Joe de Lima Serpente de Fogo PDF
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Nascido em 1981, Joe de Lima fruto da gerao internet. Sua formao como
autor se deu atravs da grande rede. Iniciando sua carreira literria, participou
das antologias Lugares Distantes e Psyvamp (Editora Infinitum), Angelus
Histrias Fantsticas de Anjos e Daemonicus Histrias Fantsticas
de Demnios (Editora Literata) e Mundos Vol. 02 (Editora Buriti).
- www.joedelima.blogspot.com.br
- www.baudojoe.blogspot.com.br
Sobre a obra:
Serpente de Fogo foi originalmente publicada na forma de uma srie literria
com captulos semanais e agora est disponvel completa no formato e-book.
Esse arquivo foi disponibilizado pelo autor para download gratuito. Fique a
vontade para compartilhar com os amigos!
Capa: Soren Niedziella e Rafa Lee
ndice
REMINISCNCIAS
Primeiro Fragmento
Ns somos os Clancey...
Prlogo
Lestonor, sentia como se nada de mal pudesse atingi-la. Os archotes e a cor clara
das paredes mantinham o ambiente iluminado mesmo noite.
Orf, sua me verdadeira havia morrido no parto e o pai era um soldado
vitimado na guerra que nunca se importara com a filha. Por conta desse descaso,
ela preferia usar o sobrenome materno: Clancey. Mas Liana nunca teve motivos
para lamentar tais mortes. No quando podia amar Denora como uma me e
Tssia como uma irm. E a qualquer momento teria uma filha a quem poderia
repassar os ensinamentos da Grande Me. Uma criana concebida em
circunstncias especiais. Vrias precaues haviam sido tomadas para garantir
que seria uma menina, uma futura lder para o templo.
Uma forte contrao na barriga fez Liana parar no corredor. Seu poncho
ficou encharcado entre as coxas.
O beb! exclamou Denora. Blie-Mi, acorde a parteira! Tssia, me
ajude a levar Liana para o quarto! Nossa menina vai nascer!
Liana foi levada para um cmodo pequeno, ajudaram-na a tirar o poncho e
a se deitar com cuidado na cama de madeira, com o desenho de um crescente
sobre a cabeceira. Cada nova contrao a fazia apertar mais a mo de Tssia que,
sentada ao lado da cama tambm enxugava sua testa e lhe encorajava. Denora
observava tudo de p, o nervosismo a fazia prender a respirao sem perceber. A
cabea loira de Blie-Mi aparecia logo atrs. A visitante estava curiosa para ver um
parto, imaginando que, agora que estava casada, logo passaria pela mesma
experincia.
A parteira, uma mulher de certa idade, ajudava como podia.
Empurre, Liana! Um pouco mais agora!
A moa ruiva fez toda fora possvel. A respirao acelerada. O suor
escorrendo pelo rosto. No imaginava que seria preciso tanto esforo. Por um
momento, seu olhar passou pela janela e viu a noite sem lua. Nem Solari, nem
Lunna veriam o beb nascer. O que significava que a criana no teria a beno
dos Criadores. Ou assim, ela imaginava
Nesse instante, entre as ondas de dor, Liana viu uma estrela cadente
aparecer de repente no cu. Poderia ser bom para a criana. Alguns povos diziam
que ver uma era sinal de boa sorte. Concentrando-se naquela estrela, ela fez um
esforo ainda maior. A estrela cadente cresceu mais e mais, seu brilho tornou-se
intenso.
De sua janela, Liana viu uma exploso luz transformar a noite em dia. As
mulheres dentro do quarto se apavoraram. Tssia soltou um grito e Blie-Mi
agarrou-se em Denora.
Quando a luz diminuiu, tudo que restava era um rastro incandescente no
cu noturno que logo virou uma trilha de fumaa. Era como se uma Como se
uma Serpente de Fogo tivesse rasgado o firmamento.
Meu beb! gritou Liana, a nica que ouvia o choro da criana recmnascida.
Denora foi a primeira a sair do estado de torpor causado pela viso.
Parteira, rpido! A menina!
Ainda confusa e com as mos tremendo, a parteira lavou a criana e a
enrolou em uma toalha.
S-senhora ela se voltou para Denora com uma voz trmula.
O que foi? A menina est bem?
Liana ficou aflita.
Tem algo errado com a minha menina?
O beb est saudvel, mas respondeu a parteira. um menino!
Um novo choque atingiu Denora. Como podia ser isso? A criana havia sido
concebida em um ritual dedicado Lunna, para que esta lhes enviasse uma
mulher.
No pode ser! Fizemos o ritual da Filha da Lua. Deveria ser uma menina!
- um menino, senhora a parteira no sabia o que mais poderia
dizer.
Para Liana, aquela conversa pouco importava.
Eu quero segurar meu beb.
O menino foi colocado em seus braos. Era pequeno e frgil. Assim que
Liana o abraou, ele desatou a chorar. Olhando o pequeno de perto, Tssia notou
mechas ruivas ralas em sua cabecinha.
Me! Olhe o cabelo dele! Parece at
Por Lunna! O que foi agora? Tssia estava cansada de tantas emoes
em uma s noite.
Veio do saguo principal. concluiu Blie-Mi aps o estrondo ser ouvido
novamente. Parece que esto tentando derrubar a porta!
Vamos ver o que . Liana levantou-se com Valek nos braos.
Tssia torceu o nariz.
No, voc precisa descansar. melhor ficar aqui com o beb.
Eu quero saber o que est acontecendo!
Tssia insistiu, apesar de saber que era intil. Quando a amiga falava
daquele jeito, nada podia faz-la voltar atrs. Liana vestiu uma tnica e logo as
trs caminhavam sorrateiramente at o fim do corredor, chegaram a um piso
elevado acima do saguo principal do templo, onde haviam duas fileiras de
bancos de madeira e um altar encimado por uma pira acesa, abaixo de uma
grande lua crescente esculpida em pedra.
Viram as portas de madeira e a pesada tranca tremerem ante um novo
impacto. As sacerdotisas se agitaram e Denora se esforava para por ordem em
tudo. Liana no compreendia o que se passava. Temeu que os homens do rei
estivessem a forar a entrada no templo. Em seus braos, Valek no parava de
chorar. Um novo impacto, as portas de madeira macia racharam.
Isso um sacrilgio! a clera tomou conta de Denora. A ira da
Grande Me cair sobre vocs!
As ameaas foram em vo. Mais um choque.
Liana apertou Valek contra o peito ao ver as portas de madeira carem em
pedaos. Penas negras flutuaram no ar. O corao dela disparou. Quem quer que
estivesse do lado de fora O que quer que estivesse do lado de fora Nada mais
impedia sua entrada
Captulo I
Uma Flecha de Lestonor
Captulo II
Anel de Ouro
buscado seu apoio inmeras vezes ao longo dos sculos, porm, nenhum ouro
fora capaz de comprar sua lealdade. O uso de fora se mostrou ainda menos
eficaz. Aquartelados nas montanhosas terras do norte, os acaris podiam
enfrentar qualquer invaso de qualquer porte.
A resistncia contra os ataques de fora parecia ser a nica coisa capaz de
fazer aquele povo se unir. To logo os invasores eram repelidos, as Guerras dos
Cls recomeavam. Essa postura no impedia que guerreiros solitrios ou
pequenos grupos se juntassem a exrcitos estrangeiros, ou ganhassem a vida
como mercenrios. No entanto, a maioria dos acaris s considerava outro acari
como um adversrio digno.
Valek adentrou a aldeia. As casas eram feitas de tbuas de madeira, os
telhados forrados com vime pareciam quase uma extenso da grama. Caminhos
de terra formavam pequenas ruelas. Todas as famlias que viviam ali possuam
algum grau de parentesco, ainda assim, existia certa hierarquia social. As
linhagens mais prximas dos fundadores do cl desfrutavam de alguns
privilgios.
Clancey! uma voz conhecida chamou por Valek rispidamente. Quero
falar com voc!
Ele fingiu no ter ouvido e acelerou o passo, sendo empurrado com
violncia pelas costas. Virou-se para encarar trs rapazes de sua idade. Todos
loiros de pele alva, a aparncia mais comum aos Mi. Quem vinha frente daquele
grupo era Kjev-Mi, filho mais velho de uma das casas mais tradicionais do cl e
perseguidor do jovem ruivo desde a infncia.
Ficou surdo, Clancey? Quando um acari de verdade chamar, responda!
O que vocs querem?
Sabe o que eu quero. O anel de ouro da minha irm que voc roubou.
Devolva!
No sei do que est falando!
Minha irm disse que te viu saltar da janela do quarto dela e sair
correndo. Ela olhou em tudo e no encontrou o anel.
Eu passo em frente sua casa todos os dias quando vou correr na mata.
Sua irm perdeu esse anel em outro lugar. Agora, adeus!
Ele nem teve tempo de se virar de volta antes de seu rosto ser atingido com
violncia por um bracelete de ferro macio. Kjev-Mi desabou com o maxilar
quebrado e vrios dentes a menos.
Um fora de combate. Restavam dois.
Dan-Mi reagiu de imediato. Como um touro selvagem, correu com a cabea
abaixada, agarrou Valek pela cintura e o derrubou. Clancey usou os braceletes
para se proteger dos socos que se seguiram.
Percebeu Kir-Mi correr em sua direo para chut-lo, precisava sair dessa
situao depressa. Pensou em jogar terra nos olhos do adversrio sobre si, mas
ao tatear o solo encontrou algo mais adequado. Uma pedra do tamanho da palma
de sua mo largada na grama ao lado da rua. Segurou o pedregulho com firmeza
e mirou seu ataque no olho de Dan-Mi. A pedra espatifou-se causando grande
dano.
Dois derrubados. Restava apenas um.
Com um movimento do corpo, Valek se livrou de Dan-Mi e apoiou-se em
um dos joelhos bem a tempo de agarrar a perna de Kir-Mi. Com um giro, o
derrubou com o rosto no cho, mantendo a presso sobre a perna.
Quem vai se ajoelhar agora?! Valek extravasou sua raiva.
Argh! Foi ideia do Kjev-Mi! Foi ele quem te acusou! Eu juro!
Voc disse que eu era lixo! Vou te mostrar o que o lixo pode fazer!
Kir-Mi se debateu, mas Valek no estava disposto a solt-lo. O som das
risadas ainda queimava em seus ouvidos. No deixaria aquela humilhao ficar
impune. Comeou a torcer o tornozelo de Kir-Mi e no parou at ouvir o estalo de
um osso se partindo.
Trs adversrios no cho. No restava nenhum.
Valek levantou-se. As risadas e sorrisos de zombaria haviam desaparecido.
A pequena multido de espectadores comeava a dispersar com olhares de
desprezo contra os trs acaris que haviam sido derrotados por um nico
forasteiro. Ainda assim, estavam longe de reconhecer o valor do rapaz de cabelos
ruivos, encarando-o com brasa no olhar.
Sem querer perder mais tempo ali, Valek se afastou. Discretamente, retirou
um objeto escondido em um de seus braceletes. Teve todo o cuidado para que
ningum visse o anel de ouro da irm de Kjev-Mi. Pretendia dar a jia de
presente sua me, mas agora isso era impossvel. Todos que a vissem com o
anel, saberiam se tratar da pea roubada. Fora tolice t-lo pego.
Ao se aproximar de casa, tornou a esconder o anel. De longe, viu uma
mulher loira de meia idade, com o rosto um pouco redondo, mas que ainda
conservava parte da beleza da juventude. Ele sabia que se Blie-Mi o esperava
daquela maneira era para dar uma bronca.
Se meteu em confuso de novo, Valek?
Me cercaram, no foi minha culpa.
Sempre diz isso toda vez que entra em uma briga. Est machucado?
Eu estou bem. disse ele, e acrescentou. Voc se preocupa demais,
me.
E ele entrou na casa ao lado de Blie-Mi, a nica flor que crescia no meio
daquele lamaal.
Captulo III
Grande Vitria
Uma sacerdotisa uma clriga que sempre pede a orientao dos deuses
antes de usar magia. Uma feiticeira traiu sua f e usa a magia em benefcio
prprio.
Ele acenou a cabea para confirmar que entendera.
De qualquer maneira, a minha me verdadeira est bem aqui e a nica
pessoa em todo o Mundo Antigo que se importa comigo.
No diga isso, filho. Goro-Mi tambm se preocupa com voc. O que
acontece que ele no sabe como demonstrar o que sente.
O rapaz se afastou com uma careta no rosto e voltou a se sentar.
Voc diz isso, me, mas eu duvido que ele goste de mim.
Valek Blie-Mi parou como se estivesse se contendo para no dizer
algo.
Nesse momento, a sombra de um homem alto apareceu na porta. De barba
loira e cabelo cheio. Vestia uma camisa de tecido grosso, faixas de couro
protegiam as mos e antebraos. Era mais robusto do que propriamente forte.
Trazia um grande escudo circular de madeira e ao preso s costas e uma espada
acari na cintura. Tambm carregava um saco com algo dentro.
Estou em casa! disse Goro-Mi em alto e bom tom.
Sem perder tempo envolveu Blie-Mi pela cintura e a puxou para junto de si.
Valek virou o rosto para evitar o contato, mesmo que apenas pelo olhar, com
aquele sujeito.
Como foi a caada? perguntou Blie-Mi ao marido.
Fraca. ele agitou o saco. Tudo que consegui foi um par de coelhos
que caram nas armadilhas.
Goro-Mi depositou a caa no cho, suas atenes se voltaram para o rapaz
sentado mesa.
A est ele! ironizou. Mal pus o p na vila e vieram me falar sobre a
sua grande vitria, garoto! Trs molengas sozinho!
Valek manteve-se em silncio e de cara fechada. Blie-Mi tentou desviar a
ateno do esposo.
Viu os rapazes?
No, mas me disseram como ficaram. Kir-Mi est bem, apenas uma
perna quebrada. Dan-Mi o pior, pode ficar cego de um olho. E pelo que me
contaram, Kjev-Mi vai passar um bom tempo tomando sopa.
Um sorriso amarelo apareceu de forma involuntria no rosto de Valek. No
que tal relato o agradasse, mas sentia um alvio nervoso ao pensar na situao da
qual se livrara.
Por que est rindo, garoto? irritou-se Goro-Mi. Seria engraado se
tivesse acontecido com inimigos, no com aliados.
Aliados?!
Aliados! Se nossa aldeia for atacada, aqueles trs vo lutar ao seu lado!
Voc criou baixas no seu prprio exrcito! ele elevou ainda mais a voz.
Qualquer acari sabe que isso no se faz!
No sou um de vocs, lembra-se? Nunca me deixam esquecer isso. Todos
nessa vila esto sempre me lembrando que eu no sou um acari!
E voc o qu, afinal, garoto?
Sou algo melhor. Um Clancey!
Acalmem-se os dois. interveio Blie-Mi.
Surpreso com a reao de Valek, Goro-Mi voltou ao mesmo tom irnico.
Resolveu falar grosso, garoto?! Se sente mais homem depois de hoje?
Vamos l fora para treinar, ento. Quero ver do que um Clancey capaz.
Ser que no podemos ter um dia se paz nessa casa? Blie-Mi lamentou.
Tudo bem, me. s exerccio.
Resignada, ela dirigiu-dse ao marido.
No exagere
Valek sabia que aquele pedido seria em vo. Goro-Mi nunca lhe ensinava
nada durante os treinamentos. Limitava-se a gritar para corrigir a postura ou
algum movimento que considerava ter sido mal executado e sempre lhe batia
com fora com a espada de madeira, que imitava a arma verdadeira.
A espada acari era mais curta que as verses usadas por outros povos,
assim poderia ser manuseada com apenas uma das mos. O jovem ensaiou
Captulo IV
Aparea
conseguia segurar a gestao para alm dos primeiros meses. Esse revs a
tornara ainda mais apegada Valek.
Mais que cuidar dos ferimentos do filho sempre que necessrio, ela tambm
o ensinou a ler e a escrever, lhe transmitiu noes de histria, geografia e
matemtica. Uma educao para poucos naquela parte do Mundo Antigo. E
embora no gostasse de admitir, Valek tambm havia aprendido muito com seu
pai adotivo. Aprendera a caar, pescar e preparar armadilhas, a limpar e cozinhar
animais e peixes e a defumar a carne para que continuasse boa para comer por
mais tempo.
Nos dias que se seguiram luta contra os trs acaris e o treinamento
pesado a vida retornou ao ritmo normal. O rapaz ainda enfrentava alguns
problemas aps sua vitria, embora os aldees parecessem ter adquirido um
pouco mais de respeito por ele.
Semanas depois do ocorrido era possvel encontr-lo exercitando-se na
mata. Tarefa que iniciava cada vez mais cedo e terminava cada vez mais tarde.
Algo despertara dentro dele aps aquele treinamento com Goro-Mi. Pensava
cada vez mais em deixar aquela vida para trs. O juramento que fizera em seu
ntimo de mat-lo em um combate digno ecoava em sua mente ao mesmo tempo
em que o colocava num dilema. O que seria de sua me se o matasse?
Valek no compreendia como ela podia amar um homem daquele tipo, mas
tinha de reconhecer que a despeito de seus defeitos, o pai adotivo jamais falava
de forma rude com a mulher ou lhe faltava com o respeito. Talvez, pensava o
rapaz, ele tivesse conscincia do quanto era afortunado por ter Blie-Mi como
esposa.
A outra alternativa era simplesmente partir e deixar o cl para trs, como
faziam muitos jovens. As notcias vindas de fora falavam que Solomon Kotler, o
Rei Desmorto marchava em direo Ancestria com um exrcito de cem mil
homens. Agora parecia o momento certo para juntar suas coisas e ir embora.
Entretanto essa possibilidade no o agradava de todo, pois assemelhava-se a uma
fuga, e fugir era algo que Valek jamais faria.
Prefiro atacar o inimigo a me esconder dele. disse para si mesmo.
Sem conseguir se decidir, pensou em ir nadar um pouco para esfriar a
cabea. Havia um ponto onde o rio descia do morro em uma bela cascata e
formava um lago. O sol tinha tempo de aquecer a gua e deix-la morna, ideal
para um bom mergulho.
Captulo V
Nos Ombros do Lorde
No faa perguntas bvias! Vai demorar para mobilizar uma fora capaz
de fazer frente ao exrcito de Lestonor. Tenho a obrigao de procurar uma
soluo pacifica ou ao menos ganhar tempo para a cidade.
A resposta no acalmou Brunella.
E para ganhar tempo, vai se entregar para aquele horrvel Rei
Desmorto
Minha cara, esposa ele a abraou pela cintura. esse no um
assunto para as mulheres. Deixe que os homens cuidem disso.
Sempre ouvi dizer que h mulheres no campo de batalha.
Rameiras! Uma mulher decente sabe que seu lugar em casa, cuidando
da famlia.
Ela viu desejo no olhar do marido. O abrao se estreitou.
E cuidando tambm do seu homem. disse ele.
Como devo cumprir essa tarefa?
Brunella tocou o volume sob a cala. As mos de Garet subiram por suas
coxas e levantaram o vestido. Ela fechou os olhos ao ser tocada em sua regio
mais sensvel. Garet a virou e apoiou na parede. Braos fortes a abraaram por
trs. Sentiu o prazer de ser possuda, porm a sensao no durou muito. Ele
gozou rpido e se afastou, deixando-a frustrada.
Ainda no terminei.
Seja compreensiva, preciso poupar energia.
Brunella tentou disfarar a indignao enquanto ajeitava o vestido. Odiava
ser tratada daquela maneira.
V agora. Preciso fazer os ltimos preparativos.
Ah! Quase me esqueci de falar sobre a Sarissa disse ela na soleira da
porta.
O que h com nossa filha?
Recebeu uma proposta de casamento. Ou melhor, ir receber.
E de quem seria?
***
Captulo VI
Nas Graas de Um Rei
De perto, o lorde podia ver o quanto seu inimigo era forte e a grande
quantidade de cicatrizes que marcavam seu peito e braos. A capa feita do couro
de um animal o fazia parecer ainda maior e mais imponente.
Kotler fincou o machado no solo e deus mais alguns passos. Tirou o elmo
negro exibindo seus cabelos escuros despenteados que desciam at os ombros,
uma barba rala cobria o queixo quadrado e outra cicatriz passava pelo olho
direito.
Lorde Darius Garet, h quanto tempo! sua voz era gutural, mas soava
em um tom calmo e frio.
Desde o seu ltimo banquete anual, Kotler. E pensar que enquanto lady
Garet e eu estvamos sentados em sua mesa, voc tramava um ataque minha
cidade.
Permita que lhe pea um favor, lorde. o Rei Desmorto andou em volta
despreocupadamente. No tome esta ofensiva como uma questo pessoal. Na
verdade, eu o tenho em alta conta. Que outro homem interpelaria um exrcito
inteiro com uma tropa de er eu diria, no mximo vinte guardas Por nada
alm de sua prpria noo de honra e nobreza?
Voc diz isso, Kotler, mas prefere enviar um intermedirio a falar comigo
pessoalmente.
Estou certo de que uma pessoa na sua posio entende a importncia de
certas formalidades.
Kotler se abaixou e encheu a mo com um punhado de terra. Garet ficou
cansado daqueles subterfgios.
O que voc quer, afinal? O que posso oferecer para que atrase sua
marcha?
Perdo, lorde. Creio no t-lo ouvido bem.
Voc quer ouro? Mulheres? Escravos? Apenas diga o preo.
Lamento desapont-lo, mas no existe nada que possa ofertar para
convencer-me a mudar meus planos.
Nossos reinos estavam em paz.
Devo corrigi-lo, meu bom lorde. Lestonor e Ancestria estavam em uma
trgua forada pelos prejuzos do ltimo confronto.
Forada ou no, era paz. E essa paz est ameaada porque se julga no
direito de invadir nossas terras.
Kotler deixou um pouco da terra que tinha na mo escorrer e ser levada
pelo vento.
J fui o soberano de Londinium. Tinha conhecimento deste fato, lorde,
ou esta pgina foi arrancada dos autos?
claro que sei disso. respondeu Garet sem ter a menor ideia sobre o
qu seu inimigo falava.
claro! Se me recordo, foi no tempo do seu pai, no, do seu av
Perdo, quando se tem um sculo e meio de vida, a memria fica confusa O fato
que eu tomei Londinium por dez anos e seu av, Fernan, serviu-me enquanto
arquitetava uma revolta juntamente com seu rei. ele fechou o punho e o p
parou de cair. Como v, lorde, eu poderia considerar-me no direito de algum
que foi expulso de sua prpria casa.
Algum que foi expulso da casa de outra pessoa! Garet comeou a se
impacientar. Nossa causa justa, como agora, voc vem como um invasor,
Kotler.
Est enganado, caro lorde. Na guerra, no h causas justas. ele soltou
lentamente os ltimos gros de poeira enquanto falava. H muito tempo havia
um fazendeiro que vivia em Kailiev, a cidade mais prxima da fronteira no lado
de Lestonor. A Guerra Sem Fim j era antiga, mas aquele fazendeiro no se
preocupava com os conflitos. Era um homem simples, feliz com o que podia tirar
da terra e com sua famlia: uma esposa amorosa e uma linda filha.
Kotler comeou a caminhar na direo do seu machado fincado no solo.
Garet sentiu que deveria se preparar. O Rei Desmorto continuou com a histria.
Um dia, porm, Ancestria lanou uma ofensiva contra Lestonor e o
fazendeiro perdeu tudo que amava. A esposa e a filha foram estupradas e
assassinadas pelos invasores e, apenas por milagre, o fazendeiro sobreviveu
tortura. ele fechou os olhos revivendo antigas lembranas. Isso foi a mais de
cem anos, antes de eu me tornar o que sou hoje, mas ainda ouo os gritos delas
noite.
Ao abrir os olhos novamente, a voz de Kotler j havia recuperado o mesmo
tom calmo e frio.
***
Captulo VII
Quinze Anos
E Valek?
Ele est bem. Saudvel. Como fala pouco difcil saber o que pensa,
mesmo assim bastante irrequieto. A parte ruim que muitos no gostam dele
por ser estrangeiro.
Eu ficaria surpresa se fosse de outro jeito. Os acaris no so conhecidos
por terem bons modos.
Goro-Mi interveio.
Pelo jeito, o tempo no te ensinou a ter papas na lngua, Liana. Porque
no param com conversa fiada e vamos direto ao ponto?
Concordo, Goro-Mi. Quanto antes eu puder ir para longe do seu fedor de
suor, melhor. ela bebeu mais um gole de cerveja. Valek est pronto?
Quase pronto. respondeu ele.
Por que a demora? J vi acaris de menos idade pegarem em armas.
Ele forte, pode vencer a maioria das lutas. Mas tem uma coisa dentro
dele que ainda no consegui trazer para fora.
No entendi.
Acho que Valek um berserker!
Blie-Mi saltou da cadeira.
Nunca! Meu filho no um monstro assassino!
Esperem um pouco. disse Liana. Do que esto falando?
So histrias que os acaris contam. respondeu Blie-Mi. Um
berserker um tipo de guerreiro que to tomado pelo xtase da batalha que
no enxerga nada mais sua volta.
So mais que histrias, querida. falou Goro-Mi. Lembra do primo
Faet-Mi? Quando entrava em uma luta o desgraado ficava to louco que
ningum o segurava. s vezes eu vejo aquele mesmo brilho nos olhos do Valek.
O que importa que ele possa levantar uma espada e vencer. declarou
Liana. A Guerra Sem Fim vai comear de novo. O rei Kotler deixou a proteo
de seu castelo. o momento certo para Valek sair das sombras e cumprir seu
destino.
Captulo VIII
Manto das Sombras
Captulo IX
Me
Valek e Kraae trocaram golpes. Ele atacou com uma estocada, a Harpia
fugiu com um salto de vrios metros para trs.
No desvie o olhar! avisou Liana. Ela s pode desaparecer se
ningum estiver olhando!
O confronto entre os acaris e as Harpias se intensificou. Valek empunhou a
espada, pronto para sua primeira batalha verdadeira. Porm, um grito agudo
abafou os sons do conflito.
O rapaz ruivo viu uma Harpia que as outras chamaram de Vrana na porta
de sua casa, mas no sozinha. As correntes enroladas nos braos finos da Harpia
traziam Blie-Mi acorrentada com as mos presas junto ao corpo.
Vrana obrigou a prisioneira a ficar de joelhos.
Me! gritou Valek.
Escute cl dos Mi! disse Vrana. Os inimigos das Harpias Reais so os
Clancey e no vocs. Entreguem-nos e devolveremos essa mulher ilesa, mas se
ficarem ao lado deles, todos morrero!
No se atreva a machucar minha me!
Valek! disse Blie-Mi. Lute, no se entreg agh as correntes
enrolaram-se no pescoo dela, os espiges prximos da garganta.
Solte essa mulher, Vrana! disse Liana. Seus alvos so Valek e eu.
Deixe Blie-Mi em paz!
Como vai ser, Valek Clancey? disse a lder das Harpias. Essa a sua
me adotiva, no ? Vai permitir que ela morra?
As correntes se apertaram mais, manchas roxas apareceram na pele de BlieMi. Como se tivessem vida prpria, os espiges ficaram em posio de ataque.
Um som gutural foi ouvido.
Pare! Valek soltou a espada. Pode ficar comigo se libert-la.
Muito bem, rapaz. Venham vocs dois para c.
A profecia s fala de mim, no tem porque machucar Liana!
As ordens do mestre so claras. Todos os Clancey devem morrer!
Vrana apertou ainda mais as correntes.
Captulo X
At O ltimo Deles
Disposto a sair dali, estocou a coxa de seu pai adotivo e conseguiu escapar da
parede.
As espadas cruzaram-se novamente. Ambos atacavam sem hesitar, os
golpes eram cheios de energia, bem como as defesas e contra-ataques. Cortes
surgiram nos braos e no lado do tronco de um e outro, mas no conseguiram
causar um ferimento fatal.
Valek encurtou a distncia novamente e conseguiu fazer com que Goro-Mi
desse alguns passos atrs, porm o acari o atingiu com uma joelhada na barriga.
O rapaz recuou o corpo para escapar de um golpe de espada ascendente, o
corte poderia ser fatal se ele no se afastasse o bastante para ser atingido apenas
de raspo. Mas no conseguiu se esquivar de outro golpe de escudo e caiu perto
do fogo, que comeava a se espalhar pela parede do fundo da casa.
O jovem ruivo se apoiou num dos joelhos e ergueu o corpo para se defender
de um ataque que no veio. Ao invs disso, o pai adotivo o encarou com uma
expresso de desgosto que o machucou mais do que qualquer ferimento.
tudo o que tem? disse Goro-Mi. Voc no um guerreiro, s um
garoto com raiva!
Valek deu-se conta de que o corao batia to forte que as tmporas
vibravam. O que estava fazendo? O treinamento de semanas antes lhe veio a
mente. Naquele dia, tinha certeza de que podia derrotar Goro-Mi, mas porque
no conseguia agora?
Como naquele dia, os olhos pousaram nele, o desejo de tirar aquele homem
de sua vida voltou. Como naquele dia, o acari percebeu uma mudana em Valek.
O rapaz levantou-se lentamente. O mesmo olhar perigoso de antes.
Goro-Mi percebeu que era chegado o momento. Podia sentir uma aura
diferente em torno de Valek. J no era mais o garoto descontrolado. Diante dele
estava um homem frio e sedento de sangue.
O berserker havia despertado
Ou voc mata, ou voc morre!!! gritou ele se lanando com toda a fora
e velocidade que possua.
Valek moveu-se ainda mais rpido. Com um s golpe, a espada do jovem
ruivo decepou a mo de Goro-Mi. Um segundo movimento e Valek enterrou a
lmina nas entranhas do pai adotivo. Sangue quente escorreu entre os dedos.
Captulo XI
Bando de Desgraadas
***
Cada em uma poa de sangue, Kraae tentou dizer algo para a companheira,
mas esta virou o rosto com uma careta.
Voc realmente tem talento para escapar da morte, Liana Clancey!
disse Takri. Mas a sua sorte acabou.
As unhas voltaram crescer. Maiores e mais afiadas que antes.
Se vou morrer, quero que saiba de uma coisa. disse Liana. Vocs,
Harpias, so as mulheres mais feias que j vi!
Ainda zomba de mim em uma hora dessas!
No zombaria, minha opinio sincera.
Takri atacou com movimento circular. Liana projetou o corpo para trs,
sendo arranhada na barriga. Agora estava no cho e sem defesa. A Harpia ergueu
a mo para aplicar o golpe final.
Nesse instante, os reflexos aguados de Takri perceberam uma flecha
voando em sua direo. Desviou, sendo atingida de raspo no rosto.
Liana viu um rapaz com um arco na mo. Era um adolescente fraco, para os
padres dos acaris e tinha uma das pernas imobilizada por uma tipia.
Errei! disse ele. Sua vez, Dan-Mi!
Eu cuido dela, Kir-Mi!
Ainda no cho, Liana afastou-se como pode do caminho de um jovem alto e
corpulento, com um tampo no olho esquerdo. Dan-Mi agarrou Takri pela
cintura, ergueu-a e comeou a apert-la, numa tentativa de quebrar os ossos
daquele corpo frgil. A Harpia cravou suas garras nos ombros de Dan-Mi. Ele a
soltou em meio gritos de dor.
Liana viu Takri assumir uma postura ofensiva, pronta para continuar a luta.
Porm, antes que a Harpia pudesse fazer algo, a lmina de uma espada emergiu
de seu peito.
Takri tombou morta, revelando a presena de um terceiro jovem, que tinha
o pescoo e a boca cobertos por um cachecol.
Voc a matou pelas costas, Kjev-Mi!? disse Dan-Mi.
Kjev-Mi deu de ombros.
Ora, no foi um golpe baixo. Em uma batalha preciso estar pronto para
ataques de qualquer direo. disse Kir-Mi. Pare de falar bobagens e ajude
essa mulher a levantar.
Dan-Mi estendeu a mo para Liana.
Obrigada, rapazes! disse a sacerdotisa. Talvez vocs consigam
despertar Goro-Mi.
Goro-Mi? Onde ele est? perguntou Dan-Mi.
Liana olhou ao redor. De ralance, viu Goro-Mi passar pela soleira da porta
da casa.
Nunca a vi por aqui. disse Kir-Mi. Quem ?
Meu nome Liana Clancey.
Clancey? Como o Valek?
Sim, meu filho. So amigos dele?
Liana ajeitou seu vestido. Os trs amigos entreolharam-se, boquiabertos
com a beleza da mulher. Ela sorriu ao ver o efeito que causara nos rapazes.
Ah, sim! Somos amigos dele! disse Kir-Mi. Certo, Dan-Mi? Certo,
Kjev-Mi? Kjev-Mi?!
Kjev-Mi emitiu um rudo gutural, sua mo soltou a espada. O rapaz caiu
para frente, fulminado por uma seta de ao cravada em sua nuca. Kir-Mi e DanMi tentaram reagir, mas tambm foram atingidos por setas na cabea.
Em um instante, os trs estavam mortos.
Liana viu Zora no alto do telhado de uma casa.
Desgraada!
A Harpia lanou mais trs setas. Liana revidou. A magia no afetava as
Harpias, mas o mesmo no valia para tudo o mais. Com uma palavra mgica, as
setas de ao desviaram e voltaram-se contra Zora.
A Harpia saltou para a casa ao lado e lanou mais setas, que tambm foram
desviadas. Por instinto, Zora procurou o teto mais prximo sem perceber que o
fogo tomava conta da morada abaixo.
Com um novo gesto, Liana fez o telhado ruir sob os ps da inimiga. Zora
caiu para ser engolida pelas chamas.
Me perdoem, rapazes! disse ela para os trs corpos cados.
Ouviu um som fraco, um gemido perto dali. Era Kraae. Caminhou at ela
com tanta raiva como jamais sentira.
As Harpias so de um bando de desgraadas! Tudo que sabem fazer
matar! Isso acaba agora!
Kraae tentou se manifestar, mas no conseguiu.
Liana estendeu a mo na direo do fogo de uma das casas. Sussurrou
vrias palavras em laer. Parte das chamas ganhou vida prpria. O fogo se moveu
pelo ar, a forma lembrava uma serpente.
Essa por Denora! disse Liana.
Com um gesto, a serpente de fogo lanou-se contra Kraae. O corpo da
Harpia foi envolvido pelas chamas.
Seus gritos mesclaram-se aos outros que cortavam a noite.
***
Saiu para fora com de espada em punho, mas felizmente ela parecia bem
quando a viu, apesar de estar ao lado de um corpo queimado e de outros trs
cadveres.
Senhora! ele correu na direo dela. Ao seu aproximar viu o
machucado na barriga. Est ferida?
Foi superficial! disse ela, irritada. Estou bem, mas no graas a voc,
que me deixou sozinha!
Desculpe!
Voc me abandonou, Valek! Eu podia ter morrido!
Sinto muito, senhora!
Liana recordou-se do que Blie-Mi dissera a respeito dos berserkers. Sobre
como no viam nada ao redor quando eram tomados pelo xtase da batalha.
Suspirou. No fundo, compreendia como ele se sentia.
Deixe-me ver esse corte, parece bem feio. ela examinou o peito dele.
Foi s um arranho. o rapaz identificou os corpos cados. At esses
trs apareceram?
Venha c. ela o abraou e sussurrou em seu ouvido. H uma Harpia
escondida atrs da quina da parede.
Liana ainda nem tinha terminado de falar, quando as correntes de Vrana
surgiram. Valek deu um giro e a enrolou novamente em seu bracelete. Sem
perder tempo fez vrias voltas, segurou firme e, com um puxo, arrancou a
Harpia do esconderijo.
No cho, Vrana tentou usar a outra corrente, mas recebeu um novo puxo,
caindo mais perto de Valek. Ela girou seu brao livre, porm ele j tinha
encurtado mais a distncia e com um movimento rpido, cortou o brao fino da
Harpia perto do cotovelo.
Perdo, mestre Baltus! gritou Vrana antes da espada de Valek
atravessar seu peito e por fim a sua vida.
Liana contemplou a carnificina sua volta.
Estava cercada por cadveres. O incndio havia crescido, tomando conta de
toda a aldeia. Podia ouvir gritos de guerra e lamentos de perda de entes queridos.
Captulo XII
A Roda da Vida
As pedras escuras das paredes tragavam o brilho dos poucos archotes que
projetavam uma luz mnima no ambiente tomado por uma tnue fumaa
amarela. O mofo e a umidade reinavam do cho s portas das celas. Os lamentos
dos cativos podiam ser ouvidos dia e noite. Lamrias que nunca cessavam,
abafadas apenas por gritos de horror e insanidade. Nos raros momentos em que
o som do coro diminua, podia-se ouvir a gua pingando em algum lugar.
Mesmo os guardas com experincia no servio de carcereiro, jamais tinham
conhecido uma atmosfera to perturbadora quando aquela abaixo do castelo de
Mazilev, capital de Lestonor.
Existia apenas uma coisa capaz de intimidar os guardas e os prisioneiros
mais do que a masmorra em si. Seu criador. O mesmo homem que caminhava
agora por aqueles corredores.
O passo lento, apesar de seguro, denunciava a idade. Os cabelos
acinzentados e as marcas profundas no rosto duro mostravam que os dias de
juventude haviam ficado para trs. Trajava um belo sobretudo azul escuro com
bordados dourados nas barras, sobre um manto bege com um grande capuz nas
costas.
As coroas e guerras no importavam ali. Baltus era o senhor absoluto
daquele submundo. Sua vontade nunca era questionada e diziam que o prprio
rei Kotler mantinha-se longe da masmorra.
Os dois guardas que escoltavam o feiticeiro seguiam em silncio. Receosos
tanto do local, quanto de seu mestre. Os sons no corredor inquietaram os
prisioneiros.
Criaturas fascinantes! Agitam-se como o co que percebe a aproximao
do dono. divagou Baltus, com sua voz rouca. Acreditem quando digo,
minhas crianas, que sua condio no me causa prazer. Entretanto, me conforta
saber que vosso sacrifcio serve ao nobre propsito da busca pelo conhecimento,
e desejo de corao que este pensamento tambm possa confort-los.
M-mestre
Que atrocidade meus olhos testemunham! disse Baltus. Com esforo, o
feiticeiro conseguiu ajoelhar-dr ao lado da Harpia. Recolheu o Manto das
Sombras. Sim, a condio pssima, mas ainda a tempo de ser reparado.
O feiticeiro pendurou a capa em um cabide longe dos raios de sol que
entravam pela janela. Somente depois voltou-se para Zora. Sem a capa, seu corpo
parecia ainda mais frgil.
Guarda! chamou ele. O guarda que estava de prontido no lado de fora
do laboratrio apareceu. Que essa mulher seja erguida e deitada em cima da
mesa de operaes.
O guarda nem perguntou de onde ela sara. A segurou nos braos, colocou
sobre a mesa e deixou o laboratrio. Agora que Zora estava sobre o mvel, Baltus
podia dar uma boa olhada nela. Sua condio era crtica. Manchas vermelhas e
pretas cobriam a cabea, braos, barriga e pernas. Apenas o lado esquerdo do
rosto escapara do toque do fogo.
P-perdo M-mestre
Poupe o flego. ele pousou a mo na testa da Harpia. Tuas
memrias podem revelar a verdade melhor que tuas palavras.
Baltus viu o confronto na aldeia dos Mi atravs dos olhos de Zora. Viu
quando ela caiu dentro de uma casa em chamas durante a luta contra Liana e
como conseguiu escapar, desmaiando em seguida. Quando recobrou os sentidos,
os acaris tentavam apagar o incndio que tomava conta da vila, todas as outras
Harpias estavam mortas, queimadas juntamente com seus mantos. Os Clancey
haviam desaparecido.
Vocs falharam novamente e Valek Clancey ainda vive! Compreende o
significado por trs de tudo isto? Ele pode ser de fato, o Predestinado a unir
todos os povos!
M-mestre? a Harpia no compreendeu o porqu da empolgao.
As foras do destino esto em movimento, Zora! Posso senti-las em meus
ossos! A Roda da Vida est prestes a concluir uma volta completa! Baltus
parecia olhar cada vez mais para um ponto distante no tempo. O fim de um
ciclo o incio de outro. A Era dos Filhos da Serpente, como os druidas
profetizaram a mais de mil anos! Como disse Natsvaerd! Ela estava certa, ela
sempre esteve.
N-no entendo
Ah, perdi-me em divagaes. Estou diante de um dilema, Zora. Que devo
fazer contigo? Graas ao que vi em tuas memrias, estou convencido de que
Valek Clancey o guerreiro de cabelos flamejantes sobre o qual fui alertado
atravs dos Ossos do Necromante. Entretanto, tu foi ordenada a mat-lo e
fracasso fracasso.
P-por f-favor perdo
Que assim seja, pouparei tua vida. Afinal, trouxe-me de volta o ltimo
Manto das Sombras. e chamou. Guarda!
Mestre! o guarda adentrou o laboratrio novamente.
Tenha a bondade de carregar essa mulher para a masmorra. Se
sobreviver a seus ferimentos, ela se tornar um de meus espcimes.
N-no! Me mate M-mas a masmorra no!
Zora agitou o corpo, mas no pode resistir.
Sozinho, Baltus comeou a trabalhar no Manto das Sombras. Durante a
tarefa, refletiu sobre o que se passava. Todas as peas estavam assumindo suas
posies. A cidade de Londinium no tinha defesa contra o exrcito de Lestonor.
Kotler encontrava-se enfraquecido. Os Clancey estavam em algum lugar nas
terras do norte.
Ps-se a pensar em como os guiaria na direo certa.
Aps mil anos, o momento do nosso reencontro aproxima-se, minha cara
Natsvaerd. Espero que esteja pronta. disse para si mesmo.
O rosto marcado do feiticeiro esboou um sorriso. Tudo ia de acordo com
seus planos.
REMINISCNCIAS
Segundo Fragmento
Captulo XIII
Sonho Compartilhado
Pensei que ficaria satisfeita em saber que aquela Harpia teve o que
merecia.
Isso no trar minha me de volta.
Tssia O que aconteceu com Denora foi culpa das Harpias, no sua.
Se eu tivesse ficado quieta como ela disse, a Harpia no teria me atacado.
ela suspirou. No quero mais falar sobre isso. Fale do Valek, como ele est
lidando com a perda dos pais adotivos?
Como tpico dos homens. Esconde a dor com promessas de vingana.
Onde vocs esto?
Em uma estalagem barata perto da fronteira de Lestonor e Norfria.
Como samos s pressas da aldeia, tudo que temos so duas pratas e meia, um
cavalo velho, uma pele, uma espada e as roupas do corpo.
Nesse caso, melhor procurarem abrigo em
Antes que Tssia pudesse completar a frase, houve uma mudana repentina
no ar. Elas sentiram as pernas fraquejarem e uma presso cada vez mais forte no
estmago. Precisaram se apoiar para no carem.
Sinto uma presena estranha, Liana!
Eu tambm! uma magia muito poderosa!
Acho que vou acord
Tssia desapareceu, expulsa do mundo dos sonhos. Um ponto brilhante
surgiu. A luz comeou a crescer, envolvendo Liana.
A intensidade do brilho diminuiu, mas ainda era forte o suficiente para
fazer os olhos da sacerdotisa ruiva arderem. Ela tentou levantar-se, porm s
conseguiu ficar de joelhos. Fez um esforo para olhar em volta e viu-se em um
campo interminvel de flores-de-ltus. O mar de ptalas rosadas se estendia at a
linha do horizonte e alm.
Senhora? Onde estamos?
Era voz de Valek.
Ela o viu cado entre as flores, mas tambm percebeu outra presena. Uma
presena intensa. Liana sentiu uma aura ao mesmo tempo maternal e perigosa.
Valek esboou um sorriso. Ela havia reclamado sem parar antes de irem
dormir, mas aquele quarto era tudo que podiam pagar no momento. Decidiram
que ele repousaria sobre uma pele de animal no cho, enquanto Liana ficaria com
a cama. Ele sentou-se no colcho. Assim como ela, no usava nenhuma pea de
roupa.
Tive um sonho estranho, me, com a senhora. Parecia to real!
Foi um sonho real, filho. Um Sonho Compartilhado, uma magia que o
mantm consciente durante o sonho.
Liana viu que ele ainda estava confuso. Ela prpria precisou coordenar os
pensamentos enquanto tentava se lembrar do ocorrido.
Algum tentou falar conosco em nossos sonhos, Valek. Viu aquela
mulher, no viu?
No vi ningum, alm da senhora. Mas ouvi um nome Nats
Natsvaerd! Ela era real?
To real quanto eu e voc, disso tenho certeza. Essa Natsvaerd tinha uma
presena muito poderosa, como nunca senti antes. At fiquei com um pouco de
medo, para ser honesta.
No gosto disso, me.
Calma, filho. Voc j a considera nossa inimiga.
E todos no so?
Seja como for, h um templo da Ordem de Lunna na prxima cidade. L
encontraremos abrigo e poderemos decidir se, e como, vamos lidar com essa
Natsvaerd.
Ir a um templo? a voz dele transpareceu certa decepo. Parece ser o
mais prudente.
Sentado no colcho, Valek moveu o corpo como se fosse se levantar, porm
continuou sentado. Liana livrou-se de vez do lenol e se aproximou das costas do
rapaz, envolvendo os ombros e o peito dele em seus braos.
O que se passa nessa cabea? disse ela com uma voz suave. Conte
para sua me.
No era isso que eu esperava quando me chamou para viajar.
E o que esperava?
Estamos indo matar um rei e seu brao direito para vingar a morte da
minha me. No vamos conseguir escondidos nesse lugar miservel!
Sei que as coisas parecem ruins agora, mas
Quero ir atrs dela! interrompeu Valek. No gosto de me esconder.
Quero encontrar essa tal Natsvaerd cara a cara.
Essa seria uma atitude imprudente, filho.
Seguir em frente com essa mulher em nosso encalo tambm seria
imprudente. Se for inimiga, a matamos. Se for aliada, usamos suas habilidades a
nosso favor.
Liana no pode responder. Nesse ponto, ele tinha razo. Ela pensou em
Denora, Blie-Mi e outras pessoas que perderam a vida para proteg-la. Se
Natsvaerd fosse perigosa, corria o risco de expor Tssia e suas amigas
sacerdotisas ao mesmo destino.
Vamos decidir isso amanh de manh, sim? Quero voltar a dormir.
disse ela. Deite aqui comigo, traga essa pele para nos cobrir antes que eu
congele nesse quarto frio.
Deitarmos juntos?!
Por que no? J conheci mes que dormiam com seus filhos e se bem me
lembro, havia s uma cama em sua casa. Imagino que voc e Blie-Mi dormiam
juntos.
Sim, mas dessa maneira.
Por favor, no v me dizer que est com medo de uma mulher nua!
ironizou ela.
No, senhora. ele riu novamente.
Ela sempre conseguia tirar um sorriso dele.
Tanto melhor! Agora deite-se aqui, eu me deitarei no seu ombro.
Liana se aninhou no ombro de Valek, ele os cobriu com a pele de animal.
Uma sensao boa a tomou ao sentir seu corpo junto ao corpo atltico dele. O
mesmo brao onde se apoiava a envolveu pela cintura, o que lhe deu uma
Captulo XIV
Boas Meninas
vestido preto sem alas, as mangas comeavam no meio dos ombros, valorizando
o busto. O colar e os brincos de mbar eram, peas simples do dia a dia, pareciam
reluzir como a mais fina das jias. Qualquer um que a visse, diria tratar-se de
uma rainha, tal era a altivez de sua presena.
Onde esteve, Acssia? perguntou Brunella recm-chegada.
Cuidando dos assuntos do castelo, minha me. disse Acssia em um
tom calmo e sereno. necessrio que algum se ocupe deles.
Deveria estar aqui conosco. Brunella precisava olhar para cima para
encarar a filha. Uma famlia deve permanecer unida em uma hora como essas.
Acssia no se abalou pela impacincia da me.
Penso que os delrios febris do lorde j tm testemunhas suficientes.
As servas entenderam o recado e retomaram suas atividades, fingindo no
prestar ateno cena que se desenrolava.
Como pode dizer palavras to duras? disse Brunela.
Sarissa decidiu intervir para evitar uma discusso.
Acssia, sente-se comigo. Vamos cuidar do nosso pai juntas.
Agradeo o convite, minha irm. Porm, estou certa de que faz um bom
trabalho e no pretendo tomar-lhe o posto.
Sinto muito pela perda de Ruram. Ele era um homem bom.
Meu falecido marido jaz nos braos da Dama Sem Rosto agora e ela se
encarregar de sua alma. Como no podemos fazer nada pelos mortos, sugiro nos
preocuparmos com os vivos E com os desmortos. ela caminhou na direo da
sacada. Vejam, a resposta do rei de Ancestria aproxima-se.
Todos prenderam o flego dentro do quarto. Um falco-correio cortava o
cu na direo do castelo de Londinium. A nobre ave voou direto para a sacada e
desceu no poleiro que a aguardava. Acssia se apressou para tirar a mensagem da
perna do pssaro.
Creio que este, sem dvida, o selo real. ela rompeu o lacre.
Espere! disse Brunella. Essa mensagem para seu pai.
Era um passeio agradvel at o cavalo que levava as duas irms se assustar com
uma cobra e empinar. Acssia conseguiu equilibrar-se, mas Sarissa foi ao cho.
Delirando de febre, Garet revivia aquele momento. Lgrimas rolaram pelo
rosto de Sarissa.
Eu estou bem, pai. No se preocupe.
A-Acssia A-Acssia
Tambm estou presente, senhor. disse Acssia, sem se aproximar.
Por que por que no cuidou da sua irm?
Ela engoliu o ar. Garet abriu a boca novamente, dessa vez para vomitar por
toda a cama. Balem apareceu no quarto e voltou a cuidar do lorde at ele cair no
sono. As roupas foram trocadas, bem como os lenois.
Talvez seja melhor descansarmos tambm. disse Brunella.
Quero ficar ao lado dele. Sarissa segurou forte a mo de Garet.
Voc uma boa menina, querida. Mas v jantar agora para estar forte
quando ele precisar. Permanecerei aqui mais um tempo. Pode acompanh-la,
Acssia?
Farei o que a agrada, minha me.
Elas deixaram o quarto. Sarissa enxugou as lgrimas. A expresso serena no
semblante de Acssia a impressionou.
Quando ele vai se recuperar?
Caso ele recupere-se, ser na hora devida. E nem um minuto antes.
Por que tem tanta raiva, Acssia? Voc parece estar sempre calma, mas
no fundo, sente raiva o tempo todo, no ?
Nem todas podem ser boas meninas, minha irm. e ela acrescentou.
Vou para meus aposentos me trocar. Nos veremos na sala de jantar.
Antes que Acssia pudesse sair, Sarissa segurou sua mo.
Nosso pai pode ser duro, mas eu sei que ele nos ama.
Se compreendesse o tipo de homem que lorde Garet realmente , minha
irm, saberia que o amor dele algo a ser temido.
Captulo XV
Indiscrio
Essa foi apenas a segunda vez, est bem?! a moa se voltou para ele.
s uma pequena aventura romntica, nada de mais. Algo para rirmos quando
eu ficar mais velha. Qual o problema ?
Est claro que o problema um homem entrar escondido em seu quarto.
O Nythan s no quer que ningum saiba para no levantarem boatos
sobre mim.
Tenho certeza de que ele te convenceu disso, mas ao menos voc tem
conscincia de que essa atitude no apropriada a uma donzela?
Sarissa desviou o olhar.
Se voc soubesse disse ela mais para si mesma.
Como disse?
Nada! No disse nada, nem sou to ingnua para no saber o que ele
quer. ela se aborreceu com o interrogatrio. Esquea isso e me ajude a me
trocar. Estou atrasada para o jantar.
***
suas costas. Mas isso no era o pior. O pior viria depois. O pior sempre vinha
depois.
Acssia, sabe que o papai que te ama, no sabe? O papai s quer que voc
seja uma boa menina.
A mo de Acssia apertou firme a escova para afastar lembranas
desagradveis. Memrias de outro tempo, quando no possua controle sobre o
prprio destino. Teve vontade de arremessar a escova contra a face transtornada
que via no espelho da penteadeira.
Fechou os olhos, respirou profundamente, o mais fundo que seu peito podia
aguentar. Soltou o ar devagar.
Ao abrir os olhos, seu reflexo mostrava uma serenidade inabalvel.
Voltou tarefa de cuidar da aparncia. Sentia-se farta de usar vestidos
pretos em sinal de luto. Ela nunca vira Ruram como nada alm de um homem
imbecil demais para querer ser algo alm de um capacho o marido perfeito
para uma filha rebelde.
A viuvez, aps cinco longos anos no era motivo de pesar, mas de
celebrao. Com a morte do esposo e o envenenamento de Garet a deixava no
controle de sua vida como jamais estivera antes e pretendia aproveitar muito
bem a liberdade. No dia seguinte, usaria um vestido bege que lhe assentava
muito bem.
Ouviu uma batida qudrupla ritmada vinda de dentro do quarto, de trs de
um quadro que exibia o braso da famlia Garet. Pressionou o trinco que liberava
a trava da passagem secreta e caminhou para perto da lareira.
Vamos, entre logo, Nythan!
O Mestre da Guarda adentrou o quarto com seu sorriso mais sedutor.
V-la nessa camisola uma tentao, Acssia!
Minha irm atrasou-se para o jantar. Devo supor que esta no a
primeira visita que faz hoje?
Apenas cumpri com meus deveres de noivo, oferecendo meu ombro para
as lamentaes sem fim da pequena Sarissa.
Acssia deu as costas para Jander, foi para o lado da cama e lanou um
olhar convidativo por cima do ombro.
Captulo XVI
Uma Bebida e Um Bom Almoo
Suila-Ne fez que sim com a cabea, depois virou uma caneca de hidromel
num s gole. Apontou para os Clancey e fez um gesto com dois dedos, simulando
o caminhar de uma pessoa.
Ela quer saber se tambm so viajantes. Por favor, no reparem em seu
silncio, Suila nasceu muda.
Sim, moramos em uma cidade prxima daqui. mentiu Liana e decidiu
mudar o rumo da conversa antes que perguntassem seus nomes. O que fazem
nessa parte do reino?
Estamos aqui a trabalho. Uma misso de busca para ser mais exato.
Espero que encontrem o que procuram.
A sacerdotisa baixou os olhos para o prato sinalizando que no queria mais
conversar. Suila-Ne cutucou o brao de Heiten e segurou uma mexa de cabelo
com uma expresso que no agradou Valek.
Eu sei. disse Heiten para a noiva, antes de continuar a conversa.
Talvez vocs possam nos ajudar. Procuramos duas pessoas: Liana e Valek
Clancey. Sabem de algum com esse nome por essas bandas?
Liana colocou na boca mais uma poro da coalhada com ovos. Quem
poderiam ser aqueles viajantes?
O rapaz encarou os viajantes, ambos sustentaram o olhar. Os risos haviam
cessado. A sacerdotisa teve vontade cobrir o cabelo ruivo com o capuz da sua
capa. Engoliu a mistura ciente que precisava dar uma resposta.
Clancey? No conheo. disse ela. Algum dos seus amigos tem esse
nome, filho?
Nunca ouviu falar. respondeu ele, sem perder a dupla de vista.
Por que esto atrs deles? perguntou Liana.
Digamos que nosso empregador tem um interesse especial nos Clancey.
disse Heiten. Tem certeza de que no os conhecem?
Lamento no poder ajudar. Agora se nos do licena, precisamos partir.
Liana levantou bruscamente da mesa. Valek a imitou. Suila-Ne ergueu-se
tambm, acenando na direo da porta. A sacerdotisa viu dois homens na
entrada. No pode deixar de notar que um era o exato oposto do outro.
Ol, Kal! Ramue! disse Heiten, ainda fitando Valek. Cheguem mais
perto, venham conhecer nossos novos amigos.
Um deles deu um passo a frente e fez uma leve mesura. Era um sujeito de
cabelo curto e barba bem cuidada. Vestia uma camisa verde musgo de mangas
curtas sobre uma camisa desbotada de mangas longas. Vinha com um arco na
mo, nas costas uma aljava cheia de flechas, alm de uma harpa.
Saudaes! Meu nome Ramue Sanger, arqueiro por necessidade,
msico por amor arte. Este meu bom amigo Kal Nanto, de Nagherin.
Kal era o mais alto de todos ali, dono de um corpo atltico e pele morena. As
tranas de seu cabelo ficavam penteadas para trs. Usava luvas de pele de animal
que cobriam os braos at os ombros, mas o peito estava nu. Vestia uma cala de
couro sem tingir. Uma cimitarra de lmina larga pendia na cintura.
Muito prazer. disse ele com uma voz grossa.
Aps essa breve apresentao, Ramue caminhou lentamente na direo do
balco de atendimento, Kal continuou parado na porta.
Valek deu-se conta de terem cado em uma armadilha. Aqueles quatro os
haviam encurralado num ambiente fechado, onde as mesas seriam obstculos.
Em algum momento, Suila-Ne cruzara as mos na altura do umbigo, de forma
que poderia desembainhar as duas espadas rapidamente. Heiten continuou
sustentando o olhar do jovem ruivo.
Mais hospedes! Em que posso Grisalho veio da cozinha, mas parou
imediatamente ao perceber a tenso que tomara conta do ambiente. Perdo.
Vou voltar para dentro.
Terei de pedir que fique um pouco mais, estalajadeiro. disse Ramue.
Valek moveu a mo devagar na direo do cabo da espada. Suila-Ne e
Heiten fizeram o mesmo. Nem a interrupo de Grisalho os distrara.
Vocs so um grupo bem extico! disse Liana. S tenho uma palavra
a dizer
Seria uma palavra mgica, Liana Clancey? interrompeu Heiten.
A tenso chegou limite, Valek decidiu fazer o primeiro movimento ou no
teria vantagem alguma. Era agora
Captulo XVII
Esfarrapados
Que seja!
Suila-Ne agarrou no brao dele e balanou a cabea negativamente.
Est tudo bem. e voltou-se para Liana. V em frente!
A sacerdotisa esticou o brao para tocar na testa de Heiten. Os olhos dela se
mexeram rapidamente por baixo das plpebras.
Voc ! surpreendeu-se Liana.
O filho bastardo do lorde! Sim, Darius Garet meu pai, essa a
verdade. Contei a vocs meu maior segredo.
Tudo que eles disseram verdade, Valek. Liana voltou-se para os
quatro viajantes. Quando meu filho nasceu
Senhora?! interrompeu o rapaz.
Heiten teve um gesto de confiana conosco, justo retribuir. Como eu
dizia, quando meu filho nasceu, um orculo profetizou que ele mataria o Rei
Desmorto. Essa a razo de sermos perseguidos.
Mas Baltus morrer primeiro! acrescentou Valek.
Pelos deuses! Ramue saltou na cadeira. Que histria! Preciso fazer
uma cano sobre isso!
Impressionante! Falam como se matar um rei fosse uma tarefa fcil.
disse Kal.
Suila-Ne voltou a encher a caneca, animada com os rumos que essa jornada
poderia tomar.
De qualquer maneira, isso mostra que temos um inimigo em comum.
Estamos do mesmo lado. falou Heiten. Que me dizem, lutamos juntos?
Pretendemos partir hoje noite para resolver um problema com uma
mulher dotada de uma magia muito poderosa. disse Liana. Estariam
dispostos a nos acompanhar?
Heiten olhou para seus companheiros. Todos concordaram.
Aonde forem, nos iremos e aonde estivermos, podero vir tambm.
Liana e Valek se entreolharam.
Pois bem, no acredito que vou dizer isso, mas disse ela. Podem
nos considerar esfarrapados.
Suila-Ne e Ramue vibraram, Kal acenou a cabea positivamente, Heiten
levantou-se animado.
Sejam bem-vindos ao grupo! ele estendeu a mo para Valek.
A comemorao foi interrompida.
Concordei em ser seu aliado, no seu amigo. Valek deixou a mesa sem
apertar a mo estendida. Voc vem, senhora?
Com licena. disse ela. Obrigada pelo almoo!
Os Clancey foram para o piso de cima. Heiten sentou-se novamente.
Encheu sua caneca e tomou um grande gole de hidromel.
Que negociao difcil. desabafou.
Suila-Ne tocou no brao dele com uma expresso preocupada no rosto.
Est tudo bem, amor. disse Heiten.
Tem certeza? perguntou Kal. Voc contou seu maior segredo para
dois desconhecidos.
Eu mesmo me surpreendi, meu amigo.
O que faremos a seguir? quis saber Ramue.
Vamos cuidar desse negcio hoje noite, depois levamos os Clancey at
meu pai E a veremos o que acontece.
Heiten riu para disfarar o nervosismo. Queria fazer tudo direito nesse
trabalho.
Sua me, uma rendeira que se deixara seduzir pelo herdeiro de uma casa
nobre, havia morrido no ano passado de febre tifide, portanto, o lorde era agora
seu nico parente. Sabia que o pai jamais poderia reconhec-lo publicamente,
apesar de ser mais velho do que suas filhas legtimas, mas ainda alimentava a
esperana de que um dia Garet o amaria como filho.
Um dia teria o amor de seu pai e no mediria esforos para tornar esse
desejo em realidade.
Captulo XVIII
Um Beijo
Algo no estava certo. Valek no sabia o qu, mas sabia que alguma coisa
estava fora do lugar. Era inverno nas montanhas, o branco cobria tudo ao redor.
Os caadores acaris examinavam com cuidado o solo.
Pegadas de worg Dos grandes. disse um deles.
O segundo caador virou-se na direo de Valek.
Venha aqui e preste ateno, garoto! disse Goro-Mi.
Valek fez um sinal. A mo era to pequena. A mo de um menino de doze
anos, isso no estava certo. Goro-Mi estar parado ali no era certo. Afinal ele
deveria estar deveria deveria o qu?
Ai, voc um lerdo mesmo, Clancey! disse uma menina. Est
sonhando acordado de novo.
Sara-Mi tinha treze anos, era filha do caador que examinava as pegadas na
neve. Uma garota bonita e intempestiva por quem Valek nutria uma paixo
secreta h quase um ano. Ele teria dado uma resposta altura se ouvisse aquilo
de outro garoto, mas vindo dela, s conseguiu baixar o rosto corado de vergonha.
Um rosnado fez-se ouvir. Acima, um worg protegia seu territrio dos
invasores em um piso mais elevado do morro. O animal era muito maior que um
lobo comum, pelos em forma de crista adornavam a cabea e as costas. A fera
rosnou e se afastou para esperar os caadores em outro ponto.
Depressa, vamos atrs dele! gritou Goro-Mi, acompanhado pelo outro
caador.
Os adultos se lanaram na direo que o worg seguira.
Rpido, Clancey! Eles no vo nos esperar, molenga! disse Sara-Mi.
Nesse momento, a porta do quarto abriu-se devagar. Liana quis evitar fazer
barulho por no saber se Valek ainda dormia. Surpreendeu-se ao v-lo despido
diante da janela.
Ela admirou o corpo atltico do rapaz, bem trabalhado, mas sem exageros.
Os msculos das costas e dos quadris se contraiam. Ele se masturbava sem
perceber que era observado. Embora tenha tentado, Liana no conseguiu desviar
o olhar.
Valek gozou. Ela voltou para fora e pediu a Lunna que afastasse aqueles
pensamentos de sua mente. Respirou fundo antes de abrir a porta novamente
fingindo ter chegado naquele instante.
Finalmente acordou, dorminhoco! Pensei que dormiria at a noite
ela parou de repente. Voc sonhou com Natsvaerd!
Como sabe? perguntou Valek ainda na janela.
Posso sentir a magia dela. Liana repreendeu-se por seus delrios
adolescentes de ainda a pouco, certa de que haviam ofuscado sua percepo.
Esse sonho foi muito mais vvido que outro disse ele. E mesmo
assim no consigo lembrar-me de nada.
No se preocupe, agora vou poder rastre-la facilmente.
A senhora tinha razo, Natsvaerd s nos deixar em paz depois que a
encontrarmos frente a frente.
Valek foi at o criado-mudo, apanhou uma jarra dgua e despejou um
pouco na pequena bacia sobre o mvel. Com uma toalha molhada, ps-se a lavar
o corpo suado.
Podemos confiar em Heiten e nos outros, me? indagou ele.
Acredito que, por enquanto, sim.
Liana sentou-se na cama e cruzou as pernas. A coxa sensual apareceu pela
abertura do vestido cor vinho.
Finalmente estamos iguais. disse ela.
Iguais?
Voc me viu nua no lago, hoje minha vez de v-lo.
Eu sei, Valek. Eu soube desde aquele dia no lago. Posso ver nos seus
olhos que est apaixonado.
Por que no disse nada?
Porque sou sua me. Isso seria errado. Admito que posso t-lo
encorajado em alguns momentos, o que tambm foi um erro de minha. e ela
acrescentou. Creio que est apenas confuso com tantas emoes diferentes ao
mesmo tempo.
Eu a amo de verdade, me. ele olhou bem dentro dos olhos dela.
Desde o primeiro momento que a vi. Certo ou errado, no importa. Eu a amo
Voc no sabe o que diz. jovem demais para entender o que amor.
No diga isso, no sabe o quanto o meu sentimento forte. Voc a
mulher que amo, me.
Liana ergueu o corpo. Os olhos de Valek brilhavam. Ela moveu a mo para o
queixo do rapaz, com delicadeza pressionou os lbios contra os dele.
O primeiro beijo de Valek foi longo e suave. S quando Liana afastou-se
devagar o tempo voltou a correr para ele.
O que foi, me? Fiz algo errado, eu?
Um beijo. No posso ir alm.
Por que no?
Voc ainda meu filho, mesmo depois de tanto tempo separados!
Mas, senhora Eu!
Vou esperar l embaixo. Liana se precipitou pela porta. Desa
quando estiver pronto.
Sozinho, Valek caiu sentado na cama. Inclinou a cabea para trs at tocar
na madeira da parede. Como pudera ser to idiota? Deveria ter deixado acontecer
naturalmente, mas no pode conter-se e arruinara tudo.
Foi at o criado-mudo e viu sua espada embainhada apoiada no mvel ao
lado dos braceletes. Tudo ficou claro.
O que estou fazendo? disse para si mesmo. Nunca desisti de uma
luta antes.
No podia abrir mo de seu grande amor assim. De nimo renovado, vestiuse, apanhou suas armas e desceu para se juntar a Liana e ao grupo de Heiten.
Havia chegado a hora de partir para encontrar Natsvaerd.
Captulo XIX
Apenas os Fortes
Pelas aberturas do elmo, Solomon Kotler viu o brilho das chamas fundir-se
com o cu vermelho do pr-do-sol. O fogo consumia o tmido vilarejo nos
arredores de Londinium, lar de pouco mais de duzentas pessoas. Nem chegava a
ser um desafio para a tropa de mil soldados por tudo abaixo.
Tratava-se somente de um exerccio para afastar o tdio dos comandados
do Rei Desmorto, enquanto ele aguardava a chegada de Baltus. Nada alm de
uma brincadeira.
Gritos de dor e lamentao acompanhados de pedidos de splica vinham de
todas as partes. Um grupo de rapazes investiu na direo de Kotler armados com
ferramentas de fazenda. O Rei Desmorto brandiu seu machado de batalha e os
fez em pedaos num piscar de olhos.
Apenas um sobreviveu, um menino de cerca de dez anos de idade.
Empunhando um faco, o garoto se desfazia em lgrimas. O machado desceu
num golpe seco. Era uma criana, merecia a misericrdia de uma morte indolor.
Uma misericrdia que foi negada a sua filha. Como queles jovens, Kotler
um dia fora um fazendeiro que tinha apenas suas ferramentas para se defender.
E assim como eles, trabalhava na terra quando os invasores chegaram.
***
***
A dor tirou Kotler do mundo das lembranas. De volta realidade, ele viu
um rapago armado com uma foice, cuja lmina fora cravada no ombro do Rei
Desmorto.
Kotler partiu o cabo de madeira com apenas uma das mos. Retirou a foice
do brao, o corte logo se fechou. Assustado, o rapago recuou.
Virando-se para correr, deu de cara com uma amazona de pele negra
trajando uma armadura sensual.
Gya Marla brandiu sua alabarda um tipo de lana que possu uma lmina
de estocar e outra em forma de machadinha. A arma desenhou um arco no ar, a
cabea do rapaz foi decepada.
Est ferido, majestade? perguntou ela.
Captulo XX
A Verdadeira Natureza Humana
***
meditar sobre a vida. Quanto a mim, fui escolhido por Lunna e Solari para ser
uma pea importante e sinto-me honrado por gozar de tal condio.
Agora entendo seu medo da profecia que fala sobre o guerreiro de cabelos
flamejantes.
Baltus retirou um punhal de dentro da bolsa.
De fato, estou certo de que Valek Clancey aquele destinado a reclamarlhe a cabea, Solomon. No entanto, me parece que estou sozinho em meus
temores.
Eu sou imortal, Baltus! Estou em guerra com nossos mais poderosos e
antigos inimigos! Espera que eu tenha medo de um ningum? De um qualquer
que no tem onde cair morto?
Peo perdo se me expressei mal, mas se h algo que aprendi em meus
mil anos de vida que nada realmente eterno. Todos morrero um dia, mesmo
os imortais. impossvel escapar a este destino.
Que hoje no seja o meu dia. Qual seu diagnstico?
Uma sangria deve recuperar-lhe as foras, porm, trata-se de uma
soluo temporria. Baltus mostrou o punhal. Somente um novo corao o
remediar por completo.
Faa o servio, Baltus. Encontraremos o corao em breve.
Devo alert-lo que isto ser consideravelmente desagradvel.
A resposta de Kotler foi um resmungo. Com um semblante determinado, o
rei apoiou o brao direito na cadeira-trono com a palma virada para cima e
fechou o punho com fora. A artria do cotovelo se destacou.
Baltus sussurrou palavras mgicas. As veias do brao comearam a inchar
medida que o fluxo de sangue concentrava-se em torno do cotovelo. O rei trincou
os dentes, os msculos queimaram por baixo da pele. O feiticeiro fez um corte na
artria. O sangue negro se derramou pela ferida em grandes quantidades.
Mantenha-se firme, Solomon, at todo o sangue ruim sair!
Alheia ao que acontecia dentro da tenda, Marla recobrava-se do susto do
lado de fora em meio a algazarra dos soldados.
Chanceler! chamou uma voz masculina.
Ela viu alguns homens trazerem uma mulher encapuzada pelo brao.
Pegamos essa espi tentando entrar no acampamento.
Afaste as patas de mim, animal imundo! debateu-se a prisioneira. J
disse que no sou espi!
A entonao e a maneira de pronunciar as palavras deixaram claro para
Marla que se tratava de uma nobre. O soldado ofendido ergueu a mo para
esbofetear a mulher capturada, mas a chanceler o conteve.
Tire as mos dela! e dirigiu-se para a cativa em um tom respeitoso,
mas firme. Sou a chanceler Marla. Diga seu nome e seu negcio.
A estranha removeu o capuz. Sua beleza surpreendeu os soldados. O porte
elegante, mesmo em trajes comuns, a fazia parecer ainda mais alta do que era
naturalmente. A brisa noturna soprou nos fios de cabelo platinados.
Sou Acssia Garet, filha do lorde Garet, de Londinium. Vim para forjar
uma aliana com o rei Solomon Kotler!
Captulo XXI
Outro Lugar
ao fundo, seria difcil v-lo. Um forte relinchar foi ouvido. A longa crina e a cauda
balanavam livremente. Um chifre em forma de lmina adornava a fronte.
O grupo ficou atnito ante aquela apario.
No pode ser! disse Liana estupefata. um unicrnio! Pensei que
eram apenas lendas.
Ramue buscou fixar cada detalhe na mente para escrever uma cano mais
tarde. Kal ficou maravilhado. Heiten permaneceu em silncio. Suila-Ne disse a si
mesma que aquela viagem j valera a pena apenas pela chance de ver um animal
assim. Valek admirou-se ao mesmo tempo em que a viso lhe trouxe fragmentos
de uma lembrana, de ver um worg no meio da neve.
O unicrnio empinou nas patas traseiras como se lanasse um desafio e
mergulhou na noite.
Vamos! bradou Heiten. Essa uma montaria digna de um rei, no
podemos deixar escapar!
Suila-Ne, Kal e Ramue subiram em seus cavalos sem demora. O grupo
partiu apressado.
Isso obra dela, Valek! disse Liana. Natsvaerd enviou esse animal.
Valek deu a mo para que sua me subisse novamente e fustigou o cavalo a
um ritmo acelerado. A cavalgada subiu pelo declive e escalou um pequeno morro.
O som de uma queda dgua alcanou os ouvidos do grupo. Os cavalos chegaram
ao ponto mais alto do morro e iniciaram uma decida at o leito de um rio. Uma
cachoeira descortinou-se diante deles.
Calma, devagar. frente de todos, Heiten fez sinal para que
diminussem a marcha. Olhem!
O unicrnio caminhava sobre a superfcie do rio. Com um leve relinchar, o
corcel dirigiu para a queda dgua e a atravessou.
Que animal magnfico! exclamou Ramue. Para ele a gua como
terra firme!
Deve haver uma caverna atrs da cachoeira. disse Kal.
J vamos saber. disse Heiten.
O guerreiro de cabea raspada amarrou as rdeas de seu cavalo em volta de
uma das muitas rochas na margem do rio. Suila-Ne, Kal e Ramue o imitaram.
Captulo XXII
Nagas de Ilrdia
Ouviram um sibilar ameaador. Kal viu algo serpentear pelo canto do olho.
Vasculhou os arbustos fora do crculo de pilares.
No encontrei nada.
O guerreiro negro de Nagherin se virou para o interior do crculo. Nisso,
um grande vulto emergiu por trs dos destroos de um muro. A estranha figura
movia-se to silenciosamente que Kal nem percebeu sua presena at uma
cabea esverdeada morder-lhe ombro com violncia.
Aaargh!
Kal!!! gritou Heiten.
Com fortes dores, Kal foi ao cho se contorcendo. A queda do guerreiro
permitiu que os demais pudessem ver quem o atacara.
Por um instante, pensaram ser um homem de tronco robusto e braos
fortes, mas logo perceberam tratar-se de um monstro de aspecto humanide. A
pele escamosa era verde, o rosto possua traos que lembravam uma cobra. Da
cintura para baixo, o corpo era de serpente, com uma longa cauda.
Grande Me Lunna! exclamou Liana. um naga!
O naga mostrou as grandes presas e a lngua bifurcada, emitindo um sibilar
assustador. Na mo, ele trazia uma pedra afiada em forma de lmina. Ramue
disparou uma flecha, mas o naga esquivou-se com uma agilidade surpreendente.
A criatura serpenteou por entre as runas contra o grupo. Com um grito,
Heiten lanou-se contra o monstro. A investida foi contida pela espada de pedra.
Erguendo seu enorme corpo, o naga contra-atacou e ps Heiten na defensiva.
Suila-Ne avanou pelo flanco, a fera agitou a cauda. Com um salto, ela
esquivou do movimento, mas antes do tocar o solo foi atingida por uma nova
ondulao. Heiten continuou lutando. O naga agarrou seu pescoo com a mo
livre e o jogou contra um pilar.
Nesse momento, a criatura emitiu um grito de dor. Valek enterrou a espada
quebrada na cauda de serpente.
Tomado pela raiva, o naga voltou-se contra o rapaz ruivo. Valek correu por
entre os pilares, a criatura serpenteou atrs dele, aproximando-se cada vez mais.
O naga investiu na descendente, mas o jovem conseguiu saltar de lado para evitar
o ataque, porm, sua garganta foi agarrada. O monstro exibiu as presas
preparando-se para uma mordida, o veneno pingava.
Uma grande labareda de fogo verde levantou-se do solo entre eles. O efeito
durou apenas um momento, mas foi o suficiente para fazer o naga soltar Valek.
A criatura voltou-se contra Liana. A sacerdotisa ainda estava no centro do
crculo com a mo estendida aps lanar o feitio de fogo. O monstro ergueu o
corpo. Sbito, uma flecha riscou o ar, atingindo-o no peito.
Com grande velocidade, Ramue disparou outra seta e mais outra. Valek
aproveitou a chance para enterrar sua lmina no tronco verde. Outra flecha
atingiu o peito coberto de escamas.
O naga baixou sua espada de madeira. O enorme corpo tombou para frente.
Liana recuou, pisando na parte afundada do solo. O cho fugiu, ela caiu por um
estreito buraco.
Me!!!
Valek correu, mas o corpo do naga caiu sobre o buraco.
O rapaz tentou mexer o corpanzil da criatura. Ramue juntou-se a ele.
Mesmo o esforo combinado dois no foi capaz de mover o corpo mais que
alguns centmetros. Apenas o suficiente para espiar o buraco com dificuldade.
Valek se abaixou para ver melhor, mas antes que o fizesse, uma gota de um
lquido gelatinoso pingou perto de sua mo.
Erguendo o rosto devagar, o rapaz deu de cara com uma naga fmea. Ele
precisou se esquivar para trs para fugir da mordida.
Tem mais um aqui! alertou Ramue.
Desse lado tambm! retrucou Heiten.
Um naga masculino se aproximou de Heiten e Suila-Ne. No cho, Kal
continuava a se contorcer. Valek levantou sua lmina partida mais uma vez, sem
conseguir parar de pensar no que teria acontecido com sua me.
***
Liana abriu os olhos em meio a dores espalhadas pelo corpo. O rosto jazia
sobre a grama, mas as pernas estavam dentro da gua.
Onde estou?
Captulo XXIII
Cmara Morturia
atrs com as costas na parede do poo. O bardo usou os ps, braos e as costas
para controlar a descida.
Parece que descobrimos uma rede de tneis abaixo da cidade.
comentou o arqueiro.
Valek no disse nada, sua nica preocupao era encontrar Liana. Preferia
morrer que perd-la. Acompanhando o fluxo da gua, seguiram por um caminho,
de tal modo escuro, que no eram capazes de enxergar um palmo sequer diante
do nariz, porm parecia haver luz no final do tnel. Enquanto caminhavam,
Ramue ficava mais inquieto.
H muitas coisas que no fazem sentido, Clancey. Para onde foram as
pessoas que viviam nessa cidade? No podem ter simplesmente desaparecido.
Mais adiante, o pequeno tnel terminava em uma rea bem maior. O rio
subterrneo dava em uma queda dgua logo frente, mas era possvel sair para a
margem rochosa. Os dois estudaram o cenrio com um arrepio na espinha.
Fogueiras verdes garantiam a iluminao. Encontravam-se num piso
elevado, terminando em uma queda brusca de um lado. O rio seguia caminho
dezenas de metros abaixo. O teto era delimitado por uma das razes colossais da
Yggdrasil.
Crnios cobriam as paredes. Milhares, talvez mais. Um nmero incontvel
de caveiras forrava as paredes por toda a longa extenso daquela rea.
Uma cmara morturia. disse Ramue. Encontramos os druidas!
Valek foi o primeiro a se recuperar da viso funesta. O jovem ruivo ps-se a
examinar o solo com cuidado.
Sem pegadas. Se minha me passou por essa aqui, o fez sem sair do rio.
E se ela tiver ido por outro caminho?
Estvamos indo para a Yggdrasil. As chances de encontr-la so maiores
se formos para l.
Ramue concordou. Comearam a caminhar novamente. A cmara se
estendia em descida. O rio corria cada vez mais forte l embaixo. O arqueiro
observou as chamas verdes espalhadas pelo caminho.
Fogo mgico. Nunca vai apagar. Ramue coou a barba. Algo mais me
incomoda. Como os nagas sobrevivem? No h fontes de alimento, exceto
viajantes perdidos como ns. E no podem ter vindo tantos assim para c.
O que importa? retrucou Valek rispidamente. S o que interessa
O som de um sibilar interrompeu a conversa. A mesma naga fmea de antes
vinha deslizando pela parede de crnios. Livrara-se da flecha, mas o olho ainda
sangrava.
A criatura investiu. Ramue foi rpido com o arco. A naga sesquivou das
setas serpenteando pela parede. O monstro desceu prximo a Valek, brandindo
sua lmina de pedra contra ele. O jovem ruivo conseguiu repelir os ataques com
dificuldade com a espada quebrada.
A naga atacou com uma mordida, mas as presas afiadas encontraram o
bracelete de ferro de Valek. Ele tentou atacar, porm a criatura afastou-se.
Ramue soltou uma flecha, que atingiu a naga no ombro. O ferimento no
diminuiu o mpeto da fera. O monstro atacou o arqueiro, cravando as presas no
ombro de Ramue.
G-gaaahhh!!!
Valek viu uma brecha para atacar. O rapaz segurou o cabo da espada
quebrada com ambas as mos, correu na direo da criatura.
Ele saltou e, se valendo do peso do corpo, enterrou a lmina partida na
omoplata da naga. Empregando toda a sua fora, empurrou o monstro e a vtima
para a lateral do piso elevado. Na direo da queda.
A fera e o arqueiro despencaram. Valek caiu tambm, mas conseguiu se
segurar na borda do piso elevado. Ramue e a naga atingiram o leito rochoso da
margem do rio, transformando-se em manchas vermelhas.
O rapaz puxou o corpo de volta para cima. Viu que a cabea de Ramue se
chocara violentamente contra as rochas. Pedaos do crebro boiavam numa
grande poa de sangue. No era uma viso agradvel, mesmo assim ele no se
deixou abalar. Estava mais preocupado com a me do que nunca.
Novamente desarmado, correu chamando por ela durante uma eternidade.
Depois de quase uma hora, deparou-se com uma parede de madeira viva que
cobria toda a extenso da cmara. No havia para onde ir. Mesmo o rio
terminava ali.
Ao sair do tnel, o rio ficava bem mais raso. Valek sentiu o peito queimar
por dentro quando o ar retornou. Viu um gramado logo frente. Esgotado,
estirou-se sobre a relva. Queria procurar Liana, porm seu corpo no se mexia.
Precisava descansar, entretanto, no foi necessrio permanecer muito
tempo deitado. Suas foras retornaram em menos tempo do que esperava.
Ele percebeu estar em outra cmara. Esta era circular e bem iluminada.
Sobre a grama, viu cabeas de serpente esculpidas, abrigando chamas verdes nas
bocas. Viu que o piso se elevava em voltas em torno da parede de madeira.
Havia algo l no alto. Um grande cristal, sustentado por correntes que
saiam da parede.
Me!!!
Sejas bem-vindo meu lar, Valek Clancey!
No foi a voz de Liana que respondeu. Era uma voz feminina diferente, que
ressoava levemente. O rapaz viu uma bela mulher de cabelos dourados sentada
sobre a relva. Trajava um vestido verde escuro que deixava os ombros mostra.
Ela tambm vestia uma capa com um capuz da mesma cor.
Quem voc? perguntou ele.
Sou aquela quem procuras e de que tudo abriu em vosso benefcio. Em
tempos longnquos chamavam-me druida, amiga e at mesmo, amada. a
mulher sorriu. Vs, porm podeis chamar-me Natsvaerd.
Captulo XXIV
Clancey
Mesmo sem test-la poderia jurar que possua um fio impecvel. O tamanho era
maior que uma espada acari, mas no grande o bastante pra precisar ser
manuseada com as duas mos. A guarda e o contrapeso do cabo eram ricamente
trabalhados. Ele teve uma sensao estranha, era quase como se estivesse na
presena de uma pessoa e no de uma arma.
Olhai ao vosso redor. disse Natsvaerd. Encontrai-vos no interior da
Yggdrasil, a rvore cujos galhos acariciam as nuvens. Recobraste vossas foras
rapidamente por obra da magia impregnada no ar e no solo. Acreditas realmente
que exista algo mundano ou simples nestas paragens?
O rapaz sentou-se na grama.
Est bem! Conte sua histria.
Mostrar-lhe-ei se desejares. ela sentou junto a ele e estendeu a mo
espalmada.
Tudo que desejar terminar o quantos antes para ver Liana de novo.
Natsvaerd tocou a testa de Valek e pronunciou palavras mgicas.
Ele sentiu sua mente ser levada para longe. Quando deu por si, estava em
Ilrdia, perto da mesma fonte com a escultura da mulher-serpente. Porm, no
era uma runa como antes. Parecia nova e despejava gua cristalina pela nfora.
A cidade estava inteira. Mesmo sendo noite, a Yggdrasil parecia mais viva e
bonita. Ele viu a lua ao lado da rvore colossal e percebeu que no era a nica
fonte de luz. A Serpente de Fogo brilhava no cu. No da maneira como disseram
que foi na noite de seu nascimento. A Serpente estava praticamente parada, com
o aspecto de uma grande esfera luminosa com uma longa cauda brilhante.
Valek viu um garoto correr em sua direo. O menino vestia trajes
semelhantes aos de Natsvaerd, mas sem o mesmo brilho. Seria um druida?
Voc, diga-me onde eu
O garoto passou direto atravs do corpo do rapaz ruivo como se este no
tivesse substncia. A voz de Natsvaerd ecoou.
Testemunhais uma lembrana, Valek. No estais presente de fato. s
como um fantasma do Alm.
Ele acompanhou o garoto pelas ruas relvadas de Ilrdia, rumo ao que
parecia ser uma ferraria. Uma marreta golpeava o ao, indicando que o ferreiro
Captulo XXV
O Calor do Contato
A lua cheia observava a jovem ruiva de dezesseis anos pela abertura no teto
do templo. Deitada no interior de um crculo de smbolos arcanos, Liana vestia
apenas uma bata simples. Ao seu redor, sete sacerdotisas cobertas de preto
entoavam palavras mgicas em unssono.
As sete sacerdotisas converteram-se em piras. Mesmo queimando, elas
continuaram com o ritual. Liana sentiu um calor intenso em seu ventre. O fogo
apagou to rpido quanto surgiu, as mulheres tombaram. Estava feito.
Denora e Tssia se precipitaram para amparar a moa de cabelo vermelho.
Eu sinto disse a jovem Liana. Sinto uma nova vida dentro de mim.
Mais duas pessoas testemunhavam a cena.
O que est me mostrando dessa vez? indagou Valek.
Estas a ver o momento de vossa concepo. respondeu Natsvaerd.
No procuraste saber quem s vosso pai?
Ele j tinha pensando nisso uma ou duas vezes, mas de forma superficial.
No suportava a ideia de outro homem se deitar com Liana.
Nunca perguntei.
Agora conheceis a verdade. s fruto de um ritual mgico, concebido a
partir do sacrifcio de sete mulheres. Liana era virgem quando lhe deu a luz.
Vamos voltar. Chega de lembranas.
Valek viu-se no interior da cmara circular. Precisava de tempo para
absorver tantas novidades. Se as cenas que testemunhara eram mesmo
verdadeiras, significava que ele descendia de Natsvaerd, que a alma dela habitava
o interior da espada presa dentro do grande cristal e que jamais tivera um pai.
A nica coisa que ainda no sabia era o paradeiro atual de sua me, embora
Natsvaerd garantisse que Liana estava bem.
Eu no precisava ter visto isso. disse ele por fim.
Queria que compreendesses vossa importncia. O ritual da Filha da Lua
uma magia ancestral, cujo propsito conceber uma vida feminina. Entretanto,
nasceste um varo, conforme desejou a Serpente de Fogo.
Natsvaerd tentou se aproximar, mas ele se afastou.
s uma criana improvvel, Valek. Um predestinado! Um milagre sob
todos os aspectos!
Quando eu era criana comeou ele. Minha me de criao, BlieMi, contava sempre a mesma histria na hora de me colocar para dormir. Ela
dizia: vou falar sobre um menino com cabelos de fogo que nasceu para ser o
maior rei de todos
Como o conto terminava?
Eu sempre dormia antes do fim.
Isto significa que cabe a vs escrever o final da histria.
Natsvaerd caminhou at Valek. Delicadamente, tocou as costas sem camisa
do rapaz. Ele virou de repente e agarrou o pulso dela com fora.
Significa que estou farto de ouvir todos vocs falarem sobre meu destino!
Irs desistir de vosso intento?
No posso perdoar os responsveis pela morte de Blie-Mi. Encontrarei
um meio de matar Baltus e Kotler. Depois vou viver como quiser! e ele
acrescentou. Agora, quero ver Liana!
Esquecei-vos de um fato importante. O Rei Desmorto imortal. ela se
desvencilhou dele. Se desejas mat-lo necessitars de uma arma adequada.
A espada!
A espada forjada com o sangue dos Clancey. O receptculo de minha
alma. Uma arma viva!
Como posso tir-la do cristal?
Captulo XXVI
Terra Maldita
O ataque dos nagas fez a situao fugir ao controle num instante. Kal fora
mordido, Liana desaparecera. Antes que Heiten tivesse a chance de decidir o que
fazer em seguida, Valek escalou uma das paredes do velho templo e depois de
descer, partiu em disparada pelas runas.
Clancey, espere! chamou em vo. Ramue, v atrs dele!
Mas e o Kal?
Vamos tomar conta do Kal, agora vai! Traga os Clancey de volta!
Heiten passou a mo na cabea raspada pensando se realmente poderia
fazer algo pelo amigo de pele morena que continuava a se contorcer no cho.
Os espasmos estavam mais violentos, a testa ardia de febre e algo estranho
se passava com os olhos. Os globos oculares haviam adquirido uma colorao
amarela, as pupilas assumiram o aspecto de linhas verticais, semelhantes a olhos
de cobra.
Suila-Ne permaneceu afastada. Assim como o noivo, ela tambm
preocupava-se com o companheiro ferido, mas no compartilhava a mesma
aflio. Todo acari sabia que perdas eram inevitveis no campo de batalha. Ela
tocou o ombro de Heiten e balanou a cabea negativamente.
Ser que no podemos fazer nada? indagou ele.
Em resposta, Suila-Ne ergueu uma das espadas curtas, suja com sangue de
naga. Quando ainda vivia na aldeia do cl dos Ne, ela vira pessoas que se
recuperaram aps serem picadas por cobras e tambm assistira amigos
morrerem por essa razo. Por experincia, sabia que Kal no tinha mais chances.
S o que restava era abreviar o sofrimento.
De maneira nenhuma! retrucou Heiten.
Captulo XXVII
Invaso
***
Naquela noite, Sarissa recebeu, uma vez mais, Jander pela passagem
secreta de seu prprio quarto. Inicialmente, ela tinha uma excelente disposio,
enquanto ele parecia distante.
O que foi que voc e meu pai conversaram?
Nada demais. Apenas resumi os movimentos recentes do Rei Desmorto e
sequer tocamos em outros temas.
Na hora da despedida, ele a olhou dentro dos olhos.
So tempos incertos, pequena Sarissa, de decises difceis. Se algo
acontecer, tranque-se em seu quarto, faa uma barricada na porta e me espere.
Do que est falando, Nythan?
Apenas lembre-se do que eu disse. E acredite quando digo que odiaria vla machucada.
Ele a beijou na testa e partiu rapidamente pelos tneis deixando uma
confusa Sarissa para trs. Ela deu-se conta de que, a despeito do noivado, no
sabia muito sobre Jander. Sempre conversavam sobre ela ou sobre algum
acontecimento notvel do castelo.
A jovem meteu-se debaixo das cobertas de camisola, mas o sono no veio.
Sentia-se inquieta pelo comportamento de Jander. Sabia que os inimigos
estavam porta de Londinium e que um ataque era iminente, porm o
envenenamento de lorde Garet lhe afastara outras preocupaes da mente. E se
ele teve uma recada? Decidiu ir at o pai para ver se tudo estava bem.
Eu queria fazer isso h tempos. disse Edan. Meu lorde, est ferido!
E-Edan
O rapaz correu para acudir Garet. Cortou um pedao da manga da camisa
que vestia e fez presso sobre o sangramento. Seu mestre estava banhado em
suor, a febre retornara. O lorde necessitava de cuidados imediatos, entretanto,
precisavam sair dali sem demora.
Aguente firme, meu senhor! o servo amparou Garet.
Edan queria ir atrs de Sarissa tambm, mas sabia que tudo estaria perdido
se o lorde morresse. Caminharam com dificuldade para a passagem secreta.
Existia uma rede secundria dentro dos tneis conhecida apenas pelos Garet e
pelo servo. Seguindo por essas rotas, eles rumaram para fora de Londinium.
***
REMINISCNCIAS
Terceiro Fragmento
Captulo XXVIII
Berserker
Lestonor passar abaixo dele. Significava que os homens do Rei Desmorto ainda
procuravam lorde Garet. O grupo descia o morro, na direo de Londinium.
O jovem criado esperou se afastarem e voltou para o lorde, certo de que era
o momento adequado para se moverem. Caminharam por vinte minutos quando
um farfalhar de folhas os deixou em alerta outra vez.
Quem vem l? Garet tentou falar com a voz mais firme possvel.
amigo ou inimigo?
Heiten saiu da mata, acompanhado de Suila-Ne. Com o peito nu, Valek
vinha logo com a espada Natsvaerd enrolada em tecido verde, a seu lado estava
Liana, metida no vestido cor vinho que j vira dias melhores.
Amigo, senhor! disse o guerreiro de cabea raspada. E muito feliz
em por nos encontrarmos de novo!
Por um instante, Garet pensou ver uma alucinao causada pela febre. A
ltima pessoa que esperaria encontrar nesse momento era o filho bastardo que
no via pessoalmente h trs anos, mas logo percebeu ser realidade.
O que est faz aqui? Como me encontrou?
Por coincidncia, na verdade. Seguamos para Londinium.
Como pode ser isso?! surpreendeu-se Edan. Essas matas ficam na
direo oposta a que partiram.
uma histria longa e complicada. Mais tarde conto tudo, agora me
deixe ajudar.
Heiten tomou o lugar de Edan na tarefa de amparar Garet. O lorde olhou de
soslaio para os demais viajantes.
Quem so?
Minha noiva, Suila-Ne ela cumprimentou com um aceno de cabea.
Por que no diz nada?
Ela muda de nascena, senhor.
Garet emitiu um resmungo que desagradou a acari, mas Heiten no notou.
E esses so os Clancey. Liana
Lorde! saudou ela.
Edan no eram combatentes e com seu pai fora de condies, a proporo subia
casa de quatro para um. Ele, Suila-Ne e Valek dariam conta do recado?
Enquanto os demais permaneciam entre os arbustos, o jovem Clancey
continuava de p, oculto dos batedores pelo tronco da rvore. Ao v-los, Valek
pensou no quo prximo estava do Rei Desmorto e de Baltus, os principais
responsveis pela morte de Blie-Mi. As ltimas palavras de Goro-Mi lhe vieram
mente: Faa com que paguem.
A forma humana de Natsvaerd surgiu s costas dele. Mesmo que os demais
no pudessem v-la ou ouvi-la, ela tocou os ombros do rapaz e sussurrou nos
ouvidos dele.
Em que estais a pensar?
At o ltimo deles! os lbios de Valek mal se mexeram.
Desejais realmente trilhar tal caminho?
Ele apertou o cabo da espada com fora. Lembranas da morte de Blie-Mi
lhe assaltaram a mente, de como ela sorria quando teve a cabea cortada. O
corao de Valek comeou a bater forte.
Compreendo. do dio que vossas foras provm. disse Natsvaerd.
Se assim s, que o dio faa teus inimigos arderem!
Heiten ainda pensava no plano de ao quando ouviu a voz de Liana
chamar pelo filho. Valek avanava com passadas largas na direo dos batedores.
Os soldados de Lestonor avistaram o jovem se aproximar com uma espada
nua na mo. Um sujeito de barba cheia e cabelos desgrenhados tomou dianteira
do grupo, desembainhando uma espada rstica da cintura. Valek parou a dois
passos de distncia do dele.
Quem voc? perguntou o lder.
O rapaz ruivo atravessou a espada pelo peito do batedor. Os demais
sacaram as armas prontos para fazer o jovem pedaos. Porm, a disposio
diminuiu ao verem chamas surgirem na lmina que matara seu lder.
Valek liberou a arma. Natsvaerd tornara-se uma espada flamejante!
Os batedores ficaram estticos ante a viso. Mesmo Heiten e Suila-Ne, que
desciam o morro apressadamente, pararam surpresos.
Captulo XXIX
A Dinmica do Jogo
No sei como suporta ser tocada por um homem como o Rei Desmorto!
Melhor que ser tocada pelo lorde contra minha vontade.
A irm mais nova se encolheu. Acssia sentou-se na cama e segurou a mo
dela.
No vim para discutir e sim para tir-la deste quarto. Tenho sentido falta
de sua presena no castelo. Troque-se e vamos tomar o caf da manh juntas.
Sarissa olhou para a irm disposta a aceitar a proposta.
Alm do mais prosseguiu Acssia. Solomon deseja conhec-la
melhor.
Ao ouvir a irm chamar o rei Kotler pelo primeiro nome, Sarissa recolheu a
mo e fechou a cara.
Prefiro ficar em meus aposentos.
Acssia recuperou o ar srio.
Hoje no! Proibi os criados de lhe trazerem refeies. Ter de ir ao salo
de jantar quando quiser comer. antes de sair do quarto, ela tentou se dirigir
irm em um tom ameno. Sei que so grandes mudanas, mas ver que tudo
ser melhor sem o lorde e sua esposa.
Sozinha novamente, a adolescente cruzou os braos, determinada a
permanecer onde se encontrava. Ficaria ali o quanto fosse necessrio. At Acssia
no ter alternativa a no ser permitir que as refeies fossem servidas no quarto.
Porm, Sarissa no estava acostumada a passar fome. Pela hora do almoo,
a disposio havia se dissipado. Pois bem, ao menos deixaria claro Kotler e seus
seguidores que no era uma deles.
Envergou um vestido dourado, fez uma trana no cabelo branco, que
prendeu com uma presilha de ouro e enfeitou os dedos com anis caros. O
sentinela do lado de fora do quarto, trajado com roupas de couro curtido, deixou
escapar uma expresso de espanto e receio ante tanto luxo. Sarissa desprezou a
presena dele e foi diretamente ao salo de jantar.
Encontrou a enorme mesa retangular vazia, exceo de um casal de
criados devorando as sobras, ambos trabalhavam a muito tempo no castelo. A
dupla recebeu a jovem mestra com mostras de afeio.
Onde est minha irm?
diante do outro. A moa compreendeu pouco das palavras, mas assim que ele
terminou, uma imensa algazarra fez-se ouvir, seguida de um rugido bestial e de
mais gritos empolgados da multido no ptio. Um espetculo selvagem surgiu
diante dela.
L embaixo, centenas de guerreiros e amazonas de Lestonor se
amontoavam para ver o beemote estraalhar homens ainda vivos. Meia dzia dos
batedores de Kotler lutavam para manter a fera contida, segurando as robustas
correntes presas cela. A platia vibrava a cada nova mordida.
Sarissa! Acssia deixou escapar um tom de surpresa. Fico feliz que
tenha se juntado a ns. Venha saudar o rei.
A adolescente aproximou-se do trono intimidada com a presena de Kotler.
Mesmo sentado, ele parecia um gigante para ela.
uma honra conhecer minha futura cunhada.
Vamos, irm disse Acssia. Cumprimente-o.
Sarissa mal ouvira a saudao. A voz gutural e os gestos calmos do Rei
Desmorto eram diferentes do que esperava. Tudo que conseguiu foi acenar a
cabea.
Os servos trouxeram uma luxuosa poltrona para Sarissa sentar-se ao lado
da irm e lhe ofereceram vinho, Kotler e Acssia j estavam servidos. Nervosa, a
moa agarrou a taa com ambas as mos e sorveu de um s gole.
No ptio, o espetculo recomeava. Um grupo de quatro soldados com os
pulsos atados foram trazidos. A amazona-chanceler Gya Marla tomou a palavra.
O barulho da multido diminuiu.
Vocs so acusados de se oporem Vossa Majestade Imortal Solomon
Kotler! Em sua imensa bondade, o rei oferece uma chance de redeno. Sero
perdoados caso se ajoelhem e jurem fidelidade ao Rei Desmorto! os quatro
permaneceram imveis. A pena para aqueles que recusam o perdo real
serem atirados ao beemote!
A multido urrou ensandecida quando os quatro soldados foram devorados.
Outros grupos foram trazidos e receberam a mesma oferta. Quem se ajoelhava
recebia uma espada e ordens de executar os ex-companheiros. Os que cumpriam
a ordem eram imediatamente incorporados ao exrcito de Lestonor, sendo
recebidos com entusiasmo pela multido. Aqueles que se recusavam, eram
lanados besta.
Sarissa desviou o rosto e no viu quando Balem foi despedaado pela fera.
Ela correu para a antessala, onde uma forte nusea expulsou o almoo recente.
Que mundo era esse em que vivia agora?
A mo pousou no peito, sentiu o volume da pea de xadrez escondida ali.
Voltou para o quarto apressadamente, meditando sobre o que Baltus lhe dissera.
Ele consideraria sua irm uma jogadora das mais habilidosas, mas e quanto a ela
prpria, que tipo de pea seria? O que deveria fazer dali por diante, ser uma pea
obediente ou rebelde?
Captulo XXX
Depois da Batalha
***
O destacamento que subia a colina estava longe de ser o melhor que o Rei
Desmorto tinha a oferecer. O confronto terminou em cerca de uma hora com
vitria da tropa de Garet.
Valek e Suila-Ne foram os ltimos a retornarem, recebendo muitas
saudaes dos soldados. No auge da batalha, eles se afastaram da tropa e
mergulharam na formao inimiga, onde promoveram um pequeno massacre.
Todos esto falando de vocs! Heiten os esperava nos arredores da
aldeia. Dizem que juntos mataram mais inimigos que todo o resto da tropa!
Suila-Ne atirou-se nos braos do noivo. Ele sabia que ela iria querer beber e
fazer amor para comemorar a vitria.
Gostaria de ficar com voc, Suila, mas o lorde pediu minha ajuda com os
planos.
Filho, o que aconteceu entre ns foi Serei sincera Foi bom! Foi muito
bom e se acontecesse de novo eu ela parou, surpresa com as prprias
palavras. No hora para isso, esto esperando por mim.
A senhora est fazendo o mesmo que fez em Ilrdia! o rapaz irritou-se.
Est indo embora para fugir da conversa!
Ainda falaremos sobre isso, mas no nesse momento.
Quando?
Logo! Agora, preciso ir.
Liana caminhou controlando a respirao para se acalmar. Pensativa,
pousou a mo sobre o ventre. Havia algo que precisava ter certeza antes de
conversar com Valek.
O rapaz voltou para dentro. Largou-se sobre a cadeira e apoiou os cotovelos
na mesa. Precisou resistir ao impulso de descarregar a frustrao no mvel
rstico. Suila-Ne saiu do segundo cmodo enxugando os cabelos loiros. Valek
quase tinha se esquecido da presena da acari na casa.
Ela fez um gesto rpido com os ombros e o queixo, indicando curiosidade.
Ouvira pouco da conversa, mas era evidente que o jovem ruivo discutira me.
Minha me e eu temos uma relao complicada. respondeu ele.
A acari cortou um pedao grande de queijo. Enquanto comia, o olhar dela
encontrou o de Valek uma vez ou outra. Uma ideia lhe veio a cabea. Por que
deveriam deixar seu dia ser estragado daquela forma por aqueles que lhes deram
s costas?
Hum!
Suila-Ne fez um gesto como quem pede a palavra. Valek a observou ir at o
outro cmodo e voltar com algumas moedas, atar o cinto e abrir a porta. Ela
estendeu a mo para que ele.
No estou com disposio para sair. disse ele. Suila-Ne insistiu.
srio, prefiro ficar aqui.
Com um ar bem-humorado e fingindo impacincia, ela agarrou o brao do
rapaz e o puxou para fora. Ele s teve tempo de prender a bainha no cinto.
Com os casebres lotados, as pessoas passavam a maior parte do tempo ao ar
livre. Valek seguiu Suila-Ne por entre aquela pequena multido na direo de
uma casa que funcionava como armazm. Foram saudados por um grupo de
soldados que bebia ali. Apesar da recepo calorosa, o rapaz ruivo sentiu-se
desconfortvel e ficou satisfeito ao ver a acari apontar uma garrafa de vidro
escuro, pagar e deixar o armazm.
Os soldados os convidaram a se juntarem celebrao, ao que Suila-Ne
respondeu desenhando crculos com o dedo indicador.
Mais tarde! Valek apressou-se em traduzir o sinal.
Muitos gestos da acari ainda lhe escapavam, mas a essa altura, j conseguia
compreende-la bem. Ela o guiou para fora da aldeia, para a mata. Embora os
pinheiros continuassem verdes, outras rvores no tinham mais folhas e at
mesmo haviam cado. Foi no tronco tombado de uma dessas que Valek e SuilaNe repousaram suas armas e sentaram-se para descansar.
A acari tirou a rolha da garrafa, apreciou o cheiro da bebida e tomou vrios
goles de uma vez. Quando terminou, balanou a cabea positivamente e ofereceu
ao rapaz. Ele virou a garrafa pensando ser vinho, mas o primeiro trago lhe
queimou a garganta de tal maneira que foi preciso segurar a tosse.
O que isso? Valek pensou nas bebidas que nunca provara e arriscou.
Rum?
Suila-Ne fez que sim, achando graa. O rapaz tomou flego e conseguiu
beber alguns goles. Sentindo a garganta arder, compartilhou o bom humor dela.
Continuaram a beber e Valek comeou a sentir-se mais disposto, sem saber se era
devido a tranquilidade do lugar, a companhia ou a bebida lhe subindo cabea.
Mediu a acari de cima baixo. Era uma dcada mais velha, mas ele nem se
dava conta da diferena de idade. No era formosa, mas estava longe de ser feia.
Os braos e as pernas bem torneadas a destacavam de outras mulheres que ele
conhecera. Valek concluiu que Heiten era um tolo por preferir estar com um
velho arrogante ao invs de ficar com uma mulher como Suila-Ne.
Enquanto bebiam, a acari fazia gestos que ele respondia com mais nimo
que o habitual. Trocaram um sorriso cmplice, um ar tenso caiu entre os dois.
Timidamente, o rapaz fez carinho no brao dela. Suila-Ne ficou quieta, mas
o peito se mexeu mais rpido. Os dedos dele passaram a acariciar a perna. Ela
olhou ao redor e como no viu ningum, deslizou a mo para a perna dele.
Valek ganhou mais confiana. Ele inclinou o rosto e estalou um beijo rpido
no brao de Suila-Ne. Depois outro, os beijos comearam a subir na direo do
pescoo ao mesmo tempo em que a mo apalpou os seios por cima do vestido.
"Heiten, me desculpe, mas no vou conseguir parar", pensou Suila-Ne, se
deixando levar pela lbido.
Beijaram avidamente. Um desejo nervoso tomou conta deles. Valek baixou
o vestido dela e chupou os mamilos com vontade. Ela quase arrancou a camisa
dele. Depois, Suila-Ne apoiou-se sobre o tronco com as mos afastadas e inclinou
as costas para trs, projetando os quadris para frente. O rapaz se posicionou
entre as pernas dela, levantou o vestido e introduziu o pnis duro na vagina loira.
Moveram-se com pressa. Ela chegou ao orgasmo primeiro, ele logo em
seguida. O rapaz fez questo de deitar o gozo fora pra no correr o risco de
engravid-la.
Afastaram-se ofegantes. Trocaram um sorriso desanimado e ela tocou o
rosto dele como se tentasse confort-lo. Mesmo tendo passado um momento
agradvel, nenhum dos dois estava com a pessoa que realmente queria estar.
E enquanto ajeitavam as roupas, preparando-se para retornar aldeia, nem
Valek, nem Suila-Ne perceberam que uma pessoa escondida entre os pinheiros
testemunhara o que havia se passado.
Captulo XXXI
Moeda de Troca
Em sua antiga casa, Heiten era vizinho de uma mulher cujo marido fora
assassinado por ladres. Ela ficou to devastada que, durante muito tempo, foi
incapaz de tocar no assunto. Mesmo assim, a dor no semblante era evidente.
Uma dor da qual no se via sombra alguma no rosto de Garet.
Na primeira chance, Heiten pediu licena para retirar-se. Queria muito falar
com Suila-Ne. Agora entendia o motivo da noiva andar irritada. Com certeza, ela
j tinha percebido que Garet a rejeitava. Precisava encontr-la para dizer que
nada mudaria na relao deles.
Teria de encontrar um jeito de obter a aprovao do pai, porque no
conseguia se imaginar casado com outra mulher. Aps a morte da me, Heiten
passara muito tempo sozinho, at que durante a escolta de uma caravana, um dos
primeiros trabalhos que realizara para o lorde, flagrou Suila-Ne espreita,
esperando algum se afastar do grupo para roub-lo. No instante em que ps os
olhos nela, algo despertou em seu interior. Ao invs de denunci-la, a escondeu.
E foi assim que se conheceram. De incio, a comunicao era difcil, mas
medida que a relao evoluiu, ele aprendeu a compreend-la com perfeio,
quase como se ela realmente pudesse falar.
Heiten encontrou o casebre que dividiam com os Clancey vazio. Bem, em
um lugar pequeno como a aldeia Mylls seria fcil encontr-los. O leve sereno no
chegava a incomodar, tanto que muitos aldees se juntaram para o discurso de
Liana, mas Suila-ne no estava com esse grupo, nem Valek.
Ele lembrou-se do armazm onde os soldados costumavam ir para beber.
claro, como no tinha pensando nisso antes? A noiva jamais recusava uma
bebida. Porm, outra vez a busca no deu em nada.
Por acaso viram uma guerreira loira com um vestido curto de pele de
gamo? perguntou ele.
A acari que entrou no meio da formao inimiga? devolveu uma
amazona robusta com uma caneca de cerveja na mo. Vi ela e o namorado
entrarem na mata com uma garrafa de rum. melhor no ir atrs, devem estar
ocupados!
O comentrio disparou uma onda de gargalhadas maliciosas entre os
soldados.
Namorado?!
Aquele rapaz de cabelo vermelho. Que inveja dela, quem me dera ter um
namorado mais novo!
Captulo XXXII
Manobra Ousada
Marla lembrou o incidente que ocorrera na ltima vez em que estivera com
Kotler e decidiu se esgueirar para fora da gua.
Infelizmente, acho que no tenho energia para continuar, minha senhora.
Se me derem licena, vou cuidar dos preparativos para receber os convidados.
Enquanto a chanceler se vestia e se retirava, Acssia ajeitou os cabelos
molhados. Kotler entrou na piscina observando a noiva com curiosidade.
De olhos fechados, ela respirou fundo uma duas trs vezes e quando os
abriu novamente, o rosto exibia um sorriso enigmtico. O rei j percebera que
por trs daquele ar tranquilo escondia-se uma tempestade.
Entre esses convidados est a pessoa que ir celebrar nosso casamento?
perguntou Acssia.
Sim ele lavou a barba e os cabelos. Ela vem frente da comitiva.
Ela? Quer dizer que ser uma mulher?
Uma mulher que minhas tropas reconhecem, mesmo que seja apenas
pelo nome. Tornar a cerimnia mais legtima para eles.
Acssia pensou que essa conversa estava muito fria. Mesmo com o pacto
que fizera com Kotler, ainda no tinha controle sobre ele, uma situao que
esperava mudar, mas o noivo era uma pessoa mais difcil de decifrar.
Ele sentou-se dentro da gua com as costas na parede da piscina, estendo os
braos sobre a borda.
Quando conquistei a cidade, nos tempos de seu bisav, esse salo no
existia. disse Kotler. Garet sabe viver bem.
J que mencionou ela aproximou-se. Por que o lorde continua a
viver?
A colina onde ele abriga-se est cercada e a aldeia deve estar quase sem
recursos. uma questo de tempo at que Garet renda-se ou morra de fome.
Acssia foi para junto de Kotler e acariciou o peito musculoso. A voz dela
soou no tom mais suave que podia.
Para qu esperar para nos livrar de um problema? D ordens para que a
aldeia seja varrida do mapa.
Mobilizar tantos homens contra somente um, apenas inflaria o ego de seu
pai. Prefiro aguardar. Sou um homem paciente, parte de minha natureza
imortal.
Bem, no sou imortal, nem paciente. Acssia deixou transparecer certa
irritao. Tomei tudo que era do lorde, mas ainda no o bastante. Eu quero
que me traga a cabea de Darius Garet!
Est tentando dizer-me o que fazer? surpreendeu-se Kotler.
Lembre-se de que fala com um rei, minha cara.
E lembre-se de que se no fosse por mim, ainda estaria acampado na
lama, esperando seu corao falhar. Majestade.
Kotler a agarrou pelos cabelos. A frieza do rei havia sido perturbada.
No obrigue-me a macular seu belo rosto.
Acssia pensou em ceder, evitar o confronto com o futuro marido e tentar
adquirir o controle sobre ele de outra maneira, mas em seu intimo, teve a
impresso de que esse era um momento crucial. Sentiu que se baixasse a cabea
agora, estaria condenada a uma postura submissa, assim como no casamento
com Ruram.
No ouse me ameaar ela trincou os dentes.
As unhas de Acssia cravaramse no peito de Kotler. O rei urrou de dor e a
segurou pelo pescoo. Ela reagiu, deixando novas marcas e foi arremessada para
o meio da piscina. Os ferimentos do rei fecharam. Ele avanou furioso e agarrou
novamente as mechas platinadas, ela lhe puxou a barba.
O casal se encarou, ambos ofegantes. Kotler contemplou o rosto da mulher
que o desafiava.
Com um gesto brusco, ele puxou Acssia para si. As bocas uniram-se num
beijo intenso. Depois foram os corpos. Sons de prazer tomaram conta do salo de
banho. A ejaculao foi forte, todo o corpo dela se agitou com o orgasmo.
Ele sentou-se no fundo da piscina ao lado dela, que se deixava boiar na
superfcie da gua.
Est sangrando, Solomon. Acssia limpou o fio vermelho que escorria
do nariz dele.
***
Captulo XXXIII
Coragem Para Agir
Com as tarefas concludas, ele rumou para seus aposentos, onde deu de cara
com Acssia, metida naquele traje de tiras de couro e placas de metal que a
deixava seminua.
Disponho de pouco tempo, Nythan. melhor no desperdi-lo com
conversa.
Para surpresa dela, Jander hesitou.
Algum problema?
No nada Nada mesmo.
***
Captulo XXXIV
Uma Nova Vida
Ainda assim, mesmo que nada de ntimo acontecesse, ele ficou feliz por ela o ter
chamado para um passeio noturno.
Enquanto vivia com o cl dos Mi, Valek raramente pensava em Liana
Clancey. Quando o fazia, sempre a imaginava de uma forma diferente. s vezes
era uma mulher arrogante, que aparecia do nada esperando que a obedecesse.
Em outras, a via como uma figura lamentvel, que chorava sem parar e
implorava perdo por t-lo abandonado. Ele viu inmeras Lianas em sua mente e
acreditava estar preparado para qualquer coisa quando a encontrasse Menos se
apaixonar por ela.
aqui, me. Esse lugar est bom?
Antes de sarem do casebre, Liana perguntara se Valek sabia de alguma
clareira na mata, fora da vista dos aldees. Ele decidiu lev-la ao mesmo ponto
onde estivera com Suila-Ne pela primeira vez, onde jazia o tronco cado de uma
rvore.
Est timo, filho! Pode montar uma fogueira?
Com uma palavra mgica, ela fez chamas verdes surgirem, acendendo os
galhos secos. O cobertor foi estendido perto do fogo. Liana apoiou-se no rapaz
para descalar as sapatilhas.
Para essa magia, no posso estar em contato com nada material. Significa
que preciso despir-me.
Deixe-me ajud-la. disse Valek, com um brilho no olhar.
Liana confirmou com um aceno discreto. Ele tirou o vestido dela devagar,
admirando cada parte do corpo. Os seios fartos, o umbigo sensual, os pelos
ruivos, as belas coxas. Ela precisou se controlar ao sentir o hlito dele contra sua
pele.
Preciso tirar o presente que voc me deu tambm.
Liana removeu o anel de pedra azul com cuidado e o depositou na palma da
mo de Valek. Ele fechou os dedos e tocou o punho nos lbios.
Fique aqui me vigiando, sim?
Ela afastou-se sete metros e sentou sobre os joelhos na grama mida. Z luz
da lua a banhava.
Ilumine meu caminho, Grande Me!
Um fio vermelho ainda escorria do dedo indicador. Valek tomou dedo dela
gentilmente e levando-o boca, aplicou uma ligeira presso com a lngua para
que parasse de sangrar.
Pronto! disse ele. O que aconteceu, senhora?
Ela sentou-se na grama, segurando o cobertor sobre o peito.
Antes de responder, quero saber do meu anel.
A jia repousava sobre o vestido, dobrado em cima do tronco cado, bem ao
lado da espada embainhada de Valek. O rapaz o recolocou no dedo anelar da mo
esquerda da me. Ela ajeitou o cabelo ruivo e preparou-se para contar o que vira
e a deciso que tomara.
Tudo o que fiz hoje tem a ver conosco e com o nosso relacionamento.
Liana notou o interesse dele crescer. A razo de o incesto ser um pecado a
possibilidade de gerar crianas imperfeitas e at mesmo deformadas. Essas
crianas tm vidas muito difceis. melhor beber uma poo abortiva condenar
uma criana a viver assim.
Valek assentiu, sinalizando que entendeu o que ela queria dizer, embora
ainda no compreendesse qual era o ponto.
Por isso, quis ver o futuro. continuou Liana. Eu precisava saber se a
criana que carrego em meu ventre sofre de algum mal.
C-criana! Est grvida, senhora?
Liana confirmou com um aceno e um sorriso. Valek precisou de alguns
instantes para assimilar a novidade.
C-como? H q-quanto tempo?
Eu pude sentir uma nova vida se formar dentro de mim um dia aps
deixarmos Ilrdia, cerca de um ms atrs.
A senhora conseguiu ver nosso beb?
Os olhos de Liana ficaram cheios de gua.
Vi uma menina linda! Tinha cabelinhos da mesma cor dos nossos e era
to Perfeita! Perfeita de todas as formas! Liana enxugou uma lgrima
rebelde. Eu a quero, Valek. Vou dar luz a essa menina, mas preciso saber o
que voc pensa de ser pai to jovem.
Mirya! disse ele. No me recordo onde ouvi esse nome, mas o acho
bonito.
Mirya? Eu gosto. ela passou a mo sobre a barriga. Mirya Clancey!
Nossa filha!
Valek tambm tocou o ventre de Liana, encantado com a ideia de ter uma
filha com sua amada.
Ele se inclinou para beij-la e foi correspondido. Os lbios permaneceram
unidos por muito tempo. Ela entregou-se por completo quele sentimento. No
temia mais nada, muito em parte por saber como o beb seria, mas tambm por
conta da ltima coisa que viu antes de perder a conscincia. Por que temer se
aquele era seu destino?
Valek desenrolou o cobertor, expondo o corpo nu de Liana. O desejo tomou
conta dele, tirou as botas depressa e deitou no cobertor afoito.
Calma brincou ela. Devagar, no tenha pressa.
Liana ajudou-o a tirar a camisa, beijando o peito atltico. Tirou a cala dele.
Ver o pnis duro a excitou. Ela sentou no cobertor com o ombro e a lateral do
quadril encostadas no corpo de Valek, as pontas dos dedos tocaram o membro de
leve, depois comeou a mov-los com mais confiana. Tinha esse desejo desde
que o vira se tocando. Podia sentir todo o corpo do filho vibrando. A mo, o
antebrao e a barriga dela ficaram molhados com o gozo do rapaz.
Trocaram sorrisos cmplices.
Valek pensou que jamais se cansaria de beijar aquela boca ou tocar aquela
pele macia. Retribuiu o toque acariciando os seios macios e brincando com os
mamilos rijos, primeiro com os dedos, depois com a ponta da lngua e, por fim,
com os lbios. Arrepiada, ela arqueou as costas, estufando o peito como se
pedisse mais. A mo dele passeou devagar pelo corpo feminino buscando o ponto
mais sensvel da me. O orgasmo logo veio.
Liana deitou, puxando-o sobre si. Quando se juntaram, sentiram que no
apenas os corpos tornavam-se um s. Uma ligao muito mais profunda os uniu.
Amaram-se sem receios. Alcanaram o clmax juntos uma vez e outra e ainda
mais uma.
Aps o ato, permaneceram juntos sob a luz da lua cheia, aquecidos pela
chama mgica da fogueira.
Captulo XXXV
Tormenta
Suila-Ne arregalou os olhos diante da acusao. Ento era sobre isso que se
tratava? Ela tocou o brao dele com ar arrependido, depois colocou a mo sobre o
corao do noivo e sobre o prprio. Heiten sabia que esse era o jeito dela de dizer
que o amava.
Tambm amo voc disse ele. E posso esquecer o que aconteceu,
mas tem de ficar comigo nisso.
Suila-Ne olhou bem dentro dos olhos do noivo. Ela podia ouvir uma voz em
seu interior, mas no a dele. Era a voz da me repetindo as palavras que disse na
ltima vez que se viram.
Lara-Ne era uma mulher forte, que prezava a honra acima de tudo.
Acreditava que um acari sem honra era como uma lmina cega. O marido
morrera em batalha contra os Mi durante as Guerras dos Cls, deixando-a com
trs meninos para criar. Ela no se casou novamente, mas teve casos lhe
trouxeram sua nica menina e outro menino, Tailo-Ne.
Suila-Ne, que nascera com a lngua morta, era muito apegada ao irmo
caula, j que os mais velhos preferiam a companhia uns dos outros. Foi um
choque quando, durante uma caada, Tailo-Ne caiu e bateu a cabea em uma
pedra, vindo a falecer. Uma semana mais tarde, ela acordou antes do sol nascer e
juntou as coisas para ir embora, mas se deparou com Lara-Ne parada na porta. A
me, porm, no tentou impedi-la.
Viva ou morta disse, abraando a filha. Volte com honra!
Essas lembranas passaram como um raio pela mente de Suila-Ne,
enquanto o noivo aguardava uma resposta que, para ela, no existia. A honra
acari valorizava os companheiros, mas jamais conseguiria ficar contra o homem
que amava.
Heiten sentiu o corao partir ao v-la se afastar. Ela correu para longe dele
e dos Clancey, mergulhando na noite e na chuva que comeava a cair.
Suila! Heiten a chamou, mas era tarde.
Ela fez uma escolha disse Garet. E no escolheu voc.
Nesse instante, um dos vigias chegou correndo como se fugisse da morte.
Lorde Garet! Lorde Garet, emergncia! o vigia parou diante da casa,
ofegante. Kotler e seus homens arf Subindo a colina arf Mataram os
vigias dos dois primeiros postos antes do alarme ser soado
Quantos?
Duas arf legies!
Que o Pai Sagrado nos proteja! Soem o alarme!
O chifre feito de osso de mamute foi soprado. O alerta soou como um
lamento e, por um instante, superou o som da chuva e dos troves. Garet segurou
Heiten pelos ombros.
Tenha coragem, porque esse o momento crucial! a urgncia na voz do
lorde mostrava a gravidade da situao. Os Clancey no suspeitaro de nada se
os abordar sozinho. Encontre-os e traga-os para c sem demora.
Heiten apertou o passo na direo da mata enquanto toda a aldeia
despertava. A chuva ganhou intensidade, caindo ruidosamente. Cada passo dele
espirrava gua, o rosto e as roupas logo ficaram encharcados. Parte dele
questionava se esse era mesmo o caminho certo, mas evitou pensar no assunto e
afinal, no devia nada aos Clancey, alm de problemas.
Viu um par de vultos vermelhos e os chamou, fazendo uma concha com as
mos.
Liana! Valek!
Aqui, Heiten!
O guerreiro de cabea raspada aproximou-se.
Qual a situao? perguntou Valek.
O Rei Desmorto est vindo frente de dois mil homens!
O que faremos? a sacerdotisa ficou apreensiva.
Meu pai reuniu a tropa. Vamos!
Heiten deixou que Valek passasse. V-lo to perto, acabou com as dvidas.
Ps a mo no ombro do rapaz ruivo e quando este se virou, teve o rosto atingido
por um soco.
Pego com a guarda baixa, ele perdeu o equilbrio. Conseguiu se apoiar na
queda, mas recebeu um chute na barriga que o derrubou de costas sobre o solo
encharcado.
Filho!
Captulo XXXVI
Reunio
Como pode dizer algo to cruel, senhor Baltus? Pensei que era meu
amigo.
So as mazelas da vida, minha doce jovem! Lamento t-la usado, mas
devo dizer que se revelou uma pea deveras obediente. Trouxe-me precisamente
aonde eu desejava: presena de Natsvaerd.
Liana agarrou a espada com ambas as mos e a segurou firme junto ao
corpo. Como o feiticeiro conhecia aquele nome? Troves iluminaram a noite.
Vamos, revele-se a mim prosseguiu ele. Aguardo este momento h
mil anos, no me faa esperar mais!
A forma humana de Natsvaerd apareceu diante de todos.
Prolonguei vossa espera por ansiar e temer esta reunio em igual medida,
Yanis.
Liana deixou escapar uma exclamao de surpresa. Estudando a aparncia
de Baltus, questionou-se como nunca percebera. De fato, o cabelo ruivo havia
perdido a cor e o rosto, outrora jovem, estava marcado por linhas de expresso,
mas ainda assim a semelhana do feiticeiro com o druida que ela viu nas
memrias de Natsvaerd era inegvel.
Se voc mesmo Yanis, significa que disse a sacerdotisa.
Que conto mais de mil anos e que tu descende de mim, Liana. Bem como
Valek e como a vida que sinto em teu ventre.
Ela recuou instintivamente.
Ento porque enviou as Harpias Reais para nos matar?
No fostes os primeiros. Natsvaerd antecipou a resposta. Ao longo
dos sculos, o vi cruzar o caminho de nossa descendncia inmeras vezes sob
diversas alcunhas, causando-lhes dano e at tirando-lhes a vida. Em que
pensavas, Yanis?
Embora no compreendesse tudo que se passava, Sarissa mantinha-se
atenta. Chegou a pensar em fugir dali e procurar o pai, porm refreou o impulso.
Se a aldeia estava sob ataque s iria atrapalhar, obrigando-o a se preocupar com
a segurana dela. Por mais que fosse duro admitir, ningum precisava de sua
ajuda.
Captulo XXXVII
Viver Para Lutar
significado do gesto, mas estava curiosa com o sujeito cado. O ouvira dizer pai
e, olhando bem, era possvel notar que possua certa semelhana com Garet.
Sadem nossos novos irmos de armas!
Os soldados vibraram. Dois deles ampararam Heiten para lev-lo para fora
da aldeia onde pudesse ser tratado, Suila-Ne os acompanhou para ter certeza de
que manteriam o acordo. Quando o olhar dela cruzou com o do noivo, a alegria
dera lugar a uma raiva indizvel.
Suila-Ne conformou-se. O que mais poderia esperar? Fora infiel, lhe dera as
costas e agora deixara seu pai nas mos dos inimigos, destruindo os sonhos que
Heiten alimentava de ter uma famlia. Ficaria por perto apenas at ter certeza de
que ele estava bem e depois partiria. A relao estava acabada.
A tropa de Marla ainda comemorava e no eram os nicos.
Sem mais inimigos para combater, os soldados formaram um grande
crculo em torno do Rei Desmorto. Vibravam a cada vez em que ele derrubava o
tolo rapaz ruivo, que insistia em levantar de novo.
A lmina de Valek investiu pelos flancos sem conseguir atravessar a defesa
de Kotler. O machado desenhou um arco descendente, forando a espada para
baixo e depois moveu-se para cima na direo do maxilar do jovem. O rapaz
recuou a tempo de escapar de um golpe fatal, mas no conseguiu evitar receber
um corte acima da orelha.
Mesmo debaixo de chuva, as mechas ruivas ficaram empapadas de sangue.
O Rei Desmorto ergueu os braos, o furor se espalhou entre os soldados. O corpo
de Valek protestou. Os msculos ardiam, sangue escorria pelo canto da boca e
agora, um corte na cabea. Porm, a dor da humilhao era pior. Kotler j
poderia t-lo ferido de morte se quisesse, mas preferia brincar, fornecendo um
espetculo para seus homens.
O rapaz olhou ao redor e constatou que mesmo que derrotasse Kotler, seria
impossvel passar por tantos inimigos. Esse era por certo, o seu fim. Pois bem,
iria assegurar uma despedida memorvel.
Dezenas de raios caram nas imediaes da aldeia, o local da luta foi
iluminado. Os relmpagos e a chuva cessaram de repente, causando espanto no
rei e nos demais.
O que sucedeu-se contigo, Baltus? murmurou Kotler.
Captulo XXXVIII
Nossa Justia
O peito de Valek ficou apertado ao ver Liana ser trazida como prisioneira.
Quando ela foi ao cho, a preocupao misturou-se a um sentimento de raiva e
temor de que a tivessem machucado. Ao ampar-la, constatou que no estava
ferida, mas tinha sinais de esgotamento fsico. O esforo combinado de usar o
dom da premonio e dissipar a tempestade mgica criada por Baltus a deixara
perto do limite.
Como est, senhora?
Liana lanou os braos ao redor da nuca do filho. Ele a abraou e a ajudou a
sentar-se.
Cubra bem os olhos quando eu tocar seu brao sussurrou ela, com a
boca colada no ouvido do rapaz. Ter que me puxar pela mo.
Ele fez um ligeiro sinal positivo com a cabea e, sem perguntar maiores
detalhes do plano, comeou a estudar o cenrio. Ao lado deles, um Garet ferido
jazia na grama sob os cuidados de Sarissa. O Rei Desmorto era celebrado por
Marla e por um sem fim de soldados ao redor. O rapaz ruivo terminou de
examinar o ambiente em busca de qualquer coisa que facilitasse a fuga Nada.
Suas esperanas foram depositadas na magia de Liana.
Kotler fez sinal a seus homens e tomou a palavra, projetando a voz para que
todos ouvissem.
O Mundo Antigo um lugar comandado pela fora! Um mundo onde os
fracos morrem e os fortes prevalecem E ns somos os mais fortes! ele
esperou a vibrao diminuir antes de prosseguir. Eis nossos inimigos,
derrotados e humilhados, esperando nossa justia! A questo agora por onde
comear
O rei se aproximou de Valek e da me.
Liana Clancey, a favorita da sumo-sacerdotisa Tssia Moonay. Recordome de t-la conhecido em um de meus banquetes anuais h cerca de uma dcada.
Na ocasio, sua beleza e inteligncia impressionaram-me muito. Seu mal foi ter
nascido na pobreza, reis duelariam por sua mo se fosse nobre.
E seu mal ter se apaixonado pelo som da prpria voz. retrucou ela.
Cuidado, sacerdotisa! Tenho pacincia com muitos desvios de conduta,
menos com o desrespeito.
Valek estreitou o abrao em torno da me, posicionado entre ela e Kotler.
Valek Clancey, o garoto de cabelos flamejantes, o predestinado a
reclamar minha cabea o tom sarcstico provocou gargalhadas desdenhosas
nos soldados. Um guerreiro feroz, reconheo, mas a ferocidade sem controle o
rebaixa ao nvel de um animal selvagem.
Kotler caminhou para perto de Garet. Com dificuldade e a ajuda de Sarissa,
o lorde conseguiu apoiou-se num dos joelhos. O ferimento na barriga continuava
a verter sangue.
Darius Garet, um homem de tal modo obcecado com a nobreza que
deixou-se cegar pela arrogncia.
No disse uma vez cada palavra do lorde exigia um esforo. Que
me tinha em alta conta?
E verdade, lamento profundamente que encontre seu fim de forma to
indigna, no meio da lama.
Em seguida, Kotler dirigiu o olhar para Sarissa. Um calafrio subiu pela
espinha da jovem. O que o Rei Desmorto teria a dizer a seu respeito?
Sarissa Garet Irrelevante.
C-como? O q-que irrelevante?
voc, minha cara. Em nossa breve convivncia pude ver perfeitamente
que somente a filha mimada de uma casa nobre, nada mais. Reconheo que vla atacar Acssia com uma faca foi inesperado, mas pareceu-me apenas um gesto
de paixo desenfreada. O repetiria se fosse preciso?
Sarissa no conseguiu responder. Lgrimas rolaram pelo rosto. Ela prpria
no sabia dizer se a facada foi um ato consciente ou acidental.
Captulo XXXIX
Para Mazilev
No fundo, a moa ficou feliz por isso. Tinha dvidas sobre como reagiria se a
irm demonstrasse qualquer tipo de arrependimento, mas diante dessa atitude,
no lhe devia mais nada.
Decida o destino de Sarissa por mim, no consigo faz-lo. disse Acssia
Kotler. S peo que no lhe tire a vida.
Impaciente, ele declarou a primeira coisa que veio mente.
Para Mazilev com os Clancey!
O casal real afastou-se, os prisioneiros foram levados para a torre do
castelo. Mesmo depois de uma noite to agitada, o casamento no foi adiado e
deu-se no fim da tarde seguinte no palanque sobre o ptio lotado.
Com o punhal ritualstico, Tssia fez um pequeno corte na palma da mo
esquerda de Acssia e outro na mo direita de Kotler. O casal entrelaou os
dedos, a sumo-sacerdotisa pronunciou uma beno e estavam casados.
Terminada a cerimnia, uma festa regada a msica, bebida e sexo teve
incio. Tssia apressou-se em reunir as sacerdotisas em um s quarto, proibindoas de sair at segunda ordem, principalmente as mais jovens. No queria que
nenhuma delas tomasse parte na celebrao, que comeou no ptio do castelo e
logo se espalhou pela cidade, abarrotada com a populao local e os cem mil
homens de Kotler. A celebrao prolongou-se noite afora e mesmo quando o sol
nasceu, parecia longe de terminar. Por trs dias, Londinium foi palco de uma
orgia generalizada.
Apenas alguns sons da festa alcanavam a cela no alto da torre. Sentada
sobre uma cama de palha mofada, Sarissa ficou contente por no precisar
testemunhar o que se passava. Uma profunda apatia se abatera sobre ela, de
modo que sua atual situao no a perturbava. Era como se observasse outra
pessoa de fora e no a si mesma.
Liana ocupava-se com os cuidados do ferimento de Valek, tiras cortadas da
camisa dele serviam como ataduras. No resto do tempo, a sacerdotisa ficava de
p junto s barras de ferro, olhando para algum ponto distante no corredor.
Tinha dificuldade em processar o que havia acontecido e por vezes imaginava que
tudo era apenas um pesadelo do qual acordaria a qualquer momento. Falara
pouco nos ltimos dias e evitava dirigir-se Sarissa. No ficava vontade com a
moa, por ela ter visto o que se passara.
Valek permanecia quieto, ainda fraco pela hemorragia que a perda da mo
esquerda causara. O rapaz jamais se perdoaria por ter fracassado mais uma vez
em passos apressados ganharam o corredor, passos bem mais leves que os dos
guardas. Tssia apareceu afoita.
Liana!
Como voc? a sacerdotisa ruiva ficou espantada.
Hipnotizei o guarda e peguei isto!
Tssia exibiu um molho de chaves. Os primeiros testes no deram em nada,
mas quando uma das chaves serviu e a porta foi aberta, os prisioneiros
encheram-se de nimo com o vislumbre da liberdade. Liana abraou a amiga.
Que bom que est aqui!
Ora, Liana, voc Tssia percebeu a presena de outra vida. Voc
est grvida!
Conversem depois! atalhou Valek.
As amigas concordaram, mas antes que pudessem avanar, perceberam a
aproximao de um grupo. Atrs, o corredor terminava em um beco sem sada a
poucos metros dali. A nica opo seria enfrentar quem quer que aparecesse.
Vrios soldados de Lestonor surgiram e o feiticeiro Baltus vinha com eles.
Voc!!!
Tssia adiantou-se com a mo estendida. Quis conjurar uma magia de
ataque, mas se conteve. O feiticeiro era poderoso demais para ela e outra tragdia
como a que vitimou sua me poderia acontecer.
Alegra-me ver que te preocupa com a liberdade de Liana Clancey, sumosacerdotisa Moonay. Tenho uma oferta direcionada para este exato assunto.
Ento fale logo, Yanis! retrucou Liana.
Como?! surpreendeu-se Valek. Esse homem Yanis?
O prprio!
Agora que ns acalmamos disse Baltus. Me permitam apresentarlhes uma proposta. Adquiri certo interesse em teu bem-estar, Liana, aps tomar
conhecimento de tua condio. De fato, estou pronto a aceit-la como minha
aprendiza.
Quer dizer prisioneira.
Seria mantida como cativa, verdade, mas tal destino nem se compara a
ser enviada para as masmorras, onde tua gestao no vingaria.
Por curiosidade, como conseguiu permisso do rei para isso?
A ressaca abafa o desejo de discutir! riu-se o feiticeiro.
Continuando A condio para esse acordo que Tssia Moonay no volte para
a Ordem de Lunna, mas permanea como autoridade religiosa em Londinium,
onde rebeldias como o ataque contra minha pessoa noites atrs possam ser
vigiadas de perto.
Se pensa que vou aceitar essa proposta absurda, minha resposta
Sim! interrompeu Valek.
Tambm aceito a condio! emendou Tssia.
Sei que no da minha conta, senhora Clancey disse Sarissa. Mas
se est grvida, deve pensar em concordar.
Liana sentiu-se acuada, mas no quis ceder, mesmo diante da insistncia de
seus companheiros.
Esto loucos?! disse, por fim. Valek, o que Yanis quer colocar as
mos em nossa filha!
Mas no vai conseguir, vai? ele tomou as mos dela entre a sua.
Senhora, durante nossa viagem ficamos sempre pensando em quando e como
entraramos na guerra e esse foi nosso erro, no perceber que estvamos em
guerra desde o incio. E ainda estamos, mas agora nossas batalhas sero
diferentes.
Liana engoliu seco. Ela afastou-se de Valek sem beijos ou despedidas. Mais
uma vez, a sacerdotisa se agarrou a viso de que o filho estaria com ela durante o
parto. Ele assentiu com a cabea. Os guardas levaram Sarissa, que no resistiu. O
rapaz se recusou a ser conduzido e caminhou por conta prpria.
***
REMINISCNCIAS
Quarto Fragmento
Sobre o que mais posso falar? H tantas outras coisas que eu gostaria de
contar. Minha infncia e minhas viagens Meus romances e meus filhos.
Entretanto, nada direi a esse respeito. Meu objetivo quando comecei este
projeto era relatar a saga de minha famlia de maneira isenta e ningum
isento quando se trata da prpria vida. Por essa razo melhor que outra
pessoa coloque meus feitos no papel.
Esta nossa ltima conversa franca e direta, meu leitor. Entregarei a
pena ao escriba para narrar o final deste conto. Sem assuntos pendentes,
poderei ir tranquila para a batalha vindoura.
Deixo-lhe agora, meu leitor, com a histria de como Valek e Liana
alcanaram seus destinos e trouxeram uma nova Era para o Mundo Antigo!
Captulo XL
Infelizes
Dor. O impacto contra o cho duro fez as costas doerem. O zumbido nos
ouvidos de Valek abafou qualquer outro som. Tudo era escurido ao seu redor,
exceto pela abertura do fosso, um buraco na sombra por onde penetrava uma luz
parca que mal alcanava o fundo, por onde a densa fumaa amarela escapava. A
queda tinha o tamanho exato para machucar sem matar.
O rapaz sentiu as parcas foras esvarem-se. O pouco sangue que lhe restava
escorria pelo corte no ventre. Ele levou as mos ao ferimento apenas para se
recordar que a esquerda no estava mais l. A dor nas costas se intensificou ao
tentar erguer o corpo, pelos menos duas costelas estavam quebradas. Valek
comeou a sentir o calor ir embora aos poucos, dando lugar ao frio. Isso
significava que o fim se aproximava.
Precisava estancar o sangramento ou morreria de hemorragia em minutos,
mas sentia-se to fraco e cansado que s queria ficar ali deitado at o sono
chegar
Se meteu em confuso de novo, Valek? ele ouviu a voz de Blie-Mi.
Desculpe, me eu no queria que as coisas fossem assim
Sempre diz isso toda vez que entra em uma briga. Est machucado?
Estou acho que logo vamos nos encontrar
Nunca abaixe a guarda, garoto! gritou Goro-Mi. s o que o
inimigo espera!
O zumbido nos ouvidos desapareceu, Valek tornou-se consciente do que
acontecia. Uma dezena de outros prisioneiros estava sobre ele. Rostos imundos
emergiam da escurido quase total, dedos esquelticos tentavam agarr-lo com
unhas compridas, sorrisos desdentados se abriam em meio a gemidos
inarticulados.
Pega Come diziam os poucos que se lembravam como falar.
fumaa amarela deveria ser a garantia de que estariam prontos para a prxima
sesso.
Valek respirou procurou se acalmar. Precisava colocar as ideias em ordem,
alm de dar tempo para que os olhos claros se acostumassem ao escuro.
O fosso era basicamente um imenso buraco escavado na rocha. A cmara
era bem maior do que poderia imaginar, a quantidade de prisioneiros tambm.
Homens jovens, na maioria, embora no fosse difcil encontrar mulheres e
velhos. Caminhavam livremente a passos trpegos, alguns vestiam farrapos que
h muito haviam deixado de ser roupas, outros no tinham nada para cobrir os
corpos imundos.
Valek viu dois grupos inclinados no solo. dentadas, arrancavam nacos de
carne de um par de massas disformes. Um calafrio lhe subiu pela espinha ao
notar, pelos pedaos de tecido, que os prisioneiros se banqueteavam dos soldados
que derrubara do alto da passarela. Mesmo ele, que no se impressionava com
facilidade, ficou aturdido. O rapaz sacudiu a cabea, tinha de ser prtico para
manter a mente focada. Mais tarde daria um jeito de recuperar as espadas dos
soldados, por hora, prosseguiria com o estudo do ambiente.
Havia um segundo piso, o qual podia ser alcanado subindo um leve aclive.
Acima desse ponto, as paredes tornavam-se verticais. Escalar no parecia
impossvel, porm, seria um esforo intil. A entrada do fosso ficava no centro do
teto, longe das paredes.
Morcegos dormiam pendurados no alto da cmara. Valek pensou que
poderia alimentar-se deles se preciso, ou dos ratos que infestavam o lugar. No
era uma perspectiva animadora, mas soava melhor do que recorrer ao
canibalismo.
Ele ouviu o som de gua em algum lugar da caverna e o seguiu. Muitos
prisioneiros o olhavam com curiosidade, outros pareciam t-lo esquecido por
completo. Uma jovem passou correndo em meio a risos histricos, um homem
mantinha-se esttico no meio da caverna, uma figura mais distante permanecia
sentada sobre as pernas balanando a cabea e o tronco para frente e para trs.
Mas nem todos eram insanos, Valek podia sentir olhares conscientes, atrs de
semblantes carregados.
No extremo da caverna, ele encontrou um fio de gua caindo do teto, com o
volume semelhante ao de uma bica. Quando criana, o ensinaram que nas
cavernas as rochas agiam como um excelente filtro, portanto, podia beber sem
receio. E ele o fez avidamente, depois entrou embaixo do fluxo, deixando-a cair
sobre o cabelo ruivo. Com gua boa, poderia sobreviver naquele lugar, o que
podia ser tanto uma beno, quanto uma maldio.
Capaz de enxergar melhor, Valek deu-se conta de que o fosso no era uma
priso e sim uma cmara de tortura prolongada. O que mais poderia ser se no
uma forma de intimidar os inimigos que no temiam tombar no campo de
batalha? Para esses, o fosso servia para lembrar de que existiam destinos piores
que a morte. O nico consolo que lhe restava residia no fato de Liana e o beb
terem escapado desse pesadelo.
Clancey? Valek Clancey?!
Ele voltou-se para um ponto no segundo piso, um vulto fugia em meio aos
demais prisioneiros.
Ei, voc! Espere!
Mais do que depressa, Valek subiu o aclive sem ter ideia de quem poderia
t-lo reconhecido num lugar como esse. O vulto escondeu-se numa estreita
fissura na parede da caverna. O rapaz animou-se com a possibilidade de haver ali
uma rota de fuga. No entanto, se deparou com um pequeno beco sem sada onde
uma mulher se encolhia com o rosto escondido entre as mos.
A cor da pele era escura, mas manchas enormes em vermelho vivo se
espalhavam. Apenas tiras de couro cobriam o corpo esguio, que no era seco
como o dos demais prisioneiros. A cabea dela no possua cabelo algum.
Mostre-me seu rosto! ordenou Valek. Com certo esforo, ele a
reconheceu. Voc uma das Harpias Reais!
Zora como me chamo e, sim, fui uma das Harpias. disse ela sem
coragem de encar-lo diretamente. Isso foi o que restou de mim depois que
sua me atirou-me em uma casa em chamas.
Pensei que todas as Harpias estavam mortas.
As outras esto, fui a nica a sobreviver ao nosso confronto.
Disso me lembro bem, foi quando vocs mataram Blie-Mi!
S cumprimos as ordens de Baltus!
Acha que isso muda alguma coisa? disse ele, entre os dentes. Ela
morreu pela mo das Harpias!
Captulo XLI
Gestao
***
A disputa, porm, logo chegou ao fim. medida que a barriga de Liana comeou
a crescer, os olhares que atraa diminuram.
O ms seguinte marcou o incio da primavera e a dispensa das roupas de
frio. Acssia viajou Mazilev para ser apresentada como rainha de Lestonor na
capital. Aproveitando esse intervalo, Tssia comeou a levantar aos poucos o tom
dos sermes, a sondar a cidade em busca de possveis aliados. Ela descobriu que
muitos dos que estavam no calabouo embaixo do castelo eram soldados que
haviam lutado ao lado de Garet, talvez pudessem ser convencidos a lutar com
elas. Liana no podia fazer muito sob a vigilncia de Baltus, mas aprendeu
algumas magia que desconhecia, embora se recusasse a auxiliar nos
experimentos do feiticeiro.
Sessenta dias foi o tempo que durou a viagem de Acssia. Ao retornar, a
barriga proiminente de Liana acabou com a necessidade de desdenh-la, assim
passou a simplesmente ignor-la.
No oitavo ms da gestao, um mensageiro anunciou o retorno de Kotler
para comemorar o centsimo ano de reinado com um grandioso banquete. A essa
altura, metade do territrio de Ancestria estava sob o jugo do Rei Desmorto. Ao
saber da notcia, Liana e Tssia reuniram-se novamente.
Chegou a hora!
Sei que essa vai ser a melhor oportunidade, Liana, mas estou
preocupada. Nosso exrcito ser composto de presos mal-nutridos.
Reconheo que o plano frgil. Teremos de depositar nossas esperanas
em Valek. Como ele est? perguntou com ansiedade.
Lamento, mas no consegui alcan-lo. Sabe como difcil trazer algum
sem magia para dentro de um Sonho Compartilhado.
Precisa falar com ele! Cabe a vocs cuidar de tudo daqui em diante. No
deve me visitar novamente, Tssia.
Fala como se no fosse mais tomar parte nos planos.
Liana respirou fundo e sentou-se na beirada da cama. Em parte por ser um
assunto delicado, em parte por ter se cansado de ficar em p com uma barriga de
oito meses.
Precisa me expulsar da Ordem.
Captulo LII
Sua Espera
Algo estava errado e Valek sabia o qu. A luz do dia no aquecia como
deveria, o cheiro da grama molhada era diferente do esperado, mo esquerda
retornara como se jamais tivesse sido cortada fora. Um sonho. Mas no um
sonho comum.
Quem est a?
Uma mulher emergiu das brumas.
Valek?! Graas a Lunna! Lembra-se de mim?
Lembro-me que a amiga da minha me, a sumo-sacerdotisa Moonay. E
isso um Sonho Compartilhado.
Me chame de Tssia. Est certo sobre o sonho, mas no foi esse o lugar
que!
A sacerdotisa engoliu o ar. Valek virou-se acompanhando a direo do olhar
e viu Ilrdia, o reino perdido dos druidas no horizonte, ao redor da colossal
Yggdrasil! quela distncia, os contornos da gigantesca rvore fundiam-se com o
azul do cu. Bem mais perto, encontrava-se Natsvaerd, em seu manto verde, com
os cabelos dourados ao vento.
Ento foi voc quem
Sem se virar, ela fez um gesto para que esperassem. A brisa vinda de Ilrdia
tornou-se mais forte. Em torno da cidade, o vento soprou com tamanha
intensidade, que o fluxo de ar ficou visvel graas ao p levantado. A ventania
ganhou mais e mais fora, acelerando sem parar, envolvendo toda a cidade em
um turbilho.
Uma nova lufada de ar fez Valek apertar os olhos e se encolher. O vento
cessou de uma vez. Quando isso aconteceu, a Yggdrasil e a cidade-reino haviam
desaparecido.
por uma fivela circular dourada. A aparncia era outra, mas ao menor toque
podia sentir a energia da pea.
o Manto das Sombras de Zora. O ltimo Manto das Sombras!
rapidamente, ele ps a capa sobre os ombros. Com isso podemos ir a qualquer
lugar!
Sarissa aproximou-se com uma curiosidade infantil. Os guardas do corredor
j tentavam forar a porta escorada. Sem tempo a perder, Valek envolveu Sarissa
pela cintura e a puxou para perto de si. Ela debateu-se em esforos dbeis que ele
ignorou.
Zora lhe contara que o segredo para utilizar o Manto era pensar com todas
as foras em uma pessoa conhecida ou um lugar familiar. Ele cobriu a cabea
com o capuz, de imediato sentiu uma fora irresistvel pux-los para longe. O ar
ficou pesado e espesso como um rio de guas caudalosas. Via apenas os vultos da
paisagem sem cor. Sarissa apertou-se a ele, apavorada.
A viagem estendeu-se por horas. A fora os soltou de repente, desabaram
sobre um cho de granito. No limite de suas foras, Valek viu uma dzia de rostos
femininos atnitos inclinados sobre ele. O de Tssia se destacava entre os
demais.
Estavam me esperando? e ele perdeu a conscincia.
Captulo XLIII
Ceros
***
Pela posio da Lua, Valek calculou que faltava pouco para amanhecer. Ele
pensou que seria bom estar ao ar livre aps meses de confinamento, mas ao
contrrio, sentia-se um pouco intimidado com o espao aberto na clareira
prxima do lugar onde ficava a aldeia Mylls. O som estridente das cigarras, bem
como o piar das corujas soavam familiares e estranhos ao mesmo tempo. Sarissa
cruzou os braos sobre o peito de forma protetora, manteve a cabea coberta pelo
capuz da capa que vestira antes de deixarem o templo.
Ele descobriu o capuz do Manto das Sombras, uma sensao que h muito
no sentia o alcanou.
Tire o capuz para sentir a brisa da primavera, Sarissa.
A moa o fez. O vento suave acariciou ambos os rostos, renovando os
nimos. De repente, a clareira no parecia to intimidadora. Ela indicou uma
uma cidade abandonada pela deteriorao das casas. Nas sarjetas, gua suja de
dejetos empesteava o ar. Quando enfim, se depararam com uma mulher
equilibrando uma bacia, esta persignou-se e passou depressa por eles. As poucas
pessoas nas os evitaram, chegavam at a mudar de rumo.
Esto com medo de ns? indagou Sarissa.
Talvez pensem que somos uma viso.
A torre do sino do templo destacava-se adiante, nos arredores da grande
praa comercial. O local parecia deserto para quem o tivesse visto outrora,
quando fervilhava de gente. Soldados que deveriam vigiar o lugar, causavam
distrbio em algumas barracas. A tenso causada pela presena deles era
palpvel.
No centro da praa, Sarissa viu algo que a deixou em choque. Trs
cadveres pendurados em forcas e um quarto lao espera do prximo
condenado. Ela deu-se conta de aquilo era obra de sua irm. O governo de
Acssia transformara a cidade por completo.
Uma comoo os tirou do estupor. Valek puxou a moa pelo brao,
escondendo-se atrs da quina de uma casa. O som de cavalos vinha descendo a
rua, acompanhado de uma voz familiar.
Afastem-se das ruas! Dem espao para lorde Garet!
Captulo XLIV
Sacrifcios Maiores
ver se ele estava bem, enquanto que na entrada do templo, as jovens amparavam
Tssia para que no desmaiasse.
O que vamos fazer com esse? uma delas chutava Edan, cado.
***
Captulo XLV
Vitrias rduas
adversrios altura. Ela olhou em volta e deu-se conta de Marla ser a nica
pessoa de quem era prxima. Uma pessoa ocupada demais para aprender o
significado de todos os seus gestos.
Sinto falta dos meus amigos, pensou. Tinha saudade do vozeiro de Kal,
das canes de Ramue e at mesmo de Liana, com quem pouco conversara.
Sentia falta do mau-humor de Valek e do tempo em que foram amantes. E
Heiten No!, havia sido to difcil esquec-lo que no se permitia pensar nele.
Ela sacudiu a cabea para afastar aqueles pensamentos e conseguiu ouvir Marla
terminando de falar sobre escolher uma menina como serva.
Embora se dissesse que as duas dividiam a mesma barraca, a chanceler
dormia na tenda do rei quase todas as noites.
preciso de algum para organizar meus pertences. E se for bonita, tanto
melhor, no concorda?
A acari balanou a cabea distrada. Marla tocou o rosto dela com a ponta
dos dedos e lhe ajeitou o cabelo atrs da orelha. No sabia por que a amante
estava chateada, mas queria anim-la e puxou seu rosto para beij-la.
Mantinham aquele relacionamento h meses. Suila-Ne correspondeu
prontamente. A lngua de uma entrou na boca da outra.
Sei como te fazer sentir melhor.
A ponta da lngua da chanceler desceu pelo queixo de Suila-Ne, percorrendo
lentamente o caminho pelo pescoo rumo ao colo. A acari deixou-se levar pelas
sensaes agradveis. Um gole a mais e teria se esquecido que estavam vista de
todos.
Est gostoso, mas precisamos voltar. disse Marla.
A tropa levou tudo que podia consigo, deixando uma fazenda em chamas
para trs. Rumaram ao acapamento que sitiava Braghtow, uma das maiores
cidades de Ancestria.
Venha comigo para a tenda do rei, Suila-Ne. Vamos deitar juntas na cama
dele.
A acari a beijou, mas preferiu declinar a proposta. Elas se separaram.
Marla foi procura de Kotler, o encontrando no stio do beemote, rodeado
de bajuladores que almejavam sua posio de chanceler. O rei bebia uma caneca
de rum com ar srio, em contraste com a alegria embriagada dos demais. Por
vezes, traziam algum prisioneiro assustado e o empurravam na direo do
Poucos dias.
hora de retornar Londinium para comemorar o centsimo ano de
meu reinado.
Quais so suas ordens, majestade? Marla afiou a mente para no se
esquecer de nada.
Partirei com um destacamento de dez legies. Como trata-se de uma
celebrao, irei acompanhado da nata dos meus guerreiros, como voc e sua
amiga acari. Os demais prosseguiro com o stio Braghtow Kotler
prosseguiu com mais uma dzia de recomendaes.
Despacharei um mensageiro para Londinium ao amanhecer, majestade.
Usaremos o falco-correio com o qual Acssia presenteou-me. o hbito
deste lado da fronteira.
A ave engaiolada na tenda do rei foi solta, levando a mensagem. O
destacamento de dez legies ps o p na estrada dois dias depois. Kotler
cavalgava o beemote na dianteira.
Marla passou a viver uma rotina agitada. Na hora de montar acampamento,
aps um longo dia de marcha, enfiava-se na barraca com Suila-Ne e logo se
ouviam os gritos de prazer da chanceler. Depois seguia para a tenda do rei, onde
se entregava a noites movimentadas e ruidosas.
A viagem melhorou a disposio de Kotler. Ele at mesmo dispensava seus
bajuladores mais cedo para se dedicar a assuntos mais prazerosos com Marla.
Passaram rapidamente por cidades j conquistadas, duas semanas se foram
depressa, restava apenas mais uma de viagem.
A essa altura, a ausncia de incidentes deixava todos vontade na hora de
dormir. Faltando seis noites para o fim da jornada, Marla dormia a sono solto,
aconchegada nos braos vigorosos de Kotler.
Os sonhos da chanceler foram interrompidos de forma abrupta. Kotler foi
despertado subitamente com um banho que a molhou tambm.
O rosto do rei recebeu um violento golpe, o agressor segurava o urino.
Marla percebeu que no era gua que tinham jogado. Antes que tivessem tempo
de reagir, o vulto ao lado do colchonete soltou o objeto e desembainhou sua
espada.
O invasor vestia uma capa de penas negras. No era outro seno Valek
Clancey.
Acorde, Kotler! Acorde e veja isto! o rapaz mostrou a mo de ferro. Um
anel pendia folgado no dedo mnimo. Apesar da parca luz do lampio foi possvel
reconhecer o formato do anel dos Garet. Se apresse ou pode no encontrar sua
rainha com vida.
Pagar por essa insolncia!
O rei saltou da cama agarrando o cabo do machado, Valek foi mais rpido e
virou a mesa no centro da tenda onde Kotler costumava estudar seus mapas. O
rapaz abrigou-se atrs do mvel por um instante, o suficiente para desaparecer
no ar.
Kotler descontrolou-se! O machado golpeou a mesa diversas vezes, a
fazendo em pedaos. Descarregada a fria, ele procurou se recompor.
Muito bem. No ouo nada suspeito do lado de fora. provvel que
Clancey tenha partido. Muito bem repetiu. Primeiro a dignidade!
Ele apanhou a jarra com gua para se lavar e despejou uma grande
quantidade sobre a cabea e o rosto.
Lave-se tambm, Gya.
A chanceler obedeceu prontamente, enxugou-se com uma toalha de rosto e
vestiu a armadura. Tudo num instante.
Mande darem o alarme. Diga aos homens que o rei escolheu as
palavras. Que recebi uma mensagem mental de Baltus alertando-me sobre
uma insurgncia em Londinium. Vamos levantar acampamento e partir
imediatamente, independente de que horas sejam! No desejo ouvir uma nica
palavra sobre este incidente.
O chifre de alarme soou. Os soldados comearam a despertar aos poucos.
Suila-Ne abriu os olhos preguiosamente, nua debaixo do cobertor. O
alarme soou novamente, ela se espreguiou para espantar o sono. Tateou no
escuro procura das roupas, mas os dedos sentiram outra coisa. Ela ergueu a
tampa do lampio, revelando a chama que fora mantida acesa. Uma pena negra
repousava sobre o vestido dobrado.
De onde isso veio?, perguntou-se. Teria algo a ver com o alarme?
Captulo XLVI
Dias Contados
Mas depois de Tssia ter lhe contado tudo que moa passou, ficou difcil ter raiva
dela.
Chegaram ao refeitrio, estranhamente vazio. O cheiro de sopa deveria ter
atrado todos at ali. Ouviram passos apressados, Edan apareceu.
Que bom que a encontrei, senhora Clancey! A sumo-sacerdotisa precisa
da sua ajuda.
O que acontece?
As alunas querem ir embora!
A notcia no pegou Liana totalmente desprevenida. Das vinte jovens que
moravam no templo, poucas podiam ser chamadas de aprendizas, e nem mesmo
essas receberam a marca de Lunna, a pequena cicatriz em forma de crescente
entre os seios. Quase todas foram enviadas por suas famlias em troca de favores,
na esperana de ficarem livres da tirania de Acssia e seus homens. Porm, o
sequestro da rainha fez do templo o pior lugar para se estar.
Conduzidas por Edan, Liana e Sarissa depararam-se com a agitao em
frente porta de acesso ao jardim, onde existia um porto que conduzia rua. As
alunas pressionavam Tssia para que as deixasse partir. Em meio confuso,
podia-se ouvir o choro de um beb nos braos de uma jovem morena.
Aqui perigoso! reclamou uma delas.
No foi o que prometeram aos meus pais! protestou outra.
Podemos proteg-las! Tssia tentou argumentar.
Escutem interveio Liana. Vocs tm razo, entendo porque esto
com medo, mas isso mesmo que querem?
Sei que no quero ser jogada ao beemote! retrucou a que parecia ser a
lder, as demais a apoiaram.
Os nimos exaltaram-se, o beb chorou com mais fora, Sarissa teve um
ataque de ansiedade e cobriu os ouvidos, Edan a amparou. A discusso foi
interrompida pelo som da mo de ferro de Valek chocando-se contra a parede.
Chega! sentenciou o rapaz. Deixem-nas ir!
Filho?
J fomos trados uma vez, senhora, no daremos a chance para que isso
se repita. Abram a porta e quem quiser partir, que v. Mas decidam com cuidado,
porque quando a porta fechar ser em definitivo. Quem estiver de fora, no
voltar e quem ficar aqui dentro, permanecer conosco at o fim!
A sugesto agradou s alunas. Liana acenou para Tssia. A sumosacerdotisa removeu o selo mgico com um gesto.
A maioria das moas precipitou-se pelo jardim rumo ao porto sem hesitar,
meia dzia saiu com passo inseguro. Apenas a jovem com o beb nos braos
permaneceu firme.
Tem certeza, Nara? perguntou Tssia. Me agradaria que ficasse, mas
quem tem mais motivos para partir.
Liana recordou-se do nome. Quando Tssia a visitava no castelo falava
sobre ela com deferncia. Disse ser uma das poucas que buscaram o templo por
vontade prpria. A jovem aparentava dezoito anos, tinha cabelo escuro e seios
cheios de leite. O beb contava poucos meses.
No h nada l fora para mim. desabafou Nara. Meu noivo, meus
pais Toda minha famlia morreu durante a invaso do Rei Desmorto. No vo
tirar minha menina tambm!
Qual o nome dela? Liana aproximou-se com um ar maternal.
Eleine.
Minha filha se chamar Mirya. Espero que elas sejam boas amigas.
Valek fitou Sarissa e Edan.
Vou ficar. disse ela, refeita.
Contem comigo. disse Edan.
A porta foi fechada. Tssia disse palavras em laer e fez um gesto. Por um
instante, a madeira ondulou como a superfcie da gua quando uma pedra
jogada. O pequeno grupo trocou olhares entre si, sob a luz que entrava pelas
janelas. Naquele momento, um pacto silencioso se forjou.
Ah, quase me esqueci! Valek tirou um anel do dedo de ferro e o
depositou na palma da mo de Sarissa.
o anel da minha irm.
Pelo que entendi, o anel dos Garet o maior smbolo de poder nessa
cidade. o rapaz fechou os dedos dela sobre a joia. Que seja usado por algum
que merece.
Obrigada
Sarissa levantou o rosto, seus olhos azuis encontraram com os olhos verdes
dele e um sentimento que vinha crescendo em seu peito aflorou por completo.
Valek sentiu as atenes voltadas para si. Imaginou que deveria dizer algo,
afinal, tudo aquilo era por sua causa.
No sou bom com palavras, mas quero que saibam que os agradeo por
ficarem. Podemos todos morrer nisso, mas pensem bem. Nosso inimigo o
homem mais poderoso do Mundo Antigo e mesmo assim no conseguiu se livrar
de ns. Muitos diriam que sonhamos com algo impossvel. Eu acredito que o fato
de ser impossvel, no quer dizer que no pode ser feito!
O rapaz viu sua prpria confiana refletida nos rostos a seu redor. Podia
sentir o calor de todos lhe dando fora. A espada embainhada vibrou
ligeiramente, a forma humana de Natsvaerd surgiu.
Belas palavras, Valek! Confio em vossa coragem e em vossos
companheiros, entrementes, sei como podeis reduzir um pouco a desigualdade
do confronto vindouro.
Estou ouvindo
***
Caiu a noite. Valek e Liana recolheram-se a seu quarto. Ela pediu ajuda para
se despir e sentou na cama. Ps-se a examinar o filho enquanto este se preparava
para deitar. Fisicamente, a recuperao dele ainda no era completa, mesmo
assim, ela permitiu-se um momento de me orgulhosa.
Voc amadureceu, Valek. disse ela, massageando o ventre. Meses
atrs, teria sacado a espada e ameaado aquelas moas.
Ficar tanto tempo em um buraco muda a perspectiva das coisas. ele
soltou os aros que prendiam a prtese.
mais que isso. Sinto a sua presena de uma forma diferente. E pareceme que aprendeu a controlar seus rompantes de fria.
Est enganada, acredite! o rapaz tirou a camisa.
Seja como for, bom saber que pode cuidar de tudo sozinho.
E por que eu estaria sozinho? ele se livrou do resto das roupas.
No nada Liana deu-se conta de ter falado mais do que devia.
Esquea e mantenha-se concentrado em sua misso.
Senhora, eu poderia ter assassinado Kotler em sua tenda enquanto
dormia, mas seria uma conquista vazia. Uma vingana s tem sentido se o
inimigo sabe quem o mata e por qual razo. O alertei para que passe os prximos
dias ciente de que o matarei por tudo que fez contra ns. Valek sentou ao lado
da me. Te contei isso para que entenda que nada me distrair do meu
objetivo. O que quer que a incomode, conte-me. Viemos longe demais para ter
segredos entre ns.
Ela suspirou. Valek era a ltima pessoa com quem deveria ter essa
conversa, mas revelar a verdade poderia ajud-lo a se preparar.
Direi de uma vez. Estou com meus dias contados!
O rapaz sentiu o cho sumir. Liana esperou alguns instantes para que ele se
recuperasse antes de continuar.
Naquela noite em que invoquei o dom da premonio, me vi dar luz e te
entregar nossa filha. Voc parecia bem, a despeito do sangue que o cobria. Mas
eu senti-me fraca e com muito frio, ento entendi o porqu. O parto ir exaurir
minhas foras e vou morrer assim que Mirya tiver nascido.
Valek saltou da cama e comeou a caminhar de um lado para o outro. A
mo tremendo nervosamente.
O qu? Eu Como? Como a senhora pode dizer uma coisa dessas com
tanta tranquilidade?
Acredito que meus filhos ficaro bem. o bastante para mim.
Para mim, no ! ele levantou a voz, mas logo se conteve e sentou ao
lado dela novamente, a mo pousou na barriga da me. No pode morrer, no
aceito! Quando tudo terminar, a senhora, Mirya e eu viveremos como uma
famlia. Merecemos ser felizes!
Liana abriu a boca para protestar, mas sentiu o beb chutar. Valek tambm
percebeu.
Est vendo?! disse ele. o que Mirya quer!
Os olhos de Liana encheram-se dgua. O que poderia dizer? Ela se
arrependeu por ter desistido to facilmente.
Uma famlia!
Os dias seguintes correram depressa em meio tenso crescente dentro e
fora do templo. Apesar do perigo, Valek e Liana puderam, enfim, passar algum
tempo como um casal. Ela desejou que a filha nascesse antes da batalha para que
pudesse ser mais til, porm, Mirya preferiu permanecer na barriga da me.
Tssia meditava constantemente para expandir sua conscincia, na
tentativa de sentir a aproximao do Rei Desmorto e sua tropa. Repetia o
exerccio vrias vezes por dia, at que em um fim de tarde, identificou os sinais
de milhares de soldados. Toda aquela gente deixava um trao que podia perceber
sem dificuldade.
Kotler e suas foras se aproximam disse a todos. Tudo terminar
essa noite!
Captulo XLVII
Um Quarto de Hora
Acssia apareceu por uma porta lateral. Caminhava por contra prpria
frente da escolta, de queixo erguido e peito estufado. Adivinhou que o banco
posicionado de frente para a entrada fora destinado para si e ajeitou-se como se
estivesse em seu trono, assumindo uma postura imponente e, ao mesmo tempo,
sensual.
Devemos amarr-la? questionou Edan.
Ser desnecessrio. foi a prpria Acssia quem respondeu. No
pretendo ir a lugar nenhum. Desejo ter uma posio privilegiada para v-los
morrer.
Ela ajeitou a bota, sentindo a ponta do caco de cermica escondido
machucar a pele. Tratava-se de um pedao do prato que partira dias atrs e que
pretendia usar como arma na primeira oportunidade.
Passados alguns minutos, todos ouviram um baque surdo vindo do jardim,
depois um segundo rudo idntico e um terceiro, seguido por outros.
Vou ver o que !
Edan correu para um dos quartos e ficou chocado com o que viu pela janela.
Cabeas de mulheres estavam sendo jogadas dentro do jardim. Ele reconheceu os
rostos. Eram as alunas que haviam deixado o templo dias atrs. Uma a uma,
dezenove cabeas decapitadas foram arremessadas sobre o muro.
Na praa, Heiten tomou posio e Baltus colocou a mo em suas costas na
altura dos pulmes. Um feitio simples faria a voz do lorde ecoar pelo centro de
Londinium.
Clancey! Heiten soou como um sino. No h mais para onde fugir,
se tivessem desistido antes, poderiam ter sado ilesos, mas sua persistncia no
nos deixa escolha. Prometo que, ao menos tero uma morte misericordiosa caso
libertem a rainha. Tem um quarto de hora para decidir!!!
O interior do templo ficou em silncio enquanto a ameaa era absorvida.
Acssia foi a primeira a se manifestar.
Espero que resistam. Ficarei desapontada se tiverem uma morte rpida.
no fundo, queria instig-los a lutar, receosa de que o ultimato deixaria sua
situao pior.
Heiten cansou de esperar. disse Valek.
***
Acssia levantou-se, seu olhar furioso voltou-se para Nara e Eleine, mas
mesmo cada, Tssia conseguiu lanar uma magia que jogou a rainha contra a
parede.
O impacto fez com que ela perdesse os sentidos.
Assustada com tudo que acabara de acontecer, Nara ficou paralisada, sem
conseguir se mexer. O choro de Eleine a tirou do estado de estupor. Mais que
depressa, pegou a menina nos braos e correu para Liana.
Edan, ajude a sumo-sacerdotisa, vou acudir a senhora Clancey!
Nara sentou-se de joelhos e apoiou a cabea ruiva em no colo, embalando
Eleine. Chamou por Liana algumas vezes, at que esta forcejou para abrir os
olhos.
M-minha filha?
O olhar de Nara se voltou para o ventre de Liana e viu o vestido encharcado
entre as coxas.
A bolsa rompeu! disse atnita. A senhora entrou em trabalho de
parto!
Captulo XLVIII
Lamentos
***
Nesse instante, o ptio foi invadido por Heiten e seus soldados. Khern e a
antiga guarda foram forados a recuar.
Fique aqui, Sarissa.
A moa observou Valek afastar-se e voltou para dentro. Ela notou que a
tinta azul do peito e dos braos dele havia manchado a roupa de sacerdotisa que
usava. Por alguma razo, essa simples constatao fez surgir em Sarissa um forte
desejo de agir, mas o que podia fazer? Talvez esgueirar-se para o estbulo e
conseguir a montaria para Montaria?! Essa era a resposta!
Ela fechou os olhos para se concentrar. Sua mente andava um tanto
confusa, mas com um pouco de determinao podia focar-se em um s
pensamento.
Se puder me ouvir, precisamos de ajuda, Ceros.
A antiga guarda apertou a formao medida que os soldados de Heiten
enchiam o ptio. Valek posicionou-se frente deles juntamente com Khern,
decidido a no usar a espada de fogo para evitar um desgaste prematuro de suas
foras.
De um lado e outro, todos empunharam as armas. O lorde desmontou do
cavalo.
Olhe ao redor, Valek. Estamos em maior nmero e em melhor forma.
Acabou! sem resposta, Heiten dirigiu-se Khern. Escute o que digo: Clancey
no digno de confiana.
Qualquer inimigo da corja de Kotler nosso amigo! os antigos guardas
agitaram-se.
Pois bem, faam como quiserem. Quanto a voc, Valek, eu juro que agora
vai pagar por tudo que tirou de mim!
O melhor de mat-lo, Heiten, ser ficar livre dos seus lamentos
interminveis! retrucou o rapaz.
Todos prenderam a respirao, prontos para o confronto. A tenso palpvel.
Mas antes que qualquer um deles pudesse dar um passo sequer, o som de um
chifre ecoou pela noite. No tratava-se de um som estridente de alerta e sim do
rudo grave de um chifre de batalha.
O chamado prosseguiu. Por um instante, as atenes no ptio do castelo
desviaram-se do conflito iminente. Os soldados da praa central interromperam
Captulo XLIX
Criaturas
Captulo L
Ato de Reconhecimento
Fico feliz, majestade. disse Marla. Mas a situao vai mal. Para cada
monstro que matamos, um dos nossos se transforma e toma o seu lugar.
Assim que nossos reforos alcanarem-nos, a superioridade numrica ir
assegurar a vitria, portanto, renove seus nimos, chanceler! Vivenciamos uma
batalha histrica!
Do outro lado da praa, o beemote se debatia tentando livrar-se de trs
nagas que saltaram sobre seu dorso. A forte cauda agitava-se para os lados, a
boca cheia de dentes afiados estraalhava tudo que encontrava pela frente, fosse
soldado ou homem-serpente. Kotler decidiu conter a fera antes que causasse
mais estragos.
No calor da batalha, poucos se atentaram chegada de Valek e Sarissa,
montados em Ceros.
O unicrnio mergulhou no corao do conflito rumo ao templo. Um soldado
os percebeu e tentou investir, mas foi derrubado por um naga. O rapaz ruivo
agarrou-se esperana de que Liana e sua filha estavam bem, que de alguma
forma, haviam resistido Baltus e ao Rei Desmorto. A jovem Garet no
conseguia pensar em nada, assustada com a violncia.
Sem aviso, o beemote surgiu diante deles, Ceros a empinou sobre as patas
traseiras. A mo direita de Valek agarrou-se como pode crina negra do
unicrnio. Como os dedos da prtese no dobravam, o que restou foi abraar o
pescoo do animal para manter o equilbrio. Sarissa apertou a cintura dele com
tanta fora que quase lhe tirou o ar.
O beemote girou para livrar-se do naga agarrado em seu pelo. A cauda da
besta atingiu Ceros em cheio.
Tudo aconteceu rpido demais para Valek reagir. Quando deu por s, sentia
o gosto do p da rua. O zumbido em seus ouvidos abafou os sons da luta. Ele
deitou-se de costas zonzo e confuso. Viu Sarissa cada, com a mo nas costelas e
uma expresso de dor; Ceros esforava-se para ficar sobre as quatro patas
novamente.
Tambm viu o templo. Estava to perto!
Ele levou a mo testa, que latejava e descobriu um machucado feio.
Sangue quente escorreu pelo rosto. Deu-se conta de que batera a cabea na
queda.
Percebeu o unicrnio quase de p.
Marla investiu contra Valek. Os dois comearam a lutar com muita energia
em cada ataque.
Kotler aproximou-se de uma atordoada Suila-Ne. Ela apoiou-se em um
joelho, recebendo a sola da bota dele contra o peito.
A imagem da me apareceu na mente da acari. Viva ou morta Volte com
honra. No queria morrer sem luta, mas o Rei Desmorto ergueu o machado para
o golpe final.
Sangue quente esguichou em Kotler. Lgrimas rolaram no rosto de SuilaNe. Um grito silencioso ecoou em resposta a um sorriso.
Heiten sorriu para ela com o machado de batalha enterrado em suas costas.
O Rei Desmorto retirou a arma. Heiten caiu de joelhos e tombou inerte.
Uma enorme poa vermelha formou-se de imediato. Os sons inarticulados que
vinham da garganta de Suila-Ne revelaram a aflio esmagadora enquanto se
lembrava daquilo que, no fundo, sempre soube: que amava Heiten, nunca
deixara de am-lo.
Arrependimento, culpa e pesar inundaram o peito da acari. E tambm dio!
Um dio to intenso que a lanou em um ataque feroz contra Kotler.
A selvageria da investida fez o rei recuar no primeiro momento. Ele
respondeu com um giro do machado, Suila-Ne esquivou-se pelo flanco do
inimigo e se posicionou s costas deles. No momento seguinte, a guerreira
enterrou suas espadas at o cabo na parte de trs do abdmen do Rei Desmorto.
Ele urrou, porm resistiu dor e aplicou uma cotovelada no rosto da
amazona. Suila-Ne recuou sem soltar as espadas. Os cortes que haviam deixado
fecharam num piscar de olhos.
Dessa vez, o rei tomou a iniciativa, movendo o machado em um arco
descendente. A acari cruzou as lminas acima da cabea para aparar o golpe,
mas s pode desvi-lo para o lado. O mesmo aconteceu com o segundo ataque. O
terceiro foi um arco horizontal que passou abaixo da defesa e abriu um corte
profundo em toda a extenso da barriga.
Kotler parou. Suila-Ne nem precisou olhar para o ferimento para saber que
estava terminado. Podia sentir o grande fluxo de sangue escorrendo sobre a pele
e as foras esvairem rapidamente. Forcejou para erguer uma das espadas, fez um
corte no peito do rei e caiu segurando com firmeza o cabo das armas.
Captulo LI
Vida Longa ao Rei
Por que estava sendo difcil? Liana no sabia de onde mais tirar foras. Por
mais que tentasse, sua filha simplesmente no nascia. Nara lhe massageava o
ventre para estimular o parto, temerosa com a quantidade de sangue perdido.
Edan retornou com uma nova bacia de gua e as ltimas toalhas limpas. A
pequena Eleine dormia exausta depois de chorar e de encher a barriga.
Tssia sentia-se aflita com a situao. Liana j comeava a empalidecer em
virtude da hemorragia. Se o parto prosseguisse, corriam o risco de perder tanto a
me, quanto o beb.
Por favor, me escute a sumo-sacerdotisa sussurrou no ouvido da
amiga. Quero que olhe para a abertura no teto e lembre-se de como Valek
nasceu quando a Serpente de Fogo apareceu no cu. Olhe para cima e finja que
est vendo a Serpente outra vez, como naquela noite. Imagine-a expandir-se em
uma bola de luz, clareando a noite novamente. E quando isso acontecer, deixe o
beb sair. Entendeu? No importa como, apenas deixe sair.
Liana assentiu de leve. No instante seguinte, uma mudana ocorreu em seu
rosto. Quis gritar para Tssia, mas no houve tempo. A sumo-sacerdotisa s
conseguiu se virar para ter um vislumbre de Acssia segurando a estaca de
madeira antes de ser atingida na fronte.
Mesmo no cho, ela foi golpeada novamente. A rainha preparou um terceiro
golpe, mas um feitio de Liana arrancou a estaca de sua mo.
Desarmada, Acssia agarrou Nara pelo cabelo e a arrastou. Edan saltou,
pronto para se atracar com a rainha, enquanto Liana tentava conjurar outra
magia, sem encontrar energia para isso.
Sarissa e Ceros adentraram o templo nesse momento. A moa vinha com a
mo nas costelas, quase deitada sobre o unicrnio, sem perceber o que se
passava. O animal caminhou devagar, a respirao pesada, os cascos fazendo
barulho no piso de concreto.
***
***
abriu espao onde ela caiu. Aps uma longa noite de confrontos, um silncio
ensurdecedor imperou.
Marla sentiu uma bola crescer na garganta vendo o rosto de Kotler cado no
cho. Ela viu as expresses incrdulas de seus homens, os olhares cheios de
dvida.
A chanceler tomou frente e curvou-se diante de Valek. Os soldados a
imitaram. Mesmo os nagas baixaram a cabea.
O rapaz ruivo sentiu o peito apertado. Ele pensou em Blie-Mi e Goro-Mi,
cujas mortes estavam, enfim, vingadas. Mas no havia alegria alguma em seu
semblante.
Que escolha voc faz agora? perguntou a Marla.
Eu escolho meu rei ela engoliu o choro. Majestade.
Espalhe a nova.
A chanceler ficou de p e voltou-se para multido com o punho erguido.
Vida longa ao rei Clancey!!!
Captulo LII
Liana
***
Valek no podia deixar de pensar o quanto Liana parecia bela, deitada sobre
a pilha de madeira com uma expresso serena. Usava um vestido de sacerdotisa e
tinha os cabelos ajeitados de forma a adornar o rosto. Essa era a imagem que o
rapaz de olhos marejados queria guardar. Se lembraria da musa saindo dgua,
do perfume sensual que exalava, da voz melodiosa, do calor do corpo, da
sagacidade, da lngua afiada.
A crena na maior parte do Mundo Antigo era de que na hora da morte, a
Dama Sem Rosto conduzia as almas para o Alm, mas os espritos continuavam
ligados ao mundo dos homens pelos corpos mortais. Somente aps a cremao
dos corpos, as almas estariam realmente livres do peso da mortalidade e
poderiam seguir adiante.
Os primeiros raios de sol da manh seguinte batalha encontraram a praa
central de Londinium tomada por grandes piras em homenagem queles que
haviam perecido.
Como autoridade religiosa, era dever de Tssia conduzir os ritos funerrios,
uma tarefa que a sumo-sacerdotisa suportou com bravura. Mas assim que a pira
de Liana foi acesa, ela no pode mais suportar e desatou num choro inconsolvel
no ombro de Nara.
Marla acompanhou os ritos prxima Valek, em seu intimo, lamentava a
morte de Kotler. O capito Khern e os poucos membros restantes da antiga
guarda tambm estavam por perto. Sarissa e Edan ficaram ao lado do rapaz.
Apesar do pouco contato com Liana, a moa gostava dela e sentia-se triste pela
perda.
O novo rei manteve-se em silncio durante todo o tempo. Sentia-se
cansado, mas no queria dormir. Tinha fome, mas no queria comer. No
conseguia pensar em nada, alm daquela que fora sua me, sua guia e sua amada.
Mirya se mexeu no colo dele, os olhos expressivos observavam a tudo, sem
entender o que se passava.
Valek pensou que se no fosse pela filha, nada mais lhe restaria e, por certo,
teria preferido atirar-se sobre a prpria espada para seguir Liana. Porm, essa
era uma opo que lhe fora tirada. Mirya perdera a me ao nascer, no poderia
perder o pai tambm, embora tivesse dvidas sobre o que tipo de pai que seria
capaz de se tornar.
Pensou que ela tinha razo: nunca terminaria. Iria aceitar a coroa pela filha,
para proteg-la de qualquer um que ousasse pensar em fazer mal menina.
Governaria pela espada e que o Mundo Antigo se preparasse para o que estava
por vir.
A brisa matinal alimentou as chamas. Valek lanou um ltimo olhar para o
rosto de Liana. Uma lgrima rebelde rolou e ele teve certeza de que seria a
derradeira. Jamais voltaria a derramar uma lgrima sequer novamente.
Eplogo
Parece-me uma boa ideia. Uma nova capital, uma nova Era. um bom
smbolo e voc precisar de alguns.
Por que diz isso?
A morte de um homem como Kotler tem ramificaes profundas. Os reis
vassalos temiam desafi-lo, os inimigos tambm. Voc, entretanto, um
desconhecido, ter de se impor. No necessrio o dom da premonio para
saber que anos atribulados viro.
Ele soltou o ar, irritado e frustrado. Esvaziou a taa e tornou a ench-la
novamente. Encheu outra taa, da qual a sumo-sacerdotisa apenas bebericou.
O que sugere Tssia? o rapaz se impacientou. Todos tm uma
sugesto para me dar, qual seria a sua?
No penso em tornar-me sua conselheira. Na verdade, planejo voltar
para o templo de Mazilev em breve. No serei mais sumo-sacerdotisa, mas ficarei
longe de batalhas. A Grande Me testemunha de que j vi mortes demais.
No posso permitir que v, Tssia, uma das poucas pessoas em quem
confio. A renomeio a sumo-sacerdotisa de Londinium. Ter carta branca para
agir e dou minha palavra de que ficar longe de assuntos de guerra. ele
admitiu. E eu gostaria sim, de ter seus conselhos.
Apesar da imposio de Valek t-la surpreendido, a segunda parte da
proposta agradou Tssia. Soava melhor que submeter-se as ancis do conselho
em Mazilev. Ela ergueu a taa com um sorriso discreto e bebeu um pouco de
vinho em sinal de acordo. O rapaz, por sua vez, sorveu um grande gole.
Deveria casar-se. arriscou Tssia.
Casar?! ele quase saltou.
Se h algo que aprendi como sacerdotisa o valor de atos simblicos. Um
casamento momento de alegria e esperana.
Entendo o que quer dizer, mas me incomoda a ideia de me casar to
rpido. Faz apenas uma semana que Liana ele no conseguiu concluir.
Est sendo ingnuo. Reis casam por razes polticas, no por amor.
Supondo que eu concorde Restaria a questo de escolher minha rainha.
Tssia ficou pensativa.
A nova rainha precisaria ser algum que o povo conhea e respeite, para
trazer estabilidade aps tantas mudanas. Acredito que a pessoa mais adequada
seja Sarissa Garet.
Ele afundou na poltrona, resignado.
Me deu muito em que pensar, Tssia. Preciso de tempo.
Valek virou a taa novamente, a sumo-sacerdotisa ficou preocupada.
A cada dia, o rapaz dedicava-se mais ao hbito recm-adquirido de passar
os finais de tarde e incio de noite a esvaziar garrafas de vinho. Perto de
completar o primeiro ms de reinado, ele embebedou-se ponto de fazer uma
cena antes de perder os sentidos.
Acordou no meio da noite, com a cabea latejando, em seus aposentos sem
saber quem o levara para l. Estava nu debaixo da coberta e haviam retirado a
prtese da mo esquerda. Possua uma dzia delas agora, metade de ferro, a
outra metade de porcelana. Costumava us-las com luvas de veludo.
Envergonhado de si mesmo, passou horas virando na colcho.
Pelo canto do olho, viu uma plida luz difusa e soube que tinha companhia.
O esprito de Natsvaerd deixara a espada, que repousava num suporte na parede
sobre a cabeceira da cama, para se manifestar ao lado da cama.
No tenho disposio para conversar. antecipou-se ele, sem se voltar.
Creio no ter-vos oferecido minhas condolncias. Estejas certo que o
falecimento de Liana di em minha alma. sem resposta, ela prosseguiu num
tom mais firme. Percebes, espero, que desonras a memria de vossa me ao
perder-vos na embriagues.
Sabia que ainda me pego pensando em contar algo para minha me? Fico
a espera do momento em que ela ir passar pela porta mais prxima. ele se
voltou para Natsvaerd. Ento lembro que ela se foi e no a verei novamente.
s um tolo se acreditas realmente no que dizes! Acaso concebeste vossa
filha sozinho? Crs que terias tornado-vos rei sem o auxlio de Liana? Se
desejardes v-la, basta olhardes ao redor. antes de desaparecer, Natsvaerd
acrescentou. Deixai-a guiar vossas aes, como sempre fizeste, Valek.
Ele ficou s outra vez. Ao sentimento de vergonha, somou-se a humilhao.
Quase adormecia quando viu o quadro na parede abrir como se fosse uma
porta. J lhe haviam entregado um mapa da rede de tneis, mas o perdera
minutos depois.
A cabea platinada de Sarissa apareceu. Ela trazia uma cesta de frutas e
vestia uma camisola de seda, a queda de uma das alas finas deixou o seio
delicado parcialmente mostra.
Ah, acordou.
A moa sentou na beirada da cama, perto dele. A cada dia, ela mostrava-se
mais viva e comunicativa, embora ainda fosse possvel, de quando em quando,
encontr-la mergulhada em uma profunda apatia, provocada pelas lembranas
dos abusos sofridos no crcere.
Valek ergueu o corpo com as costas apoiadas na cabeceira.
Como est se sentindo? perguntou Sarissa.
Como um idiota. retrucou ele.
No acho que voc seja idiota. a moa pegou uma ma. Tome.
Estou sem fome.
Coma assim mesmo.
O rapaz aceitou a oferta. Permaneceram em silncio enquanto ele comia.
Posso fazer uma pergunta pessoal? indagou o rapaz. Sarissa levantou o
rosto. Quando sua me e seu pai morreram, como superou? Como fez?
No fiz, no tive tempo. Fui mandada direto para a masmorra, lembrase? Mas depois que me tirou de l, tenho me apoiado nas pessoas que gostam de
mim. Como Liana, Edan e voc, Valek. ela corou e desviou o olhar. Digo
sempre nos demos bem, no ?
Sim, nos demos sim. a ideia de casar-se com Sarissa lhe veio mente.
H um assunto que desejo te falar, Sarissa, mas prefiro esperar um momento
mais adequado.
Vou deix-lo descansar.
Ela depositou a cesta de frutas sobre a mesinha, desejou boa noite e saiu.
A partir desse dia, Valek decidiu evitar excessos com o vinho. E a despeito
de uma ou outra recada, cumpriu bem a resoluo. Comeou a passar as tropas
em revista com frequncia, para que os soldados se acostumassem com ele.
Retomou o costume de exercitar-se na mata, como fazia em Norfria,
levando sempre alguns guardas como escolta. Uma tarde, aps bater-se com
Marla num treino, foi nadar com a chanceler. Juntaram-se dentro do rio e se
tornaram amantes a partir dali.
Tambm passou a acompanhar de perto o crescimento da filha, como
prometera Liana. Nara se tornara a ama de leite da menina, alm de ser
responsvel por sua criao, enquanto cuidava da prpria filha, Eleine.
Nesse nterim, o novo regente recebeu os reis vassalos com o amparo de
Tssia, mais versada em poltica e diplomacia que ele. Foram trs dias de jantares
e reunies.
Ao fim desse perodo, Valek e Sarissa casaram-se. Como parte da
celebrao, um gigantesco banquete foi servido para o povo na praa central.
Apesar das comemoraes, a partida dos vassalos o deixou com a certeza de
ter feito mais inimigos que aliados. Seria uma questo de tempo at as
insurgncias comearem. No incio do quarto ms de reinado, chegaram notcias
do stio Braghtow. Os soldados que l estavam desde a partida de Kotler
enfrentavam dificuldades. O rei decidiu ir luta.
Na tarde anterior partida, Valek foi ao quarto de Mirya. Encontrou Nara
acompanhada de Khern, que se apressou em justificar sua presena ali. Desejava
apenas para trocar uma palavra rpida com a esposa.
Vivo e sem filhos, ele encantou-se com a moa e, embora a diferena de
idade fosse grande, a pediu em casamento e deixou claro que assumiria Eleine.
vontade, Mestre da Guarda. disse Valek. Vim apenas ver minha
filha.
Mirya estava sentada sobre a cama com Eleine e muitos brinquedos. A
pequena Clancey era uma criana precoce, que se desenvolvia rapidamente. Em
contrapartida, era bastante calma, chorava muito menos do que qualquer outra
criana que Nara conhecera. E tinha um olhar expressivo. Observava tudo, como
se tivesse pressa de compreender o mundo que a rodeava.
Ao ver o pai, Mirya deixou os brinquedos e a amiguinha de lado para
estender os bracinhos rolios na direo dele. Valek sempre a segurava com o
brao esquerdo, assim a mo boa ficava livre. Foi ao balco com a menina no
colo. O vero estava no auge, mas mesmo assim, ele colocou um lenol sobre os
ombros da filha, para no arriscar que apanhasse um golpe de ar.
Soube da novidade? Valek soava num tom mais suave que o habitual.
Sarissa est grvida. Logo voc vai ganhar um irmozinho ou irmzinha. Que
acha disso, hein?! Gostou? ele fez ccegas de leve na barriguinha. Mirya
respondeu com uma risada gostosa.
Valek admirou Londinium por um instante. No restava sinal algum da
batalha travada meses atrs.
O papai vai viajar amanh e talvez fique fora por um longo perodo. Vou
para uma coisa chamada guerra. A maioria das pessoas tem medo da guerra,
mas no ns. E sabe por que, Mirya? Porque o campo de batalha o nosso lar!
Mas quando tiver problemas
Ele apanhou um saquinho de pano, preso ao cinto, amarrado com um
cordo que formava um lao, o qual Valek colocou em torno do pescoo da filha,
como um colar. A pea atraiu a ateno da pequena. Ali dentro encontrava-se o
anel com a pedra azul que fora de Liana.
Lembre-se que sua me estar olhando por voc. Por ns dois.
No dia seguinte, Valek tomou lugar, montado em Ceros. O unicrnio fora
convencido por Sarissa a servi-lo. A um sinal dele, um chifre soou e foi erguido
um estandarte rubro frente das tropas, com uma serpente de fogo bordada em
fios dourados.
O Rei Vermelho partiu em campanha.
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