O Ser Como Objeto Da Inteligência - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto
O Ser Como Objeto Da Inteligência - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto
O Ser Como Objeto Da Inteligência - Luiz Gonzaga de Carvalho Neto
Transcrio, ttulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em maio
de 2006. Verso no revista pelo autor da aula. [N.T.].
Professor: Isso para que o ser humano tenha uma vida completa. Uma
vida humana completa implica que o sujeito seja capaz de cruzar estas duas
dimenses em cada uma das suas atividades. O primeiro problema seria isso:
como eu posso conhecer melhor o que o Absoluto, o que a
Transcendncia, o que Deus?
O SER COMO OBJETO DA INTELIGNCIA
Neste primeiro problema surge uma questo fundamental: o objeto da
inteligncia abstrata o ser enquanto tal. O objeto dos sentidos e da imaginao no
o ser, mas os modos de existir. Estes so uma espcie de participao no ser. Por
exemplo: falar um modo de existir ou de ser. Andar outro, respirar outro,
pensar outro: todos estes so modos de ser. Mas nenhum deles o prprio ser. Por
exemplo: se o sujeito fala, falar alguma coisa, mas falar no andar. Andar no
comer e assim por diante. Cada uma destas modalidades possui uma analogia com as
outras atividades e essas analogias se fundam justamente no ser, pois todos estes so
modos de efetividade. Ento, a primeira coisa que a inteligncia capta ao perceber
algum modo de existncia ou atividade concreta que tal objeto , de algum modo,
real. A primeira percepo que se tem de uma coisa que ela real. Mas esta
percepo imediatamente passa para o fundo da conscincia e a ateno se volta
para a formalidade prpria daquele objeto e no para o seu carter de ser enquanto
ser. Volta-se para a qididade dela. Ao perceber uma pedra caindo ou a gua de
um rio fluindo, a primeira percepo da inteligncia que aquilo algo. E o
segundo passo perceber quais so as qualidades distintivas deste algo e que o
diferenciam de qualquer outro ser. Embora a inteligncia seja feita para o ser, a
psique humana no feita para voltar sua ateno fundamentalmente para o ser, mas
para as formas particulares do ser. Esta a primeira tenso que precisa ser resolvida
para uma vida humana completa. De algum modo, tenho que balancear essa
O relato do Gnesis foi tema de uma das aulas anteriores deste curso [N.T.].
fazendo isso por uma necessidade da sua inteligncia abstrata. Naquele momento
voc no age apenas motivado pela sua inteligncia abstrata, mas faz aquilo porque
voc precisa sobreviver. A psique humana faz isso durante o tempo todo, mesmo
que no seja para sobreviver. A ateno da psique sai do ser para a qididade ou
espcie da coisa. E da espcie passa para um acidente particular. De modo que a
ateno tende, quase que constantemente, a ficar nos acidentes particulares das
coisas. isso que impede uma captao do transcendente. Se a sua ateno ficasse
apenas no ser do objeto, voc captaria naquele ser particular o prprio ser e no
apenas a qididade daquele objeto. O ser simplesmente . Por exemplo: em vez de
imaginar um objeto temvel, vamos considerar um objeto desejvel. Ao perceber um
objeto desejvel, tende-se a fazer algo e tomar posse daquele objeto. Na posse deste
objeto, voc frui dele. A ateno, no processo da fruio, passa do objeto ou do
modo de ser do objeto para o prprio processo de fruio. Ento, por exemplo, voc
est comendo uma maa maravilhosa. Assim, a sua ateno vai se voltando da ma
para o efeito que ocorre em voc. Esse o mesmo processo. Primeiro voc captou o
ser da maa. Em segundo lugar, voc captou um conjunto de acidentes que tornam
aquela ma perfeita. E, em terceiro lugar, voc se voltou para o efeito daquela maa
sobre voc. Isso acontece porque o ser efetivo. Sendo efetivo, como se o ser
pressionasse na sua direo. Todo ser uma presena 4. Primeiro voc percebe o ser.
Em seguida a sua ateno vai seguindo o fluxo do ser: da causa5 at o efeito.
[Aluno faz uma pergunta sobre o Ser.]
A INVESTIGAO SOBRE O SER
Professor: Surge o problema seguinte: em que consiste o ser das coisas que
so? O que ser? O que se urna? O que ser cavalo? O que ser cachorro? E
assim por diante.
4
Conferir Isagoge de Porfrio, traduzido e comentado por Mrio Ferreira dos Santos.
isso corresponde a um campo da realidade. Isso implica que voc prestar ateno
em alguns objetos. Em parte voc usar essa tenso para que voc possa
compreender a estrutura daqueles objetos, para que voc possa modific-los. Mas j
que voc presta ateno tanto tempo naquilo, de vez em quando voc vai prestar
ateno no ser daquilo. Voc pode captar o ser daquilo.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: Veja bem, trata-se de uma ateno. Ainda no um projeto
analtico. Trata-se de um projeto que vai lhe levar a percepes fundamentais sobre
aquilo para que os projetos analticos sejam bem fundamentados. Por exemplo:
posso fazer uma anlise completa da realidade a partir do pressuposto de que no eu
no sei se as coisas so reais ou no7. Posso partir do pressuposto de que eu no
saiba se o mundo existe ou no existe8, como se ele fosse apenas uma iluso da
minha mente. Isso acontece! Por que isso acontece? Simples, porque o sujeito no se
voltou para a captao do que o Ser. No percebeu que o processo analtico deve
vir depois9. Essa tenso pode ser comparada com a situao do sujeito que est perto
de uma fogueira. O que acontece com quem est perto de uma fogueira? Sente calor.
e seu corpo comea a se esquentar. Mas se voc ficar mais tempo, voc ficar mais
quente. Voc ser um pouco fogueira. como se aquilo tivesse sido capturado.
Com a idia de ser acontece a mesma coisa. Se voc pegar os objetos simplesmente
para perceber enquanto ser, como que aquela idia assimilada? claro que o
sujeito no conseguir prestar ateno em coisas completamente irrelevantes para
ele10. mais fcil fazer esse exerccio pensando em algo que voc gosta. como na
seguinte conto budista:
havia um rei que recebeu a visita de um monge budista. Este lhe contou
sobre os princpios e o simbolismo do budismo, mas o rei disse-lhe que somente
queria saber das prprias jias. Era a nica coisa que lhe interessava neste mundo
eram as suas jias. O monge, ento, disse-lhe que no havia nenhum problema
7
O que seria uma espcie de abandono do problema ontolgico e da percepo do ser [N.T.].
Ou o mundo como um todo, ou algum aspecto particular como as relaes causais, por exemplo [N.T.].
9
Parece lembrar o simbolismo do mercrio e do enxofre em uma das artes tradicionais medievais [N.T.].
10
E poderia at mesmo ser prejudicial! [N.T.].
8
nisso e pediu-lhe que, no final de cada dia, o rei ficasse contemplando a beleza das
jias com a condio de que ficasse prestando ateno apenas na beleza das jias
sem deixar que a teno se volte para o gozo que voc sente diante desta beleza. O
monge pediu-lhe que fizesse isso diariamente por meia hora. Passou o tempo e o rei
se iluminou
O que significa, nesta histria, o alcance da iluminao? simples! No
que o sujeito passe a fazer uma anlise do conceito de ser, mas ele fica to inebriado
com a contemplao do ser que, em tudo que ele olha, a partir de determinado
momento, que ir perceber se aquela coisa mais ou menos do que ela pode ser.
como se ele possusse um critrio fundamental para a avaliao das coisas [enquanto
seres].
Aluno: No to abstrato, ento?
Professor: No to abstrato, mas a ateno ir se voltar para um objeto
completamente abstrato [que o Ser]. Por exemplo: se h uma maa diante de voc,
sua ateno ir se voltando para cada uma das qualidades dela, como sua
consistncia, aroma ou cor. Mas, a cada vez que a sua ateno se voltar para cada
um destes acidentes, voc retoma o objeto inicial, pensando: este o perfume da
ma ou esta a cor da ma.
Aluno: A tendncia fugir, mas devo voltar para o objeto inicial.
Professor: Volte-se para o objeto inicial.
A DIFERENA ENTRE O SER E A QIDIDADE
Deve-se comear pela pergunta o que ser? E no se deve responder essa
pergunta com a qididade da coisa. Se Quando a mente se volta para o que ser
ma, a ateno, quase imediatamente, se volta para o que distingue aquela fruta do
abacate ou das outras. E, por meio desta pergunta passa para a qididade da coisa.
diferente de voc se perguntar em que consiste ser ma? A inteligncia humana
opera em dois planos simultaneamente: o plano das essncias das coisas e o plano
das qididades das coisas.
Aluno: O que qididade?
Professor: Qididade a caracterstica daquilo que .
Aluno: Qididade?
Professor: Por exemplo: a maa tem a sua respectiva qididade. Esta a
caracterstica que responde pergunta: o que a ma? Por exemplo: a qididade do
homem expressa como animal racional, que a resposta para a pergunta: o que
o homem?. A qididade uma abstrao feita a partir da pergunta sobre o que a
coisa.
Mas antes, ontologicamente anterior ao ser ma, h o ser: ser ma ser.
Para ser ma preciso ser. Ao pensar sobre o que ma, aprende-se muito sobre
caractersticas de todas as mas. J sabe muito sobre a qididade da ma. Mas
perceba, quando prestar ateno na ma, que algo precede a qididade dela. Porque
a qididade da ma corresponde a um modo de participar do ser. A estrutura
intrnseca da ma um modo de ser. E assim por diante, para cada objeto.
Professor: Por exemplo: quando eu era mais novo, gostava muito de
matemtica. Mas um dia prestei ateno nesse objeto e me perguntei: o que ser
nmero11? Prestar ateno no que ser nmeros inevitavelmente me levou questo
sobre o que ser. [Neste exerccio de contemplao do ser,] recomendvel que a
pessoa se volte para aquele objeto para o qual ela naturalmente atrada. Na medida
em que a nossa ateno naturalmente vai da percepo do ser das coisas para ns
mesmos, a nossa ateno segue um curso anlogo ao da luz. A luz bate nos objetos e
se volta para o olho humano. Todo objeto que atrai a nossa mente tem essa
caracterstica. Mas o que est irradiando estas informaes? Em que consiste ser isto
que irradia estas informaes.
O EXERCCIO DE IMERSO NO SER DE UMA ATO
11
Pergunta que Mrio Ferreira dos Santos se fez em Pitgoras e o tema do nmero e Edmund Husserl se fez
em Filosofia da Aritmtica.
12
Conferir definio da filosofia de Olavo de Carvalho, pai do professor Luiz Gonzaga: a filosofia a
unidade da conscincia na unidade do ser e vice-versa [N.T.].
Conferir a aula anterior em que o professor Luiz explicou um exemplo relacionado [N.T.].
Conferir alguma das aulas anteriores deste curso, onde se fez observaes sobre o aprimoramento em uma
arte, especialmente a aula entitulada esttica escolstica [N.T.].
14
Conferir aula de Olavo de Carvalho sobre Santo Agostinho do curso Histria Essencial da
Filosofia[N.T.].
perfeitamente. No existe uma frmula para imbuir isso em uma pessoa. Existe uma
parte da realidade que condicionada e outra que incondicionada. Por exemplo: na
prpria arte de construir um prdio, existe uma parte que condicionada. a parte
bem dada da qididade da coisa: o que um edifcio, o que pedra e destas
qididades, voc deduz as propriedades, com as quais voc monta uma estrutura.
Metade da arte da arquitetura, da construo e da engenharia isso. E a outra
metade? a capacidade que se tem de submergir no ser desta arte e fazer a coisa
bem feita ou produzir um objeto perfeito. Para uma parte, como ela uma seqncia
de condies, pode-se esquematizar e transmitir para um outro. Posso analisar os
materiais e formalizar isso, deixando esquematizado em um tratado que poder ser
passado a um outro.
Aluno: Isso metade da coisa!
Professor: Metade [da arte de construir prdios]! Mas se o sujeito que
aprende essa arte e comea a construir prdios, isso tomar, mais ou menos, um
tero de sua vida. Ele vai trabalhar oito horas por dia. Mas esse um ser humano
com capacidade de buscar o Transcendente e gastar [quase] metade da sua vida
fazendo prdios. No um tremendo desperdcio? Um sujeito passar metade da sua
vida construindo prdios e outro passar metade de sua vida dando aula e assim por
diante.
Qual o nico jeito de no ser um desperdcio? Quando voc exercita uma
arte regularmente, de tempos em tempos, voc ir se submeter ao ser deste processo.
Quem no conseguir jamais submergir no ser disso, mudar de profisso, pois no
agentar.
E quando voc submergir no ser disso, voc volta e observa o que foi esse
processo, o que foi essa submisso. Assim voc transformou um trabalho braal
qualquer em um meio de edificao espiritual. Qualquer atividade humana regular
pode se tornar um meio de edificao espiritual, desde que se faa isso. preciso
criar este hbito. Quando o sujeito volta deste estado, ele deve perguntar o que
aconteceu consigo.
Aluno: Na volta!
Professor: Quando o sujeito volta. Ento, ele deve recordar aquele estado.
Por qu? Porque se voc no recordar esse estado, voc ir tent-lo reproduzi-lo
mecanicamente, como se fosse algo da dimenso das coisas condicionadas.
[Aluno oferece um exemplo relacionado com o regime poltico cubano.]
Professor: Mas o que acontece? O Ser no Estado cubano no corresponde
em medida nenhuma ao Ser de Estado. um modo de no ser um Estado, no um
modo de ser um Estado.
Aluno: Fica somente com a casca.
Professor: Exatamente: fica somente com a casca, apenas com a estrutura
analtica [correspondente ao Estado]. No sustentvel. O modelo ideal do Estado
cubano no baseado na observao do Ser Estado.
Aluno: Mas somente na arquitetura [do Estado].
Professor: Exatamente: na arquitetura ou como na estrutura matemtica.
[Alunos comentam este exemplo.]
Professor: Ento, o primeiro passo justamente esse: quando o sujeito
emerge deste estado, a tendncia justamente a ateno voltar-se para o
condicionado porque h outras coisas a fazer. Mas, mesmo tendo estas outras
atividades para fazer, o sujeito deve marcar trs minutos e no brincadeira: so
trs minutos marcados no cronmetro mesmo. So trs minutos para recordar esse
estado, mas nesses trs minutos o sujeito deve mesmo fazer isso. E o que vai
acontecer? simples! Existe um processo, uma regra matemtica sobre o que vai
acontecer. Ele deve pensar nessa coisa at perceber a diferena que h entre o estado
condicionado e o estado incondicionado. [Deve notar que] isto que aconteceu no
devido a nenhum mecanismo, a nenhum processo mecnico. [Deve superar a
tendncia de] pensar que isso que aconteceu por algum outro motivo. Se chegou
concluso de que o efeito aconteceu porque tocou aquela msica enquanto estava
trabalhando, voc deve testar esta causa16. [Neste caso,] coloque a mesma msica de
16
Para descobrir se h mesmo uma relao necessria entre esta causa e o efeito em questo [N.T.].
novo. Depois, v testando as outras possveis causas, uma por uma. Ao chegar no
limite deste processo, voc [provavelmente] chegar concluso de que [aquele
resultado em questo] no foi causado por nada fora dele.
O SIMBOLISMO DO PRIMEIRO DIA DA CRIAO E DO PRIMEIRO
DOM DO ESPRITO SANTO
Professor: Isto o primeiro dia da vida espiritual e corresponde ao primeiro
dia da criao, quando Ele disse ao criar a luz: E Deus separou a luz das trevas.
Quando o sujeito tenta rememorar este estado e atribui imaginativamente causas a
este estado e vai testando-as e eliminando-as at que ele esgota [aquelas hipteses] e
percebe que aquele efeito intrinsecamente diferente deste plano [condicionado].
Isso a primeira Luz espiritual na vida humana. a percepo de que existe um
plano que no este da Terra. Isto a primeira percepo do outro mundo.
Aluno: como se a pessoa percebesse uma ordem17 do Ser?
Professor: Ainda no a percepo de uma ordem do Ser. a percepo de
que existe algo que no determinado por causas estranhas sua prpria natureza 18.
Por exemplo: existem inmeros fatores que interferem nas atividades. Por exemplo:
voc estava passeando alegremente pelo parque quando uma pedra apareceu no seu
caminho, voc tropeou nela e caiu. O seu passeio pelo parque est condicionado a
causas que so completamente alheias sua deciso de passear no parque. Todos os
processos da sua vida so influenciados por causas estranhas [a eles mesmos] ou at
mesmo hostis. E voc vai descobrir que aqueles processos [incondicionados] no
possuem causas estranhas a si mesmos: nada pode obstaculiz-los. Voc vai
descobrir que no sabe de onde veio e para onde vai: no sabe onde comea, nem
onde termina19. Assim voc percebeu o que o Esprito.
17
Nesta pergunta, o aluno provavelmente estava pensando no sentido de ordem de Eric Voegelin [N.T.].
Em outras palavras: existe algo absoluto ou incondicionado [N.T.].
19
Conferir Evangelho de So Joo [N.T.].
18
Aqui provavelmente o aluno estava pensando no sentido que o filsofo Eric Voegelin atribui a este termo
[N.T.].
Eu no podia chorar.
Isso quer dizer que Ele no podia conhecer a si mesmo passando pelo
sofrimento. Ento, Ele criou o ser humano, que pode conhecer o Ser partindo de um
estado de privao. O ser humano pode chegar plenitude. Deus no pode chegar
plenitude porque Ele j a prpria plenitude.
Aluno: E a Encarnao de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Aluno: Mas o provrbio judeu!
Professor: Pode acontecer que um sujeito tenha um talento to
extraordinrio para isso que ele decida dedicar-se apenas contemplao do Ser.
Um em cada milho de pessoas pode ter esse talento, mas isso no um modelo de
vida prtico para a maioria dos seres humanos. A imensa maioria dos seres humanos
precisa descobrir essa dimenso contemplativa na sua atividade cotidiana, naquilo
que efetivamente faz.
A primeira percepo que o sujeito tem sobre esse processo de que isso
ilimitado24 ou incondicionado: isso no est de modo algum sob o domnio das
coisas que j so conhecidas. como diz o Cristo:
O Esprito sopra onde quer e ningum sabe para onde vai ou de onde
vem25.
Ele no pode ser determinado por outro [fator]. Se o sujeito percebe isso,
o suficiente para modificar a vida do sujeito. Por qu? Porque ele perceber, quase
23
O professor est raciocinando aqui por meio de uma reduo ao absurdo [N.T.].
O que faz lembrar a noo de peiron de Anaximandro. Conferir as explicaes a esse respeito
oferecidas pelo professor Olavo de Carvalho no curso de Histria Essencial da Filosofia [N.T.].
25
Do Evangelho segundo So Joo [N.T.].
24
durante o tempo todo, que existe essa outra dimenso. Quando esse saber da outra
dimenso se torna um hbito26, surgir a seguinte questo:
E se isso nunca mais acontecer em mim? O que acontecer comigo se isso
se apagar completamente em mim?
Esse o temor de Deus, que o princpio da Sabedoria27. Assim, o sujeito
realmente fica infundido do temor de Deus como um dom espiritual.
O SEGUNDO DIA DA CRIAO OU O SEGUNDO DOM DO
ESPRITO SANTO
Quando eu tenho esse temor, o que acontecer? O sujeito perceber que no
pode dominar isso, mas percebe que, quando se vive de um certo jeito, pode-se estar
mais prximo disso do que quando se procede de outra maneira. [Neste caso,
percebe-se que] se, por um lado, no se pode dominar o Esprito, pode-se propiciar o
domnio do Esprito sobre a sua prpria pessoa. Ele pensa: eu no sei como causar
isso a, mas sei que certas aes minhas impossibilitam esta ao do Esprito em
mim28. Estas coisas me separam completamente do Esprito. Ento, o sujeito
concluir que deve criar certas regras de comportamento com este objetivo de
permitir que o Esprito domine sobre a sua pessoa. Isso j um segundo estgio, que
corresponde ao segundo dia da criao, quando Deus fez o firmamento no meio das
guas e separou as guas inferiores das superiores29. H algum lugar da psique que
como uma barreira: o que estiver para l dessa barreira, ir me separar do Esprito.
[Por outro lado], satisfazer alguma tendncia para c desta barreira no contraria o
Esprito. No o causa, mas tambm no o contraria, no me afasta dele.
26
Os alunos parecem estar pensando em termos da doutrina da unidade essencial sobre a qual trataram
Gunon e Schuon.[N.T.].
31
O aluno se baseou no princpio de que conjuntos que necessariamente possuem as mesmas quantidades de
elementos possuiro uma certa analogia estrutural, quase isomrfica. O professor Luiz j ministrou cursos
sobre esse assunto cosmolgico para outras turmas [N.T.].
H notveis exemplos destas anlises nas obras de filsofos como So Toms de Aquino e, mais
recentemente, Mrio Ferreira dos Santos [N.T.].
O autor desta transcrio um pssimo exemplo de aluno que, apesar de acompanhar as aulas do professor
Luiz h mais de um ano, buscou apenas essas anlises abstratas, desconsiderando qualquer progresso pessoal
[N.T.].
pobres de esprito, porque deles o Reino dos Cus34. Este pequeno exerccio vai
levar o indivduo a perceber que no possui o Esprito. No que o Esprito nunca
aja nele, mas [o fato] que no se possui o Esprito. E somente quando se percebe
isso claramente que se pode perceber algo sobre o Esprito.
Ento, justamente isso: a primeira coisa que ele perceber sobre o Esprito
que ningum possui o Esprito. Como est nos Provrbios: como um eunuco que
tenta violar uma donzela, o homem que tenta alcanar a Sabedoria fora. Quer
dizer que [o ser humano] no tem o equipamento necessrio [para este fim], no ser
possvel. Deve-se perseverar at o fim para que voc [realmente] perceba que no
possui o equipamento para dominar o Esprito. [Neste caso], voc aprendeu algo
sobre o Esprito. Voc aprendeu, por experincia imediata ou direta, que Ele
indomvel. Isso j saber algo sobre o Esprito. Algo que, apesar de se crer que o
Esprito indomvel, s vezes a gente age como se ele fosse domvel. Por qu?
Porque a gente no sabe isso por experincia. Porque eu sei por ter lido em algum
lugar. [Neste caso], eu sei que isso razovel, mas no se sabe se verdade ou no
enquanto ainda no se experimentar este processo. H uma diferena entre o
argumento provvel e a certeza de algo35. Quando o sujeito faz esta rememorao e
esta tentativa de esgotar a hiptese, o final desse processo ir lev-lo a uma certeza
acerca da existncia do Esprito que nunca mais sair da conscincia deste sujeito.
Ele nunca mais pensar, em nenhum momento, que ele pode dominar esse processo.
Isso uma experincia espiritual.
[Aluno pede mais uma explicao.]
Professor: Ao rememorar esse processo de imerso no Esprito ou entrar no
ser de um ato, pode-se buscar entender isso, testando as causas, que so propostas
pela imaginao, at obter esta percepo direta e certa de que o Esprito
indomvel. Este o primeiro encontro do indivduo com deus. O primeiro encontro
consciente do ser humano com Deus se d assim. claro que temos encontros com
34
Deus durante o tempo todo, mas, nestes, a gente no sabe que Deus que est ali 36.
A gente no sabe o que est ali. Mas desta vez pode-se saber conscientemente que se
est com Deus, porque nada domina aquilo37. A questo importante aqui a
perseverana no exerccio. A primeira semana ser frustrante porque o sujeito
perceber que no sabe nada sobre o que aconteceu ali. Ele no capta o que
aconteceu ali, o que evidentemente frustrante. Mas persevere e v buscando as
causas. Por qu? Porque esse processo, que frustrante, corresponde, em uma escala
menor, ao processo pelo qual o Rei Lear passou aps dividir o Reino. O que
aconteceu? Quando o sujeito est nesse processo de comunho com o Esprito ou
submerso no ser do ato, justamente o que Lear tinha feito antes da pea
[comear]. o reino perfeito que ele fez. como se aquele ato [perfeito] fosse o seu
reino perfeito [como aconteceu com Lear]. O processo de entender aquilo o
processo inteiro da pea do Lear.
evidente que, durante esse processo, predominar o elemento de
frustrao. O ser humano simultaneamente uma imagem de Deus e uma imagem
do mundo. O ser humano uma imagem de tudo [ou um microcosmos38]. Se
existe algo de demonaco no mundo, h algo de demonaco no ser humano. Este ser
demonaco far de tudo para que voc no preste ateno naquilo. De tudo! Usar
todas as armas que possui, mas, em certo momento, ele gasta [tudo], isto , acabamse os recursos dele. Se o sujeito persevera at que estes recursos [demonacos] se
esgotem, o sujeito capta algo do Esprito.
Qual a primeira notcia que se percebe? a notcia sobre essa liberdade e
independncia do Esprito. Em termos metafsicos, o sujeito deve perceber que o
Esprito incausado. [O Esprito] no possui uma origem. Ele sempre foi o que . Se
36
Esta observao faz lembrar que os discpulos de Emas tambm no sabiam que estavam diante do Cristo.
Conferir, a este respeito, o Evangelho de So Lucas [N.T.].
37
O divino tambm aparece como indomvel a So Tom quando v Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitado,
segundo o santo relato do Evangelho de So Joo. Tambm apareceu a Moiss quando viu a sara ardente,
conforme o santo livro do xodo [N.T.].
38
Conforme um texto clssico de uma das artes tradicionais medievais: Na verdade, na verdade, sem
dvidas e incertezas:/ o que est em baixo assemelha-se ao que est em cima, e o que est em cima ao que
est em baixo, para realizar os prodgios do Uno.
faz um passo depois do outro. O exerccio que estou propondo o seguinte: nesta
hora em que voc volta para esta dimenso temporal, antes de voc retomar a
caminhada, rememore este perodo em que voc ficou submerso na fonte do [ser do]
processo. E pergunte-se: aconteceu ali? O que aconteceu quando estava no ser do
processo, quando consegui agir sem me esgotar psiquicamente? So estes momentos
breves que tornam o trabalho suportvel. O exerccio este: quando sa deste
processo de imerso no ser da atividade atual e voltei a pensar etapa por etapa, antes
de retomar o curso, irei parar e perguntar: o que foi isso? O que aconteceu? O que
causou isso?
[Aluno oferece um exemplo de um mdico, na sua famlia, que fazia algo
muito similar a este exerccio.]
Professor: isso! Esse sujeito estava a um passo da santidade. Se ele
parasse para refletir sobre esse processo da mesma maneira como ele fazia cirurgias,
ele chegaria santidade.
[Alunos contam outros exemplos retirados da vida deste mdico notvel.]
Professor: Este rememorar levar, no decorrer do tempo, ao aumento da
freqncia dessa experincia.
[Alunos comentam sobre este exerccio.]
Professor: Isso pode ser feito em qualquer atividade humana.
Aluno: Inclusive na vida de estudos.
Professor: Porque seno a vida de estudos tambm seria um inferno.
Aluno: No limite, como diz So Paulo [Apstolo]: Nele somos, nos
movemos e existimos.
Professor: Isso pode ser feito em qualquer processo mesmo: at enquanto se
assiste a televiso. A gente falou do trabalho porque esta uma atividade que
regularmente se tornar um inferno, mesmo que o sujeito seja apaixonado pelo seu
trabalho. [Ento, o sujeito] pode observar estes momentos em que deixou de ser um
inferno, [por exemplo]. Isto pode ser feito em qualquer atividade humana.
[Alunos oferecem outros exemplos, como a alimentao.]
39
Parece que o professor Luiz est insistindo em uma percepo que Husserl chamaria de autntica, isto ,
uma percepo na qual o objeto esteja presente, em contraste com a percepo simblica, na qual o objeto no
precisa estar presente. Por exemplo: se penso no meu falecido av Horcio, uma expresso simblica,
pois ele no tenho a percepo autntica dele como o aluno tem do professor presente que ministra a aula
naquele momento, na sua frente [N.T.].
40
Esta tese defendida, por exemplo,no livro A crise do mundo moderno de Ren Gunon [N.T.].
Professor: A vitalidade se atrofia e, por mais certa que [tal filosofia seja],
no tem fora para agir.
a essas duas atividades que Aristteles se referia quando disse que se a
coruja no capaz de ver o Sol, a guia, no entanto, . Quando Aristteles foi
ficando mais velho, foi adquirindo uma tendncia mais potica e mstica como
Plato41. Ele estava dizendo que a ave noturna, a coruja, o aspecto da inteligncia
humana que capaz de analisar as coisas e dividi-las em estruturas formais,
desenvolvendo as cincias, as artes e a civilizao. Isso tudo muito til, mas, por
si, no tem vitalidade. Se voc no entender esse outro processo, que o entender o
Ser, essas coisas formais caducaro. No provocaro um interesse [humano]. Por
qu? Porque uma civilizao excelente no resolve sequer o problema de uma vida
humana. A melhor civilizao, por si, no torna um nico indivduo humano feliz.
Do mesmo modo que o melhor tratado sobre cirurgia no faz, por si, uma nica
cirurgia. Somente quem faz a cirurgia a pessoa imersa nesse processo. E a
captao consciente desse processo o que torna o ser humano feliz.
preciso trabalhar nos dois planos. Por uma lado, estamos constantemente
analisando as estruturas para tentar entend-las melhor e tentar fazer o mundo ao
redor um pouco menos pior. Por um lado a inteligncia se volta para isso em cada
coisa cotidiana que tento fazer melhor, como correr uma maratona melhor ou
qualquer outra atividade. Mas isso no suficiente! preciso que a inteligncia
volte, nessas ocasies, e tente entender o que foi aquela submerso.
[Aluno pergunta sobre o simbolismo do Esprito na orao do sinal da
cruz.]
Professor: Por que voc nomeou o Esprito Santo na dimenso horizontal e
no na dimenso vertical? Justamente porque essa submerso no Esprito estender
41
Como diz um comentarista, foi se tornando um amigo dos mitos ("filo-mitos") alm de um amigo da
sabedoria ("filo-sofia"). Conferir o volume introdutrio de Giovanni Reale sobre a Metafsica de Aristteles
[N.T.]..
ou ampliar a dimenso horizontal. Voc fez algo para este plano ser mais perfeito.
Este plano aumentou ou dilatou42.
[Aluno faz pergunta sobre esta dimenso.]
GUISA DE CONCLUSO: O INTELECTO E O SENTIDO DA VIDA
HUMANA
Professor: Se o sujeito no usar esta dimenso para obter a outra, no ter a
outra. Quem quer pensar na outra vida acaba no pensando em vida nenhuma, pois
somente se pode pensar na vida que se tem. Ento, a sua outra vida precisa estar
nesta aqui. Nada banal para o Esprito. Pode ser banal no plano humano, mas este
processo espiritual poderia ter acontecido naquele ato [humanamente] banal. Se
voc rememorar aquele ato [buscando a presena do Esprito ali], ele no menos
do que o ato do Rei Lear. O Esprito o mesmo tanto em um ato como outro. No
existem atos banais. O que existe uma mentalidade banal.
Por hoje est bom, ma h uma lio de casa que no acabar nunca!
[Aluno pergunta sobre esta tarefa de casa, se ela visa reviver o que
aconteceu na imerso no Esprito.]
Professor: No visa reviver o que aconteceu, mas entender o que se passou
e descobrir qual foi a causa por meio de testes que levaro a excluir as possveis
causas43. At uma hora em que a imaginao esgota suas possibilidades de atribuir
causa. Se voc continuar a rememorar depois disso, comear a compreender o que
o prprio Ser. A primeira coisa rememorar. Quem fez isso sistematicamente,
cumpriu a finalidade da vida humana. Saber o que esse estado ou compreend-lo
a finalidade da existncia humana. O objetivo compreender aquilo.
Aluno: Agora entendi.
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Com o sinal da cruz, como se os ombros se ampliassem tambm com a nomeao do Esprito Santo, ao
contrrio dos homens sem peito de que trata C.S. Lewis em Abolio do Homem [N.T.].
43
At esgotar essa tentativa de compreenso e perceber autenticamente a causa incondicionada, que o
Esprito [N.T.].
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Ele penetra em um crculo mais amplo do que o prprio crculo das leis naturais, conforme o simbolismo
dos esquemas de crculos concntricos dos medievais [N.T.].