Anhangabau

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pablo emilio robert here

orientadora profa. dra. regina maria prosperi meyer


dissertao de mestrado
universidade de so paulo
faculdade de arquitetura e urbanismo
so paulo, fevereiro de 2007
sentidos do anhangaba
pablo emilio robert here
orientadora profa. dra. regina maria prosperi meyer
dissertao de mestrado
universidade de so paulo
faculdade de arquitetura e urbanismo
so paulo, fevereiro de 2007
sentidos do anhangaba
para natalia e beatriz
Resumo
Esta dissertao trata dos projetos, construdos ou no, relacionados de algum modo ao Vale do
Anhangaba, no Centro Histrico de So Paulo. A partir de uma matriz de leitura, foram seleciona-
das e estudadas propostas, pontuais ou gerais, que de alguma maneira contriburam para a constru-
o da cultura arquitetnica sobre aquele recinto.
A metodologia adotada baseou-se na leitura de projetos, utilizando preferencialmente como mate-
rial de sustentao das anlises os elementos grcos originais de sua representao e a edio destes,
com o objetivo de explicitar determinados aspectos. A partir dessas leituras foram identicadas cinco
questes norteadoras das propostas para o vale: barreira, lugar, passagem, conito e resduo. Uma
reexo sobre as transformaes ocorridas ao longo desses cinco momentos conclui o trabalho, bus-
cando subsidiar a discusso atual sobre o Anhangaba e o desao que este coloca para a cidade.
Resumen
Esta disertacin trata de los proyectos, construdos o no, relacionados de alguna manera al Vale do
Anhangaba en el Centro Histrico de So Paulo. Fueron seleccionadas y estudiadas propuestas, puntu-
ales o generales, que de alguna manera contribuyeron para la construccin de la cultura arquitectnica
de aquel recinto.
La metodologa adoptada tuvo como base la lectura de proyectos, utilizando preferentemente como
material de sustentacin de anlisis los elementos grcos originales de su representacin y la edicin de
stos, con el objetivo de tornar explcitos determinados aspectos. A partir de esas lecturas fueron identi-
cados cinco temas generales que nortearon las propuestas para el valle: barrera, lugar, pasaje, conicto y
residuo. Una reexin sobre las transformaciones ocurridas a lo largo de esos cinco momentos concluye
el trabajo, buscando subsidiar la discusin actual sobre el Anhangaba y el desafo que ste coloca para
la ciudad.
Abstract
This dissertation deals with the projects, built or unbuilt, related directly or indirectly to Vale do
Anhangaba in the Historical Center of So Paulo. Proposals which contributed in some way to the cons-
truction of the architectural culture of the site, both small-scale and general, were selected and analyzed.
The methodology adopted was based on the reading of projects, preferentially using as supporting
material the original graphic elements for their representation and their edition, with the objective of
making explicit some determined aspects. From these readings, ve questions were identied, which cha-
racterize the proposals for the valley: barrier, place, passage, conict and residue. A reection on the
transformations occurred during those ve moments concludes the work, aiming to give support to the
present discussion about Anhangaba and the challenge it poses to the city.
Sumrio
Introduo 13
O vale como barreira 17
A colina histrica 19
As ferrovias e a expanso do centro 23
Jules Martin e o Viaduto do Ch [1877/1892] 31
Alberto Kuhlmann e a Linha Frrea Elevada [1888] 49
Viaduto Santa Egnia [1890/1913] 53
O vale como lugar 59
Vislumbrando um lugar 61
Os melhoramentos e os primrdios do urbanismo em So Paulo 63
A contribuio de Adolfo Augusto Pinto [1890] 66
Um grande palco: teatros So Jos e Municipal [1903/1911] 69
As indicaes do Vereador Augusto Carlos da Silva Telles [1907] 81
Alexandre de Albuquerque e os investidores privados [1910] 87
Victor da Silva Freire, Eugnio Guilhem e a contribuio municipal [1911] 91
Samuel das Neves e a proposta do Governo Estadual [1911] 95
O Relatrio Bouvard e o encerramento da disputa [1911] 101
Viaduto So Joo [1912] 113
A nova cara do vale: os Neves imprimem sua marca 119
Monteiro Lobato e o Ruaduto do Ch [1913] 125
Victor Dubugras: Memria e Ch 133
O vale como passagem 143
Mobilidade e cidade 145
Tneis sob a colina histrica [1914] 155
Projeto Light [1927] 159
A imagem de Le Corbusier para So Paulo [1929] 165
Prestes Maia e o Anhangaba 175
Rino Levi e o centro 197
O novo Viaduto do Ch [1935] 215
O vale como conito 223
O automvel e o Anhangaba 225
Os anos 50 e 60 na Europa 229
O Metr no vale: estaes So Bento e Anhangaba 237
A megaestrutura de Nestor Goulart Reis Filho [1972] 249
O Anhangaba de Artigas [1974] 255
Uma dcada de indecises da EMURB 287
Concurso Anhangaba [1981] 311
O vale como resduo 323
procura de um sentido 325
O Novo Anhangaba 327
Projetos recentes 339
O vale como desao (consideraes nais) 351
Evoluo do recinto 353
Construes, destruies... 367
O vale como desao de projeto 369
Referncias Bibliogrcas 375
12
13
Introduo
O Vale do Anhangaba, espao singular da cidade de So Paulo, j foi, h algumas d-
cadas, um dos locais mais representativos da metrpole, reconhecido por sua populao
como um smbolo e uma referncia. Atualmente se congura como um espao ambguo
que mescla a grandeza de seu passado, cristalizada no importante acervo arquitetnico ali
implantado, a estagnao de seu presente e a incerteza em relao a seus possveis futuros.
Este o aspecto que despertou a curiosidade que originou esta pesquisa.
Para os arquitetos e urbanistas paulistanos, o vale desempenhou historicamente o papel
de um grande laboratrio, sendo objeto de planos e projetos desde os primeiros momentos
em que essas atividades, a arquitetura e o urbanismo, se estabeleceram em seu territrio.
O conjunto de propostas resumidas neste volume representa o empenho de boa parte dos
mais signicativos prossionais que atuaram em So Paulo, entre os quais encontram-se
guras como Victor da Silva Freire, Ramos de Azevedo e sua equipe de arquitetos, Carlos
Ekman, Samuel e Cristiano Stockler das Neves, Joseph Antoine Bouvard, Hiplito Pujol,
Victor Dubugras, Norman Wilson, Le Corbusier, Francisco Prestes Maia, Elisrio Bahiana,
Gregori Warchavchik, Lucjan Korngold, Oscar Niemeyer, Giancarlo Palanti, Rino Levi,
Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Sob essa perspectiva, o Anhangaba pode ser
considerado uma espcie de vitrine da arquitetura e do urbanismo em So Paulo.
O rumo da investigao que resultou nesta dissertao foi direcionado pela surpreen-
dente quantidade de material disponvel sobre o assunto contida em trabalhos acadmicos,
livros, revistas e arquivos de instituies pblicas. Coletar, organizar e disponibilizar esse
contedo foi um dos objetivos do trabalho.
A matriz de leitura que levou seleo denitiva das proposies estudadas foi sendo
moldada ao longo da pesquisa, conforme as questes suscitadas pela documentao le-
vantada. Finalmente foram destacados os projetos que, de modo signicativo, possam ter
contribudo para a formao da cultura urbanstica e do repertrio arquitetnico espec-
cos da cidade e daquele recinto em especial, independentemente de terem sido ou no
construdos.
Fig.1
Vista do Anhangaba e do Viaduto
do Ch a partir do Acu (So Joo).
Gaensly&Lindemann.
[TOLEDO, Benedito Lima de.
Prestes Maia e as Origens do
Urbanismo Moderno em So Paulo.
So Paulo: Empresa das Artes,
1996. p.173.]
14
15
Como se fosse uma novela constituda de contos, a estruturao da dissertao procu-
rou construir uma reexo que se desenvolve ao longo do trabalho como um todo, preser-
vando, no entanto, a possibilidade de leitura de cada um dos projetos em seus universos
particulares. Deste modo, as imagens inseridas no caderno no tem como funo primor-
dial a ilustrao do texto, mas sim a de construir um discurso prprio. Pretende-se com isto
abrir espao para leituras menos direcionadas dos projetos apresentados de modo a propi-
ciar interpretaes diferentes e eventualmente opostas s que se encontram nas pginas a
seguir.
Os captulos que compem este trabalho surgiram da interpretao das abordagens e
das premissas gerais que nortearam os projetos para o vale ao longo de sua histria. A par-
tir disso, cinco momentos distintos foram identicados, nos quais o sentido conferido ao
Anhangaba tinha um carter especco:
o vale como barreira;
o vale como lugar;
o vale como passagem;
o vale como conito;
o vale como resduo.
As consideraes nais so acompanhadas de uma seqncia grca de anlise das
transformaes do vale, vividas e projetadas, ao longo do tempo, que tem a inteno de le-
vantar possveis caminhos para o enfrentamento das questes que o Anhangaba apresenta
hoje para a cidade e seus arquitetos. O vale como desao.
Fig.2
Vista noturna do Anhangaba
e do Viaduto do Ch a partir da
Av. Prestes Maia, logo aps a Av.
So Joo (buraco do Adhemar).
Primeira metade dos anos 50.
Autor desconhecido.
[www. piratiniga.org (Jun/2005)]
16
17 O VALE COMO BARREIRA
* TOLEDO, Roberto Pompeu de. A
capital da solido: uma histria de
So Paulo das origens a 1900. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2003. p.18.
captulo 01
Uma barreira tanto um obstculo que desengana quanto um
convite para que se procure super-lo. A barreira tanto desenco-
raja quanto tenta. Se existe, porque esconde algo. Se esconde
algo, porque precioso.
*
o vale como barreira
18
19 O VALE COMO BARREIRA
A colina histrica
Desde sua fundao, em 1554, at meados do sc. XIX, o ncleo urbano da cidade de
So Paulo se concentrou e se desenvolveu sobre um promontrio triangular formado pelo
encontro dos vales do Tamanduate, a leste, e do Anhangaba, a oeste. Esta formao, pos-
teriormente denominada colina histrica, apresentava em seu topo um patamar relativa-
mente plano, entre os nveis 745 e 755, aproximadamente 20-25 metros acima do fundo
dos vales que a formaram. As virtudes dessa localizao j haviam sido percebidas pelos
ndios guaianazes, que naquele perodo dominavam essa regio e precisamente ali haviam
implantado sua ocara.
1
Essa disposio espacial reproduz uma estratgia de implantao encontrada com fre-
qncia nas cidades fundadas pelos portugueses no Brasil.
Na fase inicial, os ncleos urbanos repetiam em seus stios padres que s podem ser
explicados como culturais. A principal cidade, que era Salvador, e a modesta vila de
So Paulo, no Planalto, foram implantadas em stios extremamente semelhantes. Ins-
taladas sobre colinas, junto s bordas das respectivas encostas, com um pequeno vale
retaguarda e conventos dispostos como pontos de apoio ao sistema de dominao e
defesa, tinham partidos urbansticos extremamente semelhantes.
2
Os primeiros padres jesutas haviam sido levados para l pelos prprios ndios e cons-
truram suas instalaes junto face leste desse patamar. A partir de 1560, com o abandono
do local por parte dos guaianazes, iniciou-se um lento processo de ocupao da colina pelos
novos edifcios que iam sendo incorporados ao assentamento.
A conquista de outros pontos dessa colina central, durante os sculos XVI e XVII,
acabou sendo denida em decorrncia do estabelecimento de trs ordens religiosas na
cidade: a dos beneditinos, a dos carmelitas e a dos franciscanos e de seus respectivos
conventos.
1 Uma anlise pormenorizada
pode ser encontrada em ROCHA
F, Gustavo Neves da. So Paulo:
Redirecionando sua Histria. So
Paulo: FAUUSP, 1992 (tese de livre
docncia).
2 REIS FILHO, Nestor Goulart.
Notas sobre o Urbanismo no Brasil.
Primeira parte: Perodo Colonial.
Cadernos de Pesquisa do LAP N
08. FAUUSP, 1995. p.21.
20
Figs.3 e 4
Planta Topogrca da rea central
de So Paulo e Seo geolgica A-B
(indicada na planta)
[ABSABER, Aziz Nacib.
Geomorfologia do stio urbano de
So Paulo. So Paulo: FFCLUSP,
1957. g.24.]
21 O VALE COMO BARREIRA
Cada uma dessas construes era provida de uma igreja com uma torre e de um corpo
lateral bastante extenso onde se localizava o mosteiro ou o convento. Essas trs ordens,
deviam manter um certo distanciamento entre si, em respeito s suas respectivas cir-
cunscries territoriais. Assim, a localizao delas acabou denindo os vrtices de um
tringulo, assentado sobre os pontos dominantes da colina central.
3
A face leste da colina histrica, junto Vrzea do Tamanduate, desempenhou a fun-
o de frente da cidade aproximadamente at a metade do sc. XIX
4
. A primeira viso de
So Paulo, para quem chegava do interior ou do litoral, era justamente essa encosta, como
mostram alguns dos mais clebres retratos elaborados pelos viajantes que por aqui passa-
ram. Era tambm por esse lado da colina que chegavam as provises trazidas pelas canoas
que navegavam o Tamanduate e alimentavam os quatro portos localizados na vrzea do
Carmo.
A estruturao viria da cidade era baseada nas ladeiras que comunicavam a parte alta
da colina com os portos junto vrzea do Carmo (Tabatingera, Glria e Carmo) e nos
caminhos de tropeiros que, passando pela capital, articulavam o interior da provncia com
o porto de Santos. Ao longo dos principais caminhos foram surgindo os pousos, modulados
na distncia aproximada de um dia de viagem. Pela Rua da Liberdade chegava a principal
via de comunicao com Santos e o sul do continente e pela ladeira do Carmo, a estrada de
ligao com o Rio de Janeiro.
Essa rede viria foi a denidora de toda a estrutura de ocupao urbana da Provncia
de So Paulo, tendo sido utilizada como meio predominante de transporte at a chega-
da da ferrovia, em 1867. Por esse motivo, ela exerceu enorme inuncia no desenvolvi-
mento intra-urbano da cidade de So Paulo, especialmente na sua parte mais central,
local para onde todos esses caminhos convergiam.
5
3 SIMES JR., Jos Geraldo.
Anhangaba: Histria e Urbanismo.
So Paulo, FAUUSP, 1995 (tese de
doutoramento). p.7.
4 SIMES JR., 1995.
5 SIMES JR., 1995, p.13.
22
23 O VALE COMO BARREIRA
As ferrovias e a expanso do centro
O desenvolvimento da cidade de So Paulo tornou-se possvel a partir do momento
em que se congurou em seu territrio um n do sistema ferrovirio implantado para o
escoamento da produo do caf. A partir da inaugurao, em 1867, da So Paulo Railway
(Santos-Jundia ou Inglesa), a rede foi sendo ampliada atravs de ramais complementares
que convergiam para So Paulo (Companhia Ituana em 1873, Mogiana e Sorocabana em
1875, So Paulo - Rio em 1877).
O impulso de crescimento desencadeado pela expanso do caf levaria a nova estru-
turao do territrio, baseada na criao de canais de exportao e penetrao. (...) tal
sistema de transporte faria uso de um corredor nico de escoamento nal, articulado
por um centro de irradiao e deciso situado entre litoral e interior, desembocando
num s porto (...).
6
Trs cidades poderiam assumir tal papel: So Paulo, Santos e Campinas
7
. A criao desse
ponto focal ferrovirio e os problemas com a febre amarela, enfrentados pelas duas ltimas
8
,
desequilibraram a balana favorecendo a capital.
Naquele momento a provncia foi presidida durante trs anos (1872-75) por Joo
Teodoro Xavier de Mattos, que soube identicar essas possibilidades e iniciar um processo
de preparao da cidade para seu novo papel atravs de um amplo conjunto de intervenes
urbanas. O sucesso dessas realizaes fez com que, freqentemente, a historiograa se rera
sua gesto como a segunda fundao de So Paulo.
A capital, engrandecida, chamar a si os grandes proprietrios e capitalistas da pro-
vncia, que nella formaro seus domiclios (...) o commrcio lucrar, ampliando seu
consumo. As emprezas se fundaro com os recursos vastos e accumulados de seus
novos habitantes.
9
6 CAMPOS NETO, Candido Malta.
Os Rumos da Cidade: Urbanismo
e Modernizao em So Paulo.
So Paulo: FAUUSP, 1999 (tese de
doutoramento) p.52.
7 Em 1872, Campinas possua
aproximadamente o mesmo
nmero de habitantes de So
Paulo, por volta de 30 mil.
8 Entre 1889 e 1897 a febre
amarela atingiu Campinas com
virulncia excepcional, provocando
despovoamento e decadncia
econmica (...). Resultante da
violncia da epidemia, o xodo
da elite campineira se daria, na
maioria das vezes, em benefcio de
So Paulo. Fenmeno semelhante
pde ser observado em Santos,
onde mais de 20 mil pessoas
morreram vtimas de malria,
febre amarela e varola entre 1880
e 1890. Esse contingente equivalia
a aproximadamente metade da
populao santista naqueles anos.
CAMPOS NETO, 1999. p.62.
9 Relatrio apresentado por Joo
Teodoro assemblia Provincial
em 14 de fevereiro de 1875.
CAMPOS NETO, 1999. p.55.
Fig.5
Planta da Cidade de So Paulo,
1868, atribuda a Carlos Rath.
Fig.6
Pormenor damesmaplanta.
Pode se observar o esboo de um
traado virio para o Morro do
Ch e possveis conexes da rea
com a colina histrica.
[Cpia pertencente ao acervo da
Biblioteca Municipal Mrio de
Andrade.]
24
25 O VALE COMO BARREIRA
Enquanto centralizadora do sistema de transportes e fulcro da expanso territorial,
a cidade deveria se tornar mais que um mero plo administrativo: suas novas funes
passariam a incluir a de centro residencial, nanceiro e de negcios, formando um n-
cleo decisrio ao qual se subordinaria vasto territrio produtivo. Para tanto era preciso
atrair para So Paulo capitais e detentores do poder econmico na provncia, at ento
dispersos pelas fazendas e cidades do interior.
10
As obras empreendidas tinham fundamentalmente dois objetivos: criar as condies
necessrias para a expanso urbana e para que o uxo de capital excedente proveniente do
caf pudesse ser direcionado a outros ciclos produtivos, e dotar a cidade de um conjunto
de espaos pblicos de representao desse capital, buscando produzir certa urbanidade,
seguindo modelos europeus.
Foram feitas de modo concatenado, melhorias em vias existentes, abertas novas ruas,
foi remodelado o Jardim da Luz, regularizado o Largo dos Curros, mais tarde Praa da
Repblica, e implantado jardim na Vrzea do Carmo, a Ilha dos Amores. Pouco antes ha-
viam sido inaugurados os sistemas de bondes movidos por trao animal e o de iluminao
pblica a gs. Muitas dessas melhorias tinham o objetivo de qualicar as imediaes e co-
nectar ao centro as novas estaes ferrovirias da Luz, Sorocabana e a do Norte.
Se a regio junto s vertentes Leste e Sul da colina histrica, junto vrzea do
Tamanduate, cumpriu o papel de porta da cidade durante praticamente os trs primeiros
sculos de sua existncia, com o advento das estradas de ferro essa situao imediatamen-
te alterada. Simes Jr. (1995) demonstrou como esse vetor, simblico e de crescimento,
redirecionado a partir desse momento. Com a inaugurao da Estao da Luz, em 1867, a
entrada nobre
11
, dos grandes proprietrios rurais e dos empresrios e visitantes prove-
nientes de Santos, passou a ser pelo norte, chegando ao centro atravs das ruas Brigadeiro
Tobias e Florncio de Abreu e potencializando a ocupao do setor noroeste da cidade. Sua
localizao est associada aos loteamentos empreendidos a partir de 1870, com destaque
para o do Morro do Ch (1876) e dos Campos Elseos (1879). A obsolescncia da primeira
Fig.7
Planta da Cidade de So Paulo,
1881, Henry P. Joyner.
Fig.8
Pormenor da mesma planta.
O morro do Ch j se encontra
loteado e sua ocupao em estgio
inicial.
[Cpia pertencente ao acervo da
Biblioteca Municipal Mrio de
Andrade.]
10 CAMPOS NETO, 1999. p.56.
11 A vrzea do Tamanduate
continuaria desempenhando o
papel de acesso colina, mas agora
com um carter mais ligado aos
servios e ao abastecimento.
26
27 O VALE COMO BARREIRA
estao, causada pelo aumento do movimento de cargas e de passageiros, determinou a
construo de um novo edifcio, projetado pelo engenheiro ingls Charles Driver e inaugu-
rado em 1901.
Este o momento urbano ao qual a introduo acima pretendia conduzir. Com o re-dire-
cionamento do eixo de expanso das reas mais prestigiosas da cidade para noroeste, o poten-
cial papel urbano previsto para o Vale do Anhangaba foi completamente transformado.
Se antes essa rea era tratada como fundo da cidade, nesta nova congurao ela pas-
sa a ser uma barreira para as conexes entre a cidade antiga, sobre a colina histrica, e a
cidade nova, sobre o Morro do Ch e adjacncias. A reestruturao da cidade tornou a
transposio do vale um problema. A constituio do stio j sugeria e oferecia a soluo.
Os pontos de cruzamento entre as ruas Direita e So Jos, e Baro de Itapetininga e
Conselheiro Crispiniano Soares, apresentavam-se perfeitamente em nvel, aproximadamen-
te na cota 747. Qualquer pessoa que de um desses dois cruzamentos olhasse para o outro
lado do vale, conseguiria vislumbrar a travessia. Podemos at imaginar que o prprio tra-
ado virio do loteamento do Morro do Ch j colocava a Rua Baro de Itapetininga como
uma continuao da Rua Direita, pressupondo a inevitabilidade de sua conexo.
Coube a Jules Martin representar esse desejo e materializ-lo.
Fig.9
Plano-Histria da Cidade de So
Paulo, 1800-1874, por Affonso
A. de Freitas. O viaduto do Ch
encontra-se indicado em projeo.
[TOLEDO, 1996. p. 59.]
28
29 O VALE COMO BARREIRA
Fig.10
Pormenor do Dezenho por dea
da dade de Sa Pavlo, ilustrao
da colina histrica vista a partir
do Morro do Ch, com o vale do
Anhangaba em primeiro plano
(1765-1774).
[REIS, Nestor Goulart. So Paulo:
Vila, Cidade, Metrpole. So Paulo:
Via das Artes, 2004. p.77.]
Fig.11
Vrzea do Carmo e a encosta leste
da colina histrica. Fotograa
atribuda a Milito Augusto de
Azevedo (1862).
[TOLEDO, Benedito Lima de. So
Paulo: trs cidade em um sculo.
So Paulo: Cosac & Naify, Duas
Cidades, 2004 (1980). p.160.]
30
31 O VALE COMO BARREIRA
Jules Martin e o Viaduto do Ch [1877/1892]
A expanso oeste da cidade, atravs da criao dos Campos Elseos e Sta. Egnia, e do
loteamento do morro do Ch traria enormes conseqncias para o Vale do Anhangaba. A
primeira delas, imediata, foi a transformao de seu carter. O tradicional fundo da cidade
havia se tornado uma barreira, e a questo fundamental a partir de ento passou a ser sua
superao.
Se, por um lado, imaginar a transposio no era difcil, concretiz-la no foi nada fcil.
O protagonista dessa conquista precisaria de quinze anos para alcan-la.
Jules Victor Andr Martin (1832-1906) era um litgrafo francs radicado em So Paulo
desde 1870. Participou ativamente da vida social da cidade como professor do Liceu de Artes
e Ofcios e principalmente atravs das publicaes que saam de sua Imperial Litograa a
Vapor. Seu lado empreendedor levou apresentao de vrios projetos para a cidade, de
monumentos at a remodelao de espaos pblicos. Uma de suas propostas mais conheci-
das foi o Projecto de Galerias de Crystal em So Paulo, apresentado intendncia munici-
pal em 1890. A lei municipal 275, de 12 de setembro de 1896 lhe concedia autorizao para
a construo
12
. Inspirado em galerias existentes em cidades europias, Martin desenvolveu
um sistema de nove galerias articuladas no interior de quatro quadras existentes que cria-
riam um circuito coberto do Largo do Rosrio Rua Jos Bonifcio. Segundo o memorial
de uma das verses do projeto,
Trata-se da construo de duas imensas galerias, cobertas de vidro, de 200 metros de
cumprimento, formando uma cruz e com uma rotunda octagonal de uma cpula de
cristal, na qual ser colocado um grande foco de luz eltrica. Essas galerias tero oito
metros de largura e sero caladas de mosaico; cada um dos lados ter sessenta casas
comerciais, com poro, loja, sobreloja, primeiro e segundo andar. A altura total das
galerias ser de quatorze metros.
13
Fig.12
Gravura de Jules Martin
mostrando a colina histrica a
partir da vrzea do Tamanduate
e os melhoramentos da poca:
o trem, o mercado (atual Praa
Fernando Costa), os aterrados do
Brs e do Gasmetro e a Ilha dos
Amores.
[REIS, Nestor Goulart. So Paulo:
Vila, Cidade, Metrpole. So Paulo:
Restarq/Via das Artes, 2004. p.115.]
12 CAMARGO, Odcio Bueno
de. Jules Martin: artista, patriota,
empreendedor. So Paulo: Edicon,
1996. p.78
13 Idem
32
Fig.13
Planta do conjunto de Galerias de
Crystal proposto por Jules Martin.
[TOLEDO, 1996. p. 60. ]
Fig.14
Perspectiva do interior de uma das
galerias. Jules Martin, 1896.
[TOLEDO, 1996. p. 61.]
Figs.15 e 16
Planta e corte das galerias segundo
desenho de Pucci & Micheli, 1898.
[SEGAWA, Hugo. Preldio da
Metrpole: arquitetura e urbanismo
em So Paulo na passagem do
sculo XIX ao XX. So Paulo: Ateli
Editorial, 2000. p.32.]
33 O VALE COMO BARREIRA
34
35 O VALE COMO BARREIRA
O projeto no vingou, mas repercutiu de tal modo que em 1900 inaugurou-se uma
galeria de cristal, conhecida como Galeria Webendoefer, ligando as ruas XV de Novembro
e Boa Vista. No h referncia a quem teria sido responsvel por sua construo. O que
se sabe que foi demolida em 1924 para a construo do edifcio do Banco comercial do
Estado de So Paulo.
Em 05 de junho de 1893, a edio do Dirio Popular se referia a um quadro, em expo-
sio nas vitrinas da alfaiataria do Sr. Bernardino Monteiro de Abreu, representando um
novo teatro, de autoria de Jules Martin, projetado no Largo da Repblica. Em junho de 1890
esse mesmo peridico havia noticiado a inteno de Martin de construir um Coliseu em
frente ao Jardim da Luz. H tambm registros grcos da proposta de construir na Praa da
Repblica, a nova catedral da cidade.
O empreendimento do Viaduto do Ch foi a grande contribuio de Jules Martin para
So Paulo. Em 1877 foi exposta na vitrine de sua ocina uma litograa que ilustrava uma
travessia em nvel entre a Rua Direita e o Morro do Ch. Um sinal de que essa travessia era
um projeto coletivo, imaginado por muitos habitantes da cidade, a nota publicada no
jornal Provncia de So Paulo em 5 de outubro de 1877:
Est nas vidraas do Sr. Jules Martin, um belo quadro litogrco representando o que
por vezes se tem falado entre ns como meio plausvel de ligar por meio de uma linha
de bondes a Rua Direita, isto , o centro da cidade, ao novo e prspero bairro do Morro
do Ch, Rua da Palha e Largo dos Curros.
14

Em julho desse mesmo ano sua ocina havia publicado, com Fernando de Albuquerque,
o Mappa da Capital da Provncia de So Paulo: seos Edifcios pblicos, Hotis, Linhas frreas,
Igrejas, Bonds, Passeios, etc. Nesse mapa, de carter quase turstico, o Vale do Anhangaba
representado como um grande vazio cortado por um curso dgua com a legenda Rua
Anhangaba, ao invs de rio. O encontro das ruas Baro de Itapetininga e Direita com as
encostas do vale provoca uma certa tenso, como se algo estivesse faltando. Esses pontos se
conguram subjetivamente como esperas
15
de uma ligao que estaria por vir.
14 TOLEDO, Benedito Lima
de. Prestes Maia e as origens do
urbanismo moderno em So Paulo.
So Paulo: Empresa das Artes,
1996. p.61.
15 SIMES JR., 1995, p.61.
Fig.17
Mappa da Capital da provincia
de S. Paulo, de Jules Martin e F.
Albuquerque. 1877
Fig. 18
Pormenor do mesmo mapa. A
possibilidade de ligao das ruas
Direita e Baro de Itapetininga era
evidente.
[REIS, 2004. p.129.]
36
Fig.19
Projeto de Ligao da Rua Direita
ao Morro do Ch em aterro. Jules
Martin, 1880.
[TOLEDO, Benedito Lima de.
Anhangabah. So Paulo: FIESP,
1989. p.43.]
Fig.20
Perspectiva da proposta de
travessia em aterro. Jules Martin,
1880.
[REIS, 2004. p.97.]
37 O VALE COMO BARREIRA
Para empreender a construo do viaduto, Martin associou-se ao alemo Victor
Nothmann, que alguns anos antes havia loteado com Frederico Glette a chcara do Baro
de Limeira e criado o bairro dos Campos Elseos e que alguns anos depois criaria o bairro de
Higienpolis, com Martinho Burchard. Em 1880 a Assemblia Provincial deferiu o pedido
de construo do viaduto e em 1888 foram aprovados os estatutos da Companhia Paulista
do Viaduto do Ch. Nesse mesmo ano a construo foi iniciada.
Existem divergncias sobre qual teria sido a primeira verso do projeto, exposta na vi-
trine da ocina em 1877. O que se sabe que em 1880 apresentou-se uma proposta na qual
a travessia seria realizada atravs de um aterro que conguraria um bulevar com 20 casas
construdas em cada lateral. O bulevar teria 64 metros de largura em sua face superior e as
fundaes seriam feitas com estruturas em arcos de tijolos. Os estudos dessa proposta foram
feitos pelo engenheiro Eusbio Stevaux e previam uma pequena galeria no fundo do vale
para a passagem do ribeiro.
A verso denitiva teve seu projeto executivo assinado pelo engenheiro Emilio Calcagno
conforme estudos realizados por Stevaux. Sua extenso total era de 240 metros, incluindo os
arranques. A estrutura metlica foi fabricada na Alemanha por Harkort de Duisburg e pos-
sua 152 metros de comprimento divididos em cinco vos. Sua largura era de 14.80 metros
e a altura at o fundo do vale era prxima de 20 metros.
16
As obras tiveram incio em 1888, sendo interrompidas poucos meses depois devido a
problemas com a desapropriao do imvel pertencente ao Baro de Tatu, localizado na
Rua de So Jos (atual Libero Badar) no eixo da Rua Direita e cuja demolio era impres-
cindvel para a construo do viaduto. A disputa ganhou conotao poltica e passou a ser
encarada simbolicamente como o embate entre as oligarquias rurais conservadoras e os
capitalistas liberais progressistas. A desavena s foi resolvida judicialmente, com ganho de
causa dado ao grupo de Jules Martin. Em 1889 iniciou-se a demolio do casaro e em 1892
o viaduto foi inaugurado.
(...) a demolio do velho casaro, smbolo do passadismo e do imobilismo que os
progressistas pretendiam superar, constituiu um divisor de guas em nossa histria
16 BUCCI, Angelo. Anhngaba:
o Ch e a Metrpole. So Paulo,
FAUUSP, 1998 (Dissertao de
Mestrado). , p.15.
38
39 O VALE COMO BARREIRA
urbanstica. Obstinadas, suas grossas paredes de taipa seriam substitudas por geis
pers metlicos lanados sobre o vale rumo ao futuro de So Paulo. O ato de demolir
assumiria conotaes positivas e desejveis, marcantes para os futuros processos de
transformao da cidade.
17
Ao comentar as diferentes verses do projeto que se sucederam at o incio da obra,
Bucci (1998, p.16) destaca a liberdade formal que caracterizaria a postura de Martin, para
quem a fora da idia estaria na pura e simples realizao da transposio. O modo de faz-
lo estaria em segundo plano e seria determinado pelas convenincias tcnicas e econmicas
de cada soluo.
Esta suposio, que parece estar correta, merece algumas consideraes. Se a opo pela
estrutura metlica foi decorrncia apenas de fatores econmicos, poderamos dizer que a
sorte favoreceu So Paulo. Basta imaginarmos o que teria acontecido caso a soluo em
aterro tivesse sido adotada, com a ocupao de suas laterais por casas de aluguel acentuan-
do o carter de fundo que o vale tinha at aquele momento. Isso poderia inaugurar um
padro de ocupao que poderia se repetir nas novas travessias junto Rua de So Joo, ao
Piques e outras, anulando o potencial paisagstico e espacial daquele espao.
Se, por um lado, especular sobre o que poderia ter sido, caso os acontecimentos tivessem
se dado de outra maneira, constitui um exerccio de co desprovido de qualquer suporte
real, por outro, ajuda a perceber os riscos que se corre ao deixar decises fundamentais para
o desenvolvimento da cidade merc de interesses unicamente tcnicos ou econmicos e
acima de tudo privados.
A inaugurao do Viaduto do Ch foi um grande sucesso. A articulao do centro com
os novos bairros a oeste passou a ser fcil e rpida, amplicando a corrida imobiliria que
j se vericava desde o nal dos anos 1870 e 1880. Cabe pontuar que os nanciadores do
viaduto, Nothmann e Glette entre outros, guram entre os que mais se beneciaram com a
valorizao fundiria decorrente de sua construo.
A cobrana do pedgio de trs vintns, inicialmente aplicada tanto aos pedestres quanto
17 CAMPOS NETO, 1999. p.61.
Fig.21
Plantas da casa do Baro de Tatu
indicando o trecho que seria
demolido para a construo do
Viaduto do Ch.
[SEGAWA, 2000. p.14.]
Fig.22
Alegoria derrota do baro de
Tatu e demolio de sua casa.
[TOLEDO, 1996. p. 61.]
Fig.23
Litograa de Martin retratando
as demolies a partir do Vale do
Anhangaba.
[SEGAWA, 2000. p.14.]
40
41 O VALE COMO BARREIRA
Fig.24
Alegoria construo do Viaduto
do Ch. Jules Martin, 1887.
[TOLEDO, 1996. p. 63.]
Fig.25
Litograa de Jules Martin
que ilustrava o convite para a
inaugurao do viaduto.
[TOLEDO, 1989. p. 45.]
Fig.26
Litograa comemorativa da
inaugurao do viaduto. Jules
Martin.
[TOLEDO, 1996. p. 62.]
42
Fig.27
Caricatura de Jules Martin
representando a disputa entre os
empreendedores do viaduto e o
Baro de Tatu.
[SEGAWA, 2000. p.24.]
Fig.28
Carto postal de Guilherme
Gaensly mostrando o Viaduto do
Ch a partir do terreno onde seria
construdo o Teatro Municipal. O
vale ainda se congurava como um
fundo da cidade.
[TOLEDO, 1996. p.94.]
43 O VALE COMO BARREIRA
aos veculos, foi suspensa quando, aps um perodo de protestos e reivindicaes, a muni-
cipalidade encampou o viaduto, no ano de 1896.
A existncia do Viaduto veio tornar possvel a comunicao em nvel entre o centro
da cidade e o bairro do Ch.
Esta construo, aparentemente bvia, foi revolucionria para a poca. Anal de con-
tas este era o primeiro viaduto construdo na cidade, e com ele, muitos dos trajetos
urbanos seriam imensamente facilitados, pois no se precisaria mais subir e descer as
encostas do vale para atravess-lo (como at ento se fazia atravs da rua de So Joo
ou do Largo do Riachuelo).
Especialmente para os bondes, que nessa poca eram ainda puxados por burros e, para
tanto, exigiam que nos pontos de incio das subidas (ladeiras de So Joo e Riachuelo),
fossem atrelados aos carros mais animais. Por esse motivo, nesses locais deveriam exis-
tir pastos ou largos onde esses animais de reforo cassem durante os momentos em
que no estavam sendo requisitados. (...) Alm do mais, tal imagem no se adequava
nem um pouco com a existncia do Viaduto nem com os ideais de urbanidade que se
queria implantar no local. Essa situao perdurou at 1900, com a chegada da Light e
dos bondes eltricos.
18
A construo do primeiro viaduto do ch simboliza a ruptura da acrpole em que se
implantara So Paulo, ao atravessar as vertentes do riacho Anhangaba. Um dos lados
do Tringulo tradicional se abria.
19
A construo do Viaduto do Ch inaugurou para os paulistanos um modo de vivenciar
a espacialidade do territrio que se tornaria caracterstica da cidade.
O mesmo acidentado da topograa determinou tambm este outro trao caracters-
tico e j referido, que so os viadutos; (...) o modelado do terreno o impe. A cidade
acabar com um verdadeiro sistema completo de vias pblicas suspensas que lhe em-
18 SIMES JR., 1995, p.60.
19 SEGAWA, Hugo. Preldio
da Metrpole. So Paulo: Ateli
Editorial, 2000. p.21.
44
45 O VALE COMO BARREIRA
prestar um carter talvez nico no mundo. Com os viadutos viro os tneis (...) e
ser este mais um trao original de So Paulo que, com o outro, far dela uma cidade
dividida em dois planos sobrepostos, cidade de dois pavimentos.
20
O percurso areo proporcionado pelo viaduto revelava uma geograa at ento dis-
simulada e possibilitava um olhar abrangente sobre essa rea livre colada ao centro. Esse
outro projeto coletivo, a transformao do vale, precisaria, assim como o viaduto, de vrios
anos e muito debate para se viabilizar.
Deram-lhe um dia o Viaduto do Ch, esse arrojo... Os paulistanos pagavam sessenta
ris para, ao atravess-lo, conhecerem a vertigem dos abismos. E em casa narravam a
aventura s esposas e mes, plidas de espanto. Que arrojo de homem, o Jules Martin
que construra aquilo!
21
20 PRADO JR., Caio. Evoluo
poltica do Brasil e outros estudos.
So Paulo: Ed. Brasiliense, 1933.
p.131.
21 Publicado originalmente por
Monteiro Lobato na Revista do
Brasil n 36, de dezembro de 1918.
LOBATO, Monteiro. Negrinha. So
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 63.
Fig.29
Planta da Capital do Estado
de So Paulo e seus arrabaldes
publicada por Jules Martin em
1890.
Fig.30
Pormenor da mesma planta. Dois
anos antes de sua inaugurao,
o Viaduto do Ch j um
elemento importante da cidade.
O arruamento do Morro do
Ch agora um prolongamento
integrado do centro antigo.
[REIS, 2004. p.142.]
46
47 O VALE COMO BARREIRA
Fig.31
Uma multido se reuniu para
conhecer o novo viaduto no dia de
sua inaugurao.
Autor desconhecido.
[PRAA RAMOS, VIADUTO DO
CH, PRAA DO PATRIARCA.
Instituto Cultural Ita. So Paulo:
ICI, 1994.]
Fig.32
O viaduto do Ch em 1900.
Guilherme Gaensly.
[PONTES, Jos Alfredo Vidigal.
So Paulo de Piratininga: de pouso
de tropas a metrpole. So Paulo:
O Estado de So Paulo: Editora
Terceiro Nome, 2003. p.160.]
Fig.33
O viaduto do Ch em 1892.
Guilherme Gaensly.
[PONTES, 2003. p.161.]
Fig.34
O viaduto em 1902. Marc Ferrez.
[INSTITUTO MOREIRA SALLES.
Cadernos de Fotograa Brasileira
n2: So Paulo 450 anos. So Paulo:
IMS, 2004. p.73.]
Fig.35
Encontro do viaduto com a
Rua Direita em 1900. O viaduto
se congurava como um
prolongamento natural da rua.
Autor desconhecido.
[PONTES, 2003. p.162.]
48
Fig.36
Projeto da Ponte sobre o Rio Tiete
com material reaproveitado da
ferrovia elevada da Av. So Joo.
Esta ponte apresentava um vo de
45 metros. Eng Kuhlmann, 1893.
Fig.37
Detalhes das estruturas metlicas
do elevado da Av. So Joo, que
foram reaproveitadas nas pontes
e pontilhes do Tramway da
Cantareira.
[www.wernervana.hpg.ig.com.br
(out/2006)]
49 O VALE COMO BARREIRA
Alberto Kuhlmann e a Linha Frrea Elevada[1888]
A repercusso da imagem de transposio inaugurada pelo projeto do Viaduto do Ch
teve como um de seus rebatimentos, a proliferao de propostas de novas pontes, viadutos
e elevados. A soluo era to adequada s condies topogrcas da cidade que se tornou a
resposta mais bvia e natural s situaes semelhantes enfrentadas a sua expanso.
Em 24 de maro de 1888 foi promulgada a lei que concedia ao engenheiro alemo
Alberto Kuhlmann o direito de explorao, por 50 anos, de uma linha frrea elevada que
realizaria a ligao Centro Velho - Centro Novo partindo do Largo do Rosrio, na Rua So
Bento esquina com a Rua de So Joo, em direo ao Largo Paissandu.
Kuhlmann era naquele momento um empresrio bem sucedido. Em maro de 1886
havia realizado a viagem inaugural da Companhia de Carris de Ferro de So Paulo a Santo
Amaro, o Tramway de Santo Amaro, que reduziu o tempo de viagem entre So Paulo e
a aldeia de Santo Amaro de dez para uma hora. O percurso de cerca de 19 quilmetros,
que at ento era feito por carros de boi, passou a contar com uma composio ferroviria
movida a vapor que atingia velocidades de at 25 quilmetros por hora. poca, Santo
Amaro supria a capital com cerca de 25 mil toneladas de produtos por ano
22
e a demanda
por transporte de passageiros tambm era grande. Em 1884 o engenheiro havia vencido
concurso para a construo do novo matadouro, inaugurado em 1885 na Vila Clementino
(Vila Mariana). Um ramal exclusivo do tramway ligava o matadouro aos principais pontos
de distribuio dinamizando o fornecimento de carnes para a capital.
A nova aventura de Kuhlmann pretendia concorrer com o Viaduto do Ch, cuja execu-
o havia sido recm iniciada, na corrida por congurar a porta oeste da colina histrica.
A construo comeou com a chegada da primeira remessa das peas metlicas que consti-
tuiriam a estrutura do elevado, mas teve que ser interrompida, assim como a obra do Ch,
devido ao atraso no embarque das remessas posteriores.
Existia uma diferena signicativa, em relao ocupao do vale, entre os locais onde
se erguiam as duas estruturas. Por estar implantado sobre um caminho consolidado da
22 [ www.geocities.com/motorcity/
track/4509/sinopse.html] e [www.
geocities.com/estrada_de_ferro]
50
Fig.38
Projeto da segunda ponte sobre
o Rio Tiete, construda com o
material aproveitado da ferrovia
elevada da Av. So Joo. Esta ponte
apresentava um vo de 34 metros.
Eng Kuhlmann 1893.
Fig.39
Todos os riachos e crregos que
a linha atravessava tinham pontes
iguais. Um projeto padro para
um vo de 4 metros. Sempre a
mesma ponte nos Rios Mandaqui,
Trememb, Carandiru, etc. Tudo
com material aproveitado da via
elevada da Av. So Joo.
[www.wernervana.hpg.ig.com.br
(out/2006)]
51 O VALE COMO BARREIRA
cidade, o elevado de Kuhlmann interferia com diversas construes, predominantemente
residenciais, ao longo do vale. O mesmo no acontecia com o Ch, pois sua projeo incidia
sobre fundos de propriedades no ocupados. Esta diferena seria crucial para a denio
do vencedor da corrida. As obras interrompidas geraram um grande volume de queixas por
parte dos proprietrios das edicaes prximas Rua de So Joo.
O aspecto deveria ser lamentvel: em uma rua estreita, uma gaiola gigantesca de me-
tal metida entre as casas, esperando-se que passasse sobre ela um trem a vapor. Seria
semelhante ao que aconteceu quase um sculo depois com o minhoco. A sorte no
favoreceu ao engenheiro.
23
Com o atraso das obras e a impossibilidade de cumprimento dos prazos estabelecidos
em contrato, Kuhlmann foi obrigado a desmontar o que j havia sido feito e remover os
materiais do local, abandonando denitivamente suas pretenses.
As peas do elevado, depositadas em terras margem do Tiet, foram adquiridas pelo
governo estadual em 1893 e reaproveitadas nas obras do Tramway da Cantareira para a
construo de pontes. Embora no tenham sido encontrados durante a pesquisa desenhos
desse elevado, os desenhos respectivos s pontes construdas posteriormente nos permitem
vislumbrar como teria sido a via frrea elevada sobre o Anhangaba.
23 REIS FILHO, Nestor Goulart.
So Paulo e outras cidades. So
Paulo: Hucitec,1994. p.83.
52
53 O VALE COMO BARREIRA
Viaduto Santa Egnia [1890/1913]
venha ver, venha ver Eugnia, como cou bonito, o Viaduto Santa Egnia.
24
O Viaduto do Ch, a partir de sua inaugurao, tornou-se a nova porta de entrada ao
centro e impulsionou o desenvolvimento do setor oeste da cidade. Com o enorme cresci-
mento dessa rea, novas ligaes tornaram-se necessrias abrindo espao para a formulao
de diversos projetos.
A idia de um viaduto ligando o Largo de So Bento ao Largo de Santa Egnia surgiu
publicamente pela primeira vez por volta de 1890, quando Francisco da Cunha Bueno e
Jayme Serra obtiveram a licena para sua construo
25
. A obra no foi iniciada e com o des-
cumprimento dos prazos o contrato foi cancelado. Em 1893 foi autorizada a desapropriao
do lote localizado entre o Mosteiro de So Bento e o edifcio da Companhia Paulista de Vias
Frreas e Fluviais para possibilitar a execuo do viaduto. Nada seria realizado at a virada
do sculo.
A partir de 1904, inicia-se um processo burocrtico dentro da Cmara Municipal com
o objetivo de viabilizar a construo com recursos pblicos. Em 1906 a Comisso de Obras
conclui pela necessidade inadivel de implantao do viaduto e apenas em 1908 publicado
o edital de concorrncia para a obra.
Para viabilizar a empreitada, o municpio adquiriu emprstimo junto ao governo ingls
de 700 mil libras esterlinas
26
o que constituiu fato indito na histria da cidade.
Com a concorrncia denida, a obra cou a cargo do escritrio Micheli e Chiappori
e a construo foi iniciada em 1910. A estrutura metlica foi encomendada na Blgica e
fabricada pela Societ Anonyme des Aciries dAngleur. Chegou de barco a Santos e de trem a
So Paulo. Sua montagem levou trs anos e foi supervisionada pelo mestre de obras alemo
Johann Grundt. Boa parte da mo de obra empregada foi estrangeira o que elevou signi-
cativamente os custos nais. A inaugurao aconteceu em julho de 1913.
24 BARBOSA, Adoniran (1910-
1982). Letra do samba Viaduto
Santa Egnia.
25 ANDRADE, Paulo Alcides.
Viaduto Santa Egnia. www.
metalica.com.br
26 Outras fontes mencionam o
valor de 750 mil libras.
Fig.40
Fotograa tirada de um aeroplano
em junho de 1919.
O Viaduto Santa Egnia se destaca
em meio s construes que
ocupavam o fundo do vale.
O Parque Anhangaba, no canto
inferior direito, terminava logo
aps o alinhamento da Praa
Ramos de Azevedo.
[TOLEDO, 1989. p.72.]
54
Fig.41
Detalhe do guarda-corpo e do
poste de iluminao.
[TOLEDO, 1989. p.79.]
Fig.42
Vista da montagem da estrutura a
partir do Mosteiro de So Bento
[www.metalica.com.br (nov/2006)]
Fig.43
Elevao parcial do Viaduto Santa
Egnia.
[TOLEDO, 1989. p.64.]
55 O VALE COMO BARREIRA
O viaduto tem um comprimento total de 225 metros divididos em cinco partes: vos
extremos de 30 metros e trs vos centrais em arco com 55 metros. A largura entre guarda-
corpos de 13.60 metros e o pavimento original era em paraleleppedos de granito.
Quando o Sta. Egnia foi construdo, o trecho do vale sobre o qual se projetava no
fazia parte do recinto Anhangaba. At aquele momento o limite norte do recinto era
determinado pelo fundo das construes voltadas para a Rua de So Joo. Ali terminava o
Anhangaba. Portanto, naquele momento a regio alm da So Joo no representava uma
continuidade daquele vazio. Isso s aconteceria muitos anos depois. O fundo do vale encon-
trava-se densamente ocupado por pequenas edicaes, trreas ou com dois pavimentos,
sobre as quais o viaduto foi instalado estabelecendo uma relao bastante conituosa.
No projeto do Sta. Egnia e atravs do modo como se deu sua construo, ca evidente
que ele foi pensado unicamente como elemento de ligao entre partes da cidade alta. Os
melhoramentos associados ao seu empreendimento se limitaram a seus pontos extremos,
Largo So Bento e Largo Sta. Egnia
27
, e no desceram as encostas. Muitos anos se passariam
at que essa relao vertical entre os dois nveis da cidade fosse nalmente estabelecida.
A inaugurao do Viaduto Santa Egnia encerra o perodo em que o Vale do
Anhangaba representava uma barreira para a expanso da cidade e abre um novo mo-
mento, onde seu novo papel seria determinado. As novas ligaes, atravs dos viadutos,
consolidaram o vetor oeste como setor de expanso natural do centro, relegando zona
leste um papel secundrio e de menos prestgio. O Anhangaba passaria a ser agora o foco
das atenes. disto que trata o prximo captulo.
27 A Igreja de Nossa Senhora
da Conceio de Santa Ignia,
construda em 1794, foi demolida
para a edicao de uma nova
igreja posicionada no eixo do novo
viaduto. Os beneditinos zeram
o mesmo, reconstruindo suas
instalaes no perodo entre 1910
e 1922.
TOLEDO, Benedito Lima de.
Anhangabah. So Paulo: FIESP,
1989. p.76.
56
57 O VALE COMO BARREIRA
Figs.44 e 45
Momentos da construo do
viaduto. reas no fundo do vale
foram utilizadas como canteiro de
obras.
[TOLEDO, 1989. p.78.]
Fig.46
Largo de So Bento com o viaduto
e a Igreja de Santa Egnia ao
fundo.
[LARGO SO BENTO, VIADUTO
SANTA EFIGNIA, LARGO
SANTA EFIGNIA. Instituto
Cultural Ita. So Paulo: ICI,
1994.]
Fig.47
Fotograa do viaduto recm
construdo. Guilherme Gaensly.
[LEMOS, Carlos A. C. O lbum de
Afonso: a reforma de So Paulo. So
Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001.
p.86.]
Fig.48
O viaduto em meio ao casario.
[TOLEDO, 1996. p.162.]
Fig.49
Viaduto de Santa Egnia visto
a partir do Edifcio Martinelli. O
fundo vale continuava plenamente
ocupado.
[TOLEDO, 1989. p.173.]
58
59 O VALE COMO LUGAR
captulo 02
o vale como lugar
60
61 O VALE COMO LUGAR
Vislumbrando um lugar
No princpio era o pntano, com valas de agrio e rs coaxantes. Hoje o parque do
Anhangaba, todo ele relvado, com ruas de asfalto, prgola grata a namoricos notur-
nos, e Eva de Brecheret, a esttua dum adolescente nu que corre - e mais coisas. Autos
voam pela via central, e cruzam-se pedestres em todas as direes. Lindo parque, ci-
vilizadssimo.
1
O primeiro captulo deste trabalho teve como objetivo recompor, de maneira breve, o
processo de desenvolvimento da estrutura de So Paulo responsvel pela primeira grande
transformao do sentido atribudo ao recinto do Anhangaba, que passou de fundo da
cidade a barreira de sua expanso.
Uma vez superada a barreira, o crescimento do setor oeste da cidade se intensicou,
consolidando o que se denominou de centro novo e os novos bairros residenciais das elites
regionais. Esta consolidao, por sua vez, foi a responsvel pela segunda grande transfor-
mao do sentido daquele recinto. Nesta nova congurao a localizao do vale passou a
ser central. Um grande espao vazio no corao da cidade, respiro entre as estreitas ruas do
centro velho e as pujantes construes do centro novo.
Desde o nal do perodo monrquico fora reconhecido o potencial paisagstico e
urbanstico representado por espaos livres to prximos da rea central. At o ltimo
quartel do sculo XIX, os vales do Anhangaba e do Tamanduate nada mais eram
que parte do quadro natural cercando o ncleo urbano, formado por campos, vrzeas,
matos, chcaras e fundos de vale. Na medida em que o crescimento da cidade passou a
cavaleiro do vale, a Oeste, e da vrzea, a Leste, e a ocupao horizontal da colina atingiu
seus limites, tais espaos passaram a representar vazios passveis de aproveitamento
como reas livres - uma vez que as condies fsicas dessas zonas baixas e alagadias
desestimulavam a ocupao urbana propriamente dita.
2
1 O irnico trecho citado foi
publicado originalmente por
Monteiro Lobato na Revista do
Brasil n 36, de dezembro de 1918.
LOBATO, Monteiro. Negrinha. So
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 61.
2 CAMPOS NETO, 1999. p.111.
62
63 O VALE COMO LUGAR
As possibilidades oferecidas por esta nova congurao foram logo percebidas e teve
incio um processo de construo coletiva do novo carter daquele espao; de transforma-
o do espao em lugar. O vale como um lugar.
3
Os melhoramentose os primrdios do urbanismo em So Paulo
O amadurecimento e estabilizao da economia cafeeira fez com que o escopo das
intervenes concebidas para a cidade de So Paulo fosse ampliado por volta de 1910.
Das iniciativas parciais que caracterizaram os primeiros anos do sculo, evoluiu-se
para um conjunto de propostas de maior alcance, sinalizadas pela expresso melho-
ramentos.
4
Durante as duas ltimas dcadas do sculo XIX e os primeiros anos do sculo XX, as
esferas da administrao pblica foram obrigadas a realizar um processo de reestrutura-
o administrativa e institucional adequando-se ao novo regime republicano e procurando
acompanhar o desenvolvimento econmico e urbano da cidade.
Durante o curto perodo, de outubro de 1885 a agosto 1886, em que presidiu a pro-
vncia Joo Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919), foi criada a Comisso Geogrca e
Geolgica, organizou-se um levantamento estatstico da provncia e foi promulgado um
novo Cdigo de Posturas, elaborado pela Cmara Municipal. Apresentou-se o plano de uma
avenida perimetral circundando a rea central da cidade, que no chegou a ser realizado, e
foram contratados a construo do palcio comemorativo da independncia, atual Museu
do Ipiranga, e os projetos de regularizao dos rios Tamanduate e Anhangaba.
Em 1889 Antonio Francisco de Paula Souza (1843-1917) assumiu a chea da recm
criada Superintendncia de Obras Pblicas (estadual), adotando como principais campos
de atuao as obras de saneamento e a construo de edifcios escolares. O mais impor-
tante destes foi o edifcio da Escola Normal, construdo no Largo dos Curros, atual Praa
da Repblica. Em 1894 promulgou-se o Cdigo Sanitrio e nesse mesmo ano Paula Souza
3 Espao, entendido aqui como
um conceito fsico e mensurvel;
uma rea localizada entre limites
determinados. Lugar uma
propriedade atribuda socialmente
a um espao; um espao
dotado de um sentido social; tem
uma conotao antropolgica,
psicolgica e subjetiva.
4 CAMPOS NETO, 1999. p.103.
Fig.50
Foto area de 1925 mostrando o
parque de Bouvard e a ocupao
do vale a partir da Avenida So
Joo, j alargada.
[REIS, 2004. p.145.]
64
65 O VALE COMO LUGAR
assumiria a direo da nova Escola Politcnica, fundada com o objetivo de aparelhar os
quadros tcnicos e administrativos governamentais.
Entre 1896 e 1898, a Intendncia de Obras (municipal), sob o comando do engenheiro
Pedro Augusto Gomes Cardim (1864-1932), produziu uma planta cadastral geral da cidade
com o objetivo de mapear o crescimento urbano das dcadas anteriores e subsidiar um pla-
no que seria elaborado pela Comisso Tcnica de Melhoramentos. O plano apresentado em
1897 e no realizado, previa uma grande avenida perimetral, mais ambiciosa que a de Joo
Alfredo, que incentivaria o eixo de expanso da cidade no vetor sudoeste.
No ano de 1899 foi criado o cargo de prefeito municipal. Para assumir o primeiro man-
dato a cmara elegeu Antonio da Silva Prado (1840-1929), chefe da mais importante famlia
da sociedade paulistana e gura de destaque nos campos da agricultura, da indstria, do
comrcio e nanceiro. Prado permaneceu no cargo por quatro mandatos consecutivos, at
1910, e teve sempre ao seu lado, como Diretor de Obras Municipais, a gura de Victor da
Silva Freire (1869-1951).
Durante os ltimos anos da gesto de Antonio Prado, a cidade viveu um perodo in-
tenso de debates a respeito dos melhoramentos que deveriam ser realizados na rea central,
revelando o interesse dos grupos dominantes na construo dos espaos de representao
do desenvolvimento econmico e social proporcionado pela cultura do caf.
Esse perodo foi pesquisado com profundidade por diversos autores e sua reconstituio
detalhada, neste trabalho, cairia inevitavelmente na redundncia ou na mera compilao. A
anlise que se pretende realizar aqui ter como foco as transformaes espaciais do recinto
embutidas em cada projeto e seus rebatimentos no plano da construo coletiva do carter
que deveria ser atribudo quele lugar.
Fig.51
Foto area de 1930 mostrando a
ocupao do vale a norte da Aveni-
da So Joo.
[REIS, 2004. p.156.]
66
A contribuio de Adolfo Augusto Pinto [1890]
No livro Preldio da Metrpole
5
Hugo Segawa coloca como, at os ltimos anos do Sc.
XIX, as iniciativas, pblicas ou privadas, de interveno na cidade no passaram de tentati-
vas, mais ou menos felizes, de enfrentar questes pontuais de forma isolada e imediatista.
No mesmo trabalho, o autor apresenta uma gura cujo discurso sobre a cidade con-
guraria um contraponto a essa situao. Atravs da publicao, ao longo do ano de 1890,
de artigos editoriais em uma coluna do dirio Correio Paulistano chamada Melhoramentos
Municipais, o engenheiro Adolfo Augusto Pinto (1856-1930) elencou uma srie de medidas
que, apesar do predominante carter sanitarista, abordavam problemas urbanos de diversas
ordens. Para o Anhangaba, o engenheiro props sua cobertura e embelezamento, do largo
da memria at a rua 25 de Maro. Para isso deveria
...Abrir-se importante via de comunicao direta e de nvel, entre quase todos os bair-
ros suburbanos da capital (...) Tais Comunicaes hoje no se fazem seno atravs da
colina central da cidade, e portanto subindo e descendo ladeiras, o que torna penosa e
sobremodo pesada a trao dos veculos de toda espcie.
6
interessante ressaltar que essa proposta uma das nicas que considera toda a exten-
so do vale, prolongando a interveno at seu encontro com o Tamanduate.
Em 1896 uma comisso organizada por Campos Salles, da qual Augusto Pinto fazia
parte, elaborou o que Segawa considera como o primeiro plano ocial de melhoramentos
da cidade. Nesse plano encontra-se a proposta de abertura da Praa do Patriarca:
Como se sabe, no s pela sua estreiteza, pois mede pouco mais de meia dzia de me-
tros, como por ser o trecho sujeito a maior trabalho, a parte da rua Direita que ca en-
tre a rua de S. Bento e a rua Lbero Badar a que reclama interveno mais radical.
5 SEGAWA, Hugo. Preldio da
Metrpole. So Paulo, Ateli
Editorial, 2000.
6 Melhoramentos Municipais,
Correio paulistano, So Paulo, 26
jan. 1890 apud SEGAWA, 2000,
p.47.
67 O VALE COMO LUGAR
(...) dentro em pouco o trnsito nesse trecho ser impossvel, se no for ele transfor-
mado em espaoso largo, tendo a sua divisa no alinhamento da rua da Quitanda, con-
forme sugeri h tempos, quando levantei nesta folha a idia desse melhoramento.
Esta magnca obra, desde que seja assim realizada, e no se limite a um pequeno re-
cuo de prdios, permitir a arborizao do local, abrir espao para o estacionamento
de carros e automveis de praa, ao mesmo tempo que facilitar tornar-se o novo largo
excelente ponto de partida dos bondes que passarem pelo Viaduto do Ch, os quais
podero fazer a volta no prprio largo, deixando de atravancar as ruas do Tringulo.
7
Embora no se encontre nenhum tipo de registro grco das propostas feitas por Adolfo
Augusto Pinto, a posterior materializao de algumas delas nos permite vislumbrar o que
tinha em mente o engenheiro. Os principais pontos de seu discurso seriam retomados em
propostas posteriores, consolidando um projeto comum de construo do lugar. Em relao
ao Anhangaba, ca cristalizada nesse plano a memria da nica proposta que trabalhou
com toda a extenso do vale, hidrogracamente compreendido. A malha viria implantada
no trecho norte do vale nos anos seguintes e a construo da Estao da Luz gerariam um
deslocamento da percepo desse extremo do recinto do vale na direo noroeste e a partir
da ele nunca mais seria compreendido desde esse ponto de vista.
7 PINTO, Adolfo Augusto. Minha
Vida (Memrias de um Engenheiro
paulista), So Paulo, Conselho
Estadual de Cultura, 1970, p.124
apud SEGAWA, 2000, p. 49.
68
69 O VALE COMO LUGAR
Um grande palco: teatros So Jos e Municipal [1903/1911]
A combinao da prosperidade econmica das elites, seu desejo de superao do pas-
sado colonial e a forte inuncia cultural dos imigrantes, desencadeou um vertiginoso
processo de importao de costumes, principalmente europeus, tidos como sosticados e
cosmopolitas. A enorme freqncia de apresentaes, de pera e teatrais, constitua bom
exemplo disso.
No nal do sc. XIX So Paulo recebia um nmero expressivo de companhias teatrais
estrangeiras, mas as instalaes destinadas s apresentaes eram relativamente prec-
rias. Sucessivas leis de incentivo construo de salas de espetculo foram aprovadas pela
Cmara sem obteno de resultados. At 1895 a cidade contava com trs modestas casas
teatrais administradas por empreendedores privados: o Teatro Politeama, localizado no Vale
do Anhangaba junto Rua de So Joo
8
, o Teatro Minerva ou Apolo
9
, na Rua Boa Vista,
e o mais importante deles, o Teatro So Jos, construdo nas proximidades da atual Praa
Joo Mendes
10
. Seu espao funcionou ativamente at fevereiro de 1898, quando o edifcio
foi completamente destrudo por um violento incndio.
11
Aps pouco mais de dois anos de obras, foi inaugurado em 28 de dezembro de 1909
12
o
segundo Teatro So Jos, quase em frente ao local onde, desde 1903, estava sendo construdo
o Municipal. Projetado pelo arquiteto sueco Carlos Ekman (1866-1940) e construdo pelo
engenheiro Regino Arago, foi um dos primeiros edifcios a utilizar a estrutura metlica
13

em So Paulo. O So Jos era relativamente modesto, no representava plenamente as as-
piraes da elite paulistana e aps a inaugurao do Municipal, em 1911, o local tornou-se
obsoleto. Um novo incndio destruiu parte de suas instalaes e aps esse incidente suas
portas no voltariam a se abrir. Sua localizao privilegiadssima despertou o interesse da
Companhia Light, que adquiriu o imvel para ali construir sua nova sede. O teatro foi de-
molido em 1925 e o novo edifcio da companhia inaugurado em 1929.
A construo de uma casa de espetculos altura das pretenses da elite paulistana
no foi fcil. Aps alguns anos de tentativas de incentivo ao seu empreendimento por ca-
pitais privados, foi aprovada pelo Senado Paulista, em novembro de 1900, a Lei n 750,
8 O Politeama abriu suas portas
em fevereiro de 1892, mesmo ano
de inaugurao do Viaduto do
Ch, e destinava-se originalmente
a apresentaes circenses. A sala de
espetculos era abrigada por um
grande galpo de planta circular e
possua uma capacidade aproximada
para 3000 espectadores. Foi destrudo
por um incndio no dia 27 de
dezembro de 1914.
9 Conhecido inicialmente como o
Teatro Provisrio Paulista, iniciou
suas atividades em 1873. Em 1891
foi reformado passando a chamar-
se Teatro Minerva. Em 1895, aps
nova reforma, passou a chamar-se
Teatro Apolo. Em 1899 foi adquirido
por Antnio lvares Penteado, que
anexando lotes vizinhos, construiu
nova casa, inaugurada em maio de
1900 com o nome Teatro Santana.
Em 1912 o edifcio foi vendido
ao governo e demolido para a
construo do Viaduto Boa Vista.
10 O primeiro Teatro So Jos foi
inaugurado provisoriamente em
1864, com sua construo ainda
inacabada. A inaugurao denitiva
aconteceria apenas em 1876.
11 AMARAL, Antonio Barreto do.
Histria dos Velhos Teatros de So
Paulo: da Casa da pera inaugurao
do Teatro Municipal. So Paulo:
Governo do Estado, 1979. p. 283.
12 Idem. p.373
13 A estrutura foi encomendada
na Alemanha. A rapidez das
obras permitiu que o teatro fosse
inaugurado dois anos antes do
Municipal.
TOLEDO, 1989. p.63.
Fig.52
Os teatros So Jos e Municipal
vistos a partir do terrao do Palace-
te Prates. Carto postal, 1918.
[TOLEDO, 2004 (1980). p.140.]
70
Fig.53
Os teatros e o Ch.
[TOLEDO, 1989. p.57.]
Fig.54
Edio de mapa do Morro do Ch,
de 1917, destacando em cinza a
rea compreendida pelo parque de
Bouvard e em preto os dois teatros.
Essas duas contrues arrema-
tavam o vazio da Praa Ramos
de Azevedo e viaduto do Ch e
criavam o cenrio mais glamuroso
da cidade at a implantao do
parque.
[Fonte da base: TOLEDO, 1996.
p.78.]
71 O VALE COMO LUGAR
autorizando o estado a mandar construir um teatro na mesma localizao do primeiro So
Jos. Diculdades econmicas impediram sua realizao. Em 1903 a Cmara Municipal
aprovou a Lei n 627, que autorizava o Prefeito Antnio Prado a entrar em acordo com o
Estado para empreender a obra. Escolheu-se para tanto terreno localizado entre as ruas
Baro de Itapetininga, Formosa, Conselheiro Crispiniano e o prolongamento da Rua 24 de
Maio. Para realizar o projeto foram contratados os arquitetos Francisco de Paula Ramos de
Azevedo (1851-1928), Domizziano Rossi (1865-1920) e Cludio Rossi.
A obra foi iniciada em junho de 1903 e concluda oito anos depois, em agosto de 1911.
A apresentao inaugural, marcada para o dia 11 de setembro, teve de ser adiada para o dia
seguinte, pois os cenrios no chegaram a tempo. No dia 12, uma multido, estimada pelos
jornais da poca em 20 mil pessoas, se concentrou ao seu redor para conhecer a novidade
14
.
O que interessa destacar aqui a respeito desses edifcios, se manifesta em dois mbitos:
o do conjunto que conformavam e o das relaes com a cidade que estabeleciam individu-
almente.
Como um conjunto, arrematavam uma das extremidades do viaduto e conguravam
um espao livre importantssimo. Uma das mais prestigiadas atividades sociais paulistanas,
smbolo da emancipao cultural da cidade, tinha ali, no centro novo, seu monumento:
a praa dos teatros como um grande palco. Esse vazio fazia parte do recinto Anhangaba,
espraiando sua presena nos meandros da cidade.
Individualmente, essas construes tambm apresentavam aspectos que devem ser des-
tacados. O projeto do Teatro So Jos, colado ao Viaduto do Ch, tirava partido de sua pou-
co usual situao urbana e topogrca, com trs fachadas ativas
15
e dois nveis trreos, um
na cidade alta, atravs do viaduto e da Rua Xavier de Toledo, outro na cidade baixa, atravs
da Rua Formosa. Observando algumas fotograas dos anos 1910 e 1920, podemos observar
que neste edifcio at sua quinta fachada foi explorada, atravs da utilizao da cobertura
para publicidade comercial.
Por sua vez, o Teatro Municipal consegue estabelecer dilogos especcos com a cidade
atravs de cada uma de suas quatro frentes. A frente Anhangaba expe o volume majes-
14 Devido quantidade de
cerimnias e homenagens
realizadas nesse dia, o espetculo
inaugural, a pera Hamlet, foi
iniciada com muito atraso somente
s dez horas da noite. Devido ao
adiantado da hora, foi suspensa por
volta da uma da manh, cando
sem o seu eplogo.(AMARAL,
1979. p.401.)
15 Denominou-se como fachadas
ativas, as faces de um edifcio
atravs das quais se realizam trocas
ativas com a cidade e no apenas
visuais.
72
73 O VALE COMO LUGAR
toso de suas instalaes ao recinto do vale, permitindo a leitura de suas partes e criando
um pano de fundo para a travessia do Ch. Seu passeio lateral cria um terrao mirante
para o vale, que se transforma em jardim inclinado at atingir a Rua Formosa. A frente
Praa Ramos de Azevedo qualicava e alimentava o largo dos teatros, valorizando o eixo do
viaduto e da rua Baro de Itapetininga. A frente Conselheiro Crispiniano cria um alarga-
mento lateral interessante para o comrcio localizado em frente alm de arrematar de modo
inusitado o eixo visual da Rua 24 de Maio. E nalmente a frente oposta praa Ramos de
Azevedo, que estabelece o acesso tcnico de funcionrios e artistas ao teatro e constitua
elegantssima esquina no perodo em que existiu ali o Hotel Esplanada.
Fig.55
Os teatros arrematando o eixo vi-
sual do Viaduto do Ch. O parque
ainda no havia sido implantado
e as casas da Rua Formosa ainda
criavam um fundo para o vale.
Aurlio Becherini, 1911.
[PONTES, 2003. p.164.]
Fig.56
A Praa Ramos de Azevedo, os
teatros e o Hotel Esplanada, aps a
implantao do parque.
[IMS, 2004. p.139.]
Fig.57
Os teatros pontuavam o eixo do
viaduto e da Baro de Itapetininga.
As casas da Rua Formosa, a norte
do viaduto, j haviam sido demo-
lidas para a construo do parque.
As casas a sul permaneciam.
Aurlio Becherini, 1914.
[PONTES, 2003. p.165.]
74
Fig.58
Vista da Rua Formosa em direo
ao Viaduto do Ch com o So Jos
ao fundo. O acesso inferior por esta
rua servia aos artistas e funcion-
rios do teatro, tirando partido de
sua singular situao topogrca.
Autor desconhecido.
[GERODETTI, Joo Emilio. Lem-
branas de So Paulo: a capital
paulista nos cartes postais e lbuns
de lembranas. So Paulo: Studio
Flash, 1999. p.77.]
Fig.59
Elevao Rua Formosa do Teatro
So Jos.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.60
O So Jos visto do Viaduto do
Ch.
[AMARAL, Antnio Barreto do.
Histria dos velhos teatros de So
Paulo: da Casa da pera inau-
gurao do Teatro Municipal. So
Paulo: Governo do Estado, 1979.]
75 O VALE COMO LUGAR
Fig.61
Elevao Rua Xavier de Toledo do
Teatro So Jos.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.62
Acesso do Teatro So Jose pela Rua
Xavier de Toledo.
[AMARAL, 1979.]
Fig.63
Teatro So Jos a partir da escada-
ria do Tetro Municipal. Podem ser
vistos seus acessos pela Rua Xavier
de Toledo e pelo Viaduto do Ch.
[TOLEDO, 2004 (1980). p.139]
76
Figs.64 e 65
Elevao Viaduto do Ch e corte
longitudinal do Teatro So Jos.
[Biblioteca FAUUSP]
77 O VALE COMO LUGAR
Figs.66 e 67
Elevao Anhangaba e corte lon-
gitudinal do Teatro Municipal.
[TOLEDO, 1989. p.58 e 59]
78
Fig.68
Carto postal mostrando a eleva-
o Baro de Itapetininga do Tea-
tro Municipal.
Cardozo Filho & Co.
[GERODETTI, 1999. p.131.]
Fig.69
Teatro Municipal visto a partir do
So Jos. G. Gaensly, 1920.
[IMS, 2004. p.111.]
79 O VALE COMO LUGAR
Fig.70
Teatro Municipal e Praa Ramos de
Azevedo recm construdos.
[TOLEDO, 1989. p.133]
Fig.71
O Caf do Municipal tirava partido
de sua extraordinria localizao
utilizando o passeio voltado para
o Anhangaba e a Praa Ramos de
Azevedo.
[CHAMIE, Emilie. Teatro Munici-
pal 70 anos. So Paulo: Secretaria
Municipal de Cultura, 1982.]
80
81 O VALE COMO LUGAR
As indicaes do Vereador Augusto Carlos da Silva Telles [1907]
Augusto Carlos da Silva Telles (1851-1923) pertencia a uma famlia paulista ligada ca-
feicultura. Diplomou-se engenheiro em 1878, na Escola Politcnica do Rio de Janeiro, cida-
de na qual exerceu o cargo de diretor de obras da Capital Federal entre 1897 e 1898. De volta
a So Paulo, foi vereador na Cmara Municipal entre 1905 e 1911. Em 1906 Telles publicou
o estudo Os melhoramentos de So Paulo, contendo um plano abrangente de intervenes
na cidade. O setor central da cidade era ali, objeto de uma srie de propostas com enfoque
marcadamente virio, entre as quais se destacam os alargamentos dos quatro cruzamentos
onde o trfego de bondes era mais intenso (So bento com So Joo e Direita, So Joo com
Lbero Badar e Largo do Tesouro) e o alargamento da rua Lbero Badar. Esta ltima con-
tinha clara inteno de reformulao do espao do vale do Anhangaba:
A nossa antiga rua de S. Jos impe-se seja radicalmente transformada. O seu alarga-
mento constitue medida de primordial importncia para esta capital.
(...) Rero-me desapropriao da face impar da rua Lbero Badar, o que ulterior-
mente seria complementado pela desapropriao da face par da ladeira Dr. Falco.
Dariamos ao centro da cidade um verdadeiro desafogo, dotariamos So Paulo de uma
bella avenida central, dominando esse valle sob os dois viaductos, hoje to mal apro-
veitado e que poderia transformar-se em um sitio encantador.
Seria o complemento indispensavel ao bello e imponente Theatro Municipal, que mal
se comprehende tenha com panorama da cidade essa la repugnante de fundos de
velhas e primitivas habitaes.
Opportunamente devera ser emprehendida a desapropriao das casas, face impar da
rua Formosa. Evitar-se- assim que apresente o Theatro Municipal para quem a elle
se dirige, indo da cidade pelo viaducto, como primeiro plano de perspectiva fundos
de velhas casinholas da rua Formosa; s assim conseguir esta justicar o nome com
que se orna.
16
16 TELLES, 1907, p. 41/2 apud
SIMES JR, 1995, p. 74/5.
Fig.72
Planta cadastral elaborada pela
Diretoria de Obras da Prefeitura
Municipal de So Paulo para o
Projecto de melhoramentos da
zona limitada pelas ruas Libero
Badar, So Joo, Formosa, Largo
do Riachuelo e Ladeira Dr. Falco,
com data de 15 de outubro de
1907.
[Arquivo SIURB]
82
83 O VALE COMO LUGAR
O projeto foi desenvolvido pela equipe de engenheiros da Diretoria de Obras municipal,
que contava com as guras de Victor Freire e Eugnio Guilhem. Em 1907 foi apresentada
uma planta que sintetizava o conjunto das propostas defendidas por Telles e que se consti-
tuiu como o primeiro projeto municipal que continha uma viso de conjunto a respeito das
intervenes a realizar na rea central da cidade.
Algumas caractersticas importantes do projeto podem ser extradas da leitura da planta
geral da proposta, com data de 15 de outubro de 1907.
Os limites assumidos para o recinto do vale so o Largo do Riachuelo, a Rua de So
Joo, a Rua Formosa e a Lbero Badar. A praa ao lado do Teatro Municipal no faz parte
do conjunto.
As encostas so liberadas de construes, com exceo de um nico edifcio junto
extremidade leste do Viaduto do Ch, que estrangula a alargada Libero Badar, e dois espa-
os reservados sobre a encosta oeste, provavelmente destinados implantao de edifcios
pblicos.
sugerida a abertura de uma via junto ao extremo oeste do Viaduto do Ch criando
uma ligao direta entre o Teatro Municipal e a Rua Formosa.
O fundo do vale recebe uma via, prolongamento da Rua Anhangaba, posicionada as-
simetricamente em relao ao vale, mais prxima da encosta oeste. A via possui carter de
rua e no de avenida, e possui uma pequena rotatria no eixo da Travessa do Grande Hotel.
O tratamento dado s reas livres o de um conjunto de pequenas praas ajardinadas rela-
tivamente articuladas sem a inteno de criar um grande espao nico.
Fig.73
Planta do Projecto de melhora-
mentos da zona limitada pelas ruas
Libero Badar, So Joo, Formosa,
Largo do Riachuelo e Ladeira Dr.
Falco, apresentado pela Diretoria
de Obras da Prefeitura Municipal
de So Paulo em 15 de outubro
de 1907.
[Arquivo SIURB]
84
Fig.74
Foto area do Vale do Anhangaba
e seu entorno.
Autor desconhecido, 1920.
[IMS, 2004. p.111.]
85 O VALE COMO LUGAR
A profuso de projetos e a soluo que veio de fora
A fora das idias contidas no plano de Silva Telles deagrou uma forte disputa envol-
vendo os tcnicos municipais de diversos setores (obras, nanas, justia) e os parlamen-
tares representantes dos proprietrios de terras que seriam de algum modo afetados pela
proposta. O maior proprietrio de imveis na rea do Anhangaba naquele momento era o
Conde Eduardo Prates, que obviamente queria lucrar com a inevitvel valorizao de suas
propriedades, principalmente as localizadas entre o vale e a Rua Lbero Badar.
A soluo desse embate s foi alcanada em 1910, com a permisso de construir sobre
o lado mpar da Rua Lbero Badar, comprometendo signicativamente a espacialidade do
projeto. Paralelamente, Freire e Guilhem continuaram trabalhando, incorporando as novas
condicionantes e conferindo maior abrangncia e profundidade ao projeto inicial. Nos l-
timos meses de 1910 esse trabalho seria concludo.
A prefeitura no dispunha dos recursos necessrios para levar adiante essas aes e so-
licitou ao Governo Estadual reforo oramentrio. Isto originou uma nova disputa, agora
entre os dois poderes, municipal e estadual, e que teve como conseqncia a elaborao de
um projeto alternativo, encarregado a Samuel das Neves.
A discusso em torno dos melhoramentos deixou claro o volume de recursos pblicos
que seria demandado e o enorme potencial de valorizao imobiliria decorrente das obras,
abrindo a perspectiva para grandes negcios. Os interesses de grupos privados passaram a
se manifestar atravs de novos projetos, que rivalizavam com as propostas defendidas pelas
esferas pblicas.
O conito chegou a tal ponto que no havia acordo possvel. Para encerrar a questo foi
necessrio acudir a um agente neutro, do ponto de vista dos interesses envolvidos, e com
autoridade tcnica incontestvel. Dentro desse cenrio foi elaborado o plano de Bouvard.
86
Fig.75
Planta da proposta de melhora-
mentos de Alexandre de Albu-
querque.
[SEGAWA, 2000. p.72.]
87 O VALE COMO LUGAR
Alexandre de Albuquerque e os investidores privados [1910 - novembro]
A dimenso atingida pelo debate em torno dos melhoramentos no centro da cidade fez
com que o assunto se tornasse objeto de discusso pblica onde cada um poderia construir
sua prpria imagem de projeto.
Um grupo de investidores, altamente interessado no potencial volume de negcios que
a realizao dessas obras implicava, resolveu dar um passo maior: formular e apresentar
sua prpria proposta. A elaborao do plano cou a cargo do engenheiro arquiteto recm
formado pela Escola Politcnica, Alexandre de Albuquerque (1880-1940) e o grupo de in-
vestidores inclua personalidades como o Conde de Prates, Ramos de Azevedo, Plnio da
Silva Prado (sobrinho do prefeito Antonio Prado) e outras grandes guras ligadas ao meio
poltico e empresarial.
17
O projeto desenvolvido por Albuquerque partia da idia de transferir da colina histrica
os principais edifcios representativos do poder pblico congurando um novo centro prxi-
mo ao Largo Paissandu. Nessa rea seria implantado um conjunto de novas avenidas, super-
postas de modo bastante formalista e impositivo malha existente, ligando os pontos julgados
mais importantes. Essas avenidas, radialmente dispostas, se encontrariam em um ponto focal,
uma praa rotatria explicitamente relacionada Place de ltoile de Paris. Ao longo delas
seriam construdos os edifcios mais importantes conforme a descrio do autor:
os predios seriam construidos de dois ou mais pavimentos e obedeceriam aos moder-
nos estylos architectonicos, tendo preferencia os de sumptuosa fachada e os que se des-
tinassem a grandes estabelecimentos commerciaes ou outra importante aplicao.
18
No contexto dessa proposta, a posio central do Anhangaba se dilui de tal modo que
ao observarmos a planta geral do projeto temos diculdade em localiz-lo. Ele representa-
do como mais uma quadra, destacando-se o vazio da praa ao lado do Teatro Municipal.
19
A topograa, questo crucial na estruturao da cidade, no parece ter sido uma con-
dicionante do projeto. Se observarmos a avenida que liga a Praa Antonio Prado rotatria
17 Uma lista completa dos
signatrios da petio pode ser
encontrada em CAMPOS NETO,
1999. p.116.
18 Os melhoramentos de So Paulo:
Projecto Alexandre de Albuquerque
Revista de Engenharia n2 (vol.
I) julho de 1911 apud CAMPOS
NETO, 1999. p.116.
19 Na publicao O lbum de
Afonso, Carlos Lemos apresenta
uma planta desse projeto
aparentemente editada, pois difere
do desenho utilizado por todos os
demais autores consultados. Na
planta utilizada por ele, a leitura
que se faz do Anhangaba, que
aparece destacado juntamente
com os demais espaos livres e as
principais avenidas propostas,
oposta comentada.
88
89 O VALE COMO LUGAR
central, cruzando o vale logo aps a Rua de So Joo, no encontraremos qualquer sinal que
revele os desnveis existentes ao longo do percurso. Nem mesmo na perspectiva que ilustra
o plano, essa condio geogrca perceptvel.
Os proponentes apresentaram a petio ao Governo do Estado, onde teriam mais inu-
ncia que na esfera municipal. Pela sua proposta, arcariam com os custos de implantao
das avenidas em troca da concesso de uma srie de servios (inclusive um sistema de trans-
portes utilizando nibus) e do direito de desapropriar uma faixa mais larga que a necessria
para a abertura das avenidas, podendo posteriormente utilizar ou revender os lotes criados
junto a elas.
Pelo seu contedo e pelo modo como foi encaminhado, o plano despertou imediata-
mente a oposio de poderosos agentes: a esfera do poder municipal, a Light (que perderia
o monoplio dos transportes), todos os proprietrios de terras que seriam prejudicados em
benefcio de um pequeno grupo
20
e todos os proprietrios de imveis localizados sobre a
colina histrica, que inevitavelmente sofreriam desvalorizao com a congurao de um
novo centro.
A imagem de cidade oferecida por Albuquerque no teve a repercusso esperada e seus
patrocinadores no puderam superar a oposio. O projeto foi nalmente abandonado e a
colina histrica manteria seu carter polarizador.
Alexandre de Albuquerque se tornaria docente da Escola Politcnica a partir de 1917,
atingindo o cargo de diretor em 1937. Exerceu o cargo de vereador por dois mandatos e
teve participao ativa no cenrio das artes plsticas promovendo sales e participando da
fundao da Escola de Belas Artes. Como arquiteto teve uma carreira discreta. Projetou a
Capela e o Convento de Sta. Thereza, que atualmente abriga as instalaes da PUC, e parti-
cipou da construo da Catedral da S.
21
20 CAMPOS NETO, 1999. p.119.
21 Fonte: www.poli.usp.br/
organizacao/historia/diretores/
alexandre_albuquerque.asp
(15/12/2006)
Fig.76
Perspectiva da proposta de Alexan-
dre de Albuquerque. esquerda o
Teatro Municipal e a Praa Ramos
de Azevedo.
[SEGAWA, 2000. p.69.]
90
91 O VALE COMO LUGAR
Victor da Silva Freire, Eugnio Guilhem e a contribuio municipal [1911 - janeiro]
Envolvidos diretamente na disputa poltica entre a Prefeitura e o Governo do Estado
pela conduo dos melhoramentos da cidade, Victor da Silva Freire (1869-1951), chefe da
Diretoria de Obras do municpio, e Eugnio Guilhem, seu vice, desenvolveram um pro-
jeto baseado nas premissas de Silva Telles, mas ampliando sua abrangncia. O projeto,
que cou conhecido como Freire-Guilhem, foi sintetizado em documento com o ttulo
Melhoramentos do Centro da Cidade de So Paulo, apresentado durante os ltimos dias
do mandato de Antonio Prado, em janeiro de 1911.
A proposta previa a transformao do Vale do Anhangaba em parque ajardinado, com
uma via ao longo de seu eixo comunicando o Piques e o Acu, podendo se estender at a re-
gio da Luz. As duas encostas, lado mpar da Rua Lbero Badar e lado par da rua Formosa,
deveriam ser liberadas de construes criando um belvedere contnuo em ambos os lados.
Nova travessia estava prevista atravs de um viaduto sobre o eixo da Rua de So Joo, que
seria ampliada passando a ter 40 metros de largura. Uma praa, presente em vrias propos-
tas anteriores, seria criada entre as ruas So Bento e Lbero Badar em frente Igreja de Sto.
Antonio, atual Praa do Patriarca.
Na perspectiva que ilustra o plano aparecem sugeridas algumas propostas que no fo-
ram includas na planta e que so de extrema relevncia para o objeto deste estudo. O limite
norte do que se entendia at ento como recinto do vale extrapola o eixo da Rua de So
Joo, ampliando-se como rea livre para alm do Viaduto de Santa Egnia, cujas obras j
haviam sido iniciadas. Isto daria ao conjunto uma fora extraordinria ao integrar espacial
e visualmente o Largo de So Bento e o viaduto em obras ao conjunto de espaos livres for-
mado pelo prprio vale, pela praa ao lado do teatro e pela nova praa no extremo leste do
Viaduto do Ch. Esses espaos se complementam, ampliando os limites espaciais desse va-
zio. Diferente do projeto de Alexandre de Albuquerque, a topograa aqui se constitui como
fator fundamental de articulao dos espaos, proporcionando uma riqueza de relaes
espaciais que o projeto anterior negava.
A concepo geral do viaduto proposto, junto Rua de So Joo, constitua um avano
Fig.77
Planta da proposta de Victor da
Silva Freire e Eugnio Guilhem.
[SEGAWA, 2000. p.78.]
Fig. 78
Pormenor da planta anterior desta-
cando o Vale do Anhangaba
Fig. 79
Edio da gura 78 destacando
em cinza, a abrangncia do recinto
proposta pelo projeto, tomando
como base a planta geral e perspec-
tiva que a complementava.
92
93 O VALE COMO LUGAR
em relao aos viadutos anteriores. Com o alargamento da via, o viaduto no ocuparia toda
a largura do eixo permitindo a criao de ruas paralelas que acompanhariam as declividades
das encostas, hierarquizando os uxos e evitando situaes de proximidade excessiva em
relao aos edifcios vizinhos. O espao criado sob a estrutura poderia ser utilizvel, algo
que s se realizaria com o novo Viaduto do Ch dcadas depois.
O desenho revela a inteno de congurar um espao amplo com forte unidade espa-
cial. O tratamento dos jardins busca criar um grande parque e nenhuma construo invade
seus limites. A grande diculdade imposta pelo projeto era a quantidade de desapropriaes
necessrias para liberar as encostas do vale. O Municpio no tinha os recursos necessrios
e o Estado, que poderia fornecer esses recursos, defendia outro projeto, que ser analisado
a seguir. O impasse estava criado.
Fig.80
Perspectiva da proposta de Victor
da Silva Freire e Eugnio Guilhem.
[TOLEDO, 1989. p.74.]
Fig. 81
Edio da gura anterior, isolando
o recinto desenhado. Destacam-se
as propostas do Viaduto So Joo,
e a desocupao da quadra entre
este viaduto e o Santa Egnia na
encosta junto Lbero Badar.
ntido o desejo de integrar espa-
cialmente o vale e os espaos livres
anexos, como a Praa do Patriarca
e o Largo de So Bento. Nenhuma
contruo era admitida sobre a
face oeste da Rua Lbero Badar e
Ladeira Dr. Falco.
94
95 O VALE COMO LUGAR
Samuel das Neves e a proposta do Governo Estadual [1911 - janeiro]
Movido por interesses explicitamente polticos e implicitamente econmicos, o Governo
do Estado resolveu apresentar sua prpria proposta de melhoramentos para a capital. Para
isso contratou o arquiteto Samuel Augusto das Neves (1863-1937), que havia criado vncu-
los com o setor de obras ao vencer o concurso para a nova Penitenciria do Estado. Neves
teve um curtssimo prazo para elaborar a proposta, aproximadamente quinze dias, que foi
apresentada no nal de janeiro de 1911 pelo chefe da Secretria de Agricultura, Comrcio e
Obras Pblicas do Estado, Pdua Salles.
Muitas das propostas para o sistema virio contidas no projeto Freire-Guilhem, foram
incorporadas por Neves. O ponto onde as premissas eram opostas era justamente o carter
dado ao Vale do Anhangaba.
Como ponto de partida, Neves propunha a transformao do vale no em um espao
livre, como um parque ou jardim, mas em uma grande avenida-parque, cercada por cons-
trues em altura. Esta ao claramente respondia questo das desapropriaes levantada
pelo projeto da prefeitura e beneciava os proprietrios de terras da regio. Cabe ressaltar
que o Conde de Prates era seu amigo pessoal e seria um dos mais beneciados pela con-
gurao proposta.
Na planta encontra-se insinuado o prolongamento dessa avenida para norte e para sul,
em direo ao espigo da Paulista e em direo aos campos da Luz. Em uma das perspecti-
vas encontra-se a legenda: Projeto de Transformao do Valle do Anhangabahu em Avenida
Central, podendo estender-se da Avenida Tiradentes at a Avenida Paulista. Nesta ilustra-
o, cujo limite ao norte o eixo da Rua de So Joo, a avenida prolongada innitamente,
como se logo ali no existisse o Morro do Bexiga e os vales do Saracura e do Itoror.
Uma segunda perspectiva, que abrange todo o permetro do projeto, apresenta uma situ-
ao signicativamente diferente. A grande avenida interrompida antes de atingir a Rua de
So Joo sendo arrematada por um conjunto de edifcios, entre eles o Mercado de So Joo, e
seu prolongamento na direo sul no mostrado. Poderamos dizer que esta uma imagem
mais realista no que diz respeito s possibilidades espaciais da proposta naquele momento.
Fig.82
Planta da proposta de Samuel das
Neves onde se destacam o viaduto
projetado entre o Largo da Mem-
ria e o Largo de So Francisco e a
grande avenida projectada no
fundo do vale.
[LEMOS, 2001. p.16.]
96
97 O VALE COMO LUGAR
O recinto do Anhangaba, conforme a interpretao de Samuel das Neves, seria for-
mado pelo vazio da grande avenida tendo como limites extremos o bloco de edifcios jun-
to Rua de So Joo e o viaduto proposto que ligaria o Largo da Memria ao Largo So
Francisco. As relaes espaciais possibilitadas pela topograa no seriam aproveitadas j que
o vazio da avenida seria conformado por um conjunto de edifcios implantados no fundo
do vale reproduzindo a congurao de um territrio plano.
O conjunto de desenhos evidencia por um lado, a inconsistncia do projeto do ponto
de vista das relaes urbanas sugeridas e da leitura das condicionantes do stio, e por outro
a clareza de intenes em relao ao modo de aproveitar economicamente o potencial dos
melhoramentos.
Victor da Silva Freire realizaria, nos meses seguintes divulgao dos dois projetos, uma
aprofundada e severa crtica ao projeto de Neves atravs de publicaes e conferncias. Sua
fala apontava principalmente para dois campos de anlise: as inconsistncias e contradies
intrnsecas ao projeto, e a inadequao da transposio direta do modelo de interveno
haussmaniano para as condies de So Paulo, como se zera no Rio de Janeiro por inicia-
tiva de Pereira Passos.
no era apenas a inadequao desse modelo (...) que estava em jogo nos argumentos
de Victor Freire, mas a necessidade de superar tal paradigma e construir outro, mais
autnomo - estabelecendo para So Paulo um caminho prprio, no mais subordi-
nado capital federal. Ao mesmo tempo, buscava um repertrio mais atualizado nos
termos do debate urbanstico desencadeado pelos ensinamentos de Camillo Sitte e dos
primeiros urbanistas alemes, consolidando-se no incio do sculo XX.
22
De fato, Victor Freire e sua equipe encontravam-se muito melhor aparelhados, tcnica
e teoricamente, e j vinham estudando o problema h alguns anos. No entanto, o carter
poltico a que havia chegado o impasse impedia a adoo de qualquer uma das solues.
Sabendo que sua proposta poderia naufragar caso a discusso fosse conduzida em ter-
mos prioritariamente nanceiros, o que no causaria nenhuma surpresa, Freire construiu,
22 CAMPOS NETO, 1999, p.136.
Fig.83
Perspectiva da proposta de Samuel
das Neves.
[SEGAWA, 2000. p.89.]
98
99 O VALE COMO LUGAR
atravs dessas conferncias, uma argumentao que levaria proposta de contratao de
um consultor externo especializado para elaborar o plano.
No foi coincidncia o fato de se encontrar naquele momento em Buenos Aires o re-
nomado urbanista francs Joseph Antoine Bouvard (1840-1920) que era, nos primeiros
anos do sculo XX, um urbanista experiente e internacionalmente respeitado. Desde 1907,
colaborava como consultor, na remodelao da cidade de Buenos Aires. Sua viso a respeito
do urbanismo coincidia em muitos pontos com a de Freire, principalmente no que se refere
crtica aos procedimentos haussmanianos de interveno na cidade. Freire sabia que na-
quele momento Bouvard estava na Argentina e que, portanto, existia a possibilidade de sua
participao na questo dos melhoramentos. Ele concluiu suas conferncias apresentando o
exemplo de Buenos Aires e apontando a participao do francs. Sua sugesto estava dada.
Fig.84
Perspectiva da avenida central
proposta por Neves. Notar o ttulo
do desenho: Projeto de Transfor-
mao do Valle do Anhagabah em
Avenida Central, podendo exten-
der-se da Avenida Tiradentes at a
Avenida Paulista.
[SEGAWA, 2000. p.83.]
Fig. 85
Pormenor da planta geral (Fig.82),
ampliando o Vale do Anhangaba.
Fig. 86
Edio da gura anterior destacan-
do a lgica de cheios (em preto) e
vazios (em branco) da proposta de
Neves. As construes nas laterais
da grande avenida isolavam os
espaos livres contguos, como a
Praa Ramos de Azevedo e a Praa
do Patriarca (ainda no construda
naquele momento). O prolonga-
mento indicado na direo sul,
desprezava totalmente as condies
topogrcas da cidade.
100
Fig.87
Planta geral que acompanhava o
relatrio elaborado por Bouvard.
[SEGAWA, 2000. p.94.]
101 O VALE COMO LUGAR
O Relatrio Bouvarde o encerramento da disputa [1911-maio]
Em 17 de maro a Cmara Municipal aprovou solicitao do vereador Alcntara
Machado recomendando a contratao de Bouvard e poucos dias depois Freire partiu para
o Rio de Janeiro com o objetivo de efetivar o acordo. O contrato previa o desenvolvimento
do trabalho em duas etapas: inicialmente seria elaborado um relatrio, resultado da apre-
ciao dos projetos e da visita cidade e posteriormente, caso fosse necessrio, poderia ser
elaborado um plano
23
. Bouvard permaneceu em So Paulo por aproximadamente quarenta
dias, apresentando suas concluses em 15 de maio de 1911.
O papel de Bouvard no pode ser considerado como uma arbitragem imparcial entre
as alternativas em discusso para os melhoramentos de So Paulo. Antes, a visita do
arquiteto francs seria uma resposta estratgia do fato consumado adotada pelos par-
tidrios do projeto Samuel das Neves. Escolhido por Victor Freire, Bouvard represen-
tava posies assumidas pelo Diretor de Obras; ao mesmo tempo, trazia na bagagem
o aval da cultura francesa e o prestigio de Paris, sem o qual seria impensvel contestar
o modelo parisiense que fundamentava ideologicamente a proposta de Neves. A emu-
lao de Buenos Aires, por sua vez, permitia que o exemplo carioca e sua avenida
central pudessem ser superados por uma experincia sul-americana com legitimidade
ainda maior que a do Rio de janeiro em termos da civilizao representada pela mo-
dernizao urbana europia.
24
As intervenes propostas por Bouvard podem ser divididas em quatro temas funda-
mentais: o parque no Anhangaba, o parque na vrzea do Carmo, o novo Centro Cvico e
um conjunto de intervenes virias.
Para a vrzea do Carmo, foi proposta a criao de um grande parque sobre as terras ala-
gadias e pouco ocupadas entre a vertente leste da colina e o Brs. Este espao livre seria com-
plementado pela construo de um grande pavilho de exposies (Palcio das Indstrias) e
pelo novo mercado (Municipal), que substituiria o criticado mercado na Rua de So Joo.
23 CAMPOS NETO, 1999. p.138.
24 CAMPOS NETO, 1999. p.139.
102
Fig.88
Planta dos melhoramentos para o
Vale do Anhangaba elaborada por
Bouvard. Notar a quantidade de
construes novas admitidas pela
proposta.
[SIMES JR. Jos Geraldo. Anhan-
gaba: Histria e Urbanismo. So
Paulo: FAUUSP, 1995. g.94.]
Fig.89
Pormenor de foto area tomada em
1925 , com o Parque Anhangaba
projetado por Bouvard implantado.
[TOLEDO, 1989. p.174.]
103 O VALE COMO LUGAR
Motivado pelos planos existentes de novas construes para a Catedral, o Palcio do
Governo, o Pao Municipal e o Palcio da Justia, Bouvard props a criao de um im-
ponente Centro Cvico que aglutinaria essas novas funes criando um novo espao livre
em pleno corao da colina histrica. Essa proposta exigia grandes desapropriaes e no
chegou a ser detalhada.
As intervenes virias contidas nas plantas que acompanhavam o relatrio constituem
o ponto mais frgil de suas propostas. O conjunto de vias diagonais, ligaes e novas ro-
tatrias no chegava a congurar um todo articulado capaz de resolver os problemas de
trfego enfrentados pela cidade. O resultado objetivo mais importante destas aes seria
a congurao de novas frentes de valorizao imobiliria, semelhantes s propostas por
Alexandre de Albuquerque.
Os interesses a serem beneciados continuavam presentes nos bastidores do debate
paulistano. Sempre conciliador, Bouvard encontrava a ocasio de integr-los em seu
plano geral. Mas nem a Prefeitura nem o Estado se disporiam a nanciar as custosas
operaes de aproveitamento dos miolos das quadras implcitas em tais propostas.
25
Para a regio do Anhangaba foram elaboradas duas plantas alternativas. A primeira se
alinhava muito quela proposta por Freire e Guilhem e previa a desocupao da margem
oeste da Rua Lbero Badar, com exceo do trecho junto Rua de So Joo. A segun-
da verso, apresentada de modo pormenorizado, previa a ocupao parcial dessa encosta
com a colocao de dois blocos simtricos, construdos precisamente em frente ao Teatro
Municipal. Estes blocos teriam sua frente voltada para o vale e criariam no nvel da Lbero
Badar um terrao-mirante, extenso do passeio pblico. Havia ainda a previso de cons-
trues junto Ladeira Dr. Falco e junto Rua Formosa, que foram abandonadas durante
o desenvolvimento do projeto.
Chamada de conciliatria por atender parcialmente a todos os interesses envolvidos na
discusso, esta foi a alternativa nalmente aprovada.
25 CAMPOS NETO, 1999. p.144.
104
Fig.90
Pormenor de foto area com o
Parque Anhangaba bem no cen-
tro. 1925.
[TOLEDO, 1989. p.175.]
Fig.91
Trecho do Viaduto do Ch com o
novo parque ao fundo no incio
dos anos 20. Carto Postal da
Papelaria Brasileira.
[GERODETTI, 1999. p.78.]
105 O VALE COMO LUGAR
No projeto de Bouvard, o Parque Anhangaba era compreendido como um pequeno
espao livre congurado por um conjunto articulado de edicaes: sobre as encostas o tea-
tro e os blocos simtricos, no fundo do vale, os edifcios junto Rua de So Joo e junto ao
Largo do Piques. A via central apresentava um desenho sinuoso, com traado artstico, e o
desenho dos jardins criava um cenrio de contemplao, para ser observado da cidade alta.
Das aes previstas no plano de Bouvard, a prefeitura elegeu como prioritrios os me-
lhoramentos na regio do Anhangaba, cujas obras se iniciaram naquele mesmo ano, du-
rante a gesto de Raimundo Duprat, e seriam parcialmente concludas apenas em 1917.
Fotograas do perodo permitem dimensionar o vulto da obra que resultou no Parque
Anhangaba de Bouvard. Tudo novo, tudo construdo: a topograa, os edifcios junto
Libero Badar, a vegetao, as vias de circulao. A escala desse empreendimento era indita
para os padres paulistanos. Sua construo simboliza o auge da representao urbana da
elite cafeeira. O sonho de duas dcadas havia sido nalmente alcanado. O esplendor da
capital do caf estava ali cristalizado.
106
Figs.92 e 93
Duas fotograas tiradas do mesmo
ponto, a partir do Viaduto do Ch,
mostram as transformaes de-
correntes da construo do Parque
Anhangaba.
A primeira, de 1911, mostra a Rua
Formosa, ao lado da Praa Ramos
de Azevedo, e uma grande quan-
tidade de construes com fundo
para o vale. Na segunda imagem,
de 1918, todas essas construes j
haviam sido demolidas e a movi-
mentao de terra para implanta-
o do parque encontrava-se em
fase adiantada de execuo.
Notar a signicativa elevao do
nvel do fundo do vale tomando
como referncia o edifcio direita.
O primeiro pavimento encontra-se
quase encoberto.
Aurlio Becherini.
[PONTES, 2003. p.153.]
107 O VALE COMO LUGAR
Fig.94
Aspecto da construo do parque.
A obra basicamente uma acomo-
dao de terra com a recongura-
o da topograa do vale.
Aurlio Becherini, 1918.
[PONTES, 2003. p.156.]
Fig.95
Construo do Parque Anhan-
gaba. Notar a terra ainda no
acomodada entre o Palacete Prates
e o viaduto. Toda a enconsta leste
do vale foi reconstruda (comparar
com as guras 96 a 98).
[TOLEDO, 1989. p.95.]
108
Fig.96
Obras do Anhangaba a partir da
Praa Ramos de Azevedo. Os pala-
teces do Conde de Prates em fase
nal de construo e a residncia
do Conde, direita do Viaduto do
Ch, com sua estrutura metlica
sendo montada. No fundo do vale
ainda havia casas a serem demo-
lidas e a movimentao da terra
estava sendo preparada.
[TOLEDO, 1989. p.71.]
Fig.97
Nesta imagem os palacetes j se en-
contram praticamente concludos e
as montanhas de terra ao seu redor
prestes a serem acomodadas.
[TOLEDO, 1989. p.105.]
Fig.98
Vista a partir do mesmo ponto da
imagem anterior, mostra a en-
consta j congurada com as ruas
construdas e o parque em fase
nal de implantao.
[TOLEDO, 1989. p.105.]
Fig.99
Vista do extremo sul do Parque
Anhangaba, com a arborizao
relativamente crescida e algumas
construes junto Rua Formosa
ainda por demolir.
[TOLEDO, 2004 (1980). p.2.]
109 O VALE COMO LUGAR
110
111 O VALE COMO LUGAR
Fig.100
Setor norte do vale a partir do
Viaduto do Ch, com a empena
do edifcio da Delegacia Fiscal ao
centro. As extremidades norte e
sul do parque nunca foram bem
resolvidas.
Aurlio Becherini, 1920
[PONTES, 2003. p.157.]
Fig.101
A Avenida So Joo era comple-
tamente desvinculada do parque.
direita o edifcio da Delegacia
Fiscal com sua frente voltada para
a Praa do Correio e ao fundo a
Praa Antonio Prado.
Aurlio Becherini, 1920.
[PONTES, 2003. p.160.]
Fig.102
O edifcio dos Correios, inaugura-
do em 1922, junto com a Delegacia
Fiscal, conferia o carter da praa.
Autor desconhecido, 1924.
[IMS, 2004. p.141.]
Fig.103
O Piques e o nal do parque.
[TOLEDO, 1996. p.174.]
Fig.104
Parque Anhangaba.
[TOLEDO, 1989. p.95.]
Fig.105
O viaduto e o parque.
Autor desconhecido, 1923.
[IMS, 2004. p.139.]
112
113 O VALE COMO LUGAR
Viaduto So Joo [1912]
Em julho de 1912, chegou mesa do vice-diretor de obras do municpio, Eugnio
Guilhem, um pacote procedente de So Vicente contendo o projeto para um viaduto lo-
calizado junto Rua de So Joo. A carta de apresentao, contendo o timbre da empresa
Pauling & Co., Limited, Santos, mencionava os custos previstos para a obra, bem como seu
prazo de execuo. Solicitava-se ainda, de modo muito cordial, a preferncia na construo
da obra. Outros estudos para esse viaduto, realizados no mesmo perodo, encontram-se no
arquivo de projetos da Secretaria Municipal de Infra-estrutura Urbana.
Estes estudos foram realizados, ao que tudo indica, a pedido de Victor da Silva Freire e
Eugnio Guilhem, que previam essa obra em sua proposta para os melhoramentos da rea
central. Bouvard no faz nenhuma referncia direta a esse elemento em seu plano, mas na
planta geral da colina central elaborada por ele, ao lado da Rua de So Joo, encontra-se
uma indicao que poderia ser interpretada como a proposta de construo desse viaduto
ou como o alargamento da rua ou eventualmente, ambos.
De qualquer modo, durante o desenvolvimento da proposta de Bouvard, realizado pela
Diretoria de Obras, essa idia foi retomada.
Em uma verso, com desenhos elaborados pela equipe da Diretoria de Obras, o viaduto
estruturado atravs de uma sucesso de arcos em alvenaria, com vos tpicos de 11.38 metros
e excees sobre a Rua Lbero Badar (12 metros) e sobre a Rua Formosa (25 metros). A Rua
de So Joo seria alargada para 38 metros divididos em duas vias laterais com 12 metros de
largura cada e o viaduto ao centro com 14 metros. Na planta dessa proposta podemos ver a
posio do antigo Mercado So Joo e a srie de edifcios que deveriam ser demolidos para o
alargamento. O encontro desse eixo com o Largo do Paysand no indicado, mas seu even-
tual prolongamento levaria a uma signicativa reduo da rea livre em frente igreja.
O projeto apresentado pela Pauling & Co., Limited, Santos, foi elaborado em Londres
pelo engenheiro francs Louis Gustave Mouchel, representante na Inglaterra do tambm
francs Franois Hennebique (1842-1921), pioneiro na utilizao da tcnica do concreto
armado no campo da construo civil.
26
Foram desenvolvidas duas alternativas para o via-
26 A partir de 1867 Hennebique
comeou a pesquisar as
possibilidades construtivas
proporcionadas pelo reforo
do concreto utilizando barras
metlicas. Em 1892 patenteou
seu sistema construtivo e fundou
uma empresa de consultoria
complementada por uma rede
de construtores licenciados. Em
1909 possua uma rede com 69
escritrios espalhados pela Europa,
Estados Unidos, frica e sia.
Chegou a executar uma mdia de
100 pontes por ano em sua fase
mais prspera. L. G. Mouchel
era o agente de Hennebique na
Inglaterra e sua empresa existe at
os dias de hoje.
Figs.106, 107 e 108
Projecto de um viaducto na Rua
de So Joo (entre a Praa Antonio
Prado e o Largo do Paysand)
Planta, Elevao Norte e pormenor
da elevao. Estudo desenvolvido
pela Diretoria de Obras municipal.
A So Joo ainda no havia sido
alargada. Notar a quantidade de
demolies previstas, incluindo a
do Mercado, ao centro.
[Arquivo SIURB]
114
115 O VALE COMO LUGAR
duto, uma relativamente contida, com vos modulados em 20 metros, e uma segunda mais
ousada, que vencia o vale com apenas trs vos de aproximadamente 70 metros. Em ambas
se utilizava a tcnica patenteada do concreto armado, o Ferro Concrete Construction System
de Hennebique.
A contratao de uma empresa estrangeira renomada como a de Mouchel, representan-
te do estado da arte no que se referia construo de pontes, revela que a idia de executar
o viaduto no era mera especulao. Freire e Guilhem realmente pretendiam realizar essa
obra, que no saiu do papel provavelmente devido s diculdades nanceiras enfrentadas
pelo municpio.
Fig.109
Elevao lateral e planta de um
segundo projeto para o mesmo
viaduto, elaborado em Londres por
L. G. Mouchel, 1912.
[Arquivo SIURB]
Figs.110 e 111
Fotograas da Royal Tweed Bridge,
em Berwick, Reino Unido, constru-
da por Mouchel entre 1925 e 1928.
O desenho dessa estrutura seme-
lhante ao proposto para o Viaduto
So Joo.
[http://en.structurae.de e http://
freepages.genealogy.rootsweb.com/
~agene/berbrdg.htm (Set/2006)]
116
Fig.112
Corte transversal da verso alterna-
tiva para o Viaduto So Joo elabo-
rada por L. G. Mouchel.
[Arquivo SIURB]
117 O VALE COMO LUGAR
Fig.113
Corte longitudinal parcial da ver-
so alternativa para o Viaduto So
Joo elaborada por L. G. Mouchel.
[Arquivo SIURB]
118
Fig.114
Panorama do Anhangaba a partir
da obra do Edifcio Alexander
Mackenzie. Nesta imagem podem
ser vistos, da esquerda para a di-
reita, o primeiro Palacete Prates, o
Ed. Sampaio Moreira, o segundo
Palacete Prates, a Residncia do
Conde de Prates (posteriormente
Rotisserie Sportsman) e o Ed. Mdi-
ci. Todos projetados por Samuel e
Cristiano Stockler das Neves.
[TOLEDO, 1989. p.177.]
Fig.115
Outra viso a partir do Ed. Ma-
ckenzie, com os edifcios proje-
tados pelos Neves em primeiro
plano.
[TOLEDO, 1989. p.153.]
119 O VALE COMO LUGAR
A nova carado vale: os Neves imprimem sua marca
Apesar da derrota parcial na disputa pelo projeto dos melhoramentos, Samuel das
Neves permaneceu como um dos arquitetos mais prestigiosos daquele perodo, alm de
muito bem relacionado. Era ele o projetista do Conde de Prates, proprietrio de pratica-
mente toda encosta leste do vale, junto Rua Lbero Badar.
Desta maneira, caram a cargo de Neves os edifcios novos mais importantes contidos
na proposta por Bouvard: os dois blocos que, por sua posio, rebatida em relao ao
eixo do vale, estabeleceriam uma certa simetria com o Teatro Municipal congurando um
conjunto monumental. Algumas premissas para o desenho desses edifcios haviam sido su-
geridas pelo urbanista francs e foram adotadas na soluo nal.
Para a elaborao desses projetos, Samuel das Neves contou com um importante refor-
o em sua equipe: o retorno a So Paulo, em meados de 1911, de seu lho, arquiteto recm-
formado nos Estados Unidos
27
, Christiano Stockler das Neves (1889-1982).
Outro edifcio de localizao privilegiada seria projetado pelos Neves em 1912: a resi-
dncia do Conde de Prates, na Lbero Badar esquina com o Viaduto do Ch. Desse modo,
o Ch tinha como arremates visuais de suas extremidades, de um lado os teatros So Jos e
Municipal, do outro a residncia do conde e os blocos.
O prprio viaduto foi objeto de estudos por parte do Escriptorio Technico do Eng
Samuel das Neves. Um estudo feito em 1912, com o carimbo do escritrio e assinado por
Maurice de Ladrire, propunha um novo viaduto com estrutura metlica em arco, com um
nico vo central.
Entre 1911 e 1913, projetaram ainda o Edifcio Luiz Mdici, na Lbero Badar, e o
Palacete Mdici, na Ladeira Dr. Falco. Em 1924 foi inaugurado outro cone da cidade pro-
jetado por eles: o Edifcio Sampaio Moreira, o primeiro arranha-cus da cidade, com seus
13 pavimentos mais poro e tico. Sua localizao foi escolhida a dedo pelos arquitetos, em
frente praa entre os dois blocos do Anhangaba. Entre 1911 e 1925, o escritrio foi res-
ponsvel por aproximadamente 25 projetos junto Rua Lbero Badar e adjacncias.
27 CAMPOS NETO, 1999. p.149.
120
121 O VALE COMO LUGAR
A linguagem utilizada pelo escritrio em todas essas obras, sua escolha estilstica, foi
motivo de polmicas e debates pblicos, seja pela sua rejeio arquitetura moderna, seja
pela sua rejeio arquitetura neocolonial, em voga nos anos 20 e cujo maior expoente em
So Paulo era Ricardo Severo. Figuras como Mrio de Andrade e Monteiro Lobato publica-
ram artigos condenando a produo do escritrio.
Estilos parte, havia no projeto dos blocos, operaes de projeto que merecem des-
taque. O partido adotado dividia as construes em duas partes. Os embasamentos, cujas
coberturas cavam em nvel com a Rua Lbero Badar, arrematavam o desnvel entre esta
e o vale, constituindo prolongamentos do passeio pblico que criavam terraos de onde se
podia admirar a paisagem. A superfcie destes era bastante fechada e os materiais utilizados
eram sbrios e brutos. Sobre estas bases pousavam os palcios, com volumetrias quase
idnticas e sutis variaes no ritmo das aberturas e solues ornamentais. Estas construes
utilizaram estruturas metlicas importadas da Inglaterra e foram inauguradas em 1914. As
fachadas principais, as frentes, eram voltadas para o vale e a soluo das esquinas em
curva realizava uma melhor integrao entre os edifcios e o vazio que os circundava.
Estas disposies espaciais resultavam em uma arquitetura que estabelecia uma reexo
a respeito de seu stio de implantao, suas especicidades geogrcas e simblicas. Poucos
edifcios realizados posteriormente junto ao vale, alcanariam equivalente qualidade arqui-
tetnica. Os dois se tornaram um enorme sucesso comercial. O mais prximo ao viaduto,
abrigou escritrios e a sede do Automvel Clube. O outro hospedou a sede da prefeitura e
da Cmara Municipal.
Fig.116
Planta de localizao dos blocos
do Anhangaba, propostos por
Bouvard e projetados por Samuel
e Cristiano Stockler das Neves. No
desenho pode ser vista a sugesto
de um novo viaduto substituindo o
antigo Ch.
[SEGAWA, 2000. p.87.]
Figs.117 e 118
Elevao Anhangaba dos pala-
cetes. Variaes decorativas dife-
renciavam os edifcios de mesma
volumetria.
[SEGAWA, 2000. p.87.]
Fig.119
Os palacetes earesidnciavistos a
partir do parque.
[TOLEDO, 1989. p.176.]
Fig.120
Os dois palacetes vistos apartir do
Viaduto do Ch. G. Gaensly, 1920.
[IMS, 2004. p.111.]
122
Fig.121
Residncia do Conde de Prates.
Elevao Anhangaba.
[TOLEDO, 1989. p.96.]
Fig.122
Residncia do Conde de Prates a
partir do parque.
[TOLEDO, 1989. p.95.]
Fig.123
Elevao lateral de proposta para
um novo Viaduto do Ch.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.124
Obras do Ed. Sampaio Moreira
utilizadas para publicidade.
[www.piratininga.org (Out/2006)]
Fig.125
O Sampaio Moreria entre os dois
palacetes.
[TOLEDO, 1989. p.165.]
Fig.126
O primeiro arranha cu de So
Paulo em fotograa do nal dos
anos 20.
[TOLEDO, 1989. p.166.]
123 O VALE COMO LUGAR
124
Fig.127
O Viaduto do Ch em desenho
de Monteiro Lobato publicado na
revista Vida Moderna, em 1916.
Fig.128
Desenho de edifcios na Laderia Dr.
Falco. Monteiro Lobato, 1912.
Fig.129
Auto-retrato de Monteiro Lobato
[D. O. Leitura, Jul/Ago 2004. p.34]
125 O VALE COMO LUGAR
Monteiro Lobato e o Ruadutodo Ch [1913]
Internacionalmente conhecido por sua produo literria, Jos Bento Monteiro Lobato
(1882-1948) foi gura polmica nos cenrios artstico e poltico nacionais e ao longo de
toda a vida envolveu-se em inmeras aventuras empresariais de diferentes naturezas.
Nascido em Taubat, mudou-se para So Paulo em 1897, graduando-se pela Faculdade
de Direito em 1904. Em 1905, simultaneamente sua carreira de promotor pblico e de
escritor, tentou sem sucesso abrir uma fbrica de gelias em sociedade com um amigo e um
estabelecimento comercial de secos e molhados quatro anos depois. Em 1910 associou-se
a um negcio de estradas de ferro. Em 1911, aos 29 anos de idade, herdou uma fazenda de
seu av, para onde se transferiu com a famlia com o objetivo de modernizar a lavoura e a
criao. Nesse mesmo ano abriu um externato em Taubat em sociedade com seu cunha-
do
28
. Em 1913, estabeleceu uma sociedade com o poeta Ricardo Gonalves cuja meta era
explorar comercialmente o Viaduto do Ch.
No perodo de 1913 a 1916 o poeta Ricardo Gonalves tentou realizar de sociedade
com o escritor Monteiro Lobato - e aproveitando a circunstncia de estarem parentes
seus na Prefeitura - um projeto que consistia em transformar o viaduto do Ch (...) em
uma rua suspensa, com casas de lojas dos dois lados. Queria o poeta construir em So
Paulo algo de semelhante ao que vira em Veneza e em Florena.
29
O Viaduto do Ch foi um dos elementos da capital que mais impressionaram o jovem
Lobato, como registram as cartas que enviou famlia entre 1895 e 1896, perodo em que
ainda se cobrava pedgio para atravess-lo. O viaduto seria ainda, tema de vrios de seus
desenhos de observao da cidade.
Em carta de maro de 1913, enviada a seu amigo Godofredo Rangel, Lobato escrevia:
Estou associado ao Ricardo num negcio que se sair nos enriquecer a ambos. Man-
dar-te-ei os recortes dos jornais, quando for o tempo. Imagine que substituir o atual
28 Fonte: www.editorabrasiliense.
com.br
29 BRUNO, Ernani Silva. Histria
e tradies da Cidade de So
Paulo. Vol.III. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1954. p.1100
126
Viaduto do Ch por um monumental ruaduto habitvel, com casas dos dois lados
- uma rua suspensa!
30
Em outra carta, datada de 21 de abril do mesmo ano, para o mesmo destinatrio, ele
relata:
Nossas empresas so prticas. A ltima a rua area, suprindo o hiato que existe entre
a Rua Direita e a Baro de Itapetininga, hoje vencido canhestramente pelo nosso velho
viaduto. L o recorte incluso. Est orado em 2 mil contos e assegura boa renda. Se a
Cmara nos der a concesso, estamos ricos. Tive essa idia ao passar uma noite por
l, e associei-me ao Ricardo, que tem inuencia na vereana. Mas o negcio vai mal.
Imagine que, movido duns estpidos laivos de pieguice sentimental, encarreguei o B...
de fazer os desenhos do ante-projeto a apresentar Cmara. E por burrice, ou inad-
vertncia, deixamos que ele, um simples desenhista contratado, assinasse a papelada.
Pois foi a conta. O homem inou-se de vento, tomou-se do delrio das grandezas, no
aceitou nossa proposta de co-participao nos lucros e acabou rompendo conosco. H
duas semanas que o encaminhamento do negcio esta paralisado em vista da atitude
desse irredutvel animal. O B... sempre viveu no mundo da lua, e na mais negra e suja
misria. No sabe nada da vida dos negcios. Deslumbrou-se com as perspectivas da
rua area e (...) cita a ponte do Rialto em Veneza para provar que tem direito a um
tero do negcio (...).
31
O tal desenhista contratado ao qual Lobato se refere como B... era Ercole (Hrcules)
Beccari
32
, imigrante italiano a quem chamava de Leonardo da Vinci do Bom Retiro.
33
O
desentendimento entre ambos foi certamente um dos motivos que levaram ao insucesso do
empreendimento, mas no se sabe ao certo o grau de aceitao que a proposta vinha tendo
junto Cmara. No ano seguinte, em uma outra carta enviada a Rangel, o escritor faria o
seguinte comentrio:
30 MONTEIRO LOBATO, Jos
Bento. Cartas Escolhidas. 7 edio.
So Paulo: Brasiliense, 1972.
31 MONTEIRO LOBATO, Jos
Bento. Ibidem.
32 Por volta de 1910, Beccari
teve participao importante no
processo de construo dos Grupos
Escolares implantados por todo
o estado. So de sua autoria os
grupos de Penha da Frana, Dois
Crregos, Serra Negra e Cravinhos
e as escolas reunidas de So Joo do
Curralinho e de Monte Mor (ver
Arquitetura Escolar Paulista: 1890-
1920. So Paulo: FDE - Diretoria
de Obras e Servios,1991). Alguns
anos mais tarde ele se incorporaria
equipe da Diretoria de Obras
Pblicas.
33 CAMARGOS, Mrcia;
VILLELA, Hilda. O Ruaduto de
Monteiro Lobato: fragmento da
memria de So Paulo. In: Revista
D. O. Leitura, jul/ago 2004. p.35.
127 O VALE COMO LUGAR
S agora camos vendo como funciona aquele crebro. Dum modo absolutamente
diverso do normal. Coisas que para ns so clarssimas e evidentes, no entram nos
miolos de Beccari. (...) Temos que meter o nosso da Vinci num conto, no h remdio.
Tipos assim a gente empalha e guarda no museu.
34
A edio de 02 de abril de 1913 do jornal O Estado de So Paulo noticiava atravs da
reportagem Um Novo Viaducto, a apresentao Cmara Municipal do projeto encami-
nhado pelos proponentes Bento Lobato, Ricardo Gonalves e outros.
Transcrita pelo jornal, essa apresentao foi inserida aqui quase na ntegra, pela sua
minuciosa descrio da proposta e como uma forma de minimizar a ausncia dos desenhos
que a complementavam.
O discurso se iniciava com uma caracterizao dos transtornos cotidianos provocados
pela obsolescncia do viaduto antigo, procurando justicar sua substituio.
Exmo. Sr. Presidente e mais membros da Cmara Municipal de S. Paulo - H muito
tempo que o viaducto do Ch vem sendo condemnado pelo pblico, pela engenharia
e pela esthetica. Monumento notvel no tempo em que foi construdo hoje uma
antigualha que no mais condiz com a maravilhosa evoluo da capital paulista. E no
s satisfaz cada dia menos s exigncias crescentes do transito, como destoa cada vez
mais do conjuncto de reformas, melhoramentos e embellezamentos circumjacentes. O
seu vulto inesthetico estraga o mais bello trecho do S. Paulo moderno. Achincalha-o a
vizinhana do Theatro Municipal e dos grandes blocos em construo. Alm disso h
um perenne alarme no pblico, quanto segurana que offerece.
Velha ponte contruda para uma cidade provinciana de 100.000 habitantes e calculada
para o reduzido transito daquella poca, faz maravilhas continuando a desempenhar
as funes de trao de unio entre a rica Cit paulistana e os populosos bairros seus
tributrios e supportando cargas occasionaes muito superiores quelas para que foi
calculado.
34 CAMARGOS, Mrcia;
VILLELA, Hilda. O Ruaduto de
Monteiro Lobato: fragmento da
memria de So Paulo. In: Revista
D. O. Leitura, jul/ago 2004. p.36.
128
Em seguida, os proponentes procuram elencar as virtudes e possibilidades do novo em-
preendimento, utilizando os melhoramentos em curso no fundo do vale como argumento
para reforar o projeto de melhoramento do viaduto.
Pois bem, os signatrios desta, se propem a dotar a cidade de um viaducto novo ou
rua area que abaixo ser descripto, sem nus nenhum para a Municipalidade, em
troca do direito de sua explorao.
O nosso projecto comporta a ereco de um verdadeiro monumento que alm de
aformosear de um modo esplndido o valle do Anhangabah, trar um sem nmero
de vantagens ao pblico.
Sob o regimen da velha ponte actual os transeuntes fazem um percurso de 200 e tantos
metros, inteiramente desabrigados das inclemncias do tempo. No vero, pelas horas
da soalheira, quem nesta cidade j no soffreu a tortura que caminhar esses 200 e
tantos metros, torrando-se sob a ardncia de um sol implacvel?
No inverno quando a temperatura cae aos limites mnimos, as brisas cortantes que
alli predominam constituem um novo suplcio. Em dias de ventania, as correntes de
ar canalisadas no valle, impetuosas, sem encontrar bices que lhes quebrem o curso
arrancam os chapus aos pobres pedestres, desarvoram guardas-chuvas e occasionam
mil outros accidentes desagradabilssimos. Se chove repentinamente ningum escapa
ao perigoso banho.
Tudo isso se obviar com a realizao do nosso projecto.
O transeunte ter, ao atravess-lo, comodidades nicas que nenhuma outra via pblica
de uma cidade offerece.
Abrigal-o-o dos ventos as construces laterais; do sol e das chuvas a coberta envi-
draada que resguardar os passeios em toda a sua extenso. Alm disso o pblico
no ser forado, como acontece hoje, a um percurso negativo de 200 e tantos metros,
como o o de uma ponte deserta e nua, mas tel-o- substitudo por um percurso
agradvel, em rua ampla, commoda, sede de um intenso movimento commercial. Ser
129 O VALE COMO LUGAR
o ponto predilecto de um commercio especial, como sapatarias, charutarias, livrarias,
bars, joalherias, casas de frutas, de loterias, e quinquilharias, etc., o qual, actualmente,
atravanca o tringulo, mal installado, pagando uma exhorbitncia por uma porta, um
corredor esconso, um desvo de escada, comprimindo-se, esmagando-se, na ncia do
bom ponto. municipalidade adviro vantagens no menores. S o no dispndio da
enorme somma necessria para a construco de um viaducto novo ou deslocao do
actual, redundaria numa economia talvez superior a mil contos de ris, o que por si s
fala bem alto. E a bella Paulica ter a primazia de possuir um monumento original,
nico no mundo inteiro.
O novo viaducto ser de super-estructura metallica, assente em pilares de alvenaria de
cimento. Construdo em arcos, dispostos em cinco ou mais vos, essa disposio ser
tal que no venha embaraar os planos da avenida e Parque Anhangabahu, dos quaes
car a cavalleiro. O comprimento car adstricto ao local indicado pela Cmara, que
tambm indicar os pontos de locao dos encontros, sempre de accordo com o plano
de melhoramentos estudado.
O nal da apresentao cou reservado para uma descrio mais tcnica e objetiva do
projeto, que no presente trabalho, sofre pela ausncia de peas grcas.
De largura ter 26 metros, distribudos da seguinte maneira: a parte constitutiva da
rua propriamente dita ser de 16 metros, 12 para a parte carrovel, comportando
uma dupla linha de bondes, com os trilhos interiores distanciados entre si de 4 me-
tros de eixo a eixo, espao mais que suciente para a passagem de veculos de grandes
dimenses; entre os trilhos exteriores e as guias dos passeios, haver ainda uma faixa
livre de 2m,40, destinada ao estacionamento de vehculos, em caso de necessidade; o
espao restante ser tomado pelos passeios lateraes, com 2 metros de largura, destina-
dos aos pedestres. Assim sendo, sobraro 10 metros, 5 de cada lado que cam reser-
vados construco dos compartimentos de 5 metros de fundo, por 3 a 6 de frente,
destinados ao commercio (...) dispondo cada uma do compartimento superior e do
130
poro localisado entre os dois taboleiros do viaducto. Sobre os pilares as construces
se avantajaro dando lugar a sobre-lojas de muito realce para o conjunto. As fachadas
anteriores e posteriores em estylo harmnico ao conjunto circumvizinho realal-o-o
inda mais.
(...)
Para no privar o pblico do panorama da cidade, a espaos uma soluo de continui-
dade nas construces abrir passagem a uma srie de belvederes elegantes e cmmo-
dos, com 3 metros ou mais de extenso, cobertos de vidro.
Nos extremos do viaducto sero construdas as entradas monumentaes, condizentes
com os magncos blocos vizinhos, theatro e futuras construces projectadas naquel-
le Valle.
(...)
A superestructura metallica se compor em primeiro lugar de quatro sries de vigas
mestras, tendo as mesas inferiores em arco elyptico e as superiores planas, sobre as
quaes se apoiaro as travessas que vo suportar o taboleiro de madeira do viaducto.
(...) Inferiormente ser estabelecido um taboleiro a 3m abaixo do taboleiro principal,
formando uma cmara privada, conforme se v no corte transversal do ante-projecto,
onde uma pequena linha de Decauville servir de transporte s mercadorias destina-
das aos armazns. Ah se locaro tambm as installaes sanitrias, encanamentos de
gua, apparelhos de ventilao, etc. Os passeios sero abrigados por uma coberta de
vidros opacos, detalhe de grande comodidade para o publico. No mais os desenhos
do ante-projecto do uma idia de como se alliaro de maneira completa e efcaz a
harmoniosa grandeza do conjunto, a apparncia e effectividade da fora e a belleza e
elegncia dos detalhes.

O que o grupo de Lobato estava propondo era um edifcio multifuncional areo, com
dois ou trs nveis utilizveis, articulado com diferentes trreos da cidade. Produtos e supri-
131 O VALE COMO LUGAR
mentos chegariam s lojas pelo Decauville no tabuleiro inferior, provavelmente alimentado
atravs de um elevador monta-cargas desde as ruas inferiores, Formosa e sua paralela; o
pblico chegaria usualmente pela cidade alta e teria uma srie de mirantes para usufruir a
vista do parque projetado.
O edifcio conteria lojas e cafs, criando espaos de estar ao longo do eixo de travessia.
Sob esse ponto de vista, o projeto subverte a obviedade funcional do objeto ao transformar
um instrumento de passagem, o viaduto, em um lugar de estar, de consumir, de trabalhar e
etc., o ruaduto.
Anos mais tarde, em meados da dcada de 1930, aps a frustrao da primeira tentativa,
Lobato viu uma nova chance de implantar sua proposta. Ao encontrar nos jornais a notcia
de que a prefeitura pretendia construir um novo viaduto em substituio ao antigo Ch,
contatou seu amigo Paulo Duarte, que era ento funcionrio municipal, para oferecer-lhe
a oportunidade do ruaduto. Segundo as memrias de Duarte, Lobato argumentava:
O viaduto atual representa 400 e tantos metros de frente inteiramente desaproveita-
dos. Se o substitussemos por uma rea sobre arcos, invadindo alguns metros de cada
lado o jardim do Anhangaba, teramos espao suciente para a construo de uma
innidade de casas para o comrcio mido, alugveis por um bom preo. (...) lanar
a idia, formar um grupo, fazer desenhar por um engenheiro de talento um anteproje-
to bastante sedutor e a coisa - ou o negcio - estar feito.
35
Segundo essas mesmas memrias, Lobato teria encomendado a Hiplito Pujol
36
um pro-
jeto lindo, que muito enfeitava a cidade, em trs corpos estruturais. No podemos armar se era
um ardil para convencer o amigo ou se Pujol realmente realizou tal projeto. O fato que,
em meados dos anos 30, o ruaduto como havia sido concebido, era um empreendimento
obsoleto. As questes envolvidas na reconstruo do viaduto eram muito mais complexas e
abrangentes do que em 1913, como atesta.por exemplo, a proposta apresentada no concurso
pelo arquiteto Rino Levi.
37
Uma obra como essa no poderia mais ser fruto de um empreendi-
mento privado com interesses to pequenos. Os tempos eram outros. O prprio Anhangaba,
como Lobato o compreendia, deixaria de existir em um curto espao de tempo.
35 CAMARGOS, Mrcia;
VILLELA, Hilda. O Ruaduto de
Monteiro Lobato: fragmento da
memria de So Paulo. In: Revista
D. O. Leitura, jul/ago 2004. p.37.
36 Hiplito Gustavo Pujol Jnior
(1880-1952) foi um importante
arquiteto em So Paulo durante as
primeiras dcadas do Sc. XX. Foi
professor da Escola Politcnica e
teve prolca atuao prossional
como arquiteto, sendo um dos
pioneiros na utilizao do concreto
armado no Brasil. Entre suas
principais realizaes se destacam
o Ed. Guinle, de 1913, torre de
sete andares que chamou muita
ateno quando inaugurada, a
sede para o Banco do Brasil (atual
Centro Cultural Banco do Brasil),
concluda em 1927 e o Ed. Rolim,
com 13 pavimentos, inaugurado
em 1928. Fonte: www.piratininga.
org
37 O projeto de Rino Levi
encontra-se comentado no captulo
3 desta dissertao.
132
133 O VALE COMO LUGAR
Victor Dubugras: Memria e Ch
Victor Dubugras (1868-1933) foi um arquiteto proeminente durante a passagem do Sc.
XIX para o XX, sendo considerado por muitos autores como um dos precursores da arquite-
tura moderna na Amrica Latina. Nascido em Sarthe, na Frana, e formado em arquitetura
na cidade de Buenos Aires em 1890, transferiu-se para So Paulo em 1891
38
, um ano an-
tes da inaugurao do Viaduto do Ch. Inicialmente, trabalhou sob a direo de Ramos de
Azevedo, por quem foi convidado a integrar o corpo docente da Escola Politcnica em 1894,
ano de sua fundao. Aps um breve perodo como membro do corpo tcnico da Diretoria
de Obras Pblicas do Estado de So Paulo, inicia, a partir de 1896, carreira prossional inde-
pendente. Sua obra de maior projeo provavelmente a Estao Ferroviria de Mayrink, de
1906. Transferiu-se em 1928 para o Rio de Janeiro, aonde viria a falecer cinco anos depois.
Durante seu perodo de atividade em So Paulo, elaborou dois projetos relevantes para
o recinto do Anhangaba: a remodelao do Largo da Memria, executada entre 1919 e
1922, e um projeto para um novo Viaduto do Ch, sem data denida.
O local conhecido como Paredo do Piques, apenas Piques ou Largo da Memria, um
antigo espao pblico da cidade que apresenta um interessante percurso de constituio.
Localizado no ponto de conuncia dos caminhos que ligavam a regio de Sorocaba ao
Porto de Santos, transformou-se ao longo do sculo XIX em um dos pontos mais movi-
mentados da cidade
39
. Um extenso muro de arrimo separava a Rua do Paredo, atual Xavier
de Toledo, da Subida do Piques, atual Rua Quirino de Andrade. Em seu ponto mais baixo,
localizava-se pelo menos desde 1808
40
, um chafariz que atendia s tropas de mulas que por
ali passavam. Em 1814, foi instalado no local um obelisco de granito, considerado o monu-
mento mais antigo da cidade. O signicado da implantao do monumento controverso,
mas teria sido em memria de algum fato poltico
41
. A partir desse momento o lugar pas-
saria a ser chamado tambm de Largo da Memria.
38 REIS FILHO, Nestor Goulart.
Racionalismo e proto-modernismo
na obra de Victor Dubugras. So
Paulo: Fundao Bienal de So
Paulo, 1997. p.21.
39 TOLEDO, 1989. p.30.
40 TOLEDO, 1989. p.31.
41 Para Toledo, o obelisco um
monumento feito em memria
de um triunvirato que governou
So Paulo por volta de 1914.
Outras verses caracterizam o
monumento como homenagem ao
Governador Bernardo Jose Maria
de Lorena ou como monumento
comemorativo da elevao do
Brasil a Reino Unido em 1915.
[TOLEDO, 1989.]
Fig.130
O Largo da Memria em fotograa
de Milito Augusto Azevedo, 1862.
[TOLEDO, 1989. p.112.]
Fig.131
O largo arborizado, mas cercado,
em fotograa de 1914.
[TOLEDO, 1989. p.112.]
Fig.132
O Largo da Memria logo aps a
reforma projetada por Dubugras.
[TOLEDO, 1989. p.117.]
Fig.133
Fotograa atual do local.
[foto do autor]
134
135 O VALE COMO LUGAR
Em 1919, o ento prefeito municipal Washington Lus Pereira de Souza
42
(1869-1957),
encomenda a Dubugras um projeto de remodelao do largo. A obra seria iniciada no nal
do mesmo ano e concluda em janeiro de 1921.
Como em outros projetos seus, Dubugras revela organicidade e senso da paisagem.
Manteve a pirmide em seu lugar e criou um chafariz frente ao paredo, fazendo fundo
pirmide. As principais rvores foram valorizadas. O Largo, um barranco resultante
da articulao de ruas e caminhos, mantm seu carter de conuncia. (...) Importa
atentar para a uncia das escadas e s alternativas que estas oferecem aos pedestres.
Todos ali encontram seu passo (...). Com essas obras, o Largo da Memria integrou-se
ao Parque Anhangaba. A Ladeira da Memria passou a ser rua exclusiva para pedes-
tres, uma das primeiras do gnero na Cidade. Seu sentido escultural, que valorizou
grandemente o Obelisco, sua hbil articulao com o espao urbano, numa regio
de topograa difcil, e a alta qualidade de sua execuo colocam o Largo da Memria
como a Praa mais bem projetada da Cidade.
43
Entre os documentos pertencentes ao acervo de Dubugras, encontra-se o projeto para
o Viaducto Presidente Washington, sem data denida, desenvolvido em colaborao
com o engenheiro Lino de S Pereira para a Companhia Mechnica e Importadora de So
Paulo. Pela sua localizao indicada em planta, o viaduto substituiria o do Ch de Jules
Martin. Embora no se possa denir com preciso a data de sua elaborao, provvel que
ele tenha sido desenvolvido nos primeiros anos da dcada de 1920, quando Washington
Lus assumiu a presidncia da provncia e quando Dubugras esteve envolvido em projetos
nessa rea da cidade
44
.
O projeto trazia muitas novidades em relao ao que j havia sido proposto anterior-
mente, como revela a leitura cuidadosa dos desenhos remanescentes. Segundo os cortes
transversais, o viaduto seria constitudo por uma grande estrutura de concreto armado, com
27 metros de largura, divididos em trs mdulos de nove metros, e tabuleiro duplo. No nvel
superior dos mdulos laterais, circulariam os automveis e bondes. Sob essas vias, no tabu-
42 Washington Lus foi prefeito at
agosto de 1919. Em 1920 tornou-
se presidente da Provncia de So
Paulo, concluindo seu mandato em
1924. Em 1926 foi eleito presidente
da Repblica, exercendo o mandato
at outubro de 1930, quando foi
deposto por uma junta militar que,
uma semana depois, entregaria
o cargo a Getlio Vargas. Fonte:
www.wikipedia.org (05/01/2007)
43 TOLEDO, 1989. p.114.
44 Poderia ter sido elaborado
tambm, entre 1926 e 1928,
quando Washington Lus era
Presidente da Repblica. No
entanto, durante esse perodo
Dubugras j estava articulando sua
transferncia para o Rio de Janeiro.
Fig.134
Elevao do projeto de reforma do
Largo da Memria de Victor Du-
bugras, 1919/1922.
[REIS FILHO, Nestor Goulart. Ra-
cionalismo e proto-modernismo na
obra de Victor Dubugras. So Paulo:
Fundao Bienal de So Paulo,
1997. p.112.]
Fig.135
Perspectiva do projeto.
[REIS FILHO, 1997. p.112.]
136
137 O VALE COMO LUGAR
leiro inferior, conguravam-se duas galerias contnuas com 9 metros de largura e p-direito
de 3,60 metros, cuja utilizao no indicada. O mdulo central abrigaria no tabuleiro infe-
rior a travessia de pedestres abrigada, com uma cobertura curva translcida localizada entre
as vias de veculos. No sentido longitudinal, uma estrutura em arco venceria o vo central
e repousaria sobre dois conjuntos de apoio, sobre os quais quatro torres monumentais se
elevariam marcando a paisagem. As plantas revelam que o trecho central do viaduto seria
em curva, fazendo a concordncia entre os eixos das ruas Direita e Baro de Itapetininga.
Embora no se encontre qualquer indicao no projeto, pode-se supor que as galerias
laterais abrigariam em seu interior instalaes comerciais e de servios distribudas ao longo
do eixo central de circulao de pedestres. Sob esse ponto de vista, o projeto lembra muito
o ruaduto de Monteiro Lobato. A diferena entre ambos reside fundamentalmente na es-
cala e na articulao dos nveis. Enquanto o de Lobato concentrava as funes principais no
nvel superior, destinando ao tabuleiro inferior apenas atividades de servio, o de Dubugras,
segregava pedestres e veculos, liberando reas muito maiores para ambos.
Ao resolver com propriedade uma estrutura multifuncional que associava sistema vi-
rio, transportes pblicos, circulao de pedestres e instalaes comerciais e de servios, ope-
rando numa escala compatvel com a cidade que estava se estruturando, Victor Dubugras
antecipou uma srie de questes que seriam incorporadas discusso dos projetos no vale
somente muitos anos mais tarde.
Fig.136
Elevao e planta do projeto de
Victor Dubugras para um novo
Viaduto do Ch.
[Biblioteca FAUUSP]
138
139 O VALE COMO LUGAR
Fig.137
Planta de localizao do projeto
de Victor Dubugras para um novo
Viaduto do Ch.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.138
Trecho do corte transversal pelo
meio do vo central do viaduto
mostrando as vias laterais para
veculos, no tabuleiro superior, e
as galerias comerciais e passagem
central de pedetres, no tabuleiro
inferior.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.139
Trecho do corte transversal passan-
do pelos castelos de apoio.
Nesse ponto o viaduto se trans-
forma em um verdadeiro edifcio,
com quatro pavimentos abrigando
diversos usos.
[Biblioteca FAUUSP]
Nas prximas pginas:
Figs.140 e 141
Pormenores da perspectiva do
projeto para o Viaduto do Ch, de
Victor Dubugras.
O desenho revela a riqueza de
relaes urbanas permitidas pelo
projeto e a utilizao da situao
topogrca do vale para esse m.
[REIS FILHO, Nestor Goulart. Vic-
tor Dubugras: Precursor da arqui-
tetura moderna na Amrica Latina.
So Paulo: EDUSP, 2005. p.42.]
140
141 O VALE COMO LUGAR
142
143 O VALE COMO PASSAGEM
captulo 03
o vale como passagem
144
145 O VALE COMO PASSAGEM
Mobilidade e cidade
Se o desenvolvimento inicial da arquitetura e do urbanismo modernos teve origem
na necessidade imperiosa que se apresentou para as sociedades capitalistas da segunda metade do
sculo XIX de organizar de forma adequada e eciente o espao urbano exigido pelo capitalismo in-
dustrial
1
, um dos focos dessa organizao foi a busca de um desenho, ou dos desenhos, para
a era das mquinas. Duas delas foram, de certa maneira, responsveis por engendrar, de
modo mais contundente, as principais questes para as cidades no sculo XX: o automvel
e o elevador. Estas duas mquinas revolucionaram o modo de conceber as cidades ao possi-
bilitar enormes deslocamentos, horizontais e verticais, a velocidades at ento inditas.
O automvel permitiu a expanso territorial horizontal e o desadensamento. O eleva-
dor, a multiplicao dos nveis da cidade e sua concentrao. Sob esse ponto de vista, uma
a anttese da outra. Os modelos de cidade sugeridos por cada uma dessas mquinas so
diametralmente opostos; como a Braslia de Lcio Costa e a de Rino Levi; como a cidade de
Los Angeles e a Ilha de Manhattan.
O potencial criativo oferecido para a cidade do futuro se confrontava com o potencial
destrutivo sobre a cidade do presente herdada do passado. Esse conito foi, e ainda , um
dos principais temas do urbanismo contemporneo.
Um testemunho do perodo inicial desse enfrentamento pode ser encontrado na Carta
de Atenas
2
, documento de 1933:
A rua nica, legada pelos sculos, recebia outrora pedestres e cavaleiros indistinta-
mente e s no nal do sculo XVIII o emprego generalizado de coches provocou a
criao das caladas. No sculo XX abateu-se, como um cataclismo, a massa de vecu-
los mecnicos - bicicletas, motocicletas, automveis, caminhes, bondes - com suas
velocidades inesperadas. (p.60)
1 MEYER, Regina Prosperi. A
construo da metrpole e a eroso
do seu Centro. Apud Revista Urbs n
14, Set-Out/1999. p.30.
2 LE CORBUSIER. Princpios de
urbanismo (La Carta de Atenas).
Buenos Aires: Planeta-Agostini,
1993.
146
Fig.142
Perspectiva do Plano para uma
cidade de 3 milhes de habitantes,
Le Corbusier,1922.
[BOESIGER, W. Le Corbusier 1910-
65. Zurich: Verlag, 1967. p.318.]
Fig.143
Vista area da Avenida Anhanga-
ba. Autor desconhecido, 1954.
[GERODETTI, 1999. p.85.]
147 O VALE COMO PASSAGEM
O problema criado pela impossibilidade de conciliar as velocidades naturais, do pe-
destre ou do cavalo, com as velocidades mecnicas dos automveis, bondes, caminhes
ou nibus. (p.53)
As novas velocidades mecnicas convulsionaram o meio urbano, instaurando o peri-
go permanente (...). Os veculos mecnicos deveriam ser agentes liberadores e, por sua
velocidade, trazer um ganho aprecivel de tempo. (p.80)
O pedestre deve poder seguir caminhos diferentes do automvel. Isso constituiria
uma reforma fundamental da circulao nas cidades. No haveria nada mais sensato
nem que abrisse uma era de urbanismo mais nova e mais frtil. (p.62)
Alm das profundas transformaes espaciais e territoriais vividas pelas cidades, houve
uma mudana estrutural nas relaes sociais experimentadas por seus habitantes. O modo
de vivenciar o espao urbano passou a ser outro colocando em cheque conceitos como a
prpria cidade, espao pblico e comunidade.
Outro trecho extrado da Carta de Atenas revela a preocupao que estas novidades
causavam:
Essas velocidades, doravante utilizveis, despertam a tentao de evaso cotidiana,
para longe, na natureza, difundem o gosto por uma mobilidade sem freio nem medi-
da e favorecem modos de vida que deslocando a famlia, perturbam profundamente
a estabilidade da sociedade. Elas condenam os homens a passar horas cansativas em
todo tipo de veculos e a perder, pouco a pouco, a prtica da mais saudvel e natural de
todas as funes: a caminhada. (80)
Sabe-se quais foram as respostas dadas pelo urbanismo moderno a estes problemas
durante as trs primeiras dcadas do sculo XX. Entre estas, as imagens oferecidas pelas
propostas de Le Corbusier, como a Cidade contempornea de trs milhes de habitantes
148
Fig.144
Avenida, arranha-cu e viaduto.
Desenho de Toms Santa Rosa
publicado em 1950.
[MEYER, Regina M. P. Metrpole e
Urbanismo: So Paulo anos 50. So
Paulo: FAUUSP, 1991. capa]
Fig.145
Noturna do Vale do Anhangaba.
Albuquerque, 1955.
[IMS, 2004. p.226.]
Fig.146
A avenida, o Viaduto E. Stevaux (ao
fundo), o novo Viaduto do Ch e a
passarela construda sob ele.
[SO PAULO (Cidade) Compa-
nhia do Metropolitano de So
Paulo. Leste-Oeste: em busca de
uma soluo integrada. So Paulo,
1979. p.90.]
149 O VALE COMO PASSAGEM
de 1922, o plano Voisin de Paris de 1925, os planos para as cidades sul-americanas de 1929
ou o projeto para a Ville Radieuse de 1930, embora desgastadas ou datadas para o olhar
contemporneo, no deixam de ser extremamente eloqentes e coerentes com um discurso
que procurava levar at as ltimas conseqncias as possibilidades dos novos recursos tc-
nicos disponveis.
Durante as trs primeiras dcadas do Sculo XX, o debate em torno da estruturao da
mobilidade em So Paulo foi marcado pelo choque de interesses econmicos envolvidos na
escolha dos modelos a adotar e por um agravante para o planejamento da cidade, que foi a
incrvel expanso populacional e territorial vivida durante todo esse perodo.
As escolhas que prevaleceram, foram fundamentalmente as que mais favoreciam os ne-
gcios imobilirios em torno da valorizao de terras, e baseavam-se na opo pelo auto-
mvel particular e pelo sistema de transporte pblico sobre pneus.
Situado no corao da cidade, em posio privilegiada e estratgica, o Vale do
Anhangaba no poderia deixar de repercutir o impacto dessas escolhas sobre o territrio
paulistano. Se no incio, a experincia daquele espao se dava pela travessia dos viadutos
e pela fruio dos jardins implantados em seu leito (a velocidades relativamente baixas),
pouco a pouco, a imagem do parque, concebida anteriormente, foi sendo apagada pelo au-
mento dos uxos motorizados, suas altas velocidades, e pela implantao da infra-estrutura
necessria para seu escoamento.
A representao de modernidade simbolizada pelo Anhangaba foi sendo atualizada
pelos novos ideais de progresso que se impuseram: o automvel, a avenida e o arranha-cu.
Seu vazio, anteriormente esttico, foi atropelado pelas novas dinmicas e velocidades da
metrpole em expanso.
Este processo anulou o lugar dando origem a uma nova congurao: a do vale como
passagem.
150
Fig.147
O vale em 1973.
[SO PAULO (Cidade) Departa-
mento de Planejamento dos Siste-
mas de Transporte. Vias Expressas.
So Paulo, 1973.]
151 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.148
Desembarque de passageiros de
nibus sob o Viaduto do Ch. Esse
uxo dava sentido Galeria Prestes
Maia.
Brill, anos 50.
[IMS, 2004. p.205.]
Fig.149
O vale expandiu-se para o norte
diluindo seus limites. As torres
dominam a paisagem.
Ribeiro, 1962.
[IMS, 2004. p.239.]
Fig.150
A avenida a partir do Ch, em
direo Praa da Bandeira.
Marcel Gautherot, anos 60.
[IMS, 2004. p.236.]
Fig.151
O novo Viaduto do Ch a partir do
Ed. Conde Prates. O uxo transver-
sal de pedestres e o longitudinal de
automveis, cruzando-se em nveis
diferentes.
Marcel Gautherot.
[IMS, 2004. p.232.]
152
Fig.152
Vista panormica do vale no incio
dos anos 50.
[BRUNO, Ernani Silva. Histria e
tradies da cidade de So Paulo. vol
I-III. Rio de Janeiro:Livraria Jos
Olmpio, , 1954. p.1381.]
153 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.153
A passagem apelidada de Buraco
do Adhemar, em fotograa dos
anos 70.
[SO PAULO (Cidade),1979.]
Fig.154
O vale sendo utilizado como es-
tacionamento e terminal de nibus.
Albuquerque, 1955.
[IMS, 2004. p.227.]
Fig.155
A avenida toma conta do vale.
[SO PAULO (Cidade),1979.]
Fig.156
Imagem da avenida no local onde
se localizava a Praa do Correio.
[SO PAULO (Cidade),1979.]
154
Fig.157
Suposio do traados dos tneis
sobre o levantamento SARA, 1930.
[Fonte da base: Bib. FAUUSP]
155 O VALE COMO PASSAGEM
Tneis sob a colina histrica [1914]
Em maio de 1914 a Cmara Municipal aprovou um projeto, apresentado por Domingos
Alves Rubio Meira e Theodulo Cardoso, de construo de um tnel, sob a colina histrica,
que ligaria as vrzeas do Anhangaba e do Tamanduate.
Art. 1 - Fica a Prefeitura autorizada a mandar proceder aos estudos denitivos para
a construo de um tnel, ligando em linha reta a Vrzea do Carmo ao largo do Pi-
ques, consoante o memorial e projeto j organizado pelo engenheiro Max Hehl, que a
este acompanham.
nico - O tnel projetado pelo seu eixo ter 840 metros de extenso e ser construdo
em cimento armado, revestido todo o bero com azulejos brancos; ter dois passeios
de 1,50m de cada lado, duas linhas de bondes e espao livre para veculos, oferecendo
toda a sua largura de 14 metros. No largo da S ter um pavilho com elevadores, as-
sim como toiletes e sala de espera para os bondes que trafegam por esse trecho.
3
O engenheiro citado Maximilian Emil Hehl, autor dos projetos para a Catedral da S,
Igreja Matriz da Consolao, Hospital Santa Catarina, Colgio Santo Agostinho e Igreja da
Ordem Terceira do Carmo
4
. Nascido em Kassel em 1861 e formado pela Escola Politcnica
de Hannover, mudou-se para So Paulo por volta de 1890, onde colaborou com o escritrio
de Ramos de Azevedo antes de estabelecer seu prprio estdio. Projetou sua casa na Avenida
Higienpolis, posteriormente demolida para a construo do Edifcio Prudncia, projeto de
Rino Levi. Morreu prematuramente de tuberculose, aos 55 anos, em 1916.
Documentos posteriores indicam a inteno de construir um segundo tnel entre a
Rua 25 de Maro, ngulo fronteiro ao Mercado Pblico (atual Praa Fernando Costa) e o
largo do mercadinho de So Joo (enfrente ao Ed. dos Correios) alm do primeiro co-
meando ao norte da ponte que liga ao aterrado do gasmetro com a ladeira do Carmo e
terminando no largo do Riachuelo.
5
3 Histria e Energia, 3: O metr da
Light. 1986. p. 32.
4 PONZIO, Ana Francisca. O
Arquiteto da S. Apud Revista Urbs
n 31, Jul-Ago/2003.
5 Histria e Energia, 1986. p. 32.
156
157 O VALE COMO PASSAGEM
Os tneis sero construdos de cimento armado, tendo o primeiro trezentos e se-
tenta e sete metros e o segundo quatrocentos e sessenta e trs metros. A galeria ter
linha dupla asfaltada e adaptvel ao trfego de qualquer veculo, alm de dois passeios
laterais para pedestres e uma galeria inferior ou subterrnea destinada captao de
guas pluviais; sero ambos revestidos de azulejos, o que lhes dar um belo aspecto, e
amplamente iluminados luz eltrica e ventilados.
6
As distncias mencionadas no texto acima no so compatveis com os dois tneis pro-
postos. A ligao entre o Mercado Pblico e o Mercadinho de So Joo poderia ter 377 me-
tros, mas a ligao entre a ladeira do Carmo e o largo do Riachuelo precisaria ter ao menos
800 metros.
A idia de um tnel sob a colina central no era nova e j havia sido apresentada e mais de
uma ocasio integrando propostas de ferrovias ou metrs. Na proposta de Meira e Cardoso,
dois aspectos so especialmente notveis: o primeiro o carter urbano da travessia, j que a
articulao das duas vrzeas abrangeria a circulao de bondes, automveis e pedestres, alm
de galerias de infra-estrutura; o segundo a existncia de uma conexo vertical, atravs de ele-
vadores, entre o tnel mais extenso e o largo da S. Esta proposta era revolucionria. A ligao
entre as cidades alta e baixa se daria em pleno corao do tringulo e no mais em suas bor-
das, costurando os dois nveis da cidade e diluindo seus limites historicamente estabelecidos.
Do ponto de vista virio, os tneis permitiriam cruzar a colina histrica de leste a
oeste sem passar por suas congestionadas ruas. As bocas dos tneis, no por acaso, coin-
cidiam com a chegada de importantes eixos virios: na face leste da colina, as ruas do
Gasmetro e Rangel Pestana; na face oeste as ruas de So Joo, Santo Amaro, Santo Antnio
e Consolao.
Em 1915, como complemento ao privilgio de construo dos tneis, seus empreende-
dores solicitaram a concesso da operao de carris urbanos em seu interior. Este trmite
despertou a imediata oposio da companhia Light, detentora do monoplio dos trans-
portes coletivos. A inuncia dessa empresa levaria ao arquivamento denitivo do projeto,
ocializado em setembro de 1916.
6 Histria e Energia, 1986. p. 33.
158
Fig.158
Traado do sistema proposto sobre
o levantamento SARA, 1930.
[Fonte da base: Bib. FAUUSP]
159 O VALE COMO PASSAGEM
Projeto Light [1927]
No ano de 1927 a The So Paulo Tramway, Light and Power Company Limited apresen-
tou prefeitura a verso nal de seu Plano Integrado de Transportes. Devido sua abran-
gncia, cou conhecido como o primeiro plano global para reformulao do sistema de
transporte coletivo em So Paulo, e algumas de suas propostas constituiriam importantes
transformaes no Vale do Anhangaba.
Criada a partir da aliana entre os empresrios Antonio Francisco Gualco e Antnio
Augusto de Souza, o Dr. F. S. Pearson, de Nova Iorque e o grupo canadense Mackenzie-
Mann, a The So Paulo Light and Power Company foi incorporada no Canad, com nan-
ciamento Ingls e com um pessoal tcnico principalmente estadunidense.
7
A Light, como cou conhecida, atuava nos setores de produo e fornecimento de ener-
gia eltrica, iluminao, telefonia, distribuio de gs e transportes coletivos. Em 06 de julho
de 1901 a companhia recebeu a concesso para a construo e operao de um sistema de
bondes eltricos em So Paulo e no dia 17 do mesmo ms o privilgio exclusivo, pelo prazo
de 40 anos, de explorao desse sistema para o transporte de cargas e passageiros nas ruas
da cidade e subrbios. A empresa tornou-se poderosa e seu setor mais lucrativo, durantes
seus primeiros anos, era o de operao do sistema de transportes.
Com o crescimento industrial e urbano da cidade, os servios relacionados ao setor de
energia passaram a ser potencialmente mais lucrativos. Em 1909, visando manter o mo-
noplio tambm nesse setor, a Light realiza uma negociao com a prefeitura aceitando a
unicao e xao das tarifas dos bondes, a emisso de passes escolares e a disponibilizao
de carros especiais para operrios, com tarifas mais baratas. Essas medidas sacricaram o
setor de transportes na medida em que a reduo de sua lucratividade levou diminuio
dos investimentos em expanso e melhorias do sistema e a uma drstica piora da qualidade
dos servios prestados.
Com o passar dos anos essa situao foi se agravando j que o aumento da demanda
levava superlotao dos carros disponveis e a crescente quantidade de automveis tornava
srio o problema do congestionamento do trfego na rea central. Em 1924, uma grande
7 Histria e Energia, 1986. p. 9.
160
Fig.159
Perspectiva do acesso ao tnel sob
a Ladeira do Carmo.
[Histria e Energia 3: O metr da
Light. 1986.]
Fig.160
Planta e sees do sistema propos-
to. O Anhangaba encontra-se no
canto direito do desenho.
[Histria e Energia 3, 1986.]
161 O VALE COMO PASSAGEM
seca levou ao racionamento de energia e diminuio do nmero e freqncia de bondes.
Isso abriu caminho para a entrada dos nibus movidos gasolina no cenrio dos transpor-
tes coletivos paulistano e ameaa do monoplio da Light.
Pressionada por sua diretoria, a Light comeou a desenvolver uma estratgia que lhe
permitisse o aumento de tarifas, alm de consolidar sua posio monopolista no setor
de transportes coletivos. Pretendia, atravs de um projeto integrado de transportes,
uma renovao global do contrato que possibilitasse a atrao de capitais externos
com a garantia de melhor remunerao.
8
Com esses objetivos estabelecidos, solicitou-se ao engenheiro de trafego e urbanista
Norman D. Wilson a elaborao do plano, desenvolvido entre 1925 e 1927. Em correspon-
dncia
9
entre o Sr. Wilson e a companhia, nota-se que o primeiro realizou uma leitura das
condies da cidade bastante cuidadosa e suas propostas estavam direcionadas no sentido
da criao de um sistema coordenado de transporte que abrangia a utilizao de nibus,
bondes e metr. Wilson propunha que a Light assumisse a operao do servio de transpor-
tes a preo de custo com o objetivo de permitir a prosperidade da cidade gerando maiores
lucros nos demais servios sob responsabilidade da empresa.
O plano apresentava entre suas principais propostas: a completa reformulao do sis-
tema de bondes, com aumento do nmero de carros em 50%, extenso de sua rede viria
e reorganizao dos itinerrios; aquisio de mais de 50 nibus para complementao e
alimentao do sistema de bondes; construo de um sistema de linhas tronco de alta ve-
locidade em vias segregadas e, em alguns trechos da rea central, subterrneas. Esta ltima
proposio teria um profundo impacto sobre o Vale do Anhangaba, motivo pelo qual fa-
remos dela, uma anlise pormenorizada.
O circuito subterrneo proposto tinha como principal objetivo eliminar o trfego de bon-
des que congestionava as estreitas ruas da regio central, principalmente aquelas contidas no
tringulo histrico. O traado apresentado congurava um circuito, entre a Ladeira do Carmo
e o Mercado Municipal, que cruzaria o Anhangaba duas vezes em elevado, a primeira sobre o
8 Histria e Energia, 1986. p. 51.
9 Histria e Energia, 1986. p. 70-73.
162
163 O VALE COMO PASSAGEM
tabuleiro inferior de um novo Viaduto do Ch, e a segunda sobre um viaduto exclusivo, muito
prximo ao Viaduto Sta. Ignia, entre o Largo Paissandu e o Largo So Bento.
Ao observarmos as perspectivas que ilustram essas duas travessias, importante notar
o carter que se confere ao vale em cada uma delas. Na primeira, junto ao novo Viaduto
do Ch, ilustrado como uma estrutura leve e vazada, com uma seqncia de arcos e vos
relativamente grandes, o vale representado como um grande espao aberto e ajardinado.
Na segunda, o vale sequer notado como espao, tamanha a quantidade de construes
nele instaladas. O viaduto sobre o qual correriam os bondes uma estrutura ordinria, com
suas laterais fechadas e uma nica abertura para a passagem da rua. Esta disparidade ilustra
bem o que se entendia naquele momento como recinto do vale, do qual o trecho prximo
ao Largo So Bento no fazia parte.
O momento de elaborao deste projeto coincide com o momento de gestao, no inte-
rior da Diretoria de Obras Pblicas, do Plano de Avenidas, por Ulha Cintra e Prestes Maia.
Os interesses associados a estes mostraram-se mais fortes e o plano da Light foi nalmente
abandonado.
Fig.161
Pormenor da planta geral desta-
cando o setor do Anhangaba.
[Histria e Energia 3, 1986.]
Fig.162
Perspectiva do Viaduto do Ch
proposto, que abrigaria a passagem
do sistema sobre trilhos no interior
de sua estrutura.
[Histria e Energia 3, 1986.]
Fig.163
Perspectiva do viaduto proposto
prximo ao Largo de So Bento.
Notar a quantidade de construes
representadas no fundo do vale.
[Histria e Energia 3, 1986.]
164
Fig.164
Croquis de Le Corbusier do seu
plano para So Paulo.
[BARDI, P. M. Lembrana de Le
Corbusier: Atenas, Itlia, Brasil. So
Paulo: Nobel, 1984. p.50.]
Fig.165
Esquema desenhado durante a
conferncia Arquitetura em tudo,
urbanismo em tudo, realizada no
Rio de Janeiro em outubro de 1929.
[LE CORBUSIER. Precises sobre
um estado presente da arquitetura e
do urbanismo. So Paulo: Cosac &
Naify, 2004. p.85.]
Fig.166
Desenho de Le Corbusier elabora-
do durante sua visita a So Paulo.
No fundo, ao centro, o Edifcio
Martinelli.
[SANTOS, Ceclia Rodrigues dos;
PEREIRA, Margareth Campos da
Silva; PEREIRA, Romo Veriano da
Silva; e SILVA, Vasco Caldeira da.
Le Corbusier e o Brasil. So Paulo:
Tessela / Projeto, 1987. p.48.]
165 O VALE COMO PASSAGEM
A imagem de Le Corbusier para So Paulo [1929]
Em outubro de 1929, Le Corbusier (1887-1965) foi a Buenos Aires, contratado para
realizar um conjunto de dez conferncias ao longo de 17 dias. Preocupado em divulgar ao
mximo suas idias e sabendo que o governo brasileiro tinha intenes de construir uma
nova capital, ativou seus contatos de modo a viabilizar sua vinda ao pas
10
. Atravs de arti-
culao de Paulo Prado, foi contratado pela Prefeitura Municipal de So Paulo, atravs do
Instituto de Engenharia, para conferir duas palestras. Em novembro, chegou cidade, de
onde partiu alguns dias depois com destino ao Rio de Janeiro.
Embora no lhe fosse solicitado, Corbusier tinha o hbito de rearmar seu discurso e
suas teorias atravs da elaborao de propostas concretas para os lugares por onde passa-
va. Fez isso em quatro cidades que visitou durante sua passagem pela Amrica do Sul, adi-
cionando-se Montevidu s trs j mencionadas. A experincia sul-americana de 1929 e o
conjunto de planos aqui elaborados, mais do que meras ilustraes de idias cristalizadas,
terminariam por congurar um novo caminho de investigao na carreira do arquiteto,
caminho que alcanaria seu estgio mais desenvolvido no plano para a cidade de Argel,
de 1930-34.
Durante o curto perodo em que permaneceu na cidade, o arquiteto teve acesso aos pro-
jetos em desenvolvimento pela prefeitura, realizou percursos de automvel e pde sobrevo-
ar a capital em um aeroplano. Embora o estudo que produziu, freqentemente chamado de
plano para So Paulo, se constitua apenas de um breve texto acompanhado dois ou trs
esboos, a preciso de sua leitura e a idia de cidade apresentada, so inquietantes e incitam
algumas consideraes que podem de algum modo contribuir para a presente pesquisa.
Durante a viagem de regresso, a bordo do navio Lutetia, Le Corbusier organizou as
anotaes que fez durante sua jornada dando origem ao texto que seria posteriormente
publicado sob o ttulo Prcisions sur um tat prsent de larchitecture et de lurbanisme. No
captulo denominado Corolrio brasileiro... que tambm uruguaio, comenta:
10 Em carta a Paulo Prado, de
16 de dezembro de 1927, Le
Corbusier no esconde seus
interesses: Eu falava sobre o
senhor com (...) Cendrars que
deve estar novamente no pas das
serpentes de doze metros. Eu tenho
a vaga impresso de que ele est
acabando de cercar o terreno de
Planaltina para poder organizar
uma sbia especulao quando
ns comearmos os trabalhos
da nova cidade. (...) Falando de
Urbanismo soube outro dia que
um dos meus colegas, conhecido
por suas pequenas concepes
pitorescas e romnticas, teria
obtido a encomenda dos projetos
de expanso do Rio de Janeiro. Se
isto for verdade, ei-lo j com um
p em Planaltina. E isto seria muito
triste. O colega mencionado era
Alfred Agache.
SANTOS, Ceclia Rodrigues dos;
PEREIRA, Margareth Campos da
Silva; PEREIRA, Romo Veriano da
Silva; e SILVA, Vasco Caldeira da.
Le Corbusier e o Brasil. So Paulo:
Tessela / Projeto, 1987. p.42.
166
167 O VALE COMO PASSAGEM
No gabinete do prefeito de So Paulo examino com curiosidade, no plano mural da
cidade, meandros signicativos. (...) As colinas sucedem-se umas s outras e entre elas
estendem-se baixadas e vales. (...) Ora, So Paulo, a perder de vista, soma suas colinas.
O funcionrio encarregado
11
, j que deve considerar as colinas, traa ruas curvas e
viadutos, uma rede que se contorce como lombrigas.
12
No trecho acima podemos perceber os elementos que nortearam sua aproximao ini-
cial em relao estruturao da cidade: topograa e circulao. A partir dessa abordagem,
a proposta se organiza do seguinte modo:
Faamos o seguinte: de colina a colina, de um pico a outro, vamos implantar uma via
horizontal de 45 quilmetros e em seguida uma segunda via, formando mais ou me-
nos um ngulo reto, para servir os demais pontos cardeais. Estas vias retas so auto-es-
tradas de grande penetrao na cidade e, na realidade, realizam uma grande travessia.
Os senhores no sobrevoaro a cidade com seus automveis, mas a sobre-correro.
Essas auto-estradas que proponho so viadutos imensos. No construam arcos onero-
sos para sustentar os viadutos, mas sustentem-nos por meio de estruturas de concreto
armado que constituiro escritrios no centro da cidade e moradias na periferia. A
rea desses escritrios e moradias ser imensa e a valorizao, magnca. Um projeto
preciso, um decreto. Operao j descrita.
13
Em apenas um pargrafo Corbusier descreve o partido proposto. Dois grandes viadutos
habitveis atravessariam o extenso permetro urbano cruzando-se na regio central da cida-
de. Os automveis se deslocariam atravs das vias expressas localizadas nas coberturas dos
edifcios e constituiriam a espinha dorsal do sistema virio. Dali, acessariam o sistema local
implantado sobre o solo da cidade. O espao criado entre a via horizontal e a topograa
ondulante abrigaria os demais programas necessrios, de infra-estruturas a habitaes.
11 Naquele momento encontrava-
se em elaborao, dentro da
prefeitura, o Plano de Avenidas de
Prestes Maia e Ulha Cintra.
12 LE CORBUSIER. Precises sobre
um estado presente da arquitetura e
do urbanismo. So Paulo: Cosac &
Naify, 2004. p.232.
13 LE CORBUSIER, 2004. p.233.
Fig.167
Croquis de Le Corbusier do seu
plano para So Paulo.
[BARDI, 1984. p.51.]
168
169 O VALE COMO PASSAGEM
Uma dcada depois, essas idias foram descritas do seguinte modo:
Traar auto estradas em diferentes nveis (...). Ir buscar no prprio stio o apoio para
essas curvas de nvel: de imediato elas se separam, se instalam nos ancos da mon-
tanha, exprimem o movimento da paisagem. Nos locais propcios, (...) abandonar o
apoio da terra, esticar uma corda diante de si, lanar a auto-estrada como um viadu-
to.
14
O gesto de apropriao executado pelo cruzamento dos viadutos e a simplicidade da
soluo, so exaltados pelo arquiteto em vrias passagens de Precises. Para ele, o desenho
dos dois traos criava o lugar de todas as medidas.
Tudo ali se encerra, a chave dos poemas da arquitetura. Comprimento, altura. E
suciente.
15
Esta operao concentra todos os elementos de estruturao e organizao da metrpo-
le nas duas estruturas propostas, transformando a natureza do prprio cho da cidade. Com
o problema da circulao resolvido, o solo paulistano passaria a exercer novas funes. O
Vale do Anhangaba citado por Corbusier como um exemplo a ser seguido.
Como se fossem dardos, os automveis atravessaro a aglomerao por demais exten-
sa. Do nvel superior das auto-estradas eles descero para a rua. Os fundos dos vales no
tero construes, mas estaro liberados para a prtica do esporte e para o estaciona-
mento dos automveis que circulam num permetro pequeno. (...) Os senhores, alis, j
criaram um incio de parque arborizado e para automveis no centro da cidade. (...)
Existe algo mais elegante do que a linha pura de um viaduto em um lugar movimen-
tado e algo mais variado do que suas fundaes que se enterram nos vales ao encontro
do solo?
16
14 LE CORBUSIER. Sur les quatre
routes. Lautomobile, lavion, le
batou, le chemin de fer. Paris:
Denoel/Gonthier, 1970 (1941).
P.44. Apud ZIEKLER, Volker.
Os Caminhos de Le Corbusier
do autdromo auto-estrada.
In: TSIOMIS, Yannis (ed). Le
Corbusier - Rio de Janeiro: 1929,
1936. Rio de Janeiro: Centro de
Arquitetura do Rio de Janeiro:
Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, 1998. p.111.
15 LE CORBUSIER, 2004. p.86.
16 LE CORBUSIER, 2004. p.235.
Fig.168
Croquis de Corbusier do plano
para o Rio de Janeiro.
[BOESIGER, 1967. p.325.]
Fig.169
Croquis de Corbusier do plano
para o Rio de Janeiro.
[TSIOMIS, Yannis. Le Corbusier
- Rio de Janeiro: 1929,1936. Paris:
Centro de Arquitetura e Urbanis-
mo do Rio de Janeiro: Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro, 1998.
p.73]
Fig.170
Simulao de um dos projetos de
Corbusier para o Rio de Janeiro
feita sobre foto de 1929.
[TSIOMIS, 1998. p.78]
170
Fig.171
Perspectiva geral do projeto para
Argel, 1930-34.
[BOESIGER, 1967. p.328.]
Fig.172
Roadtown, projeto de Edgar
Chambless, 1910.
[HALPRIN, Lawrence. Freeways.
New York: Reinhold, 1966.]
Fig.173
Via expressa elevada sobre a cober-
tura de um edifcio linear multi-
funcional em Tokio.
[HALPRIN, 1966.]
171 O VALE COMO PASSAGEM
ngelo Bucci faz uma relao muito potica ao associar a soluo proposta por
Le Corbusier aos elementos que constituam naquele momento a espacialidade do
Anhangaba:
(...) a rgua horizontal, de colina a colina, com automveis sobre-rodando e os edif-
cios se desenvolvendo para baixo. Ora o que isto seno o Viaduto do Ch? O Viaduto
do Ch era subjetivamente o projeto de uma cidade inteira - as duas rguas cruzadas, o
cardus e decumano, so essenciais ao projeto, mas uma decorrncia da idia inicial da
cidade-viaduto. Esses dois elementos j compunham a essncia da identidade de So
Paulo. Um a expresso da natureza; o outro, da construo. Juntos so o Anhanga-
ba. O Plano para So Paulo de Le Corbusier se serve fartamente desses dois elementos
e no seria necessrio mais nada. O olhar estrangeiro viu nitidamente a essncia da
cidade.
17
A idia do viaduto-habitvel era interessantssima e as relaes espaciais criadas por
esse modelo eram muito pertinentes ao contexto paulistano: a multiplicao dos trreos, a
diversidade vertical de acessos, o solo construdo e o solo natural.
Embora a possibilidade de execuo do projeto de Corbusier jamais tenha sido cogi-
tada pelo poder pblico paulistano, alguns dos conceitos ali colocados serviriam para legi-
timar outras propostas que estavam sendo elaboradas na poca e que foram determinantes
para a congurao da estrutura da cidade.
A soluo apresentada (...) escondia no seu gigantismo utpico princpios que pode-
riam orientar, efetivamente, a transformao da cidade, e que embasavam intenes
transformadoras em pauta naquele momento: a conciliao entre expansionismo e
centralizao. Os arranha-terras de Le Corbusier combinavam uma estruturao vi-
ria em grande escala do espao urbano, indenidamente amplivel, com a verticali-
zao intensiva dos eixos de expanso, e permitiriam ultrapassar os limites do centro
tradicional mantendo, ao mesmo tempo, um desenho centrpeto. Tal combinao era
17 BUCCI, 1998. p.34.
18 CAMPOS NETO, 1999. p.336.
172
Fig.174
Perspectiva geral do plano para o
Rio de Janeiro.
[BOESIGER, 1967. p.324.]
Fig.175
Perspectiva do projeto para Argel,
mas podeia ser para So Paulo ou
para o Rio de Janeiro.
[TSIOMIS, 1998. p.110]
173 O VALE COMO PASSAGEM
comparvel quela que seria empreendida no modelo radial-perimetral de Ulha Cin-
tra e Prestes Maia, com recursos, linguagem e escala completamente diversos.
18
Outra premissa adotada por Corbusier que seria determinante no futuro da cidade era
a escolha do automvel particular como principal organizador dos deslocamentos e da cir-
culao de pessoas na cidade. Num momento onde se discutia em So Paulo a pertinncia
de um sistema metropolitano de transportes pblicos, um Metr, a proposta de Corbusier
adicionava um voto a favor do automvel.
19
(...) o abandono das veleidades estticas e das escalas controladas da rea central, que
conformavam o modelo anterior defendido por Freire e Bouvard, abrindo o caminho
para as grandes infra-estruturas virias e expanso ilimitada sugeridas pelas propostas
de Ulha Cintra e Prestes Maia. (...) o imprio do automvel, da verticalizao e da
funcionalidade viria poderia se colocar como parmetro de modernidade, amparado
no paradigma corbusiano.
20
Por outro lado, a marca deixada no imaginrio paulistano, pela fora e pela poesia al-
canados nessa proposio de rara sntese e clareza, se faz sentir at os dias de hoje. De uma
maneira ou de outra, So Paulo no sairia indiferente passagem de Le Corbusier.
Corbusier baseia todas as suas dedues num plano intelectual: por causa da vida
ser assim que a cidade tem que ser assado, por causa do homem ser assim que a casa
dele tem que ser assado. Por isso quando partindo desses princpios lgicos de ordem
intelectual, ele tira as suas ilaes imaginativas, So paulo toda feita de viadutos habi-
tveis por debaixo (...), tudo isso nos comove vivicadoramente. (...) estamos entrados
diretamente no sonho, que pode ser um impossvel mas sonho sonhado, profun-
damente ativo, como esse em que a gente d pinotes na cama, bufa, chora, esmurra
espaos e acorda suado. (...) um impossvel, irrealizvel, ser tudo o que quiserem
mas dum lirismo profundamente real, profundamente a Terra e a vida.
21
19 Embora seja fcil imaginar um
sistema de transportes pblicos
contido no interior das estruturas
propostas, a nfase dada no
discurso valoriza primordialmente
a imagem do automvel.
20 CAMPOS NETO, 1999. p.338.
21 Trecho da crnica Cidades,
publicada por Mrio de Andrade
na edio do Dirio Nacional de
1 de maro de 1931.[ANDRADE,
Mrio de. Taxi e Crnicas no Dirio
Nacional. So Paulo: Duas Cidades:
Secretaria de Cultura, Cincia e
Tecnologia, 1976. p.345.]
174
Fig.176
Esquema terico de So Paulo
segundo Joo Florence de Ulha
Cintra.
[TOLEDO, 1996. p.122.]
Fig.177
Esquema do Permetro de Irradia-
o, radiais e circuito de avenidas e
parques. Francisco Prestes Maia e
Joo Florence de Ulha Cintra.
[TOLEDO, 1996. p.125.]
175 O VALE COMO PASSAGEM
Prestes Maia e o Anhangaba
Analisar as proposies de Francisco Prestes Maia (1896-1965), arquiteto e urbanista
formado pela Escola Politcnica em 1917, fundamental para se entender o modo como o
urbanismo em So Paulo passou a ser conduzido a partir da segunda metade da dcada de
1920. Funcionrio pblico, professor da Escola Politcnica e poltico, foi responsvel pela
elaborao de diversos planos para a cidade alm de ter assumido a prefeitura da cidade por
duas gestes.
Ao longo de sua trajetria, planejou e executou um conjunto de obras que redeniriam
a estruturao viria da cidade, bem como alguns modelos de sua ocupao. A inuncia
dessas aes se fez sentir tambm no Vale do Anhangaba, que teve seu carter completa-
mente transformado. Esse espao tinha especial importncia na concepo da rea central
defendida por Prestes Maia e foi objeto de uma srie de projetos especcos, que foram
ganhando novas verses com o passar dos anos.
Pretende-se discutir neste trabalho os projetos para o Anhangaba elaborados por
Prestes Maia em trs momentos destacados: no mbito do Plano de Avenidas (1930), du-
rante sua primeira gesto como prefeito (1938-45) e no Anteprojeto de um Sistema de
Transporte Rpido Metropolitano (1956).
O Anhangaba imaginado no Plano de Avenidas [1930]
Durante a breve passagem de Le Corbusier pela cidade, j se encontrava em nalizao
pela Secretaria de Viao e Obras Pblicas, um plano geral que seria o responsvel pela con-
gurao de So Paulo nas dcadas seguintes. Este plano, elaborado por Francisco Prestes
Maia com a colaborao de Joo Florence de Ulha Cintra (1887-1944), foi apresentado em
1930 sob o ttulo Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de So Paulo e caria
conhecido como Plano de Avenidas.
Por sua importncia para a congurao do desenvolvimento cidade, este plano foi e
tem sido objeto de grande nmero de estudos e pesquisas e no se pretende aqui abordar
176
Fig.178
Primeira verso do Permetro de
Irradiao de Joo Florence de
Ulha Cintra.
[TOLEDO, 1996. p.124.]
177 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.179
Perspectiva do acesso ao tnel
sob a colina central, entre as ruas
Anhangaba e 25 de Maro (pro-
vavelmente sob o Largo de So
Bento).
[TOLEDO, 1996. p.126.]
Fig.180
Trecho da planta do projeto da
Avenida Nove de Julho mostrando
o Parque Anhangaba.
[TOLEDO, 1996. p.190.]
178
179 O VALE COMO PASSAGEM
toda sua abrangncia. A anlise que se pretende fazer limita-se aos aspectos do projeto que
tiveram rebatimentos mais diretos sobre a espacialidade do Vale do Anhangaba e que fo-
ram responsveis pela redenio de seu carter.
Ulha Cintra ingressou na Diretoria de Obras logo aps sua graduao pela Escola
Politcnica em 1911. Durante os anos 20 foi o principal responsvel pelas iniciativas urba-
nsticas municipais atravs da elaborao de diversos planos. Baseado na metodologia do
urbanista francs Eugne Hnard, formulou um esquema terico ideal da estrutura viria
de So Paulo identicando em sua congurao um sistema rdio-concntrico. Esse esque-
ma serviu de base para a proposio de novos eixos que complementariam a malha dentro
da lgica identicada. Sobre essas premissas desenvolveu em 1922 a proposta de um per-
metro de irradiao paulistano, avenida que contornaria a colina histrica ampliando os
limites do centro e descongestionando suas vias.
O projeto da nova avenida foi aprovado pela Cmara, porm sua implantao inicial
restringiu-se ao trecho prximo Praa da S e Ladeira do Carmo. Vendo a realizao
plena de seu projeto em risco, Cintra passou a divulg-lo publicamente atravs de apresen-
taes e publicaes em jornais e revistas. Em 1924, a prefeitura montou uma comisso para
avaliar o conjunto de propostas que estavam em discusso naquele momento. Ali, Cintra
encontraria um importante aliado.
Graduado pela Escola Politcnica em 1917, Francisco Prestes Maia fazia parte do qua-
dro da Secretaria Estadual de Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas desde 1918. Sua ma-
neira de pensar a cidade coincidia com a de Ulha Cintra e imediatamente iniciariam uma
profcua colaborao. Entre o nal de 1924 e meados de 1926, publicaram no Boletim do
Instituto de Engenharia, uma srie de artigos que, como um todo, conguravam um plano
abrangente de intervenes; um esboo do plano que apresentariam poucos anos depois.
A dupla de engenheiros paulistanos traava, naquele momento, o diagrama lgico
que se armaria em So Paulo. Sua construo terica radial-perimetral - identi-
cando, selecionando e exacerbando as caractersticas estruturais presentes no quadro
Fig.181
Desenho esquemtico do Plano
de Avenidas indicando as ligaes,
existentes e propostas, entre o
Centro Velho e sua zona principal
de expanso.
[CAMPOS NETO, 1999. p.382.]
Fig.182
Esquema do sistema proposto
no Plano de Avenidas para a cir-
culao na rea central, com o
Permetro de Irradiao, em preto,
superposto ao Sistema Y. O vale
do Anhangaba ocupa o centro do
quadrado.
[CAMPOS NETO, 1999. p.388.]
Fig.183
Esquema terico de So Paulo
elaborado por Prestes Maia. Foi
destacado em preto o Sistema Y.
[TOLEDO, 1996. p.160.]
180
181 O VALE COMO PASSAGEM
urbano; amarrando-as num esquema coerente e integrado; reconhecendo e investindo
no potencial indutivo que tal amarrao lgica poderia ter para o processo de transfor-
mao e expanso da cidade; xando, em suma, com tinta indelvel, as linhas mestras
que orientariam o crescimento urbano - estava fadada a assumir papel crucial no fu-
turo desenvolvimento de So Paulo.
22
Durante a gesto de Pires do Rio na prefeitura, de 1926 a 1930, essas idias foram for-
malmente sintetizadas. Prestes Maia foi ento o responsvel pelo desenvolvimento do pla-
no geral da cidade.
Esse momento particularmente importante para a histria do urbanismo em So
Paulo. nesse perodo que se d uma inverso do discurso adotado pelas instncias p-
blicas de planejamento. Com a aposentadoria, em 1926, de Victor da Silva Freire (depois
de permanecer por quase 27 anos no cargo municipal de Diretor de Obras), encerrava-se
simbolicamente o ciclo de congurao da capital do caf, dando lugar a um novo grupo
que teria como misso a estruturao da metrpole da era industrial.
23
O Plano de Avenidas foi ocialmente apresentado em maio de 1930 e poucos meses
depois receberia o prmio mximo no IV Congresso Panamericano de Arquitetura, rea-
lizado no Rio de Janeiro. O estudo continha um conjunto de propostas abrangente que
abarcava diversos aspectos de estruturao da cidade, mas seu ttulo evidencia o carter
predominante do projeto. Com a revoluo de outubro de 1930, Pires do Rio foi deposto e a
Cmara dissolvida. Alguns anos se passariam antes que essas idias fossem retomadas.
O Vale do Anhangaba era um dos pontos chave do Plano de Avenidas. O modo como
ele foi concebido em relao ao conjunto de propostas o que se pretende discutir.
A importncia do vale dentro do plano se manifesta em duas escalas distintas. A primei-
ra, mais abrangente, se d no mbito da estruturao viria norte-sul da cidade, atravs do
Sistema Y. A segunda, mais pontual, se revela na congurao de um recinto monumental
que criaria a nova sala de visitas da cidade.
22 CAMPOS NETO, 1999. p.256.
23 CAMPOS NETO, 1999. p.304.
Fig.184
Pormenor do Plano Geral dos
Melhoramentos Centrais.
[TOLEDO, 1996. p.147.]
182
183 O VALE COMO PASSAGEM
O Sistema Y, como cou conhecido, o conjunto de trs avenidas que realiza a ligao
viria norte-sul da cidade. Em planta, seu desenho forma a gura de um Y invertido e seu
ponto de conuncia justamente o Vale do Anhangaba. No primeiro esquema terico ela-
borado por Ulha Cintra, esse elemento j aparece delineado, embora as vias que o compe
no sejam as mesmas adotadas posteriormente. No esquema terico de Prestes Maia, inclu-
do no Plano de Avenidas, curiosamente ele no se destaca das demais vias que compe a
trama proposta. Provavelmente Prestes Maia quis preservar a integridade grca do diagra-
ma, omitindo a hierarquia de certos eixos e idealizando um sistema de planta circular.
Nesse esquema o centro histrico da cidade representado como um quadrado em bran-
co, preservado do uxo de veculos e acessvel de todas as direes. Nos desenhos mais deta-
lhados que complementam o plano, aparece uma contradio conceitual que seria a respon-
svel pela gradual destruio da imagem monumental que ele prprio havia concebido para o
vale. ngelo Bucci
24
identica essa contradio em trs instncias, congurando trs parado-
xos: de funo (desmantelamento do Sistema Y), de denominao (parque x avenida) e de
espao (recinto x metrpole). Esses paradoxos derivam de uma contradio estrutural que a
criao do Sistema Y e sua negao justamente em seu ponto nodal que o vale.
O funcionamento do sistema de deslocamentos na concepo de Prestes Maia assumia
como premissa que o destino da grande maioria das viagens conduzidas pelas radiais era o
centro, e que o uxo de travessia ou de passagem seria secundrio. Essa suposio era incor-
reta j naquele momento e com a expanso da cidade, o uxo de passagem s fez aumentar,
transformando o Y em um sistema diametral e no radial. Se o objetivo era transpor o
centro, era muito mais conveniente seguir pelas avenidas do Y, na cota baixa da cidade
atravs de fundos de vales, do que ingressar no permetro de irradiao, na cota alta da
cidade, contornar uma parte do centro para logo depois retornar ao sistema.
Esta contradio eliminou a possibilidade de construir no vale o recinto monumental
pretendido por Prestes Maia. Belas perspectivas aquareladas ilustram as espacialidade e o
carter dos edifcios que deveriam se implantar na nova sala de visitas da cidade. Trs no-
vos viadutos seriam construdos, dois arrematando as extremidades norte e sul do recinto e
um substituindo o antigo Ch, congurando um composio simtrica. O pao municipal
24 BUCCI, 1998.
Fig.185
Pormenor do Plano Geral dos
Melhoramentos Centrais com o
Sistema Y assinalado.
[TOLEDO, 1996. p.147.]
Fig.186
O Parque Anhangaba segundo
Prestes Maia. O recinto fechado
em seus extremos norte e sul por
edifcios associados a novos via-
dutos.
[TOLEDO, 1996. p.147.]
184
185 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.187
Perspectiva da proposta para o vale
onde se destacam um novo Viadu-
to do Ch, o conjunto de edifcios
que baliza o recinto lateralmente e
a torre do Pao Municipal ao fundo
[TOLEDO, 1996. p.180.]
Fig.188
Corte longitudinal do Viaduto So
Francisco associado torre do Pao
Municipal.
[TOLEDO, 1996. p.147.]
Fig.189
Elevao do Pao Municipal e
do Viaduto So Francisco, com
a chegada das duas avenidas que
compem o Y.
[TOLEDO, 1996. p.147.]
Fig.190
Perspectiva de uma galeria de
pedestres no interior de um dos
viadutos propostos. Embora a pre-
sena do Teatro Municipal sugira a
localizao do Viaduto do Ch, esta
soluo era proposta para o Viadu-
to So Francisco.
[CAMPOS NETO, 1999. p.394.]
186
Fig.191
Planta geral dos melhoramentos
centrais, de 1945. O Sistema Y
j est claramente congurado e
o Permetro de Irradiao ganhou
nova soluo.
[TOLEDO, 1996. p.151.]
187 O VALE COMO PASSAGEM
seria instalado no interior de uma torre junto ao Viaduto So Francisco. Rotatrias e jardins
diluiriam a avenida no fundo do vale. Os novos edifcios seriam similares aos palcios cons-
trudos por Samuel das Neves para o Conde Prates.
Embora ilusria, a imagem criada por Prestes Maia apresentava uma interessante ex-
perimentao com os nveis de cidade que circundam o Anhangaba. Os viadutos possu-
am tabuleiros duplos com sistemas de transporte no interior de suas estruturas; um t-
nel, extenso do novo Viaduto Sta. Egnia, perfuraria a base da colina at sair no Vale do
Tamanduate, na estrela viria proposta prxima Rua 25 de Maro; os edifcios teriam
sempre mais de um nvel trreo.
Alguns anos depois, no papel de prefeito da cidade, Maia teve a oportunidade de exe-
cutar algumas de suas propostas. Novos projetos foram feitos e novas imagens tomariam
conta do Anhangaba.
O Anhangaba construdo: Prestes Maia prefeito [1938-1945]
Oito anos aps a publicao do Plano de Avenidas, Prestes Maia foi nomeado prefeito da
cidade, exercendo o cargo de maio de 1938 a novembro de 1945. Durante os sete anos e meio
frente do municpio, executou um conjunto de obras dentro do esprito do plano. O mode-
lo se imps e ditou a orientao das obras realizadas por boa parte das gestes posteriores.
Nesse momento a contradio presente no plano original, em relao ao Anhangaba,
superada atravs do abandono da idia de parque ou de recinto fechado que havia se pensado
para o local. O Anhangaba agora se assumia como corao do Y e seu carter de passagem
se expressava claramente atravs da implantao de uma grande avenida no fundo do vale.
No h mais jardins nem rotatrias. H apenas canteiros e ilhas de separao do trfego.
O prprio permetro do recinto totalmente reformulado nesse momento. Se no
Plano de Avenidas ele era delimitado pelos viadutos So Francisco e Novo Sta. Egnia,
agora seu extremo sul era o permetro de irradiao, com a criao da Praa da Bandeira e a
construo do Viaduto Jacare, e o seu extremo norte se dilua com a anexao da praa dos
Correios e o seu prolongamento sob o Viaduto Sta Egnia.
188
189 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.192
Foto area do centro da cidade.
Com a construo do Permetro de
Irradiao junto Praa da Bandei-
ra, esta tornou-se um grande vazio
que se incorporou ao recinto do
Anhangaba.
[TOLEDO, 1996. p.129.]
Fig.193
Fotograa que integrava a publi-
cao Os melhoramentos de So
Paulo, que divulgava as realizaes
do prefeito Prestes Maia. O Viaduto
Jacare criou um novo nvel para
a cidade, que s seria plenamente
incorporado anos depois pelos
novos edifcios.
[MAIA, 1945. g.180.]
Fig.194
Vista do Viaduto Jacare para o
Anhangaba.
[TOLEDO, 1996. p.131.]
190
191 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.195
Setor norte do Parque Anhangaba
limitado pelos fundos do edifcio
da Delegacia Fiscal.
[MAIA, 1945.]
Fig.196
Praa do Correio com a Delegacia
Fiscal ao fundo.
[MAIA, 1945. g.40.]
Fig.197
Trfego de veculos contornando a
Delegacia Fiscal.
[MAIA, 1945. g.51.]
Fig.198
Aps a demolio da Delegacia
Fiscal, a avenida prolongou-se para
norte estabelecendo a travessia
norte-sul pelo centro atravs de
uma avenida de alta capacidade.
[TOLEDO, 1996. p.163.]
Fig.199
Viaduto do Ch e o vazio criado
na regio do Piques (Praa da
Bandeira)
[TOLEDO, 1996. p.207.]
Fig.200
Os edifcios e a avenida expressam
o novo carter do Anhangaba.
[MAIA, 1945. g.50.]
Fig.201
Modelo tridimensional do Vale do
Anhangaba com a proposta, mais
uma vez, de construo do Pao
Municipal na Praa da Bandeira.
Sua torre arrematava o eixo visual
do vale no seu setor sul.
[MAIA, 1945.]
192
193 O VALE COMO PASSAGEM
A monumentalidade e a imponncia da imagem anteriormente proposta no seria to-
talmente abandonada. O Pao Municipal deveria ser implantado junto praa da Bandeira
e seria o arremate sul desse grande vazio. Um concurso de projetos foi realizado em 1940
e vencido pelo escritrio de Ramos de Azevedo. A proposta vencedora previa a construo
de uma altssima torre. Maquetes feitas pelo prprio Prestes Maia incorporavam a idia da
torre, acrescentando a sugesto de outros edifcios importantes junto s encostas do vale.
Alguns deles seriam construdos.
O Anhangaba no Anteprojeto [1956]
Com a imposio do modelo rodoviarista de estruturao da cidade e a falta de inves-
timentos em sistemas de transportes pblicos de alta capacidade, a questo da mobilida-
de foi se tornando um problema cada vez mais grave. Em 1955, o ento prefeito Juvenal
Lino de Mattos decidiu criar uma comisso multidisciplinar para tratar do tema. Presidida
por Prestes Maia, a Comisso do Metropolitano contava ainda com os engenheiros
Lauro de barros Siciliano, Luiz Berrini Jr., Antonio de Voci, Renato do Rego Barros e Jos
Vicente Vicari. Seu relatrio nal, o Anteprojeto de um Sistema de Transporte Rpido
Metropolitano foi entregue em julho de 1956.
25
Embora o objetivo principal fosse estruturar uma proposta para um sistema de metr
e seus desdobramentos, o trabalho da comisso manteve um enfoque marcante sobre a
complementao do sistema de avenidas e vias expressas da cidade. Na verdade, poderamos
dizer que este o assunto mais desenvolvido do trabalho.
(...) o Ante-Projeto envolve trs etapas - melhoramento e racionalizao dos trans-
portes; obras de urbanismo, especialmente obras virias e por m o metropolitano
propriamente dito.
Dado o perl da Comisso do Metropolitano e do prprio Prestes Maia, o segundo
item imediatamente detalhado.
26
25 MEYER, 1991. p.112.
26 MEYER, 1991. p.114.
Figs.202 e 203
Planta da rea central e perspectiva
que ilustrava a capa do Ante-Pro-
jeto.
[SO PAULO (Cidade) Prefeitura.
Ante-Projeto de um Sistema de
Transporte Rpido Metropolitano.
So Paulo, 1956.]
194
195 O VALE COMO PASSAGEM
No universo do Anteprojeto, o Anhangaba preserva seu carter de grande artria
viria, com o fundo de seu vale ocupado integralmente pela avenida. As mudanas que apa-
recem sugeridas nesse estudo ocorrem em dois aspectos: um visvel; o outro no.
Do ponto de vista da funcionalidade, a mudana proposta para o vale se daria em seu
subsolo, com a passagem de uma linha de metr e a implantao de uma estao junto ao
Largo de So Bento, sob o Viaduto Sta. Egnia. O grande uxo de pedestres seria mediado
por novos edifcios atravs dos quais se realizaria a articulao entre os nveis da cidade. A
espacialidade do vale no sofreria, por este motivo, qualquer alterao.
A outra mudana observada neste trabalho se revela na linguagem escolhida para repre-
sentao das novas arquiteturas articuladas aos sistemas de locomoo.
A arquitetura da cidade que Maia prope nesse volume apresenta um novo modelo
urbano em relao ao do Plano de Avenidas, 26 anos mais novo. Isto aparece no s no
padro de desenho escolhido para as ruas e viadutos, passeios e parques, como tam-
bm na arquitetura das edicaes que integram o conjunto.
No Plano de Avenidas os edifcios projetados compunham um cenrio homogneo de
monumentalidade acentuada, ligado a exemplos eclticos de arquitetura em So Pau-
lo.
No Anteprojeto, os edifcios e as obras de infra-estrutura compem um cenrio moder-
no para a cidade, como uma roupa nova, sem mudar em essncia seus compromissos
anteriores.
27
Aps abrir mo de seu parque, de sua sala de visitas, Prestes Maia se rendia, no
Anteprojeto, linguagem moderna, ou ao menos sua aparncia, da arquitetura da cidade.
De suas intenes iniciais, nenhuma vingou. Ao optar pelo modelo de cidade do auto-
mvel, Prestes Maia abria mo, sem imagin-lo, de todas as demais virtudes que defendia
para So Paulo. O Anhangaba por ele imaginado morreu aos poucos, atropelado dia e
noite pelos carros em alta velocidade.
27 MUNIZ, Cristiane. A Cidade
e os Trilhos: o Metr de So Paulo
como desenho urbano. So Paulo:
FAUUSP, 2005 (dissertao de
mestrado). p.121.
Fig.204
Perspectiva do Vale do Anhangaba
nas proximidades do Viaduto Santa
Egnia e Largo de So Bento,
onde se localizaria uma estao do
sistema proposto.
[SO PAULO (Cidade) Prefeitura.
Ante-Projeto de um Sistema de
Transporte Rpido Metropolitano.
So Paulo, 1956.]
196
197 O VALE COMO PASSAGEM
Rino Levi e o centro
O arquiteto Rino Levi (1901-1965) foi um dos grandes protagonistas da arquitetura
em So Paulo entre as dcadas de 1930 e 1950. Sua contribuio para o desenvolvimento da
arquitetura moderna na cidade foi imensa, tanto atravs de suas obras como de sua atuao
poltica na organizao e fundao do instituto de arquitetos.
Ao longo de sua carreira, pde desenvolver alguns projetos para a rea central da cidade,
atravs dos quais deixou importante contribuio para a cultura arquitetnica referente a
esse stio.
Em meados da dcada de 40, o centro de So Paulo, concludas as avenidas do per-
metro de irradiao de Prestes Maia, exalava um ar de cidade grande - europia para
uns, norte-americana para outros - , que afastava o passado provinciano e colonial. A
intensa verticalizao era direcionada construo da cidade moderna difundida pelo
cinema com as imagens de Nova Iorque e outros grandes centros urbanos. Rino Levi,
importante agente desse processo, busca, com seus projetos inseridos na regio central
da cidade, a instaurao de uma urbanidade cosmopolita. Os projetos dialogavam com
o traado existente e com o gabarito legal, contribuindo para construo de um espao
pblico cuidadosamente oferecido escala do pedestre, animado por marquises ilu-
minadas e outras gentilezas urbanas, que facilitavam encontros entre uma sesso de
cinema e a ida a um restaurante.
28
Concurso para o novo Viaduto do Ch [1934/35]
Em 1934, as limitaes impostas ao trfego pelas reduzidas dimenses do viaduto origi-
nal, levaram a prefeitura a anunciar o edital de um concurso de sugestes visando xar as
diretrizes para um projeto denitivo.
29
No ano seguinte foi realizado um segundo concurso
para a escolha de um projeto denitivo. Levi foi autor do projeto classicado em 2 lugar
30

neste concurso, vencido pelo arquiteto Elisrio Bahiana
31
. Sua proposta, sob o pseudnimo
Onix, apresentava uma reexo abrangente que extrapolava muito os objetivos especcos
28 ANELLI, Renato. A cidade
Moderna. Apud Rino Levi:
arquitetura e cidade. So Paulo:
Romano Guerra, 2001. p.221.
29 SEGAWA, Hugo. Rino Levi e a
arquitetura moderna: a proposta
para o viaduto do Ch. Revista
Projeto n. 111, jun. 1988. p.121.
30 A equipe era composta pelo
arquiteto Rino Levi e pelos
engenheiros Humberto Nobre
Mendes e Joseph Grabenweger.
31 Ver o projeto neste mesmo
captulo.
Fig.205
Perspectiva do Vale do Anhanga-
ba apresentada ao concurso.
[ANELLI, Renato; GUERRA, Abi-
lio; KON, Nelson. Rino Levi: arqui-
tetura e cidade. So Paulo: Romano
Guerra, 2001. p.68.]
Fig.206
Esquema virio com a sugesto de
um circuito composto de avenidas
e tneis sob a colina histrica. Um
dos tneis teria uma sada junto ao
novo viaduto.
[ANELLI, 2001. p.70.]
Fig.207
Elevao do viaduto proposto.
[ANELLI, 2001. p.71.]
198
199 O VALE COMO PASSAGEM
de construo do viaduto. A proposta considerava a articulao dessa obra a novos circuitos
virios propostos, coerentes com a lgica do Plano de Avenidas. Realiza esquemas tericos
de circulao comparando o systema actual com um systema racional de viao, no qual
incorpora o Permetro de Irradiao e sua proposta de um anel contornando a parte mais
central da cidade, parte na superfcie e parte subterrneo. Alm do anteriormente proposto
tnel sob o Largo So Bento, Levi propunha outro tnel ligando a vrzea do Tamanduate e
Vale do Anhangaba, passando sob a Praa da S, Largo So Francisco e Praa do Patriarca
(onde se conectaria com o novo viaduto). Conexes verticais fariam a ligao para pedestres
entre os sistemas de transporte pblico no nvel do tnel os principais ncleos de irradia-
o no nvel da cidade alta. O princpio desta proposta o mesmo utilizado na proposta de
tneis sob a colina histrica elaborado em 1914.
32
Em seu projeto, o recinto do Anhangaba ainda aquele proposto por Bouvard, como
revela a perspectiva vista de pssaro apresentada no concurso. Levi ainda no havia perce-
bido o impacto que o Plano de Avenidas teria sobre aquele lugar.
No local em que dever ser erigido o novo viaduto do Ch apresenta-se o vale do
Anhangaba como um dos pontos mais cenogrcos da cidade. Nitidamente indivi-
dualizado por agrestes desnveis, exuberante vegetao moldada em modernos ajardi-
namentos, possuindo, localizados nas elevaes, edifcios signicativos pelo seu destino
e arquitetura, apresenta principalmente duas caractersticas ambientais: a harmnica
grandiosidade da obra humana e da natureza, e a graciosa e colorida vivacidade do con-
junto.
33
O arremate do viaduto junto Praa do Patriarca era feito por uma Estao dupla, na
superfcie e subterrnea, de auto-omnibus e bondes, com abrigos. Essa estao constitua
uma grande conexo pblica de pedestres entre os dois nveis da cidade e poderia ser consi-
derada precursora da Galeria Prestes Maia, implantada anos depois naquele mesmo local.
O viaduto propriamente dito caracterizava-se pela horizontalidade de sua elegante e es-
belta estrutura de concreto armado, dividida em trs vos com vigas levemente arqueadas. A
32 Ver o projeto no incio deste
captulo.
33 LEVI, Rino. Justicao
arquitetnica. (agosto de 1935).
Revista Projeto n. 111, jun. 1988.
p.122.
Fig.208
Perspectiva do encontro do viaduto
com a encosta do vale junto Praa
do Patriarca.
[ANELLI, 2001. p.71.]
Fig.209
Perspectiva de um trecho do
mdulo central da estrutura do
viaduto.
[ANELLI, 2001. p.71.]
Fig.210
Perspectiva do vale com o viaduto
proposto.
[ANELLI, 2001. p.69.]
200
201 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.211
Prancha com os desenhos da es-
tao proposta em uma das extre-
midades do viaduto. Os bondes
acessavam o nvel do vale atravs
da avenida e do tnel sugerido. Um
conjunto de escadas estabelecia a
comunicao deste nvel com o da
Praa do Patriarca.
[ANELLI, 2001. p.70.]
Fig.212 e 213
Plantas do viaduto.
[SEGAWA, Hugo. Rino Levi e a ar-
quitetura moderna: a proposta para
o viaduto do Ch. Revista Projeto n.
111, jun. 1988. p.123.]
Fig.214
Prancha com desenhos do sistema
estrutural do viaduto proposto.
[ANELLI, 2001. p.71.]
202
203 O VALE COMO PASSAGEM
preocupao era a de no interromper a continuidade visual do vale, bipartindo seu recinto.
Para no sacricar a viso panormica do parque seria necessrio que o viaduto se
reduzisse a uma linha ligando as duas colinas centrais.
34
Sob seus dois extremos, programas eram localizados de modo a dar sentido aos dois
nveis que o viaduto articulava. A obra seria realizada em duas etapas, dividindo o novo
viaduto longitudinalmente. Terminada a primeira fase, seria demolido o viaduto original e
executada a segunda metade. Desse modo, o novo viaduto permaneceria como o prolonga-
mento natural das ruas Baro de Itapetininga e Direita.
IAPI [1939]
Em 1939, Rino Levi contratado pelo IAPI, Instituto de Aposentadoria e Penses dos
Industririos, para elaborar um projeto de aproveitamento da rea junto ao Largo So Bento
localizada sobre o tnel proposto por Prestes Maia. O empreendimento deveria constituir
fonte de renda para o instituto ao criar reas comerciais e de escritrios para locao. O
instituto arcaria com a construo da passagem em troca da concesso de uso do terreno,
de era de propriedade municipal.
35
Vrias verses desse estudo podem ser encontradas nos
arquivos do arquiteto, mas h dois aspectos distintos, presentes em todas elas, que merecem
um olhar mais atento: um diz respeito congurao do edifcio; o outro s intervenes
previstas no sistema virio.
Em todas as verses do projeto elaboradas, o edifcio era setorizado verticalmente da
seguinte maneira: um embasamento, localizado entre os nveis da Rua Anhangabah e do
Largo So Bento, abrigava alm da passagem subterrnea, dois nveis de garagens e algumas
lojas junto ao tnel; um conjunto de galerias compostas de loja e sobreloja, no nvel do lar-
go, oferecia espao para estabelecimentos comerciais e de servios; as reas para escritrios
eram resolvidas no interior de trs torres de quinze pavimentos cada, implantadas perpen-
dicularmente ao tnel. A arquitetura do conjunto era ainda bastante tmida, mas procurava
explorar as potencialidades do stio. Havia claramente a congurao de dois trreos, e uma
34 LEVI, Rino. Justicao
arquitetnica. (agosto de 1935).
Revista Projeto n. 111, jun. 1988.
p.123.
35 MUNIZ, 2005. p.91.
Fig.215
Prancha com proposies para o
sistema virio que acompanhava o
projeto do conjunto comercial para
o IAPI. A construo do tnel So
Bento era associada a uma srie de
passagens de nvel e outras inter-
venes.
Notar no canto inferior esquerdo
as sees previstas para a Avenida
Anhangaba e Tiradentes.
[Biblioteca FAUUSP]
204
205 O VALE COMO PASSAGEM
tentativa de explicitar essa topograa.
Levi procurou evitar a usual aridez dos espaos anexos a tneis e viadutos, incorpo-
rando no programa do edifcio usos que poderiam conferir certa urbanidade a essa
situao: os nveis do Vale do Anhangaba e do Largo So Bento so ocupados por
lojas e os dois andares intermedirios so destinados a estacionamento. (...) as gigan-
tescas colunas na entrada do tnel acentuam a verticalidade do desnvel entre o largo
e o vale.
36
A proposta previa ainda a remodelao do Largo So Bento, com a construo de um
nvel de garagens sobre a passagem inferior, uma grande entrada de luz de planta circular
e dois conjuntos de escadas, possivelmente para possibilitar a transferncia de passageiros
entre as linhas de transporte pblico nos diferentes nveis. O Largo propriamente dito rece-
beria o acesso s garagens e uma parada abrigada.
No mbito do sistema virio, o projeto incorporava propostas existentes, mas adicio-
nava novos elementos. Dois eixos eram trabalhados: o eixo Parque D. Pedro >Tnel > So
Joo e o eixo Anhangaba > Tiradentes.
O Primeiro realizava a conexo Leste-Oeste partindo de uma rotatria semelhante
Praa da Estrela proposta por Maia no p da Ladeira General Carneiro, seguindo pelo t-
nel sob a colina histrica, cruzando a Rua Anhangaba e subindo pela Rua Capito Salomo
at atingir a Av. So Joo junto ao Largo Paissandu.
A soluo para o eixo Norte-Sul propunha o entrincheiramento das faixas centrais da
Rua Anhangaba criando uma hierarquia nessa via que facilitaria os cruzamentos sem limitar
a uidez do trnsito de passagem. No desenho de Rino Levi esta disposio se iniciaria junto
ao cruzamento com a So Joo e prosseguiria em direo Av. Tiradentes. fcil imaginar
seu prolongamento por todo o vale. O Anhangaba j no era mais visto como o recinto fe-
chado de Bouvard, mas como a grande avenida de Prestes Maia. O desenho virio proposto
resolvia as duas escalas de circulao, a local e a expressa, sem prejuzo de nenhuma.
36 ANELLI, 2001. p.110.
Fig.216
Pormenor da planta anterior.
A soluo sugerida para a Avenida
Anhangaba consistia no rebai-
xamento em trincheira das faixas
centrais, que receberiam o trfego
de passagem e liberariam as faixas
laterais para o uxo local.
[Biblioteca FAUUSP]
206
207 O VALE COMO PASSAGEM
Figs.217, 218 e 219
Perspectivas das solues estu-
dadas: vista da avenida, vista do
interior do tnel e vista area.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.220
Cortelongitudinal pelo tnel So
Bento econjunto comercial.
[Biblioteca FAUUSP]
208
Figs.221, 222 e 223
Planta do nvel do vale, com a
passagem do tnel; planta do nvel
do Largo de So Bento, com lojas
e galerias comerciais; planta do
pavimento tipo das torres de es-
critrios.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.224
Prancha de desenhos da garagem
subterrnea prevista entre o nvel
do Largo So Bento e o do tnel.
Eram propostos dois conjuntos de
escadas que criariam uma circula-
o vertical pblica para transbor-
do entre sistemas de transporte.
[Biblioteca FAUUSP]
209 O VALE COMO PASSAGEM
210
211 O VALE COMO PASSAGEM
O problema do estacionamento [anos 50]
Durante a dcada de 1950, Rino Levi, a partir de encomendas privadas para edifcios de
garagens no Rio de Janeiro e em So Paulo, e da pesquisa desenvolvida no mbito acadmi-
co de suas aulas na FAUUSP, envolveu-se com o problema que o excesso de veculos estava
gerando nos pontos centrais da cidade.
O otimismo com que era encarado nas dcadas anteriores o enorme crescimento da
cidade comeava a se transformar em motivo de preocupao. O volume de automveis
circulando em So Paulo iniciava um processo de destruio de aspectos de sua urbanidade
muito caros aos arquitetos. A asxia que comeava a ser identicada em algumas reas do
centro, representava um dos sintomas dos males que a cidade deveria procurar a enfrentar.
No projeto para a Garagem Amrica (1952/58), Levi enfrentou um lote bastante irre-
gular, localizado entre a Rua Riachuelo e a Av. Anhangaba (atual 23 de maio), prximo ao
Largo So Francisco. A adequao do programa geometria da planta forou a adoo de
um sistema convencional de circulao, com rampas laterais localizadas no trecho mais lar-
go do lote articulando os 15 pavimentos de estacionamento. O arquiteto no pde utilizar
disposies espaciais e de circulao mais investigativas como a das garagens polielicoidais
que j havia estudado.
O desnvel permitiu criar dois acessos, desnivelados em seis pavimentos, proporcio-
nando uma maior diversidade de percursos. Um volume saliente na fachada voltada para
o fundo do vale, abriga a sala de manobristas e marca a posio do trreo superior (Rua
Riachuelo), revelando e enfatizando a verticalidade da topograa. Os planos previstos de fe-
chamento das fachadas, utilizando brises metlicos, nunca foram construdos, prejudicando
consideravelmente a relao entre o edifcio e seu entorno.
Em conjunto com Roberto Cerqueira Csar e os estudantes de sua disciplina na FAUUSP
durante os anos de 1955/56, Rino Levi elaborou uma proposta urbana para a regio central
de So Paulo tendo como principais elementos de projeto o sistema virio e a localizao
de novos estacionamentos. Partindo dos mesmos pressupostos de Prestes Maia, o trabalho
apresentado no ofereceria qualquer contribuio alm da de consolidar a hegemonia do
automvel sobre qualquer outro meio de estruturao urbana.
Fig.225
Esquemas desenvolvidos durante
o estudo de localizao de novas
garagens na rea central
[ANELLI, 2001. p.222.]
Fig.226
Praa da Bandeira sendo utilizada
para estacionamento de veculos.
Fotograa do incio dos anos 50.
[ANELLI, 2001. p.221.]
212
213 O VALE COMO PASSAGEM
Fig.227
Esquema de localizao da Gara-
gem Amrica.
[ANELLI, 2001. p.224.]
Fig.228
Desenhos da Garagem Amrica
[ANELLI, 2001. p.194.]
.229
Fotograa da Garagem Amrica
construda sem o sistema de fecha-
mento previsto.
[ANELLI, 2001. p.195.]
Fig.230
Desenhos do projeto da Garagem
Copacabana, no Rio de Janeiro
(1956), em que era utilizado o
sistema polielicoidal desenvolvido
pelo escritrio de Rino Levi.
[ANELLI, 2001. p.194.]
214
215 O VALE COMO PASSAGEM
O novo Viaduto do Ch [1935]
Com o aumento do volume de trfego que demandava a travessia do vale atravs do
Viaduto do Ch, a partir dos anos 30 as dimenses da antiga estrutura passaram a ser enca-
radas como uma limitao problemtica para a cidade e sua substituio passou a ser con-
siderada em termos concretos. Em 1934 e 1935, durante a administrao do prefeito Fbio
Prado (1934-1938), foram promovidos dois concursos pblicos de projetos para resolver o
problema da ligao das duas colinas separadas pelo vale do Anhangaba
37
; o primeiro,
um concurso de sugesto de diretrizes; o segundo, para escolha do projeto denitivo.
O autor da proposta vencedora foi o engenheiro-arquiteto Elisrio Antnio da Cunha
Bahiana (1891-1980), formado no Rio de Janeiro pela Escola Nacional de Belas Artes em
1920 e radicado em So Paulo a partir de 1930
38
. Bahiana era o arquiteto responsvel pelos
projetos da Sociedade Comercial e Construtora, tendo realizado em 1929 dois edifcios de
porte no centro paulistano, o Pirapitinguy (demolido) e o Saldanha Marinho
39
. O primeiro
lugar obtido no concurso representava a possibilidade de construir a obra mais importante
de sua carreira at aquele momento
40
.
O viaduto proposto por Bahiana tinha 25 metros de largura, dimenso aproximada-
mente duas vezes maior que a do antigo, e se constitua de uma estrutura de concreto ar-
mado com arco central de 64 metros de vo arrematado por dois grandes pilares contnuos
com aproximadamente 4 metros de largura e 25 metros de comprimento, posicionados
sobre os taludes de transio do nvel da avenida central para as vias laterais. Dois vos
secundrios, de 17,50 metros, abriam caminho para a passagem dessas ruas, Formosa e sua
oposta. Os pontos de apoio eram marcados pela elevao de quatro torres monumentais,
no construdas, que assumiriam as funes de iluminao e de suporte da rede area de
cabos para os bondes eltricos.
Nas duas extremidades, tirando partido dos desnveis da cidade, foram propostos edif-
cios, prolongamentos do viaduto, que deveriam abrigar programas pblicos diversos. No
era sugerida explicitamente, no projeto inicial, a utilizao desses espaos como conexo
pblica para pedestres. Esta diretriz deve ter sido adotada no seu desenvolvimento, a partir
37 Trecho do ttulo do edital do
primeiro concurso, realizado
em novembro de 1934. Apud
SEGAWA, Hugo. Rino Levi e a
arquitetura moderna: a proposta
para o viaduto do Ch. Revista
Projeto n. 111, jun. 1988. p.121.
38 SEGAWA, Hugo. Elisrio
Bahiana e a arquitetura art deco.
Revista Projeto n. 67, set. 1984.
p.22.
39 Localizado na Rua Lbero
Badar, junto ao Largo de So
Francisco, abriga atualmente a
Secretaria Estadual de Segurana
Pblica
40 Bahiana havia obtido
anteriormente o 2 lugar em trs
concursos importantes: para o
Pavilho do Brasil na Exposio
de Nova Iorque (1925), para
o Estdio do Clube de Regatas
do Flamengo (1925), e para a
Embaixada Argentina no Rio de
Janeiro (1928), este ltimo vencido
por Lcio Costa. SEGAWA, Hugo.
Elisrio Bahiana e a arquitetura
art deco. Revista Projeto n. 67, set.
1984. p.22.
Fig.231
Perspectiva geral do projeto.
[Biblioteca FAUUSP]
216
217 O VALE COMO PASSAGEM
da repercusso da proposta de Rino Levi, classicada em 2 lugar no concurso. Durante esse
desenvolvimento, a extremidade leste alcanaria enorme riqueza espacial ao prolongar o
salo inicialmente proposto at o centro da Praa do Patriarca, passando sob a Rua Lbero
Badar, criando uma galeria pblica de pedestres que associava a funo de travessia a ser-
vios pblicos e de lazer. A construo do viaduto iniciou-se em 1936 e em 18 de abril de
1938 foi inaugurada pelo novo prefeito, Francisco Prestes Maia. A galeria junto praa do
Patriarca receberia o nome do prefeito e seria inaugurada alguns anos depois, entre 1940 e
1941. Em 1955, devido importncia dessa ligao, foram ali instalados dois conjuntos de
escadas rolantes.
41
A posio do novo viaduto foi determinada pela premissa de no interferir na estrutura
antiga at a concluso das obras
42
. Isto determinou uma implantao signicativamente di-
ferente da anterior. Se antes o viaduto se colocava como o prolongamento natural das ruas
Direita e Baro de Itapetininga, agora a relao deveria se estabelecer com as praas que ar-
rematavam seus extremos. Para isso, ambas tiveram de ser remodeladas. A Praa Ramos de
Azevedo, junto ao Teatro Municipal, teve sua largura reduzida e passou a contar com uma
nova fachada construda, fachada esta que nunca foi muito bem incorporada vida daquele
espao. A praa do Patriarca foi totalmente transformada, com a presena da cobertura so-
bre a sada superior da galeria, um novo desenho virio e de pavimentao.
A principal diferena entre os dois viadutos, distino que representa um salto im-
portante entre um e outro, reside na articulao dos nveis que aquele recinto apresenta.
Enquanto o Ch de Jules Martin realizava uma conexo exclusivamente horizontal, entre
duas partes da cidade alta, o de Bahiana incorporou os novos trreos que haviam sido cria-
dos, promovendo percursos horizontais e principalmente verticais.
O prestgio alcanado por Bahiana aps o projeto do Viaduto do Ch lhe renderia um
conjunto de encomendas de projetos que, tivessem sido todos construdos, teriam constitudo
um corpo mais presente at que o dos edifcios construdos pelos Neves alguns anos antes.
43
41 RICCA JR., Jorge. Anhangaba:
construo e memria. So Paulo:
FAUUSP, 2003 (Dissertao de
Mestrado). p.209.
42 Diferente da proposta de Rino
Levi, que previa a construo
de metade da estrutura nova,
demolio da antiga e concluso da
obra em seu lugar.
43 O arquiteto construiu o Edifcio
Joo Bricola, em frente ao Teatro
Municipal (antigo Mappin),
planejou um novo traado para
o Parque Anhangaba, projetou
a ampliao do Hotel Esplanada
(local onde foi construdo o
Edifcio CBI Esplanada, de Lucjan
Korngold), o Edifcio Conde Prates
(que substituiria o Palacete Prates;
foi posteriormente construdo por
Alfredo Mathias segundo projeto
de Giancarlo Palanti) e foi o 2
colocado no concurso para a sede
do Grupo Matarazzo (vencido
por Marcello Piacentini, abriga
atualmente a sede da prefeitura).
SEGAWA, Hugo. Elisrio Bahiana
e a arquitetura art deco. Revista
Projeto n. 67, set. 1984. p.22.
Fig.233
Perspectiva a partir da Praa do
Patriarca.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.234
Detalhamento das torres no
construdas.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.235
Perspectiva a partir do vale.
[Biblioteca FAUUSP]
218
Fig.236
Plantas do viaduto.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.237
Corte transversal pelo meio do vo
central.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.238
Corte transversal junto ao extremo
leste do viaduto olhando para a
Praa do Patriarca.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.239
Elevao geral.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.240
Corte longitudinal. O viaduto se
prolonga atraves dos edifcios po-
sicionados em suas extremidades.
Notar que ainda no havia sido
prevista a Galeria Prestes Maia.
[Biblioteca FAUUSP]
219 O VALE COMO PASSAGEM
220
Fig.241
Vista area do novo Ch.
Hans Gunter Flieg, 1950.
[IMS, 2004. p. 196.]
Fig.242
O novo viaduto a partir do Teatro
Municipal.
[TOLEDO, 1989. p.195.]
Fig.243
Vista a partir do centro do vale.
Cromocart G. W., nal do anos 40.
[GERODETTI, 1999. p79.]
Fig.244
Vista a partir da Rua Formosa.
Theodor Preising, anos 40.
[GERODETTI, 1999. p78.]
Fig.245
Projeto da Galeria Prestes Maia,
com data de 1940.
[Biblioteca FAUUSP]
221 O VALE COMO PASSAGEM
222
223 O VALE COMO CONFLITO
captulo 04
o vale como confito
224
225 O VALE COMO CONFLITO
O automvel e o Anhangaba
No captulo anterior buscou-se mostrar como, a partir da segunda metade da dcada
de 1920, o Vale do Anhangaba deixou de ser o lugar de representao da capital do caf
e passou a ostentar os smbolos da metrpole industrial. Esse processo transformou o
espao do vale em um local de passagem, incorporando os novos instrumentos de urbani-
zao da cidade: a avenida e o arranha-cu. A supremacia do rodoviarismo como modelo
de estruturao e o acelerado ritmo de expanso econmica e populacional experimenta-
dos, levariam rapidamente a um esgotamento da malha instalada, provocando colossais
congestionamentos e srios problemas ligados inecincia operacional do sistema virio.
A organizao dos sistemas de transportes, seguindo a lgica radial, havia transformado a
regio central em um grande n articulador de transbordo e passagem de pedestres.
O pis, sob o regime militar, vivia o chamado milagre econmico. A administra-
o municipal tinha seu foco voltado para a resoluo dos problemas do automvel na
cidade. Baseado nas premissas do PUB, o Departamento de Planejamento dos Sistemas de
Transportes publicava, em 1973, o plano de Vias Expressas. Neste plano estava esboada um
malha futura de vias expressas abarcando toda a extenso da cidade e um plano qinqenal
a ser executado ainda pela gesto do ento prefeito Jos Carlos de Figueiredo Ferraz.
O Anhangaba se transformara num ponto de conuncia tanto de automveis quan-
to de pedestres, que ali se convertiam em mortais inimigos. Acidentes, atropelamentos e
confuses passaram a ser eventos cotidianos. Atravessar o vale a p, a partir do nal dos
anos sessenta e anos setenta, havia se tornado mais difcil do que antes da inaugurao do
primeiro Viaduto do Ch. O vale representava o cenrio desse conito.
Evidentemente problemas dessa ordem no eram exclusividades paulistanas. As ques-
tes levantadas pela massicao do uso do automvel particular eram debatidas em todas
as grandes cidades do mundo. Muitas teorias seriam formuladas nesse contexto. Algumas
foram reetidas em propostas locais. Uma breve apresentao desse momento se faz neces-
sria para melhor compreender algumas das idias formuladas para o Anhangaba durante
esse perodo.
226
227 O VALE COMO CONFLITO
Fig.246
Esquema com quadrcula de vias
expressas sobreposta malha viria
da cidade.
[SO PAULO (Cidade) Prefeitura.
Plano Urbanstico Bsico de So
Paulo / Relatrio Sinttico. So
Paulo, 1969.]
Fig.247
Desenvolvimento do esquema
anterior transformado em plano de
um sistema de vias expressas.
[SO PAULO (Cidade) Departa-
mento de Planejamento dos Siste-
mas de Transporte. Vias Expressas.
So Paulo, 1973.]
Figs.248 e 249
O Anhanangaba nos anos 70.
A travessia de pedestres havia se
tornado um grave problema.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981]
Fig.250
Os calades surgiram para tentar
amenizar o conito entre pedes-
tres e automveis nas ruas da rea
central.
[SO PAULO (Cidade) Prefeitura.
So Paulo, a cidade, o habitante,
a administrao:1975-1979. So
Paulo, 1979 (Relatrio das ativida-
des desenvolvidas pela prefeitura
de So Paulo durante a gesto do
prefeito Olavo Egydio Setbal).]
Figs.251 e 252
Fotograas do calado da Rua
Baro de Itapetininga.
[SO PAULO (Cidade) Prefeitura,
1979.]
228
229 O VALE COMO CONFLITO
Os anos 50 e 60 na Europa
Um relato representativo da evoluo do discurso do urbanismo durante a primeira
metade do sc. XX pode ser construdo atravs da leitura dos documentos produzidos pelos
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAM. Do primeiro congresso rea-
lizado em 1928 no castelo de La Sarraz, ao dcimo e ltimo, sediado em Dubrovnik no ano
de 1956, diferentes grupos e idias se sucederam na liderana desses encontros.
A classicao feita por Keneth Frampton, aceita por diversos autores, divide os CIAM
em trs fases: a primeira abarca os trs encontros iniciais e foi liderada pelo grupo de arqui-
tetos germnicos ligados nova objetividade (neue sachlichkeit), entre os quais se desta-
cavam as guras de Ernst May e num segundo momento a de Walter Gropius. Politizados
e radicais, a nfase durantes esses encontros incidiu fundamentalmente sobre a habitao
e questes como a padronizao, a pr-fabricao, a unidade mnima e o uso racional do
solo urbano.
A segunda fase abrange os encontros seguintes, em 1933 e 1937, at sua interrupo
pela guerra. Durante este perodo a gura dominante foi a de Le Corbusier com Josep Lluis
Sert em segundo plano. O grande tema abordado nesta fase foi o da cidade funcional. O
relatrio nal do congresso de 1933 tornar-se-ia conhecido como a Carta de Atenas.
No perodo ps-guerra dos CIAM, a partir do VI encontro em 1947, o liberalismo po-
ltico predominante na Europa viria a se impor tambm nos congressos e uma pluralidade
de idias marcaria o incio de um perodo conituoso que levaria extino dos encontros
aps sua dcima edio em 1956.
Durante os primeiros anos de reconstruo das cidades europias arrasadas pela guer-
ra, a Carta de Atenas serviu como guia de diretrizes sendo aplicada extensivamente. Os
problemas gerados pelo esquematismo e pelo universalismo abstrato, encontrados nesse
documento, levaram a um debate, explicitado no nono CIAM cujo tema era habitat, onde
foram introduzidos pelas novas geraes de arquitetos termos como identidade, comuni-
dade e pertencimento (belonging). Ao invs de usos e zonas, a cidade passou a ser discutida
atravs de conceitos como estruturao, crescimento e formas de associao.
Fig.253
Diagrama da complexidade das
escalas de associao. Nas extre-
midades, assentamentos rurais;
no centro, grandes aglomeraes
urbanas.
[SMITHSON, Peter e Alison.
Urban Sructuring: studies of Alison
and Peter Smithson. Londres: Stu-
dio Vista, 1967.]
Figs.254 e 256
Fotograas de Nigel Henderson
utilizadas pelo arquitetos do Team
X como exemplo de apropriao
espontnea dos espaos pblicos e
ruas das cidades.
[SMITHSON, 1967.]
Fig.255
Croquis de um modo de estrutura-
o urbana baseado na disposio
de uma rede de edifcios interliga-
dos congurando ruas areas para
pedestres e liberando o solo para o
lazer e a circulao de veculos.
[SMITHSON, 1967.]
230
231 O VALE COMO CONFLITO
O grupo dos jovens identicava na cidade funcional uma concepo abstrata pouco
condizente com as necessidades humanas essenciais e cujas aplicaes j haviam se
mostrado insatisfatrias para os resultados funcionais preconizados por seus idealiza-
dores. Em primeiro lugar, eles consideravam a concepo da cidade por funes discri-
minadas pobre e insuciente para o tratamento da questo urbanstica na sua comple-
xidade inerente. O modelo da Ville radieuse, proposto por Le Corbusier, mostrava-se
abstrato no apenas por desconsiderar os habitantes dos espaos em sua dimenso
individual e nas suas necessidades de expresso, mas tambm por fazer da cidade um
objeto calculado a partir de uma equao analtica que anulava por completo as inter-
relaes humanas criadas no processo de apropriao dos espaos.
1
O grupo formado para a organizao do dcimo e ltimo congresso aglutinava os prin-
cipais nomes da gerao de arquitetos que defendiam essa evoluo conceitual. Incluindo,
entre outros nomes, os britnicos Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003), os
holandeses Aldo van Eyck (1918-1998) e Jacob Bakema (1914-1981), o italiano Giancarlo
de Carlo (1919-2005) e o sueco-britnico Ralph Erskine (1914-2005), esse grupo caria
conhecido como o Team X.
importante destacar que a posio desse grupo no de rompimento em relao ao
movimento moderno e sim de continuidade. Segundo Montaner,
Para los miembros del Team 10, continuar con el proyecto de la arquitectura moderna
signica dar un giro a las pretensiones universalistas y propositivas de los CIAM. Se
trata de seguir en esta voluntad de proximidad al mundo de la ciencia, la tecnologa y
la produccin, pero no deniendo grandes teoras o proyectando prototipos, sino imi-
tando el mtodo experimental y cientco que va analizando caso por caso.
2
Das propostas elaboradas pelos integrantes desse grupo, interessam aqui particular-
mente as do casal Smithson, pelas relaes que podem se estabelecer com alguns dos proje-
tos que sero abordados adiante.
1 BARONE,Ana Claudia Castilho.
Team 10 arquitetura como
crtica. So Paulo: FAUUSP, 2000
(Dissertao de Mestrado) p.51.
2 MONTANER, Josep Maria.
Despus del movimiento moderno:
arquitectura de la segunda mitad del
siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili,
1993. p. 31.
Fig.257
Corte e planta do centro comercial
e de servios de Cumbernald New
Town, projetado sob a direo L.
Hugh Wilson a partir de 1956.
Uma gigantesca construo multi-
funcional agrega comrcio, servios
e habitao sobre reas de estacio-
namento e a rodovia de acesso.
[GALANTAY, Ervin Y. Nuevas
ciudades. De la antigedad a nues-
tros das. Barcelona: Gustavo Gili,
1977.]
Fig.258
Centro urbano de Vallingby New
Town, Sucia, projetado e constru-
do durante a primeira metade da
dcada de 1950.
Uma grande plataforma cobre a
estao de trem, vias de acesso e
estacionamentos criando um nvel
exclusivo para pedestres que con-
centra as atividades comerciais e de
servios.
[GALANTAY, 1977.]
Fig.259
Vista area do conjunto habitacio-
nal Park Hill, em Shefeld. Lynn e
Smith, 1959-61.
[BANHAM, Reyner. The New Bru-
talism: ethic or aesthetic?. Londres:
Architectural Press, 1966.]
232
233 O VALE COMO CONFLITO
Foi principalmente atravs da participao em concursos pblicos que os Smithson
puderam expressar suas propostas para problemas como a habitao e a recuperao de
centros urbanos. O projeto apresentado em 1958 ao concurso para reformulao da rea
central de Berlin (Berlin-Haupstadt) ilustra de maneira exemplar as propostas para a cidade
defendidas por esses arquitetos. Uma rede ou uma teia de construes de dois pavimentos,
sobreposta malha urbana existente, conguraria um novo circuito para os pedestres, iso-
lado do trfego de automveis, e abrigaria no pavimento intermedirio estabelecimentos
comerciais, servios e estacionamentos. Vazios e escadas rolantes fariam a conexo entre
os nveis, que nunca perderiam o contato visual entre si. Novos edifcios se ligariam a essas
estruturas estabelecendo pontos de acesso nos diversos nveis.
Note-se que no se trata de uma megaestrutura. O que estava proposto era um sistema
aberto que no eliminaria a cidade antiga nem centralizaria todas as funes urbanas. A es-
sncia da proposta era multiplicar os trreos da cidade possibilitando a separao de uxos
e otimizando os sistemas de mobilidade, motorizados ou no. A presena do automvel
no era encarada de modo negativo, pelo contrrio. O automvel particular e os sistemas de
transporte de massa so vistos como agentes liberadores. O que buscavam era a expresso
arquitetnica dessa situao.
O fracasso do chamado urbanismo funcionalista, estruturado sobre a carta de Atenas,
como resposta aos problemas da reconstruo e s demandas urbanas da Europa durante o
ps-guerra, deve ter despertado uma espcie de frustrao compartilhada por boa parte da
gerao de jovens arquitetos que surgia a partir da segunda metade dos anos 50 nos pases
centrais do continente, destacadamente Frana e Inglaterra.
Em oposio rigidez e ao mpeto de controle, presentes nas experincias anteriores,
comearam a ser elaborados planos urbanos baseados na exibilidade, mutabilidade, mo-
bilidade exacerbada e na indenio de usos. Nomes como Yona Friedman (1923-)
3
, Cedric
Price (1934-2003) e Archigram, produziram imagens impactantes e instigantes, que foram
divulgadas mundo afora.
3 Friedman publica em 1959
seu manifesto LArchitecture
mobile: vers une cite congue par
ses habitants. As ilustraes
apresentavam imensas estruturas
elevadas pairando sobre a cidade
antiga dentro das quais as
novas vias expressas e os novos
programas das cidades iriam
sendo alocados e re-alocados
permanentemente. Cedric price
prope um grande edifcio
mutante destinado diverso e
ao entretenimento: o Fun Palace
,em 1961. Archigram divulga nos
primeiros anos da dcada de 60
suas Instant cities, Plug-in cities e
Walking cities.
Figs.260, 261 e 262
Desenhos do projeto apresentado
por Alison e Peter Smithson e
Sigmond para o concurso Berlin-
Haupstadt, 1958.
Um edifcio malha era super-
posto cidade antiga segregando
pedestres de automveis e criando
novos nveis de vida urbana co-
letiva.
[SMITHSON, 1967.]
234
235 O VALE COMO CONFLITO
Carregadas de ironia, romantismo e uma rme crena nas possibilidades tecnolgicas,
nenhuma dessas idias foi executada. No entanto, sua repercusso, somada de outras pro-
postas que veremos adiante, ajudou a congurar um conceito que foi amplamente experi-
mentado em diversos pases: as megaestruturas.
Fig.263
Desenho de Yona Friedman que
ilustrava o manifesto Larchitecture
Mobile, de 1957.
[OCKMAN, Joan (org.). Archi-
tecture Culture:1943-1968. A Do-
cumentary Anthology. New York:
Rizzoli, 1993.]
Fig.264
Cedric Price, Fun Palace, 1960-61.
Uma superestrutura dinmica em
constante transformao abrigaria
programas de entretenimento e
diverso.
[www.interactivearchitecture.
org/fun-palace-cedric-price.html
(Mai/2006)]
Fig.265
Yona Friedman. Proposta para a
expanso de Paris, 1963.
[COOK, Peter. Architecture: Action
and Plan. Nova Iorque: Reinhold,
1967.]
Fig.266
Walking City on the ocean, Ron
Herron (Archigram), 1966.
[COOK, 1967]
236
237 O VALE COMO CONFLITO
O Metr no vale: estaes So Bento e Anhangaba
Do ponto de vista simblico o Plano de Avenidas poderia ser eleito como o marco
fundacional de uma poltica rodoviarista de estruturao da cidade que se armou e que
perdura at os dias de hoje. O Programa de melhoramentos pblicos para a cidade de
So Paulo, mais conhecido como Relatrio Moses
4
, elaborado em 1950 e at mesmo o
Anteprojeto
5
elaborado pelo prprio Prestes Maia em 1956 foram impulsos adicionais
nesse mesmo sentido. Isto adiou at o limite do insustentvel a implantao de um sistema
metropolitano (Metr) na cidade. J em 1930, o Plano era uma resposta direta ao Projeto
Light, de 1927,de um sistema de transposte coletivo sobre trilhos.
Aps diversas tentativas frustradas, apenas em 1966 foi dado o primeiro passo concreto
na direo da criao desse sistema. Nesse ano formou-se o Grupo Executivo Metropolitano,
que organizou uma licitao internacional vencida pelo consrcio HMD
6
. Em 1968 o grupo
apresentou sua proposta para a rede bsica e foi fundada a Companhia do Metropolitano
de So Paulo
7
.
A primeira linha a ser implantada foi a Norte-Sul, Azul, de Santana a Jabaquara, da qual
faz parte a Estao So Bento. Sua operao comercial, com a linha completa, teve incio em
setembro de 1975. A construo da linha Leste-Oeste, Vermelha, iniciou-se em maro de
1975 e a Estao Anhangaba foi inaugurada em novembro de 1983. O modo como essas
duas estaes foram implantadas, as relaes com a cidade que estabeleceram e seu impacto
sobre o recinto do vale o que se pretende comentar a seguir.
A expectativa criada em relao to aguardada linha do Metr era muito grande. A
previso da construo junto ao Anhangaba, da Estao So Bento, representava a possi-
bilidade de reestruturar toda a circulao de pedestres na rea, motivando projetos mais
abrangentes como os que sero vistos adiante. Associar as novas instalaes do Metr a
outras infra-estruturas de transporte e circulao e atividades urbanas diversicadas, era
uma premissa interessante que contava com exemplos bem sucedidos em diversas parte do
mundo, no entanto muito pouco foi feito nesse sentido. Pautado por decises setoriais e
4 O coordenador do trabalho foi
o engenheiro e advogado Robert
Moses, gura de destaque no
urbanismo da cidade de Nova
Iorque durante os anos 1930 a
1960.
5 Anteprojeto de um sistema de
transporte rpido metropolitano.
Ver pgina XXX.
6 Hochtief, Montreal e Deconsult.
7 MUNIZ, Cristiane. A Cidade e
os Trilhos: o Metr de So Paulo
como desenho urbano. So Paulo:
FAUUSP, 2005 (Dissertao de
Mestrado). p.143.
Fig.267
Corte perspectivado do projeto
original da Estao So Bento do
Metr, com a torre de escritrios
junto avenida.
[HMD, 1969. p.223.]
238
239 O VALE COMO CONFLITO
isoladas, o processo de construo dessas estaes no conseguiu responder plenamente s
posssibilidades de qualicao urbana que o vale oferecia. Acanhadas, nenhuma delas con-
seguiu assumir o papel de porta do Anhangaba, como se imaginava anteriormente.
A Estao So Bento poderia ter criado ligaes horizontais e verticais mais francas
entre as duas vrzeas que delimitam a Colina Histrica e entre os nveis da cidade. A verso
original do projeto previa o prolongamento do corpo da estao at o alinhamento da ave-
nida e a construo de uma torre de escritrios e servios junto ao vale. O projeto denitivo
priorizou a relao entre a estao e o Largo de So Bento e a ligao com o Anhangaba
assumiu um papel secundrio. A articulao vertical pblica entre o vale e o largo confusa
e burocrtica, atravs de uma sucesso de rampas e patamares que no chegam a congurar
um percurso.
Na construo da estao Anhangaba a grande chance perdida foi a de criar uma li-
gao pblica, com desenho e escala adequados, entre a Praa da Bandeira a estao e os
dois lados do vale, apesar dos diversos estudos e projetos que caminhavam nesse sentido. O
estabelecimento dessa conexo teria evitado a profuso desastrosa de passarelas que tomou
conta do espao areo daquele setor do Anhangaba.
O exemplo dessas estaes revela a necessidade que se impe de organizar de modo
articulado o trabalho dos agentes pblicos de planejamento e construo da cidade, sob a
pena de continuar desperdiando preciosas oportunidades de qualicao do seu to mal-
tratado espao urbano.
Fig.268
Corte longitudinal do projeto da
Estao Anhangaba do Metr.
[SO PAULO (Cidade) Compa-
nhia do Metropolitano de So
Paulo. Leste-Oeste: em busca de
uma soluo integrada. So Paulo,
1979.]
240
Fig.269
Estao So Bento logo aps sua
inaugurao.
[SO PAULO (Cidade) Prefeitura,
1979.]
Figs.270, 271 e 272
Perspectivas do projeto original da
Estao So Bento do Metr.
[HMD, 1969. p.223 e 224.]
241 O VALE COMO CONFLITO
242
243 O VALE COMO CONFLITO
Figs.273, 274 e 275
Plantas do projeto original da
Estao So Bento do Metr.
Nvel Largo Superior; Nvel Largo
Inferior; Nvel Av. Anhangaba.
[HMD, 1969. p.220 e 221.]
244
Figs.276, 277
Desenhos do estudo preliminar da
Estao Anhangaba.
[HMD, 1969. p.154.]
Fig.278
Plantas do projeto da Estao
Anhangaba.
Nvel Av. Anhangaba; Nvel passa-
gem inferior.
[SO PAULO (Cidade) Compa-
nhia do Metropolitano de So
Paulo, 1979.]
245 O VALE COMO CONFLITO
246
Figs.279, 280 e 281
Plantas e corte longitudinal do
projeto denitivo da Estao
Anhangaba.
[Biblioteca FAUUSP]
247 O VALE COMO CONFLITO
248
Fig.282
Perspectiva da proposta a partir da
Praa da Bandeira.
[REIS FILHO, Nestor Goulart. Me-
gaestrutura: soluo para o Anhan-
gaba. So Paulo: Pini, 1972.]
249 O VALE COMO CONFLITO
A megaestrutura de Nestor Goulart Reis Filho [1972]
Megaestrutura: Soluo para o Anhangaba. Sob esse ttulo foi apresentado em 1972
um projeto, sob a coordenao do arquiteto Nestor Goulart Reis Filho, que prometia ser a
soluo dos problemas para o Vale do Anhangaba.
Oferecia-se o seguinte cenrio: um advogado chega cidade e estaciona seu carro num
dos vrios andares de estacionamento da megaestrutura. Sobe pelas escadas rolantes at o
terrao, no nvel da Rua Lbero Badar, onde compra um jornal e toma um caf. Caminha
por uma esplanada orida onde pessoas passeiam seus cachorros e mes levam suas crian-
as ao playground. Volta para almoar com seus amigos em um dos restaurantes e aproveita
para comprar uma gravata nova, um livro e um par de meias para a esposa. Desconta um
cheque, janta, vai ao teatro e muito mais. Tudo isso dentro da megaestrutura.
O projeto se constitua de um edifcio multifuncional de diversos pavimentos que, ao
preencher o recinto do vale desde a Praa da Bandeira at a Av. Senador Queirs, criaria
uma esplanada contnua no nvel do Viaduto do Ch. Seu interior abrigaria linhas de Metr,
vias expressas para automveis, estacionamentos, estabelecimentos comerciais e de servios,
equipamentos pblicos e etc. A laje de cobertura conguraria um espao devolvido ao pe-
destre (...), um terrao verdejante onde poderiam ser construdos jardins (...).
8
Boa parte da argumentao de defesa desse projeto se baseia na exaltao da megaes-
trutura.
(o arquiteto) defende uma tese de que as megaestruturas devem ser empregadas em
So Paulo, como, alis, esto sendo empregadas em vrias partes do mundo.
9
Hoje poderamos encarar este projeto como um devaneio ingnuo e datado. A argu-
mentao em sua defesa era frgil e deslumbrada, a ponto de no alcanar qualquer trans-
cendncia mesmo no momento de sua proposio. Apesar disso, este projeto permite abor-
dar uma discusso interessante envolvendo o contexto que levou o arquiteto, ento diretor
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, a sustent-lo.
8 REIS FILHO, Nestor Goulart.
Megaestrutura: soluo para o
Anhangaba. So Paulo: Pini, 1972.
9 REIS FILHO, 1972
250
251 O VALE COMO CONFLITO
Um dos principais pontos da argumentao reside na conabilidade do conceito de
megaestrutura, empregado em vrias partes do mundo. Embora verdadeira, a armao
bastante anacrnica j que, nos incio dos anos 70, essas idias encontravam-se em franco
declnio.
O termo megaestrutura foi utilizado formalmente pela primeira vez em 1964 por
Fumihiko Maki (1928-), para classicar alguns projetos que vinham sendo elaborados por
arquitetos de vrias partes do mundo, com maior nfase no Japo, na Europa e nos Estados
Unidos. Reyner Banham, em seu livro Megaestruturas: Futuro urbano do passado recente
aponta o ano de 1964 como o mega-ano, devido consolidao formal desse conceito
atravs de textos e publicaes ao redor do planeta.
Os ensaios projetuais que levaram criao desse termo comearam a ganhar cor-
po durante a dcada de 50 atravs de projetos para centros administrativos (Louis Kahn
em Filadla, 1952), universidades (os Smithson em Shefeld, 1953), grandes centros co-
merciais (Victor Gruen em Fort Worth, 1956) e cidades novas (Vllingby, Sucia, 1954 /
Cumbernauld, Esccia,1960).
Arquitetos japoneses, os chamados metabolistas, deram tambm sua parcela de con-
tribuio atravs de nomes como Kisho Kurokawa (1934-), Arata Isozaki (1931-) e Kenzo
Tange (1913-2005), do qual se destaca o plano para a Baa de Tkio.
O sucesso dessas idias no meio arquitetnico provocou, durante os primeiros anos
da dcada de 60, uma profuso indiscriminada de projetos de megaestruturas em todo o
mundo. Destas, algumas foram construdas. Talvez a mais celebrada tenha sido a do centro
urbano de Cumbernauld New Town, Esccia, projetada por L. Hugh Wilson e Geoffrey
Copcutt em 1960 e inaugurada em 1967.
No incio dos anos 70 esse iderio, tal como vinha sendo formulado, encontrava-se em
franca decadncia. O fracasso de Thamesmead New Town, projetado pelo Greater London
Council a partir de 1967 foi, segundo Banham, a denitiva lpide sepulcral do institucionaliza-
do conceito de megaestrutura.
10
No se pretende aqui reconstituir com detalhes a histria do movimento megaestrutu-
ralista e sim mostrar como essas discusses se encaminhavam no incio dos anos 70.
10 BANHAM, R.. Megaestructuras.
Futuro urbano del pasado reciente.
Barcelona, Gustavo Gili, 1978.
Figs.283 e 284
Corte transversal Ch e corte trans-
versal Largo de So Bento.
[REIS FILHO, 1972.]
252
Fig.285
Perspectiva da praa criada no
nvel dos viadutos.
[Folha de So Paulo, domingo 28
de outubro de 1973]
Figs.286 e 287
Exemplos de Megaestruturas utili-
zados para justicar a proposta.
[REIS FILHO, 1972.]
253 O VALE COMO CONFLITO
A proposta de Nestor Goulart demonstra um deslumbramento tardio pela megaes-
trutura mesmo aps a experincia fracassada na vizinha Praa Roosevelt. Sua justicativa
para o insucesso desta foi a falta de arejamento de uma estrutura asxiante, ou seja, um
problema de desenho.
Segundo Regina M. P. Meyer, o erro fundamental no projeto da Roosevelt residia na
tentativa de dotar um corpo vazio - uma megaestrutura de 30.000 m - de qualidades
urbanas, quando sua funo primordial e essencial era na verdade encobrir as pistas
subterrneas e garantir o livre uxo dos veculos que atravessam o centro.
11

Nestor Goulart cometia o mesmo erro.
Alguns anos depois, em entrevista dada Folha de So Paulo publicada em 20 de
novembro de 1980, o autor declarou que sua proposta tinha originalmente dois objetivos:
Estabelecer um critrio de conjunto para o Anhangaba, e abrir uma possibilidade de conciliar o
Metr com o Centro da cidade, permitindo sua passagem pelo Vale. Sobre a pertinncia do pro-
jeto naquele momento, revelou: Se a megaestrutura fosse proposta agora, trabalharia contra.
11 Revista Urbs n 14, Set-Out/99.
MEYER, Regina M. Prosperi. A
Construo da Metrpole e a
Eroso do seu Centro.
254
255 O VALE COMO CONFLITO
O Anhangaba de Artigas
11
[1974]
No incio de 1974 Joo Batista Vilanova Artigas (1915-1985) contratado pela Prefeitura
Municipal de So Paulo, atravs da EMURB/COGEP, para elaborar um plano de reorganiza-
o do Vale do Anhangaba. O escopo da encomenda se restringia, sicamente, ao trecho do
vale localizado entre a Praa da Bandeira e o Viaduto Sta. Egnia. Do ponto de vista fun-
cional a solicitao trazia como principais problemas a resoluo do conito entre pedestres
e automveis e a organizao da operao do transporte pblico (nibus).
possvel que a inteno original da EMURB fosse contratar apenas o projeto de al-
gumas passarelas, equipamentos para os quais o arquiteto j havia desenvolvido um certo
mtodo construtivo baseado em experincias com a prpria EMURB.
Na verdade, o projeto do Anhangaba resultou de uma encomenda de passarela, que
se modicou em proposta para reordenao da via junto ao crrego e ocupao de um
grande eixo virio, unindo as Marginais do Tiet e do Pinheiros, ao mesmo tempo em
que trabalhou uma srie de passarelas como se fossem esculturas urbanas.
12
Entre 1972 e 1973 Artigas projetou para o municpio oito passarelas urbanas, das quais
seis foram construdas.
Projetei muitas passarelas. Lembro que, uma das primeiras, cuja instalao acompa-
nhei, na Av. 23 de Maio, fez a calada ruir assim que foi instalada. Depois disso, nosso
escritrio desenvolveu um bom know-how e as que projetamos hoje, so montadas
sobre os pilares em menos de uma hora.
Passarelas so obras modestas. Mas, alm de salvarem vidas, so muito bonitas; visi-
tei outros pases e acho que em matria de passarelas para pedestres, s as dos EUA
podem ser comparadas com as nossas. No precisamos da tecnologia japonesa que
nos presenteou com a passarela da Praa Joo Mendes. H outras, no entanto, muito
bonitas, como a que est em frente ao DETRAN na Av. Rubem Berta. Mas, infelizmente
11 A equipe do projeto era
complementada pelos seguintes
prossionais: Abraho Sanovicz,
Marlene Yurgel, Harue Yamashita,
Eduardo Rodrigues(arquitetos),
Fernando Gonalves (eng.
trfego), Bramante Buffoni,
Cristiano Marcaro e Sigfrido Ruiz
(comunicao), Cleber Machado,
Ernesto Walter, Francisco
Wahasugui, Luis Carlos Pessoa e
Oswaldo Natrieli (estagirios).
12 KATINSKI, Julio Roberto.
Trecho do texto Vilanova Artigas:
inveno de uma arquitetura,
presente no catlogo da exposio
Vilanova Artigas realizada no
Intituto Tomie Ohtake em 2003.
p. 72.
Fig.288
Esboo inicial de Artigas que revela
a abrangncia de sua abordagem.
[BUCCI, 1998. ilustrao 28.]
Fig.289
Planta geral da proposta (primeira
estapa).
[ARTIGAS, Joo Batista Vilanova.
Parque Anhangaba. So Paulo:
PMSP, 1974.]
Fig.290
Diagrama de Artigas onde se desta-
ca a importncia do Permetro de
Irradiao para amenizar o uxo
de passagem pelo Anhangaba.
[BUCCI, 1998. ilustrao 30.]
256
Figs.291 e 292
Perspectivas gerais com as pro-
postas para o vale. Destacam-se os
dois novos terminais e o sistema de
passarelas.
[ARTIGAS, 1974.]
257 O VALE COMO CONFLITO
nem todas as passarelas so bonitas e funcionais. Aquela, ao lado do Viaduto do Ch,
eu considero imoral.
13
No ano de 1974 Artigas continuou elaborando projetos para passarelas. Projetou outras
sete: trs para a Prefeitura Municipal de Santo Andr (construdas), trs sobre a Rodovia
dos Imigrantes (no construdas) e uma para a EMURB (no construda). At o nal de sua
carreira ainda projetaria ao menos outras trs.
A questo central que o conjunto das passarelas de Artigas assume um carter ex-
perimental, uma espcie de ensaio. A cada nova passarela, so desenvolvidas novas
solues construtivas de ordem puramente tcnica , ou espaciais de acordo com a
especicidade de cada local onde so implantadas.
Em todas elas, a estrutura metlica, plana ou levemente curva, simplesmente apoia-
da em estruturas de concreto armado, com os mais variados desenhos. Os pontos de
apoio, tema recorrente em toda a obra de Artigas, passam agora a ter uma outra fun-
o: assumem o papel de rampas ou de escadas.
14
Artigas sabia que naquele momento a solicitao municipal vinha movida por um ca-
rter imediatista e contraditrio, sob a presso da opinio pblica em relao aos cons-
tantes acidentes e atropelamentos. Para ele era claro que os problemas fundamentais do
Anhangaba no seriam resolvidos dentro dos limites impostos. Segundo o arquiteto,
O Vale do Anhangaba o centro monumental da cidade de So Paulo, a avenida de en-
trada e travessia da URBS. (...) Desde o comeo do sculo, o vale precisou ser atravessado,
ultrapassado e, muito mais tarde, franqueado ao uso que hoje oferece como avenida de
grande porte. (...) O primeiro Viaduto do Ch, o de Jules Martin, data de 1892 e teria sido
construdo, como se disse, guisa de vlvula de segurana para o congestionamento do
tringulo. Na verdade estamos versando h cem anos (...) os mesmos problemas, as mes-
mas questes, se bem que em escala diferente: atravessar o vale, e urbanizar a calha.
15
13 ARTIGAS, J. B. Vilanova.
Vilanova Artigas: arquitetos
brasileiros. So Paulo, Instituto
Lina Bo e P. M. Bardi, Fundao
Vilanova Artigas, 1997. p. 177.
14 IWAMIZU, Csar Shundi. As
passarelas urbanas projetadas por
Artigas no incio da dcada de 70.
Trabalho para disciplina, FAUUSP,
2005.
15 Trecho do texto que acompanha
a publicao do projeto na edio
de julho de 1975 da revista
Mdulo, p.36.
258
Fig.293
Trecho entre a Ponte Cidade
Jardim (Rio Pinheiros) e a Avenida
So Gabriel.
Em cinza claro foram destacadas as
intervenes propostas.
[ARTIGAS, 1974.]
Fig.294
Trecho entre a Avenida So Ga-
briel e o Parque Siqueira Campos.
Em cinza claro foram destacadas as
intervenes propostas.
[ARTIGAS, 1974.]
259 O VALE COMO CONFLITO
Como primeira ao de projeto, Artigas tenta ampliar a abrangncia territorial da en-
comenda expandindo para norte e para sul a extenso do eixo estudado, alcanando os rios
Tiet e Pinheiros. Para isso justica:
A calha esticou-se para o sul quando no m da dcada de trinta furou as nascentes
do Anhangaba. (...) Acontece que os temas de travessia devem integrar-se com os de
urbanizao do vale. E o vale esticou, como vimos procurando provar; e tanto que a
nosso ver deveria ser avalizado um estudo urbanstico com o flego que a realidade
atual de So Paulo exige, considerando tambm o trecho Viaduto de Santa Egnia
Ponte Grande.
16
Com esta abordagem Artigas objetivava superar a contradio parque/estar/local-ave-
nida/passagem/metropolitano, presente nas propostas de Prestes Maia que haviam congu-
rado aquele recinto. No fundo, atravs desse ponto de vista essas caractersticas no seriam
contraditrias e sim complementares. O desenho proposto deveria assumir simultaneamen-
te todos esses aspectos realizando sua conciliao e sua sntese.
Objetivamente, as propostas elaboradas durante a etapa inicial do projeto concentram-
se fundamentalmente sobre trs aspectos da circulao na cidade:
para o automvel, a congurao de uma via arterial expressa que cruzaria a cidade de
rio a rio sem paradas e o aperfeioamento da rtula.
para o nibus, um novo sistema de funcionamento com a criao de duas grandes
estaes: a estao sul-norte, na Praa da Bandeira e a estao norte-sul, no vazio cons-
titudo pela Praa Pedro Lessa e pela demolio de um conjunto de edifcios prximos
a ela.
para o pedestre, a criao de um circuito de marcha a p exclusivo, formado pela
conexo, por meio de passarelas, das vias laterais junto s encostas. Ainda em relao
aos pedestres, Artigas incorporaria em sua proposta o projeto da Galeria de Pedestres
elaborado pela COGEP tendo como consultor o arquiteto Benno Perelmutter e apre-
sentado no incio de 1974. A projeo dessa galeria subterrnea aparece indicada em sua
16 Ibidem, p.38
260
Fig.295
Trecho entre o Parque Siqueira
Campos - Tnel Nove de Julho e
Viaduto 14 Bis.
Em cinza claro foram destacadas as
intervenes propostas.
[ARTIGAS, 1974.]
Fig.296
Trecho entre a Estao da Luz e a
Ponte Grande (Rio Tiet).
Em cinza claro foram destacadas as
intervenes propostas.
[ARTIGAS, 1974.]
261 O VALE COMO CONFLITO
planta do Trecho entre o viaduto 14 bis, Vale do Anhangaba e a Estao da Luz.
Pretende-se, a seguir, realizar uma anlise pormenorizada das propostas da primeira
etapa do trabalho buscando extrair dos poucos registros grcos disponveis o mximo de
informaes. Isto porque a escassez de documentos tem gerado freqentemente leituras
superciais ou demasiadamente subjetivas deste projeto.
A posterior reduo da abrangncia do estudo determinada pela EMURB, aps a con-
cluso da etapa inicial, e o conseqente abandono de boa parte das propostas esboadas,
torna ainda mais relevante esse levantamento.
Propostas para o automvel
Os croquis iniciais de Vilanova Artigas apresentados por Bucci
17
(1998) revelam preci-
samente sua interpretao da abrangncia da calha do Anhangaba. A avenida instalada no
fundo do vale s poderia ser compreendida como parte integrante do Sistema Y ao qual
pertencia, num eixo que se estendia do Rio Pinheiros at o Tiet.
Alinhado com os projetos municipais daquela poca, como o PUB, o PMI e o plano de
vias expressas da Secretaria de Transportes publicado em 1973
18
, Artigas prope transfor-
mar o eixo em uma via arterial expressa atravs da construo de algumas obras de arte
para a disciplina do trnsito.
19
As plantas gerais, impressas em publicao do estudo pela
revista Mdulo, eram acompanhadas pelas seguintes legendas:
Desenho Urbano: Eliminao de pontos de conito atravs de dispositivos que per-
mitam uxo contnuo.
Sistema Virio: Separar o trfego de pedestres do sistema de trnsito de veculos.
Eliminar converses esquerda, reticar o traado de vias.
O que observamos nas plantas dos trechos ampliados so propostas de trevos, alas,
pontes, viadutos, rebaixamentos e reticaes de vias em diversos pontos do eixo. As obras
mais importantes em cada trecho so:
17 BUCCI, 1998.
18 O referido plano foi elaborado
durante a gesto do prefeito J. C. de
Figueiredo Ferraz.
19 Trecho do memorial descritivo
que integrava a apresentao da
primeira etapa de desenvolvimento
do projeto.
262
Fig.297
Edio doTrecho entre o Viaduto
14 Bis e a Estao da Luz.
Em preto foram destacadas as
propostas para o automvel.
[ARTIGAS, 1974.]
263 O VALE COMO CONFLITO
1 - Trecho entre a Ponte Cidade Jardim (Rio Pinheiros) e a Av. So Gabriel:
a - criao de duas novas pontes sobre o Rio Pinheiros, uma no eixo da Rua Artur
Ramos, outra no eixo da Avenida Pres. Juscelino Kubitschek
b - abertura de trecho novo para reticao do eixo expresso entre a Rua Joo Cachoeira
e a Ponte Cidade Jardim
c - trevos de conexo nos cruzamentos da Av. Faria Lima com o eixo reticado e com a
Av. Juscelino Kubitschek
d - viaduto sobre a Av. Santo Amaro no eixo da Av. Juscelino Kubitschek
2 - Trecho entre a Avenida So Gabriel e o Parque Siqueira Campos:
a - ala de converso rebaixada para acesso Av. So Gabriel
b - rebaixamento das ruas Groenlndia, Estados Unidos e Lorena
c - trevo de conexo no cruzamento com a Av. Brasil
d - passarela sobre o eixo, junto Rua Jos Maria Lisboa
3 - Trecho entre o Parque Siqueira Campos, Tnel 9 de Julho e Viaduto 14 Bis:
a - viaduto ligando as ruas Manoel Dutra e Herculano de Freitas, passando sobre o
Viaduto Dr. Plnio de Queirz
b - deslocamento da Rua Dr. Plnio Barreto para junto do elevado, ligando a praa exis-
tente ao passeio
4 - Trecho entre o Viaduto 14 Bis, Vale do Anhangaba e a Estao da Luz:
Neste setor logicamente se concentra o maior nmero de propostas. As propostas vi-
rias neste trecho tm o objetivo maior de otimizar o funcionamento da rtula.
Neste sistema a atual rtula desempenha papel muito importante no s para a disci-
plina do Vale, cujo trnsito dever absorver como tambm para denir a marcha a p
no centro da cidade, em redor do Parque. A rtula dever ser aperfeioada com meca-
264
Fig.298
Edio doTrecho entre o Viaduto
14 Bis e a Estao da Luz.
Em preto foram destacadas as
propostas para o pedestre.
O arco esquerda a indicao da
Galeria de Pedestres.
[ARTIGAS, 1974.]
265 O VALE COMO CONFLITO
nismos colocados ao seu redor de forma a permitir um uxo de trnsito sem semfo-
ros ao mesmo tempo que garantam entradas e sadas estrategicamente distribudas.
20
Para isso so projetadas, nos cruzamentos da rtula com o eixo, as seguintes interven-
es:
a - no extremo sul, trs alas de ligao da Av. Nove de Julho com o viaduto de mesmo
nome e a extenso da Rua Avanhandava interrompendo a lvaro de Carvalho
b - no extremo norte, um conjunto de viadutos realizando a transposio da Av. Senador
Queirs sobre a Av. Prestes Maia e a conexo com as ruas Csper Lbero, Brigadeiro
Tobias, General Couto Magalhes e Av. Ipiranga.
5 - Trecho entre a Estao da Luz e a Ponte Grande (Rio Tiet):
a - rebaixamento da Av. Tiradentes no cruzamento com as ruas Joo Teodoro e Ribeiro
de Lima
b - re-congurao da Praa da Luz com a implantao de duas passarelas
c - implantao de quatro passarelas sobre a Av. Tiradentes eliminando assim semafo-
rizao para pedestres
d - rebaixamento da Rua Porto Seguro no cruzamento com a Av. Cruzeiro do Sul
Propostas para o sistema de nibus
Um das grandes diculdades do projeto era a organizao da operao das numero-
sas linhas de nibus que transitavam neste setor da cidade. Sabendo que a soluo para o
transbordo de passageiros deveria estar diretamente ligada soluo para a circulao de
pedestres, Artigas props a criao de um circuito segregado de marcha a p arrematado em
seus extremos norte e sul por duas grandes estaes. A Estao Bandeira seria implantada na
praa de mesmo nome e abrigaria o transbordo dos veculos no sentido Sul-Norte. A Estao
Pedro Lessa seria implantada sobre o vazio da praa homnima acrescida da rea criada com
20 Trecho do memorial descritivo
que integrava a apresentao da
primeira etapa de desenvolvimento
do projeto.
266
267 O VALE COMO CONFLITO
a demolio de parte dos edifcios localizados entre a Rua Capito Salomo e a Av. So Joo.
Entre os edifcios que seriam demolidos estava o da agncia central dos Correios.
Com esta disposio de estaes o trajeto proposto para as linhas seria sempre diame-
tral. Os veculos passariam pelo centro ao realizar o percurso Norte-Sul, ou seu inverso, mas
nunca teriam o centro como destino nal. Com esta estratgia seria possvel eliminar uma
enorme quantidade de pontos e pequenos terminais espalhados pelas ruas, alm de concen-
trar a espera e chegada de passageiros.
Propostas para o pedestre
(...) pareceu-nos necessrio reconquistar para o pedestre e s para ele, as vias laterais
de trfego que esto nas encostas do Vale. Organizar dois largos passeios interligados
por passarelas e associados a mobilirio de lazer a programar.
21
A partir da implantao das duas estaes descritas acima era proposto um sistema
elevado em relao avenida, no nvel da Rua Formosa, para a circulao de pedestres. Este
sistema, composto de passarelas-passeio paralelas ao eixo, ligadas por passarelas transver-
sais, permitia o deslocamento de uma estao outra e realizava as conexes destas com
as ruas existentes, ora em nvel, ora atravs de rampas e escadas. A boca inferior da Galeria
Prestes Maia poderia ser acoplada ao sistema assim como pavimentos intermedirios de
alguns edifcios existentes.
No ca muito claro atravs dos desenhos disponveis, o que aconteceria sob esses pas-
seios elevados. O que vemos nas perspectivas so trechos de jardins e alguns acessos de
veculos.
Outro elemento relacionado circulao de pedestres que encontramos nos desenhos
de Artigas um projeto, elaborado no mesmo ano pela EMURB, que foi incorporado ao
plano. O projeto se chamava Sistema de Galerias para Pedestres.
No incio de 1974 a EMURB recebeu do consultor Benno Perelmutter o estudo prelimi-
nar para a implantao de um sistema de tapetes rolantes subterrneos para o transporte em
21 Trecho do memorial descritivo
que integrava a apresentao da
primeira etapa de desenvolvimento
do projeto.
Fig.299
Perspectiva do sistema de marcha a
p nas proximidades do Viaduto do
Ch, em direo sul-norte.
[MDULO, Jul/1975. ARTIGAS,
Vilanova. Projeto de Reorganizao
do Parque do Anhangaba e sua
extenso pela via arterial norte-sul.]
Fig.300
Edio de pormenor doTrecho
entre o Viaduto 14 Bis e a Estao
da Luz.
Em preto foi destacado o sistema
de marcha a p proposto para o
vale entre os dois novos terminais
de nibus.
[ARTIGAS, 1974.]
268
269 O VALE COMO CONFLITO
massa de pedestres na rea central de So Paulo. A proposta apresentada previa o aproveita-
mento dos estrados inferiores dos viadutos Nove de Julho, Jacare e Dona Paulina, previstos
inicialmente por Prestes Maia para abrigar o metropolitano.
(...) o viaduto Dona Paulina, o viaduto Jacare e o Nove de Julho, dispem, agora, de
considervel espao no seu segundo nvel.
Se essas trs reas fossem interligadas e estendidas num extremo at a Praa Joo Men-
des e Praa da S, e no outro at a Av. So Luiz e Praa da Repblica, poderia ser criada
uma passagem para pedestres, semicircular, de um quilmetro de comprimento, com
capacidade para comportar instalaes automticas para deslocamento de pedestres.
A rea poderia receber ar condicionado, lojas, restaurantes e outras instalaes para o
atendimento de pedestres, trazendo maior receita para o municpio e servindo melhor
as reas em apreo.
22
O projeto foi amplamente divulgado e publicado atravs da imprensa e demais meios
de comunicao. Depois de feito um estudo de viabilidade nanceira, foi abandonado.
Alguns aspectos da primeira etapa do projeto
A elaborao deste projeto ocorre em um momento muito particular na carreira
de Vilanova Artigas e da histria recente do pas. O texto a seguir, da historiadora Rosa
Camargo Artigas, faz um relato preciso desse perodo.
A dcada de 70 inaugura-se com um projeto de desenvolvimento excludente e de ex-
panso econmica que os militares chamaram de milagre brasileiro. O Estado investe
em programas de obras pblicas com o objetivo de divulgar sua imagem e para saldar
compromissos com os setores empresariais e da elite que o apoiara. Entre outras reas,
a construo civil se expande e experimenta um dos perodos mais prsperos da his-
tria recente.
22 SO PAULO (cidade).
Coordenadoria Geral de
Planejamento. Galeria de Pedestres.
1974.
Fig.301
Perspectiva do vale a partir do
Viaduto do Ch. Ao fundo o Via-
duto Santa Egnia. Nas laterais
aparecem as plataformas elevadas
para pedestres.
[MDULO, Jul/1975.]
Fig.302
Ponto de vista de um pedestre du-
rante o percurso ao longo do vale.
[Folha de So Paulo, 16 de maio
de 1974.]
270
Fig.303
Vista do modelo tridimensional
da primeira etapa do projeto. Em
primeiro plano o terminal sobre a
Praa da Bandeira.
[ARTIGAS, 1974.]
271 O VALE COMO CONFLITO
(...)
Artigas vive, nesse momento, uma situao bastante peculiar. Impedido de manter suas
atividades como professor, dedica-se exclusivamente ao trabalho de prancheta. De um
lado sofre perseguies e ameaas, de outro chamado para realizar importantes obras
para o Estado. A exemplo do que ocorrera em 69, quando tem seus direitos cassa-
dos pela mesma autoridade que o contratou para projetar o Conjunto Habitacional
Zezinho Magalhes Prado, ao longo dos anos 70 isso parece repetir-se com alguma
freqncia.
(...)
Datam desse perodo muitos dos projetos de renovao urbana que, acompanhando os
planos de desenvolvimento formulados nos rgos de planejamento estatais, procuram
organizar o crescimento urbano possibilitado pelo crescimento econmico promovido
pelo milagre. A maior parte desses projetos, no entanto, no foi executada em parte
por conta da crise econmica que desmisticou denitivamente a aparncia de pro-
gresso e, em parte, porque defender os interesses da cidadania no era prioridade no
momento.
23
As anlises e observaes a respeito deste projeto devem sempre considerar a inuncia
desse cenrio sobre os rumos das decises. O prprio Artigas relatou isso de uma maneira
mais dramtica:
Depois de cassado, vivi a dcada de 70 cercado pelo medo. Desse perodo s me lem-
bro do medo. Terror que fez meus colegas calarem a boca na Universidade.
24
Em sua abordagem, Artigas mantinha, por um lado, uma postura coerente com as ini-
ciativas municipais ao incorporar e assumir como premissas, alguns princpios encontrados
no PUB e no plano de vias expressas de 1972, alm de projetos complementares como o da
Galeria de Pedestres. Por outro lado, ao expandir os limites do que poderamos considerar
como o recinto Anhangaba, Artigas realizava uma verdadeira inverso histrica. Os pla-
23 ARTIGAS, Rosa Camargo.
Trecho do texto Encruzilhadas
e caminhos: cinqenta anos de
histria presente no catlogo da
exposio A cidade uma casa.
A casa uma cidade -Vilanova
Artigas -Arquitecto realizada pela
Casa da Cerca em colaborao com
a Fundao Vilanova Artigas, em
Almada, Portugal, entre novembro
de 2000 e maro de 2001.
24 ARTIGAS, 1997. p. 33.
272
Fig.304
Vista do modelo tridimensional da
segunda etapa do projeto. Em pri-
meiro plano a Praa da Bandeira.
[MDULO, Jul/75.]
273 O VALE COMO CONFLITO
nos realizados at ento, abordavam o vale como um elemento isolado, anulando de partida
a possibilidade de incorporao de sua dimenso metropolitana como recurso de desenho.
O procedimento adotado tornava indissocivel a anlise do recinto, propriamente dito, e
a da rede metropolitana ao qual pertencia. Com este gesto, que era indito apesar de sua
aparente obviedade, Artigas abriu novos caminhos de investigao para a arquitetura e o
urbanismo em So Paulo.
Anos depois Artigas faria o seguinte comentrio a respeito desse projeto:
O projeto de reurbanizao do Vale do Anhangaba mais que um conjunto de pas-
sarelas. Ele prev a remodelao total do Vale. Tem, inclusive, o paisagismo do Burle
Marx. Seria a transformao daquela barbaridade de pedestres com veculos que exis-
te l. Um lugar que eu no posso atravessar, de carro ou a p, sem ser insultado: , seu
velho idiota!.
25
Segunda etapa do projeto
A apresentao da etapa inicial do plano no sensibilizou os tcnicos municipais e o es-
copo do estudo foi novamente restringido ao trecho entre o Viaduto Sta. Egnia e a Praa
da Bandeira. A proposta dos terminais teve de ser desvinculada da do sistema de marcha
a p e foi basicamente sobre este ltimo elemento que se baseou o desenvolvimento da se-
gunda fase do projeto.
A riqueza de relaes espaciais, presente na primeira verso, perdeu-se por completo,
reduzindo a proposta a um conjunto desarticulado de passarelas.
A estao Pedro Lessa foi projetada preliminarmente como um eventual complemento
ao conjunto. O paisagista Roberto Burle Marx foi adicionado equipe para realizar o dese-
nho de pavimentao dos passeios. As passarelas foram detalhadas at o nvel de antepro-
jeto executivo bsico, conforme consta nas pranchas, completando o conjunto de informa-
es necessrias para a realizao da licitao da obra.
25 ARTIGAS, 1997. p. 177.
274
275 O VALE COMO CONFLITO
O projeto nal, entregue prefeitura entre dezembro de 1974 e janeiro de 1975, conti-
nha as seguintes propostas:
A - Passarela Memria
Esta passarela isolada alm de realizar a travessia sobre a Av. Nove de Julho, ligando a
Rua Santo Antnio ao Metr Anhangaba e ao Largo da Memria, serviria como acesso
para o futuro Terminal Bandeira de nibus, que no se encontra no desenho de implanta-
o. Com 169 metros de comprimento e 10 metros de largura apresenta apoios centrais e
vos entre pilares de 45 metros. Sua estrutura mista, com arranques e apoios em concreto
armado e vos centrais em ao.
B - Passarela Formosa
A passarela Formosa, tambm isolada e tem 10 metros de largura por 80 metros de
comprimento com dois apoios e vo central de 52 metros. O mtodo construtivo similar
ao da passarela Memria e ao de diversas outras passarelas projetadas por Artigas para a
mesma EMURB a partir de 1972.
C - Passarelas Ramos de Azevedo / So Joo / Metr (So Bento)
As trs passarelas sobre a avenida, que complementam o conjunto de transposies
proposto neste projeto, se integram a outras duas longitudinais formando uma nica es-
trutura. Para sua implantao seria necessria a demolio de boa parte das construes
junto Avenida Prestes Maia localizadas entre o Largo de So Bento e a So Joo. Em re-
lao aos edifcios existentes, as passarelas longitudinais cariam a distncias entre dois e
sete metros.
Esta espcie de plataforma elevada possibilitaria a multiplicidade de percursos e sua
presena no vale se faria sentir de modo peculiar. Esse objeto ocuparia boa parte do vazio
que caracteriza aquele recinto estabelecendo novas relaes visuais com a avenida, com as
vias perpendiculares e com os espaos livres ao seu redor.
Seu complemento seria o Terminal Pedro Lessa como veremos a seguir.
Fig.305
Vista do modelo tridimensional da
segunda etapa do projeto.
[MDULO, Jul/75.]
Fig.306
Planta da segunda etapa do projeto.
Foram destacados, em cinza claro,
os elemento propostos.
[Biblioteca FAUUSP]
276
277 O VALE COMO CONFLITO
D - Estudo Preliminar do Terminal Pedro Lessa
O estudo para o Terminal (notar que antes havia se utilizado o termo estao) Pedro
Lessa foi apresentado como um anexo do projeto bsico das passarelas, o que evidencia a
falta de interesse por parte da prefeitura em levar essa obra adiante.
Sua implantao foi prevista ocupando o vazio da praa somado a outro vazio que
seria criado com a demolio de grande parte das construes existentes na quadra locali-
zada entre a Av. So Joo e a Rua Capito Salomo. Essas demolies incluiriam o edifcio
da agncia central dos Correios, fato que gerou muita polmica, dicultando bastante sua
aprovao.
Para a instalao do terminal, a malha viria deveria sofrer algumas modicaes como
a interrupo da Rua Capito Salomo, a pedestrianizao da Rua Abelardo Pinto (Beco
do Pioln) e o desvio da Rua do Seminrio com a demolio de algumas construes nessa
rea tambm.
O edifcio do terminal era resolvido em quatro pavimentos sob uma grande cobertura
retangular com 176 metros de comprimento por 125 metros de largura. No pavimento
trreo se localizavam exclusivamente as nove plataformas de embarque e desembarque com
aproximadamente 150 metros cada uma, totalizando cerca de 1350 metros lineares de pla-
taformas. O primeiro pavimento realizaria a comunicao das plataformas com a cidade
prolongando-se externamente atravs do sistema de passarelas e garantindo-lhes animao
e utilizao intensa. Para a ligao entre os dois nveis estava previsto um conjunto de 45
escadas alm de 14 rampas.
Nos dois pavimentos superiores eram instalados os programas de apoio.
E - Desenho das Caladas
O projeto continha ainda um novo desenho para o calamento dos passeios de todo o
vale, sob a direo do paisagista Roberto Burle Marx. A proposta apresentava a linguagem
caracterstica do renomado paisagista utilizando planos de mosaico portugus com as cores
de So Paulo.
Fig.307
Cortes e elevaes da plataforma
proposta.
[Biblioteca FAUUSP]
278
279 O VALE COMO CONFLITO
Consideraes a respeito da segunda etapa do projeto
Se olharmos com ateno para todo o processo de desenvolvimento deste Plano de
Reurbanizao do Vale do Anhangaba, veremos que suas propostas essenciais se perderam
na passagem da primeira para a segunda etapa, devido s imposies e restries por parte
da EMURB. O resultado nal do desenvolvimento do projeto nos deixa com a sensao de
oportunidade perdida.
Aps ter a abrangncia de seu plano reduzido a um mero conjunto de passarelas, o que
teria levado Artigas a prosseguir com seu desenvolvimento?
As circunstncias polticas descritas no incio deste trabalho poderiam congurar uma
justicativa, mas apenas parcial. Talvez o seguinte depoimento de Artigas ajude a responder
a essa pergunta.
Vejam que coisa curiosa: h um planejamento geral, a respeito do qual ningum fala,
mas no qual os pequenos planejamentos tem que ser inseridos. E o planejamento geral,
em todos os tempos e at hoje, de molde que a gente no se possa inserir. (...) O mal
que ns assumimos a responsabilidade de curar as feridas sangrentas de nossos meios
urbanos atravs de um planejamento isolado do planejamento geral e este, muitas ve-
zes, no coincide com o nosso. Isso no nos leva a um nvel maior de desnimo porque,
se no segurarmos com fora a pequena bandeira das possibilidades de mostrar, com
pequenos exemplos, o que poderia ser feito, certamente teremos que por de lado, logo
de sada, as nossas mais caras esperanas.
26
26 ARTIGAS, Joo Batista
Vilanova. Trecho do texto Um lugar
utopia, de 1975
Fig.308
Planta parcial com o padro de
desenho proposto por Burle Marx
para a pavimentao do vale. Tre-
cho Correio - Pedro Lessa.
[Biblioteca FAUUSP]
Fig.309
Vista do modelo tridimensional
da segunda etapa do projeto. Em
primeiro plano o Viaduto Santa
Egnia e a Praa Pedro Lessa.
[MDULO, Jul/75.]
280
Fig.310
Redesenho da plataforma proposta,
a partir do projeto original.
[Arquivo do autor]
Fig.311
Croquis do projeto apresentado
por Alison e Peter Smithson e
Sigmond para o concurso Berlin-
Haupstadt, 1958.
[SMITHSON, 1967.]
281 O VALE COMO CONFLITO
Fig.312
Redesenho da plataforma de pe-
destres proposta, conectada ao
Terminal Pedro Lessa.
[Arquivo do autor]
282
Fig.313
Terminal Pedro Lessa.
Planta do nvel das plataformas de
embarque e desembarque.
[Biblioteca FAUUSP]
Figs.314 e 315
Terminal Pedro Lessa.
Elevaes So Joo e Anhangaba.
[Biblioteca FAUUSP]
283 O VALE COMO CONFLITO
284
Fig.316
Planta esquemtica da Galeria de
Pedestres, projeto de Benno Perel-
mutter para a COGEP, incorporado
por Artigas em sua proposta.
[SO PAULO (Cidade) Coorde-
nadoria Geral de Planejamento.
Galeria de Pedestres. So Paulo,
1974.]
Fig.317
Charge a respeito do projeto publi-
cada no jornal ltima Hora, de 01
de dezembro de 1973
[S. PAULO (Cidade) COGEP, 1974]
285 O VALE COMO CONFLITO
Fig.318
Corte transversal pelo Viaduto
Nove de Julho.
[S. PAULO (Cidade) COGEP, 1974]
Fig.319
Corte transversal por uma das
estaes de embarque.
[S. PAULO (Cidade) COGEP, 1974]
286
287 O VALE COMO CONFLITO
Uma dcada de indecises da EMURB
Criada pela lei municipal n 7.670, de 24 de novembro de 1971, a EMURB - Empresa
Municipal de Urbanizao - teve como um de seus principais temas de trabalho durante sua
primeira dcada de existncia o Vale do Anhangaba. Ao longo dos anos 70 a instituio foi
responsvel por um impressionante processo de estudos e projetos para a rea que s se en-
cerraria com a realizao do concurso pblico em 1981. O que impressiona , por um lado,
a imensa quantidade de projetos realizados e, por outro, a inacreditvel falta de articulao
entre eles. O conjunto de propostas torna evidente a ausncia de uma linha clara de pensa-
mento sobre a cidade e tambm de foras polticas mais decisivas dispostas a empreender
qualquer ao mais concreta.
27
Os temas de projeto trabalhados pela empresa e pelos escritrios por ela contratados
eram basicamente dois: a Praa da Bandeira (travessia e terminal de nibus) e o cruzamen-
to Anhangaba e So Joo, com a incorporao eventual de questes secundrias. Alguns
estudos j vinham sendo elaborados desde antes da criao da empresa, durante os ltimos
anos da dcada anterior e os primeiros daquela.
No nal dos anos 60, o escritrio de arquitetura Croce, Aalo & Gasperini realizou
trs projetos executados para o vale: o Viaduto Dr. Eusbio Stevaux, prximo Praa das
Bandeiras em 1968, uma garagem com 800 vagas sobre a Praa da Bandeira e a controversa
passarela de pedestres implantada sob o Viaduto do Ch, ambas em 1969.
28
De 1968 a 1970, o mesmo escritrio, associado ao Escritrio Tcnico J. C. de Figueiredo
Ferraz
29
, desenvolveu vrias verses para um projeto de reformulao da Praa das Bandeiras
que previa a implantao de um gigantesco estacionamento, com um grande teatro pblico
e uma praa
30
. Nesse mesmo ano a equipe realizou um estudo de reformulao viria e pai-
sagstica do trecho do Vale do Anhangaba compreendido entre o cruzamento da Av. So
Joo e a Praa Pedro Lessa. As principais aes desse projeto consistiam na criao de uma
nova ala e de um viaduto sobre a praa, fracionando-a em quatro partes, e do redesenho
das bocas de acesso ao buraco do Adhemar, re-congurando os passeios e o leito carro-
vel. Os espaos residuais seriam transformados em jardins. Para a travessia da Av. So Joo
27 Esse momento coincide com o
perodo do golpe militar em que os
prefeitos da cidade eram nomeados
pelo governo estadual. Durante
a dcada de 1970 sucederam-se
na prefeitura Paulo Salim Maluf
(abr/69 - abr/71), Jos Carlos
de Figueiredo Ferraz (abr/71
- agos/73), Miguel Colasuono
(ago/73 - ago/75), Olavo Setbal
(ago/75 - jul/79) e Reynaldo de
Barros (jul/79 - mai/82). [www.
prefeitura.sp.gov.br (jan/2007)]
28 GASPERINI, Gian Carlo.
Arquitetura e Transportes. So
Paulo: FAUUSP, 1972 (Tese de
Doutoramento).
29 Ferraz seria nomeado prefeito
em abril de 1971.
30 Ainda em 1968, o escritrio
colaboraria para a destruio
do Parque Dom Pedro atravs
do projeto dos quatro viadutos
construdos para conectar a
Radial Leste e a Rangel Pestana. A
extenso dos viadutos totalizava
2000 metros lineares. Em 1969,
foram responsvei pelo projeto
do Viaduto So Carlos do
Pinhal, que desgurou o acesso
norte do Tnel Nove de Julho
e bloqueou consideravelmente
a vista do mirante sob o MASP.
[CROCE, AFLALO & GASPERINI
ARQUITETOS. 25 anos depois. So
Paulo, Pau Brasil, 1986.]
Fig.320
Passarela sobo Viaduto do Ch.
Croce, Aalo & Gasperini, 1969.
[GASPERINI, Gian Carlo. Arqui-
tetura e Transportes. So Paulo:
FAUUSP, 1972.]
Fig.321
Viaduto Dr. Eusbio Stevaux.
Croce, Aalo & Gasperini, 1968.
[GASPERINI, 1972.]
Fig.322
Passarela sobo Viaduto do Ch.
Croce, Aalo & Gasperini, 1969.
[CROCE, AFLALO & GASPERINI
ARQUITETOS. 25 anos depois. So
Paulo, Pau Brasil, 1986.]
288
289 O VALE COMO CONFLITO
Fig.323
Estudo de reformulao viria do
cruzamento Anhangaba e Av So
Joo e novo viaduto sobre a Praa
Pedro Lessa.
Croce, Aalo & Gasperini, 1970.
[Biblioteca FAUUSP]
Figs.324 e 325
Passarela So Joo (atirantada) e
Passarela Stanta Egnia (sob o
viaduto).
Croce, Aalo & Gasperini.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
Figs.326 e 327
Passarela So Joo.
PLURIC (Benno Perelmutter e
Oswaldo Correia Gonalves), 1973.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
290
Figs.328 e 329
Terminal Bandeira.
PLURIC (Benno Perelmutter e
Oswaldo Correia Gonalves), 1973.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
291 O VALE COMO CONFLITO
eram criadas duas galerias subterrneas para pedestres.
Um segundo conjunto de passarelas foi projetado pelos mesmos arquitetos, para as
travessias junto ao eixo da Av. So Joo e sob o Viaduto Sta Egnia. A soluo proposta se
constitua de duas passarelas sobre a avenida interligadas em nvel e com um possvel acesso
pela Ladeira de So Bento. Uma das passarelas seria instalada sob a projeo do viaduto; a
outra contaria com uma pesadssima estrutura atirantada apoiada em um nico ponto.
Em 1973 a empresa PLURIC, cujos diretores eram os arquitetos Benno Perelmutter e
Oswaldo Correia Gonalves, foi contratada pela Secretaria Municipal de Transportes para
elaborar os projetos de uma passarela de pedestres no cruzamento das avenidas So Joo e
Anhangaba e de um terminal de nibus na Praa da Bandeira.
A passarela proposta, era uma estrutura de concreto armado posicionada precisamente
no eixo da So Joo e os acessos seriam providos por quatro rampas em espiral e quatro
rampas longitudinais, com escadas nas pontas. O terminal foi assim descrito pelos autores:
um prdio de 20.000 m de rea construda, 7 m de altura, dois pavimentos, com um
imenso mezanino coberto e um jardim suspenso, de onde saem quatro passarelas para
pedestres. Ele inclui tambm o fechamento de alguns trechos de ruas do centro para os
carros, transformando-as em exclusivas para pedestres. E a construo de uma grande
calada em torno do prdio do Touring, que se uniria Ladeira da Memria.
O problema dos pedestres ser resolvido principalmente com a construo de cinco
passarelas. Quatro delas se ligaro parte de cima do prdio, uma plataforma de cerca
de 10.000 m com rvores e canteiros, ou seja um jardim a sete metros acima do nvel
da Avenida Nove de Julho. As passarelas serviro tanto para dar acesso ao terminal
como para a travessia de pedestres, passando pela plataforma-jardim.
31
Em meados de 1975, parte do corpo de tcnicos da EMURB desenvolveu uma seqncia
de estudos de travessias em subsolo junto Praa da Bandeira, provavelmente com a inten-
o de conjugar a construo da Estao Anhangaba do Metr com travessias pblicas e
ligaes com a praa e o terminal. Duas verses foram desenvolvidas. A primeira, uma pas-
31 Descrio dos autores includa
no caderno de estudos e projetos
no implantados fornecido como
base para os participantes do
concurso nacional de 1981.
292
Figs.330 e 331
Travessia subterrnea rasa junto
Praa da Bandeira.
EMURB, 1975.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
293 O VALE COMO CONFLITO
sagem rasa a pouco mais de 3 metros de profundidade, revelou-se invivel devido s inter-
ferncias com redes subterrneas de instalaes que corriam pela rea entre as cotas 0 e -7,5
metros. A segunda verso fugia dessas interferncias ao implantar-se na cota -10 metros,
o que determinava um nvel to baixo que para se obter condies de acesso confortveis,
seria necessrio que suas bocas fossem todas dotadas de escadas rolantes.
A planta resultava em uma gura tentacular, que ligava a Praa da Bandeira, o Largo
da Memria e a Rua do Ouvidor. Em ambas verses, eram previstas ao longo do percurso
aberturas para entrada de luz natural e jardins.
Argumentando problemas de custos, diculdades em relao segurana dos usurios
e ao controle e preveno de enchentes, a empresa abandonou o estudo da travessia em
subsolo e passou a estudar mais uma vez passarelas elevadas.
Foi retomada a idia da plataforma proposta pela PLURIC, inclusive com a eventual
incorporao de uma grande torre arrematando o extremo sul do vale, mas a incerteza em
relao permanncia do terminal de nibus, programa que estruturava a idia da plata-
forma, enfraquecia muito a proposta. Sua simplicao gerou o projeto da passarela em
ferradura, estrutura que alm de realizar o percurso Memria-Bandeira-Ouvidor, seria as-
sociada a um conjunto de cinco novos edifcios que arrematariam empenas cegas existentes
na rea
32
e animariam a passarela. Esse aspecto tornava o projeto interessante ao associar a
travessia pblica de pedestres a novos equipamentos da cidade.
No ano de 1976, uma verso reduzida da plataforma proposta por Artigas junto praa
Pedro Lessa foi estudada. Um avano em relao proposta original era a associao desse
percurso elevado a novos edifcios junto avenida. Assim como havia sido proposto na
passarela em ferradura, este circuito de passarelas seria animado por diversos programas
conferindo um novo sentido para o nvel elevado. A possibilidade de estabelecer uma co-
nexo direta e em nvel com a Estao So Bento do Metr era outro fator que enriquecia a
proposta. Sua principal decincia era o grande nmero de desapropriaes e demolies
que se faziam necessrias para acomodar as passarelas e construir os novos edifcios.
Em 1977, uma nova alternativa passou a ser estudada. A travessia de pedestres junto
32 Trs deles seriam construdos
na quadra adjacente ao Largo
da Memria e nova estao
do Metr. Esse mesmo tema
de projeto foi trabalhado por
lvaro Puntoni em Estruturas
habitacionais na rea central de So
Paulo: um ensaio de ocupao de
vazios na Ladeira da Memria. So
Paulo: FAUUSP, 1998 (Dissertao
de Mestrado).
294
Figs.332 e 333
Travessia subterrnea profunda
junto Praa da Bandeira.
EMURB, 1975.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
Fig.334
Esboo da proposta de uma plata-
forma sobre a Praa da Bandeira
ligada a uma torre de servios.
EMURB.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
Figs.335 e 336
Planta dapassarela em ferradura
e pormenor da quadra ao lado do
Largo da Memria, que receberia a
construo de uma srie de edif-
cios arrematando as empenas cegas
do miolo da quadra.
EMURB.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981.]
295 O VALE COMO CONFLITO
296
Figs.337, 338 e 339
Sistema de passarelas articulado a
novos edifcios.
EMURB, 1976.
[Termo de referncia do Concurso
Anhangaba, 1981 (perspectivas) /
Arquivo EMURB (planta)]
297 O VALE COMO CONFLITO
ao cruzamento da So Joo seria agora subterrnea, encaixada entre o piso da avenida e
a cobertura do buraco do Adhemar. Deste modo ela no precisaria ser muito profunda
e tampouco se conguraria como um tnel, pois durante o percurso o pedestre cruzaria
sobre a via da passagem inferior. Um trecho caria ao ar livre, criando uma espcie de va-
randa que proporcionaria luz e ventilao natural. A passagem teria a largura da So Joo e
conguraria um grande salo, com dimenses que permitiriam acolher outras atividades de
uso pblico alm da travessia. Esta alternativa teria sido descartada,
(...) devido ao custo e complexidade das obras, s interferncias com redes subter-
rneas de servios pblicos e, principalmente, a conitos do canteiro de obras com a
circulao de veculos e pedestres, muito intensa na rea (...).
33
Aps vrios anos desenvolvendo estudos e contratando projetos, no havia se chega-
do, no mbito do poder municipal, a uma concluso em relao s obras no Anhangaba
e nenhuma obra relevante havia sido executada. A partir da posse do prefeito Reynaldo
de Barros
34
, em julho de 79, a empresa passou a ser pressionada. Nestor Goulart Reis
Filho, que era o Vice-Presidente da EMURB desde 1975, assumiu a Presidncia. Em agos-
to desse mesmo ano Paulo Julio Valentino Bruna foi nomeado Diretor de Planejamento
35
.
Alguma posio deveria ser tomada. No segundo semestre de 1980 apresentado o Projeto
Anhangaba.
36
A to aguardada sntese de todo o processo descrito acima foi uma grande decepo. As
idias mais interessantes que haviam surgido ao longo de tantos projetos foram deixadas de
lado e o partido adotado se resumia a um conjunto desarticulado de seis novas passarelas.
Em pontos crticos o passeio seria alargado para receber as rampas e escadas de acesso;
estaes abrigadas de nibus e trleibus se distribuiriam ao longo da avenida. O posiciona-
mento das travessias era muito prximo daquele proposto por Artigas na verso nal de seu
projeto, assim como o desenho das passarelas.
O achatamento arquitetnico que levou ao Projeto Anhangaba no agradou a nin-
33 Caderno de estudos e projetos
no implantados fornecido como
base para os participantes do
concurso nacional de 1981.
34 Barros foi nomeado pelo ento
governador do estado, Paulo Maluf.
35 Paulo Bruna permaneceu no
cargo at abril de 1983.
36 A equipe da EMURB
responsvel pela elaborao
desse projeto era formada pelos
arquitetos Paulo Bruna, Domingos
Theodoro de Azevedo Netto e
Paulo Srgio de Souza. O escritrio
Roberto Rossi Zuccolo Engenharia
Civil e Estrutural Ltda. foi o
responsvel pela elaborao do
projeto executivo.
298
Figs.340 a 345
Travessia subterrnea encaixada
entre o nvel da avenida e o topo da
passagem inferior.
Corte longitudinal, corte transver-
sal, plantas e perspectivas.
EMURB, 1976.
[Arquivo EMURB]
299 O VALE COMO CONFLITO
300
Fig.346
Perspectiva geral do Projeto
Anhangaba. EMURB, 1980.
[A CONSTRUO SO PAULO
n 1707, 27/10/80. p.8.]
301 O VALE COMO CONFLITO
gum. Uma vez divulgado, despertou um descontentamento geral tornando-se assunto de
interesse pblico intensamente discutido atravs da imprensa
37
.
(...) embora os arquitetos da Emurb sejam prossionais de alto nvel, nos parece que
foras inerentes ao projeto acabaram formulando um sistema imediatista. Ou seja: h
atropelamentos em seis ponto do Vale do Anhangaba, logo devem ser criadas seis
passarelas, uma em cada local crtico e o problema est resolvido. (...) Uma soluo
pragmtica como a que foi adotada, passa por cima do Vale do Anhangaba como
espao caracterstico, representativo, da cidade de So Paulo.
38
(...) a proposta apresentada pela Emurb a soluo possvel e, pelas discusses ha-
vidas, no agrada nem aos autores da proposta nem a quem se dispes a analis-la. A
todos agradaria mais se a questo da transposio do vale fosse resolvida por passagens
subterrneas, praticamente inexeqvel (...).
39
Nesse contexto, a proposta no poderia ser levada adiante, mas a cidade demandava
urgentemente uma resposta. Um concurso pblico nacional apareceu como uma boa alter-
nativa.
(...) durante dez anos a EMURB percorrera, seno todas, muitas diferentes alternati-
vas e abordagens para a questo do Anhangaba, mas por alguma razo faltava-lhe o
juzo, a deciso. Ento, uma comisso julgadora soberana que escolhesse, entre os pro-
jetos de grandes arquitetos de todo o pas, uma proposta vencedora num julgamento
inapelvel, investiria o resultado de uma autoridade que preencheria perfeitamente
essa necessidade, apesar de se desconhecer qual seria o resultado.
40
Se, por um lado, a jornada da EMURB at aquele momento poderia ser considerada um
grande fracasso, por outro, fora do mbito municipal foi sendo concebido implicitamente
um partido de projeto que terminaria se armando atravs do concurso.
37 O jornal Folha de So Paulo
chegou a criar uma coluna diria
chamada O Vale em Discusso,
na qual foram publicados
depoimentos de tcnicos, polticos,
artistas de projeo e usurios do
centro em geral.
38 Depoimento de Csar B.
Loureno, ento presidente do
IAB-SP. A Construo So Paulo n
1707, de 27 de outubro de 1980.
p.11.
39 Depoimento do arquiteto Paulo
Bastos. A Construo So Paulo n
1707, de 27 de outubro de 1980.
p.12.
40 BUCCI, 1998. p.95.
302
303 O VALE COMO CONFLITO
A nosso ver, essas paralelas so perigosssimas porque logo estaro justicando outras
e com o excesso de imaginao que impera na cidade, logo estar algum sugerindo
seja o vale recoberto por uma imensa laje de concreto armado, embaixo da qual cor-
ram velozmente os automveis e, em cima, nova rea disponvel para atividades vrias,
como se j no nos bastasse a Praa Roosevelt.
41
38 LEMOS, Carlos. Folha de So
Paulo, de 30 de novembro de 1980.
Fig.347
Planta geral do Projeto Anhanga-
ba. EMURB, 1980.
[Arquivo EMURB]
Pximas seis pginas:
Fig.348
Passarela Rua Santo Antnio - Rua
lvaro de Carvalho.
Fig.349
Passarela Praa das Bandeiras - Rua
do Ouvidor.
Fig.350
Passarela Rua Dr. Falco - Rua
Formosa.
Fig.351
Passarela Praa Ramos de Azevedo
- Rua Lbero Badar.
Fig.352
Passarela Av. So Joo - Rua Lbero
Badar.
Fig.353
Passarela Praa Pedro Lessa - Largo
So Bento.
[Arquivo EMURB]
304
305 O VALE COMO CONFLITO
306
307 O VALE COMO CONFLITO
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309 O VALE COMO CONFLITO
310
311 O VALE COMO CONFLITO
Concurso Anhangaba [1981]
Em fevereiro de 1981 foi lanado o edital do Concurso Pblico Nacional para
Elaborao de Plano de Reurbanizao do Vale do Anhangaba, promovido pela prefeitu-
ra, atravs da EMURB, em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento
de So Paulo. O regulamento solicitava aos concorrentes a elaborao de uma proposta
de carter abrangente, envolvendo circulao viria e de pedestres, uso dos espaos pbli-
cos, equipamentos locais e metropolitanos, regulamentao do uso do solo e valorizao e
preservao de bens tombados. As propostas deveriam ser apresentadas em trs pranchas
formato A0 e entregues at 18 de maio do mesmo ano.
Como subsdio para a elaborao dos projetos, o IAB-SP realizou um ciclo de debates
organizado em quatro grupos de trabalho: Programa para o Vale do Anhangaba, Fator
Econmico, Consulta Comunidade e Urbanismo, planejamento e Interveno Tcnica.
A partir desses seminrios foram elaborados relatrios contendo opinies e contribuies de
representantes de diversos setores tcnicos e sociais. Para o presidente do IAB-SP, aquele seria
o evento mais importante a ser realizado pelo instituto no pas desde o concurso de Braslia.
O consultor tcnico designado foi Benedito Lima de Toledo e o jri foi composto pe-
los arquitetos Eduardo Corona (presidente), Edgard Graeff, Carlos Maximiliano Fayet, Jon
Adoni Maitrejean e Fernando Chacel. Inscreveram-se 155 equipes e 93 propostas foram
submetidas a julgamento. Dessas, 34 foram selecionadas para uma segunda fase de apre-
ciao, agrupadas pelo jri em trs categorias: solues areas, solues subterrneas e
outras solues. Alm dos prmios para as trs melhores propostas, o jri concedeu cinco
menes honrosas. Para subsidiar a discusso que se pretende levantar neste trabalho, sero
analisados e discutidos apenas os trs primeiros colocados.
Os projetos premiados apresentavam basicamente o mesmo partido: segregao dos
uxos de veculos e pedestres atravs do rebaixamento da avenida e congurao de uma
esplanada em sua cobertura. Esse era o partido do jri e de boa parte das equipes partici-
pantes; esse era o projeto temido por Carlos Lemos; esse foi o partido que se originou a
partir dos estudos da EMURB ao longo dos anos 70. Sua escolha era inevitvel.
Fig.354
Levantamento planialtimtrico
fornecido aos participantes do
concurso.
[Bases do Concurso Anhangaba,
1981.]
Fig.355
Diagrama, encontrado em edio
do nal dos anos 60 da revista
francesa Urbanisme, sintetizando a
premissa bsica que deveria nor-
tear os projetos urbanos naquele
momento.
[Revue Urbanisme, anos 60.]
312
313 O VALE COMO CONFLITO
Reconstituir o raciocnio que levou a essa soluo no difcil. Era consensual que as
travessias de pedestres elevadas no eram desejveis. As travessias subterrneas s eram vi-
veis a partir do remanejamento das instalaes existentes. Muitas dessas redes eram trans-
versais ao vale, porm a mais determinante de todas era longitudinal: a canalizao do rio.
Isso quer dizer que uma grande obra subterrnea paralela ao eixo do vale e conseqente-
mente da avenida, deveria ser necessariamente executada. A soluo mais bvia era associar
a nova canalizao e a avenida em uma nica ao, liberando toda a superfcie do vale da
presena de automveis. Feito isso, restava apenas decidir o que fazer com as dezenas de
milhares de metros quadrados de esplanada construdos.
O projeto vencedor, elaborado pela equipe liderada por Jorge Wilheim e Rosa Klias
42
,
apresentava como primeiro objetivo, criar um espao novo, exclusivo para os pedestres.
Um espao livre, que jamais em sua histria havia pertencido plenamente a eles. Livre das
cheias do rio, das plantaes de ch, das mulas e agora dos automveis, o vale nalmente
poderia se transformar em um espao de encontro, de repouso, de gozo, de usufruto e per-
manncia.
43
Elgson Gomes
44
, autor do projeto segundo colocado, propunha o retorno da natureza
ao nico espao disponvel no centro da cidade capaz de conter as propores de um par-
que propriamente dito. A desgurao paulatina do ambiente do vale seria remediada
pelo retorno dos atributos da natureza, constitudos pelo movimento das guas nas fontes,
pelos jardins oridos e pela vegetao exuberante. No trecho nal de seu memorial, des-
tacava mais uma vez a necessidade e a viabilidade do retorno, to amplo quanto possvel,
da natureza para a intimidade da vida do Parque do Anhangaba e conseqentemente da
vida da cidade.
Com menos nfase, essa viso pode ser encontrada tambm no discurso da equipe clas-
sicada em terceiro lugar.
45
Argumentava-se que o vale tinha deixado de ser o stio natural
que era e o parque que foi, para se transformar numa via expressa.
46
Segundo o memorial descritivo
da proposta, a disposio dos uxos deveria ser a seguinte: O pedestre na superfcie, natural condi-
o junto ao espao fsico e ao verde nascendo do cho e no articialmente construdo sobre lajes.
O veculo em nvel inferior com uxo contnuo.
39 Arquitetos: Carmem Lydia Silva,
Jamil Kfouri, Jonas Birger, Jorge
Wilheim, Marcelo Martinez, Maria
Lucinda Aguiar, Michel Gorski
e Rosa Glena Klias. Consultores:
Mario Franco, Julio Cerqueira
Csar, Neuton Karassawa,
Francisco Luis Costa, Norberto
Chamma e Jorge Kayano.
40 Todos esses adjetivos foram
utilizados no memorial do projeto
para descrever a imagem que se
propunha para o vale.
41 Elgson Ribeiro Gomes, Pricles
Varella Gomes, Carlos Guilherme
Gloor, Heitor Carlos Moreira Filho,
Maria Luiza Gomes e Orlando do
Amaral Rodrigues.
42 Arquitetos: Paulo Bastos,
Siegbert Zanettini, Jos Costa
Filho, Newton Massafumi Yamato,
Maria de Ftima Arajo, Roberto
Israel Saru, e Mirthes baf.
Colaboradores: Miriam Lobel,
Vanderlei Nunes Collange, Antnio
Brazo Rodrigues, Jos Antonio
Henrique e Wagner Amodeo.
Consultores: Carlos Nassi, Ana
Lucia Brasil, Walter Vaccaro,
Aluisio Leite e Luis Dvila.
Fig.356
Pojeto vencedor.
Prancha contendo a planta geral e
o resumo das propostas.
[Arquivo EMURB]
314
315 O VALE COMO CONFLITO
Reiteradamente justicavam-se propostas com o pretexto de recuperar o ambien-
te degradado pelos automveis ou devolver cidade o seu parque perdido. Argumentos
desse tipo eram falsos e tinham o objetivo de caracterizar o espao proposto como uma
anttese do existente naquele momento. Recuperar o qu? Devolver o qu? No se podia
armar que o Anhangaba tivesse se cristalizado em uma nica imagem e que esta se per-
dera. O que a histria acumulava era uma sucesso de imagens transitrias, representativas
de momentos distintos e em permanente mutao.
na construo dessa imagem para o vale, na pretensa interpretao de quais se-
riam os verdadeiros anseios da populao em relao ao seu sentido, que residia o principal
problema desses projetos. Ao levantar atributos que caracterizassem uma situao diame-
tralmente oposta que vivia a cidade naquele momento, apelava-se para a seduo fcil de
uma promessa redentora. Realizava-se uma demonizao do automvel, como se por trs
dos volantes no houvesse pessoas, para justicar um partido predeterminado.
Outro aspecto problemtico que esse partido colocava era a impossibilidade de re-
baixar a avenida antes de se passar sobre a Estao Anhangaba do Metr, que j estava
em obras. Isto determinava que o prolongamento sul da esplanada no poderia se estender
muito alm da projeo do Viaduto do Ch, excluindo dessa maneira um trecho signica-
tivo do recinto, inclusive a Praa das Bandeiras. Com isso se operava uma drstica reduo
fsica do que poderia se qualicar como o recinto do Anhangaba. Se a grande praa era o
que simbolizava e conferia as novas virtudes daquele espao, tudo o que se localizava fora
dela era relegado a um segundo plano. O mesmo acontecia, de uma maneira menos drsti-
ca, com o extremo norte do vale.
Dez anos se passaram entre o resultado do concurso e a inaugurao do novo vale.
Outros quinze desde a inaugurao at a presente data. Os desdobramentos do projeto, sua
repercusso e seus efeitos o que ser discutido no prximo captulo.
43 A Construo So Paulo n 1751,
ago/1981. p.16.
Pojeto vencedor.
Diagramas temticos elaborados
para o concurso com os seguintes
ttulos:
Fig.357
Trfego a Acomodar
Fig.358
Valores Paisagstico-Culturais a
Preservar
Fig.359
Programa Proposto
Fig.360
Interferncias a Considerar e
Conitos a Resolver
[Arquivo EMURB]
316
317 O VALE COMO CONFLITO
Fig.361
Pojeto vencedor.
Perspectiva com a Praa para
comcios e eventos pblicos em
primeiro plano.
[Arquivo EMURB]
Fig.362
Pojeto vencedor.
Perspectiva mostrando a ala viria
que permitiria o acesso do tnel
Av. So Joo, posteriormente
descartada.
[Arquivo EMURB]
Fig.363
Pojeto vencedor.
Planta da soluo apresentada para
o Terminal Bandeira.
[WILHEIM, Jorge. Espaos e Pala-
vras. So Paulo: Projeto, 1985. p.89]
318
319 O VALE COMO CONFLITO
Figs.364 e 365
Segundo Colocado.
Plantas da etapa inicial e da etapa
nal de implantao do projeto.
[Suplemento especial da Revista
Projeto 31, Jul/1981.]
Fig.366
Segundo Colocado.
Vista do modelo tridimensional.
[Suplemento especial da Revista
Projeto 31, Jul/1981.]
320
321 O VALE COMO CONFLITO
Fig.367
Terceiro Colocado.
Perspectiva com o Viaduto Santa
Egnia em primeiro plano
Fig.368
Terceiro Colocado.
Diagrama de setorizao.
Fig.369
Terceiro Colocado.
Esquema do sistema de execuo
do tnel.
Fig.370
Terceiro Colocado.
Perspectiva da praa proposta.
Fig.371
Terceiro Colocado
Planta geral.
[Suplemento especial da Revista
Projeto 31, Jul/1981.]
322
323 O VALE COMO RESDUO
1 Das acepes de resduo
encontradas nos dicionrios mais
populares da lngua portuguesa, a
que mais se aproxima do sentido
pretendido aqui a seguinte:
Parte de um corpo, imprpria
para consumo ou utilizao.
(HOUAISS)
captulo 05
o vale como resduo
1
324
325 O VALE COMO RESDUO
procura de um sentido
A inaugurao do novo Anhangaba foi marcada por uma grande festa, realizada em 25
de janeiro de 1992
2
, dia do aniversrio da cidade, e contou com a apresentao de Caetano
Veloso para um pblico estimado em 50 mil pessoas. Encerrada a festa, varridos os bales
furados e os sacos de pipoca vazios, um grande silncio invadiu o vale. Se o tempo do coni-
to havia sido superado, um novo signicado para aquele espao precisaria ser denido. At
os dias de hoje, quinze anos aps sua inaugurao, nenhum tipo de apropriao conseguiu
imprimir um novo carter quele recinto.
O insucesso do projeto, do ponto de vista da criao de um espao pblico devidamente
apropriado pela cidade, fez com que, nos ltimos anos, comeassem a ser aventados novos
planos de recongurao da praa e de refuncionalizao do vale. Antes de questionar
a pertinncia dessas propostas, o simples fato de existirem revela que a questo real. No
entanto, o modo como essas crticas so estruturadas, e os argumentos que utilizam, per-
mitem ver que as relaes de causa e efeito dos problemas alegados ainda no foram bem
assimiladas.
A impresso que se tem que o projeto implantado totalmente descolado do discurso
utilizado para justic-lo. Se, por um lado, a obra resolveu o problema dos atropelamentos
e melhorou minimamente o desempenho virio do Sistema Y, por outro, empobreceu o
espectro de relaes urbanas que caracterizavam o vale e criou um imenso espao residual
que no agregou novos valores area central. a partir dessas observaes que se procura
justicar as propostas mais recentes de interveno.
2 As obras foram iniciadas em
janeiro de 1986, durante a gesto
do prefeito Jnio Quadros, e
concludas em dezembro de 1991,
pela prefeita, Luiza Erundina. A
inaugurao ocial aconteceria em
janeiro de 1992.
326
327 O VALE COMO RESDUO
O Novo Anhangaba
Do momento em que foi divulgado o resultado do concurso, at a festa de inaugura-
o da obra, dez anos se passaram. Ao longo do desenvolvimento do projeto e durante sua
execuo, alteraes importantes foram feitas. O espao, como ele foi construdo, apresenta
uma srie de contradies em relao ao que supostamente se pretendia. Esse conjunto de
contradies desmonta a estrutura do espao pblico proposto e permite compreender, em
parte, as razes do seu fracasso.
Na dcada de 90, o novo Parque do Anhangaba acrescentou ao Centro mais um
exemplo de espao urbano destrudo em nome da circulao viria. Nesse caso, a mag-
nitude do conito pedestre-automvel serviu de justicativa e conduziu a interveno.
A imensa laje recobre o tnel e garante a circulao com padro de via expressa para
o intenso uxo de veculos que corta o Centro no eixo norte-sul. (...) O espao resul-
tante correspondendo cobertura do sistema virio no esconde a impotncia de uma
praa cujo programa apia-se exclusivamente nas questes que marcam as relaes
conitantes (...) Assim, uma vez enfrentado o problema e separadas as funes ve-
culos em baixo e pedestres em cima, ocorreu a indesejvel inundao de espao que
carregou consigo a fora articuladora de espaos, funes e smbolos do antigo Vale
do Anhangaba.
3
Em sua anlise sobre o Anhangaba atual, Bucci argumenta que o partido adotado re-
sultou numa anulao de suas escalas, a local e a metropolitana.
As duas dimenses (...) so interdependentes. Ele ganha escala metropolitana na mes-
ma medida em que existe como local reconhecvel para a metrpole. Dessa relao (...)
advm o seu carter simblico, o carto postal de So Paulo, como elemento que lhe
confere identidade.
3 MEYER, Regina Prosperi. A
construo da metrpole e a eroso
do seu Centro. Apud Revista Urbs
n14, Set-Out/1999. p.33.
Fig.372
O Vale do Anhangaba hoje.
[Arquivo do autor]
328
329 O VALE COMO RESDUO
No Anhangaba atual essas duas dimenses se interferem destrutivamente e se anu-
lam. Isso decorre da opo pelo tnel, que rouba da metrpole a (sua) percepo (...)
e, inversamente, rouba dele a dimenso metropolitana. Por isso, com a implantao
desse projeto, a dimenso simblica metropolitana do Anhangaba deixou de existir
por completo.
4
Considera ainda, que a praa criada sobre a laje que cobre a avenida, ao contrrio do
que defendiam seus autores, se constituiria num espao anticvico ao apartar da vida coti-
diana da metrpole o local onde, supostamente, esta deveria se manifestar.
(...) o espao do exerccio da cidadania a cidade em todas as suas manifestaes,
inclusive, ou principalmente, aquelas vitais ao seu funcionamento e produo (...).
Considerando isso, h uma contradio imensa no Anhangaba atual. A praa para
eventos e manifestaes pblicas um espao especializado e isolado da vida da cida-
de. Pois a avenida rebaixada em tnel e o patamar onde esto implantados o Centro
Velho e o Centro Novo no tomam conhecimento do que se passa na laje que tampa
o rio de automveis l embaixo. Nessas condies, tornou-se o espao da obedincia e
no da contestao, ou o espao do isolamento e no da manifestao.
O episdio exemplar (...) foi o comcio das Diretas J, quando se reuniram ali cerca
de um milho de pessoas para interferir na histria de um pas. Aquelas pessoas blo-
queavam completamente o Sistema Y, o lugar era estratgico. Repeti-lo hoje, naquele
espao sem relao com o funcionamento da cidade, seria prova de ingenuidade, quan-
do menos.
5
Outras contradies do projeto podem ser claramente apontadas. Em publicao
6
de-
dicada inaugurao do vale, Rosa Klias e Jamil Kfouri, co-autores do projeto, armam
que as principais portas do Anhangaba eram as duas estaes do Metr, So Bento e
Anhangaba, e a Avenida So Joo. O desenho proposto, no entanto, no responde a essa
armao. A estao Anhangaba, em relao praa proposta, ca completamente iso-
4 BUCCI, 1998. p.101.
5 BUCCI, 1998. p.103.
6 Revista Arquitetura e Urbanismo
n42, jun/jul 1992.
Fig.373
Pormenor da planta geral do proje-
to vencedor do concurso.
[Arquivo EMURB]
Fig.374
Insero da planta do projeto
executado sobre a base da planta
anterior.
[Fonte das bases: Arquivo EMURB]
330
331 O VALE COMO RESDUO
lada. Uma estreita calada, junto Rua Formosa, a nica ligao oferecida. A Estao So
Bento no teve melhor sorte. Os pedestres que dali se dirigem ao vale, so recebidos pela
ala de retorno sobre a extremidade norte do tnel, o nal da laje, e mais uma vez devem
passar por uma calada relativamente estreita antes de chegar praa.
Quando observamos como resolvida a terceira porta, essa contradio ainda mais
explcita, quase irnica. Entre todas as decises de desenho tomadas durante o desenvolvi-
mento do trabalho, a mais questionvel, quase absurda, provavelmente a interrupo do
cruzamento da Avenida So Joo atravs da implantao, precisamente em seu eixo, de um
extenso canteiro, com jardins e espelhos dgua, e um pequeno espao rebaixado, a Praa
do Caf
7
. Estes elementos, alm de interromper visualmente o eixo da avenida, atravancam
o cruzamento no ponto do vale onde ele mais solicitado. Em dias movimentados, perce-
be-se nitidamente a linha de pedestres cruzando o vale, se transformar em um arco, que
contorna os obstculos e retoma, resignada
8
, o caminho desejado.
O trecho da laje posicionado em frente Praa Ramos de Azevedo caracterizava-se no
projeto do concurso como Praa para comcios e eventos pblicos. Na soluo executada,
o nome permaneceu, mas seu desenho foi completamente modicado. Onde antes estava
previsto espao livre para a acumulao de pblico, foi instalado um enorme canteiro ajar-
dinado, sucientemente elevado como para indicar que ali pessoas no so bem-vindas, e
um conjunto de pequenas arquibancadas com uma linguagem referenciada aos projetos de
Lawrence Halprin.
9
A praa de eventos no tem como receber eventos e as pessoas no tem
onde car.
Alteraes no sistema virio, realizadas durante o desenvolvimento do projeto, termina-
riam por inviabilizar a Praa Pedro Lessa da forma como havia sido proposta. O dimensio-
namento nal do terminal de nibus, o desenho da ala de retorno sobre a boca do tnel
e sua ligao com as ruas do Seminrio e Capito Salomo, reduziram a rea dessa praa a
um tero do que havia sido prevista, impossibilitando sua utilizao como rea de lazer.
Durante alguns anos funcionaram escadas rolantes que ligavam as paradas para nibus
e txis que existem no nvel do tnel aos nveis superiores. Longe de constituir uma conexo
espacialmente interessante, esse conjunto oferecia uma melhor acessibilidade para um n-
7 O espao nunca funcionou
propriamente. Atualmente, abriga
um pequeno posto de segurana
e um conjunto de banheiros
pblicos.
8 Resignao: 3. Submisso
paciente aos sofrimentos da vida.
(AURLIO)
9 Lawrence Halprin (1916-)
um paisagista estadunidense que
obteve grande projeo no nal
dos anos 1960 e incio dos 70. Sua
produo desse perodo trabalhou,
entre outras coisas, com a questo
do automvel nas cidades e sua
repercusso nos espaos pblicos.
Fig.375
Vista do viaduto Santa Egnia
e setor norte do vale a partir do
Edifcio Mirante do Vale.
A ligao entre a Estao So Bento
do Metr e a praa ca estrangula-
da pela ala de retorno.
Fig.376
Sada da Estao So Bento para
o vale.
Fig.377
Vista da Rua Formosa a partir
do Ch. Os passeios laterais pro-
movem a ligao entre a Estao
Anhangaba e a praa.
Fig.378
Sada da Estao Anhangaba para
o vale.
[Arquivo do autor]
332
333 O VALE COMO RESDUO
mero considervel de usurios do Centro e criava, por mais precrio que fosse, um vnculo
entre todos os nveis construdos.
Como se viu, antes mesmo de serem construdos, um a um, todos os espaos pbli-
cos propostos sobre a laje foram perdendo suas caractersticas e seu sentido. lamentvel
perceber que depois de tanto tempo de espera e tanto dinheiro pblico investido naquele
recinto, os principais problemas listados pela equipe de arquitetos, como justicativa da
soluo proposta, permaneceram aps sua implantao. As armaes abaixo, retiradas do
memorial descritivo elaborado para o concurso, poderiam inequivocamente referir-se ao
Anhangaba atual:
(...) o problema bsico, o nico a justicar uma interveno profunda, o empobre-
cimento funcional e desperdcio do Vale como espao urbano desfrutvel: apesar de
sua acessibilidade urbana (...), no tem funo de ponto de encontro; apesar de seu
potencial e valores paisagstico-culturais, no h como nem por que nele permanecer
e gozar; apesar de sua localizao ensejar encontros de solidariedade, no tem hoje o
menor teor de urbanidade.
10
10 WILHEIM, Jorge, e equipe.
Memorial descritivo apresentado
ao concurso. Prancha 01.
Figs.379 a 382
Praa do caf, posicionada no
eixo da Avenida So Joo.
[Arquivo do autor]
334
335 O VALE COMO RESDUO
Figs.383 a 384
Planta e vista da Praa Lovejoy, de
Lawrence Halprin, 1961-68.
O estadunidense exerceu grande
inuncia sobre os paisagistas
brasileiros que se formaram nos
anos 60 e 70.
[PROCESS ARCHITECTURE n 4,
Fev. 1978]
Fig.385
Canteiros e espelhos dgua prxi-
mos Praa Pedro Lessa.
[Arquivo do autor]
Fig.386
Paisagismo da praa logo aps sua
inaugurao.
Cristiano Mascaro.
[ARQUITETURA E URBANISMO
n 42, Jun/Jul 1992. p.33.]
Fig.387
Fotograa atual da Praa Pedro
Lessa.
[Arquivo do autor]
336
Fig.388
O Viaduto do Ch, com seu inten-
so movimento, marca a fronteira
entre a praa vazia e a avenida com
seu uxo permanente.
[Arquivo do autor]
Figs.389 e 390
O m do Anhangaba.
[Arquivo do autor]
Fig.391
Vista do vale a partir do canteiro
central da avenida.
[Arquivo do autor]
Fig.392
Vista noturna do mesmo ponto.
[PRAA RAMOS, VIADUTO DO
CH, PRAA DO PATRIARCA.
Instituto Cultural Ita. So Paulo:
ICI, 1994.]
337 O VALE COMO RESDUO
338
339 O VALE COMO RESDUO
Projetos recentes
O clima de otimismo provocado pela inaugurao do Novo Parque Anhangaba reper-
cutiu atravs de diversas iniciativas de re-qualicao de pontos especcos ligados ao vale.
Desse conjunto se destacam a nova cobertura do acesso superior Galeria Prestes Maia e
a remodelao da Praa do Patriarca
11
, a instalao de uma lial do MASP no salo de ex-
posies dessa mesma galeria, transformao do Edifcio Alexander Mackenzie, antiga sede
da Light, em Shopping Center, transformao, ainda no concluda, do Edifcio Central
dos Correios em centro cultural e mais recentemente a instalao da sede da Prefeitura
Municipal no Edifcio Matarazzo. Algumas intervenes pontuais tiveram de ser realizadas
tambm para amenizar decincias do projeto, como a nova passarela de acesso ao Terminal
Bandeira.
Em outubro de 1991, foi fundada a Associao Viva o Centro, organizao sem ns
lucrativos nanciada por empresas e entidades privadas, com o objetivo de
contribuir para a revalorizao histrica, arquitetnica e urbanstica; para o desenvol-
vimento e aprimoramento humano e social; para a animao e efervescncia cultural
em todos os aspectos; para a pesquisa, o estudo e o desenvolvimento das cincias e da
educao, entre outras contribuies, em benefcio da regio central da Cidade de So
Paulo (Centro);
12
Aps alguns anos, os impactos do novo projeto sobre a dinmica daquele espao co-
meou a ser assimilado e o perodo otimista chegaria ao m. O tema de discusso passaria
ento a ser como recuperar parte da vitalidade perdida e que medidas tomar para criar
melhores condies de utilizao do vazio criado.
Em agosto de 1996 a Associao Viva o Centro apresentou o estudo So Paulo Centro:
uma nova abordagem, coordenado pela arquiteta Regina Prosperi Meyer
13
. O estudo con-
tinha uma anlise abrangente da rea central e um conjunto de sugestes, que deveriam se
desdobrar em uma srie de projetos especcos e, quando fosse pertinente, em concursos
11 Projeto do Arquiteto Paulo
Mendes da Rocha.
12 Primeiro pargrafo do artigo
Finalidades Institucionais
da Associao. Fonte: www.
vivaocentro.org.br/vivaocentro/
estatuto.htm (18/01/2007)
13 Equipe: Regina Prosperi Meyer
(coordenao geral); Fernando de
Mello Franco, Marcelo Laurino
e Sarah Feldman (coordenao
de projeto); Ktia Pestana, Keila
Costa, Marta Moreira e Milton
Braga (colaborao); Alexandre
Hodapp, Ana Paula Nascimento,
Daniel Hopf, Luciana Itikawa,
Marco Antonio dos Santos e
Robson Castilho.
Fig.393
Planta com o mapeamento de
espaos pblicos na rea central.
[ASSOCIAO VIVA O CENTRO.
So Paulo Centro: uma nova abor-
dagem. So Paulo: Associao Viva
o Centro, 1996. p.35.]
Fig.394
Subsistemas de espaos pblicos
no centro. Centro Velho, Centro
Novo e Anhangaba.
[ASSOCIAO VIVA O CENTRO,
1996. p.37.]
340
Fig.395
Propostas de interveno
[ASSOCIAO VIVA O CENTRO,
1996. p.41.]
Fig.396
Irrigao. Estudo de acessibilida-
de com abertura de calhas virias
[ASSOCIAO VIVA O CENTRO,
1996. p.40.]
341 O VALE COMO RESDUO
pblicos de projetos. O estudo destacava o Vale do Anhangaba como um subsistema que
se organiza a partir de um grande espao pblico que acopla uma srie de praas menores,
em diferentes planos, aos quais se articula atravs de passagens, galerias, escadarias
14
, e
apresentava as seguintes leituras e propostas:
A interveno proposta se d no sentido de resgatar a forma e a idia de vale e eviden-
ciar a separao existente entre Centro Novo e Centro Velho, diferenciando o fundo
do vale dos espaos pblicos lindeiros e demarcando seus limites. Prope-se o retorno
controlado de veculos ao Vale, sobretudo dos nibus de linhas circulares, distinguindo
o uxo expresso de passagem (no subsolo) do uxo local (na superfcie). A presena
dos nibus (...) possibilitar a irrigao do Centro atravs de sua porta de acesso em-
blemtica e principal. Procura-se reanimar as suas bordas, de forma a reinserir uma
expresso de dinmica metropolitana que lhe foi extirpada.
A lista de intervenes propostas realizaria, no m das contas, uma recongurao de
toda a superfcie do vale, atravs da abertura de um sistema de vias locais para o trfego de
veculos, a recuperao da travessia no eixo da So Joo com a demolio da Praa do Caf
e dos canteiros construdos e uma nova pavimentao que demarcasse com clareza alguns
limites pouco congurados.
O Anhangaba, no mbito dessa abordagem, era visto como um espao fundamental-
mente de articulao. Suas funes primordiais seriam demarcar, atravs do seu espao va-
zio, os limites entre o Centro Velho e o Centro Novo e comunicar e organizar os espaos
pblicos a ele adjacentes. Diferente da abordagem da equipe de Jorge Wilheim, o vale nunca
era tratado em si mesmo, mas sempre em relao .
No nal de 1996, como um desdobramento do estudo anteriormente comentado, foi
promovido pela Prefeitura Municipal, atravs da Secretaria da Habitao e Desenvolvimento
Urbano - SEHAB, e organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB/SP, o Concurso
Nacional de Idias para um Novo Centro de So Paulo. A abrangncia do concurso englo-
bava toda a rea central da cidade e, por se tratar de um concurso de idias, seu escopo no
14 ASSOCIAO VIVA O
CENTRO. So Paulo Centro: uma
nova abordagem. So Paulo, 1996.
p.36.
15 Giancarlo Gasperini, Joaquim
Guedes, Jos Eduardo de Assis
Lefvre, Regina Prosperi Meyer,
Srgio Santos Morais, Marco
Antonio R. de Almeida e Sanderley
Fiusa
342
343 O VALE COMO RESDUO
era claramente determinado. O jri
15
avaliou 64 trabalhos e outorgou o primeiro prmio
equipe formada por tcnicos da empresa PROMON, tendo como coordenadores os arqui-
tetos Joo Batista Martinez Corra e Jos Paulo de Bem e o engenheiro Ronan Ayer
16
.
A proposta vencedora constitua-se de um ambicioso plano de grandes intervenes de
carter predominantemente virio e, fundamentalmente direcionadas ao automvel par-
ticular. Seguindo a tradio iniciada por Prestes Maia, era proposta uma nova perimetral
localizada em grande parte sobre o leito ferrovirio, que seria rebaixado, e um conjunto de
tneis que aprimoraria o funcionamento do Sistema Y. A partir dessas decises estrutu-
rais, eram desenvolvidas as solues pontuais.
No contexto descrito, o Vale do Anhangaba seria totalmente reformulado do ponto
de vista fsico e funcional. Com o trnsito de passagem afastado pelo sistema de tneis de
grande profundidade, novas vias sobre a superfcie do vale receberiam o uxo local e o
antigo tnel, destitudo de suas funes virias, seria convertido em um grande terminal
linear de nibus com novo sistema de ventilao, escadas rolantes e acabamentos capazes
de transform-lo em arquitetura
17
. O vo central do Viaduto do Ch seria encerrado por
uma cortina estaiada de vidro estrutural de modo a abrigar um dos acessos ao terminal.
O sistema proposto de vias de trfego local sobre a superfcie do vale conformaria um novo
conjunto de espaos residuais, um miolo, que receberia novo tratamento paisagstico.
O miolo um jardim geomtrico denido por cruzamentos de caminhos relaciona-
dos com edicaes, espaos e percursos, que formam grandes canteiros nivelados e
ligeiramente elevados, compensando os desnveis transversais existentes; nos canteiros,
paralelas aos viadutos do Ch e Santa Egnia denem um padro de gramados e
espelhos dgua, permanecendo as poucas grandes rvores remanescentes no local, na
sua singularidade de implantao. (...) O desenho proposto dene longitudinalmente
o espao do vale, o que separa e qualica os espaos anexos laterais. O Anhangaba
um espao monumental, pouco acolhedor, um lugar de passagem, de cruzamentos,
para ser visto de cima.
18
.
16 Arquitetos Colaboradores:
Roberto Rigui, Ernesto Zamboni,
Flvio Pastore, Marcelo Fragelli,
Srgio Coelho, Cssio Hosomi,
Maria Luiza de Oliveira, Rita
Guimares, Walter Gosslar,
Cludio Falco, Edson Borges
e Mauro Lima. Engenheiros:
Hrcules Fidalli, Luiz Szio, Renato
Mendona, Shigeru Yamamoto e
Leonardo Loureno.
17 PROMON. Concurso Nacional
de Idias para um Novo Centro de
So Paulo. So Paulo: PROMON,
1997 (folheto de divulgao do
projeto). p.14. (grifo nosso)
18 PROMON, 1997. p.15.
Fig.397
Perspectiva do vale com a Praa da
Bandeira em primeiro plano.
[PROMON. Concurso Nacional de
Idias para um Novo Centro de So
Paulo. So Paulo: PROMON, 1997
(folheto de divulgao do projeto)]
Fig.398
Planta geral com a indicao dos
tneis propostos.
[PROMON, 1997]
344
345 O VALE COMO RESDUO
Fig.399
Perspectiva do vale com a Praa da
Bandeira esquerda.
[PROMON, 1997]
Fig.400
Viaduto do Ch e novo paisagismo
proposto.
[PROMON, 1997]
Fig.401
Proposta de ocupao para as pro-
ximidades do Largo So Bento.
[PROMON, 1997]
346
Figs.402 e 403
Planta da proposta e corte trans-
versal pela passagem inferior.
[ASSOCIAO VIVA O CEN-
TRO. Refuncionalizao do Vale do
Anhangaba. So Paulo: Associao
Viva o Centro, 2005.]
347 O VALE COMO RESDUO
Utilizando parte da argumentao encontrada no estudo So Paulo Centro; uma nova
abordagem, o projeto perseverava em tratar o recinto como resultado de operaes externas,
neste caso os grandes tneis, desenhado a partir de um padro auto-referente. Desprovido
de qualquer carter, certamente se constituiria em um fracasso maior que os anteriores.
A iniciativa mais recente contendo propostas abrangentes para o recinto do vale, dis-
cutida em mbito pblico atravs de notcias na imprensa e de publicao especca, o
projeto de Refuncionalizao do Vale do Anhangaba, desenvolvido sob a chancela da
Associao Viva o Centro e apresentado em 2005. Seus autores
19
so basicamente os mesmos
tcnicos que elaboraram a proposta vencedora do concurso de 1996 comentado anterior-
mente, mas as aes propostas so muito mais contidas.
O objetivo fundamental da proposta a criao de um circuito virio, voltado para o
trnsito local, que permita a irrigao desse setor da rea central.
A obra que resultou no atual Vale do Anhangaba, da forma como foi executada,
resolveu um dos grandes problemas da cidade de So Paulo a ligao rodoviria
norte-sul/sul-norte mas gerou outro grave: tornou o Centro ilhado e estrangulado.
Resolveu o problema do trfego de passagem, mas eliminou o trfego local. O imenso
calado do Centro Velho fundiu-se ao do Centro Novo, por meio de um novo cala-
do no Anhangaba. Para irrigar o interior do corao da cidade restaram apenas o
circuito formado pela ruas Boa Vista e Lbero Badar, no Centro Velho, e Xavier de
Toledo e nal da Conselheiro Crispiniano, no Centro Novo. S se adentra nessa imen-
sa rea por veculo coletivo, ou particular, pela Praa da S ou pela Xavier do Toledo.
Qualquer incidente em uma dessas vias bloqueia o acesso ao Centro, impacta a rtula
central (o anel virio em torno dessa rea) e os acessos a ela.
A proposta restabelece, sem perda das caractersticas de pequeno parque central do
Vale, o trnsito de veculos no local, junto aos edifcios, e cria uma rambla contnua
para o pedestre, na Avenida So Joo, entre o Largo do Paissandu e a Rua Lbero Ba-
dar. Cria-se assim um acesso adequado e fcil ao Centro, facilita-se a circulao e a
19 PROMON Engenharia (Ronan
Ayer, Beatriz Miranda, Clarindo
Corazza, Lus Szio, Maria
Palombini e Shigeru Yamamoto),
JBMC Arquitetura e Urbanismo
(Joo Batista Martinez Corra,
Beatriz Corra, Alssio Dionisi e
Renilson de Souza) e Geomtrica
Engenharia de Projetos. Fonte:
Refuncionalizao do Vale do
Anhangaba. So Paulo: Viva
o Centro, 2005 (folheto de
divulgao do projeto).
348
349 O VALE COMO RESDUO
segurana do pedestre, aumenta-se a segurana noite, viabiliza-se economicamente o
Vale e desobstrui-se o corao da Cidade.
20
As vias seriam implantadas sobre o paisagismo existente, preservando tudo o que esti-
vesse fora do caminho dos leitos virios propostos. O rebaixo da Praa do Caf, proposta
por Jorge Wilheim, seria aproveitado para a criao de uma passagem inferior de veculos,
permitindo desse modo a congurao de uma rambla contnua de oito metros de largura
entre a Praa Antonio Prado e o Largo Paissandu.
Neste projeto, mais uma vez as intervenes so pautadas pelo desenho virio e pela
tica exclusiva do automvel. De teor imediatista, no contribui para a caracterizao to
necessria daquele recinto. Se estiver correta a hiptese de que o Novo Anhangaba inau-
gurado em 1991, o espao residual de uma grande operao viria, o espao resultante
deste projeto seria ento o resduo do resduo.
O estado atual do debate sobre o Anhangaba, e as propostas que dele emergiram at
o momento, assemelha-se ao perodo dos anos 1970, no qual projetos eram lanados sob
uma nvoa de argumentos e problemas emergentes a serem sanados, onde raramente as
questes fundamentais eram apontadas com clareza. Identicar os problemas colocados
pelo Anhangaba hoje, o desao a ser enfrentado.
20 ASSOCIAO VIVA O
CENTRO. Refuncionalizao do
Vale do Anhangaba. So Paulo,
2005 (folheto de divulgao do
projeto).
Fig.404
Passagem inferior sob o cruzamen-
to da Rambla So Joo.
Fig.405
Vista geral do vale.
Figs.406
Vista da Rambla So Joo em
direo ao Centro Velho.
[ASSOCIAO VIVA O CEN-
TRO. Refuncionalizao do Vale do
Anhangaba. So Paulo: Associao
Viva o Centro, 2005.]
350
351 O VALE COMO DESAFIO
consideraes fnais
o vale como desafo
352
353 O VALE COMO DESAFIO
Evoluo do recinto
Tomando como ponto de partida o ano de 1877, no momento em que Jules Martin pre-
gou na vitrine de sua loja a primeira imagem do Viaduto do Ch, um intervalo de 130 anos
foi o perodo abordado nesta dissertao. Ao longo do tempo, aquilo que se denominou de
recinto do Anhangaba teve abrangncias espaciais muito diversas, conforme o momento
histrico e o contexto de cada projeto estudado. importante identicar como variou o
papel urbano exercido pelo vale ao longo da histria, de modo a alimentar a discusso de
como ele poderia ser interpretado hoje.
Antes de realizar essa retrospectiva, necessrio esclarecer os sentidos atribudos aqui,
ao termo recinto. A maioria dos dicionrios dene o termo como um espao compreendi-
do dentro de certos limites. Esse um dos sentidos adotados neste trabalho, mas no o ni-
co. Os limites que o denem no so necessariamente espaciais. Eventualmente esses limites
podem ser determinados por uma funo ou uma propriedade: avenida; parque; resduo.
Desta maneira, o termo pode variar sutilmente de sentido de acordo com a abordagem do
projeto referido.
Durante o perodo em que o vale representou uma barreira, poderia se dizer que o recin-
to pouco importava. Para Jules Martin o espao em questo era o do prprio viaduto, ou as
duas reas que este conectava. Seu desprendimento em relao ao modo de permitir a traves-
sia, que poderia at ter sido realizada atravs de um aterro, atesta que naquele contexto o vale
em si no era relevante. Do mesmo modo isso pode ser vericado atravs dos outros dois
viadutos analisados. Tanto o de Kuhlmann, quanto o Santa Egnia, no pretendiam dialo-
gar com a cidade baixa e literalmente passaram por cima do que estava em seu caminho.
Quando o Anhangaba passou a ocupar uma posio central em relao ao conjunto
da cidade, seu espao comeou a ser compreendido como uma oportunidade. Esse o argu-
mento do segundo captulo desta dissertao. Apesar disso, naquele perodo a congurao
do lugar Anhangaba e de seus limites espaciais, teve variadas interpretaes.
Para Adolfo Augusto Pinto, o recinto era determinado pela hidrograa, se estendendo,
portanto, at seu encontro com o Tamanduate. Seus limites espaciais no cavam clara-
354
355 O VALE COMO DESAFIO
mente denidos, mas pode se vislumbrar a escala de sua abrangncia. Nas indicaes do
Vereador Silva Telles, os limites do que se entendia por Vale do Anhangaba eram claros:
Rua Lbero Badar, Ladeira Dr. Falco, Piques, Rua Formosa e So Joo, acrescentando-se
uma pequena praa no local onde, alguns anos depois, seria criada a Praa do Correio.
Nessa proposta o recinto era basicamente um vazio, regular e fechado. Nenhuma constru-
o, salvo a residncia do Conde de Prates, invadia seus limites. Para Alexandre Albuquerque
o Anhangaba no existiria como um recinto. O vazio existente signicava em seu projeto
terreno disponvel, e com o inevitvel crescimento da rea seria ocupado por novas edica-
es. Na proposta Freire-Guilhem, se considerarmos apenas a planta do projeto, o recinto
era basicamente o mesmo da proposta de Silva Telles, acrescido da Praa Ramos de Azevedo,
em frente ao novo Teatro Municipal, e do alargamento da Rua de So Joo incluindo um
novo viaduto e seus prolongamentos. Na perspectiva desenhada esse recinto era signica-
tivamente ampliado, incorporando uma quadra no trecho nal da encosta leste do vale,
o Largo de So Bento e o Viaduto Sta. Egnia. O projeto de Samuel das Neves reduzia o
recinto largura da avenida proposta e isolava esse espao dos demais vazios sua volta. No
entanto suas extremidades poderiam ser expandidas para norte e para sul, transformando-
se num extenso corredor.
Coube a Bouvard denir quais seriam os limites do recinto do Anhangaba, e embora
concordasse com as premissas do projeto de Victor da Silva Freire, foi obrigado a conciliar
interesses conitantes, o que o levou a uma drstica reduo do vazio anteriormente propos-
to. Construes junto So Joo e ao Piques, mais os blocos junto Libero Badar, redu-
ziam o recinto a praticamente uma extenso da Praa Ramos. Durante a execuo do parque
eliminaram-se os edifcios previstos junto ao Piques
1
possibilitando uma melhor integrao
desse setor com o espao livre geral.
O desenvolvimento e a expanso da cidade, estruturados sobre um modelo rodoviaris-
ta, transformariam o Anhangaba construdo durante os anos 10 e 20 em um corredor de
passagem. Esta transformao constituiu o tema do terceiro captulo deste trabalho.
As proposies iniciais de Prestes Maia, contidas no Plano de Avenidas, apresentavam
uma imagem do Anhangaba como um recinto fechado, conformado por novos viadutos
1 Uma leira de casas na Rua
Formosa, entre o Viaduto do
Ch e a Ladeira da Memria,
permaneceria ainda por mais
alguns anos aps a implantao do
projeto de Bouvard.
Fig.407
O recinto do Anhangaba,
conforme o projeto de Bouvard
acrescido da Praa do Patriarca.
[Fonte da base: TOLEDO, 1989.
p.175]
356
357 O VALE COMO DESAFIO
e monumentais conjuntos edicados. No entanto, a implantao do Sistema Y geraria na
verdade um Anhangaba completamente diferente, assumido por Prestes Maia nos planos
posteriores. Ao invs do monumental espao fechado, um monumental eixo de passagem,
sem limites claramente denidos, tomou conta do lugar. A construo do trecho sul do
Permetro de Irradiao, atravs dos viadutos Nove de Julho, Maria Paula e Jacare, estabe-
leceu novos limites para esse setor do vale, e a abertura da Avenida Prestes Maia gerou uma
diluio de seu permetro norte. Desta maneira, a partir dos anos 30 e de modo mais acen-
tuado durante os anos 40, ocorreu uma signicativa expanso fsica do recinto e uma certa
diluio de seu permetro. Essa congurao prevaleceria at os anos 80.
Em 1974, Vilanova Artigas props uma leitura do Anhangaba a partir dos sistemas
metropolitanos dos quais participava, assumindo o uxo de veculos e a massa de pedestres,
como elementos imprescindveis e, sobretudo, conciliveis. As restries impostas durante
o desenvolvimento do projeto levariam a um relativo empobrecimento do partido adotado
e formulao de um conjunto de intervenes que no respondia altura aos questiona-
mentos iniciais que o arquiteto havia levantado.
Com a realizao do concurso nacional em 1981 e a construo da proposta vencedo-
ra, concluda dez anos depois, estabeleceu-se uma nova estruturao do recinto do vale. O
partido adotado, do tnel e da praa
2
, limitava a extenso da segunda a um trecho rela-
tivamente pequeno, entre os viadutos Ch e Santa Egnia. a laje, agora, que determina o
recinto. Hoje em dia, quando algum se refere ao Vale do Anhangaba, est se referindo
praa implantada sobre a laje. No poderia estar se referindo regio da Praa da Bandeira
nem ao trecho da Avenida Prestes Maia posterior ao Viaduto Santa Egnia, pois estes no
pertencem mais ao recinto. At mesmo a avenida e o Sistema Y foram excludos.
A seqncia de imagens a seguir procura explicitar gracamente, atravs da compa-
rao de plantas e fotograas areas com recortes e escalas similares, as transformaes
espaciais propostas e ocorridas no Anhangaba ao longo do tempo. Os comentrios que
acompanham cada uma representam a continuao deste texto.
2 BUCCI, 1998. p.109.
Fig.408
Recinto do Anhangaba aps as
obras do Permetro de Irradiao.
A avenida expandiu seu limite
norte a ponto de dilu-lo. A
praa da Bandeira, ainda sem
construes, ampliou sua
abrengncia conferindo-lhe uma
nova escala.
[Fonte da base: TOLEDO, 1996.
p.129]
358
Fig.410
Projeto de Samuel das Neves
(1911) sobre mapa de 1930.
Apesar de inoportuno em seu
momento, o projeto de Neves se
assemelhava muito ao espao que
se conguraria no vale poucas
dcadas depois.
[Bases: Planta do projeto de
Samuel das Neves (Fig.82) e
Levantamento SARA]
Fig.409
Projeto de Silva Telles (1907) sobre
mapa de 1881.
A dimenso do parque de Telles
superava a do projeto de Bouvard.
No momento de sua proposio,
o contraste com a cidade existente
devia ser escandaloso. O recinto
incorporava o local da futura Praa
do Correio, encosta da Ladeira Dr.
Falco, largo da Memria e Piques.
Planta da Cidade de So Paulo,
1881, Henry P. Joyner.
[Bases: Planta do projeto Silva
Telles (Fig.73) e Planta da Cidade
de So Paulo, 1881, Henry P. Joyner
(Fig.7)]
359 O VALE COMO DESAFIO
Fig.412
Projeto de Bouvard (1911) sobre
mapa de 1930.
Para conciliar interesses
conitantes, Bouvard teve que abrir
mo de premissas importantes
das propostas Silva Telles e Freire
Guilhem, e permitir a ocupao da
enconsta junto Lbero Badar,
alm de prever construes
em vrios outros pontos. O
prolongamento at a So Joo
tambm no ocorreu e o parque
nalmente construdo acabou
sendo acanhado ante as propostas
que j haviam sido formuladas.
[Bases: Planta do projeto de
Bouvard (Fig.88) e Levantamento
SARA]
Fig.411
Projeto Freire-Guilhem (1911)
sobre mapa de 1930.
O projeto guardava as virtudes do
parque de Silva Telles e ampliava
sua abrangncia ao incorporar a
Praa Ramos de Azevedo, Antonio
Prado e a Av. So Joo alargada.
[Bases: Planta do projeto Freire-
Guilhem (Fig.77) e Levantamento
SARA]
360
Fig.414
Melhoramentos de Prestes Maia
(1945) sobre mapa de 1930.
Em seu segundo projeto para o
Anhangaba, Maia adota uma
concepo completamente oposta
anterior. Ao invs do jardim e
do recinto fechado, uma brutal
avenida sem limites denidos.
Comparada a esta, a avenida de
Samuel das Neves se torna uma rua
ordinria. O grasmo que Maia
utiliza em sua representao, reete
a violncia com que a via se insere
na cidade.
[Base: Planta geral dos
melhoramentos centrais
(Fig.191)]
Fig.413
Anhangaba do Plano de Avenidas
de Prestes Maia (1930) sobre mapa
de 1930.
Em sua primeira proposta para
o Anhangaba, Maia expande os
limites do recinto para norte, at
o Viaduto Santa Egnia, e para
sul, com o Pao proposto alm
do Piques. Prev, no entanto,
ocupao junto Rua Formosa
e Ladeira Dr. Falco. O recinto
rigidamente fechado e arrematado
pelas torres junto aos viadutos
propostos. Extensos jardins
ocupam os intervalos entre as
pistas.
[Bases: Plano de Avenidas (Fig.186)
e Levantamento Sara]
361 O VALE COMO DESAFIO
Fig.416
O recinto em 1958.
Nesta imagem encontramos a
grande avenida concretizada. Ao
recinto se incorporaram o Viaduto
Santa Egnia, Largo So Bento,
Praa Pedro Lessa, Praa Antonio
Prado e Av. So Joo. A Praa da
Bandeira, ainda no ocupada,
apresentava tratamento de praa.
[Base: IDOETA, 2004]
Fig.415
O recinto em 1945.
Embora parcial, a fotograa
permite ver a congurao
interna do vale j como uma
avenida, mas com seu limite
norte ainda restrito Avenida
So Joo. O extremo sul havia se
expandido consideravelmente
com as demolies na rea da
Praa da Bandeira e a constro
do Permetro de Irradiao (ver
Fig.408).
[Base: IDOETA, Irineu. So
Paulo vista do alto: 75 anos de
aerofotogrametria. So Paulo: rica,
2004]
362
Fig.418
O recinto em 1974.
O vazio da Praa da bandeira
reduzido mais um pouco com
a contruo de uma garagem e
novo sistema virio. O Viaduto
Stevaux contribui para a excluso
denitiva desse setor do recinto.
A Estao So Bento do Metr,
praticamente concluda, permite
uma melhor integrao entre o
largo homnimo e
o vale.
[Base: IDOETA, 2004]
Fig.417
O recinto em 1968.
Duas construes reduzem
a dimenso do vazio do
ANhangaba: a Cmara Municipal
junto Praa da Bandeira e o
Palcio Zarzur & Kogan (atual Ed.
Mirante do Vale), junto ao Viaduto
Santa Egnia. O primeiro,
inaugurou uma ocupao que
terminaria por excluir o Viaduto
Jacare do recinto e reduzir
consideravelmente a escala da
Bandeira. O segundo, aliando
suas dimenses descomunais
sua implantao perpendicular
avenida, arrematou o extremo
norte do vale.
[Base: IDOETA, 2004]
363 O VALE COMO DESAFIO
Fig.420
O projeto de Artigas, 1974.
Pormenor da planta original de
Artigas com o mesmo recorte das
imagens anteriores.
Notar as propostas de
aperfeioamento virio do
Permetro de Irradiao.
[Base: ARTIGAS, 1974]
Fig.419
Prpostas de Artigas sobre a foto
de 1974.
A abrangncia da abordagem
de Artigas extrapola os limites
do recorte da imagem mas
representada pelo Y destacado.
Os dois terminais e o sistema de
marcha a p teriam forte presena
no espao geral.
[Bases: ARTIGAS, 1974 e IDOETA,
2004]
364
Fig.422
O recinto em 2005.
Desde a construo do projeto de
Jorge Wilheim, inaugurado em
1992, o vale permanece inalterado.
Nessa congurao o recinto
encolheu chegando a dimenses
ligeiramente superiores s do
parque de Bouvard. A laje o
elemento que estabelece os limites
atuais do Anhangaba.
[Base: Google Earth (Dez/2006)]
Fig.421
O recinto em 1986.
Poucas modicaes signicativas
ocorrem entre meados dos anos
70 e a dcada de 80. A Praa da
Bandeira nalmente ocupada
em toda a sua extenso, seja
por edifcios, paradas de nibus
ou desajeitadas passarelas de
pedestres.
[Base: IDOETA, 2004]
365 O VALE COMO DESAFIO
Fig.424
O recinto possvel.
Considerando as possibilidades
presentes e futuras que se oferecem
para o vale, e as disposies
experimentadas no passado, o
desao que se coloca fazer com
que o recinto volte a assumir uma
congurao abrangente do ponto
de vista espacial e representativa
sob o aspecto simblico.
[Base: Google Earth (Dez/2006)]
Fig.423
Espaos livres pblicos adjacentes
ao Vale do Anhangaba.
Estudos anteriores j mostraram
as possibilidades arquitetnicas
oferecidas pelo conjunto de
espaos pblicos existente na rea
central. A transformao desse
conjunto em um sistema um dos
desaos a serem enfrentados e o
Vale do Anhangaba o elemento
chave.
As praas da Bandeira e Pedro
Lessa oferecem novas perspectivas
com a eliminao, a mdio prazo,
dos terminais de nibus.
[Base: Google Earth (Dez/2006)]
366
367 O VALE COMO DESAFIO
Construes, destruies...
Toda interveno pressupe uma destruio; destrua com sensibilidade.
3
Se a cidade de So Paulo foi construda e reconstruda trs vezes em um sculo
4
, o Vale
do Anhangaba no teve diferente sorte. Do ponto de vista fsico, e considerando o vale
como um todo, quatro foram as suas conguraes at hoje. A primeira, quase casual, era
marcada pela sua topograa natural revestida por plantaes de ch e cortada pelo capri-
choso ribeiro a cu aberto. A segunda a do Parque Anhangaba, segundo o projeto de
Bouvard. Para sua construo, foi necessria a destruio de sua topograa original, do
ribeiro que ali corria e de um nmero signicativo de edifcios. A terceira congurao
foi a da Avenida Anhangaba, que ocupou o fundo do vale destruindo o parque e outra
grande quantidade de edifcios, incluindo o antigo Viaduto do Ch. A quarta e ltima a
congurao atual, do tnel e da praa. Para sua implantao destruiu-se mais uma vez
a topograa do lugar e principalmente a avenida.
O que se observa para o vale como um todo, acontece tambm de maneira pontual.
Para se construir o Viaduto do Ch atual, foi necessrio demolir o anterior; para erigir o
Edifcio Alexander Mackenzie, sede da Light, destruiu-se o Teatro So Jos; os palacetes
do Conde de Prates deram lugar ao Edifcio Conde de Prates e outra torre; demoliram-se
vrios edifcios para a construo do vazio da Praa do Patriarca.
No h saudosismo ou lamentao nas armaes acima. So constataes que reme-
tem frase de Snozzi citada no icio desta pgina. Aps tantas construes e tantas destrui-
es, o saldo o Anhangaba que est l.
Mas h ainda outros tipos de construes, e suas respectivas destruies, que no dizem
respeito ao ambiente material da cidade ou do vale; que esto ligados a aspectos simblicos
ou subjetivos e que por isso so menos bvios, mas podem ser mais impactantes que os ou-
tros. A construo do primeiro Viaduto do Ch destruiu uma barreira histrica; a construo
3 Ogni intervento presuppone una
distruzione, distruggi con senno.
SNOZZI, Luigi. Luigi Snozzi:
costruzioni e progetti 1958-1993.
Lugano: ADV, 1995.(traduo
nossa)
4 TOLEDO, Benedito Lima de. So
Paulo: trs cidades em um sculo.
So Paulo: Duas Cidades, 1983.
Fig.425
Alegoria derrota do baro de
Tatu e demolio de sua casa.
[TOLEDO, 1996. p. 61.]
368
369 O VALE COMO DESAFIO
do Parque Anhangaba apagou, ou pelo menos pretendeu apagar, a imagem de uma cidade
atrasada e provinciana; a construo da avenida destruiu o silncio do parque e destruiu
o modo como, at ento, o paulistano se relacionava com aquele espao; a construo do
Anhangaba atual destruiu o sentido geogrco caracterstico daquele territrio e a relao
do recinto com a metrpole.
O vale como desao de projeto
A constituio do Anhangaba como um ponto focal da estruturao da cidade de-
mandou dcadas de projetos e construes para se estabelecer e fazer daquele espao uma
referncia de urbanidade. A sionomia do parque, freqentemente retomada com saudo-
sismo, por mais bela que possa ter sido no teve fora para cristalizar o carter do recinto.
Rapidamente a presena do automvel se imporia e iria ganhando espao at se congurar
a grande avenida. Se fosse necessrio apontar o sentido que mais profundamente marcou
sua sionomia e mais impacto teve sobre sua dinmica interna, este seria o de passagem,
simbolizado pela avenida. A saturao desta, somada ao incremento do uxo de travessia
transversal a p, gerou uma situao violenta insustentvel. A resposta a esse problema, for-
mulada coletivamente, resultou na congurao atual.
ngelo Bucci fez referncia psicanlise para caracterizar o Anhangaba hoje:
O drama dos atropelamentos tornou-se o pesadelo que h dcadas atormenta a popu-
lao. A laje de concreto escondeu os automveis em 500m de uma via arterial que tem
13 quilmetros de extenso. No Anhangaba, entre um viaduto e outro, j no existem
atropelamentos, mas algum de p ali v o mergulho dos automveis, ouve o urro dos
motores e sente o cho tremer aos ps. Por isso o Anhangaba atual tem a imagem
simblica do pesadelo recalcado, o trauma.
5
Outro conceito psicanaltico que ilumina um aspecto importante do Anhangaba atual
o do estranhamente familiar
6
. Transposto da teoria psicanaltica para a teoria da arqui-
5 BUCCI, 1998. p.105.
6 VIDLER, Anthony. Uma teoria
sobre o estranhamente familiar.
Apud NESBITT, Kate (org.). Uma
nova agenda para a arquitetura:
antologia terica (1965-1995). So
Paulo: Cosac Naify, 2006. p.617.
Fig.426
Comcio das diretas, 1984.
Joo Bittar
[Cmara Brasileira do Livro: 50
anos. So Paulo: Prmio, 1997]
370
Fig.427
Anhangaba atual.
[Nelson Kon]
371 O VALE COMO DESAFIO
tetura e do urbanismo em meados dos anos 1980, esse conceito coloca em primeiro plano
o corpo e o sujeito em relao experincia vivida da arquitetura e da cidade. Sigmund
Freud, em ensaio de 1919, deniu o termo como a redescoberta de algo familiar que foi
anteriormente reprimido, o inquietante reconhecimento da presena de uma ausncia.
7

precisamente essa a sensao que se tem ao percorrer aquele espao. A presena da ausncia
do carter metropolitano representado pela passagem da avenida.
Nos ltimos quinze anos, no ocorreram mudanas estruturais no que diz respeito s
dinmicas urbanas presentes no vale. H, no entanto, fatores novos, cuja repercusso a m-
dio prazo dever ser avaliada, que so a integrao tarifria dos sistemas de transportes
pblicos e a implantao de novos eixos como o Expresso Tiradentes e a Linha 4 do Metr.
A integrao tarifria, em tese, permitiria, atravs de uma reestruturao da distribuio de
linhas e itinerrios, a desativao de todos os terminais, incluindo o Pedro Lessa e Bandeira.
Os novos eixos de transporte pblico podero alterar percursos e intensidades dos uxos
de pedestres.
O Vale do Anhangaba representa hoje, talvez mais do que nunca, um desao. Desao
que dever ser enfrentado pela cidade como um todo e, particularmente, pelos agentes so-
ciais diretamente responsveis pela sua interpretao e transformao fsica.
A retrospectiva de projetos realizada atravs dos cinco captulos que estruturam esta
dissertao revela a dimenso do corpo de prossionais envolvido na construo coletiva
daquele espao. A contribuio dos melhores arquitetos e urbanistas que So Paulo pde
oferecer faz parte de sua histria e indica possibilidades para o futuro.
H que pensar o que dever ser destrudo no vale atual no intuito de viabilizar a cons-
truo de um outro espao espao, que faa sentido para a cidade, que dialogue com todas
as suas escalas e dinmicas e reassuma um novo papel urbano, altura de sua memria e de
todo o esforo empreendido nos ltimos 130 anos.
7 NESBITT, Kate (org.). Uma nova
agenda para a arquitetura: antologia
terica (1965-1995). So Paulo:
Cosac Naify, 2006. p.617.
372
373 O VALE COMO DESAFIO
Fig.428
[Arquivo do autor]
374
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