritor era o principal homenageado. Sobre este episdio, cabe
um depoimento pessoal. Sabamos que Suassuna manifestara interesse em conhecer de perto o
grupo cearense sobre o qual ouvira falar, e alguns integrantes antigos recordavam que ele,
possivelmente, teria recebido o primeiro CD de presente. Pessoalmente, aquela era a segunda
vez em que me apresentava em pblico com o grupo, e sentia-me ansiosa e honrada com
aquela participao. Ao terminar sua palestra, houve um assdio e uma confuso em torno dele,
e as pessoas comearam a se dispersar. As conversas continuaram mesmo quando iniciamos a
verso de Estrada de Canind, que o autor se esforou para ouvir da platia. Quando a msica
acabou, ele se levantou e se dirigiu ao pblico, sem microfone, e manifestou a satisfao de
conhecer o trabalho do Syntagma, que tinha uma ligao com grande parte das idias sobre a
valorizao da cultura nordestina, s quais ele se referira na palestra, e que o pblico tinha ali a
oportunidade de presenciar. Educadamente, solicitou que falassem um pouco mais baixo
172
Entrevista concedida em 7 de maro de 2006, em Fortaleza-CE.
173
Ocorrida no Centro de Convenes Edson Queiroz, entre 4 e 13 de outubro de 2002. Participei desta
apresentao como integrante do Syntagma.
142
para que ele pudesse ouvir: nem precisava, pois todos se puseram em silncio to logo ele
comeou a falar. E assim, o concerto transcorreu, sem mais interrupes.
Ao contrrio do pensamento regionalista, no existe, no Syntagma, uma afirmao
discursiva contra o Sul ou contra a cultura de massa. Tampouco se observa um discurso
fraterno, tal qual os naturalistas, ou ainda integrador da regio com o nacional ou o universal,
como ocorrera no modernismo brasileiro. Ainda assim, sua leitura preserva o dilogo cultural
entre o outro e si mesmo, mas em uma perspectiva invertida da dominante: para o Syntagma, a
cultura nordestina o si mesmo. Podemos considerar que, de uma forma geral, a Msica
Antiga constitui o seu principal outro dentre outros desafios. O depoimento de Rainer
174
traz
uma percepo sutil do olhar deste outro, que compartilha internamente esta experincia com
os demais:
Antes de me mudar ao Brasil j conhecia vrias gravaes do Luiz Gonzaga
e de outros grupos forr p de serra [sic]. Fiquei logo apaixonado pelas
msicas e especialmente pelo som da sanfona. Gostei muito dos arranjos do
Liduno, desde o incio. Nunca me cansei deles. [...] Vi paralelos entre a
cantoria e a cultura dos troubadours, trouvres, Minnesnger etc. Falaram
tambm de paralelos entre as linguagens musicais, ambas de carter modal.
Mas no geral essa aproximao sempre tinha algo nebuloso pra mim. Foi
muito inspirador de conhecer [sic] um pouco dessa cultura musical de
tradio oral. Tambm me senti muito vontade de tocar com grupos como o
Syntagma e o Ad Libitum.
Conforme observa Rainer e expusemos em nossa anlise, Liduno Pitombeira,
principal arranjador e compositor do grupo, toma como referencial importante de suas obras as
msicas de Luiz Gonzaga. A escolha de tais msicas para o Syntagma no se d apenas por lhe
parecerem prazeirosas ou populares: resultado ou no de uma construo cultural, como a boa
parte dos nordestinos, elas soam familiares, enraizadas, ou naturais. Ao se voltar para este tipo
de repertrio, o Syntagma ressignifica um universo tradicional que rene o antigo e o moderno,
a partir de uma problemtica ps-moderna.
174
Entrevista concedida via correio eletrnico, recebido em 08 de dezembro de 2006.
143
144
5 GRUPO ANIMA E A REPRESENTAO SIMBLICA DO NORDESTE
5.1 O nome e o sobrenome
Anima um termo latino que significa sopro, um princpio vital da alma. Conforme
explicado no Dicionrio de Smbolos (CHEVALIER; GHEERBRANT (org.), 2006, p. 31-
36), alguns povos da Antigidade, como os celtas e os gregos, atribuam alma uma
dimenso metafsica e outra religiosa. Enquanto esta ltima se referia ao esprito, ou animus -
princpio pensante e sede dos desejos e paixes (...); de valor intelectual e afetivo; de
registro masculino -, a primeira se referia, por sua vez, ao sopro, ou anima princpio da
aspirao e expirao do ar; de registro feminino. A simbologia deste termo possui um
percurso histrico complexo que vai desde a filosofia grega at a psicanlise junguiana, para
nos limitarmos apenas s sociedades ocidentais.
O nome Anima foi sugerido pela flautista Valria Bittar, uma das fundadoras do
grupo, cuja atuao se inicia em meados de 1988, em Campinas-SP. A idia inicial, dentre
outras interpretaes, relaciona a dimenso metafsica daquela alma-sopro ao fazer musical
buscado pelos integrantes, entrelaando sua proposta com a vasta teia de significados que o
termo possui. Esta dimenso sugestiva rica em significados tambm se faz perceber pela
descrio complementar que designa o grupo: Anima msica mundana, humana et
instrumentalis.
Encontrado tambm por Valria
175
, o termo se apresenta no texto Fundamentos da
Msica, um dos tratados do quadrivium escrito pelo filsofo medieval Bocio (c. 480-526).
Grande expoente na transio do pensamento da Antigidade para a Idade Mdia, Bocio
considera que existe trs tipos de msica: (a) a msica do universo, responsvel pela
harmonia dos elementos celestiais e pelo equilbrio na variao das estaes da natureza;
(b) a msica dos homens, que permite a consonncia entre a atividade incorprea da razo
com o corpo, alm de manter as partes do corpo em perfeita adaptao; e (c) a msica
instrumental, produzida pelos diversos instrumentos construdos pelo homem. Para o Anima,
a expresso funciona como um potencial comunicativo, na sua relao com o mundo, no
equilbrio entre os prprios sujeitos integrantes do grupo, e a sintonia entre seus
instrumentos.
175
A flautista toma como referncia a seguinte obra, ainda sem traduo para o portugus: GLKE,
Peter. Mnche, Brger, Minnesnger: die Musik in der Welt des Mittelalters. Breitkopf & Hrtel, 1982,
Wiesbaden.
145
Por questes de praticidade, seja nas conversas informais ou na divulgao e
fixao para o pblico, o complemento deixou de ser adotado, embora para os integrantes
esteja ainda subentendido, presente de forma implcita e ao mesmo tempo marcante. Alm
disso, ao contrrio das reflexes de Bocio, o Anima apresenta uma viso de msica
orientada ao fazer, privilegiando o momento prtico ou performtico, em que ela
vivenciada e compartilhada, a despeito do plano especulativo, terico ou racional. o que
se pode constatar no encarte do disco mais recente do grupo, Espelho (2006, p. 77), cujo
texto contm reflexes acerca da msica prtica:
Compartilhamos, como tal [msicos prticos], do princpio de que a msica
se faz a partir da concretude dos sons considerando que essa seja apenas
uma meia-verdade, ou melhor, um tero da verdade. Contraditoriamente,
porm, o mar revolto da criao, smbolo da prpria liberdade criativa, gerou
a necessidade de ncoras de segurana, ou melhor, de pontos de apoio para a
organizao do caos.
5.2 Uma proposta mundana, humana e instrumental
Inicialmente, o grupo Anima apresentava um repertrio direcionado para a Msica
Antiga europia, mas aos poucos foi amadurecendo um processo criativo que, aliado nfase
no aspecto prtico e performtico da msica, introduz o universo simblico da msica de
tradio oral brasileira. Essa linha de trabalho se intensifica a partir de 1992, quando a
proposta autoral se torna consciente e deliberada. Por isso, em diversos documentos e
depoimentos, seus integrantes se referem a esta poca como a do verdadeiro nascimento do
grupo.
Assim, de acordo com um dos primeiros releases, daquela fase inicial, observamos
que o grupo surge como iniciativa de msicos especializados na interpretao de Msica
Antiga realizada por instrumentos histricos
176
. O repertrio voltava-se para a msica
medieval e renascentista, mas tambm inclua obras contemporneas dedicadas aos
instrumentos histricos. A ligao com este repertrio e a cultura popular brasileira se fizera
presente, em algumas ocasies ensaios e apresentaes -, mas de forma embrionria, ainda
no sistemtica. Excetuando-se o ncleo fundador Valria Bittar, Patrcia Gatti e Jos
Eduardo Gramani - havia uma rotatividade grande de integrantes, o que resultava em uma
diversidade de repertrio e flexibilidade na atuao em concertos, adaptada a diferentes
formaes. A falta de permanncia dos integrantes dava-se, na maior parte dos casos, por
viagens para aprimoramento de estudos: enquanto uns deixavam o pas, outros chegavam, e o
grupo persistia de modo um tanto informal, embora os seus membros fossem todos msicos
176
Release encontrado no acervo do grupo Syntagma, que preservou o intercmbio entre os grupos.
146
profissionais. A atuao do grupo consistia, primordialmente, na realizao de concertos,
mas tambm envolvia um trabalho de pesquisa, alm da realizao de oficinas e palestras,
para estudantes de msica e para leigos interessados na temtica da Msica Antiga.
A partir de 1992, uma confluncia de idias e circunstncias
177
conduz os
integrantes a uma formao mais estvel e a uma atuao mais profissional, que culmina no
lanamento do primeiro CD, Espiral do Tempo (1997), no qual eles apresentam o resultado
do amadurecimento desta nova proposta, de arranjos coletivos feitos com base em pesquisas
da msica brasileira de tradio oral, relacionando-os, simbolicamente, com o universo da
Msica Antiga europia, com especial interesse para o universo musical do mundo
colonizador ibrico. No texto de apresentao do grupo, presente no encarte do disco, a
proposta assim descrita, em texto de Gabriela Arajo (1997, [p. 4]):
Diluindo fronteiras, percebendo semelhanas e rompendo preconceitos atravs
de uma linguagem prpria que se utiliza de elementos antigos: a msica e a
oralidade, o grupo Anima vem construindo pontes entre universos musicais,
vocais e instrumentais aparentemente muito distantes.
Os textos presentes nos encartes dos discos seguintes Especiarias (2000), Amares
(2004), Espelho (2006) mostram uma continuidade e um aprofundamento nestes laos
simblico-musicais que o grupo procura ressaltar em sua prtica. A partir do segundo disco,
os prprios integrantes expem perspectivas expandidas da mesma proposta. Em
Especiarias, por exemplo, o ento violeiro Paulo Freire (2000, [p. 12]) afirma que:
O prazer de tocar e cantar as msicas de tradio oral que, de alguma
forma, elas j esto dentro de ns. Mesmo sendo de um tempo passado,
sugerem idias originais. Partindo do respeito e encantamento por estas
cantigas, torna-se emocionante recri-las livremente.
Mais adiante, no mesmo encarte, Valria Bittar (id. [p. 49]) apresenta-nos estas
mesmas impresses sob uma tica mais abrangente, aludindo aos dilogos entre o fazer
musical do Anima e algumas questes da Modernidade e da Ps-modernidade, que
discutiremos em tpico posterior:
Ao escolhermos fazer msica de tradio oral e ao nos aproximarmos da
msica da Idade Mdia e da Renascena, trabalhando seus arranjos
coletivamente, experimentamos e reativamos em ns valores um pouco
apagados e distantes. Esta msica sem autor, que, se escrita, anotada de
forma aberta e mvel, permite-nos ter uma leitura contempornea e
prpria. Verdades se misturando; memrias maleveis se misturando. Tudo
hbrido e mutante, a cada instante. Um passado que se move, que se
transforma. Um passado presente.
O trabalho de criao coletiva dos arranjos torna-se mais vivel e intenso a medida
que os membros estabelecem vnculos mais slidos enquanto grupo. A formao atual veio
177
Expostas no tpico seguinte.
147
se estabilizando ao longo deste percurso, com poucas alteraes: Dalga Larrondo
(percusso), Isa Taube (voz), Luiz Fiaminghi (rabecas), Patrcia Gatti (cravo), Valria Bittar
(flautas doce). Jos Eduardo Gramani (rabecas), falecido em 1998, teve importante
participao nas experimentaes musicais, desde o incio. As mudanas deram-se com os
violeiros: de 1992 at 1999, Ivan Vilela; depois, entra Paulo Freire, que participa do segundo
disco; a partir de 2000, Ricardo Matsuda aceita o convite do grupo, consolidando o trabalho
em conjunto do sexteto, desde ento. No encarte do disco Amares (2004, p. 4), Luiz
Fiaminghi faz uma analogia deste trabalho de construo musical com um pachtwork, ou
colcha-de-retalhos, ressaltando um sentido, no de incoerncia, mas de uma sensibilidade
refinada para buscar a harmonia final sem seguir uma norma de procedimento muito rgida.
O prprio material, suas cores, texturas e formatos ditam as regras, que so desrespeitadas
to logo surja algo mais interessante perante o olhar do artista. O msico acrescenta (id.
ibid.):
Esta analogia revela tambm o terreno instvel que ns, como msicos,
encontramos ao estarmos abertos a diversas tradies musicais para
compor nosso trabalho. Os pontos de encontro da msica antiga com a
msica de tradio oral brasileira e a msica composta hoje baseada nestas
tradies, muitas vezes no so suficientemente fortes para sustentar uma
estrutura que pretenda ir alm de uma msica agradvel de se ouvir. Desta
maneira procuramos delimitar tematicamente o repertrio, sem que isso
seja uma camisa-de-fora para a criao, mas antes um estmulo para
procurar relaes estticas a partir de material de origem to diversa.
Desta forma, a temtica nordestina se insere, na proposta do grupo, dentro de uma
perspectiva mais ampla, como um dos mundos possveis desta construo de pontes sonoras
que conectam universos simblicos distintos no espao e no tempo, reunidos pelo aspecto
tradicional e vivencial, ou seja, por seu carter mundano, humano et instrumentalis. Portanto,
para compreender a leitura que o Anima faz do Nordeste, deve-se buscar, em primeiro lugar,
entender a dinmica de composio daquela colcha, identificar os elementos musicais
escolhidos e compreender o significado que tais escolhas empreendem aos que dela
compartilham, conforme o sentido de fazer musical apontado no captulo 1. Nos tpicos
seguintes, tentamos responder a algumas destas questes.
5.3 O estmulo e as inquietaes
Explicamos que algumas idias e circunstncias possibilitaram a consolidao da
proposta do Anima tal qual se desenvolve atualmente. Uma das circunstncias deu-se com o
envolvimento na preparao do projeto para concorrer ao Prmio Estmulo da Cidade de
148
Campinas
178
, que o grupo ganhou em 1993. O prmio permitiu ao grupo elaborar o
espetculo Espiral do Tempo, e a realizao de uma srie de concertos, que mais tarde
resultaria no primeiro disco. Durante a preparao deste espetculo, o grupo, formado na
poca por Valria, Gramani, Dalga e Patrcia, convidou o violeiro Ivan Vilela e a cantora Isa
Taube para realizar o projeto. Alm de iniciar um trabalho de cunho mais profissional, at a
gravao do disco houve uma efervescncia de idias que configurariam a identidade musical
do Anima. Dentre as idias, pode-se destacar aquelas advinda da relao de Gramani com as
rabecas. Fiaminghi
179
pondera:
Esse caminho de por a mo na rabeca e tentar entend-la como um
instrumento que tem uma voz prpria um caminho mais longo. Demora
mais tempo, mais disponibilidade do msico pra acreditar que aquilo um
instrumento apto a fazer msica alm do que ficar pendurado na parede
como uma curiosidade. Isso o Gramani mostrou. Ele a figura principal,
realmente, que conseguiu fazer isso de mostrar no s pra mim, mas, pra
todo mundo que queria enxergar isso, porque ele era uma figura conhecida
no meio musical j, ele participava de vrios festivais, era um violinista
respeitado. Quer dizer, no era qualquer um que estava pegando a rabeca, e
o que ele estava fazendo tinha uma repercusso rpida, ento, voc via
msicos tanto da rea erudita quanto popular que vinham ouvir o Gramani,
n?
Outra figura cujas idias exerceram profunda influncia na atuao do grupo foi
Fernando Carvalhaes
180
, conforme elucida Valria, na mesma entrevista:
O Fernando, ele era a inquietao. O artista no corporativo, ele um
inquietado, ele um atormentado, na realidade, um inconformado. No tem
essa subservincia ao padro vigente. Ento, ele questiona mesmo. Mas,
ele vem de uma escola de msica medieval. O que que a msica medieval
? Ela escrita, tem um perodo grande, em determinadas pocas, em que a
escrita muito clara, os objetivos do autor so muito claros, a
instrumentao muito clara, tudo muito simples, objetivo. Agora, tem
uma outra parte que no to objetiva, que onde muito o Studio der
Fhren Musik
181
comeou, voc tem aqueles discos, os long plays. So
lindos, as primeiras coisas de trovador que foram feitas, foi esse pessoal. O
Fernando s a segunda gerao disso. Ento, ele traz pro Brasil, que
ainda vivia num academicismo romntico absoluto, dos conservatrios e
coisa e tal, ele traz essa posio, de msica no anotada, de uma msica
com um p em baixo e outro p em cima, na msica culta e na msica no
culta, no registro e no no registro, esse questionamento do registro. Ento,
uma viso j no romntica, totalmente, n? um desprendimento do
registro.
Valria observa que este conjunto de inquietaes, tanto de Gramani quanto de
Carvalhaes, possuam um questionamento colocado em cima de reflexes, e por isso se
178
Lei Municipal n 6576.
179
Entrevista concedida em 15 fev. 2007, em Campinas-SP.
180
Falecido em 23 de agosto de 2006, quando o Anima havia
181
Grupo fundado na Alemanha, por Thomas Binkley, Williard Cobb e Andrea von Ramm, atuante entre 1960 e
1977. De acordo com Kristina Augustin (op. cit., p. 25), suas gravaes e concertos introduziram uma
inovadora perspectiva para a interpretao da msica medieval.
149
tornava possvel obter uma produo frtil e diferenciada. Enquanto essas idias eram
fomentadas em ensaios e conversas informais, o grupo tambm experimentava seus
resultados musicais em concertos. A partir desses fazeres fora e dentro do palco, alimentava-
se o repertrio e a vontade de registr-lo no primeiro CD. Em depoimento na home page
oficial do Anima
182
, Valria comenta alguns pontos desse amadurecimento musical, que
conduziu nova proposta esttica:
A dinmica de trabalho do ANIMA foi se transformando aos poucos e,
mesmo as msicas escritas pelo Gramani para rabeca e cravo, foram
sofrendo alteraes em seus arranjos, alteraes essas criadas
coletivamente. (...) Vimos que, o mesmo processo de arranjos coletivos que
era necessrio trilhar ao se interpretar msica tradicional brasileira tambm
se fazia imprescindvel para a msica medieval e renascentista europias
de escritura aberta.
Viabilizado de modo completamente independente, a maior parte pela venda de
vale-CDs
183
, o trabalho possui uma produo caprichada. Segundo Valria, foi um
investimento que planejava, antes de tudo, uma forma de sobrevivncia pessoal dos
integrantes e tambm a manuteno das atividades do grupo. Ela e Fiaminghi lembram que,
at o ltimo momento, no dia do concerto de lanamento, no se sabia se o encarte viria com
a capa dura em brochura, um estilo que acabou se tornando marca do Anima, seguido com
cada vez mais detalhamentos nos discos posteriores
184
. Por isso, at as dimenses fsicas
deste primeiro so menores, prevendo uma possvel mudana para a embalagem de acrlico.
A ambivalncia e a qualidade do CD Espiral do Tempo renderam dois prmios,
significativamente, um de msica popular e outro de msica erudita. O primeiro, recebido em
1997, foi o Prmio Movimento de Msica Popular Brasileira, na categoria melhor CD de
msica instrumental, e o segundo foi o Prmio APCA (da Associao Paulista dos Crticos
de Arte), na categoria melhor grupo de msica de cmara, recebido em 1998. Em 1999, o
grupo foi, ainda, um dos indicados para o IV Prmio Carlos Gomes de Msica Erudita, da
Secretaria de Cultura do Estado de So Paulo, tambm na categoria melhor grupo de msica
de cmara. No ano 2000, j pelo trabalho desenvolvido com o segundo disco, Especiarias
(tambm produzido de forma independente, com a renda obtida a partir do disco anterior), o
Anima foi vencedor da mesma categoria deste ltimo prmio, ento em sua quinta edio.
At pela repercusso dos discos anteriores, o grupo conseguiu subsdios para parte
da produo do Amares gastos com o estdio de gravao, grfica e prensagem de cinco
mil cpias -, com apoio da Rede Empresas de Energia Eltrica. O ltimo disco, Espelho,
182
< http://www.animamusica.art.br/musicos.html>
183
O Espiral do Tempo est com tiragem esgotada. No total, o grupo comercializou dois mil vale CDs.
184
No anexo 5, inclumos imagens dos encartes completos de cada disco.
150
obteve patrocnio integral da Petrobras - por meio da Lei Federal de Incentivo Cultura n
8.313/91, ou Lei Rouanet - da produo do disco e do espetculo at os gastos com turns,
subvenes aos msicos e outros profissionais envolvidos no projeto.
Os integrantes do Anima, que sempre tiveram esta caracterstica viajante presente
em suas prticas, colocaram aquelas inquietaes musicais em circulao, apostando no
rendimento do trabalho. Estimulados com a receptividade e o reconhecimento dos discos, o
grupo investiu na produo (de arranjos e de espetculos) e intensificou a divulgao,
procurando distribuidora (Ncleo e depois MCD
185
) para os discos, uma produtora, Lisa
Sapinkopf, para obter receptividade nos Estados Unidos. Tambm obteve visibilidade por
apoios governamentais, via projetos ou leis de incentivo, e de instituies como o SESC,
participando de turns nacionais como, por exemplo, as do Circuito SESC Msica e o
Sonora Brasil. As turns internacionais ocorreram com apoio do Ministrio das Relaes
Exteriores, pelo Departamento Cultural do Itamaraty.
Alm dos concertos, a Internet proporciona um importante mecanismo de
comunicao com o pblico. A home page
186
, criada desde a poca do Espiral do Tempo,
passou por uma atualizao com o Amares, mas a grande reformulao deu-se durante o
primeiro semestre de 2007, integrando-se em um projeto mais amplo de registro de dados
sobre o grupo e divulgao. Alm disso, existe uma troca informal e virtual entre os
apreciadores do grupo sobre suas atividades, por meio da rede Orkut, na comunidade
intitulada Grupo ANIMA, fundada por iniciativa de um desses apreciadores
187
. Outra maneira
de conhecer e trocar informaes sobre o Anima pela Internet pela home page do
Youtube
188
, em que as pessoas podem assistir a alguns videoclipes e fazer comentrios, pedir
informaes etc.
Embora no seja o objetivo principal desta anlise a descrio detalhada de todo o
percurso histrico-musical do Anima, devido notvel extenso e alcance de sua atuao,
traamos um levantamento destes lugares, apresentados a seguir em dois mapas, um das
Amricas e um do Brasil.
185
A Ncleo reproduziu e distribuiu mais trs mil cpias do Espiral do Tempo. Porteriormente, a MCD fez mais
trs mil cpias, e aps o esgotamento, mais cinco mil, tambm esgotados. Para a realizao desta pesquisa,
Valria e Fiaminghi cederam-nos gentilmente um dos poucos exemplares do acervo particular do grupo. O
mesmo ocorreu com o Especiarias, embora ainda possua uma pequena tiragem venda das cinco mil cpias
distribudas pela MCD.
186
Endereo eletrnico citado na pgina anterior.
187
Criada e moderada por Amadeu Ito em 24 de fevereiro de 2005, com participao de 263 membros (segundo
dados do ltimo acesso para esta pesquisa, em 31 de agosto de 2007).
188
<www.youtube.com>. O videoclipe sobre o espetculo Espelho passou cerca de uma semana na pgina de
apresentao do site, como um dos mais acessados naqueles dias. Em aproximadamente trs meses da
disponibilizao inicial, o vdeo da msica Tat Engenho Novo, por exemplo, obteve mais de 45 mil acessos.
151
Canad
Alberta: Calgary ,2003,
LUA
Wisconsin: Milwaukee
,2003,
Pensilvnia: Ldinboro
,2001,2003,,
liladlia ,2001,
California: Marysille
,2003,,
Santa Barbara ,2003,,
Los Angeles ,2001,2003,,
San lrancisco ,2001,
Texas: Dallas ,2001,,
San Antonio ,2003,
Massachussets: Amherst
,2000,
Carolina do Norte: Chapel
Iill ,2001,
Ilrida: Miami ,2001,
Oregon: Portland ,2001,
Illinois: Bataia ,2000,
Lanston ,2000,
Idaho: Moscow ,2003,
Boise ,2000,
Dakota do Sul: Vermillion
,2000,
Missouri: St. Louis ,2000,
Cidade do Kansas ,2001,
Nova Iorque: Noa Iorque
,2000,, Long Island ,2000,
Distrito de Columbia:
\ashington, DC
,2000,2001,
Mexico
Guadalajara. ,2001,
Colmbia
Misiones de Concepcin,
Santa Cruz e Buena Vista
,2002,2004,,
La Paz ,2002,,
Santa Cruz de la Sierra
,2002,.
Bolivia
Bogota.,2002,
Paraguai
Assuno (2001)
Uruguai
Monteidu ,2001,
Argentina
Buenos Aires, ,2001,2002,
Crdoba ,2001,
152
Brasil
Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul
Amap: Macapa
,1999, 2005,
Roraima: Boa Vista
,2005,
Acre:
Rio Branco, ,2005,
Placido de Castro
,2005,
Par: Belm
,1999,2003,2005,
Amazonas: Manaus
,2005,
Tocantins: Porto
Nacional, ,2005,
Gurupi, ,2005,
Palmas. ,2005,
Cear:
Sobral ,1999,
Iguatu ,1999,
Juazeiro do Norte
,1999,
Noa Olinda ,2005,
Crato ,2005,
lortaleza ,1999,2005,
Rio Grande do Norte:
Natal ,2005,
Paraiba
Campina Grande ,2005,
Joao Pessoa
,2001,2005,
Pernambuco:
Petrolina ,1999,
Garanhuns ,1999,2005,
Caruaru ,1999,2005,
Buque ,2005,
Surubim ,2005,
Recie ,1999,
1riuno ,2005,
Arcoerde ,1999,2005,
Bahia:
Salador ,2005,2006,
Vitria da Conquista
,2005,
leira de Santana ,2005,
Alagoas:
Penedo ,2005,
1eotonio Vilela ,2005,
Palmeira dos ndios
,2005,
Arapiraca ,2005,
Macei ,1999,2005,
Mato Grosso do Sul:
Campo Grande ,1999,
Mato Grosso:
Rondonpolis, ,2005,
Cuiaba, ,2005,
Barra do Bugres ,2005,
Distrito Iederal:
Braslia ,2005,200,
So Paulo:
Campinas ,1988,1989,1992-
1998,2000-200,
Sao Paulo
,1988,1990,1991,1993,1998-
2000,2002-200,
Araraquara ,2000,2004,
Amparo ,2003,
Jacare ,2001,
Sao Jos do Rio Preto ,2004,
Piracicaba ,2004,
Campos do Jordao ,2004,
Ribeirao Preto ,2004,
Sao Carlos ,2001,2003,2005,
Santo Andr ,2004,
Jundia ,2004,
Penapolis ,2000,
1aubat ,1999,
Birigi ,1998,
Registro ,1996,
Santos ,1999,2006,
Paraibuna ,2006,
Indaiatuba ,2006,
1atu ,2004,
Bauru ,2000,2004,
Botucatu ,1993,
Diadema ,199,
Rio de Janeiro:
Petrpolis ,2003,
lriburgo ,2003,
Parati ,2001,
Rio de Janeiro
,1999,2001,2002,2006,200,
Minas Gerais:
Diamantina ,2000,
Belo Iorizonte
,1999,2001,2006,
Uberlndia ,2004,
Juiz de lora ,1998,2004,
Paran:
Apucarana ,1999,2005,
Maringa ,1999,2005,
Paranagua
,1996,199,1998,
Cascael ,1994,
Londrina ,1996,
Curitiba ,1996-
1999,2005,2006,
gua Verde ,2005,
Cornlio Procpio ,2005,
1oledo ,2005,
Campo Mourao ,2005,
Paranaa ,2005,
Santa Catarina:
Sao Jos ,2005,
Laguna ,2005,
Cricima ,2005,
Lages ,2005,
Xanxer ,2005,
Joinille ,2005,
Jaragua do Sul ,2005,
Rio do Sul ,1999,2005,
Blumenau ,2005,
Brusque ,2005,
Itaja ,2005,
llorianpolis ,2005,
1ubarao ,2005,
Concrdia ,2005,
Chapec ,2005,
Rio Grande do Sul: Porto
Alegre ,2006,
153
5.4 Anima e o Nordeste
O Anima, em seus arranjos coletivos, suas apresentaes, seus discos, enfim, em
seu fazer musical, constri, pela elaborao de um trabalho que vai ao encontro das estticas
musicais contemporneas, um dilogo com as imagens e enunciados colocadas por outras
formas simblicas do presente e do passado, no processo scio-histrico, que atualiza
determinado universo simblico acerca da regio. J explicamos como as inquietaes
individuais dos integrantes constituiu, dentre outros aspectos, a busca da msica brasileira de
tradio oral. Portanto, neste universo tradicional que o grupo se fixa, ao tematizar o
Nordeste. Na teia das prticas no escritas, no oficiais, este Nordeste no se encontra
destacado ou dissociado, ele incorporado ao Brasil das tradies. A msica do Anima no
reduz a dicotomia Tradio/ Modernidade ao conflito Norte/ Sul, ou ainda Nordeste/ So
Paulo. Ela valoriza, assim, no apenas um Nordeste, mas uma cultura brasileira artesanal, de
um espao no-urbano, mais aproximado da natureza: a cultura do serto, um espao afetivo,
melanclico, modal.
Conforme se observou em captulos anteriores, a valorizao da cultura nordestina
toma boa parte do imaginrio brasileiro ligado s tradies e ao serto. Desta maneira,
levando-se em conta a preocupao temtica do grupo, inegvel que o Nordeste se torna um
referencial importante em suas elaboraes musicais. Tomamos como base a produo
discogrfica do Anima, do mesmo modo que procedemos com o Syntagma. Assim, toma-se
cada disco como uma unidade de anlise, na qual se verifica a temtica nordestina e as pontes
construdas com outras temticas. Vale ressaltar que esta anlise busca, antes, desvelar
alguns aspectos da dimenso semntica das formas simblicas, levando-se em conta as
msicas, os textos, as imagens, as letras etc., e no somente os elementos musicais
instrnsecos, ou a sua dimenso sinttica, conforme a acepo de Nattiez
189
. Para abranger
tambm as questes estruturais internas, e compreender aqueles laos simblicos de maneira
mais detalhada, selecionamos o arranjo coletivo, registrado no disco Amares, para a obra
Banho-nho, de Jos Eduardo Gramani, composta, originalmente, para cravo e rabeca, em
maio de 1993.
189
Cf. cp. 1.
154
5.4.1 Espiral do Tempo
Ano: 1997
Formao instrumental:
Dalga Larrondo: percusso Isa Taube: voz
Jos Eduardo Gramani: rabecas e dulcimer Luiz Fiaminghi: rabecas
Patrcia Gatti: cravo Valeria Bittar: flautas doce
Ivan Vilela: viola caipira, voz
Msicas:
1- Deodora . Jos Eduardo Gramani (1944-1998) . 438
2- Tartarassa . Peire Cardenal (?1180-?1278) . 420
3- Cantas mangueira/ Adeus surpresa . tradio oral brasileira . 138
4- Estampie . Annimo medieval (sc. XIV) . 443
5- El testament dAmlia . tradio oral catal . 617
6- Mestre pequeno . tradio oral brasileira . 234
7- Se jamais jour . Annimo medieval (sc. XIV) . 403
8- Alm de Olinda . Jos Eduardo Gramani . 544
9- Duas gigas . tradio oral escocesa e tradio oral irlandesa . 557
10- Tirana da rosa . tradio oral brasileira . 558
11- A fora do boi . Ivan Vilela . 328
12- Je vivroie liement . Guillaume de Machaut (1300-1377) . 252
13- Beira mar (riacho de areia)/ Cant . tradio oral brasileira/ Gildes Bezerra . 748
Tempo total: 60:57:00
Gravao:
Direo artstica: Anima Tcnico: Plnio Hessel
Produo fonogrfica: Valeria Bittar Local: Igreja do Mosteiro de So Bento, Vinhedo-SP
Produo executiva: Valeria Bittar Data: 12 a 15 de junho de 1997
Co-produo: Anima
Instrumental:
Cravo: construdo por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1994), segundo modelo alemo de Christian Zell (Hamburgo, 1741)
Dulcimer: construtor desconhecido, cpia de modelo do sc. XIII
Flautas-doce: soprano handfluyt em d construda por Helge Stiegler (ustria, 1985), segundo modelo de Jacob van Eyck (Holanda, ca.
1647); contralto ganassi em sol construda por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1993), segundo modelo de Fontego Ganassi (Itlia, ca. 1535);
contralto barroca em f construda por F. Morgan (Austrlia, 1980), segundo modelo de J. C. Denner (Alemanha, ca. 1700).
Percusso: bendir cpia de modelo turco por Antnio Gamez (Madri, 1994); moringa vaso de cermica, cpia de marajoara (PA); zarb
construdo por Sr. Narciso, segundo modelo annimo iraniano; tringulo; pandeiro.
Rabecas: construda por Nelson dos Santos (Marechal Deodoro-AL); construda provavelmente em Iguape-SP, autor desconhecido
[posteriormente, Fiaminghi identificou que esta rabeca , na verdade, foi construda por Mestre Davino (Cananeia-SP)]; construda por Sr.
Antnio (Campinas-SP); construda por Martinho dos Santos (Morretes-PR); rabeca de bambu, construda por Fernando Vanini (Campinas-
SP, 1996); rabeca de bambu, com cordas duplas, construda por Fernando Vanini (Campinas-SP, 1996);
Viola de dez cordas: construda por Verglio Artur de Lima (Sabar-MG, 1992)
Dados do encarte:
Descrio: livreto em capa dura, 40 pp. (no numeradas), bilnge (portugus/ ingls)
Textos: Gabriela Arajo, Valria Bittar, Rubem Alves
Criao e Projeto Grfico: Marcelo Taube
Pesquisa Iconogrfica: Marcelo Taube, Valria Bittar
Xilogravuras do encarte e da contra-capa: Marlene Crespo
Xilogravura da capa: Mestre Noza
Inicial da capa: Historia Naturalis, Plnio, o Velho (1460)
Demais ilustraes baseadas na iconografia medieval
Fotos: Eduardo Mandell
Foto p. 10: Jos Eduardo Gramani
Tradues: Slvia Ricardino (Codex Reina e G. Machaut); Fernando Carvalhaes (Peire Cardenal); Margarida de Aumente (Catalo); Julia
Brown (Portugus-Ingls)
155
5.4.1 Espiral do Tempo
O ttulo sugere a diversidade de mundos sonoros que seguem justapostos
conduzidos por uma fora evolutiva, a fora inelutvel do devir. Segundo o Dicionrio de
Smbolos (op. cit., p. 397), a figura da espiral pode ser encontrada em todas as culturas, com
diversas acepes simblicas. De acordo com de Champeaux e dom Sterckx (apud id.., p.
398), a espiral simboliza emanao, extenso, desenvolvimento, continuidade cclica mas
em progresso, rotao criacional. Ao explicar tais imagens em texto
190
de apresentao, no
encarte (1997, p. 6), Valria Bittar refere-se continuidade cclica que o Anima vivencia em
seu trabalho performtico, durante os concertos, em que se interpolam diversas memrias
na mesma espiral - a memria de cada integrante e aquelas que o pblico traz consigo -,
paisagens sonoras que suspendem o sentido racional e cronolgico da vida moderna, que nos
apresentam uma outra perspectiva temporal. O texto de Rubem Alves (id., p. 8), no mesmo
encarte, destaca essa sensao individual de uma memria que se espirala no sujeito
ouvinte:
Minha experincia de beleza ao ouvir a msica do Anima diferente:
como se, de repente, eu me encontrasse num lugar do meu corpo que eu
nunca visitara antes. A msica do Anima faz despertar uma beleza
adormecida que morava no meu corpo sem que eu soubesse.
Na composio deste espiral, a msica de tradio oral nordestina tem um destaque
considervel: das treze msicas que constituem o disco, cinco fazem referncia, de algum
modo, a elementos tradicionais da regio. So elas: Deodora, Cantas Mangueira/ Adeus
Surpresa, Mestre Pequeno, Alm de Olinda e A Fora do Boi.
Deodora e Alm de Olinda so obras compostas por Jos Eduardo Gramani,
especialmente para a rabeca que ele adquiriu do Seu Nelson dos Santos, construtor e
rabequeiro de Marechal Deodoro, Alagoas. Deodora o nome que o compositor deu a sua
primeira rabeca do Seu Nelson. Gramani a escreveu, originalmente, para cravo e rabeca,
direcionada ao trabalho junto com Patrcia Gatti, o Duo bem Temperado. No arranjo do
grupo, a msica inicia com a rabeca fazendo uma linha meldica, no modo mixoldio,
mantendo o bordo em l, logo acompanhada pela marcao da moringa, na percusso, e a
flauta soprano entra depois, estabelecendo um dilogo com a rabeca. Os aspectos rtmico-
meldicos da flauta e da rabeca, e o acompanhamento do cravo caracterizam o baio, em
cima do qual a percusso cria padres variados. A viola caipira aparece, de modo sutil, s
vezes duplicando a linha da rabeca, s vezes em contraponto, e a voz aparece como pano de
190
Este texto encontra-se apenas em lngua inglesa.
156
fundo, com agudos melismticos, algo entre o grito e o gemido. Patrcia Gatti
191
lembra
que esta foi uma das primeiras experincias de arranjo coletivo, cujo resultado deixou os
integrantes bastante entusiasmados. Apresentaram o arranjo em forma de quarteto, como bis
de um concerto com repertrio de Msica Antiga. Alm da Patrcia e do Gramani, tocaram,
na ocasio, o Dalga e a Valria. Segundo a cravista, o grupo conseguiu captar a fora daquela
msica e transform-la de uma maneira muito especial:
Ns fizemos um concerto em Botucatu, e a gente pensou olha, em vez da
gente levar um bis de msica antiga, ns vamos fazer um bis brasileiro, a
msica do Gramani. Foi a que ns, os quatro, nos ligamos e fizemos
aquela msica. Foi simplesmente um absoluto sucesso. E aquilo deixou a
gente to empolgado. A Valria tocou na flauta, fazendo agudos, fazendo
uma segunda voz com o Gramani, foi muito legal. E o Dalga criando uma
percusso viva por trs daquilo, n? E a partitura do cravo que j era bem
forte, ento foi uma coisa assim, uma idia fantstica, e foi uma das
primeiras vezes que o Gramani usou a rabeca em pblico. Depois de ter
tocado violino barroco, a sonata, bom, ns vamos fazer um bis, mas ns
vamos trazer um outro pessoal aqui, olha, uma msica com
caractersticas contemporneas que a gente faz com o maior prazer, porque
a gente quer mostrar esse filho aqui, que t nascendo. E era uma rabeca.
As pessoas ficaram absolutamente encantadas com aquele resultado e
aquilo estimulou demais a gente a ir por esse caminho. E foi uma
apresentao do Anima, realmente, assim, que a gente decidiu levar a
msica que, no era restrita do duo, no, de jeito nenhum, nunca foi nada
restrito aquilo.
Por sua vez, Alm de Olinda foi composta especialmente para o grupo. Tem um
carter recitativo, com duas rabecas que se fundem em notas longas, como base para a letra
que traz uma reflexo considerada sntese do trabalho do Anima, em sua busca de origens,
l longe sem porqus
192
. Este significado particular se mistura, sugestivamente, temtica
das mulheres casamenteiras de Pernambuco. Na percusso, Dalga executa, com o bendir,
padres rtmicos da folia de reis. Reproduzimos, abaixo, a letra de Gramani:
Alm de Olinda ainda se encontra quem rendas tece
e tece fendas, emendas, emblemas e gemas,
doces linhas modulantes,
suaves falenas azuis, na luz da embriaguez.
Se algum pergunta o porqu do se fazer,
Responde-se o porqu do perguntar.
O tecer no tem um porqu enquanto ato de entrelaar.
Alm, alm, alm, o entrelaar significa.
Alm de Olinda ainda se encontra quem lendas tece...
A combinao entre as duas canes, Cantas Mangueira e Adeus Surpresa, rene
um arranjo delicado com trs rabecas, zarb e tringulo mantendo as rtmicas do xaxado e do
bumba-meu-boi, respectivamente. A flauta apresenta a linha meldica que conecta as duas
191
Entrevista concedida em 22 de janeiro de 2007.
192
Conforme texto do encarte (1997, [p. 25])
157
canes. Na repetio, Isa canta os versos de Adeus Surpresa, e depois Ivan Vilela recita a
letra de Cantas Mangueira, enfatizando a musicalidade das palavras que denominam frutas
e rvores brasileiras, enquanto a flauta permanece conduzindo a melodia. Conforme
explicado no texto do encarte, tratam-se de canes cujas melodias foram coletadas em 1937,
na Bahia, por Camargo Guanieri. Este compositor denomina as melodias de modinha e
improviso, respectivamente, mas o Anima prefere adotar as iniciais dos versos para
denominar as msicas. O informante de Cantas Mangueira para Guarnieri foi Ariovaldo
Martins dos Santos, baiano, nascido em 1917, e de Adeus Surpresa foi Waldemar Ferreira
dos Santos, nascido tambm na Bahia, em 1909
193
.
Em Mestre Pequeno, o Anima faz referncia ao culto do catimb. Com a melodia
tocada pela flauta, acompanhada de percusso, recria-se o imaginrio da cerimnia, com
destaque para o solo de moringa, que representaria um momento de exorcismo. A melodia
extrada das pesquisas de Mrio de Andrade, entre 1928 e 1929, no Rio Grande do Norte
194
,
tendo como informantes os catimbozeiros potiguares Manoel dos Santos e Joo Germano.
Gramani e Fiaminghi trocam, aqui, as rabecas pelo zarb e bendir, para melhor compor a
representao. Sobre o ritual e o ttulo da msica, o texto do encarte esclarece:
Mrio de Andrade busca as origens do catimb nas prticas de feitiaria
africanas e indgenas. A palavra mestre no catimb designa o pai de
santo, no sentido tambm de curandeiro. Para essas cerimnias de
exorcismo, nas quais se insere esta melodia, Andrade diz que os
instrumentos de percusso so os mais apropriados. Esta linha meldica
aparece tambm nos benditos de cegos do Nordeste. (ib., p. 20)
A ltima msica em que observamos referncias ao universo simblico nordestino
a composio de Ivan Vilela, A Fora do Boi. O texto do encarte explica que, de fato, o boi
uma prtica cultural presente em vrios estados do pas, embora se apresente com mais
fora no Maranho. Sem citar diretamente qualquer melodia da tradio oral, esta msica
traz do boi a marcao rtmica, que sempre caracterizada pelo entrelaamento do pulso
binrio com o ternrio. Criou-se tambm o cruzamento da idia modal com a tonal. Estes
entrelaamentos se realizam pelo dilogo entre a moringa e a viola caipira.
O restante do repertrio envolve universos simblicos distintos com a mesma
proposta de arranjos coletivos, que d unidade ao disco. Inclui uma cano do trovador
provenal Peire Cardenal, Tartarassa ni Voutor, que data, aproximadamente, de fins do
sculo XII ao incio do sculo XIII; uma Estampie medieval, do sculo XIV. As ilustraes
193
O grupo cita como fonte: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias registradas por meios no-mecnicos.
Vol. 1, SP, 1946.
194
Apresentadas em: ANDRADE, Mrio de. Msica de feitiaria no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983.
158
do encarte estimulam esse imaginrio tradicional, relacionando xilogravuras de influncia
armorial com a iconografia medieval.
159
5.4.2 Especiarias
Ano: 2000
Formao instrumental:
Dalga Larrondo: percusso, dulcimer Isa Taube: voz
Luiz Fiaminghi: rabecas Paulo Freire: viola caipira, viola de cocho, violade
Patrcia Gatti: cravo Valeria Bittar: flautas doce, kuluta, mejuez
Msicas:
1- Tupinamb . Tradio oral brasileira . 325
2- Baiozim calungo . Ivan Vilela . 159
3- Quantas sabedes amar . Martin Codax (sc. XIII) . 347
4- Folias de reis . Tradio oral brasileira . 740
5- Craio . Jos Eduardo Gramani (1944-1998) . 430
6- Moreninha . Tradio oral brasileira . 439
7- mana/ La rotta Tradio oral brasileira/ annimo medieval (sc. XIV) . 604
8- Canto das fiandeiras . Tradio oral brasileira . 243
9- Tu gitana que adevinas . Annimo (sc. XVI) . 338
10- Que he o que vejo . Annimo (sc. XVI) . 239
11- Gotejando . Jos Eduardo Gramani . 321
12- Lundu/ Solta o sapo . Tradio oral brasileira, letra de Paulo Freire . 324
13- Manuelzo . Paulo Freire . 443
14- Blanca nia . Tradio oral sefardita . 736
15- Saltarello/ Aboio . Annimo (sc. XIV)/ Tradio oral brasileira, letra de Paulo Freire. 330
16- Ay luna/ A lua girou . Annimo (sc. XVI)/ Tradio oral brasileira . 618
Tempo total: 70:36:00
Gravao:
Direo artstica: Anima Tcnico: Plnio Hessel
Produo fonogrfica: Valeria Bittar Assistente: Rodrigo Sab
Produo executiva: Valeria Bittar e Luiz Fiaminghi Local: Teatro Alfa, do Instituto Alfa de Cultura, So Paulo-SP
Co-produo: Anima Data: 2000
Instrumental:
Cravo: construdo por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1994), segundo modelo alemo de Christian Zell (Hamburgo, 1741)
Dulcimer: construtor desconhecido, cpia de modelo do sc. XIII
Flautas: doce soprano handfluyt em d construda por Helge Stiegler (ustria, 1985), segundo modelo de Jacob van Eyck (Holanda, ca.
1647); doce contralto ganassi em sol construda por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1993), segundo modelo de Fontego Ganassi (Itlia, ca.
1535); doce contralto barroca em f construda por F. Morgan (Austrlia, 1980), segundo modelo de J. C. Denner (Alemanha, ca. 1700);
flauta indgena kuluta, tradicional da tribo Kalapalo (Alto Xingu-MT); flauta indgena kuluta, tradicional da tribo Mehinaco (Alto Xingu-
MT); mejuez, tradicional srio, construtor desconhecido.
Percusso: bendir cpia de modelo turco por Antnio Gamez (Madri, 1994); moringa vaso de cermica, cpia de marajoara (PA); zarb
construdo por Sr. Narciso, segundo modelo annimo iraniano; tringulo; pandeiro; tambor de mina; caixa de folia; casco de bfalo;
caxixi; marac; kalimba; berimbau.
Rabecas: duas construdas por Nelson dos Santos (Marechal Deodoro-AL); uma construda por Mestre Davino (Cananeia-SP);
Violas: duas violas de dez cordas, construdas por Verglio Lima (Sabar-MG, 1991 e 1996); viola de cocho, construda por Brz da Viola
e Renato Vieira (So Jos dos Campos-SP, 1999), segundo modelo tradicional da regio do Pantanal, MT; violade, construdo por
Fernando Vanini (Campinas-SP, 1999).
Dados do encarte:
Descrio: livreto em capa dura, 60 pp. (no numeradas), bilnge (portugus/ ingls)
Textos: Luiz Fiaminghi, Valria Bittar, Patrcia Gatti, Paulo Freire, Plnio Hessel
Criao, projeto grfico e ilustraes: Marcelo Taube
Produo grfica e pesquisa iconogrfica: Valria Bittar
Fotos: Eduardo Mandell
Traduo: Anthony Cleaver
Ilustraes e textos antigos: cedidos e microfilmados pela Fundao Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro-RJ)
160
5.4.2 Especiarias
A temtica deste disco se refere aos elementos trocados nos escambos na poca do
descobrimento do Brasil. Por meio destes objetos, estabelecia-se um dilogo inicial entre o
mundo das tradies ibricas do colonizador e o mundo das tradies indgenas do
colonizado. Identificamos cinco msicas, no total, em que aparecem referncias explcitas ao
universo simblico nordestino.
A primeira do disco, Tupinamb se refere ao primeiro grupo indgena que
estabelece contatos com os europeus, no sculo XVI. A msica traz melodia de um
candombl de caboclo, recolhido por Camargo Guarnieri em Salvador-BA, em 1937, que
teve como informante Adrovaldo Martins dos Santos.
Craio, como o prprio nome sugere, um baio para cravo, composio original
de Gramani, em cima da qual o grupo desenvolve um arranjo que trabalha com os planos
timbrsticos e meldicos, explorando uma polirritmia marcante na obra do compositor. De
acordo com o texto do encarte, a improvisao inicial do zarb anuncia este rendado rtmico,
bordado e costurado pelas agulhas do cravo.
As msicas Mana/ La Rotta, Saltarello/ Aboio e Ay Luna/ A Lua Girou
apresentam propostas similares quanto ao uso da tradio oral. Nelas, a noo simblica de
ponte torna-se quase que literal, conectando o imaginrio nordestino a danas medievais. No
primeiro caso, conforme explica o texto do encarte:
Mana uma melodia proveniente do cancioneiro nordestino, famosa por
ter sido utilizada por Villa-Lobos na Bachiana n 4. La Rotta uma
estampie, extrada do manuscrito London BM add 2997, que tem como
prlogo o Lamento di Tristano, considerada uma das mais belas melodias
medievais. Em nossa verso, Mana, triste lamento do serto do Caic,
uma metfora do lamento medieval, elo e eco de sofrimentos de pocas to
distantes.
Acerca da segunda msica, o Saltarello intermediado por uma parte
improvisatria da voz que, aps uma fermata da flauta, emite seu canto em forma de aboio.
Paulo Freire comps uma letra que alude ao sofrimento da mulher do vaqueiro quando este a
abandona para guiar o gado. Como o texto explica, sua melodia foi improvisada sobre um
aboio baiano.
A ltima msica faz uma conexo entre o vilancico encontrado no Cancioneiro de
Uppsala (1556), denominado Ay Luna que Reluzes, e a cano tradicional da Bahia, A Lua
Girou. No encarte, acrescenta-se que o cancioneiro uma importante coletnea de msica
renascentista ibrica, contendo 54 vilancicos a vrias vozes, que refletem ainda as razes
rabes em sua potica e no carter modal das suas melodias. Esse carter enfatizado no
161
arranjo do grupo, que utilizam como referncia da cano baiana a verso cantada por uma
costureira em cena do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto.
162
5.4.3 Amares
Ano: 2004
Formao instrumental:
Dalga Larrondo: percusso
Isa Taube: voz
Luiz Fiaminghi: rabecas
Patrcia Gatti: cravo
Ricardo Matsuda: viola caipira, violo
Valeria Bittar: flautas doce, flauta ykw
Msicas:
1- Tontinha . Tradio oral brasileira . 4:51
2- Banho-nho . Jos Eduardo Gramani (1944-1998) . 2:39
3- En la mar . Tradio oral sefardita . 5:45
4- Barcarola . Tradio oral brasileira . 4:16
5- Aleijadinho . Ricardo Matsuda (1965- ). 3:27
6- Ondas do mar de vigo . Martin Codax (sc. XIII) . 5:42
7- Estampie Ghaetta . Annimo (sc. XIV) . 3:57
8- Menina donzela . Tradio oral brasileira . 5:03
9- Improviso . Dalga Larrongo (1957- )/ Valeria Bittar (1962- ) . 2:42
10- Forrobod . Ricardo Matsuda . 4:42
11- Carta pro Z . Ricardo Matsuda . 4:20
12- Viva o sol e viva a lua . Tradio oral brasileira . 3:58
Tempo total: 01:04:40
Gravao:
Tcnico: Andr Mais
Mixagem: Ricardo Matsuda e Andr Mais
Local: MM Estdio, Campinas-SP
Data: 2004
Instrumental:
Cravo: construdo por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1993), segundo modelo de Paskal Taskin (Paris, 1723-1793)
Flautas: doce soprano handfluyt em d construda por Helge Stiegler (ustria, 1985), segundo modelo de Jacob van Eyck
(Holanda, ca. 1647); doce contralto ganassi em sol construda por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1993), segundo modelo de
Fontego Ganassi (Itlia, ca. 1535); doce contralto barroca em f construda por F. Morgan (Austrlia, 1980), segundo
modelo de J. C. Denner (Alemanha, ca. 1700); flauta indgena ykw, tradicional da tribo Enauen Nau (Serra da
Bodoquena-MT).
Percusso: bendir cpia de modelo turco por Antnio Gamez (Madri, 1994); moringa vaso de cermica, cpia de
marajoara (PA); zarb construdo por Sr. Narciso, segundo modelo annimo iraniano; caixa de congo, cpia de modelo
mineiro por Daniel Toledo (1999); caixa do divino, cpia de modelo maranhense por Sr. Peixinho; reco-reco, modelo e
construo de Tavares da Gaita (Caruaru-PE, 1999); tringulo; pandeiro; caixixi.
Rabecas: duas construdas por Nelson dos Santos (Marechal Deodoro-AL); uma construda por Mestre Davino Aguiar
(Cananeia-SP); construda por Martinho dos Santos (Morretes-PR).
Violas: duas violas de dez cordas, modelo e construo de Levi Ramiro (Bauru-SP, 2001 e 2003).
Violo: modelo e construo de Shigemitsu Sugiyama (So Paulo-SP, 1997)
Dados do encarte:
Descrio: livreto em capa dura, 80 pp., bilnge (portugus/ ingls)
Textos: Luiz Fiaminghi, Valria Bittar, Ricardo Matsuda
Reviso: Bruno Fuser
Criao, projeto grfico e ilustraes em aquarela: Marcelo Taube
Produo grfica: Valria Bittar, Marcelo taube e Luiz Fiaminghi
Fotos: Adriano Rosa, Carlino Amaral, Anglica Del Neri, Luciano Ponzio
Traduo: Julie Malzoni, Anthony Cleaver
Ilustraes e textos antigos: cedidos e microfilmados pela Fundao Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro-RJ)
Direo artstica: Anima
Produo fonogrfica: Patricia Gatti
Produo executiva: Valeria Bittar e Luiz Fiaminghi
Direo de gravao: Ricardo Matsuda
163
5.4.3 Amares
Este disco o que menos contm referncias ao universo sonoro nordestino:
identificamos trs, em um total de doze. Suas msicas possuem um fio condutor que assegura
a unidade do trabalho em torno da temtica do Amor, e podem ser divididas em dois blocos.,
classificados, desta forma, por Fiaminghi, em texto do encarte:
O primeiro engloba canes e danas medievais ibricas, da tradio
sefardita e da tradio oral brasileira cujo tema central o Amor e o Mar,
cantados atravs da tica da separao e da ausncia do amado. O segundo
formado por composies de membros do grupo que enfocam uma
sublimao do Amor, que a Admirao.
Alm do Banho-nho, que ser analisado adiante
195
, o Amares contm um
Romance da Nau Catarineta, do qual o grupo utiliza a melodia final para sua (re)construo,
de acordo com a coleta de Mrio de Andrade em suas viagens a Joo Pessoa-PR, entre 1928 e
1929. Os informantes foram os prprios Mestre e General da Barca, Joaquim Lus da Silva e
Samuel de Britto, respectivamente. Conforme informao do encarte:
O romance da Nau Catarineta uma das partes mais importantes da
Chegana de marujos, nome adotado por Andrade para designar as
danas dramticas populares do ciclo da navegao, que celebram as lutas
entre mouros e cristos e sintetizam as muitas histrias passadas no mar
pelos navegantes portugueses. (...) A Nau Catarineta considerada por
Andrade como o mais conservado dos romances ibricos entre ns.
Viva o Sol e Viva a Lua possui um arranjo surpreendente que mistura duas melodias
de Boi uma, parte de um Cavalo Marinho do Bairro de Baieux, em Joo Pessoa-PR, e o
outro, parte de um reisado do Distrito de Bela Vista, no Crato-CE -, com a letra do ltimo
cantada em ritmo de embolada.
O disco conta, substancialmente, com uma pesquisa de msicas coletadas por Mrio
de Andrade, e tambm de msicas da tradio sefardita e da msica medieval portuguesa. Os
arranjos procuram interligar estes trs universos sob a temtica do Amor, com diferentes
prismas das histrias dalm mar.
195
Cf. o subtpico 5.4.5.
164
5.4.4 Espelho
Ano: 2006
Formao instrumental:
Dalga Larrondo: percusso
Isa Taube: voz
Luiz Fiaminghi: rabecas
Patrcia Gatti: cravo, percusso
Ricardo Matsuda: viola caipira, percusso
Valeria Bittar: flautas doce, flauta ykw
Msicas:
1- Santidade/ Mundano . Tradio oral brasileira, arranjo de Ricardo Matsuda (1965- ) . 557
2- Bendito . Tradio oral brasileira . 501
3- Stella splendens in monte . Annimo espanhol (sc. XIV) . 055
4- Dos estrellas le siguen . Manuel Machado (1590-1646) . 238
5- A chantar . Comtessa de Dia (sc. XII) . 404
6- Caleidoscpio . Ricardo Matsuda . 302
7- Engenho novo . Tradio oral brasileira . 400
8- Jongo . Tradio oral brasileira . 243
9- Sereia . Tradio oral brasileira . 435
10- Beira mar (vinheta). Tradio oral brasileira . 156
11- Lamento . Ricardo Matsuda . 116
12- Casinha pequenina . Tradio oral brasileira . 416
13- Chominciamento di gioia/ Aboio . Annimo (sc. XIV)/ Tradio oral brasileira . 345
14- Rosa das rosas . Annimo portugus (Cantiga de Santa Maria X, sc. XIII) . 548
15- Rorate caeli desuper . Canto gregoriano Is. 45, 8; Ps. 18 . 417
16- Na hora das horas . Tradio oral brasileira . 146
17- Viva janeiro . Tradio oral brasileira . 333
18- Beira mar (faixa bnus) . Tradio oral brasileira . 436
Tempo total: 01: 04: 40
Gravao:
Tcnico: Andr Mais
Mixagem: Ricardo Matsuda e Andr Mais
Local: MM Estdio, Campinas-SP
Masterizao: Reference Mastering Studio
Instrumental:
Cravo: construdo por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1993), segundo modelo de Paskal Taskin (Paris, 1723-1793)
Flautas: doce soprano handfluyt em d construda por Helge Stiegler (ustria, 1985), segundo modelo de Jacob van Eyck (Holanda,
ca. 1647); doce contralto ganassi em sol construda por Abel Vargas (So Paulo-SP, 1993), segundo modelo de Silvestro Ganassi
(Itlia, ca. 1535); doce contralto barroca em f construda por F. Morgan (Austrlia, 1980), segundo modelo de J. C. Denner
(Alemanha, ca. 1700); doce tenor, construda por Luca de Paolis (LAquila, Itlia, 2006), segundo modelo de Rafi-P. Grece (Itlia,
sc. XVI); flauta indgena ykw, tradicional da tribo Enauen Nau (Serra da Bodoquena-MT).
Percusso: bendir cpia de modelo turco por Antnio Gamez (Madri, 1994); moringa vaso de cermica, cpia de marajoara (PA);
zarb construdo por Sr. Narciso, segundo modelo annimo iraniano; caixa do divino, cpia de modelo maranhense por Sr. Peixinho;
bombo criollo, construtor desconhecido (Bolvia, 2002); sino japons; conchas de caramujos; baquetas de flamboyant; condute.
Rabecas: duas construdas por Nelson dos Santos (Marechal Deodoro-AL, 1996 e 1998); uma construda por Fernando Vanini
(Campinas-SP, 2003).
Viola de dez cordas: modelo e construo de Levi Ramiro (Bauru-SP, 2001)
Dados do encarte:
Descrio: livreto em capa dura, 84 pp., bilnge (portugus/ ingls)
Textos: Luiz Fiaminghi
Projeto grfico: Isabella Melo e Mickael Jacques
Ilustraes: Isabella Melo
Editorao: Mickael Jacques e Karla Wanderley
Fotos: Fernando Lazlo
Fotografias dos espelhos: Gabi Bernd
Tradues: Thomas Nerney (portugus-ingls); Fernando Carvalhaes (latim e provenal); Angela Reones e Albor Vives Reones
(espanhol).
Revises: Tereza Candolo (portugus); Regina Stocklem (ingls)
Assessoria jurdica: Olivieri & Signorelli
Curadoria e direo musical: Anima
Direo executiva: Valeria Bittar e Luiz Fiaminghi
Coordenao de projeto: Luiz Fiaminghi
Direo de criao: Valeria Bittar
Direo de gravao: Ricardo Matsuda
Assistente de produo: Erika Hino
Direo de gravao: Ricardo Matsuda
165
5.4.4 Espelho
Nos discos anteriores, a medida em que se desenvolvia o repertrio e os arranjos
coletivos, o grupo percebia um determinado perfil musical que conduzia ao ttulo e/ou a uma
temtica em torno da qual se concentrava o trabalho. Com este ltimo foi diferente: o grupo
buscou experimentar o seu processo criativo a partir de uma idia pr-estabelecida, e depois
elaborar uma estratgia de aes e discusses, desde aspectos filosficos, simblicos e
cientficos sobre o espelho at os aspectos musicais de composio, arranjos, performance
com preparao cnica
196
, gravao etc. Conforme se explica no texto do encarte (p. 76):
Espelho uma alegoria musical que parte da hiptese que a msica
tambm um poderoso espelho capaz de refletir culturas e mundos distantes,
mensagens escritas h muito tempo e captadas hoje refletidas pelos seus
intrpretes no fidedignamente, mas com lealdade e tambm distores, a
ferrugem do tempo, o filtro das culturas e as impurezas de uma, entre as
infinitas interpretaes possveis do passado, no presente.
Jogando com estes simbolismos, o disco se divide em quatro partes: verso, reverso,
controverso e princpio. Cada uma dessas partes apresenta uma combinao entre o
repertrio medieval e renascentista europeu, preferencialmente de tradio ibrica, e a
msica de tradio oral brasileira, especialmente nordestina e mineira
197
. Do total de dezoito,
identificamos seis msicas com referenciais do Nordeste, espalhadas entre as quatro partes:
no verso, percebemos o Bendito, que o grupo aponta como originrio de Pernambuco, mas
ressalta que esta mesma msica possui vrias verses com letras, melodias e ritmos que se
diferenciam nas prticas culturais populares em diversos lugares do pas; no reverso, temos a
vivacidade de Engenho Novo; no controverso, o Chominciamento di Gioia/ Aboio; no
princpio, dois arranjos de Fernando Carvalhaes, Rorate Caeli Desuper e Na hora das Horas,
encerrando com Viva Janeiro.
O Bendito uma cano de ninar que se inicia com uma simulao da
paisagem sonora de uma feira, em sua diversidade de vozes e rudos, e aos poucos faz
sobressair a voz entoando o acalanto que bendiz o fruto nascido de Maria e Jos. Destaca-
196
Aprofundando sua concepo mais abrangente de concerto musical, o Anima recebeu suporte no trabalho
corporal e cnico do grupo de teatro Lume, com direo de Jesser de Souza e Raquel Hirson. Em outro trecho
do encarte (p. 78), seus integrantes expem mais esta inquietao que atravessam em seu fazer musical: Uma
outra questo importante para ns a reflexo sobre o fazer musical no palco, a performance musical. (...)
Aps quinze anos trilhando esse caminho, percebemos que o momento transformador do palco no deveria ser
imposto a ns como uma questo fechada, mas, pelo contrrio, suscetvel a leituras diversas, assim como o so
os arranjos e composies escritos para ou pelo grupo.
197
Mas incluem, ainda, a modinha paulista Casinha Pequenina, e a Sereia, inspirada em um samba de
cacete da regio de Tocantins.
166
se um dilogo expressivo entre a flauta tenor e a voz, cujo lirismo se entrelaa com o
improviso da moringa.
Sobre o Engenho Novo, que se refere a uma embolada do Rio Grande do Norte,
reproduzimos a interpretao do grupo pelas informaes do prprio encarte (p. 68-69):
Coco recolhido por Mrio de Andrade no engenho de Bom Jardim, em
1929, que teve como informante o famoso coqueiro/embolador Chico
Antnio. Mrio escreveu uma extensa pesquisa sobre os cantadores, e
refere-se sempre ao seu surpreendente encontro com esse embolados com
admirao por sua musicalidade, qualidade artstica e capacidade de
improvisao. (...) O arranjo do ANIMA parte desse material para recriar
sonoridades modernistas, ao estilo do Trenzinho Caipira de Villa-Lobos,
explorando o carter hipntico do virtuosismo vocal das emboladas e o
movimento repetitivo, quase maquinal, da percusso e do cravo.
Seguindo a idia traada em arranjos anteriores como o Saltarello/ Aboio e
Mana/La Rotta, justapem-se em Chominciamento di Gioia/ Aboio duas instncias de sentido
improvisatrio, tecendo a estampie annima do sculo XIV e o canto de provvel origem
moura dos aboiadores. No comentrio do encarte (p. 71), acrescenta-se que o aboio inserido
nessa estampie foi extrado de pesquisa realizada por Samuel Arajo e Ana Cristina Nbrega
sobre o cavalo marinho da Paraba de Mestre Gasosa, no bairro de Baieaux, Joo Pessoa,
Paraba.
Escritos especialmente para o Anima, os arranjos de Carvalhaes trabalham essa
ponte com o mundo medieval fazendo referncias musicais entre as religiosidades populares
e a liturgia crist. Rorate Caeli Desuper, conecta a invocao do canto gregoriano s
liberdades de emisso das articulaes contidas tambm no canto do aboio. A faixa seguinte,
Na hora das Horas funciona como uma continuao daquelas conexes, agora um glria que
sucede, alusivamente, ao intrito utilizado na msica anterior
198
, sobre um canto de cavalo
marinho paraibano. O arranjo substitui a citao bblica do Salmo 18, presente no glria,
pela letra de contedo similar na tradio popular, sobre o arqutico da criao.
Reproduzimos, abaixo, ambos os textos, de acordo com o encarte. De um lado, o salmo
afirma (p. 73): Os cus cantam a glria de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas
mos... O dia entrega a mensagem a outro dia e a noite a faz conhecer a outra noite; nessa
escritura dos cus no h termos, palavras, no se ouve o som... De outro lado, no arranjo,
a voz canta (p. 49): Deus fez o sol e a lua/ Fez suas verdes campinas/ Com suas flores
cheirosas/ E as guas cristalinas./ Deus fez o sol e a lua/ Fez as estrelas tambm/ Seguindo
nossa viagem/ Na hora de Deus amm.
198
Retirado dos manuscritos da abadia de Silos, Burgos, na Espanha, trata-se de um intrito do quarto domingo
do advento (conforme dados do encarte, p. 72).
167
Viva Janeiro toma como referncia a gravao do maestro e compositor Joo Omar
de Carvalho Mello
199
dos ternos de reis celebrados pela tradio popular no sudeste da
Bahia. Conforme explicao do encarte:
Viva Janeiro uma loa que espelha, em linguagem popular, a mesma
temtica de Rorate Caeli Desuper: que o cu fecunde a terra e dela brote o
Salvador, nosso alimento espiritual. Os ternos de reis fecham as
comemoraes de Natal no dia 06 de janeiro e representam a caminhada
dos Reis Magos em direo luz, festejando, de casa em casa, a data
mxima do Cristianismo. O cclico renascer das energias telricas,
celebrado de diferentes formas em todas as culturas, mantido nas
comunidades tradicionais que, de maneira coletiva, sabiamente persistem
em no cair no individualismo caracterstico das sociedades modernas.
5.4.5 Banho-nho
Esta msica, de Jos Eduardo Gramani, foi composta, originalmente, para cravo e
rabeca, em maio de 1993, no contexto das investigaes acerca das possibilidades sonoras da
Deodora, a rabeca construda por Nelson dos Santos. Com quadro cordas, afinadas em la-mi-
la-do# (l = 415 Hz), o instrumento possui um som agudo e vibrante. A verso do Anima,
que aqui analisamos, trata-se de um dos primeiros arranjos coletivos criados aps a entrada
de Matsuda, que configura a formao atual e mais duradoura. Bastante apreciados pelos
integrantes e pelo pblico, o arranjo se tornou um bis recorrente nas apresentaes, sendo
escolhido como bis oficial do espetculo Espelho, referente ao quarto CD. Tomamos
como base da anlise o mesmo referencial que o grupo utiliza em sua (re)criao: a obra para
rabeca e cravo de Gramani
200
. A msica dividida em duas partes que se repetem, sendo a
melodia da segunda apenas uma variao da primeira. Ao final, apresenta uma pequena coda.
Eis o tema:
(Parte 1)
199
Disco Alegrementes Cantano: Terno de Reis de Vitria da Conquista, lanado de forma independente em
2004.
200
A partitura encontra-se em anexo. Trata-se de uma verso copiada pelo prprio compositor, fotocopiada e
enviada, gentilmente, por Patrcia Gatti.
168
(Parte 2)
O acompanhamento, por sua vez, pode ser dividido em trs sees de configuraes
rtmicas distintas. Seguindo a partitura de Gramani, estas sees correspondem a: (seo A)
compassos 1 ao 8; (seo B) compassos 9 ao 16; (seo C) compassos 17 ao 24. A seguir,
exemplificamos as trs configuraes:
(Seo A)
(Seo B neste ex., apenas compassos 9 ao 11)
169
(Seo C)
Como o prprio Anima observa, as obras de Gramani tm como caracterstica uma
explorao da polirritmia em diversos nveis meldicos. O arranjo do grupo busca estender
essa idia ao mximo, ampliando o instrumental e o efeitos timbrsticos, e incluindo uma
percusso que, por vezes, (des)marca o baio, deslocando as acentuaes em jogo com o
cravo, a partir do qual surge a base rtmica da pea.
Como foi dito, o acompanhamento exposto em trs figuraes rtmicas diferentes.
O arranjo do grupo inicia com a figurao rtmica da seo B, com o cravo, acompanhado
pela marcao binria do caxixi. Nesta figurao, o acorde de l sem tera disposto em
semicolcheias e alterna na voz superior, a stima, a quinta e a quarta alterada do modo, as
quais criam uma sensao de metro ternrio dentro do binrio.
Tal ambiguidade rtmica mantm-se at a prxima figurao rtmica (seo C), em
que o ritmo do baio marcado no baixo
201
(com l pedal), estabelecendo claramente o
metro binrio. Sobre essa marcao, o metro ternrio anterior agora estabelecido
claramente (em 3/8), deixando explcita a sobreposio de metros. A quinta desce
cromatcamente at o r natural repetidamente, num 3/8 deslocado do binrio por uma pausa
de semicolcheia. Um sol repetido sempre junto ao mi (a primeira colcheia do ternrio)
refora e confirma o metro ternrio. Observa-se uma rica polirritmia, caracterizada pela
sobreposio e deslocamento de metros. Alm disso, a caixa de congo entra no incio desta
outra figurao, realizando a marcao sincopada do baio, mas estendendo ao quaternrio,
apoiado pela marcao binria do caxixi.
A combinao destes elementos, at o momento, funcionam como uma introduo,
no arranjo do grupo. Ao final da seo C, aps uma virada da caixa, inicia-se a melodia da
rabeca, correspondente parte 1. Enquanto isso, o cravo executa a seo A. Nesta figurao
201
Mo esquerda da linha do cravo.
170
de acompanhamento, no h sobreposio ou deslocamento de metro, o binrio atua sozinho.
O pedal em l praticamente inalterado, ficando o caminho harmnico a cargo das vozes
superiores
202
(do acompanhamento) em teras, que comeam formando l diminuto com o
pedal, e logo resolve em l maior, e progride ento para r sustenido diminuto (com baixo na
quinta, l), l com stima, e l com nona (os dois ltimos sem a tera). A caixa continua em
quaternrio
203
.
Aps a repetio, a rabeca segue a melodia na parte 2, acompanhada pelas
respectivas sees B e C, e a flauta entra tocando a segunda voz das teras. Repete-se o efeito
polirrtmico, acrescentando-se o adensamento instrumental. Ao fim da Parte 2, inicia-se uma
seo improvisatria da rabeca, o cravo silencia e a caixa passa a uma levada binria do
baio, acompanhada de um tringulo. Configura, assim, um trio em formao instrumental de
tradio popular nordestina. O improviso da rabeca se estende por 6 sees de 8 compassos
cada, at a flauta se juntar ao grupo. Valria toca duas flautas ao mesmo tempo, e desenvolve
sua melodia, sobre o modo de l, utilizando o ritmo do baio que j foi tocado pelo cravo
(acompanhamento da mo esquerda), na seo A. Flauta e rabeca se prolongam, no
improviso, por mais 4 sees de 8 compassos cada. O improviso acaba com todos se
encontrando no mesmo ritmo, quiltera de 3:2. O silncio, ao mesmo tempo em que prepara,
deixa em suspenso o que vem a seguir, uma sensao prolongada por 4 tempos de virada
da caixa. Ento, eis que entra a voz.
A voz retoma a parte 1 da melodia, mas o cravo retorna com uma combinao
diferente, tocando a seo B. Como se explica no encarte (p. 27), a letra uma adaptao do
texto proveniente da tradio oral, que ficou celebrizado pelo cantador e rabequeiro cearense
Cego Oliveira.. Reproduzimos tal texto logo abaixo (p. 28):
Essa minha rabequinha
meus ps, minhas mos.
Minha roa de mandioca,
Minha farinha, meu feijo.
minha safra de algodo,
Dela eu fao a profisso,
Por no poder trabalhar,
Por no poder enxergar.
Um belo dia fui ao padre perguntar,
Se nessa vida, se cantar fazia mal,
Ele me disse: pode santar bem na praa
Porm de cantar de graa,
Cai em pecado mortal.
202
Mo direita da linha do cravo.
203
Cf. seo A na p. 172.
171
Em sua entrada, a voz estende a melodia, em tempo quaternrio, enquanto o resto
do grupo mantm-se no binrio, porm com a ambigidade do 3/8 na linha do cravo, devido
aos deslocamentos de acentuao j expostos. Essa extenso do canto em quaternrio refora
no apenas o retorno da linha meldica, mas tambm a mensagem do texto cantado. Neste
momento, alm do cravo, apenas a viola e a caixa acompanham, contrastando com os timbres
da seo anterior. Ao acabar o segundo verso, a voz repete-os, agora, dobrando o tempo,
seguindo o binrio. A flautista canta junto, e a rabeca toca a melodia da parte 2. O cravo
retoma o binrio da seo A. O caxixi marca este binrio que todos compartilham no ritmo
do baio, em andamento alegre.
Aps a repetio, a voz inicia o terceiro verso (a flautista continua cantando junto,
fazendo uma segunda voz com intensidade mais fraca) com a melodia da parte 2, e a fala
apressada pelas semicolcheias provoca uma referncia ao desafio dos cantadores nordestinos.
A caixa retorna tambm, assim como o cravo, fazendo a seo B, mas em uma tessitura mais
aguda, uma oitava acima. O verso se repete quando o cravo entra na seo C, agora voltando
ao registro mdio, tal qual a partitura, e o grupo todo faz um acellerando, as vozes vo se
tornando cada vez mais faladas que cantadas. Ao final, a rabeca faz uma pequena coda, em
rubatto, mantendo o bordo em l, acompanhada do cravo.
5.5 Anima e o Nordeste: conexes armoriais, modernistas e ps-modernistas
O grupo aprecia a msica armorial e reconhece que o movimento legou importantes
contribuies s geraes posteriores, no que diz respeito valorizao do romanceiro
popular e a construo de uma esttica que mescla o erudito e o popular, utilizando o passado
ibrico e as tradies nordestinas. Valria e Fiaminghi
204
explicam a questo das referncias
armoriais da seguinte maneira:
204
Entrevista concedida a Eduardo Lamas, por correio eletrnico, em jun./jul. de 2001. Disponvel em: <
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=1413554&tid=2447230055541084961>. Consulta em: 10 dez.
2006.
172
Com certeza, o trabalho desenvolvido pelo Armorial e Suassuna na dcada
de 70 uma grande referncia para todos que trabalham com cultura
brasileira agora, e ser por muito tempo. A valorizao de instrumentos
tpicos brasileiros, como a rabeca e a viola caipira, alm da utilizao da
linguagem modal como um dos meios de ligao entre a Idade Mdia
ibrica e as razes brasileiras, que uma das bases para a criao da
sonoridade do ANIMA, j eram tambm utilizados conscientemente pelo
movimento Armorial.
O Anima participou de um projeto em homenagem ao Movimento Armorial,
promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, onde se apresentou no
dia 6 de maro de 2007, com o espetculo Origens: romanceiro ibrico e tradio popular,
contando com a participao especial de Mestre Salustiano. Em entrevista condedida em 15
de fevereiro, Luis Fiaminghi comenta sobre o estranhamento e a aceitao do convite:
A gente vai tocar agora em maro na abertura de um projeto importante no
Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil, que sobre o movimento
armorial. A gente vai tocar na abertura desse projeto. Eu falei com a
curadora do projeto, mas voc tem certeza que voc quer fazer isso?, ah,
sim e tal, quer dizer, o Anima no um grupo armorial, a gente nunca foi,
a gente no fez parte desse movimento e a gente no se considera
integrante desse movimento, apesar de ser um grupo devedor desse
movimento, como toda msica popular brasileira ps-anos 70 . Quem que
no ouviu o Quinteto Armorial, na dcada de 70? (...) O movimento
armorial era o grande baluarte, o Antnio Nbrega era referncia de um
violino no... quer dizer, era e , n? A grandeza dele est a, ele fez todo
esse percurso, tem traado uma carreira prpria, n? Ento, o Anima no
armorial, mas tem elementos ali dentro.
O trabalho do Anima no se prope a uma descoberta das razes culturais
brasileiras, como a gerao dos folcloristas, seguindo o exemplo de Mrio de Andrade. Os
integrantes no fazem coleta de canes ou pesquisa de campo para utilizar em suas
(re)criaes, mas (re)significam materiais coletados por modernistas, como Mrio de
Andrade e Camargo Guarnieri, que ficaram registrados em relatos e livros. Alm disso, sua
msica apresenta, sim, um direcionamento nacionalista, mas no contm aquele
essencialismo que os compositores modernistas brasileiros herdaram, em certa medida, do
romantismo europeu. Neste aspecto, o Anima no compartilha com a postura essencialista
em relao cultura popular. Contudo, Valria tece algumas reflexes sobre esta necessidade
de construir razes no mundo moderno:
A gente no consegue, como urbanos brasileiros que somos, ter uma
saudade de uma cano de ninar, porque a gente no tem. A gente no tem
mais como ter saudade ou memria musical. Cad a minha memria
musical infantil, a minha Folia de Reis ou a minha Idade Mdia? O ser
urbano brasileiro no tem Idade Mdia, no tem vov embalando, no tem
uma escrava na senzala tambm, n? Porque a gente tudo imigrante. No
Anima, o nico que tem uma origem mais antiga brasileira, uma parte, o
Fia e a Isa, que come aquele pozinho de queijo e docinho de goiabada.
173
Essas coisas, a gente no tem nada, ento, a minha memria musical o
que uma classe urbana emergente mdia teve. S que a a gente foi estudar
msica, fazer Msica Antiga com uma vontade de ter uma histria musical.
Ento, aonde que eu vou buscar a minha histria musical? No na msica
de salo, a gente foi buscar uma memria na msica de tradio oral, que
tambm no nos pertence. Diretamente, no me pertence. quase um
pensamento... eu acho assim, teve alguns de ns, do Anima, que tiveram
um pezinho num pensamento poltico, encarou o movimento armorial
como um pensamento poltico, incorporou a um pensamento poltico, de
uma busca de um povo brasileiro, enxergou o Mrio de Andrade dessa
forma tambm, que ele tinha essa busca de uma msica brasileira, de uma
cultura brasileira. O Marcus Pereira, aquilo foi pra minha gerao, at foi
mais importante que o Mrio de Andrade, porque j desconhecia um pouco
de Mrio de Andrade. Ento, a coletnea do Marcus Pereira, quando ela
veio, pra o pessoal politizado que fazia parte dessa elite mais politizada e
tal, isso teve um impacto muito grande.
Pode-se observar, pelo depoimento da flautista, que a convivncia de sujeitos
descentrados contribuiu para a busca de razes, que resultou no em um pensamento
essencialista da tradio cultural, mas em uma viso plural, heterognea, mltipla. Conforme
se referira o prprio Fiaminghi, em texto citado, uma viso que rene fragmentos distintos de
forma coerente, como uma colcha-de-retalhos.
Ao explicar a tcnica de criao do grupo, Valria afirma que, em vez de arranjos, so
feitos (des)arranjos. Patrcia
205
concorda com a nomeao do processo compositivo:
desarranjo. Algum prope, mas da vem algum e desprope tudo, e ao despropor, est
propondo alguma coisa, e a vem o outro e desprope e prope de novo. Ento prope e
desprope, acho que essa a tcnica. Fiaminghi
206
faz um contraste deste tipo de prtica
com a da tradio clssico-romntica, aproximando o intrprete de Msica Antiga com o de
Msica Contempornea:
Na msica medieval, a o intrprete tem que ser arranjador, tem que saber
qual a funo daquela msica, o que ele quer, muito menos importante
essa postura do msico que senta e fala cad as notas pra eu tocar, ah,
no tem nota nenhuma, eu vou embora. quase como um work in
progress, que existe tambm na msica contempornea, o aleatrio, a
pesquisa, ento, o Anima tinha essa linha, no conscientemente por parte
de todo mundo, mas era o que acontecia de fato, nos ensaios.
Mais adiante, em seu depoimento, o rabequista descreve suas impresses acerca de
um ensaio do Anima que presenciou quando ainda no fazia parte do grupo:
O que eu me lembro desse ensaio da baguna do ensaio, uma coisa que,
se eu tivesse l participando como msico, eu no voltaria mais. Era muito
anrquico pro meu gosto. Muita gente conversando, muito pouca msica
acontecendo, parecia um encontro de amigos que tavam procurando
205
Entrevista concedida em 22 jan. 2007, em Campinas-SP.
206
Entrevista concedida em 15 fev. 2007, em Campinas-SP.
174
alguma coisa que nem eles sabem direito o qu. Mas isso fazia parte dessa
procura. E talvez, tanto barulho ali, tanta coisa, tanta disperso, era
decorrente dessa pergunta bsica que o grupo tava lidando com uma
matria que no era registrada. Ento, diferente, voc vai num ensaio de
um quarteto, um trio sonata barroco, cada um tem a sua parte, a, claro,
conversa, se discute como fazer isso ou aquilo, mas j t tudo pr-
determinado, ningum vai inventar o trio sonata. E o mximo que se faz
tentar agregar alguns elementos histricos ali, mas o ponto de partida j
muito mais adiante. Isso tambm foi um elemento importante pra mim,
porque se eu tivesse que tocar no Anima no lugar do Gramani nessa poca
eu, provavelmente, no ia estar apto a tocar. Eu iria embora, falando ah,
esse pessoal muito... isso no vai dar em nada.
Segundo Fiaminghi, o excesso de opinies torna a criao um processo doloroso, mas
que imprime essa idia do coletivo, de se perder a nfase nos autores dos fragmentos e
atribuir uma importncia ao resultado final, conjunto. Ele observa, ainda, que aquela noo
catica inicial se minimiza, ao passo em que o grupo se torna profissional, e vai se
constituindo de modo mais claro as funes de cada um. Conforme ressalva: ainda tem
muita baguna durante o ensaio, mas menos do que aquela primeira que eu vi, e que me
restou s essa imagem. Essa imagem de anarquia. No, a anarquia foi domada. Diante dessa
afirmao, Valria, presente na entrevista, interfere com a seguinte colocao: A anarquia,
ela a distribuio de responsabilidades, s isso, entendeu? Logo aps, a flautista constata:
Bakunin isso. Na realidade, o anarquismo no quer nenhum poder
centralizado porque ele acredita no senso de responsabilidade de cada um.
E eu acho que isso que o Gramani tinha de anrquico, e que as pessoas
que tm um pouco dessa semente dentro se juntaram tambm, entendeu?
Ento, aos poucos, o caos se ordena conforme as responsabilidades
assumidas, foi se clareando bem as responsabilidades assumidas.
175
CONCLUSO
Observamos que o processo histrico brasileiro, no sculo passado, constri, por
aes sociais e simblicas, uma regio a qual se atribui um celeiro de tradio cultural
popular. Esta imagem-discurso do Nordeste permanece conservada ou discutida no debate
poltico, cientfico, econmico, e tambm pelas formas simblicas inclusive, musicais -, em
uma teia complexa de significaes negociadas quotidianamente. Fazer msica ligada ao
tradicional passa pela organizao de sons que evidenciam identidades. Se uma das
tematizaes for a identidade nordestina, pensada como unidade-diversidade, as prticas e as
produes musicais do presente apresentam uma leitura e um procedimento de composio e
trabalho que privilegiam preocupaes atuais, por combinaes de experincias individuais e
coletivas, mas que sempre se relacionam com aquelas imagens-discursos construdas
historicamente, ao ponto de, em certos casos, tornarem-se fixadas, institucionalizadas ou
naturais.
A pesquisa com objetos-sujeitos que possuem trabalhos musicais em andamento
apresenta vrios riscos, ainda mais quando se prope a uma interpretao que privilegia o
plano dos significados ao plano das estruturas. A ausncia do requerido distanciamento,
temporal ou pessoal do objeto, insere a prpria pesquisa - e pesquisadora no enredo das
imagens e discursos, seja com a msica estudada, os msicos envolvidos em sua construo
ou na prpria relao com o universo simblico investigado. At este ponto, no se trata de
um risco, mas um desafio reconhecido e proposto: os deslizes ocorrem na medida em que vai
se constituindo a compreenso das teias de significados que abrangem o trabalho do
Syntagma e do Anima. Sentimos que, ao se formarem, na mente e no papel, essas teias
correm riscos de escorregarem por nossas mos, tos frouxos os laos, ou confundirem-se
mos e fios em um mesmo n, comprometendo o sujeito-pesquisador, ou ainda de gerarem
teias, mesmo amarradas, de dimenses to grandes que as mos no conseguem segurar.
Para minimizar tais riscos, buscamos, ao longo do trabalho, manter uma preocupao
conceitual e metodolgica, discutida e revisada a cada conjunto de descobertas empricas,
na pesquisa de campo. Diante da complexidade e do dinamismo observados nos trabalhos
musicais do Anima e do Syntagma, no nos sentimos confortveis em fornecer um
diagnstico: a maior dificuldade em se concluir ter de fechar uma realidade em aberto.
Desta maneira, as concluses aqui apresentadas no se pretendem diagnsticos
definitivos, mas antes, resultados obtidos por uma (re)interpretao parcial, portanto dos
elementos simblicos que configuram um sentido de identidade, com base em uma
interpretao tambm parcial dos prprios integrantes dos grupos. Em sntese, apresenta-
176
se, neste momento, a leitura da leitura. Entendemos, assim, que, em primeiro lugar, a
representao simblica do Nordeste continuamente redefinida, de forma flexvel, pelas
diversas (re)criaes dos grupos, quase sempre de forma no intencional, no explcita. As
msicas, os discos, os concertos etc., so pensados com base no que j foi feito antes e no
que se deseja no presente, com procedimentos que envolvem praticidade, sensibilidade,
saberes e vises de mundo, mas no exatamente a reflexo no nvel aqui proposto. Em seu
fazer musical, os grupos Anima e Syntagma tambm (re)fazem o Nordeste, tomado, neste
texto, como identidade espacial. Para apreender suas leituras, temos que agrupar estas
(re)criaes em categorias mais amplas, de modo que seja possvel estabelecer dilogos com
diferentes universos simblicos e estticos que perfazem a regio. Dentre estes, propomos
discutir suas relaes com o modernismo e o ps-modernismo. A dimenso destes
parmetros permitem-nos, inclusive, enxergar os dois grupos dentro de uma perspectiva
conjunta, em certos casos.
O Syntagma e o Anima partem de um Nordeste com uma tradio valorizada,
vinculando-se construo simblica que se inicia com o modernismo. Alm disso,
tematicamente, os grupos se baseiam em referncias musicais que se marcaram na
Modernidade, como, por exemplo, as canes coletadas por Mrio de Andrade ou Camargo
Guarnieri, no caso do Anima, ou as msicas celebrizadas na voz de Luiz Gonzaga, no caso
do Syntagma. Por outro lado, a maneira como (re)criam e executam seus arranjos e
composies prprias possui uma viso diferente em relao busca da autenticidade da
cultura popular. Embora as matrias da imprensa, muitas vezes, insiram-lhes dentro deste
discurso repetido do autntico, por desconhecimento, suas prticas mostram que o popular
no visto como relquia a ser preservada ou resgatada. No h, tambm, aquela inteno
primordial do modernismo brasileiro, no sentido de se criar uma arte como expresso
autntica nacional por meio da eruditizao da cultura popular. Suas msicas no
pretendem, por assim dizer, atingir um grau mximo de brasilidade: elas trabalham elementos
que j se consideram enraizados, estabelecendo conexes simblicas com outros
elementos. Os termos elo e ponte, to utilizados nos releases do Syntagma e do Anima,
definem suas vises acerca da tradio e da modernidade, percebendo esta dicotomia no
como conflito tampouco como comunho pacfica, mas como uma troca possvel.
Trata-se, portanto, de um Nordeste (re)inventado, na acepo de Hobsbawm
207
. Os
grupos estabelecem uma relao de continuidade entre o presente e o passado, pela nfase na
temtica das tradies associadas regio. No lhes interessam o Nordeste paradisaco dos
207
Referido no cap. 2.
177
turistas ou das micaretas. Eles buscam (re)criar o Nordeste da longa memria, em geral,
sertanejo, dionisaco, rural, prximo natureza. Estas imagens-discursos so retomadas em
suas msicas, mas no com uma leitura saudosista e sim contempornea.
Palavras recorrentes na autodescrio de suas prticas musicais, seus trabalhos
valorizam a experincia e so movidos por inquietaes. Procuramos observar a tematizao
do Nordeste como parte resultante destas inquietaes e buscas, e como fruto dessa vontade
de experimentar ou de conferir um significado mais denso s experincias musicais. Ao
(re)criarem obras com referncias ao mundo da tradio oral nordestina, os grupos no se
colocam em uma busca revolucionria por uma nova ordem social ou, ainda, esttica. Suas
obras expem pequenas fraes de um universo tradicional que lhes cercam, lhes encantam e
lhes inquietam a ponto de procurarem repens-lo, de maneira prpria. Por outro lado, esta
maneira particular prope um outro sentido de subjetividade, que foge daquele culto ao
gnio artstico, de cunho elitista, mas que questiona, sob outro prisma, as produes
chamadas comerciais, sejam aquelas produes musicais de apelo fcil ao consumo
massivo ou aquelas posturas utpicas que glamourizam os valores do mundo tradicional,
muitas vezes, de uma forma exagerada e irrefletida. Se os grupos evitam tanto a alta
cultura, quanto o apelo comercial, ou ainda a militncia, o Nordeste que eles
representam simbolicamente se constitui, assim, nem folclore (ou pra-folclore) nem
folclorizante, nem a mesmice nem a vanguarda. Pode-se afirmar que o Anima e o Syntagma
experimentam sobre um Nordeste experiente, sobre tradies com as quais eles estabelecem
vnculos importantes, em nveis individuais e coletivos diferentes.
A heterogeneidade de instrumentos e repertrios, as hibridaes sonoras, a
valorizao das diferenas culturais, colocariam a esttica musical do Anima e do Syntagma
ao encontro das perspectivas ps-modernistas. Alm disso, seu fazer musical, sua formao
camerstica, as relaes interpessoais que incentivam a participao em conjunto, a ausncia
de hierarquias no de funes - entre os integrantes, a ausncia de solistas, a
espontaneidade nos ensaios, a postura mais descontrada dentro e fora do palco, so
caractersticas apreciadas pelo movimento de Msica Antiga, especialmente na sua linha no-
acadmica, que incentiva a Hausmusik e questiona a formalidade e a sisudez da postura
erudita de tradio clssico-romntica. A prtica da Msica Antiga, marcante em grande
parte dos integrantes atuais e antigos, exerce influncia na liberdade de interpretao e
criao de arranjos, na versatilidade instrumental, e ainda no desprendimento em relao ao
gnio criador. Neste sentido, os grupos dessacralizam tanto a cultura erudita quanto a
popular.
178
Por outro lado, a idia de Nordeste que os grupos trazem compe um universo de
tradio com um sentido profundo, substancial em suas prticas musicais. Se este Nordeste
conectado com outras representaes de modo aberto e diverso, e sob este prisma, configura-
se em um Nordeste ps-moderno, o mesmo no pode ser afirmado quanto ao que buscam
com esta sobreposio de mundos tradicionais e contemporneos: no propem um olhar
simplificado ou superficial, mas procuram um adensamento de significao do presente.
Desta forma, os grupos representam um Nordeste hbrido, dentro de uma problemtica ps-
moderna, que expe, de acordo com Garcia Canclini
208
, a co-presena dos mundos
tradicional, moderno e ps-moderno por um mesmo fazer musical.
208
Conforme abordado no cap. 3.
179
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ADORNO, Theodor W. A Indstria Cultural. Traduo de Amlia Cohn. In: COHN, Gabriel.
(Org.). Comunicao e Indstria Cultural: leituras de anlise dos meios de comunicao na
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MSICA antiga: Europa e Nordeste. O Povo. Fortaleza, 17 nov. 1997. Vida & Arte, p. 1B.
MSICA antiga na tica nordestina. O Povo. Fortaleza, 27 mai. 1987, Segundo Caderno, p. 1.
MSICA clssica: o Cear tem disso sim. O Povo. Fortaleza, 19 mai. 1989, Vida & Arte, p. 1.
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NO CEAR tem msica medieval. Tribuna do Cear. Fortaleza, 17 nov. 1997. Entre Aspas, p.
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O BELO som dos instrumentos medievais e renascentistas. O Povo. Fortaleza, 20 set.1986,
Segundo Caderno, p. 3.
O NORDESTE barroco: um grupo de jovens recria a msica antiga. Veja. So Paulo: Abril, 18
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PALCIOS, Maria Liz. Reflejos de uma rica identidad. Ultima Hora. Asuncin, 04 ago. 2001.
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PRMIO na msica erudita. O Povo. Fortaleza, 26 fev. 1998. Vida & Arte, p. 1.
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SANTOS, Suzamara. O bom gosto o tempero. Correio popular. Campinas: Conrad, 25 jun.
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SOARES, Alessandro. Msica Antiga, som digital. Dirio do Povo. Campinas, 22 mai. 1997,
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STRINI, Tom. Intuitive Brazilian ensemble Anima improvises freely. Milwaukee Journal
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SYNTAGMA. Dirio do Nordeste. Fortaleza, 16 nov. 1997. DN Gente, Em Cartaz, p. 10
SYNTAGMA. Veja. So Paulo: Abril, 22 ago. 1989. p. ?
190
SYNTAGMA Instrumental. O Povo. Fortaleza, 13 jan. 2005. Vida & Arte, p. 4.
SYNTAGMA: o Barroco do Nordeste. Brasil Europa News. Costa da Caparica, Portugal. A. 1,
n 8, nov./dez. 1990.
SYNTAGMA: Um recital de msica antiga. Dirio do Nordeste. Fortaleza, 19 mai. 1989,
Variedades, Caderno 3, p. 6.
TEATRO do Ibeu completa 25 anos com msica erudita. Dirio do Nordeste. Fortaleza, 11 jul.
2000. Caderno 3, p. ?.
TEATRO do Ibeu faz 25 anos. O Povo. Fortaleza, 11 jul. 2000, Vida & Arte, p. ?.
UMA ODE msica antiga. O Povo. Fortaleza, 30 abr. 1999. Vida & Arte, p. ?.
VALENTE, Ana Paola. Nau de especiarias sonoras. Palavra. Belo Horizonte: Gaia, nov. 1999.
p. 30-33.
VALLEJOS, Felipe. Anima demonstro su capacidad para unir tiempos y mundos. Dirio La
Nacin. Montevideu, 05 ago. 2001. p.?.
WATERMAN, Rodney. Recordings Reviews. Cinnamon Sticks: the recorder in Australasia.
Armidale, Australia: Orpheus Music, May 2001. vol. 2, n. 1, p. 32
DISCOGRAFIA
ANIMA. Amares. Direo artstica: grupo Anima. Produo executiva: Valria Bittar e Luiz
Fiaminghi. Campinas: grupo Anima, 2004. 1 CD.
______. Especiarias. Direo artstica: grupo Anima. Produo executiva: Valria Bittar e
Luiz Fiaminghi. Campinas: grupo Anima, 2000. 1 CD.
______. Espelho. Direo artstica: grupo Anima. Produo executiva: Valria Bittar e Luiz
Fiaminghi. Campinas: grupo Anima, 2006. 1 CD. Projeto aprovado pela Lei Federal de
Incentivo Cultura n 8.313/91.
______. Espiral do Tempo. Direo artstica: grupo Anima. Produo executiva: Valria Bittar.
Campinas: grupo Anima, 1997. 1 CD.
DUO BEM TEMPERADO. Mexericos da Rabeca. Direo musical: Jos Eduardo Gramani e
Ana Salvagni. Produo: Angela Regina. Campinas: J. E. Gramani e A. Salvagni,1997. 1 CD.
CAVALO Marinho da Paraba: Brasil. A Viagem dos Sons. Superviso Geral: Samuel Arajo,
Centro de Pesquisas Folclricas, UFRJ. Vila Verde, Portugal: CNCPD/ Pavilho de Portugal
da Expo 98/ Tradisom, 1998. 1 CD.
MISSO de Pesquisas Folclricas. Msica Tradicional do Norte e Nordeste: 1938. Curadoria:
Marcos Branda Lacerda. So Paulo: Servio Social do Comrcio - SESC-SP, Prefeitura da
Cidade de So Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Centro Cultural So Paulo, 2006. 6
CDs.
191
SYNTAGMA. Miracula. Direo musical: Heriberto Porto. Fortaleza: grupo Syntagma, 2004.
1 CD. Projeto aprovado pela Lei Federal de Incentivo Cultura n 8.313/91.
______. Syntagma. Direo musical: Liduno Pitombeira. Produo: Letra e Msica. Fortaleza:
grupo Syntagma. 1 CD. Projeto aprovado pela Lei Estadual de Incentivo Cultura n 12.464
OBRAS MUSICAIS
GRAMANI, Jos Eduardo. Banho-nho. 1993. 1 partitura. Rabeca e cravo.
PITOMBEIRA, Liduino. Fantasia sobre a Mui Rendra: op. 1. 1988. 1 partitura. Conjunto de
flautas e cravo.
______. Variaes sobre o Juazeiro: op. 4. 1991. 1 partitura. Flautas doce, viola da gamba,
cravo e percusso.
______. Seresta n 9: op. 83. 2004. 1 partitura. Grupo de cmara.
______. Sute Russana: op. 11. 1992. 1 partitura. Piano.
192
ANEXO 1
Neste envelope, encontram-se trs discos elaborados especialmente para a pesquisa.
So eles:
(a) um DVD, com: videoclipe do grupo Anima, sobre o processo de gravao do
ltimo CD, Espelho (2006); programa especial sobre o lanamento do ltimo CD do grupo
Syntagma, Miracula (2004); srie de reportagens, matrias de telejornais e outros programas
televisivos sobre diversas fases do grupo Syntagma.
(b) CD de udio com uma compilao de msicas do grupo Anima, que apresentam
alguma referncia ao universo simblico nordestino.
(c) CD de udio com uma compilao semelhante do grupo Syntagma
193
ANEXO 2
SYNTAGMA: LISTA DE INTEGRANTES
1- Abrao Saraiva
2- Adriano Vasconcelos
3- Airton Montezuma Filho
4- Anamaria Conde
5- Andr Vidal
6- Angelita Ribeiro
7- Carlos Velzquez
8- Ceclia do Valle
9- Clio Lessa
10- Csar Moura
11- Csar Olavo
12- Cludia Leito
13- David Castelo
14- Deysa Di Moraes
15- Deyves Di Moraes
16- Duda di Cavalcanti
17- Francisco Ferreira
18- Giovanni Pacelli
19- Glauco Vieira
20- Helano Silveira
21- Henrique Torres
22- Heriberto Porto
23- Hiram Lage
24- Jacqueline Eugnio
25- Jorge Santa Rosa
26- Joseilson
27- Lia Parente
28- Lia Vilar
29- Liduino Pitombeira
30- Luciana Gifoni
31- Marcelo Guerra
194
32- Marcelo Holanda
33- Marcelo Moreira
34- Marcio Mendona
35- Mrcio Soares
36- Marcos Maia
37- Marcos Paulo Miranda
38- Marcos Maia
39- Mardnio Oliveira
40- Maria Helena Lage
41- Mirella Cavalcante
42- Myrlla Muniz
43- Nara Vasconcelos
44- Nehemias dos Santos
45- Ocelo Mendona
46- Orguimar Neto
47- Rainer Beckman
48- Renato Pinto
49- Ricardo Pereira
50- Roberto Gibbs
51- Samuel Saraiva
52- Solange Gomes
53- Snia Barroso
54- Snia Muniz
55- Valder Freire
56- Valter Clio
57- Vernica Lapa
58- Werton Arajo
59- Glauco Vieira
195
ANEXO 3
SYNTAGMA: FOTOS
[1]
[2] [3]
1- Os fundadores. Da esquerda para a direita, em p: Valder Freire, Henrique Torres, Nara Vasconcelos, Liduno
Pitombeira e Anamaria Conde. Sentadas: Angelita Ribeiro, Cludia Leito e Lia Parente.
2- Concerto no Centro Aquariano, em 1989. Em p, da esquerda para a direita: Ocelo Mendona, Csar Moura,
Ricardo Pereira, Myrlla Muniz e Liduno Pitombeira. Sentados nas cadeiras: Duda Di Cavalcanti e Valder
Freire. Sentados no cho: David Castelo, Angelita Ribeiro, Henrique Torres e Anamaria Conde.
3- Depois do ensaio, na casa de Angelita Ribeiro, em 1989, com o cravo e a espineta. Em p, da esquerda para a
direita: Maria Helena Lage, Ricardo Pereira, Angelita Ribeiro, Henrique Torres, Duda di Cavalcanti e David
Castelo. Abaixados: Myrlla Muniz, Ocelo Mendonca, Liduno Pitombeira, Valder Freire e Orguimar Rocha.
196
[1]
1- Com figurino de Lino Villaventura, utilizado na reinaugurao do Theatro Jos de Alencar, em 1991, e em alguns
recitais posteriores. Na foto, de dezembro de 1990, apenas uma parte do grupo, da direita para a esquerda: Maria
Helena Lage, Duda Di Cavalcanti, Angelita Ribeiro, Henrique Torres, Renato Pinto e Ricardo Pereira. Em p, apoiado
na arvore, o prprio Lino Villaventura.
2- Em 1989, aps um ensaio para o concerto com direo musical, cnica e participao do cantor lrico Paulo Abel,
ocorrido no Centro de Convenes do Cear, em janeiro de 1990. Sentados, da esquerda para a direita: Valder Freire,
Myrlla Muniz, David Castelo, Anamaria Conde e Henrique Torres. Com o alade: Csar Moura. Em p: Liduino
Pitombeira, Paulo Abel, Duda Di Cavalcanti, Ocelo Mendona, Ricardo Pereira, Angelita Ribeiro e Maria Helena
Lage.
[2]
197
[1] [2]
[3]
1 Da esquerda para a direita, em 1990: Henrique Torres, com a harpa cltica; Ricardo Pereira; Maria Helena Lage,
com o saltrio; Angelita Ribeiro, com a flauta contralto barroca; Renato Pinto, com o alade; Duda di Cavancanti, com
a flauta baixo barroca.
2- Concerto no Centro Aquariano (Fortaleza-CE), em 1989, da esquerda para a direita: Ana Maria Conde de Moura;
Angelita Ribeiro; David Castelo, com a mscara; Henrique Torres; Ocelo Mendona.
3- A maior formao, com 14 integrantes, em 1991, da esquerda para a direita: Liduino Pitombeira; Valder Freire;
Duda di Cavalcanti; Henrique Torres; Angelita Ribeiro; Hiram Lage; Samuel Saraiva; Maria Helena Lage; Clio
Lessa; Myrlla Muniz; Abraho Saraiva; Marcos Maia; Ricardo Pereira; Ocelo Mendona.
198
[1] [2]
[3]
1- Heriberto Porto.
2- Liduno Pitombeira.
3- No estdio Pro Audio, durante a gravao do primeiro disco, em 1997. Da esquerda para a direita:
Jorge Santa Rosa, Heriberto Porto, Mirella Cavalcante, Roberto Gibbs, Liduno Pitombeira, Solange
Gomes, Giovanni Pacelli e Duda di Cavalcanti. Na tcnica de som, Marclio Mendona.
199
[1]
[2] [3]
1- Sobre o cravo (de Abel Vargas, segundo modelo Taskan), durante a gravao do primeiro disco. Da
esquerda para a direita: Heriberto Porto; Duda di Cavalcanti; Giovanni Pacelli; Liduno Pitombeira; Jorge
Santa Rosa; Solange Gomes; Beto Gibbs; Mirella Cavalcante.
2- No concerto de lanamento do primeiro disco, em 1997, no Theatro Jos de Alencar. Na percusso,
Mirella e Beto. Na flauta, Liduno. Em p, Solange e Duda. O Syntagma contou com a participao do
Grupo de Dana Antiga da Universidade Estadual do Cear (detalhe na foto abaixo).
3- Cravo de Vernica Lapa (de Roberto de Regina), com detalhes.
200
[1]
[2]
1- Aps concerto no Teatro Drago do Mar, em 1999, da esquerda para a direita: Jorge Santa Rosa;
Carlos Velasquez; Marcelo Holanda; Vernica Lapa, sentada; Solange Gomes; Nehemias dos Santos;
Heriberto Porto; Mardnio Oliveira; Giovanni Pacelli.
2- Em Pacoti-CE, em 2000, da direita para a esquerda: Jorge Santa Rosa; Rainer Beckmann; Carlos
Velasquez e esposa; Mardnio Oliveira; Solange Gomes; Giovanni Pacelli; Nehemias dos Santos;
Marcelo Holanda; Heriberto Porto e esposa.
201
[1]
[2]
1- Syntagma, em 2003, com a formao que gravou o segundo disco. Em p, da esquerda para a direita:
Heriberto Porto, Marcelo Moreira, Luciana Gifoni, Solange Gomes, Marcelo Holanda, Mardnio
Oliveira, Nehemias dos Santos e Vernica Lapa. Sentados: Mirella Cavalcante e Jorge Santa Rosa.
2- Em 2005, para o lanamento do segundo disco. Em p, da esquerda para a direita: Solange Gomes,
Marcos Paulo Miranda, Heriberto Porto, Vernica Lapa, Mardnio Oliveira, Mirella Cavalcante e Helano
Silveira. Sentados: Marcelo Moreira, Marcelo Holanda e Jorge Santa Rosa.
202
[1]
[2]
1- Encarte do primeiro disco.
2- Seleo de imagens de matrias sobre o lanamento do CD, dos jornais O Povo e Dirio do Nordeste
(Fortaleza-CE).
203
[1]
[2]
1- Convite de lanamento do segundo disco.
2- Encarte.
204
ANEXO 4
PARTITURA: SERESTA N 9
I MOV - INCELENA
Liduno Pitombeira
205
LIDUINO PITOMBLIRA
SLRLSTA No.9
SDUD JUXSR GH FkPDUD
2004
206
Liduino Pitombeira
Seresta No.9
SDUD JUXSR GH FkPDUD
Opus 83
1. Incelena
2. Desaio
Duraao: ca. 5:00
5GTGUVC a denominaao brasileira para serenata, a qual apareceu na tradiao do incio do sculo
XIX em Portugal. Consistia basicamente em executar canoes romnticas sob a janela da mulher
amada ou caminhando pelas ruas. 5GTGUVC 0Q integra um ciclo de peas que se propoem a
compor um catalogo de danas, ritmos, e gneros musicais do Brasil, um catalogo mais abstrato e
com menos rigor musicolgico do que outros desenolidos no passado por outros compositores
brasileiros ,como as Brasilianas de Osaldo Lacerda, por exemplo,. O primeiro moimento
uma LQFHOHQoD, ou seja, um cntico nebre praticado na regiao central do Nordeste. O segundo
moimento um GHVDILR de cantadores intercalado por seoes lentas deriadas do primeiro
moimento. 5GTGUVC 0Q dedicada ao Syntagma e oi graada no seu ultimo CD.
Liduino Pitombeira ,Russas, 1962, doutor em composiao e teoria pela Uniersidade Lstadual
de Louisiana ,LUA, onde estudou com Dinos Constantinides. Lecionou composiao,
orquestraao e tcnicas composicionais contemporneas, de 2004 a 2006, na Uniersidade
Lstadual de Louisiana, onde ja inha atuando como instrutor bolsista desde 2001. loi proessor
substituto de harmonia, contraponto e analise da Uniersidade Lstadual do Ceara ,1996-1998,.
Lstudou composiao e harmonia com Vanda Ribeiro Costa ,1985-91,, 1arcsio Jos de Lima
,1985-88, e Jos Alberto Kaplan ,1991-98,. Durante doze anos ,1986-1998, atuou como
instrumentista e diretor musical do Syntagma, um grupo dedicado a perormance e a pesquisa da
msica antiga e da msica nordestina. loi consultor de msica da Secretaria de Cultura do Lstado
do Ceara ,1995-199, onde elaborou e coordenou projetos como os da Orquestra de Cmara
Lleazar de Caralho e Quinteto de Sopros Alberto Nepomuceno. Suas obras tm sido executadas
pelo Syntagma, Orquestra de Cmara Lleazar de Caralho, Quinteto de Sopros da lilarmonica de
Berlim, Louisiana Sinonietta, Red Stick Saxophone Quartet, New \ork Uniersity New Music
1rio, Orquestra lilarmonica de Poznan ,Polonia, e Orquestra Sinonica do Recie. Recebeu
importantes premiaoes em concursos de composiao no Brasil, destancando-se o primeiro
prmio no I Concurso Nacional Camargo Guarnieri, por sua obra Suite Guarnieri`, para
orquestra de cordas, e o primeiro prmio no Concurso Sinonia dos 500 Anos`, por sua tese de
mestrado, Uma Lenda Indgena Brasileira`, para orquestra sinonica. Lm maro de 2004
recebeu, nos Lstados Unidos, o prmio 2003 M1NA-Shepherd Distinguished Composer o the
\ear` ,Compositor do Ano, por seu trio com piano Brazilian Landscapes No.1`. L membro da
ASCAP, Society o Composers Inc. e SBMC ,Sociedade Brasileira de Msica Contempornea,.
Suas obras sao publicas pela Ldition Peters, Cantus Quercus, Conners, Alry, RioArte, e Irmaos
Vitale.
LIDUINO PITOMBLIRA
L-mail: pitombeirayahoo.com
Web: http://www.pitombeira.com
207
208
209
210
211
212
213
214
ANEXO 5
ANIMA: FOTOS
[1] Valria Bittar [2] Patrcia Gatti
[3] Dalga Larrondo [4] Ricardo Matsuda
[5] Isa Taube [6] Luiz Fiaminghi
215
[1]
[2]
[3]
1 Formao do primeiro CD, Espiral do Tempo, em 1997. Da esquerda para a direita: Ivan Vilela, Jos Eduardo
Gramani, Patrcia Gatti, Luiz Fiaminghi, Valria Bittar, Dalga Larrondo e Isa Taube.
2 - Formao do segundo CD, Especiarias, em 2000. Da esquerda para a direita: Isa Taube, Luiz Fiaminghi, Dalga
Larrongo, Paulo Freire, Patrcia Gatti e Valria Bittar.
3 Formao do terceiro CD, Amares, em 2004. Da esquerda para a direita, sentados: Luiz Fiaminghi, Patrcia Gatti, Isa
Taube e Ricardo Matsuda. Em p: Valria Bittar e Dalga Larrondo.
216
[1] e [2] Formao atual: Fia, Valria, Isa, Dalga, Patrcia e Matsuda
[3] Detalhe do espetculo Amares.
[4] O casal Fia e Valria
217
[1] Imagens do encarte de Espiral do Tempo (1997).
218
[1] Imagens do encarte de Especiarias (2000).
219
[1] Imagens do encarte de Amares (2004).
220
[1] Imagens do encarte de Espelho (2006).
221
ANEXO 6
PARTITURA: BANHO-NHO
Jos Eduardo Gramani
222
223