A Contrainte Como Jgo Retórico Na Poética Do OULIPO PDF

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A CONTRAINTE COMO JOGO RETRICO NA

POTICA DO OULIPO
Vincius Carvalho Pereira
(Universidade Federal de Mato Grosso)

RESUMO
Este artigo apresenta uma aproximao entre pressupostos
formais da retrica clssica e a produo literria do grupo
francs Oulipo, na dcada de 60. Como argumentos que sustentam tal aproximao, destacam-se a clara filiao do
Oulipo aos rhtoriqueurs dos sculos XV e XVI, o uso da
contrainte como procedimento esttico e a dimenso de regra, inerente retrica, transposta para os jogos formais
oulipianos. Apresentam-se, para tanto, poemas oulipianos,
analisados em sua dimenso imanente, como produtos de
jogos verbais que fazem da retrica uma gramtica da frase
e do texto, da qual pode emergir o fenmeno esttico.
PALAVRAS-CHAVE: Oulipo - jogo - retrica - regra contrainte.

Introduo
Libertar a lngua e a literatura por meio de regras restritivas:
eis a tarefa paradoxal a que se lanou um grupo de escritores europeus na dcada de 60. A partir de travas formais autoimpostas, como
a supresso de uma letra, o uso de determinado padro mtrico ou a
reiterao de certos esquemas narrativos, os membros do Oulipo fizeram da atividade de escrita literria ou no um procedimento
ldico, no qual, como em qualquer jogo, h regras a seguir em busca
de uma vitria ou um gozo.

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Vincius Carvalho Pereira

Criado por Raymond Queneau, o OUvroir de LIttrature


POtentielle vai de encontro s correntes do pensamento europeu na
segunda metade do sculo XX, especialmente o existencialismo e o
surrealismo. Em vez do absurdo, do nonsense, do mstico ou do onrico,
est em jogo para os oulipianos uma escrita como ato, procedimento,
estratgia ou jogo. No seria, pois, um gnio autoral ou um sujeito
preexistente que dotaria a linguagem de um sentido, mas sim ela
mesma, a partir de seus algoritmos de associao ou excluso, que
comporia uma mensagem.
Valorizando a lngua e as possibilidades de sua manipulao
formal, os autores oulipianos devolveram a materialidade do texto,
no como corpus, mas como corpo, que tem seus limites e restries
de movimento, mas, ainda assim, precisa se mexer. Tais quais as peas
do xadrez, que deslizam conforme suas delimitaes posicionais, as
palavras do texto oulipiano movem-se em uma sintaxe cifrada, segundo as contraintes inventadas ou retomadas por seus autores.
Diz-se aqui inventadas ou retomadas porque a escrita sob
restries, seja para fins ldicos, artsticos ou msticos, permeia a
histria da humanidade, dos anagramas latinos aos poemas barrocos,
das litanias medievais aos softwares de literatura generativa ps-modernos. Assim, enquanto muitas das regras empregadas pelo Oulipo
foram criadas pelo prprio grupo para suas oficinas e jogos de escrita, outras tinham tradio milenar, sendo, porm, potencializadas1
conforme sugere o nome do grupo nas empreitadas oulipianas.
A ideia de uma gramtica do texto e de sua literariedade, apoiada em uma taxonomia de procedimentos estticos a que a lngua
pode dar ensejo, uma renovao da retrica, tornada objeto ldico
nas mos oulipianas. Afinal, como jogos de dispositio e elocutio
(DUBOIS, 1974) que se constroem os jogos poticos oulipianos, na
condio de perquirio formal no seio da linguagem.

O Oulipo e a criture sous contrainte


Na Frana da dcada de 60, onde os ambientes intelectuais apresentavam grande entusiasmo diante de uma proposta cientfica de descrio e anlise da lngua e da Literatura o Estruturalismo , ao mesmo
tempo em que outros pensadores advogavam, como resposta depresso
ps-guerra e crise do sentido, o Existencialismo e o Surrealismo,

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surgiu o grupo artstico Oulipo (Ouvroir de Littrature Potentielle),


preconizando um novo olhar sobre a linguagem e o objeto literrio.
Em um seminrio em torno da obra de Raymond Queneau
(Sminaire de Littrature Exprimentale SLE), Nol Arnaud, Jacques
Bens, Claude Berge, Jacques Duchateau, Jean Lescure, Franois Le
Lionnais, Raymond Queneau e Albert-Marie Schmidt criaram o Oulipo,
grupo que mais tarde veio a abranger grandes (e poucos) nomes da
literatura francesa e mundial (FUX, 2010), como Georges Perec,
Jacques Roubaud, Italo Calvino, Marcel Bnabou e outros2.
Em oposio s propostas surrealistas de uma escrita automtica e inconsciente, Queneau, ex-integrante do movimento liderado
por Andr Breton, do qual se afastou aps diferenas ideolgicas,
tericas e pessoais, pretendia com o Oulipo promover uma literatura
da imanncia, do jogo com os significantes, da potencializao esttica das arbitrariedades da lngua e da literatura. Para tanto, negavase o primado romanesco da inspirao e da noo de autor demiurgo
romntico, buscando-se uma objetividade do texto literrio, que requeria uma explorao de sua dimenso material, seja no nvel fnico,
lxico, sinttico ou mesmo visual. Tal explorao estaria intimamente relacionada ao uso de formas fixas e restries estruturais previamente acordadas, guisa de exerccios estilsticos e retricos, os quais,
por meio de recomendaes quanto seleo (elocutio) e posio
(dispositio) dos elementos na sentena, valorizam a dimenso esttica
da trama textual.
No entanto, no se pode confundir o Oulipo com um movimento literrio, pois seus idealizadores, opondo-se com veemncia teoria das vanguardas, no tinham intenes polticas ou pretenses
transformadoras da arte e da sociedade. Em vez disso, propunham-se
apenas fruir e produzir literatura, gozando os prazeres do texto e da
linguagem, e manipulando, como cientistas, a lngua com extrema
objetividade e argcia. No documentrio LOulipo mode demploi
(GUIDICELLI; FORTE, 2010), os prprios integrantes do grupo se
posicionam a respeito da experincia oulipiana, afirmando tratar-se
de uma famlia, de um espao de experimentao potico-matemtica
e mesmo do primeiro grupo literrio de vocao universal. Tal aproximao com a matemtica est relacionada viso axiomtica e estruturalista desses poetas (alguns dos quais eram matemticos profissionais), que concebiam a literatura como produto de regras formais
para seleo e disposio de signos lingusticos.

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Em contraponto literatura aleatria ou inconsciente do


Surrealismo, propunha-se no programa oulipiano, tal qual para os
retricos da Antiguidade, uma cincia da linguagem e da literatura,
no que tange elementar e cientfica ordem das estruturas da linguagem (OULIPO, 1973). A diferena fundamental residiria, porm,
no mtodo para a conformao dessa cincia, uma vez que os oulipianos
envidaram esforos para descrever e ampliar essas estruturas formais
por modelos matemticos, como uma geometria da palavra,
matematizando procedimentos posicionais e associativos do verbo.
Os prprios oulipianos afirmavam que o cerne de suas discusses no seria a produo de Grande Literatura os chefs doeuvres,
em oposio aos pieds doeuvres (OULIPO, 1973). Em vez disso, a
ideia oulipiana era a de uma escrita gregria e objetiva, ao invs do
misticismo surrealista em torno da figura autoral. Todos poderiam
escrever at porque a escrita seria um produto da linguagem, e no
do sujeito , sendo as contraintes desenvolvidas pelo grupo uma tcnica cientfica, de base axiomtico-matemtica, para libertar a escrita, fundindo arte e mtodo. Nas palavras dos prprios oulipianos:
OULIPO? O que isso? O que aquilo? O que OU? O que LI?
O que PO?
OU OFICINA (OUVROIR), um ateli. Para fabricar o qu? A LI.
LI a literatura, o que se l e o que se rasura. Que tipo de LI? A
LIPO.
PO significa potencial. Literatura em quantidade ilimitada, potencialmente produtvel at o fim dos tempos, em quantidades enormes, infinitas para todos os fins prticos.
QUEM? Em outras palavras, quem responsvel por essa empreitada insensata? Raymond Queneau, chamado RQ, um dos pais
fundadores, e Franois Le Lionnais, chamado FLL, outro pai e
compadre fundador, e primeiro presidente do grupo, seu FraisidentPondateur3.
O que fazem os OULIPIANOS, os membros do OULIPO (Calvino,
Perec, Marcel Duchamp e outros, matemticos e escritores, escritores-matemticos e matemticos-escritores)? Eles trabalham.
Certo, mas em QU? Em fazer avanar a LIPO.
Certo, mas COMO?
Inventando contraintes. Contraintes novas e antigas, difceis e
menos difceis e muito diiffcceis. A Literatura Oulipiana uma
LITERATURA SOB CONTRAINTES (OULIPO, 2002, p. 5).

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Disfarada de charada, ou o que , o que ?, enigma ou equao verbal bem ao gosto oulipiano, essa apresentao do Oulipo figura no prefcio de quase todas as obras coletivas do grupo, especialmente as coletneas dos melhores textos, produzidos ludicamente em
seus encontros, em petits comits.
Trabalhando em oficina, como verdadeiros carpinteiros do verbo,
os autores oulipianos entremeavam seu trabalho literrio, a pesquisa
retrica cientfica e a paixo matemtica, convergindo tais vetores
para um mesmo ponto, central em sua potica: as contraintes, ou
restries formais que ditam a ordem do dia em suas reunies e
estruturam, como espinha dorsal, seus textos.
Termo de difcil traduo, mas que tem sentido prximo ao de
travas, constries ou restries, as contraintes se dariam na
forma geral de desafios ou axiomas, como escrever um texto sem
determinada letra, com um inovador padro mtrico, reiterando certo trocadilho fontico etc., o que valoriza o carter material da literatura e a imanncia do texto como jogo de significantes, anlogo
manipulao de variveis em uma equao ou ao conjunto de procedimentos verbais prescritos por modelos estilsticos pr-determinados. Apaixonados pela forma e suas contingncias, entrevendo padres matemticos em suas possibilidades e limitaes, os autores
oulipianos impunham-se regras constritivas no ato da escrita, to
arbitrrias quanto o prprio signo lingustico ou o padro de uma
sequncia numrica, servindo-lhes de desafio e modelo esttico ao
mesmo tempo.
Se, por um lado, o uso de restries formais em literatura no
algo criado pelos oulipianos4 (vide a tripartio da tragdia clssica;
a morfologia do conto maravilhoso descrita por Propp (1984); as
relaes entre actantes narrativos de Greimas (1975); as formas fixas
poticas do soneto, do rond, da balada; ou as extensas listas de
figuras de linguagem em qualquer compndio sobre retrica etc.),
por outro, usufruto inegvel para esses artistas que levaram a ideia
de restrio mxima potncia. Na verdade, enquanto na noo tradicional da restrio formal esta apenas um pano de fundo, ou uma
estrutura que funciona como suporte para o contedo do texto e seus
significados, para o projeto oulipiano a contrainte a matriz geradora do fenmeno textual, emergindo dela a obra de arte, e no de um
suposto sujeito doador de sentidos (ALENCAR; MORAES, 2005).

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No que tange a essa dico sob restries voluntrias, os


oulipianos chegaram a definir a si mesmos, nos manifestos em torno
da criao do grupo (redigidos como pastiches ao Manifesto
Surrealista), em funo das contraintes, como ponto de partida e de
chegada de suas obras:
E um autor oulipiano, o que ele? um rato que constri para si
mesmo um labirinto do qual se prope a sair. Labirinto de qu?
De palavras, de sons, de frases, de pargrafos, de captulos, de
livros, de bibliotecas, de prosa, de poesia, de tudo isso... (OULIPO,
2002, p. 5).

Diferente de Ddalo, o arquiteto mitolgico que abandona o


labirinto sem enfrent-lo, o autor oulipiano enclausurador e
enclausurado ao mesmo tempo, tendo de escrever segundo as
contraintes que ele prprio se impe. Tais restries tm sempre carter formal, sendo definidas como um axioma que o escritor deve
seguir, a fim de redescobrir construes existentes na lngua apenas
como potncia, veladas por trs da arbitrariedade do signo e reveladas por meio de um jogo com essa arbitrariedade, em que se manipulam algebricamente as variveis do idioma. De potncia a ato, as
estruturas oriundas da lngua tornam-se material literrio na condio de um acontecimento retrico, justificando a ideia de literatura
potencial contida na sigla Oulipo.
Como exemplo de trava retrica, ou contrainte, engendradora
de poemas oulipianos, pode-se citar uma restrio criada por Georges
Perec: a belle absente, que consiste em homenagear algo ou algum,
omitindo sequencialmente, em cada verso do poema, uma letra do
nome da figura homenageada, respeitando-se tambm a ordem das
letras do nome (PEREC, 1994, p.7). Trata-se, pois, do avesso de um
acrstico, forma fixa popular em que as letras de um nome prprio,
escrito na vertical, ensejam versos horizontais. L-se, a seguir, uma
belle absente dirigida ao prprio Oulipo, como poesia encomistica
que fala do prprio grupo de autores em cujo seio gerada.
lOulipo
Champ dfait jusqu la ligne brve,
Jai dsir vingt-cinq flches de plomb
Jusquau front born de ma page chtive.
Je ne demande quau hasard cette fable en prose vague,
Vestige du charme dj bien flou qui
Dfit ce champ jusqu la ligne brve 5 (PEREC, 1994, p. 11).

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Como contraponto do acrstico, pode-se perceber que nos seis


versos dessa belle absente faltam, respectivamente, as seguintes letras: O, U, L, I, P, O, formando, em ausncia, a palavra Oulipo. ,
pois, nessa fenda, ou seco (interseco entre Matemtica e Literatura?), que o poema fala na mudez das letras ausentes. Calando para
dizer, ocultando para mostrar, trata-se aqui da estratgia retrica de
ora avanar ora recuar em uma argumentao, a fim de provar uma
tese. Porm, diferente dos discursos polticos na plis ateniense, o
que se prova aqui no uma posio poltica, mas esttica, em que a
retrica chama ateno para a prpria materialidade do poema como
silncio daquilo que quer dizer.
O que est em jogo nesse texto justamente um champ dfait,
ou campo instvel desfeito, frgil, movedio da pgina limitada
onde s se inscreve a frase breve (la ligne brve), em busca de uma
totalidade que nunca se atinge. Afinal, a cada linha h vingt-cinq
flches de plomb, mas falta sempre a vigsima sexta flecha, a vigsima sexta letra do alfabeto, cuja falta aponta para cada letra do nome
OULIPO. Sobra, portanto, apenas um vestgio du charm dj bien
flou, como charme impreciso, nessa rea de sombras em que a beleza
reside na falta: belle absente.

A contrainte como jogo retrico: o interdito e o


ldico
Ressignificando como poesia uma restrio formal, uma regra
retrica, como jogo de palavras que se instala a contrainte. Como
restries de movimento da mo que escreve, ou da palavra que se
articula, as contraintes so tais quais as regras de qualquer jogo,
atividade humana que no exige mais do que um participante e uma
proibio: no pisar fora do meio-fio, no mover uma pea do jogo
de damas para trs, no pegar o morto sem uma canastra suja. Criatura que joga, homo ludens (HUIZINGA, 2007), mais do que criatura
que sabe, homo sapiens, o homem joga justamente porque no sabe:
assim como se desconhece o destino da vida, ignora-se o desfecho da
partida, da disputa, da escrita a partir de uma regra a priori. Escrevendo sob uma restrio, o autor no sabe o fim de seu texto, pois

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a produo, antes do produto, que conta aqui, tal qual em qualquer


atividade ldica: conhecemos apenas as normas da vida, as regras do
jogo, a retrica do discurso.
Mesmo em suas formas mais simples, ao nvel animal, o jogo
mais do que um fenmeno fisiolgico ou um reflexo psicolgico.
uma funo significante, isto , encerra um determinado sentido.
No jogo existe alguma coisa em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida e confere sentido ao. Todo jogo
significa alguma coisa (HUIZINGA, 2007, p. 4).

Jogando para significar a si mesmo e ao mundo, o participante


ou competidor est sempre, a partir de uma regra arbitrria, construindo sentidos e experincias. Dos mais simples travalnguas, a lngua
do p em Portugus (Por-por-tu-pu-gus-ps) ou o verlan francs, s
mais elaboradas contraintes oulipianas, a lngua est sempre fadada a
uma norma de associao. Permeada mesmo na fala cotidiana por
regras de combinatria (adjetivos junto a substantivos, advrbios junto
a verbos etc.), da natureza da prpria linguagem, ainda que mais
especialmente na literatura, a necessidade de posicionar as peas sob
determinados padres no tabuleiro.
semelhana do xadrez, ou qualquer jogo, desde os brinquedos
infantis at os espetculos de palco, o texto literrio constitui um
jogo: possui regras prprias, variveis de acordo com a noo de
gnero, espcie e formas, que se impem ao jogador, pessoa que
pretenda realizar os movimentos pressupostos pelo jogo. Tanto
num como noutro tipo de jogo, a desobedincia s normas significa inabilidade ou recusa de jogar; para aderir ao jogo, o jogador
deve, antecipadamente, conhecer as regras que o governam, sob
pena de no participar dos movimentos; qualquer transgresso, a
que ttulo for, violenta o jogo como tal. [...] Aqui se pe uma
diferena que cumpre esclarecer para o bom entendimento da questo: enquanto as regras do jogo no literrio so fixas e universais, as do jogo literrio submetem-se discusso, tal a mobilidade interna conferida pelo instrumento lingustico, a metfora
(MOISS, 1982, p. 53).

Como jogo, a escrita oulipiana sempre a escrita de um prazer,


o que no diminui, no entanto, seu valor. O prazer da criana que
brinca segundo as regras, dos corpos que se amam conforme uma
gramtica de posies, da boca que ri em um trava-lngua chistoso:
todo prazer oriundo de um ritmo, repetio ou padro regrado, tem-

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po do corpo e da linguagem, que a contrainte faz aparecer. Segundo


Franois Le Lionnais (1973), na medida em que so a realidade dos
poetas, divertimentos, chistes e trapaas pertencem ainda poesia. A
literatura potencial , portanto, a coisa mais sria do mundo. Q.E.D6.
No que diz respeito a esse prazer dos jogos verbais oulipianos,
entre a liberdade de escolha de uma pea e a constrio na forma de
mov-la sobre o tabuleiro, as contraintes ganham uma dimenso no
s esttica, mas poltica. No movimento dialtico entre liberar e prender, falar e calar alternncia ertica do verbo em contrainte , o
prazer aqui est ligado tarefa paradoxal lanada por Roland Barthes
(2004): libertar a literatura por meio da prpria lngua, reproduzindo as arbitrariedades combinatrias do sistema e do signo lingustico
atravs das tambm arbitrrias contraintes a serem respeitadas no ato
da escrita. Ressignificando-se o jogo com a materialidade do signo, a
retrica que fora desacreditada por seu excessivo emprego em manuais
de estilo (DIXON, 1971) ganha aqui nova fora: para alm da prescrio, o tropo, a regra e a contrainte viram paradoxal libertao.
A esse respeito, clebre a viso barthesiana de que a literatura um logro que foge ao fascismo da lngua, visto que esta obriga o
sujeito a se expressar de acordo com determinadas regras de associao e construo. Para o pensador francs, no interior da lngua
que a lngua deve ser combatida, desviada: no pela mensagem de
que ela instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela o
teatro (BARTHES, 1994, p. 17). Tal afirmao enseja um paradoxo
em que reside sua fora crtica: a liberdade artstica deve quebrar a
regra por meio da prpria regra, afinal no interior da lngua que a
lngua deve ser combatida.
A literatura no feita, pois, fora das articulaes lgicas e restritivas da linguagem, mas sim jogando com essas regras e aplicando-as de
forma inusitada. O logro no rompe com o jogo; o logro uma substituio da regra tradicional por outra implcita. Mesmo a trapaa, seja com
cartas em um baralho ou palavras em um texto, instaura uma nova regra
(HUIZINGA, 2007). A contrainte, no jogo literrio, ento uma tentativa
de trapacear, trocando as regras da partida. No entanto, a suspenso de
uma restrio incorre sempre em outra, sendo inescapvel o estar preso,
mas facultativa a escolha da priso a que se vai submeter a escrita. No
jogo ou na escrita, estamos sempre presos a regras: o que a retrica fez
foi explicitar essas regras e prescrev-las como bem falar ou escrever;
o que o Oulipo fez foi transform-las em jogo potico.

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Tais prises consentidas, contudo, podem ser extremamente


duras, como a contrainte de L rien que l toute l, criada por Franois
Le Lionnais dentro de um grupo especial, as propositions la limite.
Nessa categoria, o primeiro presidente do Oulipo incluiu contraintes
que explorassem os limites mais extremos da literatura, como jogo
cujas regras pudessem ser de fato seguidas apenas por veteranos.
Entre elas, l rien que l toute l uma forma de trapaa s regras da
lngua que desencoraja jogadores iniciantes, uma vez que subverte as
associaes sintagmticas padro e prescreve uma potica barrada de
termos lexicais, aberta apenas aos functivos gramaticais. Isso implica
que um texto escrito segundo essa contrainte no pode conter substantivos, adjetivos ou verbos, estruturando-se apenas de conectivos,
advrbios e pronomes, como se observa a seguir.
QUE
Vous vous vous, parce que mais nul dont ce aucune
Quand de ce (pour avec) et ce pourquoi jamais;
Seulement le et les et dj si quand nous
Au et contre ces qui do vous aussi vous des.
Quelque enfin, pas ne tant depuis tout aprs une
Car si du en auprs (comme un qui je pour vous).
Et mme Il en leur la plus que ce je ne te
Maintenant et cela ou tel toujours sans trs.
L de des puisque vous, moins que pour dont, autour
Desquels celui ne parmi et jusqualors non
Dans le de et par la quil comme la et seuls
Dsormais tu son donc! et tu bien les ici
Mais grce lorsque sur dont un les des en eux
Tu Tu Tu travers les nul dont ce aucune. (LE LIONNAIS apud
OULIPO, 2011)

Livre para escolher a palavra que quiser dentro dos restritos


arcabouos vocabulares disponveis, o eu-lrico de QUE tem poucas peas para jogar, mas pode mov-las como bem entender, gerando combinaes improvveis. Se, na linguagem cotidiana, conectivos,
pronomes e advrbios servem para relacionar ou apontar para os
termos lxicos, apenas estruturando a cadeia sinttica preenchida por
eles, QUE uma estrutura vazia: a forma fixa do soneto ganha aqui
ares de esqueleto descarnado, cuja musculatura vocabular fosse sub-

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trada. Resta-lhe, ento, apenas um truncamento da palavra que nada


diz, gagueira de formas tonas impronunciveis em cadeia, como ce
je ne te, este eu no tu que escapa lngua.
Se uma das caractersticas do jogo, para Huizinga (2007),
justamente a suspenso da instrumentalidade da ao, substituda pelo
puro gozo da encenao na batalha enxadrstica, na vida das bonecas ou na fabulao do faz de conta , a contrainte l rien que l
toute l cria tambm encenao de discurso. A materialidade do verbo moterialisme de Lacan (1976) o que sobra de um poema de
estruturas ocas, que s faz semblant de discurso, mas no tem nada a
dizer, por no ter com que dizer. Do mesmo modo, a lngua perde na
literatura sua dimenso instrumental e de suposta transparncia para
a mensagem; a opacidade do texto, como algo que merece ser analisado em sua materialidade, que a retrica e os jogos oulipianos
fazem aparecer.
Interlocuo impossvel, a busca malograda de um Outro,
QUE o poema pudesse falar, pode ser entrevista na reiterao das
coordenadas pronominais vous vous vous e tu tu tu que abrem e
fecham o texto. travers les nul dont ce aucune, atravs do nada
cujo nenhum, que as palavras, desprovidas de sentido, viram peas
de jogo, tentando convidar um adversrio ou parceiro para a partida,
a quem, porm, o discurso nada diz. Livre do significado ausente ,
mas preso pela contrainte pungente , h um nada no texto que se
diz sob interdio.
Assim, como interdio, proibio, regra, a contrainte acaba se
tornando uma traduo oulipiana dos pressupostos da retrica, que
imperou no Ocidente de Grgias Renascena, isto , durante cerca
de dois milnios (BARTHES, 2004, p. 13), justificando a aproximao proposta neste artigo.
Entre o topos e o tropos, a Retrica uma geometria da frase,
jogo de regras sacralizadas que remontam Antiguidade Clssica e se
estendem por toda a histria da Literatura Ocidental, como antepassada
da Estilstica e manancial criativo a que os oulipianos voltavam-se
constantemente. Mesmo a estrutura de trabalho em ouvroir, como atuavam esses autores franceses da dcada de 60, remonta forma de
organizao dos rhtoriqueurs dos sculos XV e XVI (GUIDICELLI;
FORTE, 2010), corrente literria que os oulipianos consideram irm
direta em termos tericos e artsticos.

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Como pesquisa anoulipista de contraintes, isto , busca de restries estilsticas anteriores ao grupo de Queneau, os autores
oulipianos, na medida em que retomavam as regras da Retrica clssica, reabilitaram formas fixas, figuras de linguagem e mesmo gneros textuais que fazem parte da histria do Direito, da Literatura e da
Filosofia. Nesse sentido, a tradio literria ocidental est repleta de
jogos retricos, desde as relaes msticas identificadas em
palndromos (frases/palavras que podem ser lidas da esquerda para a
direita ou vice-versa, como Anita lava la tina) na Antiguidade Clssica e depois associadas bruxaria na Idade Mdia. Um clebre exemplo
desse jogo geomtrico com o verbo, que, para os romanos, encerraria
verdades divinas cabala literria ou orculo potico , o palndromo
criado pelo escravo Loreius em 200 a.C. (SANTANNA, 1999), que
pode ser lido em diversas direes:
SATOR
AREPO
TENET
OPERA
ROTAS
(LOREIUS apud SANTANNA, 1999)

Legvel da esquerda para a direita, da direita para a esquerda,


de cima para baixo e de baixo para cima, a frase latina Sator arepo
tenet opera rotas tem dois significados: O lavrador mantm cuidadosamente o arado nos sulcos e/ou O lavrador sustm cuidadosamente
o mundo em sua rbita (SANTANNA 1999). Da interpretao prosaica transcendental, da denotao conotao, esse palndromo
revela a multiplicidade de todo texto literrio, seja no sentido como
significado da frase, seja no sentido como vetor ou direo da leitura.
semelhana do palndromo de Loreius, com 25 letras, Georges
Perec, revisitando a contrainte palindrmica, redigiu um conto tambm palindrmico, com mais de 5.000 letras, o qual, por sua vez, tem
como matria narrativa o prprio ato de escrever um palndromo:
Trace lingal palindrome. Neige, Bagatelle dira Hercule. Le brut
repentir, cet crit n Perec. Larc lu pse trop, lis vice-versa. Perte
c[...] ce trpas rv: ci va! Sil porte, spulcral, ce repentir, cet crit
ne perturbe le lucre: Haridelle, ta gabegie ne mord ni la plage, ni
lcart (PEREC, 1973).

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A CONTRAINTE COMO JOGO RETRICO NA POTICA DE OULIPO

pretensa facilidade da bagatela, enunciada por um hercleo


estro potico ou uma suposta inspirao de musa, Perec ope a real
dificuldade que essa constrio formal lhe impe: o vice-versa, a
inverso do sentido, o vetor simtrico lhe pesam muito. Mesmo assim, at a assinatura de Perec ao final do conto (Georges Perec. Au
Moulin dAndr, 1969) ganha um correspondente palindrmico no
ttulo da narrativa: 9691. EDNA DNILU. O. M. ACR. PSEG. ROEG,
em misteriosa linguagem telegrfica. Se at elementos extratextuais
por excelncia, como a datao, a assinatura e o local de produo do
texto, entram no jogo do palndromo, porque a contrainte transcende os limites do enunciado, invadindo a enunciao e embaralhando
essas categorias, todas axiomatizveis. Do dizente ao dito, nada escapa contrainte da simetria palindrmica.
, pois, para convencer o leitor da onipresena da contrainte e
da premncia da forma, que o palndromo de Perec invade aspectos
extratextuais de seu conto. Assim, alm de jogo e diverso, trata-se
aqui tambm de convencimento e argumentao, fenmenos intimamente relacionados retrica.
A inventio, a dispositio, a elocutio, a pronuntiatio e a memoria,
componentes essenciais do discurso para os retricos romanos, postulam regras e restries do fazer potico e argumentativo, como
gramtica do estilo e restries lngua. Novamente em relao ambgua entre a interdio e a liberdade, as imbricadas regras desses
jogos de linguagem tinham por fim justamente a potencializao do
verbo e seus efeitos sobre o interlocutor, permitindo ao autor/falante
uma srie de novas possibilidades de persuadir o outro.
Restrio da lngua e liberdade de manipulao do discurso, a
Retrica e a criture sous contrainte oulipiana so prxis, enquanto
formas de agir sobre o mundo e sobre a lngua. o fazer, enquanto
ao potica e escrita, mais do que o poema em si ou o escrito, que
est em jogo na formulao de regras a priori para a composio.
Como condio de possibilidade da obra, a contrainte tambm arte,
que precede o texto e, como potncia, domina-o e condiciona-o.
Do mesmo modo, na condio de prxis que a Retrica se
revela uma ao nomeadora (MOISS, 1982), designando pela primeira vez os fatos da linguagem, como objetos cujas particularidades
possam ser apreendidas em seus nomes. A res, raiz da palavra retrica, designa no s o mundo concreto, mas a abstrao da lngua,

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cujo nomear confunde-se com o ato de conhecer, entendendo o funcionamento da linguagem na medida em que se lhe designam os fenmenos. Desse modo, a retrica a disciplina geral do nomear, no
s do cientfico, mas do esttico (MOISS, 1982, p.94).
Aprisionando cada toro ou combinao vocabular em um
nome quiasmas, hiprbatos, hiprboles, oxmoros, ou qualquer outro tropo , a pura essncia da contrainte, catalogando diversas
regras posicionais e associativas em nomes arbitrrios, que prende
esses usos linguageiros em blocos estanques, a serem manipulados,
posteriormente, ao longo da histria da literatura.
Restries a priori, as definies lingusticas criadas pelos
retricos so, portanto, contraintes, em que nomear construes
vocabulares, isto , nomear objetos que nomeiam outros objetos, torna-se uma priso paradoxal, pois abre possibilidades de jogos com
esses objetos at ento impensadas formalmente.
Uma contrainte oulipiana amplamente baseada nesse carter
nomeador da linguagem, sobre o qual se debrua a Retrica, a
littrature dfinitionelle. No entanto, aqui a prxis nomeadora, mais
do que exerccio de Crtilo (PLATO, 1967), problema matemtico,
uma vez que, para os oulipianos, amplamente influenciados pelo Estruturalismo como cincia da linguagem, a nomeao uma funo
que duas palavras contraem entre si (HJELMSLEV, 2009).
Em lugar da justaposio linear entre dois significantes x e y, o
estruturalista Hjelmslev identifica em y uma funo de x, como na
notao algbrica y = f(x), em que a varivel y tem seu valor definido
no per si, mas sempre em funo do valor atribudo a x. Em vez de
significantes com sentido encapsulado e pronto, como se o signo
lingustico fosse uma unidade estvel e harmnica, a definio de um
functivo y a partir de um functivo x corrobora a viso de que o
significado no produto do signo, mas das relaes entre os
significantes, inclusive dos hiatos entre eles (EAGLETON, 2005).
Desse modo, assim como a matemtica trabalha com a noo de
funo composta [f(g(x))], em que a funo f(x) pode ser aplicada a
g(x), de maneira que y (que equivale a f(x)) varie em funo da funo g(x), essa funo de funo se revela na Lingustica e na Literatura, bem como na littrature dfinitionelle oulipiana. Se na Teoria
da Literatura temos o recurso do mise en abme, em que uma estrutura se reduplica infinitamente em seu prprio interior, como jogo de

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A CONTRAINTE COMO JOGO RETRICO NA POTICA DE OULIPO

bonecas russas, a Lingustica Gerativa reconhece o fenmeno da


recursividade, em que uma mesma estrutura pode ser replicada ao
infinito, sem prejuzo da gramaticalidade, de forma um tanto semelhante ao que pode ocorrer com funes compostas na matemtica.
Nessa contrainte, a funo f(x) = substituio de uma palavra x
por sua definio, se aplicada reiteradamente, como em f(f(f(x))), d
origem a diversas verses de um mesmo texto, em que os significantes
da verso anterior so substitudos por sua definio em um determinado dicionrio. Nomear, ento, fazer que no Crtilo (PLATO, 1967)
ao demandada pelo prprio objeto, que s pode ser expresso por
um significante essencialmente atrelado a ele (nome como natureza
do ser), transforma-se, nessa contrainte, em ao maqunica, que pode
ser replicada quantas vezes quiser ou puder o autor.
Sob a aparente simplicidade desse jogo, v-se uma perquirio
dos limites a que a linguagem pode chegar, revelando o universo
infinito de palavras que cabe dentro de uma frase, ainda que s sugerido enquanto potncia ausente, como paradigma que alimenta a significao de cada um dos termos da frase. J que o significado desses
significantes no pode ser definido seno por outros significantes, o
processo s termina quando arbitrariamente o decide o autor; do
contrrio, h sempre mais uma boneca russa a ser aberta, comportando novo texto e novos vocbulos, na infinidade do poder nomeador
da linguagem desvelado pela Retrica.
Queneau foi exmio jogador da littrature dfinitionelle,
desconstruindo frases clebres, aforismos e provrbios, trazendo
tona todas as palavras e sentidos por trs de construes lingusticas
que repetimos diariamente com leviandade. Um bom exemplo foram
os sucessivos desdobramentos que ele props a partir da mxima de
Blaise Pascal: Le nez de Cloptre, sil et t plus court, toute la
face de la terre aurait chang (Se o nariz de Clepatra fosse mais
curto, toda a face da Terra seria diferente).
La partie saillante du visage dune reine dgypte clbre pour sa
beaut: si elle et t de moins de longueur, tout le visage de la
plante habite par lhomme aurait pass dun tat un autre.
La portion qui avance de la face de la femme du roi dune rpublique
du nord-est de lAfrique, fameuse pour son harmonie physique,
morale ou artistique: si elle et t de moins dtendue dune

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extrmit lautre, toute la face du corps celeste non lumineux o


lespce humaine fait sa demeure serait alle dune manire dtre
une autre.
La partie qui pousse en avant du visage de la compagne du chef de
ltat dans lequel le peuple exerce la souverainet par lintermdiaire
de dlgus lus par lui, un tat situ entre le nord et lest de lune
des cinq parties du monde renomme pour sa science des accords
matrielle, concernant les moeurs ou qui a rapport aux arts: si elle
avait eu moins de dimension dun bout lautre, tout le visage de
lastre qui nmet ps de lumire o le genre qui concerne lhomme
forme son habitation serait m dune extrmit lautre (QUENEAU,
1973, p. 116-117).

A cada nova reescritura, verbos, substantivos e adjetivos so


substitudos segundo as acepes propostas pelo dicionrio, o que
leva o leitor a refletir sobre a materialidade do texto e a desnaturalizar
discursos que acabam incorporados mecanicamente ao senso comum.
A operao de substituio, porm, poderia ser reduplicada ad
infinitum, como emblema da concepo algbrica da lngua e do prprio sistema simblico que ela engendra: cadeia em que os valores de
todos os elementos se definem a partir das relaes contradas entre si.
Isso quer dizer que possvel montar, por meio de replicaes
infinitas de f(x), um conjunto de infinitos textos sobre o nariz de
Clepatra, cada vez mais extensos e detalhados. No entanto, a partir
de determinado ponto, o ser humano no mais capaz por motivos
lgicos, lingusticos ou cognitivos de julgar esses textos.
Indecidveis produtos de uma reduplicao infinita, trata-se de
textos que ser humano nenhum poderia escrever ou ler, desdobrando-se cada verso em outra ainda maior, com a substituio de substantivos, adjetivos e verbos por perfrases. Crise da regra, ou contrainte
que fala de ningum para ningum, em textos de comprimento ilegvel, mesmo uma releitura da linguagem humana que esse problema
postula. Jogo retrico levado a seu limite de enunciao, a literatura
definicional nos faz refletir sobre o poder e o alcance de uma potica
da contrainte, potencializada pelo Oulipo.

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A CONTRAINTE COMO JOGO RETRICO NA POTICA DE OULIPO

Consideraes finais
A retrica, como cincia, arte ou mtodo, pode ser aproximada
das propostas oulipianas. Tornadas jogos poticos, suas regras viram
contraintes para o Oulipo, engendrando uma paradoxal liberdade para
aquele que, ao escrever concentrado em uma trava formal, libera-se
da opresso da pgina em branco, da castrao do inconsciente, da
presso por uma suposta criatividade.
Limitaes libertrias, sob uma perspectiva imanente de produo e anlise textual, do vida a poemas, contos e romances nos
jogos oulipianos. Gramticas da frase e do estilo, como regras de
combinao e associao de palavras, as contraintes so jogos de
escrita, intimamente esteados na retrica.
Entre o desejo de falar e os limites impostos pela lngua, a
contrainte desafio restritivo a que esses autores se submetem voluntariamente, na condio de mmica de toda represso sistmica,
psquica ou poltica que permeie o idioma. Construindo o labirinto
de que eles mesmos precisam se livrar, cada oulipiano revive o drama de Ddalo e caro, mas sem construrem engenhos voadores com
que possam se livrar de suas enredadas construes.
Vagar pelo imbricado percurso determinado pela contrainte,
urdindo um fio textual que no se confunde com o de Ariadne , para
o autor oulipiano, um prazer. No se confunde com o fio da amada de
Teseu porque, em vez de levar para fora, para a liberdade, para o fim
teleolgico da narrativa, o fio textual no Oulipo vai sempre mais para
dentro do labirinto, dobrando-se progressivamente sobre si mesmo, a
fim de fazer sobressair, cada vez mais, a contrainte que define a movimentao nesse tabuleiro.
Jogo individual, como o da escrita, o da leitura, ou da pacincia, a literatura oulipiana tambm ludo em que podem jogar mais:
at um grupo de sujeitos dispostos a se lanarem juntos no labirinto,
como aqueles que integram uma equipe, uma oficina, um ouvroir.
Basta-lhes, apenas, disposio para inventar e seguir regras, como se
faz a cada vez que se fala, escreve, ama ou se elaboram afetos no
inconsciente. Aes sempre regradas e ritmadas, emitir sons, garatujar letras, enredar corpos ou sonhar gozos, esto intimamente relacionadas ao que se repete, que tem ritmo, que segue padres associativos,
permutativos ou restritivos. Nesse sentido, a escrita oulipiana uma

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prtica constante de fazer da regra, enquanto contrainte, um acontecimento verbal e retrico.

ABSTRACT
This paper presents a comparison between formal
assumptions from classical rhetoric and the literary
production of the French group Oulipo, in the 60s. As
arguments to support such an approach, we highlight the
clear affiliation of Oulipo authors to the rhtoriqueurs, in
the fifteenth and sixteenth centuries; the use of contraintes
as aesthetic procedures; and the role of rules, inherent in
rhetoric, when transposed to the formal oulipian games. To
do so, oulipian poems are herein analyzed in their immanent
dimension, as products of verbal games that transform
rhetoric into a grammar of the sentence and the text, from
which the aesthetic phenomenon can emerge.
KEYWORDS: Oulipo - game - rethoric - rule - contrainte.

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NOTAS
1

Segundo Lescure (1973), o trabalho dos escritores oulipianos estava estruturado


em duas vertentes: o anoulipisme (pesquisa de contraintes j existentes na
tradio literrias) e o synthoulipisme (inveno de novas restries, a partir
das quais obras literrias poderiam ser erigidas).

A lista completa dos oulipianos, incluindo falecidos e vivos, inclui nomes


como Nol Arnaud, Michle Audin, Valrie Beaudouin, Marcel Bnabou, Jacques
Bens, Claude Berge, Andr Blavier, Paul Braffort, Italo Calvino, Franois Caradec,
Bernard Cerquiglini, Ross Chambers, Stanley Chapman, Marcel Duchamp,
Jacques Duchateau, Luc Etienne, Frdric Forte, Paul Fournel, Anne F. Garrta,
Michelle Grangaud, Jacques Jouet, Latis, Franois Le Lionnais, Herv Le
Tellier, Jean Lescure, Daniel Levin Becker, Harry Mathews, Michle Mtail,
Ian Monk, Oskar Pastior, Georges Perec, Raymond Queneau, Jean Queval,
Pierre Rosenstiehl e Jacques Roubaud.
3

Na impossibilidade de traduzir a palavra, optou-se por manter a forma


original. Trata-se de um trocadilho com o cargo de Prsident Fondateur de
Franois Le Lionnais, jogando com os semas de frais (custos, em francs) e
ponte (jogadores contra a banca no cassino).
4
Conscientes de que o jogo com formas fixas arbitrrias no era propriamente uma inovao sua, os oulipianos passaram a homenagear, com o
irnico nome de plagirios por antecipao, todos os autores que j trabalhavam com contraintes muito antes da criao do Oulipo, como inmeros
poetas latinos e barrocos. Os oulipianos consideravam ainda que havia em
sua poca (e haveria futuramente) outros autores oulipianos (considerados,
pois, membros do grupo) inconscientes, os quais, mesmo sem saber da existncia do Oulipo, realizavam literatura potencial. Nesse sentido, podemos
citar Jorge Lus Borges e Osman Lins, cujas semelhanas com as obras
oulipianas tm sido objeto de estudo de diversos trabalhos acadmicos.
5

Ao longo deste artigo optou-se por no traduzir alguns textos oulipianos,


quando qualquer alterao na camada significante ocasionasse a perda da
contrainte. Isso acontece especialmente com as contraintes relacionadas ao
universo fontico, grfico ou lexical.
6

Quod erat demonstrandum, ou Conforme se queria demosntrar, em portugus.

Recebido em: 31/05/2013.


Aceito em: 31/07/2013.

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