O Pecado Original Da República - Revista de História - Carvalho

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26/02/2015

OpecadooriginaldaRepblicaRevistadeHistria

O pecado original da Repblica


Como a excluso do povo marcou a vida poltica do pas at os dias de hoje
Jos Murilo de Carvalho
19/9/2007

Ano de 1889: cem anos da Revoluo Francesa. A corrente jacobina dos republicanos brasileiros julgava ser
essa a ocasio ideal para a proclamao de nossa Repblica, que deveria, segundo ela, ser feita
revolucionariamente pelo povo lutando nas ruas e nas barricadas. O principal portavoz dessa corrente, Silva
Jardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde dEu, o marido da princesa Isabel. Sendo o conde um
nobre francs, seu eventual fuzilamento daria revoluo brasileira um sabor especial, pois lembraria a
morte na guilhotina do rei Lus XVI.
Um ponto central da propaganda republicana era a idia de autogoverno, do povo governando a si mesmo,
do pas se autodirigindo, sem necessidade de uma famlia real de origem europia e de um imperador
hereditrio. Das trs correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribua maior protagonismo
ao povo.
A corrente mais forte era a liberalfederalista, de derivao angloamericana. O liberalismo vinha do lado
anglo, da Inglaterra; o federalismo, do lado norteamericano. O liberalismo predominou no Manifesto
Republicano de 1870, mais bem representado por Saldanha Marinho, e o federalismo, no projeto de
constituio dos republicanos paulistas de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Por
sua ascendncia liberal, oriunda dos liberais do Imprio, ela admitia participao popular, embora sem lhe
atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos. Pelo lado federalista, no entanto, no havia muita
simpatia pelo povo. Interessavalhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo federalismo.
A terceira corrente era a positivista, tambm de filiao francesa, no da Revoluo, mas do filsofo
Augusto Comte. Os positivistas eram os nicos que no previam papel ativo para o povo na Repblica. Os
protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os prprios positivistas, no campo material, os
empresrios. Os positivistas no admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores,
era trabalhar, o dever dos empresrios e o do Estado era cuidar do bemestar do povo.
Prometida pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia poltica, a
incorporao do povo, foi posta em prtica pelo novo regime. A primeira dcada republicana foi marcada
pela presena de militares no governo, por agitaes, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presena
durante o governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participao jacobina atingiu o
ponto mximo na tentativa de assassinato do presidente Prudente de Morais, em 1897. A partir do prximo
presidente, Campos Sales, a corrente liberalfederalista, sob a hegemonia de So Paulo, passou a
predominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal.
At 1930, podese dividir o povo da Repblica em trs partes. Imaginemos um grande crculo contendo em si
crculos menores. O grande crculo representa o total da populao do pas; os crculos menores, as parcelas
dessa populao dividida de acordo com sua participao poltica. Movimentandonos do centro para a
periferia, chamemos o crculo menor de povo eleitoral, isto , aquela parcela da populao que votava; o
crculo seguinte, um pouco maior, representa o povo poltico, isto , a parcela da populao que tinha o
direito de voto de acordo com a Constituio de 1891; o crculo seguinte o do povo excludo formalmente
da participao via direito do voto (ver desenho abaixo).
De acordo com os dados do censo de 1920, teremos uma populao total, representada pelo crculo maior,
de 30,6 milhes. Este o povo do censo que, pelo menos em tese, possua direitos civis. Mas quantos desses
cidados civis eram tambm cidados polticos, quantos pertenciam ao corpo poltico da nao? Para calcular
esse nmero, temos primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. O
analfabetismo, na poca, atingia 75,5% da populao. Feito o clculo, restam 7,5 milhes. Depois, preciso
descontar as mulheres. Embora a lei no lhes negasse explicitamente o direito do voto, pela tradio no
votavam. Ficamos com 4,5 milhes. Os estrangeiros tambm no tinham o direito do voto. Nosso nmero cai
para 3,9 milhes. Finalmente, os homens menores de 21 anos tambm no votavam. Ficamos reduzidos a
mseros 2,4 milhes de brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema poltico por meio do voto.
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Ficam fora do sistema, excludos, 28,2 milhes, 92% da populao.


Se eram poucos os que podiam votar, menos ainda eram os que de fato votavam. Nas eleies presidenciais
de 1910, uma das poucas em que houve competio, disputando Rui Barbosa contra o marechal Hermes da
Fonseca, a absteno foi de 40%. Os votantes representaram apenas 2,7% da populao. No Rio de Janeiro,
capital da Repblica, onde 20% da populao estava apta a votar, compareceu s urnas menos de 1%. Votar
na capital era at mesmo perigoso devido ao dos capangas a servio dos candidatos. Quem tinha juzo
ficava em casa. Como disse Lima Barreto de sua Repblica dos Bruzundangas: [Os polticos] tinham
conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador o voto. A
eliminao do voto completavase com a fraude. Ningum podia ter certeza de que seu voto seria contado a
favor do candidato certo.
Significa isso que o povo da Primeira Repblica no passava da carneirada dos currais eleitorais e da massa
aptica dos excludos? Seguramente que no. Por fora do sistema legal de representao havia ao
poltica, muitas vezes violenta. Entre os poucos que votavam, os que escolhiam no votar e os muitos que
no podiam votar, havia o que chamo de povo da rua, isto , a parcela da populao que agia
politicamente, mas margem do sistema poltico, e s vezes contra ele. difcil calcular o tamanho desse
povo. Podemos apenas surpreendlo em suas manifestaes. E podemos tambm dizer que ele existia tanto
nas cidades como no campo.
Nas cidades, sobretudo nas maiores, a tradio de protesto vinha de longe e manifestavase o mais das
vezes nos quebraquebras. Ela se intensificou a partir da proclamao da Repblica, atingindo o ponto
mximo no protesto contra a vacinao obrigatria em 1904. A novidade republicana ficou por conta do
movimento operrio em fase de organizao. Foram inmeras as greves que atingiram a capital da Repblica
e So Paulo, alm de outras capitais. Seu auge verificouse durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos
que a seguiram. Calculouse que 236 greves foram feitas na capital e no estado de So Paulo entre 1917 e
1920, envolvendo cerca de 300 mil operrios. Em torno de 100 mil operrios participaram da greve geral de
1917 no Rio de Janeiro. Outra novidade republicana foi a participao poltica dos militares, jovens oficiais
e praas. A mais conhecida e mais dramtica dessas manifestaes foi a revolta dos marinheiros contra o
uso da chibata, em 1910, em que se destacou o marinheiro Joo Cndido.
O efeito poltico das manifestaes urbanas foi limitado porque elas se davam fora dos mecanismos formais
de representao. O prprio movimento operrio, na medida em que era orientado pelo anarcossindicalismo,
sobretudo em So Paulo, fugia da participao eleitoral e nunca organizou um partido poltico duradouro at
que fosse fundado o Partido Comunista, em 1922.
No mundo rural, foi igualmente intensa a participao do povo. A tambm havia uma longa tradio que foi
intensificada pelas mudanas polticas introduzidas pelo novo regime. As figuras centrais das agitaes
rurais eram beatos e cangaceiros. O mais dramtico de todos esses movimentos, pelo nmero de mortos, foi
sem dvida o de Antnio Conselheiro nos sertes da Bahia. A seu modo, os beatos do Conselheiro agiram
politicamente, ao recusar o pagamento de impostos, ao rejeitar mudanas nas relaes entre Igreja e
Estado. Lutando contra a lei do co do novo regime, os rudes sertanejos humilharam o Exrcito, que
contra eles lanou quatro expedies, e deram um exemplo nico em nossa histria de fidelidade
incondicional s crenas adotadas.
Movimento semelhante ao de Canudos foi o do Contestado, localizado em terras disputadas entre Paran e
Santa Catarina. O monge Jos Maria deralhe incio ainda no Imprio. Proclamada a Repblica, seu sucessor
reagiu contra o que chamava de lei da perverso, o equivalente da lei do co do Conselheiro. A partir
de 1911, outro sucessor de Joo Maria, Jos Maria, lanou um manifesto monarquista e nomeou imperador
um fazendeiro analfabeto. Criou uma sociedade assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e sem
comrcio. Canudos e Contestado foram combatidos e destrudos com violncia pelo Exrcito, que no
hesitou em usar canhes contra sertanejos pobremente armados.
No Cear, padre Ccero organizou uma comunidade sertaneja que, poca de sua morte, em 1934, contava
40 mil pessoas. Padre Ccero no contestava o sistema, como o Conselheiro e Jos Maria. A seu modo,
agindo mais como coronel poltico, fundou uma Repblica paternalista muito prxima da populao.
Manipulando valores tradicionais e colocandoos a servio da modernidade, reduziu a distncia entre o legal
e o real, aproximou da populao o poder. Alguns de seus seguidores, como os beatos Jos Loureno,
Severino e Senhorinho, fundaram comunidades radicais ao estilo do Contestado. Padre Ccero entendeuse
com os poderes da Repblica e foi tolerado. Os trs beatos foram massacrados juntamente com seus
seguidores.
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Os cangaceiros, frutos do mesmo meio social que gerou os beatos, mantinham, como padre Ccero, contatos
estreitos com os poderes da Repblica. Mas fugiam ao controle dos coronis e dos governos estaduais.
Foram tambm combatidos sem trgua e destrudos. Beatos e cangaceiros representavam formas de
organizao e de reao construdas margem do sistema poltico. Canudos, Contestado, e mesmo o
Juazeiro do padre Ccero, eram modelos alternativos de Repblica. Apesar de inviveis por serem produtos
do isolamento geogrfico e da imensa distncia cultural entre a populao e o mundo oficial, essas
Repblicas foram destrudas a ferro e fogo e s deixaram traos na memria popular. A exceo foi
Canudos, que foi imortalizado por Euclides da Cunha, no por acaso um intelectual estranho no ninho das
elites.
O grosso do povo excludo era mantido sob controle pela prpria organizao social do mundo rural, baseada
na grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de cooptao e manipulao. O
povo da rua era quase sempre tratado bala, nas cidades ou no campo.
Mas a Repblica usou tambm mtodos menos violentos para lidar com seus excludos. Produziu missionrios
do progresso que se puseram a catequizar os cidados incultos e tratar os doentes. Foram missionrios do
progresso Pereira Passos, reformador do Rio de Janeiro, Osvaldo Cruz, saneador da cidade, Artur Neiva e
Belisrio Pena, saneadores dos sertes. O maior de todos eles, no entanto, foi o general Rondon, positivista
ortodoxo, que dedicou boa parte da vida proteo dos indgenas. Muito superiores pelos mtodos aos que
destruam pela fora os movimentos populares, esses missionrios no estiveram imunes a uma viso
tecnocrtica e autoritria. O povo para eles era massa inerte e analfabeta a ser tratada, corrigida e
civilizada. De certo modo, eram messias leigos, com a diferena de que no tinham o apoio popular dos
messias do serto.
A Primeira Repblica, em seus 41 anos de existncia, no fez jus s promessas da propaganda de promover
a ampliao da participao poltica, o autogoverno do povo. No unificou os trs povos, no os incorporou.
No transformou em cidados o jeca doente de Monteiro Lobato e dos higienistas, o spero sertanejo de
Euclides, os beatos de Canudos e do Contestado, o bandido social do cangao, o anarquista do movimento
operrio.
A ausncia de povo, eis o pecado original da Repblica. Esse pecado deixou marcas profundas na vida
poltica do pas. Quando, em meio crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrena nos partidos,
no Congresso, nos polticos, de que se trata se no da incapacidade que demonstra at hoje a Repblica de
produzir um governo representativo de seus cidados?
Jos Murilo de Carvalho professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de A
cidadania no Brasil: o longo caminho (Civilizao Brasileira, 2001).

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