Goveia, Fábio - Materialidade e Imaterialidade Memória e Fotografia PDF

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Materialidade e imaterialidade; memria e fotografia

Fbio Goveia1
Resumo
Esse artigo lana o olhar sobre como a evoluo tecnolgica interfere na
memria privada e na memria pblica na fotografia contempornea. Para isso so
relacionadas caractersticas da sociedade industrial e da sociedade de redes e o
modo como esses modelos esto intimamente ligados produo fotogrfica
convencional e digital, respectivamente.
Algumas das explicaes sobre o que a fotografia inevitavelmente remetem a
um atrelamento entre a imagem fotogrfica e a memria. Em grande parte essa
remisso quase que obrigatria da foto memria vem do suporte em que a imagem
fixada. O pedao de papel com uma imagem durante muito tempo foi tido como
um trao do real passado, parte da realidade fsica capturada durante o ato
fotogrfico (Dubois, 1993). Kossoy (2002) deixa ainda mais evidente que a
materialidade da fotografia foi fundamental para a actividade de uma parte
importante dos pesquisadores da memria: os historiadores. O autor diz que o
arquivamento cuidadoso das fotografias garantia de uma interpretao mais fiel da
realidade investigada pelos historiadores. A memria da fotografia deve ser
preservada para posterior garimpo do pesquisador.
Muitas partes da Histria foram descobertas e recontadas com esse trabalho de
investigao diante da materialidade da fotografia. Essa dimenso palpvel da
informao fotogrfica tornou-se libi dos factos representados de tal modo que
norteou de maneira crucial uma corrente da histria da fotografia. Isso por que a
tendncia terica que atribua fotografia uma essncia do real, um trao indicial do
real, foi extremamente relevante na segunda metade do sculo XX. A fotografia
carregaria em si uma parte do acontecimento. A alma do facto fora, para esses
tericos, capturada para futuro deleite do garimpeiro da Histria.
O trabalho de reconstruo da realidade por meio dessa memria dependia em
grande parte do cuidado com o arquivamento das fotografias. E tambm do modelo
de armazenamento dessas informaes iconogrficas (Kossoy, 2002) disponveis para
uma arqueologia, que compreenda os elementos constitutivos (assunto, fotgrafo e
1

O autor Doutorando e Mestre em Comunicao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Professor-assistente da Universidade Federal do Esprito Santo.

tecnologia) e as coordenadas de situao (espao e tempo). Com a chegada da


digitalizao de todo tipo de informaes, h uma mudana crucial no modo de
preservao e distribuio da imagem, com destaque para a imagem fotogrfica. o
reflexo da passagem do pensamento industrial para a emergncia de novos
paradigmas como a sociedade das redes.

Modelo industrial e imagem: limite de distribuio


O hbito de armazenar imagens nos lbuns de famlia remete a um desejo de
preservar o passado privado para a posteridade. Deixar a marca de nossa existncia
para as futuras geraes. A juno de passado e futuro no ato fotogrfico. Na maioria
das vezes, os lbuns so constitudos de imagens de momentos especiais,
acontecimentos fotografveis (LINHARES SANZ, 2005). Casamentos, baptizados,
aniversrios, datas comemorativas ou viagens. Mas a memria privada contida nos
lbuns de famlia contempla ainda parte de uma histria menos importante, de
momentos no to essenciais assim para a vida social. Esse universo de imagens que
no receberam o devido destaque por falta de relevncia foi base para muitas
pesquisas. desse acervo que trata Kossoy (2002) quando fala que a memria da
fotografia revela a terceira realidade, aquela que se apresenta como um quebracabeas que deve ser montado pelo investigador.
Mas o lbum tem como caracterstica ser ntimo, pessoal. Algumas vezes, quase
misterioso. Assim, apenas o tempo pode trazer tona fotografias que ficaram,
durante muitos anos, guardadas. s vezes, somente depois da morte de seus donos os
lbuns tornam-se pblicos. Ou as imagens so preservadas por pessoas prximas ou
acabam virando lixo muitas vezes objecto de pesquisa. O espao privado que se
torna pblico ao se tornar descartvel, ao ser jogado fora.
Esse modelo de preservao da memria privada significativo no sistema
convencional (ou analgico) de produo das imagens. A materialidade da fotografia
em pelculas e papis demanda esse processo de preservao do espao privado como
algo sagrado. Desde o procedimento utilizado nos laboratrios para o surgimento das
imagens at a forma de exibio das fotos em verdadeiros altares nas salas de estar.
No laboratrio fotogrfico o aparecimento da imagem latente traz em si um pouco de
magia, de sobrenatural. Uma sensao de autonomia inexplicvel da imagem que
desde muito tempo vrios fotgrafos utilizaram para manter o fazer fotogrfico como
algo para alm da compreenso humana. O olhar sobre a imagem do mundo visvel
cristalizada no papel fotogrfico esteve cheio de encantamento desde o incio da

histria da fotografia. O ato de revelao da imagem de tal modo representa esse


encanto que o cinema at hoje se utiliza do ambiente avermelhado do laboratrio
para representar cenas em que a fotografia essencial. O aparecimento da foto no
banho do revelador remete ao ato de revelao sagrado. No princpio era o papel
branco, e do nada se fez a imagem atravs do banho sacro e revelador.
Alm disso, a penumbra do laboratrio tambm remete ao que deve ficar
oculto, ao que privado e no pode ser revelado a todos: apenas pelo laboratorista.
Como um padre que escuta os pecados no confessionrio, o profissional do
laboratrio fotogrfico recebeu a incumbncia sagrada de ver os pecados imagticos
e no contar a ningum. Segredo profissional. E s quem trabalhou nas salas escuras
dos laboratrios fotogrficos sabe quanto de intimidade passou pelas mos de
laboratoristas mundo afora. Mas, como este profissional o padre das imagens, as
cenas nascidas sagradamente no trabalho dentro do laboratrio e que devem ficar
circunscritas ao espao privado esto seguras. Jamais sero reveladas.
No espao de visibilidade das imagens que podem ganhar exibio pblica,
ainda que restrita aos visitantes da casa, est a estante. Os porta-retratos so
pedaos das vidas de seus protagonistas, dos sujeitos retratados, e que
permanecero na intimidade do lar como forma de proteger as imagens da profana
exposio pblica. O lugar de apresentao dessas cenas o altar caseiro, um local
de admirao, contemplao, rememorao. O sagrado mais uma vez se anuncia
como parte inerente fotografia em papel.
Devido a esse peso da materialidade fotogrfica, antes de descartar negativos
ou fotografias que no mais sero aproveitados, muitos fotgrafos tomam o cuidado
de inutiliz-los, cortando em pequenos pedaos para tornar a identificao da
imagem praticamente impossvel. O medo que leva a esse descarte minuciosamente
trabalhado muitas vezes bem objectivo: evitar que pessoas no autorizadas tenham
acesso s imagens privadas de algum cliente. A preservao da privacidade est
assim garantida.
possvel remeter, ento, a lgica da fotografia convencional ao modelo
terico da sociedade industrial fordista. Isso porque h referncia directa a esse
modelo desde o ato de captura da imagem at o processo de distribuio desta. A
fotografia reproduz esse modelo em decorrncia dos dispositivos (mentais ou
materiais) utilizados. Do ponto de vista mental, o entendimento da fotografia como
uma verdade absoluta como reproduo fiel do real esteve no cerne das
discusses mais importantes do incio dessa tcnica, ainda no sculo XIX. E ainda

hoje esse tema tem certo peso, principalmente entre os mais puristas defensores da
imagem-verdade. Assim, a fotografia convencional deixa evidente a referncia ao
modelo industrial. O carcter massivo, a palpabilidade do objecto fotogrfico, o
domnio pleno do produtor (autor) sobre a mensagem e a distribuio da fotografia
no esquema um-muitos deixam claro aspectos inerentes ao modelo industrial.
Nesse modelo terico industrial a memria privada preservada com mais
facilidade em espaos de visibilidade bem delimitados. O pblico se ope ao privado
de maneira veemente e, como as fronteiras entre os dois espaos so ntidas, mais
simples a proteco contra a distribuio de informaes confidenciais. Uma vez que
o modelo de divulgao est estruturado no sistema um-muitos, basta regular o ente
propagador da informao que os receptores obrigatoriamente estaro refns da
vontade do emissor. A mensagem fotogrfica controlada facilmente. Assim, a
memria privada estar devidamente protegida nos lbuns de famlia e somente ser
objecto de investigao quando houver inteno de que isso acontea.

Modelo rizomtico de visibilidade: circulao e produo


Se a fotografia convencional tem na sua materialidade aquilo que permite o
armazenamento da memria, essa afirmativa no vlida para a fotografia digital.
Com o surgimento da imagem numrica, transformaes intensas modificaram o fazer
fotogrfico. Entre as principais mudanas, possvel destacar a pulverizao de
cmaras nas mos de fotgrafos amadores; a distribuio descentralizada das
imagens e o uso mais instantneo das cenas capturadas. Mas, h um aspecto que tem
recebido pouca importncia por parte de pesquisadores da imagem: a preservao da
memria fotogrfica com as tecnologias digitais.
Esse assunto pode ser dividido em universos analticos distintos, mas que se
complementam: de um lado situam-se os (integrados?) defensores da tecnologia
digital como fomentadora de mais memria e de outro esto os (apocalpticos?) que
acreditam na falncia da memria tal como ns a concebemos hoje com a
emergncia das novas tecnologias digitais. No cabe a este artigo a funo de
incrementar ainda mais esse debate. Na verdade, as duas correntes esto imbricadas
neste trabalho, j que o que nos interessa entender como as fotografias digitais
modificaram a relao entre pblico e privado no mbito da memria fotogrfica.
Para ilustrar como essa mudana de paradigma implica transformaes da
memria fotogrfica, ser utilizada uma cena comum e que todos j vivenciaram de
alguma maneira: uma festa de aniversrio infantil. Esse o locus apropriado para

evidenciarmos os limites e as potencialidades dos novos meios tecnolgicos de


informao. Nos festivos ambientes esto reunidos autores e receptores; fotgrafos
profissionais e amadores; produtores e consumidores de imagens que cintilam
incessantemente (AUMONT, 1993). No decorrer de uma festa, as crianas brincam
sem se preocuparem com seus pais que, munidos de aparelhos fotogrficos, tentam
capturar os melhores momentos, tornando eternos aqueles fugidios intervalos
temporais.
Na hora do Parabns!, em meio a tantas cmaras, h sempre um olhar
treinado, especializado, pronto para captar o instante perfeito e vend-lo aos pais do
aniversariante. Essa a funo do fotgrafo dito profissional. Normalmente ele se
destaca do fotgrafo amador por possuir uma cmara que permite o uso de
recursos mais complexos. Nessa cena quotidiana e simples, esto imbricados alguns
dos conceitos mais actuais dos pensadores das transformaes da imagem fotogrfica
na cultura contempornea.
Primeiro

vamos

analisar

fotgrafo

profissional.

Diferentemente

dos

primrdios da fotografia, quando os objectos permaneciam um tempo longo de


exposio diante do profissional, agora apenas uma fraco de segundo suficiente
para impregnar o material sensvel. Essa transformao, que permitiu a captura do
quotidiano em instantneos fotogrficos (DUBOIS, 1993), fez com que o profissional
pudesse cobrir cenas do quotidiano, tais como as festas infantis. Ainda assim, no
perodo das imagens analgicas havia um tempo considervel entre a captura da
imagem e o momento de entrega dessas fotografias aos aniversariantes. Um perodo
em que a imagem latente construa um desejo no imaginrio dos fotografados. O
profissional jogava com esse tempo para ampliar o desejo pela imagem e,
consequentemente, valorizar ainda mais suas fotografias. Com a imagem digital esse
tempo encurtado e o fotgrafo obrigado muitas vezes a apresentar ali mesmo, no
pequeno visor de cristal lquido, diante do fotografado, o resultado de seu trabalho.
Assim, receptor e produtor da imagem esto frente-a-frente praticamente
dentro da cena. A possibilidade de interferncia do sujeito fotografado na imagem
imediata e altera o relacionamento entre fotgrafo e fotografado. Nasce um novo
espao de negociao para a definio da qualidade fotogrfica. Um espao
simultneo ao da captura. J os outros fotgrafos da festa, os amadores, estes
tambm criam um debate com os fotografados. Porm, mais por uma satisfao de
exibir suas qualidades tcnicas do que para debater com o retratado. Esses dois
momentos servem para aferir como o equipamento digital permitiu um duplo

movimento. mquina de captura e de exibio de fotos, mquina de ver e de ser


visto. A compresso de tempo e espao interfere directamente no que chamamos de
memria fotogrfica. Como o digital permite a exibio imediata da imagem, tanto
profissionais como amadores passam a tornar pblica a fotografia j no local do ato
fotogrfico. O espao privado suprimido em funo da visibilidade da imagem
digital.
Mas essa publicitao da fotografia ganha contornos ainda mais ntidos quando
essas imagens so tornadas disponveis na internet. Atravs de sites de
relacionamento, definitivamente h a abolio das fronteiras do espao para a
memria privada em proveito da circulao da imagem. Nesse momento, as imagens
dos amadores tero mais importncia quanto mais circularem pelos computadores
dos convidados da festa. J o fotgrafo profissional ver seu trabalho perder em
importncia quanto mais tempo levar para entregar as imagens para os
aniversariantes, uma vez que a surpresa elemento fundamental na fotografia
convencional e a imagem latente no existem mais. Muitas imagens j foram vistas
pelos fotografados.
O modelo terico da sociedade das redes reduz o poder do fotgrafo
profissional e amplia o valor de circulao da imagem. Quanto mais a fotografia
circular, mais valor ela ter. Ao contrrio da fotografia convencional, a imagem
digital tem uma relao muitos-muitos, j que possvel duplicar as fotos
infinitamente. E cada cpia um novo original, multiplicando a produo na
circulao. Assim, a festa infantil, celebrao privada que ficaria guardada na
memria fotogrfica nos altares sagrados dos lares ganha visibilidade e profanao
com as redes e com as tecnologias digitais.

Concluso

Podemos afirmar, ento, que vivemos numa democracia fotogrfica. Os espaos


capturveis pelas cmaras tornaram-se muito mais colectivos e muito menos solenes.

Se h pouco tempo raramente algum transportava uma cmara fotogrfica em sua


bolsa no dia-a-dia, hoje qualquer pessoa est minimamente equipada para fotografar
um acontecimento inusitado. Quase todos os aparelhos de telefone celular possuem
cmara, facilitando a captura de instantes que antes ficavam retidos apenas na
retina de quem os vivenciou. Por isso, um pr-do-sol na volta para casa depois de um
dia cansativo no trabalho ou os primeiros momentos de vida, ainda na maternidade,
so temas recorrentes nos arquivos digitais disponveis na rede mundial de
computadores. Assim, a sacralizao do instante decisivo cada vez menor, visto
que o equipamento digital permite a captura de uma quantidade imensa de cenas
sem que haja custo financeiro para o fotgrafo uma vez que a imagem de baixa
qualidade pode ser descartada sem que haja impresso.

A principal modificao na fotografia contempornea certamente est no


processo de distribuio da imagem, que interfere directamente na relao entre
autor e receptor. As imagens tornaram-se produtos que podem ser acedidos por
qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, desde que a foto ou o vdeo sejam
digitalizados e que estejam disponveis na internet. Essa mudana interferiu
directamente no que chamo de memria privada da imagem. No mais esto seguras
as fotos que ficam restritas ao espao privado, nos computadores pessoais que foram
transformados nas estantes dos tempos actuais. A privacidade tem que dar lugar
publicidade para que a memria privada das actuais geraes seja preservada. Isso
implica em um deslocamento na nova forma de observar os processos de distribuio
de fotografias.
Definitivamente, o modelo que privilegiava a hierarquia na distribuio da
imagem, tal qual o modelo industrial, no d conta da nova configurao da
memria fotogrfica. Apenas na multiplicao do arquivo digital e na sua
consequente difuso pela internet pode estar garantida a perenidade da memria
privada. Esse paradoxo uma das marcas da superao da dicotomia entre memria

privada e memria pblica que vem tona na imagem contempornea. Veja o


exemplo dos vdeos de partos disponveis no site YouTube. A cena ntima do
nascimento, antes exclusiva da famlia, torna-se pblica e, por isso, perene.
No modelo de sociedade de redes, apenas quem tiver suas
imagens digitais e disponibilizadas na internet ter memria privada.
Aqueles que deixarem as cenas restritas aos computadores ou aos
cartes de memria esto fadados ao esquecimento completo. E sem a esperana de
que um arquelogo da imagem possa revirar o ba esquecido num quarto qualquer
para reconstruir a realidade fotografada. Essa perda de memria um dos riscos da
digitalizao da imagem.
Mas, antes de encerrar, h que se considerar as imagens digitais que so
impressas por seus criadores. Essas continuaro existindo, como demonstram algumas
pesquisas recentes. Mas sero elementos cada vez mais raros. Qui sero novamente
originrias do ciclo de ressacralizao da imagem, com um movimento de destaque
das cenas consideradas importantes socialmente, tais como casamentos, baptizados,
nascimentos etc. Contudo, na anlise desenvolvida neste artigo, possvel afirmar
que a permanncia do hbito de imprimir fotos capturadas digitalmente o ltimo
suspiro da sociedade industrial. Uma sociedade que necessitava da materialidade e
da hierarquia como balizas para a produo de seus produtos.
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