Teoria Do Conto
Teoria Do Conto
do silncio
A primeira luz: Edgar Allan Poe e a teoria da unidade de efeito
Quando se trata de definir o que , afinal um conto, os tericos pouco se entendem,
tentando, num jogo de queda-de-brao, estabelecer seus limites e suas caractersticas como
gnero autnomo e demarcado. No entanto, quem sabe para provar que nem toda a
unanimidade burra, todas as opinies convergem no sentido de apontar Edgar Allan Poe
como o fundador do conto moderno. E, alm disso, todos so capazes de reconhecer que foi
tambm o norte-americano o primeiro a propor uma espcie de manual de regras, um
legtimo vade-mcum, retomado, inclusive, por vrios escritores que o sucederam, como se
ver a seguir.
Dono de uma cultura vastssima (cultura esta que, segundo o escritor Julio Cortzar, na
coletnea de ensaios Valise de Cronpio, seria recheada "com tons de mistrio e vislumbres
de iniciao esotrica"), Poe publicava ensaios em jornais e revistas, matrias ansiosamente
aguardadas pelo pblico, e nas quais o autor foi compondo, ainda que de maneira um tanto
desordenada, as bases de sua potica. A viso muito particular que tinha da poesia da sua
poesia reflete-se inequivocamente nas pginas de fico ou de ensaios que escreveu,
todas visando criar em seu leitor uma impresso particular, um clima cuidadosamente
premeditado a afamadssima teoria da unidade de efeito.
importncia futura. Poe foi o pioneiro no inventrio (ou inveno) das particularidades do
conto, ao diferenci-lo do captulo de um romance e das crnicas romanceadas de seu
tempo; compreendeu que a eficcia do conto depende de sua intensidade como
acontecimento puro, desprezando os comentrios e descries acessrios, dilogos marginais
e consideraes posteriores que seriam tolerveis dentro do corpo de um romance, mas que
arruinariam a estrutura de um conto.
Para Hemingway, se o livro est escrito com carga suficiente de verdade, pode, e deve, o
escritor omitir partes dessa verdade, que, mesmo sendo interior ao texto, capaz de cooptar
seu leitor de maneira convincente e segura. O dito prevalece sobre o no-dito, o sugerido
ganha estatuto de fato consumado. Inaugura, tambm, a singela teoria do iceberg,
reaproveitada por crticos e escritores posteriores: "O leitor, se o escritor est escrevendo
com verdade suficiente, ter uma sensao mais forte do que se o escritor declarasse tais
coisas. A dignidade do movimento do iceberg devida ao fato de apenas um oitavo de seu
volume estar acima da gua".
Carlos Baker, um dos mais aplicados estudiosos de Hemingway, ressalta o fato de os contos
do norte-americano seguirem o comportamento do iceberg; de serem "enganadores", suas
partes visveis brilhando num esqueleto de cores naturalistas, enquanto que a estrutura de
suporte, submersa e invisvel, construda atravs de um grande sistema simblico. Uma
vez que o leitor prevenido se aperceba que h algo subjacente parte visvel de sua obra,
poder usufruir de uma cadeia de smbolos e de cristalizaes que suportam a narrativa que
se d vista. Lembra que Hemingway penetrou na fico pelo caminho do conto e que seus
objetivos estticos exigiam uma rigorosa disciplina na apresentao de seus episdios.
Diferentemente de Cortzar, e muito prximo de Poe, Hemingway trabalhava como um
arteso: podava a linguagem, evitava movimentos inteis, multiplicava intensidades.
Transmitia para seu leitor nada mais do que insinuaes, fulguraes da parte oculta na
parte revelada, todas elas importantes na construo do jogo narrativo.
Cada uma das duas histrias contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histrias
significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos
entram simultaneamente em duas lgicas narrativas antagnicas. Os elementos essenciais
de um conto tm dupla funo e so utilizados de maneira diferente em cada uma das duas
histrias. Os pontos de cruzamento so a base da construo.
Para Piglia, assim, o conto clssico uma narrativa que encerra uma histria secreta. No h
um sentido oculto que depende de interpretao, mas estratgias completamente postas a
servio da histria cifrada. Conta-se uma histria enquanto se est contando outra, e a
maneira como as duas se articulam encerra os problemas tcnicos do gnero. Sua segunda
tese a de que a histria cifrada " a chave da forma do conto e de suas variantes".
Conforme o argentino, a verso moderna do conto que vem de Tchecov e de Joyce dos
Dublinenses, dentre outros, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada: a tenso
entre as duas histrias nunca resolvida, contando-se a histria secreta de modo cada vez
mais elusivo, fundindo-se esta com a chamada histria aparente. Neste momento de sua
exposio, relembra que "A teoria do iceberg de Hemingway a primeira sntese deste
processo de transformao; o mais importante nunca se conta. A histria secreta se constri
com o no-dito, com o subentendido e com a aluso", tpico caso em que a estranheza
base e o fim de tudo.
Ao final de seu ensaio, Piglia afirma que o conto se constri para fazer aparecer
artificialmente algo que estava oculto, reproduzindo, no texto, a busca humana e sempre
renovada de uma experincia nica que permita ver, "sob a superfcie opaca da vida", uma
verdade secreta.
Cntia Moscovich
10/09/2005
Disponvel em: <http://www.minicontos.com.br > Acesso em 05 de agosto de 2015