O Ser Como Objeto Da Inteligência - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

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TRANSCRIO1 DA AULA DE 16 DE SETEMBRO DE 2006

PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO


O SER COMO OBJETO DA INTELIGNCIA
INTRODUO: DUAS DIMENSES DA VIDA HUMANA
Professor: Na ltima aula, ns estvamos tratando das duas dimenses da
vida humana: a vertical e a horizontal. A vida humana tem duas questes
fundamentais que precisam ser resolvidas durante a sua vida. Ele o nico animal
capaz de transcender para o absoluto e capaz de antecipar [conscientemente] a sua
prpria morte. A capacidade humana de conceber a morte e o absoluto algo
completamente dispensvel em termos biolgicos. E isso ocorre justamente devido
presena de uma inteligncia abstrata no indivduo. A inteligncia abstrata somente
encontra sua justificativa na capacidade de conceber o mundo do puro esprito e o
mundo transcendente, de modo que um ser humano passa ter um problema duplo na
sua existncia:
1) ele precisa saber algo sobre o absoluto;
2) ele precisa ser capaz de integrar esse conhecimento na vida dele como
um todo.
Ele no pode ficar apenas pensando no absoluto e dedicando-se
inteligncia. Como ele resolver esse problema? Resolver na medida em que existir
em toda atividade humana uma referncia ao transcendente. Em tudo que ele fizer,
mesmo o que fizer apenas em nome das necessidades biolgicas, ser inserida esta
dimenso transcendente. Toda e qualquer atividade humana implica nisso para que
seja propriamente humana: que seja um casamento do mundo terrestre com a
dimenso celeste.
Aluno: Como um todo?
1

Transcrio, ttulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em maio
de 2006. Verso no revista pelo autor da aula. [N.T.].

Professor: Isso para que o ser humano tenha uma vida completa. Uma
vida humana completa implica que o sujeito seja capaz de cruzar estas duas
dimenses em cada uma das suas atividades. O primeiro problema seria isso:
como eu posso conhecer melhor o que o Absoluto, o que a
Transcendncia, o que Deus?
O SER COMO OBJETO DA INTELIGNCIA
Neste primeiro problema surge uma questo fundamental: o objeto da
inteligncia abstrata o ser enquanto tal. O objeto dos sentidos e da imaginao no
o ser, mas os modos de existir. Estes so uma espcie de participao no ser. Por
exemplo: falar um modo de existir ou de ser. Andar outro, respirar outro,
pensar outro: todos estes so modos de ser. Mas nenhum deles o prprio ser. Por
exemplo: se o sujeito fala, falar alguma coisa, mas falar no andar. Andar no
comer e assim por diante. Cada uma destas modalidades possui uma analogia com as
outras atividades e essas analogias se fundam justamente no ser, pois todos estes so
modos de efetividade. Ento, a primeira coisa que a inteligncia capta ao perceber
algum modo de existncia ou atividade concreta que tal objeto , de algum modo,
real. A primeira percepo que se tem de uma coisa que ela real. Mas esta
percepo imediatamente passa para o fundo da conscincia e a ateno se volta
para a formalidade prpria daquele objeto e no para o seu carter de ser enquanto
ser. Volta-se para a qididade dela. Ao perceber uma pedra caindo ou a gua de
um rio fluindo, a primeira percepo da inteligncia que aquilo algo. E o
segundo passo perceber quais so as qualidades distintivas deste algo e que o
diferenciam de qualquer outro ser. Embora a inteligncia seja feita para o ser, a
psique humana no feita para voltar sua ateno fundamentalmente para o ser, mas
para as formas particulares do ser. Esta a primeira tenso que precisa ser resolvida
para uma vida humana completa. De algum modo, tenho que balancear essa

tendncia psquica de me voltar apenas para um modo de existncia particular e


dirigir-me para o carter de ser.
[Aluno pede mais um exemplo.]
Professor: Veja bem, escolham um objeto que vocs no saibam exatamente
o que . Por exemplo: este objeto em cima da mesa [e aponta para um enfeite
localizado sobre a mesa].
Aluno: uma urna!
Professor: Veja bem, voc olhou isso e imediatamente a sua ateno se
voltou para as caractersticas que diferenciam isso entre os objetos ao redor. Mas
antes, para que eu pudesse perceber isso, eu tive que perceber esse objeto como um
ser. Esta coisa se apresentou como uma realidade. Ele exerceu alguma efetividade
sobre a minha pessoa. Esta efetividade o carter de ser deste objeto. Se a minha
ateno se voltasse pelo tempo suficiente para essa efetividade do objeto sobre o
sujeito, eu captaria claramente o que ser. No o que ser urna, mas o que ser.
Mas o objeto ser pertence ele mesmo ordem transcendente. Porque nada que
captvel pelos sentidos apenas ser ou ser em um sentido puro, mas ser isto ou ser
aquilo.
Aluno: um existente!
A PERCEPO INICIAL DO SER
Professor: um existente , exatamente! um modo de ser. Esta impresso
do ser somente um mnimo inicial [na percepo] do ser humano. A psique do
sujeito pode apagar isso e dizer: voc nem sabe se isso existe. Mas para que a
psique humana deturpe esta percepo a ponto de dizer que isso nada, primeiro
voc teve que captar que isso ser. O primeiro problema, ento, esse: desenvolver
a percepo do ser. O segundo passo apropriar-me da captao do ser enquanto tal.
Por qu? Porque a diferena entre o ser e o nada absoluta 2. Este o primeiro
2

Conferir Filosofia Concreta de Mrio Ferreira dos Santos [N.T.].

indcio ou a primeira nota que o sujeito possui sobre o mundo transcendente, a


diferena entre o ser e o nada. perceber que no existe intermedirio entre ser e
no ser. No existe algo entre o nada e o que . Pode existir algo que mais ou menos
uma coisa, isto , mais ou menos uma mesa ou uma urna, mas no pode existir
alo que mais ou menos . No existe algo que mais ou menos humano, algo que
mais ou menos cavalo, mas no pode existir alo que mais ou menos .
Aluno: Se existisse, seria um meio termo entre o ser e o nada.
Professor: Mas no h um meio termo entre o ser e o nada.
[Aluno comenta sobre o ser e o nada na Criao do Gnesis3.]
Ento, esta captao a primeira notcia a respeito do ser. Para que o
sujeito possa ter uma idia clara sobre o que Deus, primeiro preciso perceber
isso. Ele, primeiramente, precisa perceber essa diferena entre o ser e o nada.
Aluno: Por qu?
Professor: Por que o ser no objeto da psique. Porque a inteligncia
abstrata no um ato da psique. Ela um elemento que est na psique humana, mas
ela no , por si, uma atividade psquica.
[Aluno faz uma pergunta pedindo para retomar alguns pontos da explicao
a partir de um exemplo baseado na percepo do perigo de uma ona.]
Professor: Exatamente, a primeira impresso de que h algo diante de
mim. Imediatamente depois, voc captou um modo distintivo: um ser perigoso. No
caso da ona, a sua ateno se voltou para uma caracterstica distintiva por uma
questo de sobrevivncia. Nesta hora, com a ona, no possvel parar e pensar
sobre a diferena entre o ser e o nada. preciso pensar sobre a diferena entre ser
comido pela ona e no ser. Devo pensar simplesmente: o que fao para a ona
no me atacar?. Mas justamente este conflito entre uma necessidade biolgica ou
corprea e uma necessidade da inteligncia que leva a psique a se colocar a servio
da corporalidade na maior parte do tempo. No momento em que voc olha a ona e
pensa em fugir dela, por que voc est fazendo isso? Para sobreviver. Voc no est
3

O relato do Gnesis foi tema de uma das aulas anteriores deste curso [N.T.].

fazendo isso por uma necessidade da sua inteligncia abstrata. Naquele momento
voc no age apenas motivado pela sua inteligncia abstrata, mas faz aquilo porque
voc precisa sobreviver. A psique humana faz isso durante o tempo todo, mesmo
que no seja para sobreviver. A ateno da psique sai do ser para a qididade ou
espcie da coisa. E da espcie passa para um acidente particular. De modo que a
ateno tende, quase que constantemente, a ficar nos acidentes particulares das
coisas. isso que impede uma captao do transcendente. Se a sua ateno ficasse
apenas no ser do objeto, voc captaria naquele ser particular o prprio ser e no
apenas a qididade daquele objeto. O ser simplesmente . Por exemplo: em vez de
imaginar um objeto temvel, vamos considerar um objeto desejvel. Ao perceber um
objeto desejvel, tende-se a fazer algo e tomar posse daquele objeto. Na posse deste
objeto, voc frui dele. A ateno, no processo da fruio, passa do objeto ou do
modo de ser do objeto para o prprio processo de fruio. Ento, por exemplo, voc
est comendo uma maa maravilhosa. Assim, a sua ateno vai se voltando da ma
para o efeito que ocorre em voc. Esse o mesmo processo. Primeiro voc captou o
ser da maa. Em segundo lugar, voc captou um conjunto de acidentes que tornam
aquela ma perfeita. E, em terceiro lugar, voc se voltou para o efeito daquela maa
sobre voc. Isso acontece porque o ser efetivo. Sendo efetivo, como se o ser
pressionasse na sua direo. Todo ser uma presena 4. Primeiro voc percebe o ser.
Em seguida a sua ateno vai seguindo o fluxo do ser: da causa5 at o efeito.
[Aluno faz uma pergunta sobre o Ser.]
A INVESTIGAO SOBRE O SER
Professor: Surge o problema seguinte: em que consiste o ser das coisas que
so? O que ser? O que se urna? O que ser cavalo? O que ser cachorro? E
assim por diante.
4

Conferir Ser e Conhecer de Olavo de Carvalho.


De modo que se pode definir causa como aquilo que produz ser como Mrio Ferreira dos Santos explicou
em Ontologia e Cosmologia [N.T.].
5

[Aluno pergunta sobre o sentido de Ser.]


Professor: No se trata de ser como categoria. No o ser no sentido lgico,
como gnero supremo6. o ser no sentido ontolgico[, relativo pergunta]: o que
ser?
[Aluno pergunta sobre a capacidade humana de se conscientizar desta
percepo do ser enquanto ser.]
Professor: Consegue, mas no um hbito natural. Por qu? No um
hbito natural porque a primeira nota do ser justamente a sua efetividade. Todo ser
atua como se irradiasse de si para outro. Esse conceito fundamental, esse conceito de
ser, ele que vai dar o fundamento para todas as concepes sobre o mundo. Por
exemplo: por que uma virtude melhor do que a outra? Por que uma obra feita
segundo a arte melhor do que uma outra que no feita conforme aquela arte?
Em tudo isso, a diferena fundamental que uma mais ser do que a outra. A
virtude um modo de ser e o vcio um modo de no ser. Todos os conceitos
fundamentais da vida humana derivam a sua essncia ou caracterstica principal (..?)
da diferena entre o ser e o nada.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: Um vcio uma forma de privao, uma forma de no ser
aquilo que voc poderia ser. Um vcio uma ausncia, um no ser.
Aluno: Como j dizia Santo Agostinho.
Professor: Exatamente, como j dizia Santo Agostinho.
[Aluno comenta sobre a sua dificuldade em perceber o Ser.]
UM EXERCCIO FUNDAMENTAL DE PERCEPO DO SER
Professor: Diante da dificuldade da psique [em perceber o Ser, que
prprio do intelecto], a soluo que os filsofos encontraram para isso foi usar os
interesses pessoais que a pessoa j possui. Ento, voc tem um talento profissional,
6

Conferir Isagoge de Porfrio, traduzido e comentado por Mrio Ferreira dos Santos.

isso corresponde a um campo da realidade. Isso implica que voc prestar ateno
em alguns objetos. Em parte voc usar essa tenso para que voc possa
compreender a estrutura daqueles objetos, para que voc possa modific-los. Mas j
que voc presta ateno tanto tempo naquilo, de vez em quando voc vai prestar
ateno no ser daquilo. Voc pode captar o ser daquilo.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: Veja bem, trata-se de uma ateno. Ainda no um projeto
analtico. Trata-se de um projeto que vai lhe levar a percepes fundamentais sobre
aquilo para que os projetos analticos sejam bem fundamentados. Por exemplo:
posso fazer uma anlise completa da realidade a partir do pressuposto de que no eu
no sei se as coisas so reais ou no7. Posso partir do pressuposto de que eu no
saiba se o mundo existe ou no existe8, como se ele fosse apenas uma iluso da
minha mente. Isso acontece! Por que isso acontece? Simples, porque o sujeito no se
voltou para a captao do que o Ser. No percebeu que o processo analtico deve
vir depois9. Essa tenso pode ser comparada com a situao do sujeito que est perto
de uma fogueira. O que acontece com quem est perto de uma fogueira? Sente calor.
e seu corpo comea a se esquentar. Mas se voc ficar mais tempo, voc ficar mais
quente. Voc ser um pouco fogueira. como se aquilo tivesse sido capturado.
Com a idia de ser acontece a mesma coisa. Se voc pegar os objetos simplesmente
para perceber enquanto ser, como que aquela idia assimilada? claro que o
sujeito no conseguir prestar ateno em coisas completamente irrelevantes para
ele10. mais fcil fazer esse exerccio pensando em algo que voc gosta. como na
seguinte conto budista:
havia um rei que recebeu a visita de um monge budista. Este lhe contou
sobre os princpios e o simbolismo do budismo, mas o rei disse-lhe que somente
queria saber das prprias jias. Era a nica coisa que lhe interessava neste mundo
eram as suas jias. O monge, ento, disse-lhe que no havia nenhum problema
7

O que seria uma espcie de abandono do problema ontolgico e da percepo do ser [N.T.].
Ou o mundo como um todo, ou algum aspecto particular como as relaes causais, por exemplo [N.T.].
9
Parece lembrar o simbolismo do mercrio e do enxofre em uma das artes tradicionais medievais [N.T.].
10
E poderia at mesmo ser prejudicial! [N.T.].
8

nisso e pediu-lhe que, no final de cada dia, o rei ficasse contemplando a beleza das
jias com a condio de que ficasse prestando ateno apenas na beleza das jias
sem deixar que a teno se volte para o gozo que voc sente diante desta beleza. O
monge pediu-lhe que fizesse isso diariamente por meia hora. Passou o tempo e o rei
se iluminou
O que significa, nesta histria, o alcance da iluminao? simples! No
que o sujeito passe a fazer uma anlise do conceito de ser, mas ele fica to inebriado
com a contemplao do ser que, em tudo que ele olha, a partir de determinado
momento, que ir perceber se aquela coisa mais ou menos do que ela pode ser.
como se ele possusse um critrio fundamental para a avaliao das coisas [enquanto
seres].
Aluno: No to abstrato, ento?
Professor: No to abstrato, mas a ateno ir se voltar para um objeto
completamente abstrato [que o Ser]. Por exemplo: se h uma maa diante de voc,
sua ateno ir se voltando para cada uma das qualidades dela, como sua
consistncia, aroma ou cor. Mas, a cada vez que a sua ateno se voltar para cada
um destes acidentes, voc retoma o objeto inicial, pensando: este o perfume da
ma ou esta a cor da ma.
Aluno: A tendncia fugir, mas devo voltar para o objeto inicial.
Professor: Volte-se para o objeto inicial.
A DIFERENA ENTRE O SER E A QIDIDADE
Deve-se comear pela pergunta o que ser? E no se deve responder essa
pergunta com a qididade da coisa. Se Quando a mente se volta para o que ser
ma, a ateno, quase imediatamente, se volta para o que distingue aquela fruta do
abacate ou das outras. E, por meio desta pergunta passa para a qididade da coisa.
diferente de voc se perguntar em que consiste ser ma? A inteligncia humana

opera em dois planos simultaneamente: o plano das essncias das coisas e o plano
das qididades das coisas.
Aluno: O que qididade?
Professor: Qididade a caracterstica daquilo que .
Aluno: Qididade?
Professor: Por exemplo: a maa tem a sua respectiva qididade. Esta a
caracterstica que responde pergunta: o que a ma? Por exemplo: a qididade do
homem expressa como animal racional, que a resposta para a pergunta: o que
o homem?. A qididade uma abstrao feita a partir da pergunta sobre o que a
coisa.
Mas antes, ontologicamente anterior ao ser ma, h o ser: ser ma ser.
Para ser ma preciso ser. Ao pensar sobre o que ma, aprende-se muito sobre
caractersticas de todas as mas. J sabe muito sobre a qididade da ma. Mas
perceba, quando prestar ateno na ma, que algo precede a qididade dela. Porque
a qididade da ma corresponde a um modo de participar do ser. A estrutura
intrnseca da ma um modo de ser. E assim por diante, para cada objeto.
Professor: Por exemplo: quando eu era mais novo, gostava muito de
matemtica. Mas um dia prestei ateno nesse objeto e me perguntei: o que ser
nmero11? Prestar ateno no que ser nmeros inevitavelmente me levou questo
sobre o que ser. [Neste exerccio de contemplao do ser,] recomendvel que a
pessoa se volte para aquele objeto para o qual ela naturalmente atrada. Na medida
em que a nossa ateno naturalmente vai da percepo do ser das coisas para ns
mesmos, a nossa ateno segue um curso anlogo ao da luz. A luz bate nos objetos e
se volta para o olho humano. Todo objeto que atrai a nossa mente tem essa
caracterstica. Mas o que est irradiando estas informaes? Em que consiste ser isto
que irradia estas informaes.
O EXERCCIO DE IMERSO NO SER DE UMA ATO
11

Pergunta que Mrio Ferreira dos Santos se fez em Pitgoras e o tema do nmero e Edmund Husserl se fez
em Filosofia da Aritmtica.

Darei um outro exemplo. Voc j reparou que, quando voc est


trabalhando, h uma etapa do trabalho em que o processo consciente. Nestas
ocasies voc est testemunhando o que Ser. Em outras ocasies no assim, de
modo que o trabalho se torna inconsciente. Voc no percebe as etapas seguintes
enquanto voc realiza aquele trabalho. Mas ele no inconsciente no sentido
comum desta palavra, como se estivesse sem nenhum controle. Ele inconsciente na
medida em que voc desconhece o controle dele. Quando este trabalho acaba, voc
tem a percepo exata deste momento. Mas ele se ocorre espontaneamente, de certo
modo. Aquele trabalho que voc faz diariamente acaba se tornando espontneo, de
modo que a sua ateno no fica mais vigiando o processo. As coisas at acontecem
exatamente da maneira como deviam acontecer. Sabe o que aconteceu? o
seguinte: naquele breve perodo, a sua conscincia ficou absorvida no ser daquele
trabalho.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: s vezes a gente faz as coisas no piloto automtico. Voc pode ir
no banheiro no piloto automtico, perfeitamente, porque aquilo pode ser mal feito
mesmo que no ter problema. Mas no trabalho no assim: nem sempre se pode
entrar no piloto automtico.
Aluno: O piloto automtico do Arton Senna no era um piloto
automtico. Ele dizia que era como se entrasse em um tnel.
Professor: O que acontecia? A conscincia dele ficava imersa no ser
daquele ato12. E a inteligncia dele tambm ficava imersa no ser daquele ato.
Aluno: Ele j sabia se devia deixar o carro a um milmetro de um obstculo.
Ele no via mais nada [e simplesmente acertava].

12

Conferir definio da filosofia de Olavo de Carvalho, pai do professor Luiz Gonzaga: a filosofia a
unidade da conscincia na unidade do ser e vice-versa [N.T.].

Professor: Vocs lembram daquela histria do arqueiro zen13? O que


acontecia era a imerso do ser do mestre no ser do objeto [tratado pela sua arte] e
daquele processo.
Aluno: Como acontecia com o Arton Senna.
Professor: Exatamente! Antes era como se o sujeito testemunhasse aquele
ser de fora, mas agora ele passou para dentro daquilo.
Aluno: Isso raro!
Professor: raro, mas pode ser treinado. O sujeito pode ser educado para
isso.
Aluno: No um talento extraordinrio, mas um treinamento.
Professor: Um treinamento14!
Aluno: At conseguir fazer bem feito.
Professor: At entrar no ser daquilo e submergir naquela atividade. E,
ento, no mais ele que faz, mas o ser daquilo que faz. Quando se diz que o
prprio sujeito que faz, significa que o seu psiquismo individual que faz, em vez
da inteligncia. Mas naquele momento [magistral] a inteligncia [que est se
manifestando, no simplesmente o sujeito que est agindo com o seu psiquismo].
No o fulano de tal!
Aluno: o Ser!
Professor: o Ser!
Aluno: Isso pode acontecer com qualquer um?
Professor: Com todo mundo! A vida fica melhor na proporo em que mais
pessoas fizerem isso. No somente as coisas ficam mais bem feitas, mas esse
processo renova o sujeito.
[Aluno comenta sobre esta experincia.]
Professor: Exatamente! Naquele momento como se a pessoa recebesse um
prmio!
13

Conferir a aula anterior em que o professor Luiz explicou um exemplo relacionado [N.T.].
Conferir alguma das aulas anteriores deste curso, onde se fez observaes sobre o aprimoramento em uma
arte, especialmente a aula entitulada esttica escolstica [N.T.].
14

O que essa imerso no ser? Naquele momento, o que operou quando eu


estava neste piloto automtico? O que foi isso que operou? Quem fez isso? Se no
fui eu que fiz, quem fez?
Aluno: Essa a pergunta do Santo Agostinho?
Professor: Sim, essa a pergunta dele15. Essa pergunta pode partir de
qualquer objeto. Quanto mais a pessoa se aproxima da resposta dessa pergunta
nmero um, mais se aproxima de um critrio que permite avaliar todas as coisas
[que so].
[Aluno pergunta sobre a pergunta acerca do Ser.]
Professor: Exatamente. O objeto desta pergunta primeira o Ser. E [nesse
processo] voc chega concluso de que voc est no Ser de fato . Por qu? Mesmo
a qididade de algo somente pode ser compreendida quando h uma captao
suficiente do Ser. Voc somente vai compreender uma mesa, por exemplo, se voc,
em alguma medida, compreender que ela . Se a minha ateno se voltar
prematuramente para a anlise, eu no saberei se a estrutura alcanada no final da
anlise corresponde a algo real ou no.
[Aluno pergunta sobre essa condio da anlise.]
Professor: [A anlise feita] somente pode ser compreendida se houver uma
captao suficiente do Ser.
INVESTIGANDO O ASPECTO INCONDICIONADO DA REALIDADE
Se o sujeito investigar o que opera nesses momentos perfeitos em que no
h interveno da prpria psique, o sujeito perceber que algo dotado de liberdade.
No se pode pegar essa arte do arqueiro zen [por exemplo] e formar uma clula de
reproduo dela que funcionar automaticamente. Por exemplo: existe uma frmula
para construir um prdio direito, existe uma frmula para dirigir um carro
perfeitamente, mas no existe uma frmula para voc se tornar o sujeito que dirige
15

Conferir aula de Olavo de Carvalho sobre Santo Agostinho do curso Histria Essencial da
Filosofia[N.T.].

perfeitamente. No existe uma frmula para imbuir isso em uma pessoa. Existe uma
parte da realidade que condicionada e outra que incondicionada. Por exemplo: na
prpria arte de construir um prdio, existe uma parte que condicionada. a parte
bem dada da qididade da coisa: o que um edifcio, o que pedra e destas
qididades, voc deduz as propriedades, com as quais voc monta uma estrutura.
Metade da arte da arquitetura, da construo e da engenharia isso. E a outra
metade? a capacidade que se tem de submergir no ser desta arte e fazer a coisa
bem feita ou produzir um objeto perfeito. Para uma parte, como ela uma seqncia
de condies, pode-se esquematizar e transmitir para um outro. Posso analisar os
materiais e formalizar isso, deixando esquematizado em um tratado que poder ser
passado a um outro.
Aluno: Isso metade da coisa!
Professor: Metade [da arte de construir prdios]! Mas se o sujeito que
aprende essa arte e comea a construir prdios, isso tomar, mais ou menos, um
tero de sua vida. Ele vai trabalhar oito horas por dia. Mas esse um ser humano
com capacidade de buscar o Transcendente e gastar [quase] metade da sua vida
fazendo prdios. No um tremendo desperdcio? Um sujeito passar metade da sua
vida construindo prdios e outro passar metade de sua vida dando aula e assim por
diante.
Qual o nico jeito de no ser um desperdcio? Quando voc exercita uma
arte regularmente, de tempos em tempos, voc ir se submeter ao ser deste processo.
Quem no conseguir jamais submergir no ser disso, mudar de profisso, pois no
agentar.
E quando voc submergir no ser disso, voc volta e observa o que foi esse
processo, o que foi essa submisso. Assim voc transformou um trabalho braal
qualquer em um meio de edificao espiritual. Qualquer atividade humana regular
pode se tornar um meio de edificao espiritual, desde que se faa isso. preciso
criar este hbito. Quando o sujeito volta deste estado, ele deve perguntar o que
aconteceu consigo.

Aluno: Na volta!
Professor: Quando o sujeito volta. Ento, ele deve recordar aquele estado.
Por qu? Porque se voc no recordar esse estado, voc ir tent-lo reproduzi-lo
mecanicamente, como se fosse algo da dimenso das coisas condicionadas.
[Aluno oferece um exemplo relacionado com o regime poltico cubano.]
Professor: Mas o que acontece? O Ser no Estado cubano no corresponde
em medida nenhuma ao Ser de Estado. um modo de no ser um Estado, no um
modo de ser um Estado.
Aluno: Fica somente com a casca.
Professor: Exatamente: fica somente com a casca, apenas com a estrutura
analtica [correspondente ao Estado]. No sustentvel. O modelo ideal do Estado
cubano no baseado na observao do Ser Estado.
Aluno: Mas somente na arquitetura [do Estado].
Professor: Exatamente: na arquitetura ou como na estrutura matemtica.
[Alunos comentam este exemplo.]
Professor: Ento, o primeiro passo justamente esse: quando o sujeito
emerge deste estado, a tendncia justamente a ateno voltar-se para o
condicionado porque h outras coisas a fazer. Mas, mesmo tendo estas outras
atividades para fazer, o sujeito deve marcar trs minutos e no brincadeira: so
trs minutos marcados no cronmetro mesmo. So trs minutos para recordar esse
estado, mas nesses trs minutos o sujeito deve mesmo fazer isso. E o que vai
acontecer? simples! Existe um processo, uma regra matemtica sobre o que vai
acontecer. Ele deve pensar nessa coisa at perceber a diferena que h entre o estado
condicionado e o estado incondicionado. [Deve notar que] isto que aconteceu no
devido a nenhum mecanismo, a nenhum processo mecnico. [Deve superar a
tendncia de] pensar que isso que aconteceu por algum outro motivo. Se chegou
concluso de que o efeito aconteceu porque tocou aquela msica enquanto estava
trabalhando, voc deve testar esta causa16. [Neste caso,] coloque a mesma msica de
16

Para descobrir se h mesmo uma relao necessria entre esta causa e o efeito em questo [N.T.].

novo. Depois, v testando as outras possveis causas, uma por uma. Ao chegar no
limite deste processo, voc [provavelmente] chegar concluso de que [aquele
resultado em questo] no foi causado por nada fora dele.
O SIMBOLISMO DO PRIMEIRO DIA DA CRIAO E DO PRIMEIRO
DOM DO ESPRITO SANTO
Professor: Isto o primeiro dia da vida espiritual e corresponde ao primeiro
dia da criao, quando Ele disse ao criar a luz: E Deus separou a luz das trevas.
Quando o sujeito tenta rememorar este estado e atribui imaginativamente causas a
este estado e vai testando-as e eliminando-as at que ele esgota [aquelas hipteses] e
percebe que aquele efeito intrinsecamente diferente deste plano [condicionado].
Isso a primeira Luz espiritual na vida humana. a percepo de que existe um
plano que no este da Terra. Isto a primeira percepo do outro mundo.
Aluno: como se a pessoa percebesse uma ordem17 do Ser?
Professor: Ainda no a percepo de uma ordem do Ser. a percepo de
que existe algo que no determinado por causas estranhas sua prpria natureza 18.
Por exemplo: existem inmeros fatores que interferem nas atividades. Por exemplo:
voc estava passeando alegremente pelo parque quando uma pedra apareceu no seu
caminho, voc tropeou nela e caiu. O seu passeio pelo parque est condicionado a
causas que so completamente alheias sua deciso de passear no parque. Todos os
processos da sua vida so influenciados por causas estranhas [a eles mesmos] ou at
mesmo hostis. E voc vai descobrir que aqueles processos [incondicionados] no
possuem causas estranhas a si mesmos: nada pode obstaculiz-los. Voc vai
descobrir que no sabe de onde veio e para onde vai: no sabe onde comea, nem
onde termina19. Assim voc percebeu o que o Esprito.

17

Nesta pergunta, o aluno provavelmente estava pensando no sentido de ordem de Eric Voegelin [N.T.].
Em outras palavras: existe algo absoluto ou incondicionado [N.T.].
19
Conferir Evangelho de So Joo [N.T.].
18

A percepo humana das coisas espirituais possui uma analogia com a


percepo [humana] das coisas sensveis. Lembram do mito da caverna20? O sujeito
estava acorrentado [na caverna escura] e, quando sai, fica cegado [pela luz]. A
primeira coisa que ele percebe do outro mundo de que ele no tem a menor idia
de como esse , mas percebe que se tratava de algo que estava presente, pois algo
causou aquele processo. Algo causou [aquele efeito], mas no se tem a menor idia
do que foi. E toda vez que tento achar uma causa, a minha imaginao coloca aquela
causa no plano das coisas condicionadas21. Ento, preciso testar cada uma destas
causas at esgot-las [e concluir que nenhuma destas causas condicionadas
produziu o ser do efeito em questo]. Algum poderia pensar que este processo de
testar a causa poderia prossegui indefinidamente. [Mas no assim:] a pessoa
poderia prosseguir indefinidamente apenas se o seu psiquismo fosse indefinidamente
grande. Mas a sua imaginao no indefinidamente grande, tendo um limite.
Chegar uma hora em que o sujeito testar uma causa ltima que no funcionar e o
sujeito perceber algo sobre a natureza daquele processo. Perceber que [esse]
incausado. Se o sujeito prossegue fazendo isso no decorrer dos anos, perceber que
Deus no foi criado. Que Deus no tem um princpio ou origem.
[Mas deve-se insistir no teste das causas oferecidas pela imaginao.] O
psiquismo possui uma inclinao na direo do mundo corpreo porque ela sabe que
mais ampla do que o mundo corpreo. Este est, em certo sentido, sob o domnio
da psique. [Assim, o sujeito pensa:] se eu consigo achar a causa do processo, este
poder acontecer todo dia e, assim, poderei domin-la, terei a chave da vida e
serei o dono dela. Mas este processo pode acontecer ao contrrio: Descobri que
no sou o dono da vida, mas, s vezes, ela dona de mim. Isso apenas uma
questo de se rememorar sistematicamente o processo. Quando se fala em dois
minutos, no brincadeira: so [apenas] dois minutos mesmo! No se consegue
rememorar isso durante o tempo todo. So dois minutos!
20
21

Conferir livro VII da Repblica de Plato [N.T.].


Nesta experincia preciso perceber que esta atribuio imaginativa equivocada [N.T.].

[Revisando:] ento, em um primeiro estgio, surgiro imaginativamente


hipteses sobre a causa. Voc ter que testar sistematicamente cada uma das causas.
Alis, este processo de testar as causas ser, para voc, o critrio para testar se algo
foi causado pelo Esprito ou no. Se a causa funcionou, [isto implica que] isso no
do mundo do Esprito, mas do mundo natural. Se a causa funcionar, voc no
descobriu uma realidade espiritual, mas descobriu uma lei natural. O que vai
acontecer? O que vai acontecer que esse processo de rememorao e de teste
constante das causas levar a psique do sujeito a ser assimilada neste processo. No
comeo, ela sentiu apenas o calor, mas depois ir esquentando tambm. O que
acontece? A percepo daquele processo vai aumentar. Ele comear a captar
quando os outros esto naquele processo. Assim, captar que ser as coisas estar
naquele processo durante o tempo todo. E comear a distinguir o que a natureza
daquilo, o que aquilo. O sujeito viver uma vida simultaneamente em dois planos
ou em duas dimenses.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: Voc trabalha todo dia? Ento, esse processo acontece todo dia.
s vezes acontece somente na hora em que escrevemos algo, s vezes foi em uma
conversa.
Aluno: Dependendo do caso, acontece apenas em algumas decises.
Professor: s vezes acontece em algumas decises.
Aluno: Acontece todo dia.
Professor: Acontece todo dia, mas, s vezes, acontece em algumas coisas
to pequenas que a pessoa nem d importncia para aquilo. s vezes no ato de
almoar.
[Aluno pede um esclarecimento sobre a maneira de identificar esse
processo.]
Professor: A pessoa pode passar por esse processo e no sentir nada
[especial]. Durante aquele processo, como se a psique dele tivesse adormecido
no ser daquele ato. No decorrer do tempo, isto , dos anos, o que acontecer?

Quando a psique dele adormecer naquele processo, ele no adormecer


completamente. A inteligncia abstrata dele estar desperta naquele processo. Mas a
sua emoo e sua psique como um todo estar dormindo, mas a inteligncia abstrata
estar acordada. Mas, no nosso caso, que no temos um treinamento espiritual, o que
acontece? Quando nossa psique adormece, nossa inteligncia abstrata tambm
adormece. Tudo adormece [nesse processo].
Observe quando voc est trabalhando e acontece isso: voc sabe o que
aconteceu? No, tanto que a sua inteligncia dormiu tambm. Voc dormiu inteiro.
No foi apenas o seu corpo que dormiu, mas a psique e a inteligncia adormeceram
naquele processo. Se o sujeito vai rememorando este processo, o que acontecer?
Chegar uma hora em que, quando a psique dele adormecer naquele processo, a
inteligncia dele testemunhar o que aquilo [ou o que est acontecendo naquele
processo]. Assim, quando acontecer um processo assim, [isto , quando] a psique
adormecer e a inteligncia ficar desperta, ele sentir uma espcie de felicidade que
ele no tinha como experimentar antes.
Aluno: Ele est no Ser!
Professor: Exatamente, a inteligncia dele percebeu o que a realidade do
Ser.
[Alunos perguntam sobre o Ser.]
Professor: Exatamente. Ser com S maisculo.
[Aluno faz observao sobre o Ser.]
Professor: Exatamente, aquilo que liga as coisas com a realidade e
caracteriza as coisas como realidade.
Aluno: O vnculo do realssimo22!
Professor: O vnculo do realssimo, exatamente!
Evidentemente voc ter que partir de uma vida humana comum. Conhecer
isso a partir do Ser mesmo, ser Deus. Se voc j sabia isso desde o comeo [de sua
22

Aqui provavelmente o aluno estava pensando no sentido que o filsofo Eric Voegelin atribui a este termo
[N.T.].

existncia], ento voc Deus23. Ser Deus ter um conhecimento direto do


incondicionado.
Existe uma famosa histria do folclore judaico:
Algum perguntou a Deus:
-

Por que voc criou o mundo?


Deus respondeu:
-

Eu no podia chorar.

Isso quer dizer que Ele no podia conhecer a si mesmo passando pelo
sofrimento. Ento, Ele criou o ser humano, que pode conhecer o Ser partindo de um
estado de privao. O ser humano pode chegar plenitude. Deus no pode chegar
plenitude porque Ele j a prpria plenitude.
Aluno: E a Encarnao de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Aluno: Mas o provrbio judeu!
Professor: Pode acontecer que um sujeito tenha um talento to
extraordinrio para isso que ele decida dedicar-se apenas contemplao do Ser.
Um em cada milho de pessoas pode ter esse talento, mas isso no um modelo de
vida prtico para a maioria dos seres humanos. A imensa maioria dos seres humanos
precisa descobrir essa dimenso contemplativa na sua atividade cotidiana, naquilo
que efetivamente faz.
A primeira percepo que o sujeito tem sobre esse processo de que isso
ilimitado24 ou incondicionado: isso no est de modo algum sob o domnio das
coisas que j so conhecidas. como diz o Cristo:
O Esprito sopra onde quer e ningum sabe para onde vai ou de onde
vem25.
Ele no pode ser determinado por outro [fator]. Se o sujeito percebe isso,
o suficiente para modificar a vida do sujeito. Por qu? Porque ele perceber, quase
23

O professor est raciocinando aqui por meio de uma reduo ao absurdo [N.T.].
O que faz lembrar a noo de peiron de Anaximandro. Conferir as explicaes a esse respeito
oferecidas pelo professor Olavo de Carvalho no curso de Histria Essencial da Filosofia [N.T.].
25
Do Evangelho segundo So Joo [N.T.].
24

durante o tempo todo, que existe essa outra dimenso. Quando esse saber da outra
dimenso se torna um hbito26, surgir a seguinte questo:
E se isso nunca mais acontecer em mim? O que acontecer comigo se isso
se apagar completamente em mim?
Esse o temor de Deus, que o princpio da Sabedoria27. Assim, o sujeito
realmente fica infundido do temor de Deus como um dom espiritual.
O SEGUNDO DIA DA CRIAO OU O SEGUNDO DOM DO
ESPRITO SANTO
Quando eu tenho esse temor, o que acontecer? O sujeito perceber que no
pode dominar isso, mas percebe que, quando se vive de um certo jeito, pode-se estar
mais prximo disso do que quando se procede de outra maneira. [Neste caso,
percebe-se que] se, por um lado, no se pode dominar o Esprito, pode-se propiciar o
domnio do Esprito sobre a sua prpria pessoa. Ele pensa: eu no sei como causar
isso a, mas sei que certas aes minhas impossibilitam esta ao do Esprito em
mim28. Estas coisas me separam completamente do Esprito. Ento, o sujeito
concluir que deve criar certas regras de comportamento com este objetivo de
permitir que o Esprito domine sobre a sua pessoa. Isso j um segundo estgio, que
corresponde ao segundo dia da criao, quando Deus fez o firmamento no meio das
guas e separou as guas inferiores das superiores29. H algum lugar da psique que
como uma barreira: o que estiver para l dessa barreira, ir me separar do Esprito.
[Por outro lado], satisfazer alguma tendncia para c desta barreira no contraria o
Esprito. No o causa, mas tambm no o contraria, no me afasta dele.

26

No sentido aristotlico. Conferir tica a Nicmacos [N.T.].


Conforme se ensina nos livros sapienciais da Sagrada Escritura, como Provrbios ou Eclesiastes
[N.T.].
28
Nesta explicao ficou pressuposto a diferena entre causa e condio [N.T.].
29
Conferir, a este respeito, o relato da criao no livro do Gnesis e a transcrio da aula do professor Luiz
Gonzaga sobre os sete dias da criao [N.T.].
27

Aluno: Mesmo se no tivesse doutrina, se no houvesse religio, isso seria


assim?
Professor: Sim! Isso perfeitamente possvel, mesmo quando o indivduo
transcende o seu ambiente!
Aluno: Independente dos fatores culturais30.
Professor: Por exemplo: toda a cincia moral apenas uma anlise abstrata
daquilo que as pessoas que estavam neste estado fizeram para si mesmas. Porque
somente estas pessoas sabem o que se pode fazer e o que no se pode fazer [para
permanecer neste estado espiritual].
Aluno: Esta atitude do segundo dia tambm corresponde a uma virtude do
Esprito Santo31?
Professor: Sim, esta virtude a piedade, que respeitar certos modos de
agir humano como sagrados e considerar outros como profanos. Assim, h uma
diviso entre profano e sagrado. Esta distino entre sagrado e profano, neste
sentido, no ser uma distino formal, como rezar sagrado e sambar
profano. Embora isso seja verdade no esta regra que se cria neste caso. So
regras criadas conforme o cotidiano da prpria pessoa, acerca das situaes que se
criam apenas para aquele indivduo e no para outro. a moral viva dele! Todo esse
processo ocorre, de certa forma, para todas as pessoas. Isto , todos possuem alguma
regra de vida, [por mais inconsciente que seja].
Aluno: Mesmo que seja para se divertir.
Professor: Mesmo que seja para se divertir. Estas regras derivam desses
processos terem acontecido sem ateno. A nica diferena entre uma vida espiritual
e uma vida no-espiritual que aquela uma vida em que isso, esse regrar da vida,
feito com ateno. [Neste caso], o sujeito para e pensa a esse respeito. Isso feito de
modo consciente. O objetivo desse processo de rememorao e de ateno
30

Os alunos parecem estar pensando em termos da doutrina da unidade essencial sobre a qual trataram
Gunon e Schuon.[N.T.].
31
O aluno se baseou no princpio de que conjuntos que necessariamente possuem as mesmas quantidades de
elementos possuiro uma certa analogia estrutural, quase isomrfica. O professor Luiz j ministrou cursos
sobre esse assunto cosmolgico para outras turmas [N.T.].

consciente justamente chegar a um estgio em que minha inteligncia ficar


desperta durante esse processo. Porque somente assim eu saberei o que a realidade.
Saberei no porque eu deduzi formalmente a realidade, mas saberei porque a
experimente intelectualmente. claro que pode-se fazer uma anlise [filosfica] do
mundo e chegar concluso de que h a dimenso do transcendente e do imanente,
do condicionado e do incondicionado e, assim por diante, formando sua
cosmoviso32. Isto formar uma teoria razoavelmente interessante e aceitvel, mas
no ser uma experincia do objeto desta anlise. Ser apenas notcia.
Aluno: Por outro lado voc pode ter a experincia, mas no saber explicar o
que aconteceu.
Professor: Exatamente: [pode-se ter esta experincia] e no ter a menor
idia do que aconteceu ali. O prprio Arton Senna provavelmente nunca tirou as
concluses sobre aquilo que estava fazendo.
Aluno: Mas eu acho que ele tirou [algumas concluses], pelas declaraes
que ele fazia a este respeito. [Aluno oferece alguns exemplos que no ficaram
gravados claramente.]
Professor: Ento, [o prprio Senna] retirou algumas concluses porque ele
percebeu que [aquele seu estado] procedia de algo que ele mesmo no sabia o que
era e que ele no dominava. [Ento], ele fez o primeiro estgio.
Aluno: Ao contrrio do Nelson Piquet.
[Aluno faz uma pergunta sobre o assunto, usando Rei Lear de
Shakespeare como exemplo.]
Professor: Exatamente, aquilo no uma vida, mas um tipo, por meio do
qual, entende-se alguma coisa da nossa prpria vida.
[Aluno faz mais uma pergunta sobre Shakespeare, pensando na obra A
arte sagrada de Shakespeare de Martin Lings.]
Professor: Ele [Shakespeare] observou [provavelmente] a prpria vida e
descreveu o processo pelo qual se chegou nessa captao [do Ser].
32

H notveis exemplos destas anlises nas obras de filsofos como So Toms de Aquino e, mais
recentemente, Mrio Ferreira dos Santos [N.T.].

[Aluno comenta sobre os personagens de Shakespeare.]


Professor: Exatamente, no d para imaginar a Cornlia [de Rei Lear]
indo dormir.
Aluno: Jamais!
[Aluno pergunta se o professor continuar a descrio dos estgios
espirituais at o stimo dia.]
Professor: Visando este processo aqui, no bom descrever todas as etapas
at o stimo dia, porque, neste caso, a ateno se voltaria para essa anlise abstrata
deste progresso espiritual, em vez de pensar que deve fazer alguma coisa [especfica
para conseguir este aprimoramento concretamente33.]
OUTROS ESCLARECIMENTOS ACERCA DO EXERCCIO DE
REMEMORAO DA IMERSO NO SER DE UM ATO
Se algum quiser fazer esse processo de rememorao, ter que faz-lo
durante a vida toda. Por qu? Porque se algum fizer isso apenas por um dia ou dois
ou pro algumas semanas, no acontecer nada de especial com ele. E concluir que
no adianta nada, que ele no serve para isso. Mas perseverem! Por qu? Porque
neste processo de perseverar, a imaginao comear a produzir rtulos sobre o que
aquilo. Isso funciona assim por qu? Porque a inteligncia tem uma conaturalidade com o Esprito, mas a alma ou a psique como um todo no tem. A alma
como um todo possui tanta familiaridade com o outro mundo como possui com este
mundo. Ento, o que acontece? simples! O Esprito atende aos desesperados. Se a
pessoa tenta e vai se esgotando, ao se esgotar nesse teste dos rtulos [da
imaginao], se ele perseverar depois que ele esgotou as hipteses, que ele
perceber alguma coisa. Se ele parar antes, ele no perceber nada, porque o Esprito
somente aparece quando voc percebe que no o possui: bem-aventurado os
33

O autor desta transcrio um pssimo exemplo de aluno que, apesar de acompanhar as aulas do professor
Luiz h mais de um ano, buscou apenas essas anlises abstratas, desconsiderando qualquer progresso pessoal
[N.T.].

pobres de esprito, porque deles o Reino dos Cus34. Este pequeno exerccio vai
levar o indivduo a perceber que no possui o Esprito. No que o Esprito nunca
aja nele, mas [o fato] que no se possui o Esprito. E somente quando se percebe
isso claramente que se pode perceber algo sobre o Esprito.
Ento, justamente isso: a primeira coisa que ele perceber sobre o Esprito
que ningum possui o Esprito. Como est nos Provrbios: como um eunuco que
tenta violar uma donzela, o homem que tenta alcanar a Sabedoria fora. Quer
dizer que [o ser humano] no tem o equipamento necessrio [para este fim], no ser
possvel. Deve-se perseverar at o fim para que voc [realmente] perceba que no
possui o equipamento para dominar o Esprito. [Neste caso], voc aprendeu algo
sobre o Esprito. Voc aprendeu, por experincia imediata ou direta, que Ele
indomvel. Isso j saber algo sobre o Esprito. Algo que, apesar de se crer que o
Esprito indomvel, s vezes a gente age como se ele fosse domvel. Por qu?
Porque a gente no sabe isso por experincia. Porque eu sei por ter lido em algum
lugar. [Neste caso], eu sei que isso razovel, mas no se sabe se verdade ou no
enquanto ainda no se experimentar este processo. H uma diferena entre o
argumento provvel e a certeza de algo35. Quando o sujeito faz esta rememorao e
esta tentativa de esgotar a hiptese, o final desse processo ir lev-lo a uma certeza
acerca da existncia do Esprito que nunca mais sair da conscincia deste sujeito.
Ele nunca mais pensar, em nenhum momento, que ele pode dominar esse processo.
Isso uma experincia espiritual.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: Ao rememorar esse processo de imerso no Esprito ou entrar no
ser de um ato, pode-se buscar entender isso, testando as causas, que so propostas
pela imaginao, at obter esta percepo direta e certa de que o Esprito
indomvel. Este o primeiro encontro do indivduo com deus. O primeiro encontro
consciente do ser humano com Deus se d assim. claro que temos encontros com
34

Conferir Sermo da Montanha no Evangelho segundo So Mateus [N.T.].


Conforme foi explicado na teoria dos quatro discursos que Olavo de Carvalho fez a partir do estudo do
conjunto da obra de Aristteles. Conferir o livro Aristteles em Nova Perspectiva [N.T.].
35

Deus durante o tempo todo, mas, nestes, a gente no sabe que Deus que est ali 36.
A gente no sabe o que est ali. Mas desta vez pode-se saber conscientemente que se
est com Deus, porque nada domina aquilo37. A questo importante aqui a
perseverana no exerccio. A primeira semana ser frustrante porque o sujeito
perceber que no sabe nada sobre o que aconteceu ali. Ele no capta o que
aconteceu ali, o que evidentemente frustrante. Mas persevere e v buscando as
causas. Por qu? Porque esse processo, que frustrante, corresponde, em uma escala
menor, ao processo pelo qual o Rei Lear passou aps dividir o Reino. O que
aconteceu? Quando o sujeito est nesse processo de comunho com o Esprito ou
submerso no ser do ato, justamente o que Lear tinha feito antes da pea
[comear]. o reino perfeito que ele fez. como se aquele ato [perfeito] fosse o seu
reino perfeito [como aconteceu com Lear]. O processo de entender aquilo o
processo inteiro da pea do Lear.
evidente que, durante esse processo, predominar o elemento de
frustrao. O ser humano simultaneamente uma imagem de Deus e uma imagem
do mundo. O ser humano uma imagem de tudo [ou um microcosmos38]. Se
existe algo de demonaco no mundo, h algo de demonaco no ser humano. Este ser
demonaco far de tudo para que voc no preste ateno naquilo. De tudo! Usar
todas as armas que possui, mas, em certo momento, ele gasta [tudo], isto , acabamse os recursos dele. Se o sujeito persevera at que estes recursos [demonacos] se
esgotem, o sujeito capta algo do Esprito.
Qual a primeira notcia que se percebe? a notcia sobre essa liberdade e
independncia do Esprito. Em termos metafsicos, o sujeito deve perceber que o
Esprito incausado. [O Esprito] no possui uma origem. Ele sempre foi o que . Se
36

Esta observao faz lembrar que os discpulos de Emas tambm no sabiam que estavam diante do Cristo.
Conferir, a este respeito, o Evangelho de So Lucas [N.T.].
37
O divino tambm aparece como indomvel a So Tom quando v Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitado,
segundo o santo relato do Evangelho de So Joo. Tambm apareceu a Moiss quando viu a sara ardente,
conforme o santo livro do xodo [N.T.].
38
Conforme um texto clssico de uma das artes tradicionais medievais: Na verdade, na verdade, sem
dvidas e incertezas:/ o que est em baixo assemelha-se ao que est em cima, e o que est em cima ao que
est em baixo, para realizar os prodgios do Uno.

o sujeito perceber isso e continuar no exerccio de rememorao, este mudar de


natureza. O sujeito perceber a segunda notcia sobre o Esprito. Esta
evidentemente mais importante do que a primeira. O sujeito chegar mais prximo
do ncleo do prprio Esprito. Cada uma destas experincias vai sendo cada vez
mais prxima daquilo que o prprio Esprito. O que o sujeito ir perceber no
estgio seguinte que no somente o Esprito no possui origem, como no possui
fim. Ele no se esgota. Se aquele processo [bem-aventurado] cessou no foi porque
o Esprito cessou, mas porque algo em mim mudou. essa percepo que levar o
sujeito formulao de normas para o seu comportamento. Ele perceber que
quando age assim, o processo se alonga ou se torna mais freqente e, quando age da
maneira contrria, o contrrio acontece. E isso vai lev-lo percepo de que o
Esprito ilimitado, inesgotvel.
[O professor pergunta se o exerccio proposto ficou claro e aluno pede mais
um exemplo.]
Professor: Um exemplo prtico o seguinte: medite sobre aquilo que voc
gosta [como o rei que amava o ouro]. E outro exerccio o seguinte: perceba, na sua
atividade cotidiana, quando voc faz um estgio correto pensando no estgio
seguinte. Por exemplo: sento na cadeira e penso em escrever algo para enviar ao
fulano. At um certo ponto desse processo, voc est fazendo algo e antecipando
efeitos, na medida em que pensa nos passos seguintes. Chega um certo momento em
que o processo de realizar uma etapa parece apagar as etapas seguintes e voc
esquece o seu plano e vai apenas fazendo aquilo. Enquanto voc est fazendo algo,
levando em conta as etapas seguintes, o processo cansativo, Se voc fica muito
tempo trabalhando, no dia, pensando nos fatos seguintes, depois de duas horas, ele
somente quer descansar porque no agenta mais. Mas se trabalhar fosse apenas
isso, seria infernal. Mas acontece que nestas duas horas h momentos em que as
etapas seguintes so esquecidas e voc est simplesmente submerso na etapa atual.
Voc nem repara nas prximas etapas. Voc est simplesmente fazendo aquilo que
est fazendo. Em algum momento voc volta para a dimenso temporal e nota que

faz um passo depois do outro. O exerccio que estou propondo o seguinte: nesta
hora em que voc volta para esta dimenso temporal, antes de voc retomar a
caminhada, rememore este perodo em que voc ficou submerso na fonte do [ser do]
processo. E pergunte-se: aconteceu ali? O que aconteceu quando estava no ser do
processo, quando consegui agir sem me esgotar psiquicamente? So estes momentos
breves que tornam o trabalho suportvel. O exerccio este: quando sa deste
processo de imerso no ser da atividade atual e voltei a pensar etapa por etapa, antes
de retomar o curso, irei parar e perguntar: o que foi isso? O que aconteceu? O que
causou isso?
[Aluno oferece um exemplo de um mdico, na sua famlia, que fazia algo
muito similar a este exerccio.]
Professor: isso! Esse sujeito estava a um passo da santidade. Se ele
parasse para refletir sobre esse processo da mesma maneira como ele fazia cirurgias,
ele chegaria santidade.
[Alunos contam outros exemplos retirados da vida deste mdico notvel.]
Professor: Este rememorar levar, no decorrer do tempo, ao aumento da
freqncia dessa experincia.
[Alunos comentam sobre este exerccio.]
Professor: Isso pode ser feito em qualquer atividade humana.
Aluno: Inclusive na vida de estudos.
Professor: Porque seno a vida de estudos tambm seria um inferno.
Aluno: No limite, como diz So Paulo [Apstolo]: Nele somos, nos
movemos e existimos.
Professor: Isso pode ser feito em qualquer processo mesmo: at enquanto se
assiste a televiso. A gente falou do trabalho porque esta uma atividade que
regularmente se tornar um inferno, mesmo que o sujeito seja apaixonado pelo seu
trabalho. [Ento, o sujeito] pode observar estes momentos em que deixou de ser um
inferno, [por exemplo]. Isto pode ser feito em qualquer atividade humana.
[Alunos oferecem outros exemplos, como a alimentao.]

Aluno: Qual a diferena entre Alma e Esprito?


Professor: simples! A alma capaz de sucesso. No que ela seja
medida pelo tempo, o qual um modo de sucesso. A alma est sujeita a etapas
sucessivas. Uma atividade psquica exclui outra atividade psquica. Uma cede sobre
a sucesso da outra. Em um momento estou pensando sobre o que falarei para vocs.
No momento seguinte, quando falo, tenho que parar de pensar porque quando estou
pensando no posso falar. Percebem? Um estado psquico sucede ao outro e
sucedido por outro. Um momento da psique precisa desaparecer para que outro
surja. O Esprito no assim. O Esprito permanente. O modo de durao do
Esprito no por sucesso, mas a eternidade.
Se voc fosse uma pessoa com um forte treinamento espiritual, o seu
Esprito permaneceria desperto quando sua psique fizesse essa imerso no Ser e
voc compreenderia diversas coisas sobre o mundo espiritual. E quando voc fizesse
isso de novo, compreenderia outras coisas, mas essas novas compreenses no
fariam com que as anteriores cedessem ou desaparecessem da sua percepo [como
acontece na dimenso psquica]. A fruio e a percepo das coisas [espirituais]
anteriores no desaparecem. A experincia espiritual somente aumenta, mas no
cede.
Aluno: como se voc estivesse em uma sala escura, depois abrisse uma
janela, depois outra, [depois outra e assim por diante].
Professor: Exatamente! Uma luz no diminui a anterior. Para o sujeito
perceber isso39, ter que fazer essa experincia anterior. difcil falar do Esprito
justamente por causa desse elemento de incomparabilidade entre o Esprito e
qualquer outra coisa da qual se possa falar.
Aluno: A alma individual. O Esprito tambm individual?

39

Parece que o professor Luiz est insistindo em uma percepo que Husserl chamaria de autntica, isto ,
uma percepo na qual o objeto esteja presente, em contraste com a percepo simblica, na qual o objeto no
precisa estar presente. Por exemplo: se penso no meu falecido av Horcio, uma expresso simblica,
pois ele no tenho a percepo autntica dele como o aluno tem do professor presente que ministra a aula
naquele momento, na sua frente [N.T.].

Professor: O Esprito e no individual. Ele toca cada pessoa, mas est


acima de cada um.
[Aluno faz mais uma pergunta sobre essa diferena entre alma e esprito.]
Professor: Entender o que est fazendo no pode ser um processo espiritual.
Por exemplo: se entendo que estou escrevendo um livro agora ou correndo uma
maratona. Se a pessoa corre uma maratona e a sua pisque est adormecida enquanto
a sua inteligncia est desperta, ela no vai entender o que uma maratona. Isso ser
entendido em outro momento. O que ela entender, [pela ao do Esprito], o Ser
que est infundindo efetividade a esse processo de correr maratona naquele
momento. Vai entender, em uma expresso que simblica e deve ser entendida
com cuidado, o que Deus est fazendo quando voc corre uma maratona. evidente
que, para voc correr uma maratona ou fazer qualquer outra coisa, Deus precisa
estar fazendo algo, pois Ele que sustenta todas as coisas no Ser. Mas isso
normalmente no captado por ns.
[Aluno pergunta sobre o sentido do termo Esprito.]
Professor: O Esprito de que estamos falando aqui o prprio Deus.
[Alguns momentos de silncio.]
Aluno: Esta captao do Ser compreender qual foi a inteno do Criador.
Professor: Exatamente! Compreender a inteno do Criador em cada uma
das coisas.
[Aluno comenta sobre a explicao que os escolsticos davam a isso e
pergunta sobre a freqncia deste processo.]
Professor: Esse processo acontecia com milhares de pessoas [na Idade
Mdia].
Aluno: Milhares?
Professor: Milhares, porque, nos mosteiros, eles observavam os talentos
das pessoas e orientavam-no a fazer esse processo enquanto desenvolviam seus
talentos, fosse cuidando de ovelhas ou escrevendo.
Aluno: Mas era uma minoria no conjunto da sociedade!

Professor: Mas era o suficiente para garantir a felicidade da sociedade como


um todo, embora esta possibilidade esteja aberta para todos, a princpio.
O segredo perseverar neste exerccio. Isto uma Graa divina, pois Deus
vem em um momento em que ns no estamos preocupados com Ele. Mas trata-se
de uma ao em que, em uma medida ou outra, precisamos nos preocupar.
Precisamos nos preocupar com as coisas dos trabalhos, da famlia, etc. Ento Deus
leva em considerao isso: quando voc fizer uma dessas coisas jogarei uma
semente em voc; se prestar ateno, captar e vivendo a sua vida, voc viver
tambm a Minha.
DOIS PLANOS INTELECTUAIS OU A DISTINO ENTRE DOIS
ASPECTOS DA INTELIGNCIA HUMANA
Aluno: Isso ainda ensinado nos cursos de Teologia?
Professor: Isso parou sistematicamente de ser ensinado nas escolas de
Teologia por volta do sculo XIV.
A crise da nossa civilizao tem suas causas l por volta dos sculos XIII e
XIV40.
[Aluno pede uma explicao.]
Professor: A atividade filosfica dos escolsticos tambm era uma atividade
social que obedecia a regras. Ento, qualquer um pode aprender estas regras e se
tornar um escolstico ainda hoje. Isso era metade da arte dos escolsticos. Agora
aproveite essa tcnica filosfica para o seu progresso espiritual. Sem isso, ela
perder sua vitalidade e desaparecer da sociedade. E foi o que aconteceu! Sem esta
atividade, a parte formal continua a mesma, mas perde a vitalidade e no se
consegue mais difundir aquele contedo na sociedade como um todo.
Aluno: Somente pensar escolasticamente no ir adiantar.

40

Esta tese defendida, por exemplo,no livro A crise do mundo moderno de Ren Gunon [N.T.].

Professor: A vitalidade se atrofia e, por mais certa que [tal filosofia seja],
no tem fora para agir.
a essas duas atividades que Aristteles se referia quando disse que se a
coruja no capaz de ver o Sol, a guia, no entanto, . Quando Aristteles foi
ficando mais velho, foi adquirindo uma tendncia mais potica e mstica como
Plato41. Ele estava dizendo que a ave noturna, a coruja, o aspecto da inteligncia
humana que capaz de analisar as coisas e dividi-las em estruturas formais,
desenvolvendo as cincias, as artes e a civilizao. Isso tudo muito til, mas, por
si, no tem vitalidade. Se voc no entender esse outro processo, que o entender o
Ser, essas coisas formais caducaro. No provocaro um interesse [humano]. Por
qu? Porque uma civilizao excelente no resolve sequer o problema de uma vida
humana. A melhor civilizao, por si, no torna um nico indivduo humano feliz.
Do mesmo modo que o melhor tratado sobre cirurgia no faz, por si, uma nica
cirurgia. Somente quem faz a cirurgia a pessoa imersa nesse processo. E a
captao consciente desse processo o que torna o ser humano feliz.
preciso trabalhar nos dois planos. Por uma lado, estamos constantemente
analisando as estruturas para tentar entend-las melhor e tentar fazer o mundo ao
redor um pouco menos pior. Por um lado a inteligncia se volta para isso em cada
coisa cotidiana que tento fazer melhor, como correr uma maratona melhor ou
qualquer outra atividade. Mas isso no suficiente! preciso que a inteligncia
volte, nessas ocasies, e tente entender o que foi aquela submerso.
[Aluno pergunta sobre o simbolismo do Esprito na orao do sinal da
cruz.]
Professor: Por que voc nomeou o Esprito Santo na dimenso horizontal e
no na dimenso vertical? Justamente porque essa submerso no Esprito estender

41

Como diz um comentarista, foi se tornando um amigo dos mitos ("filo-mitos") alm de um amigo da
sabedoria ("filo-sofia"). Conferir o volume introdutrio de Giovanni Reale sobre a Metafsica de Aristteles
[N.T.]..

ou ampliar a dimenso horizontal. Voc fez algo para este plano ser mais perfeito.
Este plano aumentou ou dilatou42.
[Aluno faz pergunta sobre esta dimenso.]
GUISA DE CONCLUSO: O INTELECTO E O SENTIDO DA VIDA
HUMANA
Professor: Se o sujeito no usar esta dimenso para obter a outra, no ter a
outra. Quem quer pensar na outra vida acaba no pensando em vida nenhuma, pois
somente se pode pensar na vida que se tem. Ento, a sua outra vida precisa estar
nesta aqui. Nada banal para o Esprito. Pode ser banal no plano humano, mas este
processo espiritual poderia ter acontecido naquele ato [humanamente] banal. Se
voc rememorar aquele ato [buscando a presena do Esprito ali], ele no menos
do que o ato do Rei Lear. O Esprito o mesmo tanto em um ato como outro. No
existem atos banais. O que existe uma mentalidade banal.
Por hoje est bom, ma h uma lio de casa que no acabar nunca!
[Aluno pergunta sobre esta tarefa de casa, se ela visa reviver o que
aconteceu na imerso no Esprito.]
Professor: No visa reviver o que aconteceu, mas entender o que se passou
e descobrir qual foi a causa por meio de testes que levaro a excluir as possveis
causas43. At uma hora em que a imaginao esgota suas possibilidades de atribuir
causa. Se voc continuar a rememorar depois disso, comear a compreender o que
o prprio Ser. A primeira coisa rememorar. Quem fez isso sistematicamente,
cumpriu a finalidade da vida humana. Saber o que esse estado ou compreend-lo
a finalidade da existncia humana. O objetivo compreender aquilo.
Aluno: Agora entendi.
42

Com o sinal da cruz, como se os ombros se ampliassem tambm com a nomeao do Esprito Santo, ao
contrrio dos homens sem peito de que trata C.S. Lewis em Abolio do Homem [N.T.].
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At esgotar essa tentativa de compreenso e perceber autenticamente a causa incondicionada, que o
Esprito [N.T.].

Professor: Porque l no miolo do ser humano h uma inteligncia que


somente existe para entender o que eterno. Se fizer isso, cumpriu inevitavelmente
o objetivo da vida. E a prpria vida mundana vai se tornando mais compreensvel e
mais suave para ele. Por qu? Porque o Esprito dilata este plano tambm! Dilata
tanto at o ponto em que as vidas dos santos ultrapassam os limites das leis naturais.
A vida do santo passa a ser mais ampla do que as leis naturais44, de tanto que essa
recordao do Esprito dilatou a alma dele.
Aluno: o contato com o Sublime!
Aluno: Isso possvel?
Professor: Sim, isso perfeitamente possvel para qualquer um! Porque esse
estado surgir vrias vezes na sua vida e isso um dom gratuito de Deus.
Mas preciso parar e perguntar o que isso?
Sei que h uma tendncia nossa de achar que a vida espiritual apenas para
pessoas nobres e excelentes e pensar o seguinte: como no sou uma pessoa nobre e
excelente, no devo buscar a vida espiritual; afinal, somente gosto de assistir
televiso, jogar vdeo game, ir em festas, de pescar, correr maratonas, etc.
Aluno: Isso o que temos!
Professor: Ento pratique esse exerccio durante essas atividades que voc
gosta. Pare dois minutos no meio da festa e reflita sobre esse estado espiritual.
Porque j uma felicidade descobrir uma atividade na qual voc regularmente entra
nesse estado [de imerso no Ser]. Descobrir as atividades em que acontece isso com
a gente dar as oportunidades. E pode ser qualquer coisa! Basta sair do estado e
rememorar o que foi aquilo.
Aluno: Nota dez!
Aluno: Muito bom!

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Ele penetra em um crculo mais amplo do que o prprio crculo das leis naturais, conforme o simbolismo
dos esquemas de crculos concntricos dos medievais [N.T.].

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