A Contrainte Como Jgo Retórico Na Poética Do OULIPO PDF
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POTICA DO OULIPO
Vincius Carvalho Pereira
(Universidade Federal de Mato Grosso)
RESUMO
Este artigo apresenta uma aproximao entre pressupostos
formais da retrica clssica e a produo literria do grupo
francs Oulipo, na dcada de 60. Como argumentos que sustentam tal aproximao, destacam-se a clara filiao do
Oulipo aos rhtoriqueurs dos sculos XV e XVI, o uso da
contrainte como procedimento esttico e a dimenso de regra, inerente retrica, transposta para os jogos formais
oulipianos. Apresentam-se, para tanto, poemas oulipianos,
analisados em sua dimenso imanente, como produtos de
jogos verbais que fazem da retrica uma gramtica da frase
e do texto, da qual pode emergir o fenmeno esttico.
PALAVRAS-CHAVE: Oulipo - jogo - retrica - regra contrainte.
Introduo
Libertar a lngua e a literatura por meio de regras restritivas:
eis a tarefa paradoxal a que se lanou um grupo de escritores europeus na dcada de 60. A partir de travas formais autoimpostas, como
a supresso de uma letra, o uso de determinado padro mtrico ou a
reiterao de certos esquemas narrativos, os membros do Oulipo fizeram da atividade de escrita literria ou no um procedimento
ldico, no qual, como em qualquer jogo, h regras a seguir em busca
de uma vitria ou um gozo.
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Disfarada de charada, ou o que , o que ?, enigma ou equao verbal bem ao gosto oulipiano, essa apresentao do Oulipo figura no prefcio de quase todas as obras coletivas do grupo, especialmente as coletneas dos melhores textos, produzidos ludicamente em
seus encontros, em petits comits.
Trabalhando em oficina, como verdadeiros carpinteiros do verbo,
os autores oulipianos entremeavam seu trabalho literrio, a pesquisa
retrica cientfica e a paixo matemtica, convergindo tais vetores
para um mesmo ponto, central em sua potica: as contraintes, ou
restries formais que ditam a ordem do dia em suas reunies e
estruturam, como espinha dorsal, seus textos.
Termo de difcil traduo, mas que tem sentido prximo ao de
travas, constries ou restries, as contraintes se dariam na
forma geral de desafios ou axiomas, como escrever um texto sem
determinada letra, com um inovador padro mtrico, reiterando certo trocadilho fontico etc., o que valoriza o carter material da literatura e a imanncia do texto como jogo de significantes, anlogo
manipulao de variveis em uma equao ou ao conjunto de procedimentos verbais prescritos por modelos estilsticos pr-determinados. Apaixonados pela forma e suas contingncias, entrevendo padres matemticos em suas possibilidades e limitaes, os autores
oulipianos impunham-se regras constritivas no ato da escrita, to
arbitrrias quanto o prprio signo lingustico ou o padro de uma
sequncia numrica, servindo-lhes de desafio e modelo esttico ao
mesmo tempo.
Se, por um lado, o uso de restries formais em literatura no
algo criado pelos oulipianos4 (vide a tripartio da tragdia clssica;
a morfologia do conto maravilhoso descrita por Propp (1984); as
relaes entre actantes narrativos de Greimas (1975); as formas fixas
poticas do soneto, do rond, da balada; ou as extensas listas de
figuras de linguagem em qualquer compndio sobre retrica etc.),
por outro, usufruto inegvel para esses artistas que levaram a ideia
de restrio mxima potncia. Na verdade, enquanto na noo tradicional da restrio formal esta apenas um pano de fundo, ou uma
estrutura que funciona como suporte para o contedo do texto e seus
significados, para o projeto oulipiano a contrainte a matriz geradora do fenmeno textual, emergindo dela a obra de arte, e no de um
suposto sujeito doador de sentidos (ALENCAR; MORAES, 2005).
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Como pesquisa anoulipista de contraintes, isto , busca de restries estilsticas anteriores ao grupo de Queneau, os autores
oulipianos, na medida em que retomavam as regras da Retrica clssica, reabilitaram formas fixas, figuras de linguagem e mesmo gneros textuais que fazem parte da histria do Direito, da Literatura e da
Filosofia. Nesse sentido, a tradio literria ocidental est repleta de
jogos retricos, desde as relaes msticas identificadas em
palndromos (frases/palavras que podem ser lidas da esquerda para a
direita ou vice-versa, como Anita lava la tina) na Antiguidade Clssica e depois associadas bruxaria na Idade Mdia. Um clebre exemplo
desse jogo geomtrico com o verbo, que, para os romanos, encerraria
verdades divinas cabala literria ou orculo potico , o palndromo
criado pelo escravo Loreius em 200 a.C. (SANTANNA, 1999), que
pode ser lido em diversas direes:
SATOR
AREPO
TENET
OPERA
ROTAS
(LOREIUS apud SANTANNA, 1999)
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cujo nomear confunde-se com o ato de conhecer, entendendo o funcionamento da linguagem na medida em que se lhe designam os fenmenos. Desse modo, a retrica a disciplina geral do nomear, no
s do cientfico, mas do esttico (MOISS, 1982, p.94).
Aprisionando cada toro ou combinao vocabular em um
nome quiasmas, hiprbatos, hiprboles, oxmoros, ou qualquer outro tropo , a pura essncia da contrainte, catalogando diversas
regras posicionais e associativas em nomes arbitrrios, que prende
esses usos linguageiros em blocos estanques, a serem manipulados,
posteriormente, ao longo da histria da literatura.
Restries a priori, as definies lingusticas criadas pelos
retricos so, portanto, contraintes, em que nomear construes
vocabulares, isto , nomear objetos que nomeiam outros objetos, torna-se uma priso paradoxal, pois abre possibilidades de jogos com
esses objetos at ento impensadas formalmente.
Uma contrainte oulipiana amplamente baseada nesse carter
nomeador da linguagem, sobre o qual se debrua a Retrica, a
littrature dfinitionelle. No entanto, aqui a prxis nomeadora, mais
do que exerccio de Crtilo (PLATO, 1967), problema matemtico,
uma vez que, para os oulipianos, amplamente influenciados pelo Estruturalismo como cincia da linguagem, a nomeao uma funo
que duas palavras contraem entre si (HJELMSLEV, 2009).
Em lugar da justaposio linear entre dois significantes x e y, o
estruturalista Hjelmslev identifica em y uma funo de x, como na
notao algbrica y = f(x), em que a varivel y tem seu valor definido
no per si, mas sempre em funo do valor atribudo a x. Em vez de
significantes com sentido encapsulado e pronto, como se o signo
lingustico fosse uma unidade estvel e harmnica, a definio de um
functivo y a partir de um functivo x corrobora a viso de que o
significado no produto do signo, mas das relaes entre os
significantes, inclusive dos hiatos entre eles (EAGLETON, 2005).
Desse modo, assim como a matemtica trabalha com a noo de
funo composta [f(g(x))], em que a funo f(x) pode ser aplicada a
g(x), de maneira que y (que equivale a f(x)) varie em funo da funo g(x), essa funo de funo se revela na Lingustica e na Literatura, bem como na littrature dfinitionelle oulipiana. Se na Teoria
da Literatura temos o recurso do mise en abme, em que uma estrutura se reduplica infinitamente em seu prprio interior, como jogo de
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Consideraes finais
A retrica, como cincia, arte ou mtodo, pode ser aproximada
das propostas oulipianas. Tornadas jogos poticos, suas regras viram
contraintes para o Oulipo, engendrando uma paradoxal liberdade para
aquele que, ao escrever concentrado em uma trava formal, libera-se
da opresso da pgina em branco, da castrao do inconsciente, da
presso por uma suposta criatividade.
Limitaes libertrias, sob uma perspectiva imanente de produo e anlise textual, do vida a poemas, contos e romances nos
jogos oulipianos. Gramticas da frase e do estilo, como regras de
combinao e associao de palavras, as contraintes so jogos de
escrita, intimamente esteados na retrica.
Entre o desejo de falar e os limites impostos pela lngua, a
contrainte desafio restritivo a que esses autores se submetem voluntariamente, na condio de mmica de toda represso sistmica,
psquica ou poltica que permeie o idioma. Construindo o labirinto
de que eles mesmos precisam se livrar, cada oulipiano revive o drama de Ddalo e caro, mas sem construrem engenhos voadores com
que possam se livrar de suas enredadas construes.
Vagar pelo imbricado percurso determinado pela contrainte,
urdindo um fio textual que no se confunde com o de Ariadne , para
o autor oulipiano, um prazer. No se confunde com o fio da amada de
Teseu porque, em vez de levar para fora, para a liberdade, para o fim
teleolgico da narrativa, o fio textual no Oulipo vai sempre mais para
dentro do labirinto, dobrando-se progressivamente sobre si mesmo, a
fim de fazer sobressair, cada vez mais, a contrainte que define a movimentao nesse tabuleiro.
Jogo individual, como o da escrita, o da leitura, ou da pacincia, a literatura oulipiana tambm ludo em que podem jogar mais:
at um grupo de sujeitos dispostos a se lanarem juntos no labirinto,
como aqueles que integram uma equipe, uma oficina, um ouvroir.
Basta-lhes, apenas, disposio para inventar e seguir regras, como se
faz a cada vez que se fala, escreve, ama ou se elaboram afetos no
inconsciente. Aes sempre regradas e ritmadas, emitir sons, garatujar letras, enredar corpos ou sonhar gozos, esto intimamente relacionadas ao que se repete, que tem ritmo, que segue padres associativos,
permutativos ou restritivos. Nesse sentido, a escrita oulipiana uma
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ABSTRACT
This paper presents a comparison between formal
assumptions from classical rhetoric and the literary
production of the French group Oulipo, in the 60s. As
arguments to support such an approach, we highlight the
clear affiliation of Oulipo authors to the rhtoriqueurs, in
the fifteenth and sixteenth centuries; the use of contraintes
as aesthetic procedures; and the role of rules, inherent in
rhetoric, when transposed to the formal oulipian games. To
do so, oulipian poems are herein analyzed in their immanent
dimension, as products of verbal games that transform
rhetoric into a grammar of the sentence and the text, from
which the aesthetic phenomenon can emerge.
KEYWORDS: Oulipo - game - rethoric - rule - contrainte.
REFERNCIAS
ALENCAR, Ana Maria de; MORAES, Ana Lcia. O Oulipo e as oficinas de
escrita. Revista Terceira Margem. Revista do Programa de Ps-Graduao
em Cincia da Literatura. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Ano IX, n. 13, 2005.
BARTHES, Roland. O rumor da lngua. So Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. Aula. So Paulo: Cultrix, 1994.
DIXON, Peter. Rhetoric. London: Methuen, 1971.
DUBOIS, Jacques. Retrica geral. So Paulo: Cultrix, 1974.
EAGLETON, Terry. Literary theory: an introduction. Oxford: Blackwell, 2005.
FUX, Jacques. A matemtica em Georges Perec e Jorge Lus Borges: um
estudo comparativo. Tese de doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras. 2010. 249 f.
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