A Mulher e A Lua - Artigo Científico
A Mulher e A Lua - Artigo Científico
A Mulher e A Lua - Artigo Científico
Resumo
cada vez maior o nmero de mulheres cultas e de classe mdia que se
renem para cultuar a lua. O ritual observa signos e smbolos que remontam as
origens da humanidade. O texto procura desenvolver as caractersticas desse ritual,
buscando semelhanas com os rituais das feiticeiras medievais, para contribuir com
um vis de anlise do feminino na histria da religio.
Introduo:
Deusa da lua e da magia,
mostre-me a resposta.
Deusa dos mistrios,
revela-me todos os destinos.
Essa pequena orao acima, ensinada pelas mulheres mais velhas a todas as
jovens que so iniciadas na arte da Quiromancia e do Tar, foi-me ensinada j no
me lembro quando, nem onde. Sei que as mulheres que a ensinaram esto mortas.
grafas, 1 seus saberes foram recebidos e transmitidos oralmente e perderam-se
num mundo cada vez mais escrito, cientfico e tecnolgico. Imersa no mundo
racional-capitalista e cristo, tambm eu fui perdendo a f nos poderes mgicos da
lua. Lembro-me inclusive, de ter confessado inmeras vezes o pecado de ver a
lua como me, to poderosa como a prpria me de Jesus. Pediram-me que
desistisse dessa viso. Hoje posso dizer que desisti. Desisti da confisso.
Nos meados dos anos 80, comecei a ver, cada vez mais, a mesma orao
reproduzida em agendas, cartazes capas de livros esotricos, livros infantis, filmes
de televiso que tratavam do mysterium tremendum. Mais ou menos modificada, a
orao era sempre dita num dia de lua cheia benigna (mais adiante, tentarei
diferenci-la da lua cheia maligna) por uma mulher jovem nua ou de trajes
transparentes.
Um outro fato propulsor das questes que tentarei desenvolver aqui foi a
percepo, nessa poca, de um nmero crescente de colegas de profisso, todas de
nvel universitrio e de classe mdia, que comearam a aconselhar, umas s outras,
inclusive a mim, sobre rituais mgicos ligados lua, no sentido de solucionar as
1
Diz-se grafos aos povos que no desenvolveram um sistema de escrita prprio e grafas pessoas que
no sabem escrever.
A fase da lua Nova para tradio cigana do sub-grupo Calon a fase do recolhimento, da busca interior
e no mundo material daquilo que devemos nos separar.
1 RITUAL DA LUA.
Existe toda uma tradio antropolgica explicando que o rito esconde o mito,
por sua vez criado coletivamente para expressar uma viso de mundo ideal ou
historicamente perdida e que reconhecida como verdadeira pelo grupo que, atravs
da atividade simblica do rito, pretende que essa verdade seja incorporada na
realidade humana, pelo uso metafrico de palavras, gestos e substncias.
Mais do que uma mitologia, a aceitao da influncia da lua em nossas vidas
remonta a figuraes arquetpicas do feminino e materno, da ligao intrnseca com
a natureza com o abandono ao devir, do simples, da fora ertica, da doura e da
crueldade enfim da capacidade geradora do arqutipo feminino (Terrin, 1996: 190 a
214).
So essas foras que orientam a conduta: o ritual da lua que feito sempre
noite, mesmo quando o momento exato da mudana de fase ocorre durante o reinado
do sol, espera-se a noite chegar e a lua aparecer, fato que por si s sugere maioria
das pessoas, um carter de mistrio. As hierofanias lunares, como diria Eliade, esto
relacionadas fertilidade, s guas, vegetao, mulher, ao antepassado mtico.
Assim, a escolha do stio, onde se dar o ritual, tem que estar prximo a uma grande
gua, de preferncia ao mar, porm, jamais na areia que considerado estril, mas
em um campo de gramneas naturais.
O ritual um congraamento de mulheres e os pedidos devem ser mantidos
em segredo, sobretudo de pais, filhos, maridos e irmos, mesmo quando esses
pedidos estejam relacionados a eles. Tambm se deve silenciar sobre experincias
msticas e sobre o local ritualstico, o que impede a participao de mulheres
extremamente dominadas, fteis ou excessivamente materialistas. A participao se
d por convite.
Apesar de aparecer na mdia e no imaginrio popular, que o ritual lunar
sempre na lua cheia e mesmo sendo o mais fortemente carregado de simbolismo e
visualmente bonito cada fase da lua tem o seu ritual especfico, desejos certos aos
quais podem favorecer. Esses desejos ou pedidos, comumente esto ligados s
necessidades especficas das mulheres: a gravidez, o amor romntico ou sexual, a
beleza ou doenas degenerativas, o domstico e seu entorno, os filhos, a me. Muito
embora alguns grupos, hoje, so capazes de adaptar as magias lunares para a
aquisio de bens materiais, poder poltico e/ou econmico e a que penso estar
o interesse de um estudo sistemtico o rito lunar est ligado aos padres
mticos do grande redondo, ou eterno retorno o ciclo de sacrifcio, vida-morterenascimento, historicamente associados a Grande Deusa Me3 - Gaia que por
partogenesis gerou Urano - o pai cu da mitologia grega, a raiz misteriosa de todo
Sobre a Grande Deusa Me vide a coleo Amor e Psique da Paulus, sobretudo a obra de Jean Shinoda
Bolen, e sua obra essencial As deusas e a mulher dessa coleo, editada em 1990 em So Paulo pelas
Edies Paulinas.
crescimento e de toda mudana; o amor que significa volta ao lar, abrigo, e o longo
silncio em que tudo tem seu incio e no qual tudo encontra seu fim.4
Alguns smbolos ritualsticos so fixos, isto , utilizados em todas as fases da
lua como, por exemplo, a serpente em forma de anel, que usado sempre no dedo
anelar. O dedo mdio tem a funo lunar de ligar o mundo superior com o mundo
inferior e se usa anel nesse dedo, quando no se deseja mais participar do ritual. A
serpente aparece tambm no vaso ritual da lua cheia. que a serpente significa
regenerao, pois ela muda de casca periodicamente.
Outros smbolos so especficos a cada fase. A lua Nova o perodo escuro
sombrio, o perodo de Kali que Terrin (1998: 104) chama de o poder do tempo e da
morte e Eliade (1998: 150) de poca sombria, por isso deve-se usar num ritual
mgico da lua nova prolas negras (ou contas que se lhe assemelham). O crculo
ritualstico de ritmo lento e o cntico apenas com o nome Kali ou Malakali
repetido. E o perodo em que se planta o desejo (o pedido) da lunao. Quando se
pede paz aos mortos e o perodo de descida ao lado obscuro da alma. Tempo das
vivas, das tradas, das abandonadas, as que tiveram filhos precocemente mortos
plantarem as sementes (so mais usadas as do alho, da cebola e outras plantas de
bulbo, pois a gua contida neles, simbolicamente as lgrimas femininas, vo
alimentar a nova planta) do renascimento afetivo. As vestimentas so de cores que
vo do negro ao verde escuro.
O ritual da lua crescente se faz no sentido de costurar o que est separado, de
tecer a trama do destino. O smbolo da crescente a agulha em forma de lua
crescente com a qual se deve costurar os desejos. Tecer no significa somente
predestinar e reunir realidades diferentes, mas tambm criar, fazer sair da sua
prpria substncia, como faz a aranha, que urde, ela prpria sua teia. (Eliade, 1998:
149) a lua da esperana, da adolescncia revivida em qualquer idade, do novo
amor ou do retorno do amor sob novos augrios. O crculo ritual na verdade um
semicrculo e os cnticos so de pedidos de coragem para tecer seu prprio destino.
Creio ser por isto que alguns crculos neo-esotricos, desprezam a lua nova e j
comeam o ritual na crescente. Esses dfricheurs (Ortiz, 1998: 206) no
suportariam descer antes, aos prprios infernos para, s ento, tecer seu destino e
pensam ser possvel construir edifcios sem alicerces subterrneos. Mas, aqui no o
espao, nem o tempo para esse debate.
O ritual da lua cheia o mais conhecido. Esteticamente belo, sonoro, ritmado,
feito num crculo mgico. Onde, de mos dadas, as mulheres vestidas com tecidos
leves e claros cantam e giram em crculo cada vez mais rpido, tendo ao centro uma
fogueira, o que provoca xtase5 nas participantes, e certo frenesi nos assistentes.
Por isso mais divulgado na mdia, aparecendo constantemente nos filmes e novelas
da televiso.
Nem todas as luas cheias so iguais. Por serem o centro da magia, a lua plena
no cu pode revelar augrios distintos. Se acontecerem junto aos solstcios
geralmente tais luas so benficas, melhores aquelas que vm com uma aurola
branca. Aziagas, as que so circundadas por um crculo vermelho. Terrveis,
geralmente produzem derramamento de sangue. As luas cheias de equincio trazem
a beno da paz, da concrdia e da justia e se vierem com crculos dourados podem
4
Jung in Psychologial Aspects of the Mother Archetypc citado por James Hollis Rastreando os Deuses
Paulus, 1995.
5
O fogo desde a pr-histria associado s religies. Representa a vida e a morte, a origem e o fim de
todas as coisas, e nesse sentido um dos mais importantes emblemas de transformao e regenerao.
3 A LUA NA CARTOMANCIA.
Se a lua tece todos os destinos, est intimamente ligada a faculdade de
previso do devir atravs da leitura das cartas. Estas so consideradas por muitos
como sendo um banco de memria no qual todo o saber antigo est sintetizado. O
prprio Carl G. Jung dedicou especial ateno ao tar e outros jogos que
possibilitam a arte divinatria, considerando as cartas uma sntese de arqutipos.
Mas este no o espao para desenvolver um trabalho sobre o Tar e outras cartas
divinatrias e sim para demonstrar a importncia do smbolo da lua e sua relao
com a mulher presente nas artes divinatrias.
No baralho cigano a lua a carta 32 denominada A glria, pertence ao naipe
de copas, est ligada ao elemento gua e seu plano de existncia e o sentimento.
Ligada ao mundo mstico e ao ocultismo, a lua indica glria e reconhecimento.
Sempre que aparece num jogo essa carta indica que se deve prestar ateno
intuio como uma maneira de perceber o acontecimento futuro que, as outras cartas
anunciam.
No Tar de Marselha a lua o arcano XVIII cuja figura traz a lua sugando a
energia terrestre. Dois cachorros, que representam as emoes humanas, uivam para
a lua. Numa lagoa de guas paradas uma lagosta ergue seus braos em direo lua.
Sempre que essa carta surge no jogo representa as condies da alma quando sob o
domnio da matria e sempre aviso de algo ruim, excesso de imaginao,
influncias perniciosas, exposio a perigos, drogas, alcoolismo, instabilidade
emocional.
Essa oposio de significados entre o simbolismo do baralho cigano para a lua
e o sentido do arcano XVIII do Tar est no fato que o baralho cigano lido por e
para mulheres. Bem mais antigo que o Tar7, o desenho do naipe 32 do baralho
cigano traz uma relva de gramneas com um rio que serpenteia o caminho para o
mar, uma paisagem noturna tendo um plenilnio dourado ao fundo. No bastassem
7
Segundo Serra Negra in O que baralho?, Coleo Primeiros Passos, n 257, edit. Brasiliense, 1992;
h dvidas sobre a origem do Tar, uns atribuem ao Egito Antigo ( Livro de Thot) outros aos Hebreus
(Tarock - Tor). A data provvel de seu aparecimento na regio de Marselha Frana por volta do sc.
XV.
CONCLUSO
Se uma poca sombria seguida, em todos os planos csmicos, de uma
poca luminosa, pura, regenerada (Eliade, 1998: 151), possvel pensar que o
aumento do nmero de mulheres que buscam atravs do ritual da lua, um espao
para juntar foras, demonstra uma busca pela mstica essencialmente feminina e que
d subsdios para a construo (reconstruo) da histria das mulheres.
Todos sabemos que as crenas mgicas que envolvem a relao mulher-lua so
to numerosas quanto o nmero de etnias existentes na Terra e que, quanto mais
ligados vida agrria maior afinidade com os fenmenos naturais. Cultuar a lua,
ento, significa prever as intempries naturais que prejudicam a agricultura. Alm
disso, na vida comunitria se nasce e se morre junto s mulheres aparentadas,
cabendo a elas s previses desses eventos, bem como os agrcolas e os que regem a
vida dos animais domsticos.
Contudo, o que tentei desenvolver aqui que, um nmero cada vez maior de
mulheres, oriundas do topo da pirmide social de sociedades de ponta do mundo
8
Exemplo disso o termo coven para o circulo, o uso de clice para o vaso ritual e espada medieval no
lugar do punhal.
9
Hstia-lares deusa greco-latina do inconsciente e da lua. Representada nas casas romanas pela lareira,
acabou por simbolizar o habitat humano o lar. Simboliza ainda o estgio da velhice e as mulheres
enclausuradas em instituies.
BIBLIOGRAFIA
BOLEN, Jean Shinida As Deusas e a Mulher; 2 ed., SP, Ed. Paulinas, 1990.
BOURDIEU, Pierre O poder simblico; Lisboa Difel, 1989.
ELIADE, Mircea Tratado de Histria das Religies; 2 ed., SP, Martins Fontes,
1998.
ELIAS, Norbert O Processo Civilizador; vol. I, Uma Histria de Costumes 2
ed., RJ, Jorge Zahar, editores, 1994.
HADS Cartas e Destino; Lisboa, ed. 70, 1988.
HARDING, Mary Esther Os mistrios da mulher antiga e contempornea, 2 ed.
SP, Ed. Paulinas, 1985.
LELAND, Charles Godfrey Magia Cigana Encantamentos, Ervas mgicas e
adivinhao; RJ, edit. Bertrand Brasil S.A; 1992.
OLIVEIRA, Naldo de Tar: a magia dos ciganos; Rio de Janeiro, Pallas, 1992.
ORTIZ, Renato Mundializao e Cultura; 3 reimpresso, SP, Brasiliense, 1998.
TERRIN, Aldo Natale Nova Era a religiosidade do ps-moderno; SP, ed.
Loyola, 1996.
Credenciais da autora.
Regina Meira Aguiar sociloga formada pela USP.
Ps-graduada pela Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo Formao social da
conscincia.
Mestra em Cincias da Religio pela PUC/SP onde defendeu a tese: O desafio de
reencantar a educao na luta contra a excluso social dos pobres.
Professora de Histria da rede pblica e particular por mais de 25
anos.Leciona Introduo s Cincias Sociais e Filosofia e tica na Faec h 8 anos.