A Fenomenologia de Husserl
A Fenomenologia de Husserl
A Fenomenologia de Husserl
diante do mundo tem como escopo apreender na conscincia as coisas no sentido de captlas como elas so em si mesmas: "a fenomenologia procura enfocar o fenmeno, entendido
como o que se manifesta em seus modos de aparecer, olhando-o em sua totalidade, de
maneira direta, sem a interveno de conceitos prvios que o definam e sem basear-se em
um quadro terico prvio que enquadre as explicaes sobre o visto" (MARTINS, 2006, p. 16).
A fenomenologia de Husserl parece ser uma tentativa de perscrutar o fenmeno em sua
pureza, isto , em sua originalidade. A proposta husserliana de se evitar a atitude
natural na apreenso e anlise do fenmeno denota no filsofo alemo sua insistente busca
pelo rigor metodolgico .
Pode-se estabelecer aqui uma relao de semelhana entre a epoch husserliana e a dvida
metdicade Descartes . Enquanto a dvida hiperblica conduziu Descartes ao porto seguro
do cogito, isto , subjetividade, a epoch serviu de esteira para Husserl adentrar no mago
das aparies das coisas conscincia. A suposta semelhana aqui estabelecida entre os
dois filsofos no autoriza se dizer que a epoch, ao pr o mundo de lado, ponha em dvida
a existncia das coisas. Com a epoch "no se pretende propriamente duvidar da existncia
do mundo, nem, muito menos, suprimi-lo. O mundo ancorar-se- apenas sob o aspecto como
se apresenta na conscincia - reduzido conscincia" (Idem, p. 92). Como j defendemos
aqui, o mtodo fenomenolgico de Husserl promove uma reviso no cogito cartesiano. A
propsito, a filosofia husserliana tem inspiraes cartesianas, embora o filsofo da
epoch faa restries ao filsofo do cogito :
para Husserl, assim como para Descartes, o Eu Penso a primeira certeza a
partir da qual devem ser obtidas as outras certezas. Mas o erro de Descartes
ter concebido o eu do cogito como uma alma-substncia, por conseguinte,
como uma coisa (res) independente, da qual restava saber como poderia entrar
em relao s outras coisas, colocadas por definio como exteriores. Mas isso
era recair na atitude natural que descrevemos (DARTIGUES, 2005, p. 25). Dito
de outra forma, a dicotomia cartesiana sujeito-objeto recupera exatamente a
atitude natural a qual Husserl no pretende adotar quando da sua anlise da
apario das coisas conscincia. A subjetividade que ocogito inaugura j
estaria infestada de juzos a respeito do mundo. Com a epoch Husserl pretende
superar esse obstculo e captar o fenmeno na sua originalidade, isto , no
mbito da prpria conscincia.
O mtodo husserliano da reduo
fenomenolgica traz consigo ainda outras noes que devem ser aqui
apresentadas: o transcendente e o transcendental. O transcendente, segundo
Husserl, a percepo cotidiana e habitual que temos das coisas do mundo:
esta cadeira, esta rvore, este livro, etc. Por seu turno, o transcendental " a
percepo que a conscincia tem de si mesma" (ABBAGNANO, 2000, p. 973).
Em outras palavras, "o transcendente o mundo exterior" enquanto o
transcendental " o mundo interior" da conscincia (HUSSERL, 2008, p. 18).
Esses termos, por sua vez, trazem a reboque as noes de noema enoese.
O noema seria "o aspecto objetivo da vivncia (p. ex., rvore verde, iluminada, no
iluminada, percebida, lembrada, etc.)" (ABBAGNANO, 2000, p. 713). Dito de outra maneira, o
noema seria o mundo transcendente tal qual ele nos dado. Por sua vez, a noese " o
aspecto subjetivo da vivncia, constitudo por todos os atos de compreenso que visam a
apreender o objeto, tais como perceber, lembrar, imaginar, etc." (Idem). Para Husserl, o
filsofo deve deter-se no campo do transcendental. no nvel da conscincia que o mundo se
nos apresenta. Pode-se dizer aqui que o mtodo fenomenolgico husserliano uma proposta
para encararmos o mundo como se fosse pela primeira vez. A sedimentao conceitual que
ns acumulamos ao longo da vida viria a "obscurecer" nossa maneira de apreender as coisas.
Em se tratando ainda da reduo (epoch), Husserl a apresenta sob dois nveis, a saber,
a reduo psicolgica e a reduo transcendental. Na primeira, os juzos relativos ao mundo
que nos circunda so postos fora de circuito. Como j se viu aqui, no se trata de duvidar
da existncia das coisas, trata-se apenas de uma suspenso momentnea do juzo em
relao s mesmas. Contudo, Husserl defende que a reduo psicolgica seja radicalizada.
quando o filsofo prope a sua reduo transcendental, que seria a epoch da prpria
reduo psicolgica. A reduo transcendental levaria o investigador a um estgio de
conscincia pura. Segundo Husserl, na conscincia pura ou transcendental, as vivncias
perdem inteiramente o seu carter psicolgico e existencial para conservarem apenas a
relao pura do sujeito plenamente purificado ao objecto enquanto consciente... (FRAGATA,
1962, p. 30, grifos do autor). Nesse nvel de reduo chega-se ao que Husserl chama de
atitude fenomenolgica. a partir dessa atitude que o investigador deve partir para
fundamentar sua pesquisa em bases originais e seguras. Essa depurao do fenmeno
proposta pelo pensador alemo nos faz lembrar, de uma certa maneira, a originalidade
com a qual os pr-socrticos apreenderam a existncia. A epoch, numa certa medida,
proporciona o desocultamento das coisas mesmas, revelando-as em sua nudez imediata e
original. Aqui parece residir o grande mrito da fenomenologia husserliana. Partamos, por
fim, para a abordagem da noo husserliana de variao eidtica. o que se ver.
A VARIAO EIDTICA
Segundo
Husserl,
os
objetos
do
mundo
se
nos
apresentam
sob
diversas perspectivas (Abschattungen) . Esta cadeira diante de mim pode ser apreendida sob
diversas variaes de perfil (Abschattung). Na epoch, o objeto deve ser submetido s
diversas variaes possveis de perfil no intuito de se apreender a essncia desse mesmo
objeto, isto , aquilo que permanece inalterado no mesmo. Nesse sentido, a reduo
fenomenolgica (epoch) seria uma maneira de se depurar o fenmeno a fim de se alcanar
o objeto com total evidncia:
o processo pelo qual podemos chegar a essa conscincia consiste em imaginar,
a propsito de um objeto tomado por modelo, todas as variaes que ele
suscetvel de sofrer... este invariante identificado atravs das diferenas define
precisamente a essncia dos objetos dessa espcie... Foi esse processo que
Husserl chamou de variao eidtica (DARTIGUES, 2005, p. 25). Como a epoch
tem como escopo apreender a essncia do fenmeno, ou seja, seu eidos ,
compreende-se assim que tal mtodo fenomenolgico seja denominado de
variao eidtica.
Na variao eidtica Husserl estabelece uma distino entre o objeto percebido e o noema:
"o noema distinto do prprio objeto, que a coisa; p. ex., o objeto da percepo da rvore
a rvore, mas o noema dessa percepo o complexo dos predicados e dos modos de ser
dados pela experincia" (ABBAGNANO, 2000, p. 724). A coisa que se apresenta minha
conscincia no tem a sua existncia negada. O que Husserl defende que a atual
percepo que temos de um objeto s se sustenta ante a possibilidade dos diversos perfis
sob os quais esse objeto pode ser apreendido:
(...) a fenomenologia, ao invs de igualar o objeto fsico a um suposto
fundamento ou substrato, iguala o objeto fsico a todas as suas aparncias, as
atuais e possveis. As aparncias que esto sendo apresentadas no indicam
uma coisa-em-si fundamental, mas sim possveis aparncias que no esto
sendo apresentadas atualmente, mas que poderiam vir a ser... Husserl chama
essas possveis aparncias de "horizontes" (COX, 2005, p. 29).
Concluso
Apresentamos neste artigo uma viso panormica da fenomenologia husserliana, a qual
um marco referencial no pensamento contemporneo. O rigor metodolgico que Husserl
reivindica para a filosofia atesta o vigor com o qual o pensador alemo sempre pautou suas
investigaes. A ttulo de concluso deste artigo, julgamos pertinente tecer uma breve
considerao. A epoch (sobretudo a reduo transcendental) parece mergulhar a
conscincia num estado onde, de uma certa maneira, perdemos a aderncia com este mundo
real. Certamente louvvel o rigor que Husserl buscava para a investigao filosfica. No
entanto, reduzir a realidade ao nvel do consciente, atravs de sucessivas epochs, para
a partir da tirar concluses seguras e radicais, parece no tornar a anlise do fenmeno
menos problemtica. A noo husserliana de hyl, como bem o apontou o filsofo Jean-paul
Sartre (um dos principais discpulos de Husserl), teve como resultado transformar a
conscincia em um ser hbrido. Uma vez que essa matria subjetiva (a hyl) no a
prpria conscincia, mas sim o suporte sobre o qual a conscincia se nos d, compreende-se
assim o embarao que tal noo traz para o estudo do fenmeno e da conscincia. Mas
apangio da filosofia tentar superar obstculos e aporias. E Husserl, como um bom filsofo,
tentou faz-lo com muita propriedade e esmero.
Referncias bibliogrficas
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COX, G. Compreender Sartre. Petrpolis: Vozes, 2005.
DARTIGUES, A. O que a fenomenologia? So Paulo: Centauro, 2005.
DEPRAZ, N. Compreender Husserl. Petrpolis: Vozes, 2007.
DESCARTES, R. Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1986.
FRAGATA, J. A fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia. Braga: Livraria
Cruz, 1959.
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