Este documento é uma dissertação de mestrado sobre os projetos relacionados ao Vale do Anhangabaú em São Paulo ao longo do tempo. A pesquisa analisa as propostas para o vale identificando cinco abordagens diferentes ao longo da história: como barreira, como lugar, como passagem, como conflito e como resíduo. O trabalho busca compreender a evolução do vale e discutir os desafios atuais para o seu projeto.
Este documento é uma dissertação de mestrado sobre os projetos relacionados ao Vale do Anhangabaú em São Paulo ao longo do tempo. A pesquisa analisa as propostas para o vale identificando cinco abordagens diferentes ao longo da história: como barreira, como lugar, como passagem, como conflito e como resíduo. O trabalho busca compreender a evolução do vale e discutir os desafios atuais para o seu projeto.
Este documento é uma dissertação de mestrado sobre os projetos relacionados ao Vale do Anhangabaú em São Paulo ao longo do tempo. A pesquisa analisa as propostas para o vale identificando cinco abordagens diferentes ao longo da história: como barreira, como lugar, como passagem, como conflito e como resíduo. O trabalho busca compreender a evolução do vale e discutir os desafios atuais para o seu projeto.
Este documento é uma dissertação de mestrado sobre os projetos relacionados ao Vale do Anhangabaú em São Paulo ao longo do tempo. A pesquisa analisa as propostas para o vale identificando cinco abordagens diferentes ao longo da história: como barreira, como lugar, como passagem, como conflito e como resíduo. O trabalho busca compreender a evolução do vale e discutir os desafios atuais para o seu projeto.
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pablo emilio robert here
orientadora profa. dra. regina maria prosperi meyer
dissertao de mestrado universidade de so paulo faculdade de arquitetura e urbanismo so paulo, fevereiro de 2007 sentidos do anhangaba pablo emilio robert here orientadora profa. dra. regina maria prosperi meyer dissertao de mestrado universidade de so paulo faculdade de arquitetura e urbanismo so paulo, fevereiro de 2007 sentidos do anhangaba para natalia e beatriz Resumo Esta dissertao trata dos projetos, construdos ou no, relacionados de algum modo ao Vale do Anhangaba, no Centro Histrico de So Paulo. A partir de uma matriz de leitura, foram seleciona- das e estudadas propostas, pontuais ou gerais, que de alguma maneira contriburam para a constru- o da cultura arquitetnica sobre aquele recinto. A metodologia adotada baseou-se na leitura de projetos, utilizando preferencialmente como mate- rial de sustentao das anlises os elementos grcos originais de sua representao e a edio destes, com o objetivo de explicitar determinados aspectos. A partir dessas leituras foram identicadas cinco questes norteadoras das propostas para o vale: barreira, lugar, passagem, conito e resduo. Uma reexo sobre as transformaes ocorridas ao longo desses cinco momentos conclui o trabalho, bus- cando subsidiar a discusso atual sobre o Anhangaba e o desao que este coloca para a cidade. Resumen Esta disertacin trata de los proyectos, construdos o no, relacionados de alguna manera al Vale do Anhangaba en el Centro Histrico de So Paulo. Fueron seleccionadas y estudiadas propuestas, puntu- ales o generales, que de alguna manera contribuyeron para la construccin de la cultura arquitectnica de aquel recinto. La metodologa adoptada tuvo como base la lectura de proyectos, utilizando preferentemente como material de sustentacin de anlisis los elementos grcos originales de su representacin y la edicin de stos, con el objetivo de tornar explcitos determinados aspectos. A partir de esas lecturas fueron identi- cados cinco temas generales que nortearon las propuestas para el valle: barrera, lugar, pasaje, conicto y residuo. Una reexin sobre las transformaciones ocurridas a lo largo de esos cinco momentos concluye el trabajo, buscando subsidiar la discusin actual sobre el Anhangaba y el desafo que ste coloca para la ciudad. Abstract This dissertation deals with the projects, built or unbuilt, related directly or indirectly to Vale do Anhangaba in the Historical Center of So Paulo. Proposals which contributed in some way to the cons- truction of the architectural culture of the site, both small-scale and general, were selected and analyzed. The methodology adopted was based on the reading of projects, preferentially using as supporting material the original graphic elements for their representation and their edition, with the objective of making explicit some determined aspects. From these readings, ve questions were identied, which cha- racterize the proposals for the valley: barrier, place, passage, conict and residue. A reection on the transformations occurred during those ve moments concludes the work, aiming to give support to the present discussion about Anhangaba and the challenge it poses to the city. Sumrio Introduo 13 O vale como barreira 17 A colina histrica 19 As ferrovias e a expanso do centro 23 Jules Martin e o Viaduto do Ch [1877/1892] 31 Alberto Kuhlmann e a Linha Frrea Elevada [1888] 49 Viaduto Santa Egnia [1890/1913] 53 O vale como lugar 59 Vislumbrando um lugar 61 Os melhoramentos e os primrdios do urbanismo em So Paulo 63 A contribuio de Adolfo Augusto Pinto [1890] 66 Um grande palco: teatros So Jos e Municipal [1903/1911] 69 As indicaes do Vereador Augusto Carlos da Silva Telles [1907] 81 Alexandre de Albuquerque e os investidores privados [1910] 87 Victor da Silva Freire, Eugnio Guilhem e a contribuio municipal [1911] 91 Samuel das Neves e a proposta do Governo Estadual [1911] 95 O Relatrio Bouvard e o encerramento da disputa [1911] 101 Viaduto So Joo [1912] 113 A nova cara do vale: os Neves imprimem sua marca 119 Monteiro Lobato e o Ruaduto do Ch [1913] 125 Victor Dubugras: Memria e Ch 133 O vale como passagem 143 Mobilidade e cidade 145 Tneis sob a colina histrica [1914] 155 Projeto Light [1927] 159 A imagem de Le Corbusier para So Paulo [1929] 165 Prestes Maia e o Anhangaba 175 Rino Levi e o centro 197 O novo Viaduto do Ch [1935] 215 O vale como conito 223 O automvel e o Anhangaba 225 Os anos 50 e 60 na Europa 229 O Metr no vale: estaes So Bento e Anhangaba 237 A megaestrutura de Nestor Goulart Reis Filho [1972] 249 O Anhangaba de Artigas [1974] 255 Uma dcada de indecises da EMURB 287 Concurso Anhangaba [1981] 311 O vale como resduo 323 procura de um sentido 325 O Novo Anhangaba 327 Projetos recentes 339 O vale como desao (consideraes nais) 351 Evoluo do recinto 353 Construes, destruies... 367 O vale como desao de projeto 369 Referncias Bibliogrcas 375 12 13 Introduo O Vale do Anhangaba, espao singular da cidade de So Paulo, j foi, h algumas d- cadas, um dos locais mais representativos da metrpole, reconhecido por sua populao como um smbolo e uma referncia. Atualmente se congura como um espao ambguo que mescla a grandeza de seu passado, cristalizada no importante acervo arquitetnico ali implantado, a estagnao de seu presente e a incerteza em relao a seus possveis futuros. Este o aspecto que despertou a curiosidade que originou esta pesquisa. Para os arquitetos e urbanistas paulistanos, o vale desempenhou historicamente o papel de um grande laboratrio, sendo objeto de planos e projetos desde os primeiros momentos em que essas atividades, a arquitetura e o urbanismo, se estabeleceram em seu territrio. O conjunto de propostas resumidas neste volume representa o empenho de boa parte dos mais signicativos prossionais que atuaram em So Paulo, entre os quais encontram-se guras como Victor da Silva Freire, Ramos de Azevedo e sua equipe de arquitetos, Carlos Ekman, Samuel e Cristiano Stockler das Neves, Joseph Antoine Bouvard, Hiplito Pujol, Victor Dubugras, Norman Wilson, Le Corbusier, Francisco Prestes Maia, Elisrio Bahiana, Gregori Warchavchik, Lucjan Korngold, Oscar Niemeyer, Giancarlo Palanti, Rino Levi, Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Sob essa perspectiva, o Anhangaba pode ser considerado uma espcie de vitrine da arquitetura e do urbanismo em So Paulo. O rumo da investigao que resultou nesta dissertao foi direcionado pela surpreen- dente quantidade de material disponvel sobre o assunto contida em trabalhos acadmicos, livros, revistas e arquivos de instituies pblicas. Coletar, organizar e disponibilizar esse contedo foi um dos objetivos do trabalho. A matriz de leitura que levou seleo denitiva das proposies estudadas foi sendo moldada ao longo da pesquisa, conforme as questes suscitadas pela documentao le- vantada. Finalmente foram destacados os projetos que, de modo signicativo, possam ter contribudo para a formao da cultura urbanstica e do repertrio arquitetnico espec- cos da cidade e daquele recinto em especial, independentemente de terem sido ou no construdos. Fig.1 Vista do Anhangaba e do Viaduto do Ch a partir do Acu (So Joo). Gaensly&Lindemann. [TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e as Origens do Urbanismo Moderno em So Paulo. So Paulo: Empresa das Artes, 1996. p.173.] 14 15 Como se fosse uma novela constituda de contos, a estruturao da dissertao procu- rou construir uma reexo que se desenvolve ao longo do trabalho como um todo, preser- vando, no entanto, a possibilidade de leitura de cada um dos projetos em seus universos particulares. Deste modo, as imagens inseridas no caderno no tem como funo primor- dial a ilustrao do texto, mas sim a de construir um discurso prprio. Pretende-se com isto abrir espao para leituras menos direcionadas dos projetos apresentados de modo a propi- ciar interpretaes diferentes e eventualmente opostas s que se encontram nas pginas a seguir. Os captulos que compem este trabalho surgiram da interpretao das abordagens e das premissas gerais que nortearam os projetos para o vale ao longo de sua histria. A par- tir disso, cinco momentos distintos foram identicados, nos quais o sentido conferido ao Anhangaba tinha um carter especco: o vale como barreira; o vale como lugar; o vale como passagem; o vale como conito; o vale como resduo. As consideraes nais so acompanhadas de uma seqncia grca de anlise das transformaes do vale, vividas e projetadas, ao longo do tempo, que tem a inteno de le- vantar possveis caminhos para o enfrentamento das questes que o Anhangaba apresenta hoje para a cidade e seus arquitetos. O vale como desao. Fig.2 Vista noturna do Anhangaba e do Viaduto do Ch a partir da Av. Prestes Maia, logo aps a Av. So Joo (buraco do Adhemar). Primeira metade dos anos 50. Autor desconhecido. [www. piratiniga.org (Jun/2005)] 16 17 O VALE COMO BARREIRA * TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solido: uma histria de So Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p.18. captulo 01 Uma barreira tanto um obstculo que desengana quanto um convite para que se procure super-lo. A barreira tanto desenco- raja quanto tenta. Se existe, porque esconde algo. Se esconde algo, porque precioso. * o vale como barreira 18 19 O VALE COMO BARREIRA A colina histrica Desde sua fundao, em 1554, at meados do sc. XIX, o ncleo urbano da cidade de So Paulo se concentrou e se desenvolveu sobre um promontrio triangular formado pelo encontro dos vales do Tamanduate, a leste, e do Anhangaba, a oeste. Esta formao, pos- teriormente denominada colina histrica, apresentava em seu topo um patamar relativa- mente plano, entre os nveis 745 e 755, aproximadamente 20-25 metros acima do fundo dos vales que a formaram. As virtudes dessa localizao j haviam sido percebidas pelos ndios guaianazes, que naquele perodo dominavam essa regio e precisamente ali haviam implantado sua ocara. 1 Essa disposio espacial reproduz uma estratgia de implantao encontrada com fre- qncia nas cidades fundadas pelos portugueses no Brasil. Na fase inicial, os ncleos urbanos repetiam em seus stios padres que s podem ser explicados como culturais. A principal cidade, que era Salvador, e a modesta vila de So Paulo, no Planalto, foram implantadas em stios extremamente semelhantes. Ins- taladas sobre colinas, junto s bordas das respectivas encostas, com um pequeno vale retaguarda e conventos dispostos como pontos de apoio ao sistema de dominao e defesa, tinham partidos urbansticos extremamente semelhantes. 2 Os primeiros padres jesutas haviam sido levados para l pelos prprios ndios e cons- truram suas instalaes junto face leste desse patamar. A partir de 1560, com o abandono do local por parte dos guaianazes, iniciou-se um lento processo de ocupao da colina pelos novos edifcios que iam sendo incorporados ao assentamento. A conquista de outros pontos dessa colina central, durante os sculos XVI e XVII, acabou sendo denida em decorrncia do estabelecimento de trs ordens religiosas na cidade: a dos beneditinos, a dos carmelitas e a dos franciscanos e de seus respectivos conventos. 1 Uma anlise pormenorizada pode ser encontrada em ROCHA F, Gustavo Neves da. So Paulo: Redirecionando sua Histria. So Paulo: FAUUSP, 1992 (tese de livre docncia). 2 REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas sobre o Urbanismo no Brasil. Primeira parte: Perodo Colonial. Cadernos de Pesquisa do LAP N 08. FAUUSP, 1995. p.21. 20 Figs.3 e 4 Planta Topogrca da rea central de So Paulo e Seo geolgica A-B (indicada na planta) [ABSABER, Aziz Nacib. Geomorfologia do stio urbano de So Paulo. So Paulo: FFCLUSP, 1957. g.24.] 21 O VALE COMO BARREIRA Cada uma dessas construes era provida de uma igreja com uma torre e de um corpo lateral bastante extenso onde se localizava o mosteiro ou o convento. Essas trs ordens, deviam manter um certo distanciamento entre si, em respeito s suas respectivas cir- cunscries territoriais. Assim, a localizao delas acabou denindo os vrtices de um tringulo, assentado sobre os pontos dominantes da colina central. 3 A face leste da colina histrica, junto Vrzea do Tamanduate, desempenhou a fun- o de frente da cidade aproximadamente at a metade do sc. XIX 4 . A primeira viso de So Paulo, para quem chegava do interior ou do litoral, era justamente essa encosta, como mostram alguns dos mais clebres retratos elaborados pelos viajantes que por aqui passa- ram. Era tambm por esse lado da colina que chegavam as provises trazidas pelas canoas que navegavam o Tamanduate e alimentavam os quatro portos localizados na vrzea do Carmo. A estruturao viria da cidade era baseada nas ladeiras que comunicavam a parte alta da colina com os portos junto vrzea do Carmo (Tabatingera, Glria e Carmo) e nos caminhos de tropeiros que, passando pela capital, articulavam o interior da provncia com o porto de Santos. Ao longo dos principais caminhos foram surgindo os pousos, modulados na distncia aproximada de um dia de viagem. Pela Rua da Liberdade chegava a principal via de comunicao com Santos e o sul do continente e pela ladeira do Carmo, a estrada de ligao com o Rio de Janeiro. Essa rede viria foi a denidora de toda a estrutura de ocupao urbana da Provncia de So Paulo, tendo sido utilizada como meio predominante de transporte at a chega- da da ferrovia, em 1867. Por esse motivo, ela exerceu enorme inuncia no desenvolvi- mento intra-urbano da cidade de So Paulo, especialmente na sua parte mais central, local para onde todos esses caminhos convergiam. 5 3 SIMES JR., Jos Geraldo. Anhangaba: Histria e Urbanismo. So Paulo, FAUUSP, 1995 (tese de doutoramento). p.7. 4 SIMES JR., 1995. 5 SIMES JR., 1995, p.13. 22 23 O VALE COMO BARREIRA As ferrovias e a expanso do centro O desenvolvimento da cidade de So Paulo tornou-se possvel a partir do momento em que se congurou em seu territrio um n do sistema ferrovirio implantado para o escoamento da produo do caf. A partir da inaugurao, em 1867, da So Paulo Railway (Santos-Jundia ou Inglesa), a rede foi sendo ampliada atravs de ramais complementares que convergiam para So Paulo (Companhia Ituana em 1873, Mogiana e Sorocabana em 1875, So Paulo - Rio em 1877). O impulso de crescimento desencadeado pela expanso do caf levaria a nova estru- turao do territrio, baseada na criao de canais de exportao e penetrao. (...) tal sistema de transporte faria uso de um corredor nico de escoamento nal, articulado por um centro de irradiao e deciso situado entre litoral e interior, desembocando num s porto (...). 6 Trs cidades poderiam assumir tal papel: So Paulo, Santos e Campinas 7 . A criao desse ponto focal ferrovirio e os problemas com a febre amarela, enfrentados pelas duas ltimas 8 , desequilibraram a balana favorecendo a capital. Naquele momento a provncia foi presidida durante trs anos (1872-75) por Joo Teodoro Xavier de Mattos, que soube identicar essas possibilidades e iniciar um processo de preparao da cidade para seu novo papel atravs de um amplo conjunto de intervenes urbanas. O sucesso dessas realizaes fez com que, freqentemente, a historiograa se rera sua gesto como a segunda fundao de So Paulo. A capital, engrandecida, chamar a si os grandes proprietrios e capitalistas da pro- vncia, que nella formaro seus domiclios (...) o commrcio lucrar, ampliando seu consumo. As emprezas se fundaro com os recursos vastos e accumulados de seus novos habitantes. 9 6 CAMPOS NETO, Candido Malta. Os Rumos da Cidade: Urbanismo e Modernizao em So Paulo. So Paulo: FAUUSP, 1999 (tese de doutoramento) p.52. 7 Em 1872, Campinas possua aproximadamente o mesmo nmero de habitantes de So Paulo, por volta de 30 mil. 8 Entre 1889 e 1897 a febre amarela atingiu Campinas com virulncia excepcional, provocando despovoamento e decadncia econmica (...). Resultante da violncia da epidemia, o xodo da elite campineira se daria, na maioria das vezes, em benefcio de So Paulo. Fenmeno semelhante pde ser observado em Santos, onde mais de 20 mil pessoas morreram vtimas de malria, febre amarela e varola entre 1880 e 1890. Esse contingente equivalia a aproximadamente metade da populao santista naqueles anos. CAMPOS NETO, 1999. p.62. 9 Relatrio apresentado por Joo Teodoro assemblia Provincial em 14 de fevereiro de 1875. CAMPOS NETO, 1999. p.55. Fig.5 Planta da Cidade de So Paulo, 1868, atribuda a Carlos Rath. Fig.6 Pormenor damesmaplanta. Pode se observar o esboo de um traado virio para o Morro do Ch e possveis conexes da rea com a colina histrica. [Cpia pertencente ao acervo da Biblioteca Municipal Mrio de Andrade.] 24 25 O VALE COMO BARREIRA Enquanto centralizadora do sistema de transportes e fulcro da expanso territorial, a cidade deveria se tornar mais que um mero plo administrativo: suas novas funes passariam a incluir a de centro residencial, nanceiro e de negcios, formando um n- cleo decisrio ao qual se subordinaria vasto territrio produtivo. Para tanto era preciso atrair para So Paulo capitais e detentores do poder econmico na provncia, at ento dispersos pelas fazendas e cidades do interior. 10 As obras empreendidas tinham fundamentalmente dois objetivos: criar as condies necessrias para a expanso urbana e para que o uxo de capital excedente proveniente do caf pudesse ser direcionado a outros ciclos produtivos, e dotar a cidade de um conjunto de espaos pblicos de representao desse capital, buscando produzir certa urbanidade, seguindo modelos europeus. Foram feitas de modo concatenado, melhorias em vias existentes, abertas novas ruas, foi remodelado o Jardim da Luz, regularizado o Largo dos Curros, mais tarde Praa da Repblica, e implantado jardim na Vrzea do Carmo, a Ilha dos Amores. Pouco antes ha- viam sido inaugurados os sistemas de bondes movidos por trao animal e o de iluminao pblica a gs. Muitas dessas melhorias tinham o objetivo de qualicar as imediaes e co- nectar ao centro as novas estaes ferrovirias da Luz, Sorocabana e a do Norte. Se a regio junto s vertentes Leste e Sul da colina histrica, junto vrzea do Tamanduate, cumpriu o papel de porta da cidade durante praticamente os trs primeiros sculos de sua existncia, com o advento das estradas de ferro essa situao imediatamen- te alterada. Simes Jr. (1995) demonstrou como esse vetor, simblico e de crescimento, redirecionado a partir desse momento. Com a inaugurao da Estao da Luz, em 1867, a entrada nobre 11 , dos grandes proprietrios rurais e dos empresrios e visitantes prove- nientes de Santos, passou a ser pelo norte, chegando ao centro atravs das ruas Brigadeiro Tobias e Florncio de Abreu e potencializando a ocupao do setor noroeste da cidade. Sua localizao est associada aos loteamentos empreendidos a partir de 1870, com destaque para o do Morro do Ch (1876) e dos Campos Elseos (1879). A obsolescncia da primeira Fig.7 Planta da Cidade de So Paulo, 1881, Henry P. Joyner. Fig.8 Pormenor da mesma planta. O morro do Ch j se encontra loteado e sua ocupao em estgio inicial. [Cpia pertencente ao acervo da Biblioteca Municipal Mrio de Andrade.] 10 CAMPOS NETO, 1999. p.56. 11 A vrzea do Tamanduate continuaria desempenhando o papel de acesso colina, mas agora com um carter mais ligado aos servios e ao abastecimento. 26 27 O VALE COMO BARREIRA estao, causada pelo aumento do movimento de cargas e de passageiros, determinou a construo de um novo edifcio, projetado pelo engenheiro ingls Charles Driver e inaugu- rado em 1901. Este o momento urbano ao qual a introduo acima pretendia conduzir. Com o re-dire- cionamento do eixo de expanso das reas mais prestigiosas da cidade para noroeste, o poten- cial papel urbano previsto para o Vale do Anhangaba foi completamente transformado. Se antes essa rea era tratada como fundo da cidade, nesta nova congurao ela pas- sa a ser uma barreira para as conexes entre a cidade antiga, sobre a colina histrica, e a cidade nova, sobre o Morro do Ch e adjacncias. A reestruturao da cidade tornou a transposio do vale um problema. A constituio do stio j sugeria e oferecia a soluo. Os pontos de cruzamento entre as ruas Direita e So Jos, e Baro de Itapetininga e Conselheiro Crispiniano Soares, apresentavam-se perfeitamente em nvel, aproximadamen- te na cota 747. Qualquer pessoa que de um desses dois cruzamentos olhasse para o outro lado do vale, conseguiria vislumbrar a travessia. Podemos at imaginar que o prprio tra- ado virio do loteamento do Morro do Ch j colocava a Rua Baro de Itapetininga como uma continuao da Rua Direita, pressupondo a inevitabilidade de sua conexo. Coube a Jules Martin representar esse desejo e materializ-lo. Fig.9 Plano-Histria da Cidade de So Paulo, 1800-1874, por Affonso A. de Freitas. O viaduto do Ch encontra-se indicado em projeo. [TOLEDO, 1996. p. 59.] 28 29 O VALE COMO BARREIRA Fig.10 Pormenor do Dezenho por dea da dade de Sa Pavlo, ilustrao da colina histrica vista a partir do Morro do Ch, com o vale do Anhangaba em primeiro plano (1765-1774). [REIS, Nestor Goulart. So Paulo: Vila, Cidade, Metrpole. So Paulo: Via das Artes, 2004. p.77.] Fig.11 Vrzea do Carmo e a encosta leste da colina histrica. Fotograa atribuda a Milito Augusto de Azevedo (1862). [TOLEDO, Benedito Lima de. So Paulo: trs cidade em um sculo. So Paulo: Cosac & Naify, Duas Cidades, 2004 (1980). p.160.] 30 31 O VALE COMO BARREIRA Jules Martin e o Viaduto do Ch [1877/1892] A expanso oeste da cidade, atravs da criao dos Campos Elseos e Sta. Egnia, e do loteamento do morro do Ch traria enormes conseqncias para o Vale do Anhangaba. A primeira delas, imediata, foi a transformao de seu carter. O tradicional fundo da cidade havia se tornado uma barreira, e a questo fundamental a partir de ento passou a ser sua superao. Se, por um lado, imaginar a transposio no era difcil, concretiz-la no foi nada fcil. O protagonista dessa conquista precisaria de quinze anos para alcan-la. Jules Victor Andr Martin (1832-1906) era um litgrafo francs radicado em So Paulo desde 1870. Participou ativamente da vida social da cidade como professor do Liceu de Artes e Ofcios e principalmente atravs das publicaes que saam de sua Imperial Litograa a Vapor. Seu lado empreendedor levou apresentao de vrios projetos para a cidade, de monumentos at a remodelao de espaos pblicos. Uma de suas propostas mais conheci- das foi o Projecto de Galerias de Crystal em So Paulo, apresentado intendncia munici- pal em 1890. A lei municipal 275, de 12 de setembro de 1896 lhe concedia autorizao para a construo 12 . Inspirado em galerias existentes em cidades europias, Martin desenvolveu um sistema de nove galerias articuladas no interior de quatro quadras existentes que cria- riam um circuito coberto do Largo do Rosrio Rua Jos Bonifcio. Segundo o memorial de uma das verses do projeto, Trata-se da construo de duas imensas galerias, cobertas de vidro, de 200 metros de cumprimento, formando uma cruz e com uma rotunda octagonal de uma cpula de cristal, na qual ser colocado um grande foco de luz eltrica. Essas galerias tero oito metros de largura e sero caladas de mosaico; cada um dos lados ter sessenta casas comerciais, com poro, loja, sobreloja, primeiro e segundo andar. A altura total das galerias ser de quatorze metros. 13 Fig.12 Gravura de Jules Martin mostrando a colina histrica a partir da vrzea do Tamanduate e os melhoramentos da poca: o trem, o mercado (atual Praa Fernando Costa), os aterrados do Brs e do Gasmetro e a Ilha dos Amores. [REIS, Nestor Goulart. So Paulo: Vila, Cidade, Metrpole. So Paulo: Restarq/Via das Artes, 2004. p.115.] 12 CAMARGO, Odcio Bueno de. Jules Martin: artista, patriota, empreendedor. So Paulo: Edicon, 1996. p.78 13 Idem 32 Fig.13 Planta do conjunto de Galerias de Crystal proposto por Jules Martin. [TOLEDO, 1996. p. 60. ] Fig.14 Perspectiva do interior de uma das galerias. Jules Martin, 1896. [TOLEDO, 1996. p. 61.] Figs.15 e 16 Planta e corte das galerias segundo desenho de Pucci & Micheli, 1898. [SEGAWA, Hugo. Preldio da Metrpole: arquitetura e urbanismo em So Paulo na passagem do sculo XIX ao XX. So Paulo: Ateli Editorial, 2000. p.32.] 33 O VALE COMO BARREIRA 34 35 O VALE COMO BARREIRA O projeto no vingou, mas repercutiu de tal modo que em 1900 inaugurou-se uma galeria de cristal, conhecida como Galeria Webendoefer, ligando as ruas XV de Novembro e Boa Vista. No h referncia a quem teria sido responsvel por sua construo. O que se sabe que foi demolida em 1924 para a construo do edifcio do Banco comercial do Estado de So Paulo. Em 05 de junho de 1893, a edio do Dirio Popular se referia a um quadro, em expo- sio nas vitrinas da alfaiataria do Sr. Bernardino Monteiro de Abreu, representando um novo teatro, de autoria de Jules Martin, projetado no Largo da Repblica. Em junho de 1890 esse mesmo peridico havia noticiado a inteno de Martin de construir um Coliseu em frente ao Jardim da Luz. H tambm registros grcos da proposta de construir na Praa da Repblica, a nova catedral da cidade. O empreendimento do Viaduto do Ch foi a grande contribuio de Jules Martin para So Paulo. Em 1877 foi exposta na vitrine de sua ocina uma litograa que ilustrava uma travessia em nvel entre a Rua Direita e o Morro do Ch. Um sinal de que essa travessia era um projeto coletivo, imaginado por muitos habitantes da cidade, a nota publicada no jornal Provncia de So Paulo em 5 de outubro de 1877: Est nas vidraas do Sr. Jules Martin, um belo quadro litogrco representando o que por vezes se tem falado entre ns como meio plausvel de ligar por meio de uma linha de bondes a Rua Direita, isto , o centro da cidade, ao novo e prspero bairro do Morro do Ch, Rua da Palha e Largo dos Curros. 14
Em julho desse mesmo ano sua ocina havia publicado, com Fernando de Albuquerque, o Mappa da Capital da Provncia de So Paulo: seos Edifcios pblicos, Hotis, Linhas frreas, Igrejas, Bonds, Passeios, etc. Nesse mapa, de carter quase turstico, o Vale do Anhangaba representado como um grande vazio cortado por um curso dgua com a legenda Rua Anhangaba, ao invs de rio. O encontro das ruas Baro de Itapetininga e Direita com as encostas do vale provoca uma certa tenso, como se algo estivesse faltando. Esses pontos se conguram subjetivamente como esperas 15 de uma ligao que estaria por vir. 14 TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em So Paulo. So Paulo: Empresa das Artes, 1996. p.61. 15 SIMES JR., 1995, p.61. Fig.17 Mappa da Capital da provincia de S. Paulo, de Jules Martin e F. Albuquerque. 1877 Fig. 18 Pormenor do mesmo mapa. A possibilidade de ligao das ruas Direita e Baro de Itapetininga era evidente. [REIS, 2004. p.129.] 36 Fig.19 Projeto de Ligao da Rua Direita ao Morro do Ch em aterro. Jules Martin, 1880. [TOLEDO, Benedito Lima de. Anhangabah. So Paulo: FIESP, 1989. p.43.] Fig.20 Perspectiva da proposta de travessia em aterro. Jules Martin, 1880. [REIS, 2004. p.97.] 37 O VALE COMO BARREIRA Para empreender a construo do viaduto, Martin associou-se ao alemo Victor Nothmann, que alguns anos antes havia loteado com Frederico Glette a chcara do Baro de Limeira e criado o bairro dos Campos Elseos e que alguns anos depois criaria o bairro de Higienpolis, com Martinho Burchard. Em 1880 a Assemblia Provincial deferiu o pedido de construo do viaduto e em 1888 foram aprovados os estatutos da Companhia Paulista do Viaduto do Ch. Nesse mesmo ano a construo foi iniciada. Existem divergncias sobre qual teria sido a primeira verso do projeto, exposta na vi- trine da ocina em 1877. O que se sabe que em 1880 apresentou-se uma proposta na qual a travessia seria realizada atravs de um aterro que conguraria um bulevar com 20 casas construdas em cada lateral. O bulevar teria 64 metros de largura em sua face superior e as fundaes seriam feitas com estruturas em arcos de tijolos. Os estudos dessa proposta foram feitos pelo engenheiro Eusbio Stevaux e previam uma pequena galeria no fundo do vale para a passagem do ribeiro. A verso denitiva teve seu projeto executivo assinado pelo engenheiro Emilio Calcagno conforme estudos realizados por Stevaux. Sua extenso total era de 240 metros, incluindo os arranques. A estrutura metlica foi fabricada na Alemanha por Harkort de Duisburg e pos- sua 152 metros de comprimento divididos em cinco vos. Sua largura era de 14.80 metros e a altura at o fundo do vale era prxima de 20 metros. 16 As obras tiveram incio em 1888, sendo interrompidas poucos meses depois devido a problemas com a desapropriao do imvel pertencente ao Baro de Tatu, localizado na Rua de So Jos (atual Libero Badar) no eixo da Rua Direita e cuja demolio era impres- cindvel para a construo do viaduto. A disputa ganhou conotao poltica e passou a ser encarada simbolicamente como o embate entre as oligarquias rurais conservadoras e os capitalistas liberais progressistas. A desavena s foi resolvida judicialmente, com ganho de causa dado ao grupo de Jules Martin. Em 1889 iniciou-se a demolio do casaro e em 1892 o viaduto foi inaugurado. (...) a demolio do velho casaro, smbolo do passadismo e do imobilismo que os progressistas pretendiam superar, constituiu um divisor de guas em nossa histria 16 BUCCI, Angelo. Anhngaba: o Ch e a Metrpole. So Paulo, FAUUSP, 1998 (Dissertao de Mestrado). , p.15. 38 39 O VALE COMO BARREIRA urbanstica. Obstinadas, suas grossas paredes de taipa seriam substitudas por geis pers metlicos lanados sobre o vale rumo ao futuro de So Paulo. O ato de demolir assumiria conotaes positivas e desejveis, marcantes para os futuros processos de transformao da cidade. 17 Ao comentar as diferentes verses do projeto que se sucederam at o incio da obra, Bucci (1998, p.16) destaca a liberdade formal que caracterizaria a postura de Martin, para quem a fora da idia estaria na pura e simples realizao da transposio. O modo de faz- lo estaria em segundo plano e seria determinado pelas convenincias tcnicas e econmicas de cada soluo. Esta suposio, que parece estar correta, merece algumas consideraes. Se a opo pela estrutura metlica foi decorrncia apenas de fatores econmicos, poderamos dizer que a sorte favoreceu So Paulo. Basta imaginarmos o que teria acontecido caso a soluo em aterro tivesse sido adotada, com a ocupao de suas laterais por casas de aluguel acentuan- do o carter de fundo que o vale tinha at aquele momento. Isso poderia inaugurar um padro de ocupao que poderia se repetir nas novas travessias junto Rua de So Joo, ao Piques e outras, anulando o potencial paisagstico e espacial daquele espao. Se, por um lado, especular sobre o que poderia ter sido, caso os acontecimentos tivessem se dado de outra maneira, constitui um exerccio de co desprovido de qualquer suporte real, por outro, ajuda a perceber os riscos que se corre ao deixar decises fundamentais para o desenvolvimento da cidade merc de interesses unicamente tcnicos ou econmicos e acima de tudo privados. A inaugurao do Viaduto do Ch foi um grande sucesso. A articulao do centro com os novos bairros a oeste passou a ser fcil e rpida, amplicando a corrida imobiliria que j se vericava desde o nal dos anos 1870 e 1880. Cabe pontuar que os nanciadores do viaduto, Nothmann e Glette entre outros, guram entre os que mais se beneciaram com a valorizao fundiria decorrente de sua construo. A cobrana do pedgio de trs vintns, inicialmente aplicada tanto aos pedestres quanto 17 CAMPOS NETO, 1999. p.61. Fig.21 Plantas da casa do Baro de Tatu indicando o trecho que seria demolido para a construo do Viaduto do Ch. [SEGAWA, 2000. p.14.] Fig.22 Alegoria derrota do baro de Tatu e demolio de sua casa. [TOLEDO, 1996. p. 61.] Fig.23 Litograa de Martin retratando as demolies a partir do Vale do Anhangaba. [SEGAWA, 2000. p.14.] 40 41 O VALE COMO BARREIRA Fig.24 Alegoria construo do Viaduto do Ch. Jules Martin, 1887. [TOLEDO, 1996. p. 63.] Fig.25 Litograa de Jules Martin que ilustrava o convite para a inaugurao do viaduto. [TOLEDO, 1989. p. 45.] Fig.26 Litograa comemorativa da inaugurao do viaduto. Jules Martin. [TOLEDO, 1996. p. 62.] 42 Fig.27 Caricatura de Jules Martin representando a disputa entre os empreendedores do viaduto e o Baro de Tatu. [SEGAWA, 2000. p.24.] Fig.28 Carto postal de Guilherme Gaensly mostrando o Viaduto do Ch a partir do terreno onde seria construdo o Teatro Municipal. O vale ainda se congurava como um fundo da cidade. [TOLEDO, 1996. p.94.] 43 O VALE COMO BARREIRA aos veculos, foi suspensa quando, aps um perodo de protestos e reivindicaes, a muni- cipalidade encampou o viaduto, no ano de 1896. A existncia do Viaduto veio tornar possvel a comunicao em nvel entre o centro da cidade e o bairro do Ch. Esta construo, aparentemente bvia, foi revolucionria para a poca. Anal de con- tas este era o primeiro viaduto construdo na cidade, e com ele, muitos dos trajetos urbanos seriam imensamente facilitados, pois no se precisaria mais subir e descer as encostas do vale para atravess-lo (como at ento se fazia atravs da rua de So Joo ou do Largo do Riachuelo). Especialmente para os bondes, que nessa poca eram ainda puxados por burros e, para tanto, exigiam que nos pontos de incio das subidas (ladeiras de So Joo e Riachuelo), fossem atrelados aos carros mais animais. Por esse motivo, nesses locais deveriam exis- tir pastos ou largos onde esses animais de reforo cassem durante os momentos em que no estavam sendo requisitados. (...) Alm do mais, tal imagem no se adequava nem um pouco com a existncia do Viaduto nem com os ideais de urbanidade que se queria implantar no local. Essa situao perdurou at 1900, com a chegada da Light e dos bondes eltricos. 18 A construo do primeiro viaduto do ch simboliza a ruptura da acrpole em que se implantara So Paulo, ao atravessar as vertentes do riacho Anhangaba. Um dos lados do Tringulo tradicional se abria. 19 A construo do Viaduto do Ch inaugurou para os paulistanos um modo de vivenciar a espacialidade do territrio que se tornaria caracterstica da cidade. O mesmo acidentado da topograa determinou tambm este outro trao caracters- tico e j referido, que so os viadutos; (...) o modelado do terreno o impe. A cidade acabar com um verdadeiro sistema completo de vias pblicas suspensas que lhe em- 18 SIMES JR., 1995, p.60. 19 SEGAWA, Hugo. Preldio da Metrpole. So Paulo: Ateli Editorial, 2000. p.21. 44 45 O VALE COMO BARREIRA prestar um carter talvez nico no mundo. Com os viadutos viro os tneis (...) e ser este mais um trao original de So Paulo que, com o outro, far dela uma cidade dividida em dois planos sobrepostos, cidade de dois pavimentos. 20 O percurso areo proporcionado pelo viaduto revelava uma geograa at ento dis- simulada e possibilitava um olhar abrangente sobre essa rea livre colada ao centro. Esse outro projeto coletivo, a transformao do vale, precisaria, assim como o viaduto, de vrios anos e muito debate para se viabilizar. Deram-lhe um dia o Viaduto do Ch, esse arrojo... Os paulistanos pagavam sessenta ris para, ao atravess-lo, conhecerem a vertigem dos abismos. E em casa narravam a aventura s esposas e mes, plidas de espanto. Que arrojo de homem, o Jules Martin que construra aquilo! 21 20 PRADO JR., Caio. Evoluo poltica do Brasil e outros estudos. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1933. p.131. 21 Publicado originalmente por Monteiro Lobato na Revista do Brasil n 36, de dezembro de 1918. LOBATO, Monteiro. Negrinha. So Paulo: Brasiliense, 1994. p. 63. Fig.29 Planta da Capital do Estado de So Paulo e seus arrabaldes publicada por Jules Martin em 1890. Fig.30 Pormenor da mesma planta. Dois anos antes de sua inaugurao, o Viaduto do Ch j um elemento importante da cidade. O arruamento do Morro do Ch agora um prolongamento integrado do centro antigo. [REIS, 2004. p.142.] 46 47 O VALE COMO BARREIRA Fig.31 Uma multido se reuniu para conhecer o novo viaduto no dia de sua inaugurao. Autor desconhecido. [PRAA RAMOS, VIADUTO DO CH, PRAA DO PATRIARCA. Instituto Cultural Ita. So Paulo: ICI, 1994.] Fig.32 O viaduto do Ch em 1900. Guilherme Gaensly. [PONTES, Jos Alfredo Vidigal. So Paulo de Piratininga: de pouso de tropas a metrpole. So Paulo: O Estado de So Paulo: Editora Terceiro Nome, 2003. p.160.] Fig.33 O viaduto do Ch em 1892. Guilherme Gaensly. [PONTES, 2003. p.161.] Fig.34 O viaduto em 1902. Marc Ferrez. [INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Fotograa Brasileira n2: So Paulo 450 anos. So Paulo: IMS, 2004. p.73.] Fig.35 Encontro do viaduto com a Rua Direita em 1900. O viaduto se congurava como um prolongamento natural da rua. Autor desconhecido. [PONTES, 2003. p.162.] 48 Fig.36 Projeto da Ponte sobre o Rio Tiete com material reaproveitado da ferrovia elevada da Av. So Joo. Esta ponte apresentava um vo de 45 metros. Eng Kuhlmann, 1893. Fig.37 Detalhes das estruturas metlicas do elevado da Av. So Joo, que foram reaproveitadas nas pontes e pontilhes do Tramway da Cantareira. [www.wernervana.hpg.ig.com.br (out/2006)] 49 O VALE COMO BARREIRA Alberto Kuhlmann e a Linha Frrea Elevada[1888] A repercusso da imagem de transposio inaugurada pelo projeto do Viaduto do Ch teve como um de seus rebatimentos, a proliferao de propostas de novas pontes, viadutos e elevados. A soluo era to adequada s condies topogrcas da cidade que se tornou a resposta mais bvia e natural s situaes semelhantes enfrentadas a sua expanso. Em 24 de maro de 1888 foi promulgada a lei que concedia ao engenheiro alemo Alberto Kuhlmann o direito de explorao, por 50 anos, de uma linha frrea elevada que realizaria a ligao Centro Velho - Centro Novo partindo do Largo do Rosrio, na Rua So Bento esquina com a Rua de So Joo, em direo ao Largo Paissandu. Kuhlmann era naquele momento um empresrio bem sucedido. Em maro de 1886 havia realizado a viagem inaugural da Companhia de Carris de Ferro de So Paulo a Santo Amaro, o Tramway de Santo Amaro, que reduziu o tempo de viagem entre So Paulo e a aldeia de Santo Amaro de dez para uma hora. O percurso de cerca de 19 quilmetros, que at ento era feito por carros de boi, passou a contar com uma composio ferroviria movida a vapor que atingia velocidades de at 25 quilmetros por hora. poca, Santo Amaro supria a capital com cerca de 25 mil toneladas de produtos por ano 22 e a demanda por transporte de passageiros tambm era grande. Em 1884 o engenheiro havia vencido concurso para a construo do novo matadouro, inaugurado em 1885 na Vila Clementino (Vila Mariana). Um ramal exclusivo do tramway ligava o matadouro aos principais pontos de distribuio dinamizando o fornecimento de carnes para a capital. A nova aventura de Kuhlmann pretendia concorrer com o Viaduto do Ch, cuja execu- o havia sido recm iniciada, na corrida por congurar a porta oeste da colina histrica. A construo comeou com a chegada da primeira remessa das peas metlicas que consti- tuiriam a estrutura do elevado, mas teve que ser interrompida, assim como a obra do Ch, devido ao atraso no embarque das remessas posteriores. Existia uma diferena signicativa, em relao ocupao do vale, entre os locais onde se erguiam as duas estruturas. Por estar implantado sobre um caminho consolidado da 22 [ www.geocities.com/motorcity/ track/4509/sinopse.html] e [www. geocities.com/estrada_de_ferro] 50 Fig.38 Projeto da segunda ponte sobre o Rio Tiete, construda com o material aproveitado da ferrovia elevada da Av. So Joo. Esta ponte apresentava um vo de 34 metros. Eng Kuhlmann 1893. Fig.39 Todos os riachos e crregos que a linha atravessava tinham pontes iguais. Um projeto padro para um vo de 4 metros. Sempre a mesma ponte nos Rios Mandaqui, Trememb, Carandiru, etc. Tudo com material aproveitado da via elevada da Av. So Joo. [www.wernervana.hpg.ig.com.br (out/2006)] 51 O VALE COMO BARREIRA cidade, o elevado de Kuhlmann interferia com diversas construes, predominantemente residenciais, ao longo do vale. O mesmo no acontecia com o Ch, pois sua projeo incidia sobre fundos de propriedades no ocupados. Esta diferena seria crucial para a denio do vencedor da corrida. As obras interrompidas geraram um grande volume de queixas por parte dos proprietrios das edicaes prximas Rua de So Joo. O aspecto deveria ser lamentvel: em uma rua estreita, uma gaiola gigantesca de me- tal metida entre as casas, esperando-se que passasse sobre ela um trem a vapor. Seria semelhante ao que aconteceu quase um sculo depois com o minhoco. A sorte no favoreceu ao engenheiro. 23 Com o atraso das obras e a impossibilidade de cumprimento dos prazos estabelecidos em contrato, Kuhlmann foi obrigado a desmontar o que j havia sido feito e remover os materiais do local, abandonando denitivamente suas pretenses. As peas do elevado, depositadas em terras margem do Tiet, foram adquiridas pelo governo estadual em 1893 e reaproveitadas nas obras do Tramway da Cantareira para a construo de pontes. Embora no tenham sido encontrados durante a pesquisa desenhos desse elevado, os desenhos respectivos s pontes construdas posteriormente nos permitem vislumbrar como teria sido a via frrea elevada sobre o Anhangaba. 23 REIS FILHO, Nestor Goulart. So Paulo e outras cidades. So Paulo: Hucitec,1994. p.83. 52 53 O VALE COMO BARREIRA Viaduto Santa Egnia [1890/1913] venha ver, venha ver Eugnia, como cou bonito, o Viaduto Santa Egnia. 24 O Viaduto do Ch, a partir de sua inaugurao, tornou-se a nova porta de entrada ao centro e impulsionou o desenvolvimento do setor oeste da cidade. Com o enorme cresci- mento dessa rea, novas ligaes tornaram-se necessrias abrindo espao para a formulao de diversos projetos. A idia de um viaduto ligando o Largo de So Bento ao Largo de Santa Egnia surgiu publicamente pela primeira vez por volta de 1890, quando Francisco da Cunha Bueno e Jayme Serra obtiveram a licena para sua construo 25 . A obra no foi iniciada e com o des- cumprimento dos prazos o contrato foi cancelado. Em 1893 foi autorizada a desapropriao do lote localizado entre o Mosteiro de So Bento e o edifcio da Companhia Paulista de Vias Frreas e Fluviais para possibilitar a execuo do viaduto. Nada seria realizado at a virada do sculo. A partir de 1904, inicia-se um processo burocrtico dentro da Cmara Municipal com o objetivo de viabilizar a construo com recursos pblicos. Em 1906 a Comisso de Obras conclui pela necessidade inadivel de implantao do viaduto e apenas em 1908 publicado o edital de concorrncia para a obra. Para viabilizar a empreitada, o municpio adquiriu emprstimo junto ao governo ingls de 700 mil libras esterlinas 26 o que constituiu fato indito na histria da cidade. Com a concorrncia denida, a obra cou a cargo do escritrio Micheli e Chiappori e a construo foi iniciada em 1910. A estrutura metlica foi encomendada na Blgica e fabricada pela Societ Anonyme des Aciries dAngleur. Chegou de barco a Santos e de trem a So Paulo. Sua montagem levou trs anos e foi supervisionada pelo mestre de obras alemo Johann Grundt. Boa parte da mo de obra empregada foi estrangeira o que elevou signi- cativamente os custos nais. A inaugurao aconteceu em julho de 1913. 24 BARBOSA, Adoniran (1910- 1982). Letra do samba Viaduto Santa Egnia. 25 ANDRADE, Paulo Alcides. Viaduto Santa Egnia. www. metalica.com.br 26 Outras fontes mencionam o valor de 750 mil libras. Fig.40 Fotograa tirada de um aeroplano em junho de 1919. O Viaduto Santa Egnia se destaca em meio s construes que ocupavam o fundo do vale. O Parque Anhangaba, no canto inferior direito, terminava logo aps o alinhamento da Praa Ramos de Azevedo. [TOLEDO, 1989. p.72.] 54 Fig.41 Detalhe do guarda-corpo e do poste de iluminao. [TOLEDO, 1989. p.79.] Fig.42 Vista da montagem da estrutura a partir do Mosteiro de So Bento [www.metalica.com.br (nov/2006)] Fig.43 Elevao parcial do Viaduto Santa Egnia. [TOLEDO, 1989. p.64.] 55 O VALE COMO BARREIRA O viaduto tem um comprimento total de 225 metros divididos em cinco partes: vos extremos de 30 metros e trs vos centrais em arco com 55 metros. A largura entre guarda- corpos de 13.60 metros e o pavimento original era em paraleleppedos de granito. Quando o Sta. Egnia foi construdo, o trecho do vale sobre o qual se projetava no fazia parte do recinto Anhangaba. At aquele momento o limite norte do recinto era determinado pelo fundo das construes voltadas para a Rua de So Joo. Ali terminava o Anhangaba. Portanto, naquele momento a regio alm da So Joo no representava uma continuidade daquele vazio. Isso s aconteceria muitos anos depois. O fundo do vale encon- trava-se densamente ocupado por pequenas edicaes, trreas ou com dois pavimentos, sobre as quais o viaduto foi instalado estabelecendo uma relao bastante conituosa. No projeto do Sta. Egnia e atravs do modo como se deu sua construo, ca evidente que ele foi pensado unicamente como elemento de ligao entre partes da cidade alta. Os melhoramentos associados ao seu empreendimento se limitaram a seus pontos extremos, Largo So Bento e Largo Sta. Egnia 27 , e no desceram as encostas. Muitos anos se passariam at que essa relao vertical entre os dois nveis da cidade fosse nalmente estabelecida. A inaugurao do Viaduto Santa Egnia encerra o perodo em que o Vale do Anhangaba representava uma barreira para a expanso da cidade e abre um novo mo- mento, onde seu novo papel seria determinado. As novas ligaes, atravs dos viadutos, consolidaram o vetor oeste como setor de expanso natural do centro, relegando zona leste um papel secundrio e de menos prestgio. O Anhangaba passaria a ser agora o foco das atenes. disto que trata o prximo captulo. 27 A Igreja de Nossa Senhora da Conceio de Santa Ignia, construda em 1794, foi demolida para a edicao de uma nova igreja posicionada no eixo do novo viaduto. Os beneditinos zeram o mesmo, reconstruindo suas instalaes no perodo entre 1910 e 1922. TOLEDO, Benedito Lima de. Anhangabah. So Paulo: FIESP, 1989. p.76. 56 57 O VALE COMO BARREIRA Figs.44 e 45 Momentos da construo do viaduto. reas no fundo do vale foram utilizadas como canteiro de obras. [TOLEDO, 1989. p.78.] Fig.46 Largo de So Bento com o viaduto e a Igreja de Santa Egnia ao fundo. [LARGO SO BENTO, VIADUTO SANTA EFIGNIA, LARGO SANTA EFIGNIA. Instituto Cultural Ita. So Paulo: ICI, 1994.] Fig.47 Fotograa do viaduto recm construdo. Guilherme Gaensly. [LEMOS, Carlos A. C. O lbum de Afonso: a reforma de So Paulo. So Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. p.86.] Fig.48 O viaduto em meio ao casario. [TOLEDO, 1996. p.162.] Fig.49 Viaduto de Santa Egnia visto a partir do Edifcio Martinelli. O fundo vale continuava plenamente ocupado. [TOLEDO, 1989. p.173.] 58 59 O VALE COMO LUGAR captulo 02 o vale como lugar 60 61 O VALE COMO LUGAR Vislumbrando um lugar No princpio era o pntano, com valas de agrio e rs coaxantes. Hoje o parque do Anhangaba, todo ele relvado, com ruas de asfalto, prgola grata a namoricos notur- nos, e Eva de Brecheret, a esttua dum adolescente nu que corre - e mais coisas. Autos voam pela via central, e cruzam-se pedestres em todas as direes. Lindo parque, ci- vilizadssimo. 1 O primeiro captulo deste trabalho teve como objetivo recompor, de maneira breve, o processo de desenvolvimento da estrutura de So Paulo responsvel pela primeira grande transformao do sentido atribudo ao recinto do Anhangaba, que passou de fundo da cidade a barreira de sua expanso. Uma vez superada a barreira, o crescimento do setor oeste da cidade se intensicou, consolidando o que se denominou de centro novo e os novos bairros residenciais das elites regionais. Esta consolidao, por sua vez, foi a responsvel pela segunda grande transfor- mao do sentido daquele recinto. Nesta nova congurao a localizao do vale passou a ser central. Um grande espao vazio no corao da cidade, respiro entre as estreitas ruas do centro velho e as pujantes construes do centro novo. Desde o nal do perodo monrquico fora reconhecido o potencial paisagstico e urbanstico representado por espaos livres to prximos da rea central. At o ltimo quartel do sculo XIX, os vales do Anhangaba e do Tamanduate nada mais eram que parte do quadro natural cercando o ncleo urbano, formado por campos, vrzeas, matos, chcaras e fundos de vale. Na medida em que o crescimento da cidade passou a cavaleiro do vale, a Oeste, e da vrzea, a Leste, e a ocupao horizontal da colina atingiu seus limites, tais espaos passaram a representar vazios passveis de aproveitamento como reas livres - uma vez que as condies fsicas dessas zonas baixas e alagadias desestimulavam a ocupao urbana propriamente dita. 2 1 O irnico trecho citado foi publicado originalmente por Monteiro Lobato na Revista do Brasil n 36, de dezembro de 1918. LOBATO, Monteiro. Negrinha. So Paulo: Brasiliense, 1994. p. 61. 2 CAMPOS NETO, 1999. p.111. 62 63 O VALE COMO LUGAR As possibilidades oferecidas por esta nova congurao foram logo percebidas e teve incio um processo de construo coletiva do novo carter daquele espao; de transforma- o do espao em lugar. O vale como um lugar. 3 Os melhoramentose os primrdios do urbanismo em So Paulo O amadurecimento e estabilizao da economia cafeeira fez com que o escopo das intervenes concebidas para a cidade de So Paulo fosse ampliado por volta de 1910. Das iniciativas parciais que caracterizaram os primeiros anos do sculo, evoluiu-se para um conjunto de propostas de maior alcance, sinalizadas pela expresso melho- ramentos. 4 Durante as duas ltimas dcadas do sculo XIX e os primeiros anos do sculo XX, as esferas da administrao pblica foram obrigadas a realizar um processo de reestrutura- o administrativa e institucional adequando-se ao novo regime republicano e procurando acompanhar o desenvolvimento econmico e urbano da cidade. Durante o curto perodo, de outubro de 1885 a agosto 1886, em que presidiu a pro- vncia Joo Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919), foi criada a Comisso Geogrca e Geolgica, organizou-se um levantamento estatstico da provncia e foi promulgado um novo Cdigo de Posturas, elaborado pela Cmara Municipal. Apresentou-se o plano de uma avenida perimetral circundando a rea central da cidade, que no chegou a ser realizado, e foram contratados a construo do palcio comemorativo da independncia, atual Museu do Ipiranga, e os projetos de regularizao dos rios Tamanduate e Anhangaba. Em 1889 Antonio Francisco de Paula Souza (1843-1917) assumiu a chea da recm criada Superintendncia de Obras Pblicas (estadual), adotando como principais campos de atuao as obras de saneamento e a construo de edifcios escolares. O mais impor- tante destes foi o edifcio da Escola Normal, construdo no Largo dos Curros, atual Praa da Repblica. Em 1894 promulgou-se o Cdigo Sanitrio e nesse mesmo ano Paula Souza 3 Espao, entendido aqui como um conceito fsico e mensurvel; uma rea localizada entre limites determinados. Lugar uma propriedade atribuda socialmente a um espao; um espao dotado de um sentido social; tem uma conotao antropolgica, psicolgica e subjetiva. 4 CAMPOS NETO, 1999. p.103. Fig.50 Foto area de 1925 mostrando o parque de Bouvard e a ocupao do vale a partir da Avenida So Joo, j alargada. [REIS, 2004. p.145.] 64 65 O VALE COMO LUGAR assumiria a direo da nova Escola Politcnica, fundada com o objetivo de aparelhar os quadros tcnicos e administrativos governamentais. Entre 1896 e 1898, a Intendncia de Obras (municipal), sob o comando do engenheiro Pedro Augusto Gomes Cardim (1864-1932), produziu uma planta cadastral geral da cidade com o objetivo de mapear o crescimento urbano das dcadas anteriores e subsidiar um pla- no que seria elaborado pela Comisso Tcnica de Melhoramentos. O plano apresentado em 1897 e no realizado, previa uma grande avenida perimetral, mais ambiciosa que a de Joo Alfredo, que incentivaria o eixo de expanso da cidade no vetor sudoeste. No ano de 1899 foi criado o cargo de prefeito municipal. Para assumir o primeiro man- dato a cmara elegeu Antonio da Silva Prado (1840-1929), chefe da mais importante famlia da sociedade paulistana e gura de destaque nos campos da agricultura, da indstria, do comrcio e nanceiro. Prado permaneceu no cargo por quatro mandatos consecutivos, at 1910, e teve sempre ao seu lado, como Diretor de Obras Municipais, a gura de Victor da Silva Freire (1869-1951). Durante os ltimos anos da gesto de Antonio Prado, a cidade viveu um perodo in- tenso de debates a respeito dos melhoramentos que deveriam ser realizados na rea central, revelando o interesse dos grupos dominantes na construo dos espaos de representao do desenvolvimento econmico e social proporcionado pela cultura do caf. Esse perodo foi pesquisado com profundidade por diversos autores e sua reconstituio detalhada, neste trabalho, cairia inevitavelmente na redundncia ou na mera compilao. A anlise que se pretende realizar aqui ter como foco as transformaes espaciais do recinto embutidas em cada projeto e seus rebatimentos no plano da construo coletiva do carter que deveria ser atribudo quele lugar. Fig.51 Foto area de 1930 mostrando a ocupao do vale a norte da Aveni- da So Joo. [REIS, 2004. p.156.] 66 A contribuio de Adolfo Augusto Pinto [1890] No livro Preldio da Metrpole 5 Hugo Segawa coloca como, at os ltimos anos do Sc. XIX, as iniciativas, pblicas ou privadas, de interveno na cidade no passaram de tentati- vas, mais ou menos felizes, de enfrentar questes pontuais de forma isolada e imediatista. No mesmo trabalho, o autor apresenta uma gura cujo discurso sobre a cidade con- guraria um contraponto a essa situao. Atravs da publicao, ao longo do ano de 1890, de artigos editoriais em uma coluna do dirio Correio Paulistano chamada Melhoramentos Municipais, o engenheiro Adolfo Augusto Pinto (1856-1930) elencou uma srie de medidas que, apesar do predominante carter sanitarista, abordavam problemas urbanos de diversas ordens. Para o Anhangaba, o engenheiro props sua cobertura e embelezamento, do largo da memria at a rua 25 de Maro. Para isso deveria ...Abrir-se importante via de comunicao direta e de nvel, entre quase todos os bair- ros suburbanos da capital (...) Tais Comunicaes hoje no se fazem seno atravs da colina central da cidade, e portanto subindo e descendo ladeiras, o que torna penosa e sobremodo pesada a trao dos veculos de toda espcie. 6 interessante ressaltar que essa proposta uma das nicas que considera toda a exten- so do vale, prolongando a interveno at seu encontro com o Tamanduate. Em 1896 uma comisso organizada por Campos Salles, da qual Augusto Pinto fazia parte, elaborou o que Segawa considera como o primeiro plano ocial de melhoramentos da cidade. Nesse plano encontra-se a proposta de abertura da Praa do Patriarca: Como se sabe, no s pela sua estreiteza, pois mede pouco mais de meia dzia de me- tros, como por ser o trecho sujeito a maior trabalho, a parte da rua Direita que ca en- tre a rua de S. Bento e a rua Lbero Badar a que reclama interveno mais radical. 5 SEGAWA, Hugo. Preldio da Metrpole. So Paulo, Ateli Editorial, 2000. 6 Melhoramentos Municipais, Correio paulistano, So Paulo, 26 jan. 1890 apud SEGAWA, 2000, p.47. 67 O VALE COMO LUGAR (...) dentro em pouco o trnsito nesse trecho ser impossvel, se no for ele transfor- mado em espaoso largo, tendo a sua divisa no alinhamento da rua da Quitanda, con- forme sugeri h tempos, quando levantei nesta folha a idia desse melhoramento. Esta magnca obra, desde que seja assim realizada, e no se limite a um pequeno re- cuo de prdios, permitir a arborizao do local, abrir espao para o estacionamento de carros e automveis de praa, ao mesmo tempo que facilitar tornar-se o novo largo excelente ponto de partida dos bondes que passarem pelo Viaduto do Ch, os quais podero fazer a volta no prprio largo, deixando de atravancar as ruas do Tringulo. 7 Embora no se encontre nenhum tipo de registro grco das propostas feitas por Adolfo Augusto Pinto, a posterior materializao de algumas delas nos permite vislumbrar o que tinha em mente o engenheiro. Os principais pontos de seu discurso seriam retomados em propostas posteriores, consolidando um projeto comum de construo do lugar. Em relao ao Anhangaba, ca cristalizada nesse plano a memria da nica proposta que trabalhou com toda a extenso do vale, hidrogracamente compreendido. A malha viria implantada no trecho norte do vale nos anos seguintes e a construo da Estao da Luz gerariam um deslocamento da percepo desse extremo do recinto do vale na direo noroeste e a partir da ele nunca mais seria compreendido desde esse ponto de vista. 7 PINTO, Adolfo Augusto. Minha Vida (Memrias de um Engenheiro paulista), So Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1970, p.124 apud SEGAWA, 2000, p. 49. 68 69 O VALE COMO LUGAR Um grande palco: teatros So Jos e Municipal [1903/1911] A combinao da prosperidade econmica das elites, seu desejo de superao do pas- sado colonial e a forte inuncia cultural dos imigrantes, desencadeou um vertiginoso processo de importao de costumes, principalmente europeus, tidos como sosticados e cosmopolitas. A enorme freqncia de apresentaes, de pera e teatrais, constitua bom exemplo disso. No nal do sc. XIX So Paulo recebia um nmero expressivo de companhias teatrais estrangeiras, mas as instalaes destinadas s apresentaes eram relativamente prec- rias. Sucessivas leis de incentivo construo de salas de espetculo foram aprovadas pela Cmara sem obteno de resultados. At 1895 a cidade contava com trs modestas casas teatrais administradas por empreendedores privados: o Teatro Politeama, localizado no Vale do Anhangaba junto Rua de So Joo 8 , o Teatro Minerva ou Apolo 9 , na Rua Boa Vista, e o mais importante deles, o Teatro So Jos, construdo nas proximidades da atual Praa Joo Mendes 10 . Seu espao funcionou ativamente at fevereiro de 1898, quando o edifcio foi completamente destrudo por um violento incndio. 11 Aps pouco mais de dois anos de obras, foi inaugurado em 28 de dezembro de 1909 12 o segundo Teatro So Jos, quase em frente ao local onde, desde 1903, estava sendo construdo o Municipal. Projetado pelo arquiteto sueco Carlos Ekman (1866-1940) e construdo pelo engenheiro Regino Arago, foi um dos primeiros edifcios a utilizar a estrutura metlica 13
em So Paulo. O So Jos era relativamente modesto, no representava plenamente as as- piraes da elite paulistana e aps a inaugurao do Municipal, em 1911, o local tornou-se obsoleto. Um novo incndio destruiu parte de suas instalaes e aps esse incidente suas portas no voltariam a se abrir. Sua localizao privilegiadssima despertou o interesse da Companhia Light, que adquiriu o imvel para ali construir sua nova sede. O teatro foi de- molido em 1925 e o novo edifcio da companhia inaugurado em 1929. A construo de uma casa de espetculos altura das pretenses da elite paulistana no foi fcil. Aps alguns anos de tentativas de incentivo ao seu empreendimento por ca- pitais privados, foi aprovada pelo Senado Paulista, em novembro de 1900, a Lei n 750, 8 O Politeama abriu suas portas em fevereiro de 1892, mesmo ano de inaugurao do Viaduto do Ch, e destinava-se originalmente a apresentaes circenses. A sala de espetculos era abrigada por um grande galpo de planta circular e possua uma capacidade aproximada para 3000 espectadores. Foi destrudo por um incndio no dia 27 de dezembro de 1914. 9 Conhecido inicialmente como o Teatro Provisrio Paulista, iniciou suas atividades em 1873. Em 1891 foi reformado passando a chamar- se Teatro Minerva. Em 1895, aps nova reforma, passou a chamar-se Teatro Apolo. Em 1899 foi adquirido por Antnio lvares Penteado, que anexando lotes vizinhos, construiu nova casa, inaugurada em maio de 1900 com o nome Teatro Santana. Em 1912 o edifcio foi vendido ao governo e demolido para a construo do Viaduto Boa Vista. 10 O primeiro Teatro So Jos foi inaugurado provisoriamente em 1864, com sua construo ainda inacabada. A inaugurao denitiva aconteceria apenas em 1876. 11 AMARAL, Antonio Barreto do. Histria dos Velhos Teatros de So Paulo: da Casa da pera inaugurao do Teatro Municipal. So Paulo: Governo do Estado, 1979. p. 283. 12 Idem. p.373 13 A estrutura foi encomendada na Alemanha. A rapidez das obras permitiu que o teatro fosse inaugurado dois anos antes do Municipal. TOLEDO, 1989. p.63. Fig.52 Os teatros So Jos e Municipal vistos a partir do terrao do Palace- te Prates. Carto postal, 1918. [TOLEDO, 2004 (1980). p.140.] 70 Fig.53 Os teatros e o Ch. [TOLEDO, 1989. p.57.] Fig.54 Edio de mapa do Morro do Ch, de 1917, destacando em cinza a rea compreendida pelo parque de Bouvard e em preto os dois teatros. Essas duas contrues arrema- tavam o vazio da Praa Ramos de Azevedo e viaduto do Ch e criavam o cenrio mais glamuroso da cidade at a implantao do parque. [Fonte da base: TOLEDO, 1996. p.78.] 71 O VALE COMO LUGAR autorizando o estado a mandar construir um teatro na mesma localizao do primeiro So Jos. Diculdades econmicas impediram sua realizao. Em 1903 a Cmara Municipal aprovou a Lei n 627, que autorizava o Prefeito Antnio Prado a entrar em acordo com o Estado para empreender a obra. Escolheu-se para tanto terreno localizado entre as ruas Baro de Itapetininga, Formosa, Conselheiro Crispiniano e o prolongamento da Rua 24 de Maio. Para realizar o projeto foram contratados os arquitetos Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), Domizziano Rossi (1865-1920) e Cludio Rossi. A obra foi iniciada em junho de 1903 e concluda oito anos depois, em agosto de 1911. A apresentao inaugural, marcada para o dia 11 de setembro, teve de ser adiada para o dia seguinte, pois os cenrios no chegaram a tempo. No dia 12, uma multido, estimada pelos jornais da poca em 20 mil pessoas, se concentrou ao seu redor para conhecer a novidade 14 . O que interessa destacar aqui a respeito desses edifcios, se manifesta em dois mbitos: o do conjunto que conformavam e o das relaes com a cidade que estabeleciam individu- almente. Como um conjunto, arrematavam uma das extremidades do viaduto e conguravam um espao livre importantssimo. Uma das mais prestigiadas atividades sociais paulistanas, smbolo da emancipao cultural da cidade, tinha ali, no centro novo, seu monumento: a praa dos teatros como um grande palco. Esse vazio fazia parte do recinto Anhangaba, espraiando sua presena nos meandros da cidade. Individualmente, essas construes tambm apresentavam aspectos que devem ser des- tacados. O projeto do Teatro So Jos, colado ao Viaduto do Ch, tirava partido de sua pou- co usual situao urbana e topogrca, com trs fachadas ativas 15 e dois nveis trreos, um na cidade alta, atravs do viaduto e da Rua Xavier de Toledo, outro na cidade baixa, atravs da Rua Formosa. Observando algumas fotograas dos anos 1910 e 1920, podemos observar que neste edifcio at sua quinta fachada foi explorada, atravs da utilizao da cobertura para publicidade comercial. Por sua vez, o Teatro Municipal consegue estabelecer dilogos especcos com a cidade atravs de cada uma de suas quatro frentes. A frente Anhangaba expe o volume majes- 14 Devido quantidade de cerimnias e homenagens realizadas nesse dia, o espetculo inaugural, a pera Hamlet, foi iniciada com muito atraso somente s dez horas da noite. Devido ao adiantado da hora, foi suspensa por volta da uma da manh, cando sem o seu eplogo.(AMARAL, 1979. p.401.) 15 Denominou-se como fachadas ativas, as faces de um edifcio atravs das quais se realizam trocas ativas com a cidade e no apenas visuais. 72 73 O VALE COMO LUGAR toso de suas instalaes ao recinto do vale, permitindo a leitura de suas partes e criando um pano de fundo para a travessia do Ch. Seu passeio lateral cria um terrao mirante para o vale, que se transforma em jardim inclinado at atingir a Rua Formosa. A frente Praa Ramos de Azevedo qualicava e alimentava o largo dos teatros, valorizando o eixo do viaduto e da rua Baro de Itapetininga. A frente Conselheiro Crispiniano cria um alarga- mento lateral interessante para o comrcio localizado em frente alm de arrematar de modo inusitado o eixo visual da Rua 24 de Maio. E nalmente a frente oposta praa Ramos de Azevedo, que estabelece o acesso tcnico de funcionrios e artistas ao teatro e constitua elegantssima esquina no perodo em que existiu ali o Hotel Esplanada. Fig.55 Os teatros arrematando o eixo vi- sual do Viaduto do Ch. O parque ainda no havia sido implantado e as casas da Rua Formosa ainda criavam um fundo para o vale. Aurlio Becherini, 1911. [PONTES, 2003. p.164.] Fig.56 A Praa Ramos de Azevedo, os teatros e o Hotel Esplanada, aps a implantao do parque. [IMS, 2004. p.139.] Fig.57 Os teatros pontuavam o eixo do viaduto e da Baro de Itapetininga. As casas da Rua Formosa, a norte do viaduto, j haviam sido demo- lidas para a construo do parque. As casas a sul permaneciam. Aurlio Becherini, 1914. [PONTES, 2003. p.165.] 74 Fig.58 Vista da Rua Formosa em direo ao Viaduto do Ch com o So Jos ao fundo. O acesso inferior por esta rua servia aos artistas e funcion- rios do teatro, tirando partido de sua singular situao topogrca. Autor desconhecido. [GERODETTI, Joo Emilio. Lem- branas de So Paulo: a capital paulista nos cartes postais e lbuns de lembranas. So Paulo: Studio Flash, 1999. p.77.] Fig.59 Elevao Rua Formosa do Teatro So Jos. [Biblioteca FAUUSP] Fig.60 O So Jos visto do Viaduto do Ch. [AMARAL, Antnio Barreto do. Histria dos velhos teatros de So Paulo: da Casa da pera inau- gurao do Teatro Municipal. So Paulo: Governo do Estado, 1979.] 75 O VALE COMO LUGAR Fig.61 Elevao Rua Xavier de Toledo do Teatro So Jos. [Biblioteca FAUUSP] Fig.62 Acesso do Teatro So Jose pela Rua Xavier de Toledo. [AMARAL, 1979.] Fig.63 Teatro So Jos a partir da escada- ria do Tetro Municipal. Podem ser vistos seus acessos pela Rua Xavier de Toledo e pelo Viaduto do Ch. [TOLEDO, 2004 (1980). p.139] 76 Figs.64 e 65 Elevao Viaduto do Ch e corte longitudinal do Teatro So Jos. [Biblioteca FAUUSP] 77 O VALE COMO LUGAR Figs.66 e 67 Elevao Anhangaba e corte lon- gitudinal do Teatro Municipal. [TOLEDO, 1989. p.58 e 59] 78 Fig.68 Carto postal mostrando a eleva- o Baro de Itapetininga do Tea- tro Municipal. Cardozo Filho & Co. [GERODETTI, 1999. p.131.] Fig.69 Teatro Municipal visto a partir do So Jos. G. Gaensly, 1920. [IMS, 2004. p.111.] 79 O VALE COMO LUGAR Fig.70 Teatro Municipal e Praa Ramos de Azevedo recm construdos. [TOLEDO, 1989. p.133] Fig.71 O Caf do Municipal tirava partido de sua extraordinria localizao utilizando o passeio voltado para o Anhangaba e a Praa Ramos de Azevedo. [CHAMIE, Emilie. Teatro Munici- pal 70 anos. So Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1982.] 80 81 O VALE COMO LUGAR As indicaes do Vereador Augusto Carlos da Silva Telles [1907] Augusto Carlos da Silva Telles (1851-1923) pertencia a uma famlia paulista ligada ca- feicultura. Diplomou-se engenheiro em 1878, na Escola Politcnica do Rio de Janeiro, cida- de na qual exerceu o cargo de diretor de obras da Capital Federal entre 1897 e 1898. De volta a So Paulo, foi vereador na Cmara Municipal entre 1905 e 1911. Em 1906 Telles publicou o estudo Os melhoramentos de So Paulo, contendo um plano abrangente de intervenes na cidade. O setor central da cidade era ali, objeto de uma srie de propostas com enfoque marcadamente virio, entre as quais se destacam os alargamentos dos quatro cruzamentos onde o trfego de bondes era mais intenso (So bento com So Joo e Direita, So Joo com Lbero Badar e Largo do Tesouro) e o alargamento da rua Lbero Badar. Esta ltima con- tinha clara inteno de reformulao do espao do vale do Anhangaba: A nossa antiga rua de S. Jos impe-se seja radicalmente transformada. O seu alarga- mento constitue medida de primordial importncia para esta capital. (...) Rero-me desapropriao da face impar da rua Lbero Badar, o que ulterior- mente seria complementado pela desapropriao da face par da ladeira Dr. Falco. Dariamos ao centro da cidade um verdadeiro desafogo, dotariamos So Paulo de uma bella avenida central, dominando esse valle sob os dois viaductos, hoje to mal apro- veitado e que poderia transformar-se em um sitio encantador. Seria o complemento indispensavel ao bello e imponente Theatro Municipal, que mal se comprehende tenha com panorama da cidade essa la repugnante de fundos de velhas e primitivas habitaes. Opportunamente devera ser emprehendida a desapropriao das casas, face impar da rua Formosa. Evitar-se- assim que apresente o Theatro Municipal para quem a elle se dirige, indo da cidade pelo viaducto, como primeiro plano de perspectiva fundos de velhas casinholas da rua Formosa; s assim conseguir esta justicar o nome com que se orna. 16 16 TELLES, 1907, p. 41/2 apud SIMES JR, 1995, p. 74/5. Fig.72 Planta cadastral elaborada pela Diretoria de Obras da Prefeitura Municipal de So Paulo para o Projecto de melhoramentos da zona limitada pelas ruas Libero Badar, So Joo, Formosa, Largo do Riachuelo e Ladeira Dr. Falco, com data de 15 de outubro de 1907. [Arquivo SIURB] 82 83 O VALE COMO LUGAR O projeto foi desenvolvido pela equipe de engenheiros da Diretoria de Obras municipal, que contava com as guras de Victor Freire e Eugnio Guilhem. Em 1907 foi apresentada uma planta que sintetizava o conjunto das propostas defendidas por Telles e que se consti- tuiu como o primeiro projeto municipal que continha uma viso de conjunto a respeito das intervenes a realizar na rea central da cidade. Algumas caractersticas importantes do projeto podem ser extradas da leitura da planta geral da proposta, com data de 15 de outubro de 1907. Os limites assumidos para o recinto do vale so o Largo do Riachuelo, a Rua de So Joo, a Rua Formosa e a Lbero Badar. A praa ao lado do Teatro Municipal no faz parte do conjunto. As encostas so liberadas de construes, com exceo de um nico edifcio junto extremidade leste do Viaduto do Ch, que estrangula a alargada Libero Badar, e dois espa- os reservados sobre a encosta oeste, provavelmente destinados implantao de edifcios pblicos. sugerida a abertura de uma via junto ao extremo oeste do Viaduto do Ch criando uma ligao direta entre o Teatro Municipal e a Rua Formosa. O fundo do vale recebe uma via, prolongamento da Rua Anhangaba, posicionada as- simetricamente em relao ao vale, mais prxima da encosta oeste. A via possui carter de rua e no de avenida, e possui uma pequena rotatria no eixo da Travessa do Grande Hotel. O tratamento dado s reas livres o de um conjunto de pequenas praas ajardinadas rela- tivamente articuladas sem a inteno de criar um grande espao nico. Fig.73 Planta do Projecto de melhora- mentos da zona limitada pelas ruas Libero Badar, So Joo, Formosa, Largo do Riachuelo e Ladeira Dr. Falco, apresentado pela Diretoria de Obras da Prefeitura Municipal de So Paulo em 15 de outubro de 1907. [Arquivo SIURB] 84 Fig.74 Foto area do Vale do Anhangaba e seu entorno. Autor desconhecido, 1920. [IMS, 2004. p.111.] 85 O VALE COMO LUGAR A profuso de projetos e a soluo que veio de fora A fora das idias contidas no plano de Silva Telles deagrou uma forte disputa envol- vendo os tcnicos municipais de diversos setores (obras, nanas, justia) e os parlamen- tares representantes dos proprietrios de terras que seriam de algum modo afetados pela proposta. O maior proprietrio de imveis na rea do Anhangaba naquele momento era o Conde Eduardo Prates, que obviamente queria lucrar com a inevitvel valorizao de suas propriedades, principalmente as localizadas entre o vale e a Rua Lbero Badar. A soluo desse embate s foi alcanada em 1910, com a permisso de construir sobre o lado mpar da Rua Lbero Badar, comprometendo signicativamente a espacialidade do projeto. Paralelamente, Freire e Guilhem continuaram trabalhando, incorporando as novas condicionantes e conferindo maior abrangncia e profundidade ao projeto inicial. Nos l- timos meses de 1910 esse trabalho seria concludo. A prefeitura no dispunha dos recursos necessrios para levar adiante essas aes e so- licitou ao Governo Estadual reforo oramentrio. Isto originou uma nova disputa, agora entre os dois poderes, municipal e estadual, e que teve como conseqncia a elaborao de um projeto alternativo, encarregado a Samuel das Neves. A discusso em torno dos melhoramentos deixou claro o volume de recursos pblicos que seria demandado e o enorme potencial de valorizao imobiliria decorrente das obras, abrindo a perspectiva para grandes negcios. Os interesses de grupos privados passaram a se manifestar atravs de novos projetos, que rivalizavam com as propostas defendidas pelas esferas pblicas. O conito chegou a tal ponto que no havia acordo possvel. Para encerrar a questo foi necessrio acudir a um agente neutro, do ponto de vista dos interesses envolvidos, e com autoridade tcnica incontestvel. Dentro desse cenrio foi elaborado o plano de Bouvard. 86 Fig.75 Planta da proposta de melhora- mentos de Alexandre de Albu- querque. [SEGAWA, 2000. p.72.] 87 O VALE COMO LUGAR Alexandre de Albuquerque e os investidores privados [1910 - novembro] A dimenso atingida pelo debate em torno dos melhoramentos no centro da cidade fez com que o assunto se tornasse objeto de discusso pblica onde cada um poderia construir sua prpria imagem de projeto. Um grupo de investidores, altamente interessado no potencial volume de negcios que a realizao dessas obras implicava, resolveu dar um passo maior: formular e apresentar sua prpria proposta. A elaborao do plano cou a cargo do engenheiro arquiteto recm formado pela Escola Politcnica, Alexandre de Albuquerque (1880-1940) e o grupo de in- vestidores inclua personalidades como o Conde de Prates, Ramos de Azevedo, Plnio da Silva Prado (sobrinho do prefeito Antonio Prado) e outras grandes guras ligadas ao meio poltico e empresarial. 17 O projeto desenvolvido por Albuquerque partia da idia de transferir da colina histrica os principais edifcios representativos do poder pblico congurando um novo centro prxi- mo ao Largo Paissandu. Nessa rea seria implantado um conjunto de novas avenidas, super- postas de modo bastante formalista e impositivo malha existente, ligando os pontos julgados mais importantes. Essas avenidas, radialmente dispostas, se encontrariam em um ponto focal, uma praa rotatria explicitamente relacionada Place de ltoile de Paris. Ao longo delas seriam construdos os edifcios mais importantes conforme a descrio do autor: os predios seriam construidos de dois ou mais pavimentos e obedeceriam aos moder- nos estylos architectonicos, tendo preferencia os de sumptuosa fachada e os que se des- tinassem a grandes estabelecimentos commerciaes ou outra importante aplicao. 18 No contexto dessa proposta, a posio central do Anhangaba se dilui de tal modo que ao observarmos a planta geral do projeto temos diculdade em localiz-lo. Ele representa- do como mais uma quadra, destacando-se o vazio da praa ao lado do Teatro Municipal. 19 A topograa, questo crucial na estruturao da cidade, no parece ter sido uma con- dicionante do projeto. Se observarmos a avenida que liga a Praa Antonio Prado rotatria 17 Uma lista completa dos signatrios da petio pode ser encontrada em CAMPOS NETO, 1999. p.116. 18 Os melhoramentos de So Paulo: Projecto Alexandre de Albuquerque Revista de Engenharia n2 (vol. I) julho de 1911 apud CAMPOS NETO, 1999. p.116. 19 Na publicao O lbum de Afonso, Carlos Lemos apresenta uma planta desse projeto aparentemente editada, pois difere do desenho utilizado por todos os demais autores consultados. Na planta utilizada por ele, a leitura que se faz do Anhangaba, que aparece destacado juntamente com os demais espaos livres e as principais avenidas propostas, oposta comentada. 88 89 O VALE COMO LUGAR central, cruzando o vale logo aps a Rua de So Joo, no encontraremos qualquer sinal que revele os desnveis existentes ao longo do percurso. Nem mesmo na perspectiva que ilustra o plano, essa condio geogrca perceptvel. Os proponentes apresentaram a petio ao Governo do Estado, onde teriam mais inu- ncia que na esfera municipal. Pela sua proposta, arcariam com os custos de implantao das avenidas em troca da concesso de uma srie de servios (inclusive um sistema de trans- portes utilizando nibus) e do direito de desapropriar uma faixa mais larga que a necessria para a abertura das avenidas, podendo posteriormente utilizar ou revender os lotes criados junto a elas. Pelo seu contedo e pelo modo como foi encaminhado, o plano despertou imediata- mente a oposio de poderosos agentes: a esfera do poder municipal, a Light (que perderia o monoplio dos transportes), todos os proprietrios de terras que seriam prejudicados em benefcio de um pequeno grupo 20 e todos os proprietrios de imveis localizados sobre a colina histrica, que inevitavelmente sofreriam desvalorizao com a congurao de um novo centro. A imagem de cidade oferecida por Albuquerque no teve a repercusso esperada e seus patrocinadores no puderam superar a oposio. O projeto foi nalmente abandonado e a colina histrica manteria seu carter polarizador. Alexandre de Albuquerque se tornaria docente da Escola Politcnica a partir de 1917, atingindo o cargo de diretor em 1937. Exerceu o cargo de vereador por dois mandatos e teve participao ativa no cenrio das artes plsticas promovendo sales e participando da fundao da Escola de Belas Artes. Como arquiteto teve uma carreira discreta. Projetou a Capela e o Convento de Sta. Thereza, que atualmente abriga as instalaes da PUC, e parti- cipou da construo da Catedral da S. 21 20 CAMPOS NETO, 1999. p.119. 21 Fonte: www.poli.usp.br/ organizacao/historia/diretores/ alexandre_albuquerque.asp (15/12/2006) Fig.76 Perspectiva da proposta de Alexan- dre de Albuquerque. esquerda o Teatro Municipal e a Praa Ramos de Azevedo. [SEGAWA, 2000. p.69.] 90 91 O VALE COMO LUGAR Victor da Silva Freire, Eugnio Guilhem e a contribuio municipal [1911 - janeiro] Envolvidos diretamente na disputa poltica entre a Prefeitura e o Governo do Estado pela conduo dos melhoramentos da cidade, Victor da Silva Freire (1869-1951), chefe da Diretoria de Obras do municpio, e Eugnio Guilhem, seu vice, desenvolveram um pro- jeto baseado nas premissas de Silva Telles, mas ampliando sua abrangncia. O projeto, que cou conhecido como Freire-Guilhem, foi sintetizado em documento com o ttulo Melhoramentos do Centro da Cidade de So Paulo, apresentado durante os ltimos dias do mandato de Antonio Prado, em janeiro de 1911. A proposta previa a transformao do Vale do Anhangaba em parque ajardinado, com uma via ao longo de seu eixo comunicando o Piques e o Acu, podendo se estender at a re- gio da Luz. As duas encostas, lado mpar da Rua Lbero Badar e lado par da rua Formosa, deveriam ser liberadas de construes criando um belvedere contnuo em ambos os lados. Nova travessia estava prevista atravs de um viaduto sobre o eixo da Rua de So Joo, que seria ampliada passando a ter 40 metros de largura. Uma praa, presente em vrias propos- tas anteriores, seria criada entre as ruas So Bento e Lbero Badar em frente Igreja de Sto. Antonio, atual Praa do Patriarca. Na perspectiva que ilustra o plano aparecem sugeridas algumas propostas que no fo- ram includas na planta e que so de extrema relevncia para o objeto deste estudo. O limite norte do que se entendia at ento como recinto do vale extrapola o eixo da Rua de So Joo, ampliando-se como rea livre para alm do Viaduto de Santa Egnia, cujas obras j haviam sido iniciadas. Isto daria ao conjunto uma fora extraordinria ao integrar espacial e visualmente o Largo de So Bento e o viaduto em obras ao conjunto de espaos livres for- mado pelo prprio vale, pela praa ao lado do teatro e pela nova praa no extremo leste do Viaduto do Ch. Esses espaos se complementam, ampliando os limites espaciais desse va- zio. Diferente do projeto de Alexandre de Albuquerque, a topograa aqui se constitui como fator fundamental de articulao dos espaos, proporcionando uma riqueza de relaes espaciais que o projeto anterior negava. A concepo geral do viaduto proposto, junto Rua de So Joo, constitua um avano Fig.77 Planta da proposta de Victor da Silva Freire e Eugnio Guilhem. [SEGAWA, 2000. p.78.] Fig. 78 Pormenor da planta anterior desta- cando o Vale do Anhangaba Fig. 79 Edio da gura 78 destacando em cinza, a abrangncia do recinto proposta pelo projeto, tomando como base a planta geral e perspec- tiva que a complementava. 92 93 O VALE COMO LUGAR em relao aos viadutos anteriores. Com o alargamento da via, o viaduto no ocuparia toda a largura do eixo permitindo a criao de ruas paralelas que acompanhariam as declividades das encostas, hierarquizando os uxos e evitando situaes de proximidade excessiva em relao aos edifcios vizinhos. O espao criado sob a estrutura poderia ser utilizvel, algo que s se realizaria com o novo Viaduto do Ch dcadas depois. O desenho revela a inteno de congurar um espao amplo com forte unidade espa- cial. O tratamento dos jardins busca criar um grande parque e nenhuma construo invade seus limites. A grande diculdade imposta pelo projeto era a quantidade de desapropriaes necessrias para liberar as encostas do vale. O Municpio no tinha os recursos necessrios e o Estado, que poderia fornecer esses recursos, defendia outro projeto, que ser analisado a seguir. O impasse estava criado. Fig.80 Perspectiva da proposta de Victor da Silva Freire e Eugnio Guilhem. [TOLEDO, 1989. p.74.] Fig. 81 Edio da gura anterior, isolando o recinto desenhado. Destacam-se as propostas do Viaduto So Joo, e a desocupao da quadra entre este viaduto e o Santa Egnia na encosta junto Lbero Badar. ntido o desejo de integrar espa- cialmente o vale e os espaos livres anexos, como a Praa do Patriarca e o Largo de So Bento. Nenhuma contruo era admitida sobre a face oeste da Rua Lbero Badar e Ladeira Dr. Falco. 94 95 O VALE COMO LUGAR Samuel das Neves e a proposta do Governo Estadual [1911 - janeiro] Movido por interesses explicitamente polticos e implicitamente econmicos, o Governo do Estado resolveu apresentar sua prpria proposta de melhoramentos para a capital. Para isso contratou o arquiteto Samuel Augusto das Neves (1863-1937), que havia criado vncu- los com o setor de obras ao vencer o concurso para a nova Penitenciria do Estado. Neves teve um curtssimo prazo para elaborar a proposta, aproximadamente quinze dias, que foi apresentada no nal de janeiro de 1911 pelo chefe da Secretria de Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas do Estado, Pdua Salles. Muitas das propostas para o sistema virio contidas no projeto Freire-Guilhem, foram incorporadas por Neves. O ponto onde as premissas eram opostas era justamente o carter dado ao Vale do Anhangaba. Como ponto de partida, Neves propunha a transformao do vale no em um espao livre, como um parque ou jardim, mas em uma grande avenida-parque, cercada por cons- trues em altura. Esta ao claramente respondia questo das desapropriaes levantada pelo projeto da prefeitura e beneciava os proprietrios de terras da regio. Cabe ressaltar que o Conde de Prates era seu amigo pessoal e seria um dos mais beneciados pela con- gurao proposta. Na planta encontra-se insinuado o prolongamento dessa avenida para norte e para sul, em direo ao espigo da Paulista e em direo aos campos da Luz. Em uma das perspecti- vas encontra-se a legenda: Projeto de Transformao do Valle do Anhangabahu em Avenida Central, podendo estender-se da Avenida Tiradentes at a Avenida Paulista. Nesta ilustra- o, cujo limite ao norte o eixo da Rua de So Joo, a avenida prolongada innitamente, como se logo ali no existisse o Morro do Bexiga e os vales do Saracura e do Itoror. Uma segunda perspectiva, que abrange todo o permetro do projeto, apresenta uma situ- ao signicativamente diferente. A grande avenida interrompida antes de atingir a Rua de So Joo sendo arrematada por um conjunto de edifcios, entre eles o Mercado de So Joo, e seu prolongamento na direo sul no mostrado. Poderamos dizer que esta uma imagem mais realista no que diz respeito s possibilidades espaciais da proposta naquele momento. Fig.82 Planta da proposta de Samuel das Neves onde se destacam o viaduto projetado entre o Largo da Mem- ria e o Largo de So Francisco e a grande avenida projectada no fundo do vale. [LEMOS, 2001. p.16.] 96 97 O VALE COMO LUGAR O recinto do Anhangaba, conforme a interpretao de Samuel das Neves, seria for- mado pelo vazio da grande avenida tendo como limites extremos o bloco de edifcios jun- to Rua de So Joo e o viaduto proposto que ligaria o Largo da Memria ao Largo So Francisco. As relaes espaciais possibilitadas pela topograa no seriam aproveitadas j que o vazio da avenida seria conformado por um conjunto de edifcios implantados no fundo do vale reproduzindo a congurao de um territrio plano. O conjunto de desenhos evidencia por um lado, a inconsistncia do projeto do ponto de vista das relaes urbanas sugeridas e da leitura das condicionantes do stio, e por outro a clareza de intenes em relao ao modo de aproveitar economicamente o potencial dos melhoramentos. Victor da Silva Freire realizaria, nos meses seguintes divulgao dos dois projetos, uma aprofundada e severa crtica ao projeto de Neves atravs de publicaes e conferncias. Sua fala apontava principalmente para dois campos de anlise: as inconsistncias e contradies intrnsecas ao projeto, e a inadequao da transposio direta do modelo de interveno haussmaniano para as condies de So Paulo, como se zera no Rio de Janeiro por inicia- tiva de Pereira Passos. no era apenas a inadequao desse modelo (...) que estava em jogo nos argumentos de Victor Freire, mas a necessidade de superar tal paradigma e construir outro, mais autnomo - estabelecendo para So Paulo um caminho prprio, no mais subordi- nado capital federal. Ao mesmo tempo, buscava um repertrio mais atualizado nos termos do debate urbanstico desencadeado pelos ensinamentos de Camillo Sitte e dos primeiros urbanistas alemes, consolidando-se no incio do sculo XX. 22 De fato, Victor Freire e sua equipe encontravam-se muito melhor aparelhados, tcnica e teoricamente, e j vinham estudando o problema h alguns anos. No entanto, o carter poltico a que havia chegado o impasse impedia a adoo de qualquer uma das solues. Sabendo que sua proposta poderia naufragar caso a discusso fosse conduzida em ter- mos prioritariamente nanceiros, o que no causaria nenhuma surpresa, Freire construiu, 22 CAMPOS NETO, 1999, p.136. Fig.83 Perspectiva da proposta de Samuel das Neves. [SEGAWA, 2000. p.89.] 98 99 O VALE COMO LUGAR atravs dessas conferncias, uma argumentao que levaria proposta de contratao de um consultor externo especializado para elaborar o plano. No foi coincidncia o fato de se encontrar naquele momento em Buenos Aires o re- nomado urbanista francs Joseph Antoine Bouvard (1840-1920) que era, nos primeiros anos do sculo XX, um urbanista experiente e internacionalmente respeitado. Desde 1907, colaborava como consultor, na remodelao da cidade de Buenos Aires. Sua viso a respeito do urbanismo coincidia em muitos pontos com a de Freire, principalmente no que se refere crtica aos procedimentos haussmanianos de interveno na cidade. Freire sabia que na- quele momento Bouvard estava na Argentina e que, portanto, existia a possibilidade de sua participao na questo dos melhoramentos. Ele concluiu suas conferncias apresentando o exemplo de Buenos Aires e apontando a participao do francs. Sua sugesto estava dada. Fig.84 Perspectiva da avenida central proposta por Neves. Notar o ttulo do desenho: Projeto de Transfor- mao do Valle do Anhagabah em Avenida Central, podendo exten- der-se da Avenida Tiradentes at a Avenida Paulista. [SEGAWA, 2000. p.83.] Fig. 85 Pormenor da planta geral (Fig.82), ampliando o Vale do Anhangaba. Fig. 86 Edio da gura anterior destacan- do a lgica de cheios (em preto) e vazios (em branco) da proposta de Neves. As construes nas laterais da grande avenida isolavam os espaos livres contguos, como a Praa Ramos de Azevedo e a Praa do Patriarca (ainda no construda naquele momento). O prolonga- mento indicado na direo sul, desprezava totalmente as condies topogrcas da cidade. 100 Fig.87 Planta geral que acompanhava o relatrio elaborado por Bouvard. [SEGAWA, 2000. p.94.] 101 O VALE COMO LUGAR O Relatrio Bouvarde o encerramento da disputa [1911-maio] Em 17 de maro a Cmara Municipal aprovou solicitao do vereador Alcntara Machado recomendando a contratao de Bouvard e poucos dias depois Freire partiu para o Rio de Janeiro com o objetivo de efetivar o acordo. O contrato previa o desenvolvimento do trabalho em duas etapas: inicialmente seria elaborado um relatrio, resultado da apre- ciao dos projetos e da visita cidade e posteriormente, caso fosse necessrio, poderia ser elaborado um plano 23 . Bouvard permaneceu em So Paulo por aproximadamente quarenta dias, apresentando suas concluses em 15 de maio de 1911. O papel de Bouvard no pode ser considerado como uma arbitragem imparcial entre as alternativas em discusso para os melhoramentos de So Paulo. Antes, a visita do arquiteto francs seria uma resposta estratgia do fato consumado adotada pelos par- tidrios do projeto Samuel das Neves. Escolhido por Victor Freire, Bouvard represen- tava posies assumidas pelo Diretor de Obras; ao mesmo tempo, trazia na bagagem o aval da cultura francesa e o prestigio de Paris, sem o qual seria impensvel contestar o modelo parisiense que fundamentava ideologicamente a proposta de Neves. A emu- lao de Buenos Aires, por sua vez, permitia que o exemplo carioca e sua avenida central pudessem ser superados por uma experincia sul-americana com legitimidade ainda maior que a do Rio de janeiro em termos da civilizao representada pela mo- dernizao urbana europia. 24 As intervenes propostas por Bouvard podem ser divididas em quatro temas funda- mentais: o parque no Anhangaba, o parque na vrzea do Carmo, o novo Centro Cvico e um conjunto de intervenes virias. Para a vrzea do Carmo, foi proposta a criao de um grande parque sobre as terras ala- gadias e pouco ocupadas entre a vertente leste da colina e o Brs. Este espao livre seria com- plementado pela construo de um grande pavilho de exposies (Palcio das Indstrias) e pelo novo mercado (Municipal), que substituiria o criticado mercado na Rua de So Joo. 23 CAMPOS NETO, 1999. p.138. 24 CAMPOS NETO, 1999. p.139. 102 Fig.88 Planta dos melhoramentos para o Vale do Anhangaba elaborada por Bouvard. Notar a quantidade de construes novas admitidas pela proposta. [SIMES JR. Jos Geraldo. Anhan- gaba: Histria e Urbanismo. So Paulo: FAUUSP, 1995. g.94.] Fig.89 Pormenor de foto area tomada em 1925 , com o Parque Anhangaba projetado por Bouvard implantado. [TOLEDO, 1989. p.174.] 103 O VALE COMO LUGAR Motivado pelos planos existentes de novas construes para a Catedral, o Palcio do Governo, o Pao Municipal e o Palcio da Justia, Bouvard props a criao de um im- ponente Centro Cvico que aglutinaria essas novas funes criando um novo espao livre em pleno corao da colina histrica. Essa proposta exigia grandes desapropriaes e no chegou a ser detalhada. As intervenes virias contidas nas plantas que acompanhavam o relatrio constituem o ponto mais frgil de suas propostas. O conjunto de vias diagonais, ligaes e novas ro- tatrias no chegava a congurar um todo articulado capaz de resolver os problemas de trfego enfrentados pela cidade. O resultado objetivo mais importante destas aes seria a congurao de novas frentes de valorizao imobiliria, semelhantes s propostas por Alexandre de Albuquerque. Os interesses a serem beneciados continuavam presentes nos bastidores do debate paulistano. Sempre conciliador, Bouvard encontrava a ocasio de integr-los em seu plano geral. Mas nem a Prefeitura nem o Estado se disporiam a nanciar as custosas operaes de aproveitamento dos miolos das quadras implcitas em tais propostas. 25 Para a regio do Anhangaba foram elaboradas duas plantas alternativas. A primeira se alinhava muito quela proposta por Freire e Guilhem e previa a desocupao da margem oeste da Rua Lbero Badar, com exceo do trecho junto Rua de So Joo. A segun- da verso, apresentada de modo pormenorizado, previa a ocupao parcial dessa encosta com a colocao de dois blocos simtricos, construdos precisamente em frente ao Teatro Municipal. Estes blocos teriam sua frente voltada para o vale e criariam no nvel da Lbero Badar um terrao-mirante, extenso do passeio pblico. Havia ainda a previso de cons- trues junto Ladeira Dr. Falco e junto Rua Formosa, que foram abandonadas durante o desenvolvimento do projeto. Chamada de conciliatria por atender parcialmente a todos os interesses envolvidos na discusso, esta foi a alternativa nalmente aprovada. 25 CAMPOS NETO, 1999. p.144. 104 Fig.90 Pormenor de foto area com o Parque Anhangaba bem no cen- tro. 1925. [TOLEDO, 1989. p.175.] Fig.91 Trecho do Viaduto do Ch com o novo parque ao fundo no incio dos anos 20. Carto Postal da Papelaria Brasileira. [GERODETTI, 1999. p.78.] 105 O VALE COMO LUGAR No projeto de Bouvard, o Parque Anhangaba era compreendido como um pequeno espao livre congurado por um conjunto articulado de edicaes: sobre as encostas o tea- tro e os blocos simtricos, no fundo do vale, os edifcios junto Rua de So Joo e junto ao Largo do Piques. A via central apresentava um desenho sinuoso, com traado artstico, e o desenho dos jardins criava um cenrio de contemplao, para ser observado da cidade alta. Das aes previstas no plano de Bouvard, a prefeitura elegeu como prioritrios os me- lhoramentos na regio do Anhangaba, cujas obras se iniciaram naquele mesmo ano, du- rante a gesto de Raimundo Duprat, e seriam parcialmente concludas apenas em 1917. Fotograas do perodo permitem dimensionar o vulto da obra que resultou no Parque Anhangaba de Bouvard. Tudo novo, tudo construdo: a topograa, os edifcios junto Libero Badar, a vegetao, as vias de circulao. A escala desse empreendimento era indita para os padres paulistanos. Sua construo simboliza o auge da representao urbana da elite cafeeira. O sonho de duas dcadas havia sido nalmente alcanado. O esplendor da capital do caf estava ali cristalizado. 106 Figs.92 e 93 Duas fotograas tiradas do mesmo ponto, a partir do Viaduto do Ch, mostram as transformaes de- correntes da construo do Parque Anhangaba. A primeira, de 1911, mostra a Rua Formosa, ao lado da Praa Ramos de Azevedo, e uma grande quan- tidade de construes com fundo para o vale. Na segunda imagem, de 1918, todas essas construes j haviam sido demolidas e a movi- mentao de terra para implanta- o do parque encontrava-se em fase adiantada de execuo. Notar a signicativa elevao do nvel do fundo do vale tomando como referncia o edifcio direita. O primeiro pavimento encontra-se quase encoberto. Aurlio Becherini. [PONTES, 2003. p.153.] 107 O VALE COMO LUGAR Fig.94 Aspecto da construo do parque. A obra basicamente uma acomo- dao de terra com a recongura- o da topograa do vale. Aurlio Becherini, 1918. [PONTES, 2003. p.156.] Fig.95 Construo do Parque Anhan- gaba. Notar a terra ainda no acomodada entre o Palacete Prates e o viaduto. Toda a enconsta leste do vale foi reconstruda (comparar com as guras 96 a 98). [TOLEDO, 1989. p.95.] 108 Fig.96 Obras do Anhangaba a partir da Praa Ramos de Azevedo. Os pala- teces do Conde de Prates em fase nal de construo e a residncia do Conde, direita do Viaduto do Ch, com sua estrutura metlica sendo montada. No fundo do vale ainda havia casas a serem demo- lidas e a movimentao da terra estava sendo preparada. [TOLEDO, 1989. p.71.] Fig.97 Nesta imagem os palacetes j se en- contram praticamente concludos e as montanhas de terra ao seu redor prestes a serem acomodadas. [TOLEDO, 1989. p.105.] Fig.98 Vista a partir do mesmo ponto da imagem anterior, mostra a en- consta j congurada com as ruas construdas e o parque em fase nal de implantao. [TOLEDO, 1989. p.105.] Fig.99 Vista do extremo sul do Parque Anhangaba, com a arborizao relativamente crescida e algumas construes junto Rua Formosa ainda por demolir. [TOLEDO, 2004 (1980). p.2.] 109 O VALE COMO LUGAR 110 111 O VALE COMO LUGAR Fig.100 Setor norte do vale a partir do Viaduto do Ch, com a empena do edifcio da Delegacia Fiscal ao centro. As extremidades norte e sul do parque nunca foram bem resolvidas. Aurlio Becherini, 1920 [PONTES, 2003. p.157.] Fig.101 A Avenida So Joo era comple- tamente desvinculada do parque. direita o edifcio da Delegacia Fiscal com sua frente voltada para a Praa do Correio e ao fundo a Praa Antonio Prado. Aurlio Becherini, 1920. [PONTES, 2003. p.160.] Fig.102 O edifcio dos Correios, inaugura- do em 1922, junto com a Delegacia Fiscal, conferia o carter da praa. Autor desconhecido, 1924. [IMS, 2004. p.141.] Fig.103 O Piques e o nal do parque. [TOLEDO, 1996. p.174.] Fig.104 Parque Anhangaba. [TOLEDO, 1989. p.95.] Fig.105 O viaduto e o parque. Autor desconhecido, 1923. [IMS, 2004. p.139.] 112 113 O VALE COMO LUGAR Viaduto So Joo [1912] Em julho de 1912, chegou mesa do vice-diretor de obras do municpio, Eugnio Guilhem, um pacote procedente de So Vicente contendo o projeto para um viaduto lo- calizado junto Rua de So Joo. A carta de apresentao, contendo o timbre da empresa Pauling & Co., Limited, Santos, mencionava os custos previstos para a obra, bem como seu prazo de execuo. Solicitava-se ainda, de modo muito cordial, a preferncia na construo da obra. Outros estudos para esse viaduto, realizados no mesmo perodo, encontram-se no arquivo de projetos da Secretaria Municipal de Infra-estrutura Urbana. Estes estudos foram realizados, ao que tudo indica, a pedido de Victor da Silva Freire e Eugnio Guilhem, que previam essa obra em sua proposta para os melhoramentos da rea central. Bouvard no faz nenhuma referncia direta a esse elemento em seu plano, mas na planta geral da colina central elaborada por ele, ao lado da Rua de So Joo, encontra-se uma indicao que poderia ser interpretada como a proposta de construo desse viaduto ou como o alargamento da rua ou eventualmente, ambos. De qualquer modo, durante o desenvolvimento da proposta de Bouvard, realizado pela Diretoria de Obras, essa idia foi retomada. Em uma verso, com desenhos elaborados pela equipe da Diretoria de Obras, o viaduto estruturado atravs de uma sucesso de arcos em alvenaria, com vos tpicos de 11.38 metros e excees sobre a Rua Lbero Badar (12 metros) e sobre a Rua Formosa (25 metros). A Rua de So Joo seria alargada para 38 metros divididos em duas vias laterais com 12 metros de largura cada e o viaduto ao centro com 14 metros. Na planta dessa proposta podemos ver a posio do antigo Mercado So Joo e a srie de edifcios que deveriam ser demolidos para o alargamento. O encontro desse eixo com o Largo do Paysand no indicado, mas seu even- tual prolongamento levaria a uma signicativa reduo da rea livre em frente igreja. O projeto apresentado pela Pauling & Co., Limited, Santos, foi elaborado em Londres pelo engenheiro francs Louis Gustave Mouchel, representante na Inglaterra do tambm francs Franois Hennebique (1842-1921), pioneiro na utilizao da tcnica do concreto armado no campo da construo civil. 26 Foram desenvolvidas duas alternativas para o via- 26 A partir de 1867 Hennebique comeou a pesquisar as possibilidades construtivas proporcionadas pelo reforo do concreto utilizando barras metlicas. Em 1892 patenteou seu sistema construtivo e fundou uma empresa de consultoria complementada por uma rede de construtores licenciados. Em 1909 possua uma rede com 69 escritrios espalhados pela Europa, Estados Unidos, frica e sia. Chegou a executar uma mdia de 100 pontes por ano em sua fase mais prspera. L. G. Mouchel era o agente de Hennebique na Inglaterra e sua empresa existe at os dias de hoje. Figs.106, 107 e 108 Projecto de um viaducto na Rua de So Joo (entre a Praa Antonio Prado e o Largo do Paysand) Planta, Elevao Norte e pormenor da elevao. Estudo desenvolvido pela Diretoria de Obras municipal. A So Joo ainda no havia sido alargada. Notar a quantidade de demolies previstas, incluindo a do Mercado, ao centro. [Arquivo SIURB] 114 115 O VALE COMO LUGAR duto, uma relativamente contida, com vos modulados em 20 metros, e uma segunda mais ousada, que vencia o vale com apenas trs vos de aproximadamente 70 metros. Em ambas se utilizava a tcnica patenteada do concreto armado, o Ferro Concrete Construction System de Hennebique. A contratao de uma empresa estrangeira renomada como a de Mouchel, representan- te do estado da arte no que se referia construo de pontes, revela que a idia de executar o viaduto no era mera especulao. Freire e Guilhem realmente pretendiam realizar essa obra, que no saiu do papel provavelmente devido s diculdades nanceiras enfrentadas pelo municpio. Fig.109 Elevao lateral e planta de um segundo projeto para o mesmo viaduto, elaborado em Londres por L. G. Mouchel, 1912. [Arquivo SIURB] Figs.110 e 111 Fotograas da Royal Tweed Bridge, em Berwick, Reino Unido, constru- da por Mouchel entre 1925 e 1928. O desenho dessa estrutura seme- lhante ao proposto para o Viaduto So Joo. [http://en.structurae.de e http:// freepages.genealogy.rootsweb.com/ ~agene/berbrdg.htm (Set/2006)] 116 Fig.112 Corte transversal da verso alterna- tiva para o Viaduto So Joo elabo- rada por L. G. Mouchel. [Arquivo SIURB] 117 O VALE COMO LUGAR Fig.113 Corte longitudinal parcial da ver- so alternativa para o Viaduto So Joo elaborada por L. G. Mouchel. [Arquivo SIURB] 118 Fig.114 Panorama do Anhangaba a partir da obra do Edifcio Alexander Mackenzie. Nesta imagem podem ser vistos, da esquerda para a di- reita, o primeiro Palacete Prates, o Ed. Sampaio Moreira, o segundo Palacete Prates, a Residncia do Conde de Prates (posteriormente Rotisserie Sportsman) e o Ed. Mdi- ci. Todos projetados por Samuel e Cristiano Stockler das Neves. [TOLEDO, 1989. p.177.] Fig.115 Outra viso a partir do Ed. Ma- ckenzie, com os edifcios proje- tados pelos Neves em primeiro plano. [TOLEDO, 1989. p.153.] 119 O VALE COMO LUGAR A nova carado vale: os Neves imprimem sua marca Apesar da derrota parcial na disputa pelo projeto dos melhoramentos, Samuel das Neves permaneceu como um dos arquitetos mais prestigiosos daquele perodo, alm de muito bem relacionado. Era ele o projetista do Conde de Prates, proprietrio de pratica- mente toda encosta leste do vale, junto Rua Lbero Badar. Desta maneira, caram a cargo de Neves os edifcios novos mais importantes contidos na proposta por Bouvard: os dois blocos que, por sua posio, rebatida em relao ao eixo do vale, estabeleceriam uma certa simetria com o Teatro Municipal congurando um conjunto monumental. Algumas premissas para o desenho desses edifcios haviam sido su- geridas pelo urbanista francs e foram adotadas na soluo nal. Para a elaborao desses projetos, Samuel das Neves contou com um importante refor- o em sua equipe: o retorno a So Paulo, em meados de 1911, de seu lho, arquiteto recm- formado nos Estados Unidos 27 , Christiano Stockler das Neves (1889-1982). Outro edifcio de localizao privilegiada seria projetado pelos Neves em 1912: a resi- dncia do Conde de Prates, na Lbero Badar esquina com o Viaduto do Ch. Desse modo, o Ch tinha como arremates visuais de suas extremidades, de um lado os teatros So Jos e Municipal, do outro a residncia do conde e os blocos. O prprio viaduto foi objeto de estudos por parte do Escriptorio Technico do Eng Samuel das Neves. Um estudo feito em 1912, com o carimbo do escritrio e assinado por Maurice de Ladrire, propunha um novo viaduto com estrutura metlica em arco, com um nico vo central. Entre 1911 e 1913, projetaram ainda o Edifcio Luiz Mdici, na Lbero Badar, e o Palacete Mdici, na Ladeira Dr. Falco. Em 1924 foi inaugurado outro cone da cidade pro- jetado por eles: o Edifcio Sampaio Moreira, o primeiro arranha-cus da cidade, com seus 13 pavimentos mais poro e tico. Sua localizao foi escolhida a dedo pelos arquitetos, em frente praa entre os dois blocos do Anhangaba. Entre 1911 e 1925, o escritrio foi res- ponsvel por aproximadamente 25 projetos junto Rua Lbero Badar e adjacncias. 27 CAMPOS NETO, 1999. p.149. 120 121 O VALE COMO LUGAR A linguagem utilizada pelo escritrio em todas essas obras, sua escolha estilstica, foi motivo de polmicas e debates pblicos, seja pela sua rejeio arquitetura moderna, seja pela sua rejeio arquitetura neocolonial, em voga nos anos 20 e cujo maior expoente em So Paulo era Ricardo Severo. Figuras como Mrio de Andrade e Monteiro Lobato publica- ram artigos condenando a produo do escritrio. Estilos parte, havia no projeto dos blocos, operaes de projeto que merecem des- taque. O partido adotado dividia as construes em duas partes. Os embasamentos, cujas coberturas cavam em nvel com a Rua Lbero Badar, arrematavam o desnvel entre esta e o vale, constituindo prolongamentos do passeio pblico que criavam terraos de onde se podia admirar a paisagem. A superfcie destes era bastante fechada e os materiais utilizados eram sbrios e brutos. Sobre estas bases pousavam os palcios, com volumetrias quase idnticas e sutis variaes no ritmo das aberturas e solues ornamentais. Estas construes utilizaram estruturas metlicas importadas da Inglaterra e foram inauguradas em 1914. As fachadas principais, as frentes, eram voltadas para o vale e a soluo das esquinas em curva realizava uma melhor integrao entre os edifcios e o vazio que os circundava. Estas disposies espaciais resultavam em uma arquitetura que estabelecia uma reexo a respeito de seu stio de implantao, suas especicidades geogrcas e simblicas. Poucos edifcios realizados posteriormente junto ao vale, alcanariam equivalente qualidade arqui- tetnica. Os dois se tornaram um enorme sucesso comercial. O mais prximo ao viaduto, abrigou escritrios e a sede do Automvel Clube. O outro hospedou a sede da prefeitura e da Cmara Municipal. Fig.116 Planta de localizao dos blocos do Anhangaba, propostos por Bouvard e projetados por Samuel e Cristiano Stockler das Neves. No desenho pode ser vista a sugesto de um novo viaduto substituindo o antigo Ch. [SEGAWA, 2000. p.87.] Figs.117 e 118 Elevao Anhangaba dos pala- cetes. Variaes decorativas dife- renciavam os edifcios de mesma volumetria. [SEGAWA, 2000. p.87.] Fig.119 Os palacetes earesidnciavistos a partir do parque. [TOLEDO, 1989. p.176.] Fig.120 Os dois palacetes vistos apartir do Viaduto do Ch. G. Gaensly, 1920. [IMS, 2004. p.111.] 122 Fig.121 Residncia do Conde de Prates. Elevao Anhangaba. [TOLEDO, 1989. p.96.] Fig.122 Residncia do Conde de Prates a partir do parque. [TOLEDO, 1989. p.95.] Fig.123 Elevao lateral de proposta para um novo Viaduto do Ch. [Biblioteca FAUUSP] Fig.124 Obras do Ed. Sampaio Moreira utilizadas para publicidade. [www.piratininga.org (Out/2006)] Fig.125 O Sampaio Moreria entre os dois palacetes. [TOLEDO, 1989. p.165.] Fig.126 O primeiro arranha cu de So Paulo em fotograa do nal dos anos 20. [TOLEDO, 1989. p.166.] 123 O VALE COMO LUGAR 124 Fig.127 O Viaduto do Ch em desenho de Monteiro Lobato publicado na revista Vida Moderna, em 1916. Fig.128 Desenho de edifcios na Laderia Dr. Falco. Monteiro Lobato, 1912. Fig.129 Auto-retrato de Monteiro Lobato [D. O. Leitura, Jul/Ago 2004. p.34] 125 O VALE COMO LUGAR Monteiro Lobato e o Ruadutodo Ch [1913] Internacionalmente conhecido por sua produo literria, Jos Bento Monteiro Lobato (1882-1948) foi gura polmica nos cenrios artstico e poltico nacionais e ao longo de toda a vida envolveu-se em inmeras aventuras empresariais de diferentes naturezas. Nascido em Taubat, mudou-se para So Paulo em 1897, graduando-se pela Faculdade de Direito em 1904. Em 1905, simultaneamente sua carreira de promotor pblico e de escritor, tentou sem sucesso abrir uma fbrica de gelias em sociedade com um amigo e um estabelecimento comercial de secos e molhados quatro anos depois. Em 1910 associou-se a um negcio de estradas de ferro. Em 1911, aos 29 anos de idade, herdou uma fazenda de seu av, para onde se transferiu com a famlia com o objetivo de modernizar a lavoura e a criao. Nesse mesmo ano abriu um externato em Taubat em sociedade com seu cunha- do 28 . Em 1913, estabeleceu uma sociedade com o poeta Ricardo Gonalves cuja meta era explorar comercialmente o Viaduto do Ch. No perodo de 1913 a 1916 o poeta Ricardo Gonalves tentou realizar de sociedade com o escritor Monteiro Lobato - e aproveitando a circunstncia de estarem parentes seus na Prefeitura - um projeto que consistia em transformar o viaduto do Ch (...) em uma rua suspensa, com casas de lojas dos dois lados. Queria o poeta construir em So Paulo algo de semelhante ao que vira em Veneza e em Florena. 29 O Viaduto do Ch foi um dos elementos da capital que mais impressionaram o jovem Lobato, como registram as cartas que enviou famlia entre 1895 e 1896, perodo em que ainda se cobrava pedgio para atravess-lo. O viaduto seria ainda, tema de vrios de seus desenhos de observao da cidade. Em carta de maro de 1913, enviada a seu amigo Godofredo Rangel, Lobato escrevia: Estou associado ao Ricardo num negcio que se sair nos enriquecer a ambos. Man- dar-te-ei os recortes dos jornais, quando for o tempo. Imagine que substituir o atual 28 Fonte: www.editorabrasiliense. com.br 29 BRUNO, Ernani Silva. Histria e tradies da Cidade de So Paulo. Vol.III. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954. p.1100 126 Viaduto do Ch por um monumental ruaduto habitvel, com casas dos dois lados - uma rua suspensa! 30 Em outra carta, datada de 21 de abril do mesmo ano, para o mesmo destinatrio, ele relata: Nossas empresas so prticas. A ltima a rua area, suprindo o hiato que existe entre a Rua Direita e a Baro de Itapetininga, hoje vencido canhestramente pelo nosso velho viaduto. L o recorte incluso. Est orado em 2 mil contos e assegura boa renda. Se a Cmara nos der a concesso, estamos ricos. Tive essa idia ao passar uma noite por l, e associei-me ao Ricardo, que tem inuencia na vereana. Mas o negcio vai mal. Imagine que, movido duns estpidos laivos de pieguice sentimental, encarreguei o B... de fazer os desenhos do ante-projeto a apresentar Cmara. E por burrice, ou inad- vertncia, deixamos que ele, um simples desenhista contratado, assinasse a papelada. Pois foi a conta. O homem inou-se de vento, tomou-se do delrio das grandezas, no aceitou nossa proposta de co-participao nos lucros e acabou rompendo conosco. H duas semanas que o encaminhamento do negcio esta paralisado em vista da atitude desse irredutvel animal. O B... sempre viveu no mundo da lua, e na mais negra e suja misria. No sabe nada da vida dos negcios. Deslumbrou-se com as perspectivas da rua area e (...) cita a ponte do Rialto em Veneza para provar que tem direito a um tero do negcio (...). 31 O tal desenhista contratado ao qual Lobato se refere como B... era Ercole (Hrcules) Beccari 32 , imigrante italiano a quem chamava de Leonardo da Vinci do Bom Retiro. 33 O desentendimento entre ambos foi certamente um dos motivos que levaram ao insucesso do empreendimento, mas no se sabe ao certo o grau de aceitao que a proposta vinha tendo junto Cmara. No ano seguinte, em uma outra carta enviada a Rangel, o escritor faria o seguinte comentrio: 30 MONTEIRO LOBATO, Jos Bento. Cartas Escolhidas. 7 edio. So Paulo: Brasiliense, 1972. 31 MONTEIRO LOBATO, Jos Bento. Ibidem. 32 Por volta de 1910, Beccari teve participao importante no processo de construo dos Grupos Escolares implantados por todo o estado. So de sua autoria os grupos de Penha da Frana, Dois Crregos, Serra Negra e Cravinhos e as escolas reunidas de So Joo do Curralinho e de Monte Mor (ver Arquitetura Escolar Paulista: 1890- 1920. So Paulo: FDE - Diretoria de Obras e Servios,1991). Alguns anos mais tarde ele se incorporaria equipe da Diretoria de Obras Pblicas. 33 CAMARGOS, Mrcia; VILLELA, Hilda. O Ruaduto de Monteiro Lobato: fragmento da memria de So Paulo. In: Revista D. O. Leitura, jul/ago 2004. p.35. 127 O VALE COMO LUGAR S agora camos vendo como funciona aquele crebro. Dum modo absolutamente diverso do normal. Coisas que para ns so clarssimas e evidentes, no entram nos miolos de Beccari. (...) Temos que meter o nosso da Vinci num conto, no h remdio. Tipos assim a gente empalha e guarda no museu. 34 A edio de 02 de abril de 1913 do jornal O Estado de So Paulo noticiava atravs da reportagem Um Novo Viaducto, a apresentao Cmara Municipal do projeto encami- nhado pelos proponentes Bento Lobato, Ricardo Gonalves e outros. Transcrita pelo jornal, essa apresentao foi inserida aqui quase na ntegra, pela sua minuciosa descrio da proposta e como uma forma de minimizar a ausncia dos desenhos que a complementavam. O discurso se iniciava com uma caracterizao dos transtornos cotidianos provocados pela obsolescncia do viaduto antigo, procurando justicar sua substituio. Exmo. Sr. Presidente e mais membros da Cmara Municipal de S. Paulo - H muito tempo que o viaducto do Ch vem sendo condemnado pelo pblico, pela engenharia e pela esthetica. Monumento notvel no tempo em que foi construdo hoje uma antigualha que no mais condiz com a maravilhosa evoluo da capital paulista. E no s satisfaz cada dia menos s exigncias crescentes do transito, como destoa cada vez mais do conjuncto de reformas, melhoramentos e embellezamentos circumjacentes. O seu vulto inesthetico estraga o mais bello trecho do S. Paulo moderno. Achincalha-o a vizinhana do Theatro Municipal e dos grandes blocos em construo. Alm disso h um perenne alarme no pblico, quanto segurana que offerece. Velha ponte contruda para uma cidade provinciana de 100.000 habitantes e calculada para o reduzido transito daquella poca, faz maravilhas continuando a desempenhar as funes de trao de unio entre a rica Cit paulistana e os populosos bairros seus tributrios e supportando cargas occasionaes muito superiores quelas para que foi calculado. 34 CAMARGOS, Mrcia; VILLELA, Hilda. O Ruaduto de Monteiro Lobato: fragmento da memria de So Paulo. In: Revista D. O. Leitura, jul/ago 2004. p.36. 128 Em seguida, os proponentes procuram elencar as virtudes e possibilidades do novo em- preendimento, utilizando os melhoramentos em curso no fundo do vale como argumento para reforar o projeto de melhoramento do viaduto. Pois bem, os signatrios desta, se propem a dotar a cidade de um viaducto novo ou rua area que abaixo ser descripto, sem nus nenhum para a Municipalidade, em troca do direito de sua explorao. O nosso projecto comporta a ereco de um verdadeiro monumento que alm de aformosear de um modo esplndido o valle do Anhangabah, trar um sem nmero de vantagens ao pblico. Sob o regimen da velha ponte actual os transeuntes fazem um percurso de 200 e tantos metros, inteiramente desabrigados das inclemncias do tempo. No vero, pelas horas da soalheira, quem nesta cidade j no soffreu a tortura que caminhar esses 200 e tantos metros, torrando-se sob a ardncia de um sol implacvel? No inverno quando a temperatura cae aos limites mnimos, as brisas cortantes que alli predominam constituem um novo suplcio. Em dias de ventania, as correntes de ar canalisadas no valle, impetuosas, sem encontrar bices que lhes quebrem o curso arrancam os chapus aos pobres pedestres, desarvoram guardas-chuvas e occasionam mil outros accidentes desagradabilssimos. Se chove repentinamente ningum escapa ao perigoso banho. Tudo isso se obviar com a realizao do nosso projecto. O transeunte ter, ao atravess-lo, comodidades nicas que nenhuma outra via pblica de uma cidade offerece. Abrigal-o-o dos ventos as construces laterais; do sol e das chuvas a coberta envi- draada que resguardar os passeios em toda a sua extenso. Alm disso o pblico no ser forado, como acontece hoje, a um percurso negativo de 200 e tantos metros, como o o de uma ponte deserta e nua, mas tel-o- substitudo por um percurso agradvel, em rua ampla, commoda, sede de um intenso movimento commercial. Ser 129 O VALE COMO LUGAR o ponto predilecto de um commercio especial, como sapatarias, charutarias, livrarias, bars, joalherias, casas de frutas, de loterias, e quinquilharias, etc., o qual, actualmente, atravanca o tringulo, mal installado, pagando uma exhorbitncia por uma porta, um corredor esconso, um desvo de escada, comprimindo-se, esmagando-se, na ncia do bom ponto. municipalidade adviro vantagens no menores. S o no dispndio da enorme somma necessria para a construco de um viaducto novo ou deslocao do actual, redundaria numa economia talvez superior a mil contos de ris, o que por si s fala bem alto. E a bella Paulica ter a primazia de possuir um monumento original, nico no mundo inteiro. O novo viaducto ser de super-estructura metallica, assente em pilares de alvenaria de cimento. Construdo em arcos, dispostos em cinco ou mais vos, essa disposio ser tal que no venha embaraar os planos da avenida e Parque Anhangabahu, dos quaes car a cavalleiro. O comprimento car adstricto ao local indicado pela Cmara, que tambm indicar os pontos de locao dos encontros, sempre de accordo com o plano de melhoramentos estudado. O nal da apresentao cou reservado para uma descrio mais tcnica e objetiva do projeto, que no presente trabalho, sofre pela ausncia de peas grcas. De largura ter 26 metros, distribudos da seguinte maneira: a parte constitutiva da rua propriamente dita ser de 16 metros, 12 para a parte carrovel, comportando uma dupla linha de bondes, com os trilhos interiores distanciados entre si de 4 me- tros de eixo a eixo, espao mais que suciente para a passagem de veculos de grandes dimenses; entre os trilhos exteriores e as guias dos passeios, haver ainda uma faixa livre de 2m,40, destinada ao estacionamento de vehculos, em caso de necessidade; o espao restante ser tomado pelos passeios lateraes, com 2 metros de largura, destina- dos aos pedestres. Assim sendo, sobraro 10 metros, 5 de cada lado que cam reser- vados construco dos compartimentos de 5 metros de fundo, por 3 a 6 de frente, destinados ao commercio (...) dispondo cada uma do compartimento superior e do 130 poro localisado entre os dois taboleiros do viaducto. Sobre os pilares as construces se avantajaro dando lugar a sobre-lojas de muito realce para o conjunto. As fachadas anteriores e posteriores em estylo harmnico ao conjunto circumvizinho realal-o-o inda mais. (...) Para no privar o pblico do panorama da cidade, a espaos uma soluo de continui- dade nas construces abrir passagem a uma srie de belvederes elegantes e cmmo- dos, com 3 metros ou mais de extenso, cobertos de vidro. Nos extremos do viaducto sero construdas as entradas monumentaes, condizentes com os magncos blocos vizinhos, theatro e futuras construces projectadas naquel- le Valle. (...) A superestructura metallica se compor em primeiro lugar de quatro sries de vigas mestras, tendo as mesas inferiores em arco elyptico e as superiores planas, sobre as quaes se apoiaro as travessas que vo suportar o taboleiro de madeira do viaducto. (...) Inferiormente ser estabelecido um taboleiro a 3m abaixo do taboleiro principal, formando uma cmara privada, conforme se v no corte transversal do ante-projecto, onde uma pequena linha de Decauville servir de transporte s mercadorias destina- das aos armazns. Ah se locaro tambm as installaes sanitrias, encanamentos de gua, apparelhos de ventilao, etc. Os passeios sero abrigados por uma coberta de vidros opacos, detalhe de grande comodidade para o publico. No mais os desenhos do ante-projecto do uma idia de como se alliaro de maneira completa e efcaz a harmoniosa grandeza do conjunto, a apparncia e effectividade da fora e a belleza e elegncia dos detalhes.
O que o grupo de Lobato estava propondo era um edifcio multifuncional areo, com dois ou trs nveis utilizveis, articulado com diferentes trreos da cidade. Produtos e supri- 131 O VALE COMO LUGAR mentos chegariam s lojas pelo Decauville no tabuleiro inferior, provavelmente alimentado atravs de um elevador monta-cargas desde as ruas inferiores, Formosa e sua paralela; o pblico chegaria usualmente pela cidade alta e teria uma srie de mirantes para usufruir a vista do parque projetado. O edifcio conteria lojas e cafs, criando espaos de estar ao longo do eixo de travessia. Sob esse ponto de vista, o projeto subverte a obviedade funcional do objeto ao transformar um instrumento de passagem, o viaduto, em um lugar de estar, de consumir, de trabalhar e etc., o ruaduto. Anos mais tarde, em meados da dcada de 1930, aps a frustrao da primeira tentativa, Lobato viu uma nova chance de implantar sua proposta. Ao encontrar nos jornais a notcia de que a prefeitura pretendia construir um novo viaduto em substituio ao antigo Ch, contatou seu amigo Paulo Duarte, que era ento funcionrio municipal, para oferecer-lhe a oportunidade do ruaduto. Segundo as memrias de Duarte, Lobato argumentava: O viaduto atual representa 400 e tantos metros de frente inteiramente desaproveita- dos. Se o substitussemos por uma rea sobre arcos, invadindo alguns metros de cada lado o jardim do Anhangaba, teramos espao suciente para a construo de uma innidade de casas para o comrcio mido, alugveis por um bom preo. (...) lanar a idia, formar um grupo, fazer desenhar por um engenheiro de talento um anteproje- to bastante sedutor e a coisa - ou o negcio - estar feito. 35 Segundo essas mesmas memrias, Lobato teria encomendado a Hiplito Pujol 36 um pro- jeto lindo, que muito enfeitava a cidade, em trs corpos estruturais. No podemos armar se era um ardil para convencer o amigo ou se Pujol realmente realizou tal projeto. O fato que, em meados dos anos 30, o ruaduto como havia sido concebido, era um empreendimento obsoleto. As questes envolvidas na reconstruo do viaduto eram muito mais complexas e abrangentes do que em 1913, como atesta.por exemplo, a proposta apresentada no concurso pelo arquiteto Rino Levi. 37 Uma obra como essa no poderia mais ser fruto de um empreendi- mento privado com interesses to pequenos. Os tempos eram outros. O prprio Anhangaba, como Lobato o compreendia, deixaria de existir em um curto espao de tempo. 35 CAMARGOS, Mrcia; VILLELA, Hilda. O Ruaduto de Monteiro Lobato: fragmento da memria de So Paulo. In: Revista D. O. Leitura, jul/ago 2004. p.37. 36 Hiplito Gustavo Pujol Jnior (1880-1952) foi um importante arquiteto em So Paulo durante as primeiras dcadas do Sc. XX. Foi professor da Escola Politcnica e teve prolca atuao prossional como arquiteto, sendo um dos pioneiros na utilizao do concreto armado no Brasil. Entre suas principais realizaes se destacam o Ed. Guinle, de 1913, torre de sete andares que chamou muita ateno quando inaugurada, a sede para o Banco do Brasil (atual Centro Cultural Banco do Brasil), concluda em 1927 e o Ed. Rolim, com 13 pavimentos, inaugurado em 1928. Fonte: www.piratininga. org 37 O projeto de Rino Levi encontra-se comentado no captulo 3 desta dissertao. 132 133 O VALE COMO LUGAR Victor Dubugras: Memria e Ch Victor Dubugras (1868-1933) foi um arquiteto proeminente durante a passagem do Sc. XIX para o XX, sendo considerado por muitos autores como um dos precursores da arquite- tura moderna na Amrica Latina. Nascido em Sarthe, na Frana, e formado em arquitetura na cidade de Buenos Aires em 1890, transferiu-se para So Paulo em 1891 38 , um ano an- tes da inaugurao do Viaduto do Ch. Inicialmente, trabalhou sob a direo de Ramos de Azevedo, por quem foi convidado a integrar o corpo docente da Escola Politcnica em 1894, ano de sua fundao. Aps um breve perodo como membro do corpo tcnico da Diretoria de Obras Pblicas do Estado de So Paulo, inicia, a partir de 1896, carreira prossional inde- pendente. Sua obra de maior projeo provavelmente a Estao Ferroviria de Mayrink, de 1906. Transferiu-se em 1928 para o Rio de Janeiro, aonde viria a falecer cinco anos depois. Durante seu perodo de atividade em So Paulo, elaborou dois projetos relevantes para o recinto do Anhangaba: a remodelao do Largo da Memria, executada entre 1919 e 1922, e um projeto para um novo Viaduto do Ch, sem data denida. O local conhecido como Paredo do Piques, apenas Piques ou Largo da Memria, um antigo espao pblico da cidade que apresenta um interessante percurso de constituio. Localizado no ponto de conuncia dos caminhos que ligavam a regio de Sorocaba ao Porto de Santos, transformou-se ao longo do sculo XIX em um dos pontos mais movi- mentados da cidade 39 . Um extenso muro de arrimo separava a Rua do Paredo, atual Xavier de Toledo, da Subida do Piques, atual Rua Quirino de Andrade. Em seu ponto mais baixo, localizava-se pelo menos desde 1808 40 , um chafariz que atendia s tropas de mulas que por ali passavam. Em 1814, foi instalado no local um obelisco de granito, considerado o monu- mento mais antigo da cidade. O signicado da implantao do monumento controverso, mas teria sido em memria de algum fato poltico 41 . A partir desse momento o lugar pas- saria a ser chamado tambm de Largo da Memria. 38 REIS FILHO, Nestor Goulart. Racionalismo e proto-modernismo na obra de Victor Dubugras. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo, 1997. p.21. 39 TOLEDO, 1989. p.30. 40 TOLEDO, 1989. p.31. 41 Para Toledo, o obelisco um monumento feito em memria de um triunvirato que governou So Paulo por volta de 1914. Outras verses caracterizam o monumento como homenagem ao Governador Bernardo Jose Maria de Lorena ou como monumento comemorativo da elevao do Brasil a Reino Unido em 1915. [TOLEDO, 1989.] Fig.130 O Largo da Memria em fotograa de Milito Augusto Azevedo, 1862. [TOLEDO, 1989. p.112.] Fig.131 O largo arborizado, mas cercado, em fotograa de 1914. [TOLEDO, 1989. p.112.] Fig.132 O Largo da Memria logo aps a reforma projetada por Dubugras. [TOLEDO, 1989. p.117.] Fig.133 Fotograa atual do local. [foto do autor] 134 135 O VALE COMO LUGAR Em 1919, o ento prefeito municipal Washington Lus Pereira de Souza 42 (1869-1957), encomenda a Dubugras um projeto de remodelao do largo. A obra seria iniciada no nal do mesmo ano e concluda em janeiro de 1921. Como em outros projetos seus, Dubugras revela organicidade e senso da paisagem. Manteve a pirmide em seu lugar e criou um chafariz frente ao paredo, fazendo fundo pirmide. As principais rvores foram valorizadas. O Largo, um barranco resultante da articulao de ruas e caminhos, mantm seu carter de conuncia. (...) Importa atentar para a uncia das escadas e s alternativas que estas oferecem aos pedestres. Todos ali encontram seu passo (...). Com essas obras, o Largo da Memria integrou-se ao Parque Anhangaba. A Ladeira da Memria passou a ser rua exclusiva para pedes- tres, uma das primeiras do gnero na Cidade. Seu sentido escultural, que valorizou grandemente o Obelisco, sua hbil articulao com o espao urbano, numa regio de topograa difcil, e a alta qualidade de sua execuo colocam o Largo da Memria como a Praa mais bem projetada da Cidade. 43 Entre os documentos pertencentes ao acervo de Dubugras, encontra-se o projeto para o Viaducto Presidente Washington, sem data denida, desenvolvido em colaborao com o engenheiro Lino de S Pereira para a Companhia Mechnica e Importadora de So Paulo. Pela sua localizao indicada em planta, o viaduto substituiria o do Ch de Jules Martin. Embora no se possa denir com preciso a data de sua elaborao, provvel que ele tenha sido desenvolvido nos primeiros anos da dcada de 1920, quando Washington Lus assumiu a presidncia da provncia e quando Dubugras esteve envolvido em projetos nessa rea da cidade 44 . O projeto trazia muitas novidades em relao ao que j havia sido proposto anterior- mente, como revela a leitura cuidadosa dos desenhos remanescentes. Segundo os cortes transversais, o viaduto seria constitudo por uma grande estrutura de concreto armado, com 27 metros de largura, divididos em trs mdulos de nove metros, e tabuleiro duplo. No nvel superior dos mdulos laterais, circulariam os automveis e bondes. Sob essas vias, no tabu- 42 Washington Lus foi prefeito at agosto de 1919. Em 1920 tornou- se presidente da Provncia de So Paulo, concluindo seu mandato em 1924. Em 1926 foi eleito presidente da Repblica, exercendo o mandato at outubro de 1930, quando foi deposto por uma junta militar que, uma semana depois, entregaria o cargo a Getlio Vargas. Fonte: www.wikipedia.org (05/01/2007) 43 TOLEDO, 1989. p.114. 44 Poderia ter sido elaborado tambm, entre 1926 e 1928, quando Washington Lus era Presidente da Repblica. No entanto, durante esse perodo Dubugras j estava articulando sua transferncia para o Rio de Janeiro. Fig.134 Elevao do projeto de reforma do Largo da Memria de Victor Du- bugras, 1919/1922. [REIS FILHO, Nestor Goulart. Ra- cionalismo e proto-modernismo na obra de Victor Dubugras. So Paulo: Fundao Bienal de So Paulo, 1997. p.112.] Fig.135 Perspectiva do projeto. [REIS FILHO, 1997. p.112.] 136 137 O VALE COMO LUGAR leiro inferior, conguravam-se duas galerias contnuas com 9 metros de largura e p-direito de 3,60 metros, cuja utilizao no indicada. O mdulo central abrigaria no tabuleiro infe- rior a travessia de pedestres abrigada, com uma cobertura curva translcida localizada entre as vias de veculos. No sentido longitudinal, uma estrutura em arco venceria o vo central e repousaria sobre dois conjuntos de apoio, sobre os quais quatro torres monumentais se elevariam marcando a paisagem. As plantas revelam que o trecho central do viaduto seria em curva, fazendo a concordncia entre os eixos das ruas Direita e Baro de Itapetininga. Embora no se encontre qualquer indicao no projeto, pode-se supor que as galerias laterais abrigariam em seu interior instalaes comerciais e de servios distribudas ao longo do eixo central de circulao de pedestres. Sob esse ponto de vista, o projeto lembra muito o ruaduto de Monteiro Lobato. A diferena entre ambos reside fundamentalmente na es- cala e na articulao dos nveis. Enquanto o de Lobato concentrava as funes principais no nvel superior, destinando ao tabuleiro inferior apenas atividades de servio, o de Dubugras, segregava pedestres e veculos, liberando reas muito maiores para ambos. Ao resolver com propriedade uma estrutura multifuncional que associava sistema vi- rio, transportes pblicos, circulao de pedestres e instalaes comerciais e de servios, ope- rando numa escala compatvel com a cidade que estava se estruturando, Victor Dubugras antecipou uma srie de questes que seriam incorporadas discusso dos projetos no vale somente muitos anos mais tarde. Fig.136 Elevao e planta do projeto de Victor Dubugras para um novo Viaduto do Ch. [Biblioteca FAUUSP] 138 139 O VALE COMO LUGAR Fig.137 Planta de localizao do projeto de Victor Dubugras para um novo Viaduto do Ch. [Biblioteca FAUUSP] Fig.138 Trecho do corte transversal pelo meio do vo central do viaduto mostrando as vias laterais para veculos, no tabuleiro superior, e as galerias comerciais e passagem central de pedetres, no tabuleiro inferior. [Biblioteca FAUUSP] Fig.139 Trecho do corte transversal passan- do pelos castelos de apoio. Nesse ponto o viaduto se trans- forma em um verdadeiro edifcio, com quatro pavimentos abrigando diversos usos. [Biblioteca FAUUSP] Nas prximas pginas: Figs.140 e 141 Pormenores da perspectiva do projeto para o Viaduto do Ch, de Victor Dubugras. O desenho revela a riqueza de relaes urbanas permitidas pelo projeto e a utilizao da situao topogrca do vale para esse m. [REIS FILHO, Nestor Goulart. Vic- tor Dubugras: Precursor da arqui- tetura moderna na Amrica Latina. So Paulo: EDUSP, 2005. p.42.] 140 141 O VALE COMO LUGAR 142 143 O VALE COMO PASSAGEM captulo 03 o vale como passagem 144 145 O VALE COMO PASSAGEM Mobilidade e cidade Se o desenvolvimento inicial da arquitetura e do urbanismo modernos teve origem na necessidade imperiosa que se apresentou para as sociedades capitalistas da segunda metade do sculo XIX de organizar de forma adequada e eciente o espao urbano exigido pelo capitalismo in- dustrial 1 , um dos focos dessa organizao foi a busca de um desenho, ou dos desenhos, para a era das mquinas. Duas delas foram, de certa maneira, responsveis por engendrar, de modo mais contundente, as principais questes para as cidades no sculo XX: o automvel e o elevador. Estas duas mquinas revolucionaram o modo de conceber as cidades ao possi- bilitar enormes deslocamentos, horizontais e verticais, a velocidades at ento inditas. O automvel permitiu a expanso territorial horizontal e o desadensamento. O eleva- dor, a multiplicao dos nveis da cidade e sua concentrao. Sob esse ponto de vista, uma a anttese da outra. Os modelos de cidade sugeridos por cada uma dessas mquinas so diametralmente opostos; como a Braslia de Lcio Costa e a de Rino Levi; como a cidade de Los Angeles e a Ilha de Manhattan. O potencial criativo oferecido para a cidade do futuro se confrontava com o potencial destrutivo sobre a cidade do presente herdada do passado. Esse conito foi, e ainda , um dos principais temas do urbanismo contemporneo. Um testemunho do perodo inicial desse enfrentamento pode ser encontrado na Carta de Atenas 2 , documento de 1933: A rua nica, legada pelos sculos, recebia outrora pedestres e cavaleiros indistinta- mente e s no nal do sculo XVIII o emprego generalizado de coches provocou a criao das caladas. No sculo XX abateu-se, como um cataclismo, a massa de vecu- los mecnicos - bicicletas, motocicletas, automveis, caminhes, bondes - com suas velocidades inesperadas. (p.60) 1 MEYER, Regina Prosperi. A construo da metrpole e a eroso do seu Centro. Apud Revista Urbs n 14, Set-Out/1999. p.30. 2 LE CORBUSIER. Princpios de urbanismo (La Carta de Atenas). Buenos Aires: Planeta-Agostini, 1993. 146 Fig.142 Perspectiva do Plano para uma cidade de 3 milhes de habitantes, Le Corbusier,1922. [BOESIGER, W. Le Corbusier 1910- 65. Zurich: Verlag, 1967. p.318.] Fig.143 Vista area da Avenida Anhanga- ba. Autor desconhecido, 1954. [GERODETTI, 1999. p.85.] 147 O VALE COMO PASSAGEM O problema criado pela impossibilidade de conciliar as velocidades naturais, do pe- destre ou do cavalo, com as velocidades mecnicas dos automveis, bondes, caminhes ou nibus. (p.53) As novas velocidades mecnicas convulsionaram o meio urbano, instaurando o peri- go permanente (...). Os veculos mecnicos deveriam ser agentes liberadores e, por sua velocidade, trazer um ganho aprecivel de tempo. (p.80) O pedestre deve poder seguir caminhos diferentes do automvel. Isso constituiria uma reforma fundamental da circulao nas cidades. No haveria nada mais sensato nem que abrisse uma era de urbanismo mais nova e mais frtil. (p.62) Alm das profundas transformaes espaciais e territoriais vividas pelas cidades, houve uma mudana estrutural nas relaes sociais experimentadas por seus habitantes. O modo de vivenciar o espao urbano passou a ser outro colocando em cheque conceitos como a prpria cidade, espao pblico e comunidade. Outro trecho extrado da Carta de Atenas revela a preocupao que estas novidades causavam: Essas velocidades, doravante utilizveis, despertam a tentao de evaso cotidiana, para longe, na natureza, difundem o gosto por uma mobilidade sem freio nem medi- da e favorecem modos de vida que deslocando a famlia, perturbam profundamente a estabilidade da sociedade. Elas condenam os homens a passar horas cansativas em todo tipo de veculos e a perder, pouco a pouco, a prtica da mais saudvel e natural de todas as funes: a caminhada. (80) Sabe-se quais foram as respostas dadas pelo urbanismo moderno a estes problemas durante as trs primeiras dcadas do sculo XX. Entre estas, as imagens oferecidas pelas propostas de Le Corbusier, como a Cidade contempornea de trs milhes de habitantes 148 Fig.144 Avenida, arranha-cu e viaduto. Desenho de Toms Santa Rosa publicado em 1950. [MEYER, Regina M. P. Metrpole e Urbanismo: So Paulo anos 50. So Paulo: FAUUSP, 1991. capa] Fig.145 Noturna do Vale do Anhangaba. Albuquerque, 1955. [IMS, 2004. p.226.] Fig.146 A avenida, o Viaduto E. Stevaux (ao fundo), o novo Viaduto do Ch e a passarela construda sob ele. [SO PAULO (Cidade) Compa- nhia do Metropolitano de So Paulo. Leste-Oeste: em busca de uma soluo integrada. So Paulo, 1979. p.90.] 149 O VALE COMO PASSAGEM de 1922, o plano Voisin de Paris de 1925, os planos para as cidades sul-americanas de 1929 ou o projeto para a Ville Radieuse de 1930, embora desgastadas ou datadas para o olhar contemporneo, no deixam de ser extremamente eloqentes e coerentes com um discurso que procurava levar at as ltimas conseqncias as possibilidades dos novos recursos tc- nicos disponveis. Durante as trs primeiras dcadas do Sculo XX, o debate em torno da estruturao da mobilidade em So Paulo foi marcado pelo choque de interesses econmicos envolvidos na escolha dos modelos a adotar e por um agravante para o planejamento da cidade, que foi a incrvel expanso populacional e territorial vivida durante todo esse perodo. As escolhas que prevaleceram, foram fundamentalmente as que mais favoreciam os ne- gcios imobilirios em torno da valorizao de terras, e baseavam-se na opo pelo auto- mvel particular e pelo sistema de transporte pblico sobre pneus. Situado no corao da cidade, em posio privilegiada e estratgica, o Vale do Anhangaba no poderia deixar de repercutir o impacto dessas escolhas sobre o territrio paulistano. Se no incio, a experincia daquele espao se dava pela travessia dos viadutos e pela fruio dos jardins implantados em seu leito (a velocidades relativamente baixas), pouco a pouco, a imagem do parque, concebida anteriormente, foi sendo apagada pelo au- mento dos uxos motorizados, suas altas velocidades, e pela implantao da infra-estrutura necessria para seu escoamento. A representao de modernidade simbolizada pelo Anhangaba foi sendo atualizada pelos novos ideais de progresso que se impuseram: o automvel, a avenida e o arranha-cu. Seu vazio, anteriormente esttico, foi atropelado pelas novas dinmicas e velocidades da metrpole em expanso. Este processo anulou o lugar dando origem a uma nova congurao: a do vale como passagem. 150 Fig.147 O vale em 1973. [SO PAULO (Cidade) Departa- mento de Planejamento dos Siste- mas de Transporte. Vias Expressas. So Paulo, 1973.] 151 O VALE COMO PASSAGEM Fig.148 Desembarque de passageiros de nibus sob o Viaduto do Ch. Esse uxo dava sentido Galeria Prestes Maia. Brill, anos 50. [IMS, 2004. p.205.] Fig.149 O vale expandiu-se para o norte diluindo seus limites. As torres dominam a paisagem. Ribeiro, 1962. [IMS, 2004. p.239.] Fig.150 A avenida a partir do Ch, em direo Praa da Bandeira. Marcel Gautherot, anos 60. [IMS, 2004. p.236.] Fig.151 O novo Viaduto do Ch a partir do Ed. Conde Prates. O uxo transver- sal de pedestres e o longitudinal de automveis, cruzando-se em nveis diferentes. Marcel Gautherot. [IMS, 2004. p.232.] 152 Fig.152 Vista panormica do vale no incio dos anos 50. [BRUNO, Ernani Silva. Histria e tradies da cidade de So Paulo. vol I-III. Rio de Janeiro:Livraria Jos Olmpio, , 1954. p.1381.] 153 O VALE COMO PASSAGEM Fig.153 A passagem apelidada de Buraco do Adhemar, em fotograa dos anos 70. [SO PAULO (Cidade),1979.] Fig.154 O vale sendo utilizado como es- tacionamento e terminal de nibus. Albuquerque, 1955. [IMS, 2004. p.227.] Fig.155 A avenida toma conta do vale. [SO PAULO (Cidade),1979.] Fig.156 Imagem da avenida no local onde se localizava a Praa do Correio. [SO PAULO (Cidade),1979.] 154 Fig.157 Suposio do traados dos tneis sobre o levantamento SARA, 1930. [Fonte da base: Bib. FAUUSP] 155 O VALE COMO PASSAGEM Tneis sob a colina histrica [1914] Em maio de 1914 a Cmara Municipal aprovou um projeto, apresentado por Domingos Alves Rubio Meira e Theodulo Cardoso, de construo de um tnel, sob a colina histrica, que ligaria as vrzeas do Anhangaba e do Tamanduate. Art. 1 - Fica a Prefeitura autorizada a mandar proceder aos estudos denitivos para a construo de um tnel, ligando em linha reta a Vrzea do Carmo ao largo do Pi- ques, consoante o memorial e projeto j organizado pelo engenheiro Max Hehl, que a este acompanham. nico - O tnel projetado pelo seu eixo ter 840 metros de extenso e ser construdo em cimento armado, revestido todo o bero com azulejos brancos; ter dois passeios de 1,50m de cada lado, duas linhas de bondes e espao livre para veculos, oferecendo toda a sua largura de 14 metros. No largo da S ter um pavilho com elevadores, as- sim como toiletes e sala de espera para os bondes que trafegam por esse trecho. 3 O engenheiro citado Maximilian Emil Hehl, autor dos projetos para a Catedral da S, Igreja Matriz da Consolao, Hospital Santa Catarina, Colgio Santo Agostinho e Igreja da Ordem Terceira do Carmo 4 . Nascido em Kassel em 1861 e formado pela Escola Politcnica de Hannover, mudou-se para So Paulo por volta de 1890, onde colaborou com o escritrio de Ramos de Azevedo antes de estabelecer seu prprio estdio. Projetou sua casa na Avenida Higienpolis, posteriormente demolida para a construo do Edifcio Prudncia, projeto de Rino Levi. Morreu prematuramente de tuberculose, aos 55 anos, em 1916. Documentos posteriores indicam a inteno de construir um segundo tnel entre a Rua 25 de Maro, ngulo fronteiro ao Mercado Pblico (atual Praa Fernando Costa) e o largo do mercadinho de So Joo (enfrente ao Ed. dos Correios) alm do primeiro co- meando ao norte da ponte que liga ao aterrado do gasmetro com a ladeira do Carmo e terminando no largo do Riachuelo. 5 3 Histria e Energia, 3: O metr da Light. 1986. p. 32. 4 PONZIO, Ana Francisca. O Arquiteto da S. Apud Revista Urbs n 31, Jul-Ago/2003. 5 Histria e Energia, 1986. p. 32. 156 157 O VALE COMO PASSAGEM Os tneis sero construdos de cimento armado, tendo o primeiro trezentos e se- tenta e sete metros e o segundo quatrocentos e sessenta e trs metros. A galeria ter linha dupla asfaltada e adaptvel ao trfego de qualquer veculo, alm de dois passeios laterais para pedestres e uma galeria inferior ou subterrnea destinada captao de guas pluviais; sero ambos revestidos de azulejos, o que lhes dar um belo aspecto, e amplamente iluminados luz eltrica e ventilados. 6 As distncias mencionadas no texto acima no so compatveis com os dois tneis pro- postos. A ligao entre o Mercado Pblico e o Mercadinho de So Joo poderia ter 377 me- tros, mas a ligao entre a ladeira do Carmo e o largo do Riachuelo precisaria ter ao menos 800 metros. A idia de um tnel sob a colina central no era nova e j havia sido apresentada e mais de uma ocasio integrando propostas de ferrovias ou metrs. Na proposta de Meira e Cardoso, dois aspectos so especialmente notveis: o primeiro o carter urbano da travessia, j que a articulao das duas vrzeas abrangeria a circulao de bondes, automveis e pedestres, alm de galerias de infra-estrutura; o segundo a existncia de uma conexo vertical, atravs de ele- vadores, entre o tnel mais extenso e o largo da S. Esta proposta era revolucionria. A ligao entre as cidades alta e baixa se daria em pleno corao do tringulo e no mais em suas bor- das, costurando os dois nveis da cidade e diluindo seus limites historicamente estabelecidos. Do ponto de vista virio, os tneis permitiriam cruzar a colina histrica de leste a oeste sem passar por suas congestionadas ruas. As bocas dos tneis, no por acaso, coin- cidiam com a chegada de importantes eixos virios: na face leste da colina, as ruas do Gasmetro e Rangel Pestana; na face oeste as ruas de So Joo, Santo Amaro, Santo Antnio e Consolao. Em 1915, como complemento ao privilgio de construo dos tneis, seus empreende- dores solicitaram a concesso da operao de carris urbanos em seu interior. Este trmite despertou a imediata oposio da companhia Light, detentora do monoplio dos trans- portes coletivos. A inuncia dessa empresa levaria ao arquivamento denitivo do projeto, ocializado em setembro de 1916. 6 Histria e Energia, 1986. p. 33. 158 Fig.158 Traado do sistema proposto sobre o levantamento SARA, 1930. [Fonte da base: Bib. FAUUSP] 159 O VALE COMO PASSAGEM Projeto Light [1927] No ano de 1927 a The So Paulo Tramway, Light and Power Company Limited apresen- tou prefeitura a verso nal de seu Plano Integrado de Transportes. Devido sua abran- gncia, cou conhecido como o primeiro plano global para reformulao do sistema de transporte coletivo em So Paulo, e algumas de suas propostas constituiriam importantes transformaes no Vale do Anhangaba. Criada a partir da aliana entre os empresrios Antonio Francisco Gualco e Antnio Augusto de Souza, o Dr. F. S. Pearson, de Nova Iorque e o grupo canadense Mackenzie- Mann, a The So Paulo Light and Power Company foi incorporada no Canad, com nan- ciamento Ingls e com um pessoal tcnico principalmente estadunidense. 7 A Light, como cou conhecida, atuava nos setores de produo e fornecimento de ener- gia eltrica, iluminao, telefonia, distribuio de gs e transportes coletivos. Em 06 de julho de 1901 a companhia recebeu a concesso para a construo e operao de um sistema de bondes eltricos em So Paulo e no dia 17 do mesmo ms o privilgio exclusivo, pelo prazo de 40 anos, de explorao desse sistema para o transporte de cargas e passageiros nas ruas da cidade e subrbios. A empresa tornou-se poderosa e seu setor mais lucrativo, durantes seus primeiros anos, era o de operao do sistema de transportes. Com o crescimento industrial e urbano da cidade, os servios relacionados ao setor de energia passaram a ser potencialmente mais lucrativos. Em 1909, visando manter o mo- noplio tambm nesse setor, a Light realiza uma negociao com a prefeitura aceitando a unicao e xao das tarifas dos bondes, a emisso de passes escolares e a disponibilizao de carros especiais para operrios, com tarifas mais baratas. Essas medidas sacricaram o setor de transportes na medida em que a reduo de sua lucratividade levou diminuio dos investimentos em expanso e melhorias do sistema e a uma drstica piora da qualidade dos servios prestados. Com o passar dos anos essa situao foi se agravando j que o aumento da demanda levava superlotao dos carros disponveis e a crescente quantidade de automveis tornava srio o problema do congestionamento do trfego na rea central. Em 1924, uma grande 7 Histria e Energia, 1986. p. 9. 160 Fig.159 Perspectiva do acesso ao tnel sob a Ladeira do Carmo. [Histria e Energia 3: O metr da Light. 1986.] Fig.160 Planta e sees do sistema propos- to. O Anhangaba encontra-se no canto direito do desenho. [Histria e Energia 3, 1986.] 161 O VALE COMO PASSAGEM seca levou ao racionamento de energia e diminuio do nmero e freqncia de bondes. Isso abriu caminho para a entrada dos nibus movidos gasolina no cenrio dos transpor- tes coletivos paulistano e ameaa do monoplio da Light. Pressionada por sua diretoria, a Light comeou a desenvolver uma estratgia que lhe permitisse o aumento de tarifas, alm de consolidar sua posio monopolista no setor de transportes coletivos. Pretendia, atravs de um projeto integrado de transportes, uma renovao global do contrato que possibilitasse a atrao de capitais externos com a garantia de melhor remunerao. 8 Com esses objetivos estabelecidos, solicitou-se ao engenheiro de trafego e urbanista Norman D. Wilson a elaborao do plano, desenvolvido entre 1925 e 1927. Em correspon- dncia 9 entre o Sr. Wilson e a companhia, nota-se que o primeiro realizou uma leitura das condies da cidade bastante cuidadosa e suas propostas estavam direcionadas no sentido da criao de um sistema coordenado de transporte que abrangia a utilizao de nibus, bondes e metr. Wilson propunha que a Light assumisse a operao do servio de transpor- tes a preo de custo com o objetivo de permitir a prosperidade da cidade gerando maiores lucros nos demais servios sob responsabilidade da empresa. O plano apresentava entre suas principais propostas: a completa reformulao do sis- tema de bondes, com aumento do nmero de carros em 50%, extenso de sua rede viria e reorganizao dos itinerrios; aquisio de mais de 50 nibus para complementao e alimentao do sistema de bondes; construo de um sistema de linhas tronco de alta ve- locidade em vias segregadas e, em alguns trechos da rea central, subterrneas. Esta ltima proposio teria um profundo impacto sobre o Vale do Anhangaba, motivo pelo qual fa- remos dela, uma anlise pormenorizada. O circuito subterrneo proposto tinha como principal objetivo eliminar o trfego de bon- des que congestionava as estreitas ruas da regio central, principalmente aquelas contidas no tringulo histrico. O traado apresentado congurava um circuito, entre a Ladeira do Carmo e o Mercado Municipal, que cruzaria o Anhangaba duas vezes em elevado, a primeira sobre o 8 Histria e Energia, 1986. p. 51. 9 Histria e Energia, 1986. p. 70-73. 162 163 O VALE COMO PASSAGEM tabuleiro inferior de um novo Viaduto do Ch, e a segunda sobre um viaduto exclusivo, muito prximo ao Viaduto Sta. Ignia, entre o Largo Paissandu e o Largo So Bento. Ao observarmos as perspectivas que ilustram essas duas travessias, importante notar o carter que se confere ao vale em cada uma delas. Na primeira, junto ao novo Viaduto do Ch, ilustrado como uma estrutura leve e vazada, com uma seqncia de arcos e vos relativamente grandes, o vale representado como um grande espao aberto e ajardinado. Na segunda, o vale sequer notado como espao, tamanha a quantidade de construes nele instaladas. O viaduto sobre o qual correriam os bondes uma estrutura ordinria, com suas laterais fechadas e uma nica abertura para a passagem da rua. Esta disparidade ilustra bem o que se entendia naquele momento como recinto do vale, do qual o trecho prximo ao Largo So Bento no fazia parte. O momento de elaborao deste projeto coincide com o momento de gestao, no inte- rior da Diretoria de Obras Pblicas, do Plano de Avenidas, por Ulha Cintra e Prestes Maia. Os interesses associados a estes mostraram-se mais fortes e o plano da Light foi nalmente abandonado. Fig.161 Pormenor da planta geral desta- cando o setor do Anhangaba. [Histria e Energia 3, 1986.] Fig.162 Perspectiva do Viaduto do Ch proposto, que abrigaria a passagem do sistema sobre trilhos no interior de sua estrutura. [Histria e Energia 3, 1986.] Fig.163 Perspectiva do viaduto proposto prximo ao Largo de So Bento. Notar a quantidade de construes representadas no fundo do vale. [Histria e Energia 3, 1986.] 164 Fig.164 Croquis de Le Corbusier do seu plano para So Paulo. [BARDI, P. M. Lembrana de Le Corbusier: Atenas, Itlia, Brasil. So Paulo: Nobel, 1984. p.50.] Fig.165 Esquema desenhado durante a conferncia Arquitetura em tudo, urbanismo em tudo, realizada no Rio de Janeiro em outubro de 1929. [LE CORBUSIER. Precises sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. So Paulo: Cosac & Naify, 2004. p.85.] Fig.166 Desenho de Le Corbusier elabora- do durante sua visita a So Paulo. No fundo, ao centro, o Edifcio Martinelli. [SANTOS, Ceclia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth Campos da Silva; PEREIRA, Romo Veriano da Silva; e SILVA, Vasco Caldeira da. Le Corbusier e o Brasil. So Paulo: Tessela / Projeto, 1987. p.48.] 165 O VALE COMO PASSAGEM A imagem de Le Corbusier para So Paulo [1929] Em outubro de 1929, Le Corbusier (1887-1965) foi a Buenos Aires, contratado para realizar um conjunto de dez conferncias ao longo de 17 dias. Preocupado em divulgar ao mximo suas idias e sabendo que o governo brasileiro tinha intenes de construir uma nova capital, ativou seus contatos de modo a viabilizar sua vinda ao pas 10 . Atravs de arti- culao de Paulo Prado, foi contratado pela Prefeitura Municipal de So Paulo, atravs do Instituto de Engenharia, para conferir duas palestras. Em novembro, chegou cidade, de onde partiu alguns dias depois com destino ao Rio de Janeiro. Embora no lhe fosse solicitado, Corbusier tinha o hbito de rearmar seu discurso e suas teorias atravs da elaborao de propostas concretas para os lugares por onde passa- va. Fez isso em quatro cidades que visitou durante sua passagem pela Amrica do Sul, adi- cionando-se Montevidu s trs j mencionadas. A experincia sul-americana de 1929 e o conjunto de planos aqui elaborados, mais do que meras ilustraes de idias cristalizadas, terminariam por congurar um novo caminho de investigao na carreira do arquiteto, caminho que alcanaria seu estgio mais desenvolvido no plano para a cidade de Argel, de 1930-34. Durante o curto perodo em que permaneceu na cidade, o arquiteto teve acesso aos pro- jetos em desenvolvimento pela prefeitura, realizou percursos de automvel e pde sobrevo- ar a capital em um aeroplano. Embora o estudo que produziu, freqentemente chamado de plano para So Paulo, se constitua apenas de um breve texto acompanhado dois ou trs esboos, a preciso de sua leitura e a idia de cidade apresentada, so inquietantes e incitam algumas consideraes que podem de algum modo contribuir para a presente pesquisa. Durante a viagem de regresso, a bordo do navio Lutetia, Le Corbusier organizou as anotaes que fez durante sua jornada dando origem ao texto que seria posteriormente publicado sob o ttulo Prcisions sur um tat prsent de larchitecture et de lurbanisme. No captulo denominado Corolrio brasileiro... que tambm uruguaio, comenta: 10 Em carta a Paulo Prado, de 16 de dezembro de 1927, Le Corbusier no esconde seus interesses: Eu falava sobre o senhor com (...) Cendrars que deve estar novamente no pas das serpentes de doze metros. Eu tenho a vaga impresso de que ele est acabando de cercar o terreno de Planaltina para poder organizar uma sbia especulao quando ns comearmos os trabalhos da nova cidade. (...) Falando de Urbanismo soube outro dia que um dos meus colegas, conhecido por suas pequenas concepes pitorescas e romnticas, teria obtido a encomenda dos projetos de expanso do Rio de Janeiro. Se isto for verdade, ei-lo j com um p em Planaltina. E isto seria muito triste. O colega mencionado era Alfred Agache. SANTOS, Ceclia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth Campos da Silva; PEREIRA, Romo Veriano da Silva; e SILVA, Vasco Caldeira da. Le Corbusier e o Brasil. So Paulo: Tessela / Projeto, 1987. p.42. 166 167 O VALE COMO PASSAGEM No gabinete do prefeito de So Paulo examino com curiosidade, no plano mural da cidade, meandros signicativos. (...) As colinas sucedem-se umas s outras e entre elas estendem-se baixadas e vales. (...) Ora, So Paulo, a perder de vista, soma suas colinas. O funcionrio encarregado 11 , j que deve considerar as colinas, traa ruas curvas e viadutos, uma rede que se contorce como lombrigas. 12 No trecho acima podemos perceber os elementos que nortearam sua aproximao ini- cial em relao estruturao da cidade: topograa e circulao. A partir dessa abordagem, a proposta se organiza do seguinte modo: Faamos o seguinte: de colina a colina, de um pico a outro, vamos implantar uma via horizontal de 45 quilmetros e em seguida uma segunda via, formando mais ou me- nos um ngulo reto, para servir os demais pontos cardeais. Estas vias retas so auto-es- tradas de grande penetrao na cidade e, na realidade, realizam uma grande travessia. Os senhores no sobrevoaro a cidade com seus automveis, mas a sobre-correro. Essas auto-estradas que proponho so viadutos imensos. No construam arcos onero- sos para sustentar os viadutos, mas sustentem-nos por meio de estruturas de concreto armado que constituiro escritrios no centro da cidade e moradias na periferia. A rea desses escritrios e moradias ser imensa e a valorizao, magnca. Um projeto preciso, um decreto. Operao j descrita. 13 Em apenas um pargrafo Corbusier descreve o partido proposto. Dois grandes viadutos habitveis atravessariam o extenso permetro urbano cruzando-se na regio central da cida- de. Os automveis se deslocariam atravs das vias expressas localizadas nas coberturas dos edifcios e constituiriam a espinha dorsal do sistema virio. Dali, acessariam o sistema local implantado sobre o solo da cidade. O espao criado entre a via horizontal e a topograa ondulante abrigaria os demais programas necessrios, de infra-estruturas a habitaes. 11 Naquele momento encontrava- se em elaborao, dentro da prefeitura, o Plano de Avenidas de Prestes Maia e Ulha Cintra. 12 LE CORBUSIER. Precises sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. So Paulo: Cosac & Naify, 2004. p.232. 13 LE CORBUSIER, 2004. p.233. Fig.167 Croquis de Le Corbusier do seu plano para So Paulo. [BARDI, 1984. p.51.] 168 169 O VALE COMO PASSAGEM Uma dcada depois, essas idias foram descritas do seguinte modo: Traar auto estradas em diferentes nveis (...). Ir buscar no prprio stio o apoio para essas curvas de nvel: de imediato elas se separam, se instalam nos ancos da mon- tanha, exprimem o movimento da paisagem. Nos locais propcios, (...) abandonar o apoio da terra, esticar uma corda diante de si, lanar a auto-estrada como um viadu- to. 14 O gesto de apropriao executado pelo cruzamento dos viadutos e a simplicidade da soluo, so exaltados pelo arquiteto em vrias passagens de Precises. Para ele, o desenho dos dois traos criava o lugar de todas as medidas. Tudo ali se encerra, a chave dos poemas da arquitetura. Comprimento, altura. E suciente. 15 Esta operao concentra todos os elementos de estruturao e organizao da metrpo- le nas duas estruturas propostas, transformando a natureza do prprio cho da cidade. Com o problema da circulao resolvido, o solo paulistano passaria a exercer novas funes. O Vale do Anhangaba citado por Corbusier como um exemplo a ser seguido. Como se fossem dardos, os automveis atravessaro a aglomerao por demais exten- sa. Do nvel superior das auto-estradas eles descero para a rua. Os fundos dos vales no tero construes, mas estaro liberados para a prtica do esporte e para o estaciona- mento dos automveis que circulam num permetro pequeno. (...) Os senhores, alis, j criaram um incio de parque arborizado e para automveis no centro da cidade. (...) Existe algo mais elegante do que a linha pura de um viaduto em um lugar movimen- tado e algo mais variado do que suas fundaes que se enterram nos vales ao encontro do solo? 16 14 LE CORBUSIER. Sur les quatre routes. Lautomobile, lavion, le batou, le chemin de fer. Paris: Denoel/Gonthier, 1970 (1941). P.44. Apud ZIEKLER, Volker. Os Caminhos de Le Corbusier do autdromo auto-estrada. In: TSIOMIS, Yannis (ed). Le Corbusier - Rio de Janeiro: 1929, 1936. Rio de Janeiro: Centro de Arquitetura do Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1998. p.111. 15 LE CORBUSIER, 2004. p.86. 16 LE CORBUSIER, 2004. p.235. Fig.168 Croquis de Corbusier do plano para o Rio de Janeiro. [BOESIGER, 1967. p.325.] Fig.169 Croquis de Corbusier do plano para o Rio de Janeiro. [TSIOMIS, Yannis. Le Corbusier - Rio de Janeiro: 1929,1936. Paris: Centro de Arquitetura e Urbanis- mo do Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1998. p.73] Fig.170 Simulao de um dos projetos de Corbusier para o Rio de Janeiro feita sobre foto de 1929. [TSIOMIS, 1998. p.78] 170 Fig.171 Perspectiva geral do projeto para Argel, 1930-34. [BOESIGER, 1967. p.328.] Fig.172 Roadtown, projeto de Edgar Chambless, 1910. [HALPRIN, Lawrence. Freeways. New York: Reinhold, 1966.] Fig.173 Via expressa elevada sobre a cober- tura de um edifcio linear multi- funcional em Tokio. [HALPRIN, 1966.] 171 O VALE COMO PASSAGEM ngelo Bucci faz uma relao muito potica ao associar a soluo proposta por Le Corbusier aos elementos que constituam naquele momento a espacialidade do Anhangaba: (...) a rgua horizontal, de colina a colina, com automveis sobre-rodando e os edif- cios se desenvolvendo para baixo. Ora o que isto seno o Viaduto do Ch? O Viaduto do Ch era subjetivamente o projeto de uma cidade inteira - as duas rguas cruzadas, o cardus e decumano, so essenciais ao projeto, mas uma decorrncia da idia inicial da cidade-viaduto. Esses dois elementos j compunham a essncia da identidade de So Paulo. Um a expresso da natureza; o outro, da construo. Juntos so o Anhanga- ba. O Plano para So Paulo de Le Corbusier se serve fartamente desses dois elementos e no seria necessrio mais nada. O olhar estrangeiro viu nitidamente a essncia da cidade. 17 A idia do viaduto-habitvel era interessantssima e as relaes espaciais criadas por esse modelo eram muito pertinentes ao contexto paulistano: a multiplicao dos trreos, a diversidade vertical de acessos, o solo construdo e o solo natural. Embora a possibilidade de execuo do projeto de Corbusier jamais tenha sido cogi- tada pelo poder pblico paulistano, alguns dos conceitos ali colocados serviriam para legi- timar outras propostas que estavam sendo elaboradas na poca e que foram determinantes para a congurao da estrutura da cidade. A soluo apresentada (...) escondia no seu gigantismo utpico princpios que pode- riam orientar, efetivamente, a transformao da cidade, e que embasavam intenes transformadoras em pauta naquele momento: a conciliao entre expansionismo e centralizao. Os arranha-terras de Le Corbusier combinavam uma estruturao vi- ria em grande escala do espao urbano, indenidamente amplivel, com a verticali- zao intensiva dos eixos de expanso, e permitiriam ultrapassar os limites do centro tradicional mantendo, ao mesmo tempo, um desenho centrpeto. Tal combinao era 17 BUCCI, 1998. p.34. 18 CAMPOS NETO, 1999. p.336. 172 Fig.174 Perspectiva geral do plano para o Rio de Janeiro. [BOESIGER, 1967. p.324.] Fig.175 Perspectiva do projeto para Argel, mas podeia ser para So Paulo ou para o Rio de Janeiro. [TSIOMIS, 1998. p.110] 173 O VALE COMO PASSAGEM comparvel quela que seria empreendida no modelo radial-perimetral de Ulha Cin- tra e Prestes Maia, com recursos, linguagem e escala completamente diversos. 18 Outra premissa adotada por Corbusier que seria determinante no futuro da cidade era a escolha do automvel particular como principal organizador dos deslocamentos e da cir- culao de pessoas na cidade. Num momento onde se discutia em So Paulo a pertinncia de um sistema metropolitano de transportes pblicos, um Metr, a proposta de Corbusier adicionava um voto a favor do automvel. 19 (...) o abandono das veleidades estticas e das escalas controladas da rea central, que conformavam o modelo anterior defendido por Freire e Bouvard, abrindo o caminho para as grandes infra-estruturas virias e expanso ilimitada sugeridas pelas propostas de Ulha Cintra e Prestes Maia. (...) o imprio do automvel, da verticalizao e da funcionalidade viria poderia se colocar como parmetro de modernidade, amparado no paradigma corbusiano. 20 Por outro lado, a marca deixada no imaginrio paulistano, pela fora e pela poesia al- canados nessa proposio de rara sntese e clareza, se faz sentir at os dias de hoje. De uma maneira ou de outra, So Paulo no sairia indiferente passagem de Le Corbusier. Corbusier baseia todas as suas dedues num plano intelectual: por causa da vida ser assim que a cidade tem que ser assado, por causa do homem ser assim que a casa dele tem que ser assado. Por isso quando partindo desses princpios lgicos de ordem intelectual, ele tira as suas ilaes imaginativas, So paulo toda feita de viadutos habi- tveis por debaixo (...), tudo isso nos comove vivicadoramente. (...) estamos entrados diretamente no sonho, que pode ser um impossvel mas sonho sonhado, profun- damente ativo, como esse em que a gente d pinotes na cama, bufa, chora, esmurra espaos e acorda suado. (...) um impossvel, irrealizvel, ser tudo o que quiserem mas dum lirismo profundamente real, profundamente a Terra e a vida. 21 19 Embora seja fcil imaginar um sistema de transportes pblicos contido no interior das estruturas propostas, a nfase dada no discurso valoriza primordialmente a imagem do automvel. 20 CAMPOS NETO, 1999. p.338. 21 Trecho da crnica Cidades, publicada por Mrio de Andrade na edio do Dirio Nacional de 1 de maro de 1931.[ANDRADE, Mrio de. Taxi e Crnicas no Dirio Nacional. So Paulo: Duas Cidades: Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976. p.345.] 174 Fig.176 Esquema terico de So Paulo segundo Joo Florence de Ulha Cintra. [TOLEDO, 1996. p.122.] Fig.177 Esquema do Permetro de Irradia- o, radiais e circuito de avenidas e parques. Francisco Prestes Maia e Joo Florence de Ulha Cintra. [TOLEDO, 1996. p.125.] 175 O VALE COMO PASSAGEM Prestes Maia e o Anhangaba Analisar as proposies de Francisco Prestes Maia (1896-1965), arquiteto e urbanista formado pela Escola Politcnica em 1917, fundamental para se entender o modo como o urbanismo em So Paulo passou a ser conduzido a partir da segunda metade da dcada de 1920. Funcionrio pblico, professor da Escola Politcnica e poltico, foi responsvel pela elaborao de diversos planos para a cidade alm de ter assumido a prefeitura da cidade por duas gestes. Ao longo de sua trajetria, planejou e executou um conjunto de obras que redeniriam a estruturao viria da cidade, bem como alguns modelos de sua ocupao. A inuncia dessas aes se fez sentir tambm no Vale do Anhangaba, que teve seu carter completa- mente transformado. Esse espao tinha especial importncia na concepo da rea central defendida por Prestes Maia e foi objeto de uma srie de projetos especcos, que foram ganhando novas verses com o passar dos anos. Pretende-se discutir neste trabalho os projetos para o Anhangaba elaborados por Prestes Maia em trs momentos destacados: no mbito do Plano de Avenidas (1930), du- rante sua primeira gesto como prefeito (1938-45) e no Anteprojeto de um Sistema de Transporte Rpido Metropolitano (1956). O Anhangaba imaginado no Plano de Avenidas [1930] Durante a breve passagem de Le Corbusier pela cidade, j se encontrava em nalizao pela Secretaria de Viao e Obras Pblicas, um plano geral que seria o responsvel pela con- gurao de So Paulo nas dcadas seguintes. Este plano, elaborado por Francisco Prestes Maia com a colaborao de Joo Florence de Ulha Cintra (1887-1944), foi apresentado em 1930 sob o ttulo Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de So Paulo e caria conhecido como Plano de Avenidas. Por sua importncia para a congurao do desenvolvimento cidade, este plano foi e tem sido objeto de grande nmero de estudos e pesquisas e no se pretende aqui abordar 176 Fig.178 Primeira verso do Permetro de Irradiao de Joo Florence de Ulha Cintra. [TOLEDO, 1996. p.124.] 177 O VALE COMO PASSAGEM Fig.179 Perspectiva do acesso ao tnel sob a colina central, entre as ruas Anhangaba e 25 de Maro (pro- vavelmente sob o Largo de So Bento). [TOLEDO, 1996. p.126.] Fig.180 Trecho da planta do projeto da Avenida Nove de Julho mostrando o Parque Anhangaba. [TOLEDO, 1996. p.190.] 178 179 O VALE COMO PASSAGEM toda sua abrangncia. A anlise que se pretende fazer limita-se aos aspectos do projeto que tiveram rebatimentos mais diretos sobre a espacialidade do Vale do Anhangaba e que fo- ram responsveis pela redenio de seu carter. Ulha Cintra ingressou na Diretoria de Obras logo aps sua graduao pela Escola Politcnica em 1911. Durante os anos 20 foi o principal responsvel pelas iniciativas urba- nsticas municipais atravs da elaborao de diversos planos. Baseado na metodologia do urbanista francs Eugne Hnard, formulou um esquema terico ideal da estrutura viria de So Paulo identicando em sua congurao um sistema rdio-concntrico. Esse esque- ma serviu de base para a proposio de novos eixos que complementariam a malha dentro da lgica identicada. Sobre essas premissas desenvolveu em 1922 a proposta de um per- metro de irradiao paulistano, avenida que contornaria a colina histrica ampliando os limites do centro e descongestionando suas vias. O projeto da nova avenida foi aprovado pela Cmara, porm sua implantao inicial restringiu-se ao trecho prximo Praa da S e Ladeira do Carmo. Vendo a realizao plena de seu projeto em risco, Cintra passou a divulg-lo publicamente atravs de apresen- taes e publicaes em jornais e revistas. Em 1924, a prefeitura montou uma comisso para avaliar o conjunto de propostas que estavam em discusso naquele momento. Ali, Cintra encontraria um importante aliado. Graduado pela Escola Politcnica em 1917, Francisco Prestes Maia fazia parte do qua- dro da Secretaria Estadual de Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas desde 1918. Sua ma- neira de pensar a cidade coincidia com a de Ulha Cintra e imediatamente iniciariam uma profcua colaborao. Entre o nal de 1924 e meados de 1926, publicaram no Boletim do Instituto de Engenharia, uma srie de artigos que, como um todo, conguravam um plano abrangente de intervenes; um esboo do plano que apresentariam poucos anos depois. A dupla de engenheiros paulistanos traava, naquele momento, o diagrama lgico que se armaria em So Paulo. Sua construo terica radial-perimetral - identi- cando, selecionando e exacerbando as caractersticas estruturais presentes no quadro Fig.181 Desenho esquemtico do Plano de Avenidas indicando as ligaes, existentes e propostas, entre o Centro Velho e sua zona principal de expanso. [CAMPOS NETO, 1999. p.382.] Fig.182 Esquema do sistema proposto no Plano de Avenidas para a cir- culao na rea central, com o Permetro de Irradiao, em preto, superposto ao Sistema Y. O vale do Anhangaba ocupa o centro do quadrado. [CAMPOS NETO, 1999. p.388.] Fig.183 Esquema terico de So Paulo elaborado por Prestes Maia. Foi destacado em preto o Sistema Y. [TOLEDO, 1996. p.160.] 180 181 O VALE COMO PASSAGEM urbano; amarrando-as num esquema coerente e integrado; reconhecendo e investindo no potencial indutivo que tal amarrao lgica poderia ter para o processo de transfor- mao e expanso da cidade; xando, em suma, com tinta indelvel, as linhas mestras que orientariam o crescimento urbano - estava fadada a assumir papel crucial no fu- turo desenvolvimento de So Paulo. 22 Durante a gesto de Pires do Rio na prefeitura, de 1926 a 1930, essas idias foram for- malmente sintetizadas. Prestes Maia foi ento o responsvel pelo desenvolvimento do pla- no geral da cidade. Esse momento particularmente importante para a histria do urbanismo em So Paulo. nesse perodo que se d uma inverso do discurso adotado pelas instncias p- blicas de planejamento. Com a aposentadoria, em 1926, de Victor da Silva Freire (depois de permanecer por quase 27 anos no cargo municipal de Diretor de Obras), encerrava-se simbolicamente o ciclo de congurao da capital do caf, dando lugar a um novo grupo que teria como misso a estruturao da metrpole da era industrial. 23 O Plano de Avenidas foi ocialmente apresentado em maio de 1930 e poucos meses depois receberia o prmio mximo no IV Congresso Panamericano de Arquitetura, rea- lizado no Rio de Janeiro. O estudo continha um conjunto de propostas abrangente que abarcava diversos aspectos de estruturao da cidade, mas seu ttulo evidencia o carter predominante do projeto. Com a revoluo de outubro de 1930, Pires do Rio foi deposto e a Cmara dissolvida. Alguns anos se passariam antes que essas idias fossem retomadas. O Vale do Anhangaba era um dos pontos chave do Plano de Avenidas. O modo como ele foi concebido em relao ao conjunto de propostas o que se pretende discutir. A importncia do vale dentro do plano se manifesta em duas escalas distintas. A primei- ra, mais abrangente, se d no mbito da estruturao viria norte-sul da cidade, atravs do Sistema Y. A segunda, mais pontual, se revela na congurao de um recinto monumental que criaria a nova sala de visitas da cidade. 22 CAMPOS NETO, 1999. p.256. 23 CAMPOS NETO, 1999. p.304. Fig.184 Pormenor do Plano Geral dos Melhoramentos Centrais. [TOLEDO, 1996. p.147.] 182 183 O VALE COMO PASSAGEM O Sistema Y, como cou conhecido, o conjunto de trs avenidas que realiza a ligao viria norte-sul da cidade. Em planta, seu desenho forma a gura de um Y invertido e seu ponto de conuncia justamente o Vale do Anhangaba. No primeiro esquema terico ela- borado por Ulha Cintra, esse elemento j aparece delineado, embora as vias que o compe no sejam as mesmas adotadas posteriormente. No esquema terico de Prestes Maia, inclu- do no Plano de Avenidas, curiosamente ele no se destaca das demais vias que compe a trama proposta. Provavelmente Prestes Maia quis preservar a integridade grca do diagra- ma, omitindo a hierarquia de certos eixos e idealizando um sistema de planta circular. Nesse esquema o centro histrico da cidade representado como um quadrado em bran- co, preservado do uxo de veculos e acessvel de todas as direes. Nos desenhos mais deta- lhados que complementam o plano, aparece uma contradio conceitual que seria a respon- svel pela gradual destruio da imagem monumental que ele prprio havia concebido para o vale. ngelo Bucci 24 identica essa contradio em trs instncias, congurando trs parado- xos: de funo (desmantelamento do Sistema Y), de denominao (parque x avenida) e de espao (recinto x metrpole). Esses paradoxos derivam de uma contradio estrutural que a criao do Sistema Y e sua negao justamente em seu ponto nodal que o vale. O funcionamento do sistema de deslocamentos na concepo de Prestes Maia assumia como premissa que o destino da grande maioria das viagens conduzidas pelas radiais era o centro, e que o uxo de travessia ou de passagem seria secundrio. Essa suposio era incor- reta j naquele momento e com a expanso da cidade, o uxo de passagem s fez aumentar, transformando o Y em um sistema diametral e no radial. Se o objetivo era transpor o centro, era muito mais conveniente seguir pelas avenidas do Y, na cota baixa da cidade atravs de fundos de vales, do que ingressar no permetro de irradiao, na cota alta da cidade, contornar uma parte do centro para logo depois retornar ao sistema. Esta contradio eliminou a possibilidade de construir no vale o recinto monumental pretendido por Prestes Maia. Belas perspectivas aquareladas ilustram as espacialidade e o carter dos edifcios que deveriam se implantar na nova sala de visitas da cidade. Trs no- vos viadutos seriam construdos, dois arrematando as extremidades norte e sul do recinto e um substituindo o antigo Ch, congurando um composio simtrica. O pao municipal 24 BUCCI, 1998. Fig.185 Pormenor do Plano Geral dos Melhoramentos Centrais com o Sistema Y assinalado. [TOLEDO, 1996. p.147.] Fig.186 O Parque Anhangaba segundo Prestes Maia. O recinto fechado em seus extremos norte e sul por edifcios associados a novos via- dutos. [TOLEDO, 1996. p.147.] 184 185 O VALE COMO PASSAGEM Fig.187 Perspectiva da proposta para o vale onde se destacam um novo Viadu- to do Ch, o conjunto de edifcios que baliza o recinto lateralmente e a torre do Pao Municipal ao fundo [TOLEDO, 1996. p.180.] Fig.188 Corte longitudinal do Viaduto So Francisco associado torre do Pao Municipal. [TOLEDO, 1996. p.147.] Fig.189 Elevao do Pao Municipal e do Viaduto So Francisco, com a chegada das duas avenidas que compem o Y. [TOLEDO, 1996. p.147.] Fig.190 Perspectiva de uma galeria de pedestres no interior de um dos viadutos propostos. Embora a pre- sena do Teatro Municipal sugira a localizao do Viaduto do Ch, esta soluo era proposta para o Viadu- to So Francisco. [CAMPOS NETO, 1999. p.394.] 186 Fig.191 Planta geral dos melhoramentos centrais, de 1945. O Sistema Y j est claramente congurado e o Permetro de Irradiao ganhou nova soluo. [TOLEDO, 1996. p.151.] 187 O VALE COMO PASSAGEM seria instalado no interior de uma torre junto ao Viaduto So Francisco. Rotatrias e jardins diluiriam a avenida no fundo do vale. Os novos edifcios seriam similares aos palcios cons- trudos por Samuel das Neves para o Conde Prates. Embora ilusria, a imagem criada por Prestes Maia apresentava uma interessante ex- perimentao com os nveis de cidade que circundam o Anhangaba. Os viadutos possu- am tabuleiros duplos com sistemas de transporte no interior de suas estruturas; um t- nel, extenso do novo Viaduto Sta. Egnia, perfuraria a base da colina at sair no Vale do Tamanduate, na estrela viria proposta prxima Rua 25 de Maro; os edifcios teriam sempre mais de um nvel trreo. Alguns anos depois, no papel de prefeito da cidade, Maia teve a oportunidade de exe- cutar algumas de suas propostas. Novos projetos foram feitos e novas imagens tomariam conta do Anhangaba. O Anhangaba construdo: Prestes Maia prefeito [1938-1945] Oito anos aps a publicao do Plano de Avenidas, Prestes Maia foi nomeado prefeito da cidade, exercendo o cargo de maio de 1938 a novembro de 1945. Durante os sete anos e meio frente do municpio, executou um conjunto de obras dentro do esprito do plano. O mode- lo se imps e ditou a orientao das obras realizadas por boa parte das gestes posteriores. Nesse momento a contradio presente no plano original, em relao ao Anhangaba, superada atravs do abandono da idia de parque ou de recinto fechado que havia se pensado para o local. O Anhangaba agora se assumia como corao do Y e seu carter de passagem se expressava claramente atravs da implantao de uma grande avenida no fundo do vale. No h mais jardins nem rotatrias. H apenas canteiros e ilhas de separao do trfego. O prprio permetro do recinto totalmente reformulado nesse momento. Se no Plano de Avenidas ele era delimitado pelos viadutos So Francisco e Novo Sta. Egnia, agora seu extremo sul era o permetro de irradiao, com a criao da Praa da Bandeira e a construo do Viaduto Jacare, e o seu extremo norte se dilua com a anexao da praa dos Correios e o seu prolongamento sob o Viaduto Sta Egnia. 188 189 O VALE COMO PASSAGEM Fig.192 Foto area do centro da cidade. Com a construo do Permetro de Irradiao junto Praa da Bandei- ra, esta tornou-se um grande vazio que se incorporou ao recinto do Anhangaba. [TOLEDO, 1996. p.129.] Fig.193 Fotograa que integrava a publi- cao Os melhoramentos de So Paulo, que divulgava as realizaes do prefeito Prestes Maia. O Viaduto Jacare criou um novo nvel para a cidade, que s seria plenamente incorporado anos depois pelos novos edifcios. [MAIA, 1945. g.180.] Fig.194 Vista do Viaduto Jacare para o Anhangaba. [TOLEDO, 1996. p.131.] 190 191 O VALE COMO PASSAGEM Fig.195 Setor norte do Parque Anhangaba limitado pelos fundos do edifcio da Delegacia Fiscal. [MAIA, 1945.] Fig.196 Praa do Correio com a Delegacia Fiscal ao fundo. [MAIA, 1945. g.40.] Fig.197 Trfego de veculos contornando a Delegacia Fiscal. [MAIA, 1945. g.51.] Fig.198 Aps a demolio da Delegacia Fiscal, a avenida prolongou-se para norte estabelecendo a travessia norte-sul pelo centro atravs de uma avenida de alta capacidade. [TOLEDO, 1996. p.163.] Fig.199 Viaduto do Ch e o vazio criado na regio do Piques (Praa da Bandeira) [TOLEDO, 1996. p.207.] Fig.200 Os edifcios e a avenida expressam o novo carter do Anhangaba. [MAIA, 1945. g.50.] Fig.201 Modelo tridimensional do Vale do Anhangaba com a proposta, mais uma vez, de construo do Pao Municipal na Praa da Bandeira. Sua torre arrematava o eixo visual do vale no seu setor sul. [MAIA, 1945.] 192 193 O VALE COMO PASSAGEM A monumentalidade e a imponncia da imagem anteriormente proposta no seria to- talmente abandonada. O Pao Municipal deveria ser implantado junto praa da Bandeira e seria o arremate sul desse grande vazio. Um concurso de projetos foi realizado em 1940 e vencido pelo escritrio de Ramos de Azevedo. A proposta vencedora previa a construo de uma altssima torre. Maquetes feitas pelo prprio Prestes Maia incorporavam a idia da torre, acrescentando a sugesto de outros edifcios importantes junto s encostas do vale. Alguns deles seriam construdos. O Anhangaba no Anteprojeto [1956] Com a imposio do modelo rodoviarista de estruturao da cidade e a falta de inves- timentos em sistemas de transportes pblicos de alta capacidade, a questo da mobilida- de foi se tornando um problema cada vez mais grave. Em 1955, o ento prefeito Juvenal Lino de Mattos decidiu criar uma comisso multidisciplinar para tratar do tema. Presidida por Prestes Maia, a Comisso do Metropolitano contava ainda com os engenheiros Lauro de barros Siciliano, Luiz Berrini Jr., Antonio de Voci, Renato do Rego Barros e Jos Vicente Vicari. Seu relatrio nal, o Anteprojeto de um Sistema de Transporte Rpido Metropolitano foi entregue em julho de 1956. 25 Embora o objetivo principal fosse estruturar uma proposta para um sistema de metr e seus desdobramentos, o trabalho da comisso manteve um enfoque marcante sobre a complementao do sistema de avenidas e vias expressas da cidade. Na verdade, poderamos dizer que este o assunto mais desenvolvido do trabalho. (...) o Ante-Projeto envolve trs etapas - melhoramento e racionalizao dos trans- portes; obras de urbanismo, especialmente obras virias e por m o metropolitano propriamente dito. Dado o perl da Comisso do Metropolitano e do prprio Prestes Maia, o segundo item imediatamente detalhado. 26 25 MEYER, 1991. p.112. 26 MEYER, 1991. p.114. Figs.202 e 203 Planta da rea central e perspectiva que ilustrava a capa do Ante-Pro- jeto. [SO PAULO (Cidade) Prefeitura. Ante-Projeto de um Sistema de Transporte Rpido Metropolitano. So Paulo, 1956.] 194 195 O VALE COMO PASSAGEM No universo do Anteprojeto, o Anhangaba preserva seu carter de grande artria viria, com o fundo de seu vale ocupado integralmente pela avenida. As mudanas que apa- recem sugeridas nesse estudo ocorrem em dois aspectos: um visvel; o outro no. Do ponto de vista da funcionalidade, a mudana proposta para o vale se daria em seu subsolo, com a passagem de uma linha de metr e a implantao de uma estao junto ao Largo de So Bento, sob o Viaduto Sta. Egnia. O grande uxo de pedestres seria mediado por novos edifcios atravs dos quais se realizaria a articulao entre os nveis da cidade. A espacialidade do vale no sofreria, por este motivo, qualquer alterao. A outra mudana observada neste trabalho se revela na linguagem escolhida para repre- sentao das novas arquiteturas articuladas aos sistemas de locomoo. A arquitetura da cidade que Maia prope nesse volume apresenta um novo modelo urbano em relao ao do Plano de Avenidas, 26 anos mais novo. Isto aparece no s no padro de desenho escolhido para as ruas e viadutos, passeios e parques, como tam- bm na arquitetura das edicaes que integram o conjunto. No Plano de Avenidas os edifcios projetados compunham um cenrio homogneo de monumentalidade acentuada, ligado a exemplos eclticos de arquitetura em So Pau- lo. No Anteprojeto, os edifcios e as obras de infra-estrutura compem um cenrio moder- no para a cidade, como uma roupa nova, sem mudar em essncia seus compromissos anteriores. 27 Aps abrir mo de seu parque, de sua sala de visitas, Prestes Maia se rendia, no Anteprojeto, linguagem moderna, ou ao menos sua aparncia, da arquitetura da cidade. De suas intenes iniciais, nenhuma vingou. Ao optar pelo modelo de cidade do auto- mvel, Prestes Maia abria mo, sem imagin-lo, de todas as demais virtudes que defendia para So Paulo. O Anhangaba por ele imaginado morreu aos poucos, atropelado dia e noite pelos carros em alta velocidade. 27 MUNIZ, Cristiane. A Cidade e os Trilhos: o Metr de So Paulo como desenho urbano. So Paulo: FAUUSP, 2005 (dissertao de mestrado). p.121. Fig.204 Perspectiva do Vale do Anhangaba nas proximidades do Viaduto Santa Egnia e Largo de So Bento, onde se localizaria uma estao do sistema proposto. [SO PAULO (Cidade) Prefeitura. Ante-Projeto de um Sistema de Transporte Rpido Metropolitano. So Paulo, 1956.] 196 197 O VALE COMO PASSAGEM Rino Levi e o centro O arquiteto Rino Levi (1901-1965) foi um dos grandes protagonistas da arquitetura em So Paulo entre as dcadas de 1930 e 1950. Sua contribuio para o desenvolvimento da arquitetura moderna na cidade foi imensa, tanto atravs de suas obras como de sua atuao poltica na organizao e fundao do instituto de arquitetos. Ao longo de sua carreira, pde desenvolver alguns projetos para a rea central da cidade, atravs dos quais deixou importante contribuio para a cultura arquitetnica referente a esse stio. Em meados da dcada de 40, o centro de So Paulo, concludas as avenidas do per- metro de irradiao de Prestes Maia, exalava um ar de cidade grande - europia para uns, norte-americana para outros - , que afastava o passado provinciano e colonial. A intensa verticalizao era direcionada construo da cidade moderna difundida pelo cinema com as imagens de Nova Iorque e outros grandes centros urbanos. Rino Levi, importante agente desse processo, busca, com seus projetos inseridos na regio central da cidade, a instaurao de uma urbanidade cosmopolita. Os projetos dialogavam com o traado existente e com o gabarito legal, contribuindo para construo de um espao pblico cuidadosamente oferecido escala do pedestre, animado por marquises ilu- minadas e outras gentilezas urbanas, que facilitavam encontros entre uma sesso de cinema e a ida a um restaurante. 28 Concurso para o novo Viaduto do Ch [1934/35] Em 1934, as limitaes impostas ao trfego pelas reduzidas dimenses do viaduto origi- nal, levaram a prefeitura a anunciar o edital de um concurso de sugestes visando xar as diretrizes para um projeto denitivo. 29 No ano seguinte foi realizado um segundo concurso para a escolha de um projeto denitivo. Levi foi autor do projeto classicado em 2 lugar 30
neste concurso, vencido pelo arquiteto Elisrio Bahiana 31 . Sua proposta, sob o pseudnimo Onix, apresentava uma reexo abrangente que extrapolava muito os objetivos especcos 28 ANELLI, Renato. A cidade Moderna. Apud Rino Levi: arquitetura e cidade. So Paulo: Romano Guerra, 2001. p.221. 29 SEGAWA, Hugo. Rino Levi e a arquitetura moderna: a proposta para o viaduto do Ch. Revista Projeto n. 111, jun. 1988. p.121. 30 A equipe era composta pelo arquiteto Rino Levi e pelos engenheiros Humberto Nobre Mendes e Joseph Grabenweger. 31 Ver o projeto neste mesmo captulo. Fig.205 Perspectiva do Vale do Anhanga- ba apresentada ao concurso. [ANELLI, Renato; GUERRA, Abi- lio; KON, Nelson. Rino Levi: arqui- tetura e cidade. So Paulo: Romano Guerra, 2001. p.68.] Fig.206 Esquema virio com a sugesto de um circuito composto de avenidas e tneis sob a colina histrica. Um dos tneis teria uma sada junto ao novo viaduto. [ANELLI, 2001. p.70.] Fig.207 Elevao do viaduto proposto. [ANELLI, 2001. p.71.] 198 199 O VALE COMO PASSAGEM de construo do viaduto. A proposta considerava a articulao dessa obra a novos circuitos virios propostos, coerentes com a lgica do Plano de Avenidas. Realiza esquemas tericos de circulao comparando o systema actual com um systema racional de viao, no qual incorpora o Permetro de Irradiao e sua proposta de um anel contornando a parte mais central da cidade, parte na superfcie e parte subterrneo. Alm do anteriormente proposto tnel sob o Largo So Bento, Levi propunha outro tnel ligando a vrzea do Tamanduate e Vale do Anhangaba, passando sob a Praa da S, Largo So Francisco e Praa do Patriarca (onde se conectaria com o novo viaduto). Conexes verticais fariam a ligao para pedestres entre os sistemas de transporte pblico no nvel do tnel os principais ncleos de irradia- o no nvel da cidade alta. O princpio desta proposta o mesmo utilizado na proposta de tneis sob a colina histrica elaborado em 1914. 32 Em seu projeto, o recinto do Anhangaba ainda aquele proposto por Bouvard, como revela a perspectiva vista de pssaro apresentada no concurso. Levi ainda no havia perce- bido o impacto que o Plano de Avenidas teria sobre aquele lugar. No local em que dever ser erigido o novo viaduto do Ch apresenta-se o vale do Anhangaba como um dos pontos mais cenogrcos da cidade. Nitidamente indivi- dualizado por agrestes desnveis, exuberante vegetao moldada em modernos ajardi- namentos, possuindo, localizados nas elevaes, edifcios signicativos pelo seu destino e arquitetura, apresenta principalmente duas caractersticas ambientais: a harmnica grandiosidade da obra humana e da natureza, e a graciosa e colorida vivacidade do con- junto. 33 O arremate do viaduto junto Praa do Patriarca era feito por uma Estao dupla, na superfcie e subterrnea, de auto-omnibus e bondes, com abrigos. Essa estao constitua uma grande conexo pblica de pedestres entre os dois nveis da cidade e poderia ser consi- derada precursora da Galeria Prestes Maia, implantada anos depois naquele mesmo local. O viaduto propriamente dito caracterizava-se pela horizontalidade de sua elegante e es- belta estrutura de concreto armado, dividida em trs vos com vigas levemente arqueadas. A 32 Ver o projeto no incio deste captulo. 33 LEVI, Rino. Justicao arquitetnica. (agosto de 1935). Revista Projeto n. 111, jun. 1988. p.122. Fig.208 Perspectiva do encontro do viaduto com a encosta do vale junto Praa do Patriarca. [ANELLI, 2001. p.71.] Fig.209 Perspectiva de um trecho do mdulo central da estrutura do viaduto. [ANELLI, 2001. p.71.] Fig.210 Perspectiva do vale com o viaduto proposto. [ANELLI, 2001. p.69.] 200 201 O VALE COMO PASSAGEM Fig.211 Prancha com os desenhos da es- tao proposta em uma das extre- midades do viaduto. Os bondes acessavam o nvel do vale atravs da avenida e do tnel sugerido. Um conjunto de escadas estabelecia a comunicao deste nvel com o da Praa do Patriarca. [ANELLI, 2001. p.70.] Fig.212 e 213 Plantas do viaduto. [SEGAWA, Hugo. Rino Levi e a ar- quitetura moderna: a proposta para o viaduto do Ch. Revista Projeto n. 111, jun. 1988. p.123.] Fig.214 Prancha com desenhos do sistema estrutural do viaduto proposto. [ANELLI, 2001. p.71.] 202 203 O VALE COMO PASSAGEM preocupao era a de no interromper a continuidade visual do vale, bipartindo seu recinto. Para no sacricar a viso panormica do parque seria necessrio que o viaduto se reduzisse a uma linha ligando as duas colinas centrais. 34 Sob seus dois extremos, programas eram localizados de modo a dar sentido aos dois nveis que o viaduto articulava. A obra seria realizada em duas etapas, dividindo o novo viaduto longitudinalmente. Terminada a primeira fase, seria demolido o viaduto original e executada a segunda metade. Desse modo, o novo viaduto permaneceria como o prolonga- mento natural das ruas Baro de Itapetininga e Direita. IAPI [1939] Em 1939, Rino Levi contratado pelo IAPI, Instituto de Aposentadoria e Penses dos Industririos, para elaborar um projeto de aproveitamento da rea junto ao Largo So Bento localizada sobre o tnel proposto por Prestes Maia. O empreendimento deveria constituir fonte de renda para o instituto ao criar reas comerciais e de escritrios para locao. O instituto arcaria com a construo da passagem em troca da concesso de uso do terreno, de era de propriedade municipal. 35 Vrias verses desse estudo podem ser encontradas nos arquivos do arquiteto, mas h dois aspectos distintos, presentes em todas elas, que merecem um olhar mais atento: um diz respeito congurao do edifcio; o outro s intervenes previstas no sistema virio. Em todas as verses do projeto elaboradas, o edifcio era setorizado verticalmente da seguinte maneira: um embasamento, localizado entre os nveis da Rua Anhangabah e do Largo So Bento, abrigava alm da passagem subterrnea, dois nveis de garagens e algumas lojas junto ao tnel; um conjunto de galerias compostas de loja e sobreloja, no nvel do lar- go, oferecia espao para estabelecimentos comerciais e de servios; as reas para escritrios eram resolvidas no interior de trs torres de quinze pavimentos cada, implantadas perpen- dicularmente ao tnel. A arquitetura do conjunto era ainda bastante tmida, mas procurava explorar as potencialidades do stio. Havia claramente a congurao de dois trreos, e uma 34 LEVI, Rino. Justicao arquitetnica. (agosto de 1935). Revista Projeto n. 111, jun. 1988. p.123. 35 MUNIZ, 2005. p.91. Fig.215 Prancha com proposies para o sistema virio que acompanhava o projeto do conjunto comercial para o IAPI. A construo do tnel So Bento era associada a uma srie de passagens de nvel e outras inter- venes. Notar no canto inferior esquerdo as sees previstas para a Avenida Anhangaba e Tiradentes. [Biblioteca FAUUSP] 204 205 O VALE COMO PASSAGEM tentativa de explicitar essa topograa. Levi procurou evitar a usual aridez dos espaos anexos a tneis e viadutos, incorpo- rando no programa do edifcio usos que poderiam conferir certa urbanidade a essa situao: os nveis do Vale do Anhangaba e do Largo So Bento so ocupados por lojas e os dois andares intermedirios so destinados a estacionamento. (...) as gigan- tescas colunas na entrada do tnel acentuam a verticalidade do desnvel entre o largo e o vale. 36 A proposta previa ainda a remodelao do Largo So Bento, com a construo de um nvel de garagens sobre a passagem inferior, uma grande entrada de luz de planta circular e dois conjuntos de escadas, possivelmente para possibilitar a transferncia de passageiros entre as linhas de transporte pblico nos diferentes nveis. O Largo propriamente dito rece- beria o acesso s garagens e uma parada abrigada. No mbito do sistema virio, o projeto incorporava propostas existentes, mas adicio- nava novos elementos. Dois eixos eram trabalhados: o eixo Parque D. Pedro >Tnel > So Joo e o eixo Anhangaba > Tiradentes. O Primeiro realizava a conexo Leste-Oeste partindo de uma rotatria semelhante Praa da Estrela proposta por Maia no p da Ladeira General Carneiro, seguindo pelo t- nel sob a colina histrica, cruzando a Rua Anhangaba e subindo pela Rua Capito Salomo at atingir a Av. So Joo junto ao Largo Paissandu. A soluo para o eixo Norte-Sul propunha o entrincheiramento das faixas centrais da Rua Anhangaba criando uma hierarquia nessa via que facilitaria os cruzamentos sem limitar a uidez do trnsito de passagem. No desenho de Rino Levi esta disposio se iniciaria junto ao cruzamento com a So Joo e prosseguiria em direo Av. Tiradentes. fcil imaginar seu prolongamento por todo o vale. O Anhangaba j no era mais visto como o recinto fe- chado de Bouvard, mas como a grande avenida de Prestes Maia. O desenho virio proposto resolvia as duas escalas de circulao, a local e a expressa, sem prejuzo de nenhuma. 36 ANELLI, 2001. p.110. Fig.216 Pormenor da planta anterior. A soluo sugerida para a Avenida Anhangaba consistia no rebai- xamento em trincheira das faixas centrais, que receberiam o trfego de passagem e liberariam as faixas laterais para o uxo local. [Biblioteca FAUUSP] 206 207 O VALE COMO PASSAGEM Figs.217, 218 e 219 Perspectivas das solues estu- dadas: vista da avenida, vista do interior do tnel e vista area. [Biblioteca FAUUSP] Fig.220 Cortelongitudinal pelo tnel So Bento econjunto comercial. [Biblioteca FAUUSP] 208 Figs.221, 222 e 223 Planta do nvel do vale, com a passagem do tnel; planta do nvel do Largo de So Bento, com lojas e galerias comerciais; planta do pavimento tipo das torres de es- critrios. [Biblioteca FAUUSP] Fig.224 Prancha de desenhos da garagem subterrnea prevista entre o nvel do Largo So Bento e o do tnel. Eram propostos dois conjuntos de escadas que criariam uma circula- o vertical pblica para transbor- do entre sistemas de transporte. [Biblioteca FAUUSP] 209 O VALE COMO PASSAGEM 210 211 O VALE COMO PASSAGEM O problema do estacionamento [anos 50] Durante a dcada de 1950, Rino Levi, a partir de encomendas privadas para edifcios de garagens no Rio de Janeiro e em So Paulo, e da pesquisa desenvolvida no mbito acadmi- co de suas aulas na FAUUSP, envolveu-se com o problema que o excesso de veculos estava gerando nos pontos centrais da cidade. O otimismo com que era encarado nas dcadas anteriores o enorme crescimento da cidade comeava a se transformar em motivo de preocupao. O volume de automveis circulando em So Paulo iniciava um processo de destruio de aspectos de sua urbanidade muito caros aos arquitetos. A asxia que comeava a ser identicada em algumas reas do centro, representava um dos sintomas dos males que a cidade deveria procurar a enfrentar. No projeto para a Garagem Amrica (1952/58), Levi enfrentou um lote bastante irre- gular, localizado entre a Rua Riachuelo e a Av. Anhangaba (atual 23 de maio), prximo ao Largo So Francisco. A adequao do programa geometria da planta forou a adoo de um sistema convencional de circulao, com rampas laterais localizadas no trecho mais lar- go do lote articulando os 15 pavimentos de estacionamento. O arquiteto no pde utilizar disposies espaciais e de circulao mais investigativas como a das garagens polielicoidais que j havia estudado. O desnvel permitiu criar dois acessos, desnivelados em seis pavimentos, proporcio- nando uma maior diversidade de percursos. Um volume saliente na fachada voltada para o fundo do vale, abriga a sala de manobristas e marca a posio do trreo superior (Rua Riachuelo), revelando e enfatizando a verticalidade da topograa. Os planos previstos de fe- chamento das fachadas, utilizando brises metlicos, nunca foram construdos, prejudicando consideravelmente a relao entre o edifcio e seu entorno. Em conjunto com Roberto Cerqueira Csar e os estudantes de sua disciplina na FAUUSP durante os anos de 1955/56, Rino Levi elaborou uma proposta urbana para a regio central de So Paulo tendo como principais elementos de projeto o sistema virio e a localizao de novos estacionamentos. Partindo dos mesmos pressupostos de Prestes Maia, o trabalho apresentado no ofereceria qualquer contribuio alm da de consolidar a hegemonia do automvel sobre qualquer outro meio de estruturao urbana. Fig.225 Esquemas desenvolvidos durante o estudo de localizao de novas garagens na rea central [ANELLI, 2001. p.222.] Fig.226 Praa da Bandeira sendo utilizada para estacionamento de veculos. Fotograa do incio dos anos 50. [ANELLI, 2001. p.221.] 212 213 O VALE COMO PASSAGEM Fig.227 Esquema de localizao da Gara- gem Amrica. [ANELLI, 2001. p.224.] Fig.228 Desenhos da Garagem Amrica [ANELLI, 2001. p.194.] .229 Fotograa da Garagem Amrica construda sem o sistema de fecha- mento previsto. [ANELLI, 2001. p.195.] Fig.230 Desenhos do projeto da Garagem Copacabana, no Rio de Janeiro (1956), em que era utilizado o sistema polielicoidal desenvolvido pelo escritrio de Rino Levi. [ANELLI, 2001. p.194.] 214 215 O VALE COMO PASSAGEM O novo Viaduto do Ch [1935] Com o aumento do volume de trfego que demandava a travessia do vale atravs do Viaduto do Ch, a partir dos anos 30 as dimenses da antiga estrutura passaram a ser enca- radas como uma limitao problemtica para a cidade e sua substituio passou a ser con- siderada em termos concretos. Em 1934 e 1935, durante a administrao do prefeito Fbio Prado (1934-1938), foram promovidos dois concursos pblicos de projetos para resolver o problema da ligao das duas colinas separadas pelo vale do Anhangaba 37 ; o primeiro, um concurso de sugesto de diretrizes; o segundo, para escolha do projeto denitivo. O autor da proposta vencedora foi o engenheiro-arquiteto Elisrio Antnio da Cunha Bahiana (1891-1980), formado no Rio de Janeiro pela Escola Nacional de Belas Artes em 1920 e radicado em So Paulo a partir de 1930 38 . Bahiana era o arquiteto responsvel pelos projetos da Sociedade Comercial e Construtora, tendo realizado em 1929 dois edifcios de porte no centro paulistano, o Pirapitinguy (demolido) e o Saldanha Marinho 39 . O primeiro lugar obtido no concurso representava a possibilidade de construir a obra mais importante de sua carreira at aquele momento 40 . O viaduto proposto por Bahiana tinha 25 metros de largura, dimenso aproximada- mente duas vezes maior que a do antigo, e se constitua de uma estrutura de concreto ar- mado com arco central de 64 metros de vo arrematado por dois grandes pilares contnuos com aproximadamente 4 metros de largura e 25 metros de comprimento, posicionados sobre os taludes de transio do nvel da avenida central para as vias laterais. Dois vos secundrios, de 17,50 metros, abriam caminho para a passagem dessas ruas, Formosa e sua oposta. Os pontos de apoio eram marcados pela elevao de quatro torres monumentais, no construdas, que assumiriam as funes de iluminao e de suporte da rede area de cabos para os bondes eltricos. Nas duas extremidades, tirando partido dos desnveis da cidade, foram propostos edif- cios, prolongamentos do viaduto, que deveriam abrigar programas pblicos diversos. No era sugerida explicitamente, no projeto inicial, a utilizao desses espaos como conexo pblica para pedestres. Esta diretriz deve ter sido adotada no seu desenvolvimento, a partir 37 Trecho do ttulo do edital do primeiro concurso, realizado em novembro de 1934. Apud SEGAWA, Hugo. Rino Levi e a arquitetura moderna: a proposta para o viaduto do Ch. Revista Projeto n. 111, jun. 1988. p.121. 38 SEGAWA, Hugo. Elisrio Bahiana e a arquitetura art deco. Revista Projeto n. 67, set. 1984. p.22. 39 Localizado na Rua Lbero Badar, junto ao Largo de So Francisco, abriga atualmente a Secretaria Estadual de Segurana Pblica 40 Bahiana havia obtido anteriormente o 2 lugar em trs concursos importantes: para o Pavilho do Brasil na Exposio de Nova Iorque (1925), para o Estdio do Clube de Regatas do Flamengo (1925), e para a Embaixada Argentina no Rio de Janeiro (1928), este ltimo vencido por Lcio Costa. SEGAWA, Hugo. Elisrio Bahiana e a arquitetura art deco. Revista Projeto n. 67, set. 1984. p.22. Fig.231 Perspectiva geral do projeto. [Biblioteca FAUUSP] 216 217 O VALE COMO PASSAGEM da repercusso da proposta de Rino Levi, classicada em 2 lugar no concurso. Durante esse desenvolvimento, a extremidade leste alcanaria enorme riqueza espacial ao prolongar o salo inicialmente proposto at o centro da Praa do Patriarca, passando sob a Rua Lbero Badar, criando uma galeria pblica de pedestres que associava a funo de travessia a ser- vios pblicos e de lazer. A construo do viaduto iniciou-se em 1936 e em 18 de abril de 1938 foi inaugurada pelo novo prefeito, Francisco Prestes Maia. A galeria junto praa do Patriarca receberia o nome do prefeito e seria inaugurada alguns anos depois, entre 1940 e 1941. Em 1955, devido importncia dessa ligao, foram ali instalados dois conjuntos de escadas rolantes. 41 A posio do novo viaduto foi determinada pela premissa de no interferir na estrutura antiga at a concluso das obras 42 . Isto determinou uma implantao signicativamente di- ferente da anterior. Se antes o viaduto se colocava como o prolongamento natural das ruas Direita e Baro de Itapetininga, agora a relao deveria se estabelecer com as praas que ar- rematavam seus extremos. Para isso, ambas tiveram de ser remodeladas. A Praa Ramos de Azevedo, junto ao Teatro Municipal, teve sua largura reduzida e passou a contar com uma nova fachada construda, fachada esta que nunca foi muito bem incorporada vida daquele espao. A praa do Patriarca foi totalmente transformada, com a presena da cobertura so- bre a sada superior da galeria, um novo desenho virio e de pavimentao. A principal diferena entre os dois viadutos, distino que representa um salto im- portante entre um e outro, reside na articulao dos nveis que aquele recinto apresenta. Enquanto o Ch de Jules Martin realizava uma conexo exclusivamente horizontal, entre duas partes da cidade alta, o de Bahiana incorporou os novos trreos que haviam sido cria- dos, promovendo percursos horizontais e principalmente verticais. O prestgio alcanado por Bahiana aps o projeto do Viaduto do Ch lhe renderia um conjunto de encomendas de projetos que, tivessem sido todos construdos, teriam constitudo um corpo mais presente at que o dos edifcios construdos pelos Neves alguns anos antes. 43 41 RICCA JR., Jorge. Anhangaba: construo e memria. So Paulo: FAUUSP, 2003 (Dissertao de Mestrado). p.209. 42 Diferente da proposta de Rino Levi, que previa a construo de metade da estrutura nova, demolio da antiga e concluso da obra em seu lugar. 43 O arquiteto construiu o Edifcio Joo Bricola, em frente ao Teatro Municipal (antigo Mappin), planejou um novo traado para o Parque Anhangaba, projetou a ampliao do Hotel Esplanada (local onde foi construdo o Edifcio CBI Esplanada, de Lucjan Korngold), o Edifcio Conde Prates (que substituiria o Palacete Prates; foi posteriormente construdo por Alfredo Mathias segundo projeto de Giancarlo Palanti) e foi o 2 colocado no concurso para a sede do Grupo Matarazzo (vencido por Marcello Piacentini, abriga atualmente a sede da prefeitura). SEGAWA, Hugo. Elisrio Bahiana e a arquitetura art deco. Revista Projeto n. 67, set. 1984. p.22. Fig.233 Perspectiva a partir da Praa do Patriarca. [Biblioteca FAUUSP] Fig.234 Detalhamento das torres no construdas. [Biblioteca FAUUSP] Fig.235 Perspectiva a partir do vale. [Biblioteca FAUUSP] 218 Fig.236 Plantas do viaduto. [Biblioteca FAUUSP] Fig.237 Corte transversal pelo meio do vo central. [Biblioteca FAUUSP] Fig.238 Corte transversal junto ao extremo leste do viaduto olhando para a Praa do Patriarca. [Biblioteca FAUUSP] Fig.239 Elevao geral. [Biblioteca FAUUSP] Fig.240 Corte longitudinal. O viaduto se prolonga atraves dos edifcios po- sicionados em suas extremidades. Notar que ainda no havia sido prevista a Galeria Prestes Maia. [Biblioteca FAUUSP] 219 O VALE COMO PASSAGEM 220 Fig.241 Vista area do novo Ch. Hans Gunter Flieg, 1950. [IMS, 2004. p. 196.] Fig.242 O novo viaduto a partir do Teatro Municipal. [TOLEDO, 1989. p.195.] Fig.243 Vista a partir do centro do vale. Cromocart G. W., nal do anos 40. [GERODETTI, 1999. p79.] Fig.244 Vista a partir da Rua Formosa. Theodor Preising, anos 40. [GERODETTI, 1999. p78.] Fig.245 Projeto da Galeria Prestes Maia, com data de 1940. [Biblioteca FAUUSP] 221 O VALE COMO PASSAGEM 222 223 O VALE COMO CONFLITO captulo 04 o vale como confito 224 225 O VALE COMO CONFLITO O automvel e o Anhangaba No captulo anterior buscou-se mostrar como, a partir da segunda metade da dcada de 1920, o Vale do Anhangaba deixou de ser o lugar de representao da capital do caf e passou a ostentar os smbolos da metrpole industrial. Esse processo transformou o espao do vale em um local de passagem, incorporando os novos instrumentos de urbani- zao da cidade: a avenida e o arranha-cu. A supremacia do rodoviarismo como modelo de estruturao e o acelerado ritmo de expanso econmica e populacional experimenta- dos, levariam rapidamente a um esgotamento da malha instalada, provocando colossais congestionamentos e srios problemas ligados inecincia operacional do sistema virio. A organizao dos sistemas de transportes, seguindo a lgica radial, havia transformado a regio central em um grande n articulador de transbordo e passagem de pedestres. O pis, sob o regime militar, vivia o chamado milagre econmico. A administra- o municipal tinha seu foco voltado para a resoluo dos problemas do automvel na cidade. Baseado nas premissas do PUB, o Departamento de Planejamento dos Sistemas de Transportes publicava, em 1973, o plano de Vias Expressas. Neste plano estava esboada um malha futura de vias expressas abarcando toda a extenso da cidade e um plano qinqenal a ser executado ainda pela gesto do ento prefeito Jos Carlos de Figueiredo Ferraz. O Anhangaba se transformara num ponto de conuncia tanto de automveis quan- to de pedestres, que ali se convertiam em mortais inimigos. Acidentes, atropelamentos e confuses passaram a ser eventos cotidianos. Atravessar o vale a p, a partir do nal dos anos sessenta e anos setenta, havia se tornado mais difcil do que antes da inaugurao do primeiro Viaduto do Ch. O vale representava o cenrio desse conito. Evidentemente problemas dessa ordem no eram exclusividades paulistanas. As ques- tes levantadas pela massicao do uso do automvel particular eram debatidas em todas as grandes cidades do mundo. Muitas teorias seriam formuladas nesse contexto. Algumas foram reetidas em propostas locais. Uma breve apresentao desse momento se faz neces- sria para melhor compreender algumas das idias formuladas para o Anhangaba durante esse perodo. 226 227 O VALE COMO CONFLITO Fig.246 Esquema com quadrcula de vias expressas sobreposta malha viria da cidade. [SO PAULO (Cidade) Prefeitura. Plano Urbanstico Bsico de So Paulo / Relatrio Sinttico. So Paulo, 1969.] Fig.247 Desenvolvimento do esquema anterior transformado em plano de um sistema de vias expressas. [SO PAULO (Cidade) Departa- mento de Planejamento dos Siste- mas de Transporte. Vias Expressas. So Paulo, 1973.] Figs.248 e 249 O Anhanangaba nos anos 70. A travessia de pedestres havia se tornado um grave problema. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981] Fig.250 Os calades surgiram para tentar amenizar o conito entre pedes- tres e automveis nas ruas da rea central. [SO PAULO (Cidade) Prefeitura. So Paulo, a cidade, o habitante, a administrao:1975-1979. So Paulo, 1979 (Relatrio das ativida- des desenvolvidas pela prefeitura de So Paulo durante a gesto do prefeito Olavo Egydio Setbal).] Figs.251 e 252 Fotograas do calado da Rua Baro de Itapetininga. [SO PAULO (Cidade) Prefeitura, 1979.] 228 229 O VALE COMO CONFLITO Os anos 50 e 60 na Europa Um relato representativo da evoluo do discurso do urbanismo durante a primeira metade do sc. XX pode ser construdo atravs da leitura dos documentos produzidos pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAM. Do primeiro congresso rea- lizado em 1928 no castelo de La Sarraz, ao dcimo e ltimo, sediado em Dubrovnik no ano de 1956, diferentes grupos e idias se sucederam na liderana desses encontros. A classicao feita por Keneth Frampton, aceita por diversos autores, divide os CIAM em trs fases: a primeira abarca os trs encontros iniciais e foi liderada pelo grupo de arqui- tetos germnicos ligados nova objetividade (neue sachlichkeit), entre os quais se desta- cavam as guras de Ernst May e num segundo momento a de Walter Gropius. Politizados e radicais, a nfase durantes esses encontros incidiu fundamentalmente sobre a habitao e questes como a padronizao, a pr-fabricao, a unidade mnima e o uso racional do solo urbano. A segunda fase abrange os encontros seguintes, em 1933 e 1937, at sua interrupo pela guerra. Durante este perodo a gura dominante foi a de Le Corbusier com Josep Lluis Sert em segundo plano. O grande tema abordado nesta fase foi o da cidade funcional. O relatrio nal do congresso de 1933 tornar-se-ia conhecido como a Carta de Atenas. No perodo ps-guerra dos CIAM, a partir do VI encontro em 1947, o liberalismo po- ltico predominante na Europa viria a se impor tambm nos congressos e uma pluralidade de idias marcaria o incio de um perodo conituoso que levaria extino dos encontros aps sua dcima edio em 1956. Durante os primeiros anos de reconstruo das cidades europias arrasadas pela guer- ra, a Carta de Atenas serviu como guia de diretrizes sendo aplicada extensivamente. Os problemas gerados pelo esquematismo e pelo universalismo abstrato, encontrados nesse documento, levaram a um debate, explicitado no nono CIAM cujo tema era habitat, onde foram introduzidos pelas novas geraes de arquitetos termos como identidade, comuni- dade e pertencimento (belonging). Ao invs de usos e zonas, a cidade passou a ser discutida atravs de conceitos como estruturao, crescimento e formas de associao. Fig.253 Diagrama da complexidade das escalas de associao. Nas extre- midades, assentamentos rurais; no centro, grandes aglomeraes urbanas. [SMITHSON, Peter e Alison. Urban Sructuring: studies of Alison and Peter Smithson. Londres: Stu- dio Vista, 1967.] Figs.254 e 256 Fotograas de Nigel Henderson utilizadas pelo arquitetos do Team X como exemplo de apropriao espontnea dos espaos pblicos e ruas das cidades. [SMITHSON, 1967.] Fig.255 Croquis de um modo de estrutura- o urbana baseado na disposio de uma rede de edifcios interliga- dos congurando ruas areas para pedestres e liberando o solo para o lazer e a circulao de veculos. [SMITHSON, 1967.] 230 231 O VALE COMO CONFLITO O grupo dos jovens identicava na cidade funcional uma concepo abstrata pouco condizente com as necessidades humanas essenciais e cujas aplicaes j haviam se mostrado insatisfatrias para os resultados funcionais preconizados por seus idealiza- dores. Em primeiro lugar, eles consideravam a concepo da cidade por funes discri- minadas pobre e insuciente para o tratamento da questo urbanstica na sua comple- xidade inerente. O modelo da Ville radieuse, proposto por Le Corbusier, mostrava-se abstrato no apenas por desconsiderar os habitantes dos espaos em sua dimenso individual e nas suas necessidades de expresso, mas tambm por fazer da cidade um objeto calculado a partir de uma equao analtica que anulava por completo as inter- relaes humanas criadas no processo de apropriao dos espaos. 1 O grupo formado para a organizao do dcimo e ltimo congresso aglutinava os prin- cipais nomes da gerao de arquitetos que defendiam essa evoluo conceitual. Incluindo, entre outros nomes, os britnicos Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003), os holandeses Aldo van Eyck (1918-1998) e Jacob Bakema (1914-1981), o italiano Giancarlo de Carlo (1919-2005) e o sueco-britnico Ralph Erskine (1914-2005), esse grupo caria conhecido como o Team X. importante destacar que a posio desse grupo no de rompimento em relao ao movimento moderno e sim de continuidade. Segundo Montaner, Para los miembros del Team 10, continuar con el proyecto de la arquitectura moderna signica dar un giro a las pretensiones universalistas y propositivas de los CIAM. Se trata de seguir en esta voluntad de proximidad al mundo de la ciencia, la tecnologa y la produccin, pero no deniendo grandes teoras o proyectando prototipos, sino imi- tando el mtodo experimental y cientco que va analizando caso por caso. 2 Das propostas elaboradas pelos integrantes desse grupo, interessam aqui particular- mente as do casal Smithson, pelas relaes que podem se estabelecer com alguns dos proje- tos que sero abordados adiante. 1 BARONE,Ana Claudia Castilho. Team 10 arquitetura como crtica. So Paulo: FAUUSP, 2000 (Dissertao de Mestrado) p.51. 2 MONTANER, Josep Maria. Despus del movimiento moderno: arquitectura de la segunda mitad del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1993. p. 31. Fig.257 Corte e planta do centro comercial e de servios de Cumbernald New Town, projetado sob a direo L. Hugh Wilson a partir de 1956. Uma gigantesca construo multi- funcional agrega comrcio, servios e habitao sobre reas de estacio- namento e a rodovia de acesso. [GALANTAY, Ervin Y. Nuevas ciudades. De la antigedad a nues- tros das. Barcelona: Gustavo Gili, 1977.] Fig.258 Centro urbano de Vallingby New Town, Sucia, projetado e constru- do durante a primeira metade da dcada de 1950. Uma grande plataforma cobre a estao de trem, vias de acesso e estacionamentos criando um nvel exclusivo para pedestres que con- centra as atividades comerciais e de servios. [GALANTAY, 1977.] Fig.259 Vista area do conjunto habitacio- nal Park Hill, em Shefeld. Lynn e Smith, 1959-61. [BANHAM, Reyner. The New Bru- talism: ethic or aesthetic?. Londres: Architectural Press, 1966.] 232 233 O VALE COMO CONFLITO Foi principalmente atravs da participao em concursos pblicos que os Smithson puderam expressar suas propostas para problemas como a habitao e a recuperao de centros urbanos. O projeto apresentado em 1958 ao concurso para reformulao da rea central de Berlin (Berlin-Haupstadt) ilustra de maneira exemplar as propostas para a cidade defendidas por esses arquitetos. Uma rede ou uma teia de construes de dois pavimentos, sobreposta malha urbana existente, conguraria um novo circuito para os pedestres, iso- lado do trfego de automveis, e abrigaria no pavimento intermedirio estabelecimentos comerciais, servios e estacionamentos. Vazios e escadas rolantes fariam a conexo entre os nveis, que nunca perderiam o contato visual entre si. Novos edifcios se ligariam a essas estruturas estabelecendo pontos de acesso nos diversos nveis. Note-se que no se trata de uma megaestrutura. O que estava proposto era um sistema aberto que no eliminaria a cidade antiga nem centralizaria todas as funes urbanas. A es- sncia da proposta era multiplicar os trreos da cidade possibilitando a separao de uxos e otimizando os sistemas de mobilidade, motorizados ou no. A presena do automvel no era encarada de modo negativo, pelo contrrio. O automvel particular e os sistemas de transporte de massa so vistos como agentes liberadores. O que buscavam era a expresso arquitetnica dessa situao. O fracasso do chamado urbanismo funcionalista, estruturado sobre a carta de Atenas, como resposta aos problemas da reconstruo e s demandas urbanas da Europa durante o ps-guerra, deve ter despertado uma espcie de frustrao compartilhada por boa parte da gerao de jovens arquitetos que surgia a partir da segunda metade dos anos 50 nos pases centrais do continente, destacadamente Frana e Inglaterra. Em oposio rigidez e ao mpeto de controle, presentes nas experincias anteriores, comearam a ser elaborados planos urbanos baseados na exibilidade, mutabilidade, mo- bilidade exacerbada e na indenio de usos. Nomes como Yona Friedman (1923-) 3 , Cedric Price (1934-2003) e Archigram, produziram imagens impactantes e instigantes, que foram divulgadas mundo afora. 3 Friedman publica em 1959 seu manifesto LArchitecture mobile: vers une cite congue par ses habitants. As ilustraes apresentavam imensas estruturas elevadas pairando sobre a cidade antiga dentro das quais as novas vias expressas e os novos programas das cidades iriam sendo alocados e re-alocados permanentemente. Cedric price prope um grande edifcio mutante destinado diverso e ao entretenimento: o Fun Palace ,em 1961. Archigram divulga nos primeiros anos da dcada de 60 suas Instant cities, Plug-in cities e Walking cities. Figs.260, 261 e 262 Desenhos do projeto apresentado por Alison e Peter Smithson e Sigmond para o concurso Berlin- Haupstadt, 1958. Um edifcio malha era super- posto cidade antiga segregando pedestres de automveis e criando novos nveis de vida urbana co- letiva. [SMITHSON, 1967.] 234 235 O VALE COMO CONFLITO Carregadas de ironia, romantismo e uma rme crena nas possibilidades tecnolgicas, nenhuma dessas idias foi executada. No entanto, sua repercusso, somada de outras pro- postas que veremos adiante, ajudou a congurar um conceito que foi amplamente experi- mentado em diversos pases: as megaestruturas. Fig.263 Desenho de Yona Friedman que ilustrava o manifesto Larchitecture Mobile, de 1957. [OCKMAN, Joan (org.). Archi- tecture Culture:1943-1968. A Do- cumentary Anthology. New York: Rizzoli, 1993.] Fig.264 Cedric Price, Fun Palace, 1960-61. Uma superestrutura dinmica em constante transformao abrigaria programas de entretenimento e diverso. [www.interactivearchitecture. org/fun-palace-cedric-price.html (Mai/2006)] Fig.265 Yona Friedman. Proposta para a expanso de Paris, 1963. [COOK, Peter. Architecture: Action and Plan. Nova Iorque: Reinhold, 1967.] Fig.266 Walking City on the ocean, Ron Herron (Archigram), 1966. [COOK, 1967] 236 237 O VALE COMO CONFLITO O Metr no vale: estaes So Bento e Anhangaba Do ponto de vista simblico o Plano de Avenidas poderia ser eleito como o marco fundacional de uma poltica rodoviarista de estruturao da cidade que se armou e que perdura at os dias de hoje. O Programa de melhoramentos pblicos para a cidade de So Paulo, mais conhecido como Relatrio Moses 4 , elaborado em 1950 e at mesmo o Anteprojeto 5 elaborado pelo prprio Prestes Maia em 1956 foram impulsos adicionais nesse mesmo sentido. Isto adiou at o limite do insustentvel a implantao de um sistema metropolitano (Metr) na cidade. J em 1930, o Plano era uma resposta direta ao Projeto Light, de 1927,de um sistema de transposte coletivo sobre trilhos. Aps diversas tentativas frustradas, apenas em 1966 foi dado o primeiro passo concreto na direo da criao desse sistema. Nesse ano formou-se o Grupo Executivo Metropolitano, que organizou uma licitao internacional vencida pelo consrcio HMD 6 . Em 1968 o grupo apresentou sua proposta para a rede bsica e foi fundada a Companhia do Metropolitano de So Paulo 7 . A primeira linha a ser implantada foi a Norte-Sul, Azul, de Santana a Jabaquara, da qual faz parte a Estao So Bento. Sua operao comercial, com a linha completa, teve incio em setembro de 1975. A construo da linha Leste-Oeste, Vermelha, iniciou-se em maro de 1975 e a Estao Anhangaba foi inaugurada em novembro de 1983. O modo como essas duas estaes foram implantadas, as relaes com a cidade que estabeleceram e seu impacto sobre o recinto do vale o que se pretende comentar a seguir. A expectativa criada em relao to aguardada linha do Metr era muito grande. A previso da construo junto ao Anhangaba, da Estao So Bento, representava a possi- bilidade de reestruturar toda a circulao de pedestres na rea, motivando projetos mais abrangentes como os que sero vistos adiante. Associar as novas instalaes do Metr a outras infra-estruturas de transporte e circulao e atividades urbanas diversicadas, era uma premissa interessante que contava com exemplos bem sucedidos em diversas parte do mundo, no entanto muito pouco foi feito nesse sentido. Pautado por decises setoriais e 4 O coordenador do trabalho foi o engenheiro e advogado Robert Moses, gura de destaque no urbanismo da cidade de Nova Iorque durante os anos 1930 a 1960. 5 Anteprojeto de um sistema de transporte rpido metropolitano. Ver pgina XXX. 6 Hochtief, Montreal e Deconsult. 7 MUNIZ, Cristiane. A Cidade e os Trilhos: o Metr de So Paulo como desenho urbano. So Paulo: FAUUSP, 2005 (Dissertao de Mestrado). p.143. Fig.267 Corte perspectivado do projeto original da Estao So Bento do Metr, com a torre de escritrios junto avenida. [HMD, 1969. p.223.] 238 239 O VALE COMO CONFLITO isoladas, o processo de construo dessas estaes no conseguiu responder plenamente s posssibilidades de qualicao urbana que o vale oferecia. Acanhadas, nenhuma delas con- seguiu assumir o papel de porta do Anhangaba, como se imaginava anteriormente. A Estao So Bento poderia ter criado ligaes horizontais e verticais mais francas entre as duas vrzeas que delimitam a Colina Histrica e entre os nveis da cidade. A verso original do projeto previa o prolongamento do corpo da estao at o alinhamento da ave- nida e a construo de uma torre de escritrios e servios junto ao vale. O projeto denitivo priorizou a relao entre a estao e o Largo de So Bento e a ligao com o Anhangaba assumiu um papel secundrio. A articulao vertical pblica entre o vale e o largo confusa e burocrtica, atravs de uma sucesso de rampas e patamares que no chegam a congurar um percurso. Na construo da estao Anhangaba a grande chance perdida foi a de criar uma li- gao pblica, com desenho e escala adequados, entre a Praa da Bandeira a estao e os dois lados do vale, apesar dos diversos estudos e projetos que caminhavam nesse sentido. O estabelecimento dessa conexo teria evitado a profuso desastrosa de passarelas que tomou conta do espao areo daquele setor do Anhangaba. O exemplo dessas estaes revela a necessidade que se impe de organizar de modo articulado o trabalho dos agentes pblicos de planejamento e construo da cidade, sob a pena de continuar desperdiando preciosas oportunidades de qualicao do seu to mal- tratado espao urbano. Fig.268 Corte longitudinal do projeto da Estao Anhangaba do Metr. [SO PAULO (Cidade) Compa- nhia do Metropolitano de So Paulo. Leste-Oeste: em busca de uma soluo integrada. So Paulo, 1979.] 240 Fig.269 Estao So Bento logo aps sua inaugurao. [SO PAULO (Cidade) Prefeitura, 1979.] Figs.270, 271 e 272 Perspectivas do projeto original da Estao So Bento do Metr. [HMD, 1969. p.223 e 224.] 241 O VALE COMO CONFLITO 242 243 O VALE COMO CONFLITO Figs.273, 274 e 275 Plantas do projeto original da Estao So Bento do Metr. Nvel Largo Superior; Nvel Largo Inferior; Nvel Av. Anhangaba. [HMD, 1969. p.220 e 221.] 244 Figs.276, 277 Desenhos do estudo preliminar da Estao Anhangaba. [HMD, 1969. p.154.] Fig.278 Plantas do projeto da Estao Anhangaba. Nvel Av. Anhangaba; Nvel passa- gem inferior. [SO PAULO (Cidade) Compa- nhia do Metropolitano de So Paulo, 1979.] 245 O VALE COMO CONFLITO 246 Figs.279, 280 e 281 Plantas e corte longitudinal do projeto denitivo da Estao Anhangaba. [Biblioteca FAUUSP] 247 O VALE COMO CONFLITO 248 Fig.282 Perspectiva da proposta a partir da Praa da Bandeira. [REIS FILHO, Nestor Goulart. Me- gaestrutura: soluo para o Anhan- gaba. So Paulo: Pini, 1972.] 249 O VALE COMO CONFLITO A megaestrutura de Nestor Goulart Reis Filho [1972] Megaestrutura: Soluo para o Anhangaba. Sob esse ttulo foi apresentado em 1972 um projeto, sob a coordenao do arquiteto Nestor Goulart Reis Filho, que prometia ser a soluo dos problemas para o Vale do Anhangaba. Oferecia-se o seguinte cenrio: um advogado chega cidade e estaciona seu carro num dos vrios andares de estacionamento da megaestrutura. Sobe pelas escadas rolantes at o terrao, no nvel da Rua Lbero Badar, onde compra um jornal e toma um caf. Caminha por uma esplanada orida onde pessoas passeiam seus cachorros e mes levam suas crian- as ao playground. Volta para almoar com seus amigos em um dos restaurantes e aproveita para comprar uma gravata nova, um livro e um par de meias para a esposa. Desconta um cheque, janta, vai ao teatro e muito mais. Tudo isso dentro da megaestrutura. O projeto se constitua de um edifcio multifuncional de diversos pavimentos que, ao preencher o recinto do vale desde a Praa da Bandeira at a Av. Senador Queirs, criaria uma esplanada contnua no nvel do Viaduto do Ch. Seu interior abrigaria linhas de Metr, vias expressas para automveis, estacionamentos, estabelecimentos comerciais e de servios, equipamentos pblicos e etc. A laje de cobertura conguraria um espao devolvido ao pe- destre (...), um terrao verdejante onde poderiam ser construdos jardins (...). 8 Boa parte da argumentao de defesa desse projeto se baseia na exaltao da megaes- trutura. (o arquiteto) defende uma tese de que as megaestruturas devem ser empregadas em So Paulo, como, alis, esto sendo empregadas em vrias partes do mundo. 9 Hoje poderamos encarar este projeto como um devaneio ingnuo e datado. A argu- mentao em sua defesa era frgil e deslumbrada, a ponto de no alcanar qualquer trans- cendncia mesmo no momento de sua proposio. Apesar disso, este projeto permite abor- dar uma discusso interessante envolvendo o contexto que levou o arquiteto, ento diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, a sustent-lo. 8 REIS FILHO, Nestor Goulart. Megaestrutura: soluo para o Anhangaba. So Paulo: Pini, 1972. 9 REIS FILHO, 1972 250 251 O VALE COMO CONFLITO Um dos principais pontos da argumentao reside na conabilidade do conceito de megaestrutura, empregado em vrias partes do mundo. Embora verdadeira, a armao bastante anacrnica j que, nos incio dos anos 70, essas idias encontravam-se em franco declnio. O termo megaestrutura foi utilizado formalmente pela primeira vez em 1964 por Fumihiko Maki (1928-), para classicar alguns projetos que vinham sendo elaborados por arquitetos de vrias partes do mundo, com maior nfase no Japo, na Europa e nos Estados Unidos. Reyner Banham, em seu livro Megaestruturas: Futuro urbano do passado recente aponta o ano de 1964 como o mega-ano, devido consolidao formal desse conceito atravs de textos e publicaes ao redor do planeta. Os ensaios projetuais que levaram criao desse termo comearam a ganhar cor- po durante a dcada de 50 atravs de projetos para centros administrativos (Louis Kahn em Filadla, 1952), universidades (os Smithson em Shefeld, 1953), grandes centros co- merciais (Victor Gruen em Fort Worth, 1956) e cidades novas (Vllingby, Sucia, 1954 / Cumbernauld, Esccia,1960). Arquitetos japoneses, os chamados metabolistas, deram tambm sua parcela de con- tribuio atravs de nomes como Kisho Kurokawa (1934-), Arata Isozaki (1931-) e Kenzo Tange (1913-2005), do qual se destaca o plano para a Baa de Tkio. O sucesso dessas idias no meio arquitetnico provocou, durante os primeiros anos da dcada de 60, uma profuso indiscriminada de projetos de megaestruturas em todo o mundo. Destas, algumas foram construdas. Talvez a mais celebrada tenha sido a do centro urbano de Cumbernauld New Town, Esccia, projetada por L. Hugh Wilson e Geoffrey Copcutt em 1960 e inaugurada em 1967. No incio dos anos 70 esse iderio, tal como vinha sendo formulado, encontrava-se em franca decadncia. O fracasso de Thamesmead New Town, projetado pelo Greater London Council a partir de 1967 foi, segundo Banham, a denitiva lpide sepulcral do institucionaliza- do conceito de megaestrutura. 10 No se pretende aqui reconstituir com detalhes a histria do movimento megaestrutu- ralista e sim mostrar como essas discusses se encaminhavam no incio dos anos 70. 10 BANHAM, R.. Megaestructuras. Futuro urbano del pasado reciente. Barcelona, Gustavo Gili, 1978. Figs.283 e 284 Corte transversal Ch e corte trans- versal Largo de So Bento. [REIS FILHO, 1972.] 252 Fig.285 Perspectiva da praa criada no nvel dos viadutos. [Folha de So Paulo, domingo 28 de outubro de 1973] Figs.286 e 287 Exemplos de Megaestruturas utili- zados para justicar a proposta. [REIS FILHO, 1972.] 253 O VALE COMO CONFLITO A proposta de Nestor Goulart demonstra um deslumbramento tardio pela megaes- trutura mesmo aps a experincia fracassada na vizinha Praa Roosevelt. Sua justicativa para o insucesso desta foi a falta de arejamento de uma estrutura asxiante, ou seja, um problema de desenho. Segundo Regina M. P. Meyer, o erro fundamental no projeto da Roosevelt residia na tentativa de dotar um corpo vazio - uma megaestrutura de 30.000 m - de qualidades urbanas, quando sua funo primordial e essencial era na verdade encobrir as pistas subterrneas e garantir o livre uxo dos veculos que atravessam o centro. 11
Nestor Goulart cometia o mesmo erro. Alguns anos depois, em entrevista dada Folha de So Paulo publicada em 20 de novembro de 1980, o autor declarou que sua proposta tinha originalmente dois objetivos: Estabelecer um critrio de conjunto para o Anhangaba, e abrir uma possibilidade de conciliar o Metr com o Centro da cidade, permitindo sua passagem pelo Vale. Sobre a pertinncia do pro- jeto naquele momento, revelou: Se a megaestrutura fosse proposta agora, trabalharia contra. 11 Revista Urbs n 14, Set-Out/99. MEYER, Regina M. Prosperi. A Construo da Metrpole e a Eroso do seu Centro. 254 255 O VALE COMO CONFLITO O Anhangaba de Artigas 11 [1974] No incio de 1974 Joo Batista Vilanova Artigas (1915-1985) contratado pela Prefeitura Municipal de So Paulo, atravs da EMURB/COGEP, para elaborar um plano de reorganiza- o do Vale do Anhangaba. O escopo da encomenda se restringia, sicamente, ao trecho do vale localizado entre a Praa da Bandeira e o Viaduto Sta. Egnia. Do ponto de vista fun- cional a solicitao trazia como principais problemas a resoluo do conito entre pedestres e automveis e a organizao da operao do transporte pblico (nibus). possvel que a inteno original da EMURB fosse contratar apenas o projeto de al- gumas passarelas, equipamentos para os quais o arquiteto j havia desenvolvido um certo mtodo construtivo baseado em experincias com a prpria EMURB. Na verdade, o projeto do Anhangaba resultou de uma encomenda de passarela, que se modicou em proposta para reordenao da via junto ao crrego e ocupao de um grande eixo virio, unindo as Marginais do Tiet e do Pinheiros, ao mesmo tempo em que trabalhou uma srie de passarelas como se fossem esculturas urbanas. 12 Entre 1972 e 1973 Artigas projetou para o municpio oito passarelas urbanas, das quais seis foram construdas. Projetei muitas passarelas. Lembro que, uma das primeiras, cuja instalao acompa- nhei, na Av. 23 de Maio, fez a calada ruir assim que foi instalada. Depois disso, nosso escritrio desenvolveu um bom know-how e as que projetamos hoje, so montadas sobre os pilares em menos de uma hora. Passarelas so obras modestas. Mas, alm de salvarem vidas, so muito bonitas; visi- tei outros pases e acho que em matria de passarelas para pedestres, s as dos EUA podem ser comparadas com as nossas. No precisamos da tecnologia japonesa que nos presenteou com a passarela da Praa Joo Mendes. H outras, no entanto, muito bonitas, como a que est em frente ao DETRAN na Av. Rubem Berta. Mas, infelizmente 11 A equipe do projeto era complementada pelos seguintes prossionais: Abraho Sanovicz, Marlene Yurgel, Harue Yamashita, Eduardo Rodrigues(arquitetos), Fernando Gonalves (eng. trfego), Bramante Buffoni, Cristiano Marcaro e Sigfrido Ruiz (comunicao), Cleber Machado, Ernesto Walter, Francisco Wahasugui, Luis Carlos Pessoa e Oswaldo Natrieli (estagirios). 12 KATINSKI, Julio Roberto. Trecho do texto Vilanova Artigas: inveno de uma arquitetura, presente no catlogo da exposio Vilanova Artigas realizada no Intituto Tomie Ohtake em 2003. p. 72. Fig.288 Esboo inicial de Artigas que revela a abrangncia de sua abordagem. [BUCCI, 1998. ilustrao 28.] Fig.289 Planta geral da proposta (primeira estapa). [ARTIGAS, Joo Batista Vilanova. Parque Anhangaba. So Paulo: PMSP, 1974.] Fig.290 Diagrama de Artigas onde se desta- ca a importncia do Permetro de Irradiao para amenizar o uxo de passagem pelo Anhangaba. [BUCCI, 1998. ilustrao 30.] 256 Figs.291 e 292 Perspectivas gerais com as pro- postas para o vale. Destacam-se os dois novos terminais e o sistema de passarelas. [ARTIGAS, 1974.] 257 O VALE COMO CONFLITO nem todas as passarelas so bonitas e funcionais. Aquela, ao lado do Viaduto do Ch, eu considero imoral. 13 No ano de 1974 Artigas continuou elaborando projetos para passarelas. Projetou outras sete: trs para a Prefeitura Municipal de Santo Andr (construdas), trs sobre a Rodovia dos Imigrantes (no construdas) e uma para a EMURB (no construda). At o nal de sua carreira ainda projetaria ao menos outras trs. A questo central que o conjunto das passarelas de Artigas assume um carter ex- perimental, uma espcie de ensaio. A cada nova passarela, so desenvolvidas novas solues construtivas de ordem puramente tcnica , ou espaciais de acordo com a especicidade de cada local onde so implantadas. Em todas elas, a estrutura metlica, plana ou levemente curva, simplesmente apoia- da em estruturas de concreto armado, com os mais variados desenhos. Os pontos de apoio, tema recorrente em toda a obra de Artigas, passam agora a ter uma outra fun- o: assumem o papel de rampas ou de escadas. 14 Artigas sabia que naquele momento a solicitao municipal vinha movida por um ca- rter imediatista e contraditrio, sob a presso da opinio pblica em relao aos cons- tantes acidentes e atropelamentos. Para ele era claro que os problemas fundamentais do Anhangaba no seriam resolvidos dentro dos limites impostos. Segundo o arquiteto, O Vale do Anhangaba o centro monumental da cidade de So Paulo, a avenida de en- trada e travessia da URBS. (...) Desde o comeo do sculo, o vale precisou ser atravessado, ultrapassado e, muito mais tarde, franqueado ao uso que hoje oferece como avenida de grande porte. (...) O primeiro Viaduto do Ch, o de Jules Martin, data de 1892 e teria sido construdo, como se disse, guisa de vlvula de segurana para o congestionamento do tringulo. Na verdade estamos versando h cem anos (...) os mesmos problemas, as mes- mas questes, se bem que em escala diferente: atravessar o vale, e urbanizar a calha. 15 13 ARTIGAS, J. B. Vilanova. Vilanova Artigas: arquitetos brasileiros. So Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, Fundao Vilanova Artigas, 1997. p. 177. 14 IWAMIZU, Csar Shundi. As passarelas urbanas projetadas por Artigas no incio da dcada de 70. Trabalho para disciplina, FAUUSP, 2005. 15 Trecho do texto que acompanha a publicao do projeto na edio de julho de 1975 da revista Mdulo, p.36. 258 Fig.293 Trecho entre a Ponte Cidade Jardim (Rio Pinheiros) e a Avenida So Gabriel. Em cinza claro foram destacadas as intervenes propostas. [ARTIGAS, 1974.] Fig.294 Trecho entre a Avenida So Ga- briel e o Parque Siqueira Campos. Em cinza claro foram destacadas as intervenes propostas. [ARTIGAS, 1974.] 259 O VALE COMO CONFLITO Como primeira ao de projeto, Artigas tenta ampliar a abrangncia territorial da en- comenda expandindo para norte e para sul a extenso do eixo estudado, alcanando os rios Tiet e Pinheiros. Para isso justica: A calha esticou-se para o sul quando no m da dcada de trinta furou as nascentes do Anhangaba. (...) Acontece que os temas de travessia devem integrar-se com os de urbanizao do vale. E o vale esticou, como vimos procurando provar; e tanto que a nosso ver deveria ser avalizado um estudo urbanstico com o flego que a realidade atual de So Paulo exige, considerando tambm o trecho Viaduto de Santa Egnia Ponte Grande. 16 Com esta abordagem Artigas objetivava superar a contradio parque/estar/local-ave- nida/passagem/metropolitano, presente nas propostas de Prestes Maia que haviam congu- rado aquele recinto. No fundo, atravs desse ponto de vista essas caractersticas no seriam contraditrias e sim complementares. O desenho proposto deveria assumir simultaneamen- te todos esses aspectos realizando sua conciliao e sua sntese. Objetivamente, as propostas elaboradas durante a etapa inicial do projeto concentram- se fundamentalmente sobre trs aspectos da circulao na cidade: para o automvel, a congurao de uma via arterial expressa que cruzaria a cidade de rio a rio sem paradas e o aperfeioamento da rtula. para o nibus, um novo sistema de funcionamento com a criao de duas grandes estaes: a estao sul-norte, na Praa da Bandeira e a estao norte-sul, no vazio cons- titudo pela Praa Pedro Lessa e pela demolio de um conjunto de edifcios prximos a ela. para o pedestre, a criao de um circuito de marcha a p exclusivo, formado pela conexo, por meio de passarelas, das vias laterais junto s encostas. Ainda em relao aos pedestres, Artigas incorporaria em sua proposta o projeto da Galeria de Pedestres elaborado pela COGEP tendo como consultor o arquiteto Benno Perelmutter e apre- sentado no incio de 1974. A projeo dessa galeria subterrnea aparece indicada em sua 16 Ibidem, p.38 260 Fig.295 Trecho entre o Parque Siqueira Campos - Tnel Nove de Julho e Viaduto 14 Bis. Em cinza claro foram destacadas as intervenes propostas. [ARTIGAS, 1974.] Fig.296 Trecho entre a Estao da Luz e a Ponte Grande (Rio Tiet). Em cinza claro foram destacadas as intervenes propostas. [ARTIGAS, 1974.] 261 O VALE COMO CONFLITO planta do Trecho entre o viaduto 14 bis, Vale do Anhangaba e a Estao da Luz. Pretende-se, a seguir, realizar uma anlise pormenorizada das propostas da primeira etapa do trabalho buscando extrair dos poucos registros grcos disponveis o mximo de informaes. Isto porque a escassez de documentos tem gerado freqentemente leituras superciais ou demasiadamente subjetivas deste projeto. A posterior reduo da abrangncia do estudo determinada pela EMURB, aps a con- cluso da etapa inicial, e o conseqente abandono de boa parte das propostas esboadas, torna ainda mais relevante esse levantamento. Propostas para o automvel Os croquis iniciais de Vilanova Artigas apresentados por Bucci 17 (1998) revelam preci- samente sua interpretao da abrangncia da calha do Anhangaba. A avenida instalada no fundo do vale s poderia ser compreendida como parte integrante do Sistema Y ao qual pertencia, num eixo que se estendia do Rio Pinheiros at o Tiet. Alinhado com os projetos municipais daquela poca, como o PUB, o PMI e o plano de vias expressas da Secretaria de Transportes publicado em 1973 18 , Artigas prope transfor- mar o eixo em uma via arterial expressa atravs da construo de algumas obras de arte para a disciplina do trnsito. 19 As plantas gerais, impressas em publicao do estudo pela revista Mdulo, eram acompanhadas pelas seguintes legendas: Desenho Urbano: Eliminao de pontos de conito atravs de dispositivos que per- mitam uxo contnuo. Sistema Virio: Separar o trfego de pedestres do sistema de trnsito de veculos. Eliminar converses esquerda, reticar o traado de vias. O que observamos nas plantas dos trechos ampliados so propostas de trevos, alas, pontes, viadutos, rebaixamentos e reticaes de vias em diversos pontos do eixo. As obras mais importantes em cada trecho so: 17 BUCCI, 1998. 18 O referido plano foi elaborado durante a gesto do prefeito J. C. de Figueiredo Ferraz. 19 Trecho do memorial descritivo que integrava a apresentao da primeira etapa de desenvolvimento do projeto. 262 Fig.297 Edio doTrecho entre o Viaduto 14 Bis e a Estao da Luz. Em preto foram destacadas as propostas para o automvel. [ARTIGAS, 1974.] 263 O VALE COMO CONFLITO 1 - Trecho entre a Ponte Cidade Jardim (Rio Pinheiros) e a Av. So Gabriel: a - criao de duas novas pontes sobre o Rio Pinheiros, uma no eixo da Rua Artur Ramos, outra no eixo da Avenida Pres. Juscelino Kubitschek b - abertura de trecho novo para reticao do eixo expresso entre a Rua Joo Cachoeira e a Ponte Cidade Jardim c - trevos de conexo nos cruzamentos da Av. Faria Lima com o eixo reticado e com a Av. Juscelino Kubitschek d - viaduto sobre a Av. Santo Amaro no eixo da Av. Juscelino Kubitschek 2 - Trecho entre a Avenida So Gabriel e o Parque Siqueira Campos: a - ala de converso rebaixada para acesso Av. So Gabriel b - rebaixamento das ruas Groenlndia, Estados Unidos e Lorena c - trevo de conexo no cruzamento com a Av. Brasil d - passarela sobre o eixo, junto Rua Jos Maria Lisboa 3 - Trecho entre o Parque Siqueira Campos, Tnel 9 de Julho e Viaduto 14 Bis: a - viaduto ligando as ruas Manoel Dutra e Herculano de Freitas, passando sobre o Viaduto Dr. Plnio de Queirz b - deslocamento da Rua Dr. Plnio Barreto para junto do elevado, ligando a praa exis- tente ao passeio 4 - Trecho entre o Viaduto 14 Bis, Vale do Anhangaba e a Estao da Luz: Neste setor logicamente se concentra o maior nmero de propostas. As propostas vi- rias neste trecho tm o objetivo maior de otimizar o funcionamento da rtula. Neste sistema a atual rtula desempenha papel muito importante no s para a disci- plina do Vale, cujo trnsito dever absorver como tambm para denir a marcha a p no centro da cidade, em redor do Parque. A rtula dever ser aperfeioada com meca- 264 Fig.298 Edio doTrecho entre o Viaduto 14 Bis e a Estao da Luz. Em preto foram destacadas as propostas para o pedestre. O arco esquerda a indicao da Galeria de Pedestres. [ARTIGAS, 1974.] 265 O VALE COMO CONFLITO nismos colocados ao seu redor de forma a permitir um uxo de trnsito sem semfo- ros ao mesmo tempo que garantam entradas e sadas estrategicamente distribudas. 20 Para isso so projetadas, nos cruzamentos da rtula com o eixo, as seguintes interven- es: a - no extremo sul, trs alas de ligao da Av. Nove de Julho com o viaduto de mesmo nome e a extenso da Rua Avanhandava interrompendo a lvaro de Carvalho b - no extremo norte, um conjunto de viadutos realizando a transposio da Av. Senador Queirs sobre a Av. Prestes Maia e a conexo com as ruas Csper Lbero, Brigadeiro Tobias, General Couto Magalhes e Av. Ipiranga. 5 - Trecho entre a Estao da Luz e a Ponte Grande (Rio Tiet): a - rebaixamento da Av. Tiradentes no cruzamento com as ruas Joo Teodoro e Ribeiro de Lima b - re-congurao da Praa da Luz com a implantao de duas passarelas c - implantao de quatro passarelas sobre a Av. Tiradentes eliminando assim semafo- rizao para pedestres d - rebaixamento da Rua Porto Seguro no cruzamento com a Av. Cruzeiro do Sul Propostas para o sistema de nibus Um das grandes diculdades do projeto era a organizao da operao das numero- sas linhas de nibus que transitavam neste setor da cidade. Sabendo que a soluo para o transbordo de passageiros deveria estar diretamente ligada soluo para a circulao de pedestres, Artigas props a criao de um circuito segregado de marcha a p arrematado em seus extremos norte e sul por duas grandes estaes. A Estao Bandeira seria implantada na praa de mesmo nome e abrigaria o transbordo dos veculos no sentido Sul-Norte. A Estao Pedro Lessa seria implantada sobre o vazio da praa homnima acrescida da rea criada com 20 Trecho do memorial descritivo que integrava a apresentao da primeira etapa de desenvolvimento do projeto. 266 267 O VALE COMO CONFLITO a demolio de parte dos edifcios localizados entre a Rua Capito Salomo e a Av. So Joo. Entre os edifcios que seriam demolidos estava o da agncia central dos Correios. Com esta disposio de estaes o trajeto proposto para as linhas seria sempre diame- tral. Os veculos passariam pelo centro ao realizar o percurso Norte-Sul, ou seu inverso, mas nunca teriam o centro como destino nal. Com esta estratgia seria possvel eliminar uma enorme quantidade de pontos e pequenos terminais espalhados pelas ruas, alm de concen- trar a espera e chegada de passageiros. Propostas para o pedestre (...) pareceu-nos necessrio reconquistar para o pedestre e s para ele, as vias laterais de trfego que esto nas encostas do Vale. Organizar dois largos passeios interligados por passarelas e associados a mobilirio de lazer a programar. 21 A partir da implantao das duas estaes descritas acima era proposto um sistema elevado em relao avenida, no nvel da Rua Formosa, para a circulao de pedestres. Este sistema, composto de passarelas-passeio paralelas ao eixo, ligadas por passarelas transver- sais, permitia o deslocamento de uma estao outra e realizava as conexes destas com as ruas existentes, ora em nvel, ora atravs de rampas e escadas. A boca inferior da Galeria Prestes Maia poderia ser acoplada ao sistema assim como pavimentos intermedirios de alguns edifcios existentes. No ca muito claro atravs dos desenhos disponveis, o que aconteceria sob esses pas- seios elevados. O que vemos nas perspectivas so trechos de jardins e alguns acessos de veculos. Outro elemento relacionado circulao de pedestres que encontramos nos desenhos de Artigas um projeto, elaborado no mesmo ano pela EMURB, que foi incorporado ao plano. O projeto se chamava Sistema de Galerias para Pedestres. No incio de 1974 a EMURB recebeu do consultor Benno Perelmutter o estudo prelimi- nar para a implantao de um sistema de tapetes rolantes subterrneos para o transporte em 21 Trecho do memorial descritivo que integrava a apresentao da primeira etapa de desenvolvimento do projeto. Fig.299 Perspectiva do sistema de marcha a p nas proximidades do Viaduto do Ch, em direo sul-norte. [MDULO, Jul/1975. ARTIGAS, Vilanova. Projeto de Reorganizao do Parque do Anhangaba e sua extenso pela via arterial norte-sul.] Fig.300 Edio de pormenor doTrecho entre o Viaduto 14 Bis e a Estao da Luz. Em preto foi destacado o sistema de marcha a p proposto para o vale entre os dois novos terminais de nibus. [ARTIGAS, 1974.] 268 269 O VALE COMO CONFLITO massa de pedestres na rea central de So Paulo. A proposta apresentada previa o aproveita- mento dos estrados inferiores dos viadutos Nove de Julho, Jacare e Dona Paulina, previstos inicialmente por Prestes Maia para abrigar o metropolitano. (...) o viaduto Dona Paulina, o viaduto Jacare e o Nove de Julho, dispem, agora, de considervel espao no seu segundo nvel. Se essas trs reas fossem interligadas e estendidas num extremo at a Praa Joo Men- des e Praa da S, e no outro at a Av. So Luiz e Praa da Repblica, poderia ser criada uma passagem para pedestres, semicircular, de um quilmetro de comprimento, com capacidade para comportar instalaes automticas para deslocamento de pedestres. A rea poderia receber ar condicionado, lojas, restaurantes e outras instalaes para o atendimento de pedestres, trazendo maior receita para o municpio e servindo melhor as reas em apreo. 22 O projeto foi amplamente divulgado e publicado atravs da imprensa e demais meios de comunicao. Depois de feito um estudo de viabilidade nanceira, foi abandonado. Alguns aspectos da primeira etapa do projeto A elaborao deste projeto ocorre em um momento muito particular na carreira de Vilanova Artigas e da histria recente do pas. O texto a seguir, da historiadora Rosa Camargo Artigas, faz um relato preciso desse perodo. A dcada de 70 inaugura-se com um projeto de desenvolvimento excludente e de ex- panso econmica que os militares chamaram de milagre brasileiro. O Estado investe em programas de obras pblicas com o objetivo de divulgar sua imagem e para saldar compromissos com os setores empresariais e da elite que o apoiara. Entre outras reas, a construo civil se expande e experimenta um dos perodos mais prsperos da his- tria recente. 22 SO PAULO (cidade). Coordenadoria Geral de Planejamento. Galeria de Pedestres. 1974. Fig.301 Perspectiva do vale a partir do Viaduto do Ch. Ao fundo o Via- duto Santa Egnia. Nas laterais aparecem as plataformas elevadas para pedestres. [MDULO, Jul/1975.] Fig.302 Ponto de vista de um pedestre du- rante o percurso ao longo do vale. [Folha de So Paulo, 16 de maio de 1974.] 270 Fig.303 Vista do modelo tridimensional da primeira etapa do projeto. Em primeiro plano o terminal sobre a Praa da Bandeira. [ARTIGAS, 1974.] 271 O VALE COMO CONFLITO (...) Artigas vive, nesse momento, uma situao bastante peculiar. Impedido de manter suas atividades como professor, dedica-se exclusivamente ao trabalho de prancheta. De um lado sofre perseguies e ameaas, de outro chamado para realizar importantes obras para o Estado. A exemplo do que ocorrera em 69, quando tem seus direitos cassa- dos pela mesma autoridade que o contratou para projetar o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhes Prado, ao longo dos anos 70 isso parece repetir-se com alguma freqncia. (...) Datam desse perodo muitos dos projetos de renovao urbana que, acompanhando os planos de desenvolvimento formulados nos rgos de planejamento estatais, procuram organizar o crescimento urbano possibilitado pelo crescimento econmico promovido pelo milagre. A maior parte desses projetos, no entanto, no foi executada em parte por conta da crise econmica que desmisticou denitivamente a aparncia de pro- gresso e, em parte, porque defender os interesses da cidadania no era prioridade no momento. 23 As anlises e observaes a respeito deste projeto devem sempre considerar a inuncia desse cenrio sobre os rumos das decises. O prprio Artigas relatou isso de uma maneira mais dramtica: Depois de cassado, vivi a dcada de 70 cercado pelo medo. Desse perodo s me lem- bro do medo. Terror que fez meus colegas calarem a boca na Universidade. 24 Em sua abordagem, Artigas mantinha, por um lado, uma postura coerente com as ini- ciativas municipais ao incorporar e assumir como premissas, alguns princpios encontrados no PUB e no plano de vias expressas de 1972, alm de projetos complementares como o da Galeria de Pedestres. Por outro lado, ao expandir os limites do que poderamos considerar como o recinto Anhangaba, Artigas realizava uma verdadeira inverso histrica. Os pla- 23 ARTIGAS, Rosa Camargo. Trecho do texto Encruzilhadas e caminhos: cinqenta anos de histria presente no catlogo da exposio A cidade uma casa. A casa uma cidade -Vilanova Artigas -Arquitecto realizada pela Casa da Cerca em colaborao com a Fundao Vilanova Artigas, em Almada, Portugal, entre novembro de 2000 e maro de 2001. 24 ARTIGAS, 1997. p. 33. 272 Fig.304 Vista do modelo tridimensional da segunda etapa do projeto. Em pri- meiro plano a Praa da Bandeira. [MDULO, Jul/75.] 273 O VALE COMO CONFLITO nos realizados at ento, abordavam o vale como um elemento isolado, anulando de partida a possibilidade de incorporao de sua dimenso metropolitana como recurso de desenho. O procedimento adotado tornava indissocivel a anlise do recinto, propriamente dito, e a da rede metropolitana ao qual pertencia. Com este gesto, que era indito apesar de sua aparente obviedade, Artigas abriu novos caminhos de investigao para a arquitetura e o urbanismo em So Paulo. Anos depois Artigas faria o seguinte comentrio a respeito desse projeto: O projeto de reurbanizao do Vale do Anhangaba mais que um conjunto de pas- sarelas. Ele prev a remodelao total do Vale. Tem, inclusive, o paisagismo do Burle Marx. Seria a transformao daquela barbaridade de pedestres com veculos que exis- te l. Um lugar que eu no posso atravessar, de carro ou a p, sem ser insultado: , seu velho idiota!. 25 Segunda etapa do projeto A apresentao da etapa inicial do plano no sensibilizou os tcnicos municipais e o es- copo do estudo foi novamente restringido ao trecho entre o Viaduto Sta. Egnia e a Praa da Bandeira. A proposta dos terminais teve de ser desvinculada da do sistema de marcha a p e foi basicamente sobre este ltimo elemento que se baseou o desenvolvimento da se- gunda fase do projeto. A riqueza de relaes espaciais, presente na primeira verso, perdeu-se por completo, reduzindo a proposta a um conjunto desarticulado de passarelas. A estao Pedro Lessa foi projetada preliminarmente como um eventual complemento ao conjunto. O paisagista Roberto Burle Marx foi adicionado equipe para realizar o dese- nho de pavimentao dos passeios. As passarelas foram detalhadas at o nvel de antepro- jeto executivo bsico, conforme consta nas pranchas, completando o conjunto de informa- es necessrias para a realizao da licitao da obra. 25 ARTIGAS, 1997. p. 177. 274 275 O VALE COMO CONFLITO O projeto nal, entregue prefeitura entre dezembro de 1974 e janeiro de 1975, conti- nha as seguintes propostas: A - Passarela Memria Esta passarela isolada alm de realizar a travessia sobre a Av. Nove de Julho, ligando a Rua Santo Antnio ao Metr Anhangaba e ao Largo da Memria, serviria como acesso para o futuro Terminal Bandeira de nibus, que no se encontra no desenho de implanta- o. Com 169 metros de comprimento e 10 metros de largura apresenta apoios centrais e vos entre pilares de 45 metros. Sua estrutura mista, com arranques e apoios em concreto armado e vos centrais em ao. B - Passarela Formosa A passarela Formosa, tambm isolada e tem 10 metros de largura por 80 metros de comprimento com dois apoios e vo central de 52 metros. O mtodo construtivo similar ao da passarela Memria e ao de diversas outras passarelas projetadas por Artigas para a mesma EMURB a partir de 1972. C - Passarelas Ramos de Azevedo / So Joo / Metr (So Bento) As trs passarelas sobre a avenida, que complementam o conjunto de transposies proposto neste projeto, se integram a outras duas longitudinais formando uma nica es- trutura. Para sua implantao seria necessria a demolio de boa parte das construes junto Avenida Prestes Maia localizadas entre o Largo de So Bento e a So Joo. Em re- lao aos edifcios existentes, as passarelas longitudinais cariam a distncias entre dois e sete metros. Esta espcie de plataforma elevada possibilitaria a multiplicidade de percursos e sua presena no vale se faria sentir de modo peculiar. Esse objeto ocuparia boa parte do vazio que caracteriza aquele recinto estabelecendo novas relaes visuais com a avenida, com as vias perpendiculares e com os espaos livres ao seu redor. Seu complemento seria o Terminal Pedro Lessa como veremos a seguir. Fig.305 Vista do modelo tridimensional da segunda etapa do projeto. [MDULO, Jul/75.] Fig.306 Planta da segunda etapa do projeto. Foram destacados, em cinza claro, os elemento propostos. [Biblioteca FAUUSP] 276 277 O VALE COMO CONFLITO D - Estudo Preliminar do Terminal Pedro Lessa O estudo para o Terminal (notar que antes havia se utilizado o termo estao) Pedro Lessa foi apresentado como um anexo do projeto bsico das passarelas, o que evidencia a falta de interesse por parte da prefeitura em levar essa obra adiante. Sua implantao foi prevista ocupando o vazio da praa somado a outro vazio que seria criado com a demolio de grande parte das construes existentes na quadra locali- zada entre a Av. So Joo e a Rua Capito Salomo. Essas demolies incluiriam o edifcio da agncia central dos Correios, fato que gerou muita polmica, dicultando bastante sua aprovao. Para a instalao do terminal, a malha viria deveria sofrer algumas modicaes como a interrupo da Rua Capito Salomo, a pedestrianizao da Rua Abelardo Pinto (Beco do Pioln) e o desvio da Rua do Seminrio com a demolio de algumas construes nessa rea tambm. O edifcio do terminal era resolvido em quatro pavimentos sob uma grande cobertura retangular com 176 metros de comprimento por 125 metros de largura. No pavimento trreo se localizavam exclusivamente as nove plataformas de embarque e desembarque com aproximadamente 150 metros cada uma, totalizando cerca de 1350 metros lineares de pla- taformas. O primeiro pavimento realizaria a comunicao das plataformas com a cidade prolongando-se externamente atravs do sistema de passarelas e garantindo-lhes animao e utilizao intensa. Para a ligao entre os dois nveis estava previsto um conjunto de 45 escadas alm de 14 rampas. Nos dois pavimentos superiores eram instalados os programas de apoio. E - Desenho das Caladas O projeto continha ainda um novo desenho para o calamento dos passeios de todo o vale, sob a direo do paisagista Roberto Burle Marx. A proposta apresentava a linguagem caracterstica do renomado paisagista utilizando planos de mosaico portugus com as cores de So Paulo. Fig.307 Cortes e elevaes da plataforma proposta. [Biblioteca FAUUSP] 278 279 O VALE COMO CONFLITO Consideraes a respeito da segunda etapa do projeto Se olharmos com ateno para todo o processo de desenvolvimento deste Plano de Reurbanizao do Vale do Anhangaba, veremos que suas propostas essenciais se perderam na passagem da primeira para a segunda etapa, devido s imposies e restries por parte da EMURB. O resultado nal do desenvolvimento do projeto nos deixa com a sensao de oportunidade perdida. Aps ter a abrangncia de seu plano reduzido a um mero conjunto de passarelas, o que teria levado Artigas a prosseguir com seu desenvolvimento? As circunstncias polticas descritas no incio deste trabalho poderiam congurar uma justicativa, mas apenas parcial. Talvez o seguinte depoimento de Artigas ajude a responder a essa pergunta. Vejam que coisa curiosa: h um planejamento geral, a respeito do qual ningum fala, mas no qual os pequenos planejamentos tem que ser inseridos. E o planejamento geral, em todos os tempos e at hoje, de molde que a gente no se possa inserir. (...) O mal que ns assumimos a responsabilidade de curar as feridas sangrentas de nossos meios urbanos atravs de um planejamento isolado do planejamento geral e este, muitas ve- zes, no coincide com o nosso. Isso no nos leva a um nvel maior de desnimo porque, se no segurarmos com fora a pequena bandeira das possibilidades de mostrar, com pequenos exemplos, o que poderia ser feito, certamente teremos que por de lado, logo de sada, as nossas mais caras esperanas. 26 26 ARTIGAS, Joo Batista Vilanova. Trecho do texto Um lugar utopia, de 1975 Fig.308 Planta parcial com o padro de desenho proposto por Burle Marx para a pavimentao do vale. Tre- cho Correio - Pedro Lessa. [Biblioteca FAUUSP] Fig.309 Vista do modelo tridimensional da segunda etapa do projeto. Em primeiro plano o Viaduto Santa Egnia e a Praa Pedro Lessa. [MDULO, Jul/75.] 280 Fig.310 Redesenho da plataforma proposta, a partir do projeto original. [Arquivo do autor] Fig.311 Croquis do projeto apresentado por Alison e Peter Smithson e Sigmond para o concurso Berlin- Haupstadt, 1958. [SMITHSON, 1967.] 281 O VALE COMO CONFLITO Fig.312 Redesenho da plataforma de pe- destres proposta, conectada ao Terminal Pedro Lessa. [Arquivo do autor] 282 Fig.313 Terminal Pedro Lessa. Planta do nvel das plataformas de embarque e desembarque. [Biblioteca FAUUSP] Figs.314 e 315 Terminal Pedro Lessa. Elevaes So Joo e Anhangaba. [Biblioteca FAUUSP] 283 O VALE COMO CONFLITO 284 Fig.316 Planta esquemtica da Galeria de Pedestres, projeto de Benno Perel- mutter para a COGEP, incorporado por Artigas em sua proposta. [SO PAULO (Cidade) Coorde- nadoria Geral de Planejamento. Galeria de Pedestres. So Paulo, 1974.] Fig.317 Charge a respeito do projeto publi- cada no jornal ltima Hora, de 01 de dezembro de 1973 [S. PAULO (Cidade) COGEP, 1974] 285 O VALE COMO CONFLITO Fig.318 Corte transversal pelo Viaduto Nove de Julho. [S. PAULO (Cidade) COGEP, 1974] Fig.319 Corte transversal por uma das estaes de embarque. [S. PAULO (Cidade) COGEP, 1974] 286 287 O VALE COMO CONFLITO Uma dcada de indecises da EMURB Criada pela lei municipal n 7.670, de 24 de novembro de 1971, a EMURB - Empresa Municipal de Urbanizao - teve como um de seus principais temas de trabalho durante sua primeira dcada de existncia o Vale do Anhangaba. Ao longo dos anos 70 a instituio foi responsvel por um impressionante processo de estudos e projetos para a rea que s se en- cerraria com a realizao do concurso pblico em 1981. O que impressiona , por um lado, a imensa quantidade de projetos realizados e, por outro, a inacreditvel falta de articulao entre eles. O conjunto de propostas torna evidente a ausncia de uma linha clara de pensa- mento sobre a cidade e tambm de foras polticas mais decisivas dispostas a empreender qualquer ao mais concreta. 27 Os temas de projeto trabalhados pela empresa e pelos escritrios por ela contratados eram basicamente dois: a Praa da Bandeira (travessia e terminal de nibus) e o cruzamen- to Anhangaba e So Joo, com a incorporao eventual de questes secundrias. Alguns estudos j vinham sendo elaborados desde antes da criao da empresa, durante os ltimos anos da dcada anterior e os primeiros daquela. No nal dos anos 60, o escritrio de arquitetura Croce, Aalo & Gasperini realizou trs projetos executados para o vale: o Viaduto Dr. Eusbio Stevaux, prximo Praa das Bandeiras em 1968, uma garagem com 800 vagas sobre a Praa da Bandeira e a controversa passarela de pedestres implantada sob o Viaduto do Ch, ambas em 1969. 28 De 1968 a 1970, o mesmo escritrio, associado ao Escritrio Tcnico J. C. de Figueiredo Ferraz 29 , desenvolveu vrias verses para um projeto de reformulao da Praa das Bandeiras que previa a implantao de um gigantesco estacionamento, com um grande teatro pblico e uma praa 30 . Nesse mesmo ano a equipe realizou um estudo de reformulao viria e pai- sagstica do trecho do Vale do Anhangaba compreendido entre o cruzamento da Av. So Joo e a Praa Pedro Lessa. As principais aes desse projeto consistiam na criao de uma nova ala e de um viaduto sobre a praa, fracionando-a em quatro partes, e do redesenho das bocas de acesso ao buraco do Adhemar, re-congurando os passeios e o leito carro- vel. Os espaos residuais seriam transformados em jardins. Para a travessia da Av. So Joo 27 Esse momento coincide com o perodo do golpe militar em que os prefeitos da cidade eram nomeados pelo governo estadual. Durante a dcada de 1970 sucederam-se na prefeitura Paulo Salim Maluf (abr/69 - abr/71), Jos Carlos de Figueiredo Ferraz (abr/71 - agos/73), Miguel Colasuono (ago/73 - ago/75), Olavo Setbal (ago/75 - jul/79) e Reynaldo de Barros (jul/79 - mai/82). [www. prefeitura.sp.gov.br (jan/2007)] 28 GASPERINI, Gian Carlo. Arquitetura e Transportes. So Paulo: FAUUSP, 1972 (Tese de Doutoramento). 29 Ferraz seria nomeado prefeito em abril de 1971. 30 Ainda em 1968, o escritrio colaboraria para a destruio do Parque Dom Pedro atravs do projeto dos quatro viadutos construdos para conectar a Radial Leste e a Rangel Pestana. A extenso dos viadutos totalizava 2000 metros lineares. Em 1969, foram responsvei pelo projeto do Viaduto So Carlos do Pinhal, que desgurou o acesso norte do Tnel Nove de Julho e bloqueou consideravelmente a vista do mirante sob o MASP. [CROCE, AFLALO & GASPERINI ARQUITETOS. 25 anos depois. So Paulo, Pau Brasil, 1986.] Fig.320 Passarela sobo Viaduto do Ch. Croce, Aalo & Gasperini, 1969. [GASPERINI, Gian Carlo. Arqui- tetura e Transportes. So Paulo: FAUUSP, 1972.] Fig.321 Viaduto Dr. Eusbio Stevaux. Croce, Aalo & Gasperini, 1968. [GASPERINI, 1972.] Fig.322 Passarela sobo Viaduto do Ch. Croce, Aalo & Gasperini, 1969. [CROCE, AFLALO & GASPERINI ARQUITETOS. 25 anos depois. So Paulo, Pau Brasil, 1986.] 288 289 O VALE COMO CONFLITO Fig.323 Estudo de reformulao viria do cruzamento Anhangaba e Av So Joo e novo viaduto sobre a Praa Pedro Lessa. Croce, Aalo & Gasperini, 1970. [Biblioteca FAUUSP] Figs.324 e 325 Passarela So Joo (atirantada) e Passarela Stanta Egnia (sob o viaduto). Croce, Aalo & Gasperini. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] Figs.326 e 327 Passarela So Joo. PLURIC (Benno Perelmutter e Oswaldo Correia Gonalves), 1973. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] 290 Figs.328 e 329 Terminal Bandeira. PLURIC (Benno Perelmutter e Oswaldo Correia Gonalves), 1973. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] 291 O VALE COMO CONFLITO eram criadas duas galerias subterrneas para pedestres. Um segundo conjunto de passarelas foi projetado pelos mesmos arquitetos, para as travessias junto ao eixo da Av. So Joo e sob o Viaduto Sta Egnia. A soluo proposta se constitua de duas passarelas sobre a avenida interligadas em nvel e com um possvel acesso pela Ladeira de So Bento. Uma das passarelas seria instalada sob a projeo do viaduto; a outra contaria com uma pesadssima estrutura atirantada apoiada em um nico ponto. Em 1973 a empresa PLURIC, cujos diretores eram os arquitetos Benno Perelmutter e Oswaldo Correia Gonalves, foi contratada pela Secretaria Municipal de Transportes para elaborar os projetos de uma passarela de pedestres no cruzamento das avenidas So Joo e Anhangaba e de um terminal de nibus na Praa da Bandeira. A passarela proposta, era uma estrutura de concreto armado posicionada precisamente no eixo da So Joo e os acessos seriam providos por quatro rampas em espiral e quatro rampas longitudinais, com escadas nas pontas. O terminal foi assim descrito pelos autores: um prdio de 20.000 m de rea construda, 7 m de altura, dois pavimentos, com um imenso mezanino coberto e um jardim suspenso, de onde saem quatro passarelas para pedestres. Ele inclui tambm o fechamento de alguns trechos de ruas do centro para os carros, transformando-as em exclusivas para pedestres. E a construo de uma grande calada em torno do prdio do Touring, que se uniria Ladeira da Memria. O problema dos pedestres ser resolvido principalmente com a construo de cinco passarelas. Quatro delas se ligaro parte de cima do prdio, uma plataforma de cerca de 10.000 m com rvores e canteiros, ou seja um jardim a sete metros acima do nvel da Avenida Nove de Julho. As passarelas serviro tanto para dar acesso ao terminal como para a travessia de pedestres, passando pela plataforma-jardim. 31 Em meados de 1975, parte do corpo de tcnicos da EMURB desenvolveu uma seqncia de estudos de travessias em subsolo junto Praa da Bandeira, provavelmente com a inten- o de conjugar a construo da Estao Anhangaba do Metr com travessias pblicas e ligaes com a praa e o terminal. Duas verses foram desenvolvidas. A primeira, uma pas- 31 Descrio dos autores includa no caderno de estudos e projetos no implantados fornecido como base para os participantes do concurso nacional de 1981. 292 Figs.330 e 331 Travessia subterrnea rasa junto Praa da Bandeira. EMURB, 1975. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] 293 O VALE COMO CONFLITO sagem rasa a pouco mais de 3 metros de profundidade, revelou-se invivel devido s inter- ferncias com redes subterrneas de instalaes que corriam pela rea entre as cotas 0 e -7,5 metros. A segunda verso fugia dessas interferncias ao implantar-se na cota -10 metros, o que determinava um nvel to baixo que para se obter condies de acesso confortveis, seria necessrio que suas bocas fossem todas dotadas de escadas rolantes. A planta resultava em uma gura tentacular, que ligava a Praa da Bandeira, o Largo da Memria e a Rua do Ouvidor. Em ambas verses, eram previstas ao longo do percurso aberturas para entrada de luz natural e jardins. Argumentando problemas de custos, diculdades em relao segurana dos usurios e ao controle e preveno de enchentes, a empresa abandonou o estudo da travessia em subsolo e passou a estudar mais uma vez passarelas elevadas. Foi retomada a idia da plataforma proposta pela PLURIC, inclusive com a eventual incorporao de uma grande torre arrematando o extremo sul do vale, mas a incerteza em relao permanncia do terminal de nibus, programa que estruturava a idia da plata- forma, enfraquecia muito a proposta. Sua simplicao gerou o projeto da passarela em ferradura, estrutura que alm de realizar o percurso Memria-Bandeira-Ouvidor, seria as- sociada a um conjunto de cinco novos edifcios que arrematariam empenas cegas existentes na rea 32 e animariam a passarela. Esse aspecto tornava o projeto interessante ao associar a travessia pblica de pedestres a novos equipamentos da cidade. No ano de 1976, uma verso reduzida da plataforma proposta por Artigas junto praa Pedro Lessa foi estudada. Um avano em relao proposta original era a associao desse percurso elevado a novos edifcios junto avenida. Assim como havia sido proposto na passarela em ferradura, este circuito de passarelas seria animado por diversos programas conferindo um novo sentido para o nvel elevado. A possibilidade de estabelecer uma co- nexo direta e em nvel com a Estao So Bento do Metr era outro fator que enriquecia a proposta. Sua principal decincia era o grande nmero de desapropriaes e demolies que se faziam necessrias para acomodar as passarelas e construir os novos edifcios. Em 1977, uma nova alternativa passou a ser estudada. A travessia de pedestres junto 32 Trs deles seriam construdos na quadra adjacente ao Largo da Memria e nova estao do Metr. Esse mesmo tema de projeto foi trabalhado por lvaro Puntoni em Estruturas habitacionais na rea central de So Paulo: um ensaio de ocupao de vazios na Ladeira da Memria. So Paulo: FAUUSP, 1998 (Dissertao de Mestrado). 294 Figs.332 e 333 Travessia subterrnea profunda junto Praa da Bandeira. EMURB, 1975. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] Fig.334 Esboo da proposta de uma plata- forma sobre a Praa da Bandeira ligada a uma torre de servios. EMURB. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] Figs.335 e 336 Planta dapassarela em ferradura e pormenor da quadra ao lado do Largo da Memria, que receberia a construo de uma srie de edif- cios arrematando as empenas cegas do miolo da quadra. EMURB. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981.] 295 O VALE COMO CONFLITO 296 Figs.337, 338 e 339 Sistema de passarelas articulado a novos edifcios. EMURB, 1976. [Termo de referncia do Concurso Anhangaba, 1981 (perspectivas) / Arquivo EMURB (planta)] 297 O VALE COMO CONFLITO ao cruzamento da So Joo seria agora subterrnea, encaixada entre o piso da avenida e a cobertura do buraco do Adhemar. Deste modo ela no precisaria ser muito profunda e tampouco se conguraria como um tnel, pois durante o percurso o pedestre cruzaria sobre a via da passagem inferior. Um trecho caria ao ar livre, criando uma espcie de va- randa que proporcionaria luz e ventilao natural. A passagem teria a largura da So Joo e conguraria um grande salo, com dimenses que permitiriam acolher outras atividades de uso pblico alm da travessia. Esta alternativa teria sido descartada, (...) devido ao custo e complexidade das obras, s interferncias com redes subter- rneas de servios pblicos e, principalmente, a conitos do canteiro de obras com a circulao de veculos e pedestres, muito intensa na rea (...). 33 Aps vrios anos desenvolvendo estudos e contratando projetos, no havia se chega- do, no mbito do poder municipal, a uma concluso em relao s obras no Anhangaba e nenhuma obra relevante havia sido executada. A partir da posse do prefeito Reynaldo de Barros 34 , em julho de 79, a empresa passou a ser pressionada. Nestor Goulart Reis Filho, que era o Vice-Presidente da EMURB desde 1975, assumiu a Presidncia. Em agos- to desse mesmo ano Paulo Julio Valentino Bruna foi nomeado Diretor de Planejamento 35 . Alguma posio deveria ser tomada. No segundo semestre de 1980 apresentado o Projeto Anhangaba. 36 A to aguardada sntese de todo o processo descrito acima foi uma grande decepo. As idias mais interessantes que haviam surgido ao longo de tantos projetos foram deixadas de lado e o partido adotado se resumia a um conjunto desarticulado de seis novas passarelas. Em pontos crticos o passeio seria alargado para receber as rampas e escadas de acesso; estaes abrigadas de nibus e trleibus se distribuiriam ao longo da avenida. O posiciona- mento das travessias era muito prximo daquele proposto por Artigas na verso nal de seu projeto, assim como o desenho das passarelas. O achatamento arquitetnico que levou ao Projeto Anhangaba no agradou a nin- 33 Caderno de estudos e projetos no implantados fornecido como base para os participantes do concurso nacional de 1981. 34 Barros foi nomeado pelo ento governador do estado, Paulo Maluf. 35 Paulo Bruna permaneceu no cargo at abril de 1983. 36 A equipe da EMURB responsvel pela elaborao desse projeto era formada pelos arquitetos Paulo Bruna, Domingos Theodoro de Azevedo Netto e Paulo Srgio de Souza. O escritrio Roberto Rossi Zuccolo Engenharia Civil e Estrutural Ltda. foi o responsvel pela elaborao do projeto executivo. 298 Figs.340 a 345 Travessia subterrnea encaixada entre o nvel da avenida e o topo da passagem inferior. Corte longitudinal, corte transver- sal, plantas e perspectivas. EMURB, 1976. [Arquivo EMURB] 299 O VALE COMO CONFLITO 300 Fig.346 Perspectiva geral do Projeto Anhangaba. EMURB, 1980. [A CONSTRUO SO PAULO n 1707, 27/10/80. p.8.] 301 O VALE COMO CONFLITO gum. Uma vez divulgado, despertou um descontentamento geral tornando-se assunto de interesse pblico intensamente discutido atravs da imprensa 37 . (...) embora os arquitetos da Emurb sejam prossionais de alto nvel, nos parece que foras inerentes ao projeto acabaram formulando um sistema imediatista. Ou seja: h atropelamentos em seis ponto do Vale do Anhangaba, logo devem ser criadas seis passarelas, uma em cada local crtico e o problema est resolvido. (...) Uma soluo pragmtica como a que foi adotada, passa por cima do Vale do Anhangaba como espao caracterstico, representativo, da cidade de So Paulo. 38 (...) a proposta apresentada pela Emurb a soluo possvel e, pelas discusses ha- vidas, no agrada nem aos autores da proposta nem a quem se dispes a analis-la. A todos agradaria mais se a questo da transposio do vale fosse resolvida por passagens subterrneas, praticamente inexeqvel (...). 39 Nesse contexto, a proposta no poderia ser levada adiante, mas a cidade demandava urgentemente uma resposta. Um concurso pblico nacional apareceu como uma boa alter- nativa. (...) durante dez anos a EMURB percorrera, seno todas, muitas diferentes alternati- vas e abordagens para a questo do Anhangaba, mas por alguma razo faltava-lhe o juzo, a deciso. Ento, uma comisso julgadora soberana que escolhesse, entre os pro- jetos de grandes arquitetos de todo o pas, uma proposta vencedora num julgamento inapelvel, investiria o resultado de uma autoridade que preencheria perfeitamente essa necessidade, apesar de se desconhecer qual seria o resultado. 40 Se, por um lado, a jornada da EMURB at aquele momento poderia ser considerada um grande fracasso, por outro, fora do mbito municipal foi sendo concebido implicitamente um partido de projeto que terminaria se armando atravs do concurso. 37 O jornal Folha de So Paulo chegou a criar uma coluna diria chamada O Vale em Discusso, na qual foram publicados depoimentos de tcnicos, polticos, artistas de projeo e usurios do centro em geral. 38 Depoimento de Csar B. Loureno, ento presidente do IAB-SP. A Construo So Paulo n 1707, de 27 de outubro de 1980. p.11. 39 Depoimento do arquiteto Paulo Bastos. A Construo So Paulo n 1707, de 27 de outubro de 1980. p.12. 40 BUCCI, 1998. p.95. 302 303 O VALE COMO CONFLITO A nosso ver, essas paralelas so perigosssimas porque logo estaro justicando outras e com o excesso de imaginao que impera na cidade, logo estar algum sugerindo seja o vale recoberto por uma imensa laje de concreto armado, embaixo da qual cor- ram velozmente os automveis e, em cima, nova rea disponvel para atividades vrias, como se j no nos bastasse a Praa Roosevelt. 41 38 LEMOS, Carlos. Folha de So Paulo, de 30 de novembro de 1980. Fig.347 Planta geral do Projeto Anhanga- ba. EMURB, 1980. [Arquivo EMURB] Pximas seis pginas: Fig.348 Passarela Rua Santo Antnio - Rua lvaro de Carvalho. Fig.349 Passarela Praa das Bandeiras - Rua do Ouvidor. Fig.350 Passarela Rua Dr. Falco - Rua Formosa. Fig.351 Passarela Praa Ramos de Azevedo - Rua Lbero Badar. Fig.352 Passarela Av. So Joo - Rua Lbero Badar. Fig.353 Passarela Praa Pedro Lessa - Largo So Bento. [Arquivo EMURB] 304 305 O VALE COMO CONFLITO 306 307 O VALE COMO CONFLITO 308 309 O VALE COMO CONFLITO 310 311 O VALE COMO CONFLITO Concurso Anhangaba [1981] Em fevereiro de 1981 foi lanado o edital do Concurso Pblico Nacional para Elaborao de Plano de Reurbanizao do Vale do Anhangaba, promovido pela prefeitu- ra, atravs da EMURB, em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de So Paulo. O regulamento solicitava aos concorrentes a elaborao de uma proposta de carter abrangente, envolvendo circulao viria e de pedestres, uso dos espaos pbli- cos, equipamentos locais e metropolitanos, regulamentao do uso do solo e valorizao e preservao de bens tombados. As propostas deveriam ser apresentadas em trs pranchas formato A0 e entregues at 18 de maio do mesmo ano. Como subsdio para a elaborao dos projetos, o IAB-SP realizou um ciclo de debates organizado em quatro grupos de trabalho: Programa para o Vale do Anhangaba, Fator Econmico, Consulta Comunidade e Urbanismo, planejamento e Interveno Tcnica. A partir desses seminrios foram elaborados relatrios contendo opinies e contribuies de representantes de diversos setores tcnicos e sociais. Para o presidente do IAB-SP, aquele seria o evento mais importante a ser realizado pelo instituto no pas desde o concurso de Braslia. O consultor tcnico designado foi Benedito Lima de Toledo e o jri foi composto pe- los arquitetos Eduardo Corona (presidente), Edgard Graeff, Carlos Maximiliano Fayet, Jon Adoni Maitrejean e Fernando Chacel. Inscreveram-se 155 equipes e 93 propostas foram submetidas a julgamento. Dessas, 34 foram selecionadas para uma segunda fase de apre- ciao, agrupadas pelo jri em trs categorias: solues areas, solues subterrneas e outras solues. Alm dos prmios para as trs melhores propostas, o jri concedeu cinco menes honrosas. Para subsidiar a discusso que se pretende levantar neste trabalho, sero analisados e discutidos apenas os trs primeiros colocados. Os projetos premiados apresentavam basicamente o mesmo partido: segregao dos uxos de veculos e pedestres atravs do rebaixamento da avenida e congurao de uma esplanada em sua cobertura. Esse era o partido do jri e de boa parte das equipes partici- pantes; esse era o projeto temido por Carlos Lemos; esse foi o partido que se originou a partir dos estudos da EMURB ao longo dos anos 70. Sua escolha era inevitvel. Fig.354 Levantamento planialtimtrico fornecido aos participantes do concurso. [Bases do Concurso Anhangaba, 1981.] Fig.355 Diagrama, encontrado em edio do nal dos anos 60 da revista francesa Urbanisme, sintetizando a premissa bsica que deveria nor- tear os projetos urbanos naquele momento. [Revue Urbanisme, anos 60.] 312 313 O VALE COMO CONFLITO Reconstituir o raciocnio que levou a essa soluo no difcil. Era consensual que as travessias de pedestres elevadas no eram desejveis. As travessias subterrneas s eram vi- veis a partir do remanejamento das instalaes existentes. Muitas dessas redes eram trans- versais ao vale, porm a mais determinante de todas era longitudinal: a canalizao do rio. Isso quer dizer que uma grande obra subterrnea paralela ao eixo do vale e conseqente- mente da avenida, deveria ser necessariamente executada. A soluo mais bvia era associar a nova canalizao e a avenida em uma nica ao, liberando toda a superfcie do vale da presena de automveis. Feito isso, restava apenas decidir o que fazer com as dezenas de milhares de metros quadrados de esplanada construdos. O projeto vencedor, elaborado pela equipe liderada por Jorge Wilheim e Rosa Klias 42 , apresentava como primeiro objetivo, criar um espao novo, exclusivo para os pedestres. Um espao livre, que jamais em sua histria havia pertencido plenamente a eles. Livre das cheias do rio, das plantaes de ch, das mulas e agora dos automveis, o vale nalmente poderia se transformar em um espao de encontro, de repouso, de gozo, de usufruto e per- manncia. 43 Elgson Gomes 44 , autor do projeto segundo colocado, propunha o retorno da natureza ao nico espao disponvel no centro da cidade capaz de conter as propores de um par- que propriamente dito. A desgurao paulatina do ambiente do vale seria remediada pelo retorno dos atributos da natureza, constitudos pelo movimento das guas nas fontes, pelos jardins oridos e pela vegetao exuberante. No trecho nal de seu memorial, des- tacava mais uma vez a necessidade e a viabilidade do retorno, to amplo quanto possvel, da natureza para a intimidade da vida do Parque do Anhangaba e conseqentemente da vida da cidade. Com menos nfase, essa viso pode ser encontrada tambm no discurso da equipe clas- sicada em terceiro lugar. 45 Argumentava-se que o vale tinha deixado de ser o stio natural que era e o parque que foi, para se transformar numa via expressa. 46 Segundo o memorial descritivo da proposta, a disposio dos uxos deveria ser a seguinte: O pedestre na superfcie, natural condi- o junto ao espao fsico e ao verde nascendo do cho e no articialmente construdo sobre lajes. O veculo em nvel inferior com uxo contnuo. 39 Arquitetos: Carmem Lydia Silva, Jamil Kfouri, Jonas Birger, Jorge Wilheim, Marcelo Martinez, Maria Lucinda Aguiar, Michel Gorski e Rosa Glena Klias. Consultores: Mario Franco, Julio Cerqueira Csar, Neuton Karassawa, Francisco Luis Costa, Norberto Chamma e Jorge Kayano. 40 Todos esses adjetivos foram utilizados no memorial do projeto para descrever a imagem que se propunha para o vale. 41 Elgson Ribeiro Gomes, Pricles Varella Gomes, Carlos Guilherme Gloor, Heitor Carlos Moreira Filho, Maria Luiza Gomes e Orlando do Amaral Rodrigues. 42 Arquitetos: Paulo Bastos, Siegbert Zanettini, Jos Costa Filho, Newton Massafumi Yamato, Maria de Ftima Arajo, Roberto Israel Saru, e Mirthes baf. Colaboradores: Miriam Lobel, Vanderlei Nunes Collange, Antnio Brazo Rodrigues, Jos Antonio Henrique e Wagner Amodeo. Consultores: Carlos Nassi, Ana Lucia Brasil, Walter Vaccaro, Aluisio Leite e Luis Dvila. Fig.356 Pojeto vencedor. Prancha contendo a planta geral e o resumo das propostas. [Arquivo EMURB] 314 315 O VALE COMO CONFLITO Reiteradamente justicavam-se propostas com o pretexto de recuperar o ambien- te degradado pelos automveis ou devolver cidade o seu parque perdido. Argumentos desse tipo eram falsos e tinham o objetivo de caracterizar o espao proposto como uma anttese do existente naquele momento. Recuperar o qu? Devolver o qu? No se podia armar que o Anhangaba tivesse se cristalizado em uma nica imagem e que esta se per- dera. O que a histria acumulava era uma sucesso de imagens transitrias, representativas de momentos distintos e em permanente mutao. na construo dessa imagem para o vale, na pretensa interpretao de quais se- riam os verdadeiros anseios da populao em relao ao seu sentido, que residia o principal problema desses projetos. Ao levantar atributos que caracterizassem uma situao diame- tralmente oposta que vivia a cidade naquele momento, apelava-se para a seduo fcil de uma promessa redentora. Realizava-se uma demonizao do automvel, como se por trs dos volantes no houvesse pessoas, para justicar um partido predeterminado. Outro aspecto problemtico que esse partido colocava era a impossibilidade de re- baixar a avenida antes de se passar sobre a Estao Anhangaba do Metr, que j estava em obras. Isto determinava que o prolongamento sul da esplanada no poderia se estender muito alm da projeo do Viaduto do Ch, excluindo dessa maneira um trecho signica- tivo do recinto, inclusive a Praa das Bandeiras. Com isso se operava uma drstica reduo fsica do que poderia se qualicar como o recinto do Anhangaba. Se a grande praa era o que simbolizava e conferia as novas virtudes daquele espao, tudo o que se localizava fora dela era relegado a um segundo plano. O mesmo acontecia, de uma maneira menos drsti- ca, com o extremo norte do vale. Dez anos se passaram entre o resultado do concurso e a inaugurao do novo vale. Outros quinze desde a inaugurao at a presente data. Os desdobramentos do projeto, sua repercusso e seus efeitos o que ser discutido no prximo captulo. 43 A Construo So Paulo n 1751, ago/1981. p.16. Pojeto vencedor. Diagramas temticos elaborados para o concurso com os seguintes ttulos: Fig.357 Trfego a Acomodar Fig.358 Valores Paisagstico-Culturais a Preservar Fig.359 Programa Proposto Fig.360 Interferncias a Considerar e Conitos a Resolver [Arquivo EMURB] 316 317 O VALE COMO CONFLITO Fig.361 Pojeto vencedor. Perspectiva com a Praa para comcios e eventos pblicos em primeiro plano. [Arquivo EMURB] Fig.362 Pojeto vencedor. Perspectiva mostrando a ala viria que permitiria o acesso do tnel Av. So Joo, posteriormente descartada. [Arquivo EMURB] Fig.363 Pojeto vencedor. Planta da soluo apresentada para o Terminal Bandeira. [WILHEIM, Jorge. Espaos e Pala- vras. So Paulo: Projeto, 1985. p.89] 318 319 O VALE COMO CONFLITO Figs.364 e 365 Segundo Colocado. Plantas da etapa inicial e da etapa nal de implantao do projeto. [Suplemento especial da Revista Projeto 31, Jul/1981.] Fig.366 Segundo Colocado. Vista do modelo tridimensional. [Suplemento especial da Revista Projeto 31, Jul/1981.] 320 321 O VALE COMO CONFLITO Fig.367 Terceiro Colocado. Perspectiva com o Viaduto Santa Egnia em primeiro plano Fig.368 Terceiro Colocado. Diagrama de setorizao. Fig.369 Terceiro Colocado. Esquema do sistema de execuo do tnel. Fig.370 Terceiro Colocado. Perspectiva da praa proposta. Fig.371 Terceiro Colocado Planta geral. [Suplemento especial da Revista Projeto 31, Jul/1981.] 322 323 O VALE COMO RESDUO 1 Das acepes de resduo encontradas nos dicionrios mais populares da lngua portuguesa, a que mais se aproxima do sentido pretendido aqui a seguinte: Parte de um corpo, imprpria para consumo ou utilizao. (HOUAISS) captulo 05 o vale como resduo 1 324 325 O VALE COMO RESDUO procura de um sentido A inaugurao do novo Anhangaba foi marcada por uma grande festa, realizada em 25 de janeiro de 1992 2 , dia do aniversrio da cidade, e contou com a apresentao de Caetano Veloso para um pblico estimado em 50 mil pessoas. Encerrada a festa, varridos os bales furados e os sacos de pipoca vazios, um grande silncio invadiu o vale. Se o tempo do coni- to havia sido superado, um novo signicado para aquele espao precisaria ser denido. At os dias de hoje, quinze anos aps sua inaugurao, nenhum tipo de apropriao conseguiu imprimir um novo carter quele recinto. O insucesso do projeto, do ponto de vista da criao de um espao pblico devidamente apropriado pela cidade, fez com que, nos ltimos anos, comeassem a ser aventados novos planos de recongurao da praa e de refuncionalizao do vale. Antes de questionar a pertinncia dessas propostas, o simples fato de existirem revela que a questo real. No entanto, o modo como essas crticas so estruturadas, e os argumentos que utilizam, per- mitem ver que as relaes de causa e efeito dos problemas alegados ainda no foram bem assimiladas. A impresso que se tem que o projeto implantado totalmente descolado do discurso utilizado para justic-lo. Se, por um lado, a obra resolveu o problema dos atropelamentos e melhorou minimamente o desempenho virio do Sistema Y, por outro, empobreceu o espectro de relaes urbanas que caracterizavam o vale e criou um imenso espao residual que no agregou novos valores area central. a partir dessas observaes que se procura justicar as propostas mais recentes de interveno. 2 As obras foram iniciadas em janeiro de 1986, durante a gesto do prefeito Jnio Quadros, e concludas em dezembro de 1991, pela prefeita, Luiza Erundina. A inaugurao ocial aconteceria em janeiro de 1992. 326 327 O VALE COMO RESDUO O Novo Anhangaba Do momento em que foi divulgado o resultado do concurso, at a festa de inaugura- o da obra, dez anos se passaram. Ao longo do desenvolvimento do projeto e durante sua execuo, alteraes importantes foram feitas. O espao, como ele foi construdo, apresenta uma srie de contradies em relao ao que supostamente se pretendia. Esse conjunto de contradies desmonta a estrutura do espao pblico proposto e permite compreender, em parte, as razes do seu fracasso. Na dcada de 90, o novo Parque do Anhangaba acrescentou ao Centro mais um exemplo de espao urbano destrudo em nome da circulao viria. Nesse caso, a mag- nitude do conito pedestre-automvel serviu de justicativa e conduziu a interveno. A imensa laje recobre o tnel e garante a circulao com padro de via expressa para o intenso uxo de veculos que corta o Centro no eixo norte-sul. (...) O espao resul- tante correspondendo cobertura do sistema virio no esconde a impotncia de uma praa cujo programa apia-se exclusivamente nas questes que marcam as relaes conitantes (...) Assim, uma vez enfrentado o problema e separadas as funes ve- culos em baixo e pedestres em cima, ocorreu a indesejvel inundao de espao que carregou consigo a fora articuladora de espaos, funes e smbolos do antigo Vale do Anhangaba. 3 Em sua anlise sobre o Anhangaba atual, Bucci argumenta que o partido adotado re- sultou numa anulao de suas escalas, a local e a metropolitana. As duas dimenses (...) so interdependentes. Ele ganha escala metropolitana na mes- ma medida em que existe como local reconhecvel para a metrpole. Dessa relao (...) advm o seu carter simblico, o carto postal de So Paulo, como elemento que lhe confere identidade. 3 MEYER, Regina Prosperi. A construo da metrpole e a eroso do seu Centro. Apud Revista Urbs n14, Set-Out/1999. p.33. Fig.372 O Vale do Anhangaba hoje. [Arquivo do autor] 328 329 O VALE COMO RESDUO No Anhangaba atual essas duas dimenses se interferem destrutivamente e se anu- lam. Isso decorre da opo pelo tnel, que rouba da metrpole a (sua) percepo (...) e, inversamente, rouba dele a dimenso metropolitana. Por isso, com a implantao desse projeto, a dimenso simblica metropolitana do Anhangaba deixou de existir por completo. 4 Considera ainda, que a praa criada sobre a laje que cobre a avenida, ao contrrio do que defendiam seus autores, se constituiria num espao anticvico ao apartar da vida coti- diana da metrpole o local onde, supostamente, esta deveria se manifestar. (...) o espao do exerccio da cidadania a cidade em todas as suas manifestaes, inclusive, ou principalmente, aquelas vitais ao seu funcionamento e produo (...). Considerando isso, h uma contradio imensa no Anhangaba atual. A praa para eventos e manifestaes pblicas um espao especializado e isolado da vida da cida- de. Pois a avenida rebaixada em tnel e o patamar onde esto implantados o Centro Velho e o Centro Novo no tomam conhecimento do que se passa na laje que tampa o rio de automveis l embaixo. Nessas condies, tornou-se o espao da obedincia e no da contestao, ou o espao do isolamento e no da manifestao. O episdio exemplar (...) foi o comcio das Diretas J, quando se reuniram ali cerca de um milho de pessoas para interferir na histria de um pas. Aquelas pessoas blo- queavam completamente o Sistema Y, o lugar era estratgico. Repeti-lo hoje, naquele espao sem relao com o funcionamento da cidade, seria prova de ingenuidade, quan- do menos. 5 Outras contradies do projeto podem ser claramente apontadas. Em publicao 6 de- dicada inaugurao do vale, Rosa Klias e Jamil Kfouri, co-autores do projeto, armam que as principais portas do Anhangaba eram as duas estaes do Metr, So Bento e Anhangaba, e a Avenida So Joo. O desenho proposto, no entanto, no responde a essa armao. A estao Anhangaba, em relao praa proposta, ca completamente iso- 4 BUCCI, 1998. p.101. 5 BUCCI, 1998. p.103. 6 Revista Arquitetura e Urbanismo n42, jun/jul 1992. Fig.373 Pormenor da planta geral do proje- to vencedor do concurso. [Arquivo EMURB] Fig.374 Insero da planta do projeto executado sobre a base da planta anterior. [Fonte das bases: Arquivo EMURB] 330 331 O VALE COMO RESDUO lada. Uma estreita calada, junto Rua Formosa, a nica ligao oferecida. A Estao So Bento no teve melhor sorte. Os pedestres que dali se dirigem ao vale, so recebidos pela ala de retorno sobre a extremidade norte do tnel, o nal da laje, e mais uma vez devem passar por uma calada relativamente estreita antes de chegar praa. Quando observamos como resolvida a terceira porta, essa contradio ainda mais explcita, quase irnica. Entre todas as decises de desenho tomadas durante o desenvolvi- mento do trabalho, a mais questionvel, quase absurda, provavelmente a interrupo do cruzamento da Avenida So Joo atravs da implantao, precisamente em seu eixo, de um extenso canteiro, com jardins e espelhos dgua, e um pequeno espao rebaixado, a Praa do Caf 7 . Estes elementos, alm de interromper visualmente o eixo da avenida, atravancam o cruzamento no ponto do vale onde ele mais solicitado. Em dias movimentados, perce- be-se nitidamente a linha de pedestres cruzando o vale, se transformar em um arco, que contorna os obstculos e retoma, resignada 8 , o caminho desejado. O trecho da laje posicionado em frente Praa Ramos de Azevedo caracterizava-se no projeto do concurso como Praa para comcios e eventos pblicos. Na soluo executada, o nome permaneceu, mas seu desenho foi completamente modicado. Onde antes estava previsto espao livre para a acumulao de pblico, foi instalado um enorme canteiro ajar- dinado, sucientemente elevado como para indicar que ali pessoas no so bem-vindas, e um conjunto de pequenas arquibancadas com uma linguagem referenciada aos projetos de Lawrence Halprin. 9 A praa de eventos no tem como receber eventos e as pessoas no tem onde car. Alteraes no sistema virio, realizadas durante o desenvolvimento do projeto, termina- riam por inviabilizar a Praa Pedro Lessa da forma como havia sido proposta. O dimensio- namento nal do terminal de nibus, o desenho da ala de retorno sobre a boca do tnel e sua ligao com as ruas do Seminrio e Capito Salomo, reduziram a rea dessa praa a um tero do que havia sido prevista, impossibilitando sua utilizao como rea de lazer. Durante alguns anos funcionaram escadas rolantes que ligavam as paradas para nibus e txis que existem no nvel do tnel aos nveis superiores. Longe de constituir uma conexo espacialmente interessante, esse conjunto oferecia uma melhor acessibilidade para um n- 7 O espao nunca funcionou propriamente. Atualmente, abriga um pequeno posto de segurana e um conjunto de banheiros pblicos. 8 Resignao: 3. Submisso paciente aos sofrimentos da vida. (AURLIO) 9 Lawrence Halprin (1916-) um paisagista estadunidense que obteve grande projeo no nal dos anos 1960 e incio dos 70. Sua produo desse perodo trabalhou, entre outras coisas, com a questo do automvel nas cidades e sua repercusso nos espaos pblicos. Fig.375 Vista do viaduto Santa Egnia e setor norte do vale a partir do Edifcio Mirante do Vale. A ligao entre a Estao So Bento do Metr e a praa ca estrangula- da pela ala de retorno. Fig.376 Sada da Estao So Bento para o vale. Fig.377 Vista da Rua Formosa a partir do Ch. Os passeios laterais pro- movem a ligao entre a Estao Anhangaba e a praa. Fig.378 Sada da Estao Anhangaba para o vale. [Arquivo do autor] 332 333 O VALE COMO RESDUO mero considervel de usurios do Centro e criava, por mais precrio que fosse, um vnculo entre todos os nveis construdos. Como se viu, antes mesmo de serem construdos, um a um, todos os espaos pbli- cos propostos sobre a laje foram perdendo suas caractersticas e seu sentido. lamentvel perceber que depois de tanto tempo de espera e tanto dinheiro pblico investido naquele recinto, os principais problemas listados pela equipe de arquitetos, como justicativa da soluo proposta, permaneceram aps sua implantao. As armaes abaixo, retiradas do memorial descritivo elaborado para o concurso, poderiam inequivocamente referir-se ao Anhangaba atual: (...) o problema bsico, o nico a justicar uma interveno profunda, o empobre- cimento funcional e desperdcio do Vale como espao urbano desfrutvel: apesar de sua acessibilidade urbana (...), no tem funo de ponto de encontro; apesar de seu potencial e valores paisagstico-culturais, no h como nem por que nele permanecer e gozar; apesar de sua localizao ensejar encontros de solidariedade, no tem hoje o menor teor de urbanidade. 10 10 WILHEIM, Jorge, e equipe. Memorial descritivo apresentado ao concurso. Prancha 01. Figs.379 a 382 Praa do caf, posicionada no eixo da Avenida So Joo. [Arquivo do autor] 334 335 O VALE COMO RESDUO Figs.383 a 384 Planta e vista da Praa Lovejoy, de Lawrence Halprin, 1961-68. O estadunidense exerceu grande inuncia sobre os paisagistas brasileiros que se formaram nos anos 60 e 70. [PROCESS ARCHITECTURE n 4, Fev. 1978] Fig.385 Canteiros e espelhos dgua prxi- mos Praa Pedro Lessa. [Arquivo do autor] Fig.386 Paisagismo da praa logo aps sua inaugurao. Cristiano Mascaro. [ARQUITETURA E URBANISMO n 42, Jun/Jul 1992. p.33.] Fig.387 Fotograa atual da Praa Pedro Lessa. [Arquivo do autor] 336 Fig.388 O Viaduto do Ch, com seu inten- so movimento, marca a fronteira entre a praa vazia e a avenida com seu uxo permanente. [Arquivo do autor] Figs.389 e 390 O m do Anhangaba. [Arquivo do autor] Fig.391 Vista do vale a partir do canteiro central da avenida. [Arquivo do autor] Fig.392 Vista noturna do mesmo ponto. [PRAA RAMOS, VIADUTO DO CH, PRAA DO PATRIARCA. Instituto Cultural Ita. So Paulo: ICI, 1994.] 337 O VALE COMO RESDUO 338 339 O VALE COMO RESDUO Projetos recentes O clima de otimismo provocado pela inaugurao do Novo Parque Anhangaba reper- cutiu atravs de diversas iniciativas de re-qualicao de pontos especcos ligados ao vale. Desse conjunto se destacam a nova cobertura do acesso superior Galeria Prestes Maia e a remodelao da Praa do Patriarca 11 , a instalao de uma lial do MASP no salo de ex- posies dessa mesma galeria, transformao do Edifcio Alexander Mackenzie, antiga sede da Light, em Shopping Center, transformao, ainda no concluda, do Edifcio Central dos Correios em centro cultural e mais recentemente a instalao da sede da Prefeitura Municipal no Edifcio Matarazzo. Algumas intervenes pontuais tiveram de ser realizadas tambm para amenizar decincias do projeto, como a nova passarela de acesso ao Terminal Bandeira. Em outubro de 1991, foi fundada a Associao Viva o Centro, organizao sem ns lucrativos nanciada por empresas e entidades privadas, com o objetivo de contribuir para a revalorizao histrica, arquitetnica e urbanstica; para o desenvol- vimento e aprimoramento humano e social; para a animao e efervescncia cultural em todos os aspectos; para a pesquisa, o estudo e o desenvolvimento das cincias e da educao, entre outras contribuies, em benefcio da regio central da Cidade de So Paulo (Centro); 12 Aps alguns anos, os impactos do novo projeto sobre a dinmica daquele espao co- meou a ser assimilado e o perodo otimista chegaria ao m. O tema de discusso passaria ento a ser como recuperar parte da vitalidade perdida e que medidas tomar para criar melhores condies de utilizao do vazio criado. Em agosto de 1996 a Associao Viva o Centro apresentou o estudo So Paulo Centro: uma nova abordagem, coordenado pela arquiteta Regina Prosperi Meyer 13 . O estudo con- tinha uma anlise abrangente da rea central e um conjunto de sugestes, que deveriam se desdobrar em uma srie de projetos especcos e, quando fosse pertinente, em concursos 11 Projeto do Arquiteto Paulo Mendes da Rocha. 12 Primeiro pargrafo do artigo Finalidades Institucionais da Associao. Fonte: www. vivaocentro.org.br/vivaocentro/ estatuto.htm (18/01/2007) 13 Equipe: Regina Prosperi Meyer (coordenao geral); Fernando de Mello Franco, Marcelo Laurino e Sarah Feldman (coordenao de projeto); Ktia Pestana, Keila Costa, Marta Moreira e Milton Braga (colaborao); Alexandre Hodapp, Ana Paula Nascimento, Daniel Hopf, Luciana Itikawa, Marco Antonio dos Santos e Robson Castilho. Fig.393 Planta com o mapeamento de espaos pblicos na rea central. [ASSOCIAO VIVA O CENTRO. So Paulo Centro: uma nova abor- dagem. So Paulo: Associao Viva o Centro, 1996. p.35.] Fig.394 Subsistemas de espaos pblicos no centro. Centro Velho, Centro Novo e Anhangaba. [ASSOCIAO VIVA O CENTRO, 1996. p.37.] 340 Fig.395 Propostas de interveno [ASSOCIAO VIVA O CENTRO, 1996. p.41.] Fig.396 Irrigao. Estudo de acessibilida- de com abertura de calhas virias [ASSOCIAO VIVA O CENTRO, 1996. p.40.] 341 O VALE COMO RESDUO pblicos de projetos. O estudo destacava o Vale do Anhangaba como um subsistema que se organiza a partir de um grande espao pblico que acopla uma srie de praas menores, em diferentes planos, aos quais se articula atravs de passagens, galerias, escadarias 14 , e apresentava as seguintes leituras e propostas: A interveno proposta se d no sentido de resgatar a forma e a idia de vale e eviden- ciar a separao existente entre Centro Novo e Centro Velho, diferenciando o fundo do vale dos espaos pblicos lindeiros e demarcando seus limites. Prope-se o retorno controlado de veculos ao Vale, sobretudo dos nibus de linhas circulares, distinguindo o uxo expresso de passagem (no subsolo) do uxo local (na superfcie). A presena dos nibus (...) possibilitar a irrigao do Centro atravs de sua porta de acesso em- blemtica e principal. Procura-se reanimar as suas bordas, de forma a reinserir uma expresso de dinmica metropolitana que lhe foi extirpada. A lista de intervenes propostas realizaria, no m das contas, uma recongurao de toda a superfcie do vale, atravs da abertura de um sistema de vias locais para o trfego de veculos, a recuperao da travessia no eixo da So Joo com a demolio da Praa do Caf e dos canteiros construdos e uma nova pavimentao que demarcasse com clareza alguns limites pouco congurados. O Anhangaba, no mbito dessa abordagem, era visto como um espao fundamental- mente de articulao. Suas funes primordiais seriam demarcar, atravs do seu espao va- zio, os limites entre o Centro Velho e o Centro Novo e comunicar e organizar os espaos pblicos a ele adjacentes. Diferente da abordagem da equipe de Jorge Wilheim, o vale nunca era tratado em si mesmo, mas sempre em relao . No nal de 1996, como um desdobramento do estudo anteriormente comentado, foi promovido pela Prefeitura Municipal, atravs da Secretaria da Habitao e Desenvolvimento Urbano - SEHAB, e organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB/SP, o Concurso Nacional de Idias para um Novo Centro de So Paulo. A abrangncia do concurso englo- bava toda a rea central da cidade e, por se tratar de um concurso de idias, seu escopo no 14 ASSOCIAO VIVA O CENTRO. So Paulo Centro: uma nova abordagem. So Paulo, 1996. p.36. 15 Giancarlo Gasperini, Joaquim Guedes, Jos Eduardo de Assis Lefvre, Regina Prosperi Meyer, Srgio Santos Morais, Marco Antonio R. de Almeida e Sanderley Fiusa 342 343 O VALE COMO RESDUO era claramente determinado. O jri 15 avaliou 64 trabalhos e outorgou o primeiro prmio equipe formada por tcnicos da empresa PROMON, tendo como coordenadores os arqui- tetos Joo Batista Martinez Corra e Jos Paulo de Bem e o engenheiro Ronan Ayer 16 . A proposta vencedora constitua-se de um ambicioso plano de grandes intervenes de carter predominantemente virio e, fundamentalmente direcionadas ao automvel par- ticular. Seguindo a tradio iniciada por Prestes Maia, era proposta uma nova perimetral localizada em grande parte sobre o leito ferrovirio, que seria rebaixado, e um conjunto de tneis que aprimoraria o funcionamento do Sistema Y. A partir dessas decises estrutu- rais, eram desenvolvidas as solues pontuais. No contexto descrito, o Vale do Anhangaba seria totalmente reformulado do ponto de vista fsico e funcional. Com o trnsito de passagem afastado pelo sistema de tneis de grande profundidade, novas vias sobre a superfcie do vale receberiam o uxo local e o antigo tnel, destitudo de suas funes virias, seria convertido em um grande terminal linear de nibus com novo sistema de ventilao, escadas rolantes e acabamentos capazes de transform-lo em arquitetura 17 . O vo central do Viaduto do Ch seria encerrado por uma cortina estaiada de vidro estrutural de modo a abrigar um dos acessos ao terminal. O sistema proposto de vias de trfego local sobre a superfcie do vale conformaria um novo conjunto de espaos residuais, um miolo, que receberia novo tratamento paisagstico. O miolo um jardim geomtrico denido por cruzamentos de caminhos relaciona- dos com edicaes, espaos e percursos, que formam grandes canteiros nivelados e ligeiramente elevados, compensando os desnveis transversais existentes; nos canteiros, paralelas aos viadutos do Ch e Santa Egnia denem um padro de gramados e espelhos dgua, permanecendo as poucas grandes rvores remanescentes no local, na sua singularidade de implantao. (...) O desenho proposto dene longitudinalmente o espao do vale, o que separa e qualica os espaos anexos laterais. O Anhangaba um espao monumental, pouco acolhedor, um lugar de passagem, de cruzamentos, para ser visto de cima. 18 . 16 Arquitetos Colaboradores: Roberto Rigui, Ernesto Zamboni, Flvio Pastore, Marcelo Fragelli, Srgio Coelho, Cssio Hosomi, Maria Luiza de Oliveira, Rita Guimares, Walter Gosslar, Cludio Falco, Edson Borges e Mauro Lima. Engenheiros: Hrcules Fidalli, Luiz Szio, Renato Mendona, Shigeru Yamamoto e Leonardo Loureno. 17 PROMON. Concurso Nacional de Idias para um Novo Centro de So Paulo. So Paulo: PROMON, 1997 (folheto de divulgao do projeto). p.14. (grifo nosso) 18 PROMON, 1997. p.15. Fig.397 Perspectiva do vale com a Praa da Bandeira em primeiro plano. [PROMON. Concurso Nacional de Idias para um Novo Centro de So Paulo. So Paulo: PROMON, 1997 (folheto de divulgao do projeto)] Fig.398 Planta geral com a indicao dos tneis propostos. [PROMON, 1997] 344 345 O VALE COMO RESDUO Fig.399 Perspectiva do vale com a Praa da Bandeira esquerda. [PROMON, 1997] Fig.400 Viaduto do Ch e novo paisagismo proposto. [PROMON, 1997] Fig.401 Proposta de ocupao para as pro- ximidades do Largo So Bento. [PROMON, 1997] 346 Figs.402 e 403 Planta da proposta e corte trans- versal pela passagem inferior. [ASSOCIAO VIVA O CEN- TRO. Refuncionalizao do Vale do Anhangaba. So Paulo: Associao Viva o Centro, 2005.] 347 O VALE COMO RESDUO Utilizando parte da argumentao encontrada no estudo So Paulo Centro; uma nova abordagem, o projeto perseverava em tratar o recinto como resultado de operaes externas, neste caso os grandes tneis, desenhado a partir de um padro auto-referente. Desprovido de qualquer carter, certamente se constituiria em um fracasso maior que os anteriores. A iniciativa mais recente contendo propostas abrangentes para o recinto do vale, dis- cutida em mbito pblico atravs de notcias na imprensa e de publicao especca, o projeto de Refuncionalizao do Vale do Anhangaba, desenvolvido sob a chancela da Associao Viva o Centro e apresentado em 2005. Seus autores 19 so basicamente os mesmos tcnicos que elaboraram a proposta vencedora do concurso de 1996 comentado anterior- mente, mas as aes propostas so muito mais contidas. O objetivo fundamental da proposta a criao de um circuito virio, voltado para o trnsito local, que permita a irrigao desse setor da rea central. A obra que resultou no atual Vale do Anhangaba, da forma como foi executada, resolveu um dos grandes problemas da cidade de So Paulo a ligao rodoviria norte-sul/sul-norte mas gerou outro grave: tornou o Centro ilhado e estrangulado. Resolveu o problema do trfego de passagem, mas eliminou o trfego local. O imenso calado do Centro Velho fundiu-se ao do Centro Novo, por meio de um novo cala- do no Anhangaba. Para irrigar o interior do corao da cidade restaram apenas o circuito formado pela ruas Boa Vista e Lbero Badar, no Centro Velho, e Xavier de Toledo e nal da Conselheiro Crispiniano, no Centro Novo. S se adentra nessa imen- sa rea por veculo coletivo, ou particular, pela Praa da S ou pela Xavier do Toledo. Qualquer incidente em uma dessas vias bloqueia o acesso ao Centro, impacta a rtula central (o anel virio em torno dessa rea) e os acessos a ela. A proposta restabelece, sem perda das caractersticas de pequeno parque central do Vale, o trnsito de veculos no local, junto aos edifcios, e cria uma rambla contnua para o pedestre, na Avenida So Joo, entre o Largo do Paissandu e a Rua Lbero Ba- dar. Cria-se assim um acesso adequado e fcil ao Centro, facilita-se a circulao e a 19 PROMON Engenharia (Ronan Ayer, Beatriz Miranda, Clarindo Corazza, Lus Szio, Maria Palombini e Shigeru Yamamoto), JBMC Arquitetura e Urbanismo (Joo Batista Martinez Corra, Beatriz Corra, Alssio Dionisi e Renilson de Souza) e Geomtrica Engenharia de Projetos. Fonte: Refuncionalizao do Vale do Anhangaba. So Paulo: Viva o Centro, 2005 (folheto de divulgao do projeto). 348 349 O VALE COMO RESDUO segurana do pedestre, aumenta-se a segurana noite, viabiliza-se economicamente o Vale e desobstrui-se o corao da Cidade. 20 As vias seriam implantadas sobre o paisagismo existente, preservando tudo o que esti- vesse fora do caminho dos leitos virios propostos. O rebaixo da Praa do Caf, proposta por Jorge Wilheim, seria aproveitado para a criao de uma passagem inferior de veculos, permitindo desse modo a congurao de uma rambla contnua de oito metros de largura entre a Praa Antonio Prado e o Largo Paissandu. Neste projeto, mais uma vez as intervenes so pautadas pelo desenho virio e pela tica exclusiva do automvel. De teor imediatista, no contribui para a caracterizao to necessria daquele recinto. Se estiver correta a hiptese de que o Novo Anhangaba inau- gurado em 1991, o espao residual de uma grande operao viria, o espao resultante deste projeto seria ento o resduo do resduo. O estado atual do debate sobre o Anhangaba, e as propostas que dele emergiram at o momento, assemelha-se ao perodo dos anos 1970, no qual projetos eram lanados sob uma nvoa de argumentos e problemas emergentes a serem sanados, onde raramente as questes fundamentais eram apontadas com clareza. Identicar os problemas colocados pelo Anhangaba hoje, o desao a ser enfrentado. 20 ASSOCIAO VIVA O CENTRO. Refuncionalizao do Vale do Anhangaba. So Paulo, 2005 (folheto de divulgao do projeto). Fig.404 Passagem inferior sob o cruzamen- to da Rambla So Joo. Fig.405 Vista geral do vale. Figs.406 Vista da Rambla So Joo em direo ao Centro Velho. [ASSOCIAO VIVA O CEN- TRO. Refuncionalizao do Vale do Anhangaba. So Paulo: Associao Viva o Centro, 2005.] 350 351 O VALE COMO DESAFIO consideraes fnais o vale como desafo 352 353 O VALE COMO DESAFIO Evoluo do recinto Tomando como ponto de partida o ano de 1877, no momento em que Jules Martin pre- gou na vitrine de sua loja a primeira imagem do Viaduto do Ch, um intervalo de 130 anos foi o perodo abordado nesta dissertao. Ao longo do tempo, aquilo que se denominou de recinto do Anhangaba teve abrangncias espaciais muito diversas, conforme o momento histrico e o contexto de cada projeto estudado. importante identicar como variou o papel urbano exercido pelo vale ao longo da histria, de modo a alimentar a discusso de como ele poderia ser interpretado hoje. Antes de realizar essa retrospectiva, necessrio esclarecer os sentidos atribudos aqui, ao termo recinto. A maioria dos dicionrios dene o termo como um espao compreendi- do dentro de certos limites. Esse um dos sentidos adotados neste trabalho, mas no o ni- co. Os limites que o denem no so necessariamente espaciais. Eventualmente esses limites podem ser determinados por uma funo ou uma propriedade: avenida; parque; resduo. Desta maneira, o termo pode variar sutilmente de sentido de acordo com a abordagem do projeto referido. Durante o perodo em que o vale representou uma barreira, poderia se dizer que o recin- to pouco importava. Para Jules Martin o espao em questo era o do prprio viaduto, ou as duas reas que este conectava. Seu desprendimento em relao ao modo de permitir a traves- sia, que poderia at ter sido realizada atravs de um aterro, atesta que naquele contexto o vale em si no era relevante. Do mesmo modo isso pode ser vericado atravs dos outros dois viadutos analisados. Tanto o de Kuhlmann, quanto o Santa Egnia, no pretendiam dialo- gar com a cidade baixa e literalmente passaram por cima do que estava em seu caminho. Quando o Anhangaba passou a ocupar uma posio central em relao ao conjunto da cidade, seu espao comeou a ser compreendido como uma oportunidade. Esse o argu- mento do segundo captulo desta dissertao. Apesar disso, naquele perodo a congurao do lugar Anhangaba e de seus limites espaciais, teve variadas interpretaes. Para Adolfo Augusto Pinto, o recinto era determinado pela hidrograa, se estendendo, portanto, at seu encontro com o Tamanduate. Seus limites espaciais no cavam clara- 354 355 O VALE COMO DESAFIO mente denidos, mas pode se vislumbrar a escala de sua abrangncia. Nas indicaes do Vereador Silva Telles, os limites do que se entendia por Vale do Anhangaba eram claros: Rua Lbero Badar, Ladeira Dr. Falco, Piques, Rua Formosa e So Joo, acrescentando-se uma pequena praa no local onde, alguns anos depois, seria criada a Praa do Correio. Nessa proposta o recinto era basicamente um vazio, regular e fechado. Nenhuma constru- o, salvo a residncia do Conde de Prates, invadia seus limites. Para Alexandre Albuquerque o Anhangaba no existiria como um recinto. O vazio existente signicava em seu projeto terreno disponvel, e com o inevitvel crescimento da rea seria ocupado por novas edica- es. Na proposta Freire-Guilhem, se considerarmos apenas a planta do projeto, o recinto era basicamente o mesmo da proposta de Silva Telles, acrescido da Praa Ramos de Azevedo, em frente ao novo Teatro Municipal, e do alargamento da Rua de So Joo incluindo um novo viaduto e seus prolongamentos. Na perspectiva desenhada esse recinto era signica- tivamente ampliado, incorporando uma quadra no trecho nal da encosta leste do vale, o Largo de So Bento e o Viaduto Sta. Egnia. O projeto de Samuel das Neves reduzia o recinto largura da avenida proposta e isolava esse espao dos demais vazios sua volta. No entanto suas extremidades poderiam ser expandidas para norte e para sul, transformando- se num extenso corredor. Coube a Bouvard denir quais seriam os limites do recinto do Anhangaba, e embora concordasse com as premissas do projeto de Victor da Silva Freire, foi obrigado a conciliar interesses conitantes, o que o levou a uma drstica reduo do vazio anteriormente propos- to. Construes junto So Joo e ao Piques, mais os blocos junto Libero Badar, redu- ziam o recinto a praticamente uma extenso da Praa Ramos. Durante a execuo do parque eliminaram-se os edifcios previstos junto ao Piques 1 possibilitando uma melhor integrao desse setor com o espao livre geral. O desenvolvimento e a expanso da cidade, estruturados sobre um modelo rodoviaris- ta, transformariam o Anhangaba construdo durante os anos 10 e 20 em um corredor de passagem. Esta transformao constituiu o tema do terceiro captulo deste trabalho. As proposies iniciais de Prestes Maia, contidas no Plano de Avenidas, apresentavam uma imagem do Anhangaba como um recinto fechado, conformado por novos viadutos 1 Uma leira de casas na Rua Formosa, entre o Viaduto do Ch e a Ladeira da Memria, permaneceria ainda por mais alguns anos aps a implantao do projeto de Bouvard. Fig.407 O recinto do Anhangaba, conforme o projeto de Bouvard acrescido da Praa do Patriarca. [Fonte da base: TOLEDO, 1989. p.175] 356 357 O VALE COMO DESAFIO e monumentais conjuntos edicados. No entanto, a implantao do Sistema Y geraria na verdade um Anhangaba completamente diferente, assumido por Prestes Maia nos planos posteriores. Ao invs do monumental espao fechado, um monumental eixo de passagem, sem limites claramente denidos, tomou conta do lugar. A construo do trecho sul do Permetro de Irradiao, atravs dos viadutos Nove de Julho, Maria Paula e Jacare, estabe- leceu novos limites para esse setor do vale, e a abertura da Avenida Prestes Maia gerou uma diluio de seu permetro norte. Desta maneira, a partir dos anos 30 e de modo mais acen- tuado durante os anos 40, ocorreu uma signicativa expanso fsica do recinto e uma certa diluio de seu permetro. Essa congurao prevaleceria at os anos 80. Em 1974, Vilanova Artigas props uma leitura do Anhangaba a partir dos sistemas metropolitanos dos quais participava, assumindo o uxo de veculos e a massa de pedestres, como elementos imprescindveis e, sobretudo, conciliveis. As restries impostas durante o desenvolvimento do projeto levariam a um relativo empobrecimento do partido adotado e formulao de um conjunto de intervenes que no respondia altura aos questiona- mentos iniciais que o arquiteto havia levantado. Com a realizao do concurso nacional em 1981 e a construo da proposta vencedo- ra, concluda dez anos depois, estabeleceu-se uma nova estruturao do recinto do vale. O partido adotado, do tnel e da praa 2 , limitava a extenso da segunda a um trecho rela- tivamente pequeno, entre os viadutos Ch e Santa Egnia. a laje, agora, que determina o recinto. Hoje em dia, quando algum se refere ao Vale do Anhangaba, est se referindo praa implantada sobre a laje. No poderia estar se referindo regio da Praa da Bandeira nem ao trecho da Avenida Prestes Maia posterior ao Viaduto Santa Egnia, pois estes no pertencem mais ao recinto. At mesmo a avenida e o Sistema Y foram excludos. A seqncia de imagens a seguir procura explicitar gracamente, atravs da compa- rao de plantas e fotograas areas com recortes e escalas similares, as transformaes espaciais propostas e ocorridas no Anhangaba ao longo do tempo. Os comentrios que acompanham cada uma representam a continuao deste texto. 2 BUCCI, 1998. p.109. Fig.408 Recinto do Anhangaba aps as obras do Permetro de Irradiao. A avenida expandiu seu limite norte a ponto de dilu-lo. A praa da Bandeira, ainda sem construes, ampliou sua abrengncia conferindo-lhe uma nova escala. [Fonte da base: TOLEDO, 1996. p.129] 358 Fig.410 Projeto de Samuel das Neves (1911) sobre mapa de 1930. Apesar de inoportuno em seu momento, o projeto de Neves se assemelhava muito ao espao que se conguraria no vale poucas dcadas depois. [Bases: Planta do projeto de Samuel das Neves (Fig.82) e Levantamento SARA] Fig.409 Projeto de Silva Telles (1907) sobre mapa de 1881. A dimenso do parque de Telles superava a do projeto de Bouvard. No momento de sua proposio, o contraste com a cidade existente devia ser escandaloso. O recinto incorporava o local da futura Praa do Correio, encosta da Ladeira Dr. Falco, largo da Memria e Piques. Planta da Cidade de So Paulo, 1881, Henry P. Joyner. [Bases: Planta do projeto Silva Telles (Fig.73) e Planta da Cidade de So Paulo, 1881, Henry P. Joyner (Fig.7)] 359 O VALE COMO DESAFIO Fig.412 Projeto de Bouvard (1911) sobre mapa de 1930. Para conciliar interesses conitantes, Bouvard teve que abrir mo de premissas importantes das propostas Silva Telles e Freire Guilhem, e permitir a ocupao da enconsta junto Lbero Badar, alm de prever construes em vrios outros pontos. O prolongamento at a So Joo tambm no ocorreu e o parque nalmente construdo acabou sendo acanhado ante as propostas que j haviam sido formuladas. [Bases: Planta do projeto de Bouvard (Fig.88) e Levantamento SARA] Fig.411 Projeto Freire-Guilhem (1911) sobre mapa de 1930. O projeto guardava as virtudes do parque de Silva Telles e ampliava sua abrangncia ao incorporar a Praa Ramos de Azevedo, Antonio Prado e a Av. So Joo alargada. [Bases: Planta do projeto Freire- Guilhem (Fig.77) e Levantamento SARA] 360 Fig.414 Melhoramentos de Prestes Maia (1945) sobre mapa de 1930. Em seu segundo projeto para o Anhangaba, Maia adota uma concepo completamente oposta anterior. Ao invs do jardim e do recinto fechado, uma brutal avenida sem limites denidos. Comparada a esta, a avenida de Samuel das Neves se torna uma rua ordinria. O grasmo que Maia utiliza em sua representao, reete a violncia com que a via se insere na cidade. [Base: Planta geral dos melhoramentos centrais (Fig.191)] Fig.413 Anhangaba do Plano de Avenidas de Prestes Maia (1930) sobre mapa de 1930. Em sua primeira proposta para o Anhangaba, Maia expande os limites do recinto para norte, at o Viaduto Santa Egnia, e para sul, com o Pao proposto alm do Piques. Prev, no entanto, ocupao junto Rua Formosa e Ladeira Dr. Falco. O recinto rigidamente fechado e arrematado pelas torres junto aos viadutos propostos. Extensos jardins ocupam os intervalos entre as pistas. [Bases: Plano de Avenidas (Fig.186) e Levantamento Sara] 361 O VALE COMO DESAFIO Fig.416 O recinto em 1958. Nesta imagem encontramos a grande avenida concretizada. Ao recinto se incorporaram o Viaduto Santa Egnia, Largo So Bento, Praa Pedro Lessa, Praa Antonio Prado e Av. So Joo. A Praa da Bandeira, ainda no ocupada, apresentava tratamento de praa. [Base: IDOETA, 2004] Fig.415 O recinto em 1945. Embora parcial, a fotograa permite ver a congurao interna do vale j como uma avenida, mas com seu limite norte ainda restrito Avenida So Joo. O extremo sul havia se expandido consideravelmente com as demolies na rea da Praa da Bandeira e a constro do Permetro de Irradiao (ver Fig.408). [Base: IDOETA, Irineu. So Paulo vista do alto: 75 anos de aerofotogrametria. So Paulo: rica, 2004] 362 Fig.418 O recinto em 1974. O vazio da Praa da bandeira reduzido mais um pouco com a contruo de uma garagem e novo sistema virio. O Viaduto Stevaux contribui para a excluso denitiva desse setor do recinto. A Estao So Bento do Metr, praticamente concluda, permite uma melhor integrao entre o largo homnimo e o vale. [Base: IDOETA, 2004] Fig.417 O recinto em 1968. Duas construes reduzem a dimenso do vazio do ANhangaba: a Cmara Municipal junto Praa da Bandeira e o Palcio Zarzur & Kogan (atual Ed. Mirante do Vale), junto ao Viaduto Santa Egnia. O primeiro, inaugurou uma ocupao que terminaria por excluir o Viaduto Jacare do recinto e reduzir consideravelmente a escala da Bandeira. O segundo, aliando suas dimenses descomunais sua implantao perpendicular avenida, arrematou o extremo norte do vale. [Base: IDOETA, 2004] 363 O VALE COMO DESAFIO Fig.420 O projeto de Artigas, 1974. Pormenor da planta original de Artigas com o mesmo recorte das imagens anteriores. Notar as propostas de aperfeioamento virio do Permetro de Irradiao. [Base: ARTIGAS, 1974] Fig.419 Prpostas de Artigas sobre a foto de 1974. A abrangncia da abordagem de Artigas extrapola os limites do recorte da imagem mas representada pelo Y destacado. Os dois terminais e o sistema de marcha a p teriam forte presena no espao geral. [Bases: ARTIGAS, 1974 e IDOETA, 2004] 364 Fig.422 O recinto em 2005. Desde a construo do projeto de Jorge Wilheim, inaugurado em 1992, o vale permanece inalterado. Nessa congurao o recinto encolheu chegando a dimenses ligeiramente superiores s do parque de Bouvard. A laje o elemento que estabelece os limites atuais do Anhangaba. [Base: Google Earth (Dez/2006)] Fig.421 O recinto em 1986. Poucas modicaes signicativas ocorrem entre meados dos anos 70 e a dcada de 80. A Praa da Bandeira nalmente ocupada em toda a sua extenso, seja por edifcios, paradas de nibus ou desajeitadas passarelas de pedestres. [Base: IDOETA, 2004] 365 O VALE COMO DESAFIO Fig.424 O recinto possvel. Considerando as possibilidades presentes e futuras que se oferecem para o vale, e as disposies experimentadas no passado, o desao que se coloca fazer com que o recinto volte a assumir uma congurao abrangente do ponto de vista espacial e representativa sob o aspecto simblico. [Base: Google Earth (Dez/2006)] Fig.423 Espaos livres pblicos adjacentes ao Vale do Anhangaba. Estudos anteriores j mostraram as possibilidades arquitetnicas oferecidas pelo conjunto de espaos pblicos existente na rea central. A transformao desse conjunto em um sistema um dos desaos a serem enfrentados e o Vale do Anhangaba o elemento chave. As praas da Bandeira e Pedro Lessa oferecem novas perspectivas com a eliminao, a mdio prazo, dos terminais de nibus. [Base: Google Earth (Dez/2006)] 366 367 O VALE COMO DESAFIO Construes, destruies... Toda interveno pressupe uma destruio; destrua com sensibilidade. 3 Se a cidade de So Paulo foi construda e reconstruda trs vezes em um sculo 4 , o Vale do Anhangaba no teve diferente sorte. Do ponto de vista fsico, e considerando o vale como um todo, quatro foram as suas conguraes at hoje. A primeira, quase casual, era marcada pela sua topograa natural revestida por plantaes de ch e cortada pelo capri- choso ribeiro a cu aberto. A segunda a do Parque Anhangaba, segundo o projeto de Bouvard. Para sua construo, foi necessria a destruio de sua topograa original, do ribeiro que ali corria e de um nmero signicativo de edifcios. A terceira congurao foi a da Avenida Anhangaba, que ocupou o fundo do vale destruindo o parque e outra grande quantidade de edifcios, incluindo o antigo Viaduto do Ch. A quarta e ltima a congurao atual, do tnel e da praa. Para sua implantao destruiu-se mais uma vez a topograa do lugar e principalmente a avenida. O que se observa para o vale como um todo, acontece tambm de maneira pontual. Para se construir o Viaduto do Ch atual, foi necessrio demolir o anterior; para erigir o Edifcio Alexander Mackenzie, sede da Light, destruiu-se o Teatro So Jos; os palacetes do Conde de Prates deram lugar ao Edifcio Conde de Prates e outra torre; demoliram-se vrios edifcios para a construo do vazio da Praa do Patriarca. No h saudosismo ou lamentao nas armaes acima. So constataes que reme- tem frase de Snozzi citada no icio desta pgina. Aps tantas construes e tantas destrui- es, o saldo o Anhangaba que est l. Mas h ainda outros tipos de construes, e suas respectivas destruies, que no dizem respeito ao ambiente material da cidade ou do vale; que esto ligados a aspectos simblicos ou subjetivos e que por isso so menos bvios, mas podem ser mais impactantes que os ou- tros. A construo do primeiro Viaduto do Ch destruiu uma barreira histrica; a construo 3 Ogni intervento presuppone una distruzione, distruggi con senno. SNOZZI, Luigi. Luigi Snozzi: costruzioni e progetti 1958-1993. Lugano: ADV, 1995.(traduo nossa) 4 TOLEDO, Benedito Lima de. So Paulo: trs cidades em um sculo. So Paulo: Duas Cidades, 1983. Fig.425 Alegoria derrota do baro de Tatu e demolio de sua casa. [TOLEDO, 1996. p. 61.] 368 369 O VALE COMO DESAFIO do Parque Anhangaba apagou, ou pelo menos pretendeu apagar, a imagem de uma cidade atrasada e provinciana; a construo da avenida destruiu o silncio do parque e destruiu o modo como, at ento, o paulistano se relacionava com aquele espao; a construo do Anhangaba atual destruiu o sentido geogrco caracterstico daquele territrio e a relao do recinto com a metrpole. O vale como desao de projeto A constituio do Anhangaba como um ponto focal da estruturao da cidade de- mandou dcadas de projetos e construes para se estabelecer e fazer daquele espao uma referncia de urbanidade. A sionomia do parque, freqentemente retomada com saudo- sismo, por mais bela que possa ter sido no teve fora para cristalizar o carter do recinto. Rapidamente a presena do automvel se imporia e iria ganhando espao at se congurar a grande avenida. Se fosse necessrio apontar o sentido que mais profundamente marcou sua sionomia e mais impacto teve sobre sua dinmica interna, este seria o de passagem, simbolizado pela avenida. A saturao desta, somada ao incremento do uxo de travessia transversal a p, gerou uma situao violenta insustentvel. A resposta a esse problema, for- mulada coletivamente, resultou na congurao atual. ngelo Bucci fez referncia psicanlise para caracterizar o Anhangaba hoje: O drama dos atropelamentos tornou-se o pesadelo que h dcadas atormenta a popu- lao. A laje de concreto escondeu os automveis em 500m de uma via arterial que tem 13 quilmetros de extenso. No Anhangaba, entre um viaduto e outro, j no existem atropelamentos, mas algum de p ali v o mergulho dos automveis, ouve o urro dos motores e sente o cho tremer aos ps. Por isso o Anhangaba atual tem a imagem simblica do pesadelo recalcado, o trauma. 5 Outro conceito psicanaltico que ilumina um aspecto importante do Anhangaba atual o do estranhamente familiar 6 . Transposto da teoria psicanaltica para a teoria da arqui- 5 BUCCI, 1998. p.105. 6 VIDLER, Anthony. Uma teoria sobre o estranhamente familiar. Apud NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia terica (1965-1995). So Paulo: Cosac Naify, 2006. p.617. Fig.426 Comcio das diretas, 1984. Joo Bittar [Cmara Brasileira do Livro: 50 anos. So Paulo: Prmio, 1997] 370 Fig.427 Anhangaba atual. [Nelson Kon] 371 O VALE COMO DESAFIO tetura e do urbanismo em meados dos anos 1980, esse conceito coloca em primeiro plano o corpo e o sujeito em relao experincia vivida da arquitetura e da cidade. Sigmund Freud, em ensaio de 1919, deniu o termo como a redescoberta de algo familiar que foi anteriormente reprimido, o inquietante reconhecimento da presena de uma ausncia. 7
precisamente essa a sensao que se tem ao percorrer aquele espao. A presena da ausncia do carter metropolitano representado pela passagem da avenida. Nos ltimos quinze anos, no ocorreram mudanas estruturais no que diz respeito s dinmicas urbanas presentes no vale. H, no entanto, fatores novos, cuja repercusso a m- dio prazo dever ser avaliada, que so a integrao tarifria dos sistemas de transportes pblicos e a implantao de novos eixos como o Expresso Tiradentes e a Linha 4 do Metr. A integrao tarifria, em tese, permitiria, atravs de uma reestruturao da distribuio de linhas e itinerrios, a desativao de todos os terminais, incluindo o Pedro Lessa e Bandeira. Os novos eixos de transporte pblico podero alterar percursos e intensidades dos uxos de pedestres. O Vale do Anhangaba representa hoje, talvez mais do que nunca, um desao. Desao que dever ser enfrentado pela cidade como um todo e, particularmente, pelos agentes so- ciais diretamente responsveis pela sua interpretao e transformao fsica. A retrospectiva de projetos realizada atravs dos cinco captulos que estruturam esta dissertao revela a dimenso do corpo de prossionais envolvido na construo coletiva daquele espao. A contribuio dos melhores arquitetos e urbanistas que So Paulo pde oferecer faz parte de sua histria e indica possibilidades para o futuro. H que pensar o que dever ser destrudo no vale atual no intuito de viabilizar a cons- truo de um outro espao espao, que faa sentido para a cidade, que dialogue com todas as suas escalas e dinmicas e reassuma um novo papel urbano, altura de sua memria e de todo o esforo empreendido nos ltimos 130 anos. 7 NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia terica (1965-1995). So Paulo: Cosac Naify, 2006. p.617. 372 373 O VALE COMO DESAFIO Fig.428 [Arquivo do autor] 374 375 Referncias Bibliogrcas ABSABER, Aziz Nacib. Geomorfologia do Stio Urbano de So Paulo. So Paulo: FFCL, 1957. (Tese de Doutoramento) AMARAL, Antnio Barreto do. Histria dos velhos teatros de So Paulo: da Casa da pera inaugurao do Teatro Municipal. So Paulo: Governo do Estado, 1979. ANDRADE, Mrio de. Taxi e Crnicas no Dirio Nacional. So Paulo: Duas Cidades: Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976. ANELLI, Renato; GUERRA, Abilio; KON, Nelson. Rino Levi: arquitetura e cidade. So Paulo: Romano Guerra, 2001. ARAJO, Emanoel; LEMOS, Carlos A. C. O lbum de Afonso: A reforma de So Paulo. So Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001. ARTIGAS, Joo Batista Vilanova. Parque Anhangaba. So Paulo: PMSP, 1974. ARTIGAS, Joo Batista Vilanova. Caminhos da arquitetura. So Paulo: Cosac Naify, 2004. ARTIGAS, Joo Batista Vilanova. Vilanova Artigas. So Paulo: Intituto Tomie Ohtake, 2003 (catlogo de exposio). 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