Um Olhar Humanista Sobre Os Números Complexos
Um Olhar Humanista Sobre Os Números Complexos
Um Olhar Humanista Sobre Os Números Complexos
Carlos Mathias
Universidade Federal Fluminense
Joo sempre gostou de matemtica e, no vestibular, disputar vagas para os cursos de
Engenharia Qumica e Administrao. Suas aulas de matemtica ocorrem sempre nas
teras e quintas-feiras pela manh e sua dedicao grande. Seu professor de
matemtica um sujeito simptico e entusiasta do potencial pedaggico da resoluo de
exerccios. Os colegas de Joo apreciam o professor, acham que ele vai direto ao
assunto e que passa os macetes de resoluo das questes mais comuns, mas Joo, ao
contrrio de seus colegas, sempre reclama da enorme quantidade de exerccios
similares, pois gosta de ser surpreendido e de manter em vista as aplicaes daquilo que
estuda.
Numa certa tera-feira, ao falar sobre polinmios, seu professor colocou:
- Considerem p(x) = x 4 x 2 1. fcil ver que p(x) no possui razes reais e, portanto,
no divisvel por nenhum polinmio de primeiro grau. De fato, notem que p(x) a
soma de parcelas positivas. Lembrem-se: toda vez que o expoente de uma potncia for
par, ela ter sinal positivo! Assim, o polinmio p(x) no pode ter razes reais, pois ele
sempre ser maior do que, ou igual a, 1! Na aula de quinta-feira, no entanto, iniciaremos
um novo assunto, os nmeros complexos, quando mostrarei que p(x) divisvel por um
polinmio de segundo grau!
Joo no entendeu muito bem o que aconteceria na prxima aula, pois ainda analisava
os detalhes do tal dispositivo prtico de Briot-Ruffini, utilizado por seu professor na
resoluo de um exerccio anterior.
Na manh da quinta-feira, pontualmente como sempre, seu professor de matemtica
entra em sala e cumpre sua promessa:
- Bom dia, hoje eu apresentarei a vocs os nmeros complexos! Vocs se lembram do
que acontecia quando o delta de uma equao do segundo grau era negativo? Ela no
possua soluo, certo? Pois ento, hoje mostraremos que, na realidade e durante todo o
tempo, ela tinha soluo! Permitam-me apresentar o novo conjunto numrico, que
chamaremos de ...
Indo ao quadro, o professor escreve:
Definio: Chamaremos de conjunto dos nmeros complexos
, o conjunto
unidade imaginria: voc imagina que existe um nmero cujo quadrado se iguala a -1...
Entendeu?
Aps ouvir a resposta de seu professor, Joo sussurra para o amigo que se sentava ao
seu lado na sala:
- Ah! Entendi sim... o que ele quis dizer foi que agora pode dar negativo...
Joo retorna ao seu professor:
-Mas esse nmero i serve para qu? Os nmeros inteiros e as fraes esto em toda
parte, o 2 existe apenas nas aulas de matemtica, mas esse nmero i... s agora, em
setembro!
Seu professor responde:
- O nmero i tem muitas aplicaes, como voc ver mais adiante. Os nmeros
complexos ampliam o universo de solues das equaes de segundo grau ao mximo,
assim, se em um problema precisarmos resolver uma equao deste tipo, o que acontece
com bastante frequncia, sempre seremos capazes de encontrar solues para ela. Por
exemplo, veja o exerccio 38 da pgina 131 de nosso livro de exerccios. Ele nos pede
para encontrarmos as dimenses de um retngulo cujo permetro seja 20 e cuja rea seja
40, como voc montaria esse problema? Voc teria de resolver uma equao do segundo
grau, certo? Este um exemplo!
Joo, que no havia feito o tal exerccio, logo comeou a resolv-lo e viu que, para obter
a sua soluo, ele precisaria achar um nmero x para o qual x.(10 x) 40 . Ao resolver
esta equao pela frmula de Bhaskara, Joo verificou que o valor de delta era negativo
e prontamente interrompeu o seu professor, que j havia voltado para o quadro:
- Professor, me perdoe, mas a equao do segundo grau do problema, x2 10 x 40 0 ,
no tem soluo!
-Errado, Joo! Existem duas solues! Veja s, calculando delta, s um minutinho...
So os nmeros complexos 5 i 15e 5 i 15 ! - retrucou o professor.
-Mas nunca vi um retngulo com lados medindo isso! Esse retngulo no existe! Pelo
menos isso que eu diria se eu tivesse resolvido este problema na tera-feira! Seria um
retngulo imaginrio ento?
- No Joo, o retngulo realmente no existe, nem na tera, nem hoje...
- Mas ento para que preciso dos nmeros complexos?
- Mais tarde voc ver, vamos adiante, o tempo que temos curto e o exame de vocs
ser em novembro...
Algumas Consideraes Filosficas Iniciais
A histria fictcia que acabo de narrar foi inspirada em uma situao real, ocorrida h 26
anos. No me acho um pessimista por acreditar que o que senti naquele dia semelhante
ao que sentem os tantos alunos de hoje, quando o assunto em pauta Nmeros
Complexos. Afinal, os nmeros complexos protagonizam um grande drama do Ensino e
da Aprendizagem da Matemtica na Educao Bsica e, no que diz respeito
apresentao do assunto, as coisas no mudaram muito nos ltimos 30 anos. Imagino
que a anlise deste drama se alinha bem aos objetivos desta obra: discutir quais saberes
docentes, alm do especfico e do pedaggico, podem contribuir para o Ensino e a
Aprendizagem da Matemtica. Minha forma de conduzir tal discusso se dar luz das
Filosofias Socioconstrutivista (Ernest, 1991) e Humanista (Hersh, 1997) da Matemtica,
vividas na exposio de uma proposta de construo do conjunto dos nmeros
complexos (Mathias, 2008), originalmente considerada em um curso de formao
continuada de professores de matemtica, na Universidade Federal Fluminense.
Muitos dos atuais cursos de Licenciatura em Matemtica vm passando por reformas
curriculares que incluem a Histria da Matemtica de modo mais significativo em suas
propostas. Isto algo bom. No entanto, no que diz respeito Filosofia da Matemtica, a
histria outra: as propostas de reformulao curricular no guardam mais espao para
que alunos e professores reflitam acerca da natureza da matemtica. Mas como estudar,
ensinar ou aprender Matemtica por meio de um programa de formao que no prope
uma reflexo to essencial?
O que Matemtica? Enquanto a maioria dos alunos e professores no sabe o que dizer
e se coloca de forma evasiva diante de tal questionamento, o senso comum tem na ponta
da lngua as suas respostas e as suas anedotas: a Matemtica a rainha das cincias
exatas, infalvel, perfeita, cujos encaminhamentos se do pelo clculo e pela lgica do
verdadeiro ou falso. Paul Ernest (1991), em seu celebrado Philosophy of Mathematics
Education, descreveu, analisou e criticou muitssimo bem esta percepo to frequente
no senso comum, que Jere Confrey denominou de percepo absolutista da
Matemtica. O prprio Confrey a situa como
...a eptome da certeza, das verdades imutveis e dos mtodos
irrefutveis... segura por meio da infalibilidade de seu mtodo
supremo, a deduo... Os conceitos em Matemtica no so
desenvolvidos, so descobertos... as verdades anteriores no so
alteradas pela descoberta de uma nova verdade... a matemtica assim
prossegue pela acumulao de novas verdades matemticas, como
tendo uma estrutura inflexvel, definida a priori. (Confrey apud
Ernest, 1991)
Mas por que tal percepo da matemtica seria a mais difundida no senso comum?
Poderia a popularidade absolutista afetar o ensino e a aprendizagem da matemtica nas
escolas ou, ainda, ser uma consequncia do que l acontece? As percepes absolutistas
mais comuns da natureza matemtica, no sentido colocado por Confrey, so o
Platonismo (no qual incluo o Logicismo) e Formalismo, sendo a primeira preponderante
(Hersh, 1997).
O Platonismo uma percepo substantiva da natureza matemtica que considera a
existncia objetiva de um mundo ideal e independente da humanidade, no qual residem
os objetos matemticos, sempre verdadeiros, imutveis e eternos. comum vermos
alunos e professores afirmando, por exemplo, que o Teorema de Pitgoras sempre foi
verdadeiro, mesmo antes de sabermos o que era um tringulo. De acordo com esta
percepo, uma demonstrao do Teorema de Pitgoras seria mais o ato de certificao
Hersh(1997) destaca duas colocaes feitas por Jean Diedonn e Paul Cohen, que
indicam a tendncia de aproximao dos dois olhares absolutistas na metade do sculo
XX e que se confirmaria diante da convenincia e do tempo, no senso comum:
Ns acreditamos na realidade matemtica, mas claro que, quando
os filsofos nos atacam com seus paradoxos, ns corremos, nos
escondemos por detrs do formalismo, dizemos A Matemtica
apenas um jogo de smbolos sem sentido, e, logo aps, sacamos do
bolso os captulos 1 e 2 sobre Teoria dos Conjuntos. Quando
finalmente somos deixados em paz, ns voltamos para a nossa
matemtica e a fazemos como sempre a fizemos, com a sensao que
todo matemtico sente, a de estar trabalhando com algo real. Essa
sensao provavelmente uma iluso, mas bastante conveniente.
Essa a postura do Grupo Bourbaki, no que diz respeito aos
Fundamentos (da Matemtica). (Dieudonn apud Hersh, 1997)
Para o matemtico comum, que apenas busca saber se o seu trabalho
est bem fundamentado, a escolha mais atraente evitar quaisquer
dificuldades por meio do Programa (Formalista) de Hilbert. Neste
ponto, a Matemtica estar sendo considerada como um jogo formal
e a nica questo considerada ser a consistncia... A posio
platnica provavelmente aquela que a maioria dos matemticos
preferir tomar. Ser apenas no momento em que surgirem algumas
dificuldades acerca da Teoria dos Conjuntos que tal posio ser
questionada. Se essas dificuldades de fato causarem algum incmodo
(no matemtico), ele correr para o abrigo do Formalismo, no
entanto sua posio normal acabar ficando entre as duas, tentando
aproveitar o melhor dos dois mundos. (Cohen apud Hersh, 1997)
, o conjunto
o conjunto
, ,
x1, y1 x2 , y2 x1 x2 , y1 y2
. No entanto, antes mesmo que os alunos verifiquem tal igualdade formalmente, eles
perguntam: que operao de produto essa? Se despirmos a Definio 2 da
impecabilidade matemtica que a ela foi atribuda durante anos, nada mais veremos
alm da proposta Caro aluno, a fim de compreender a igualdade i 2 1 , de forma
absolutamente trivial e sem sentido algum neste momento, voc acolheria a escolha
injustificada do produto
Este um
2) Comprei 4 sabonetes;
3) Meu pai me deu 5 notas de R$1,00;
4) Ele deu 4 exemplos de contagens simples.
Colocaes resultantes de contagens simples e contextuais (ver tabela):
5) Por causa da chuva, 8 alunos faltaram e apenas 49 vieram;
6) Comprei 6 sabonetes, dois a mais do que eu realmente precisava;
7) Estou devendo R$5,00 para o meu pai;
8) Com a entrada da frente fria, a temperatura caiu 13 graus!
9) Ele deu 5 exemplos de contagens contextuais, um a mais do que havia dado
sobre contagens simples. (Ou: ele deu 4 exemplos de contagens simples, um a
menos do que havia dado para contagem contextual)
Os nmeros naturais ( ) so objetos construdos socialmente, que perpassam as
contagens simples. O mesmo pode ser dito sobre os nmeros inteiros ( ), no que diz
respeito s contagens contextuais.
Exemplo
Classe de
contagem
Contexto e orientao
1
2
3
4
5
Simples
Simples
Simples
Simples
Simples e
contextual
6
7
Simples e
contextual
Contextual
Contextual
Simples e
contextual
Representao dos
resultados da contagem (por
classe)
57
4
5
4
Simples: 8, 49
Contextual : -8
Simples:6
Contextual: 2
-5
-13
Simples: 5
Contextual: 1
(5 = 4 +1)
Simples: 4
Contextual: -1
(4 = 5 -1)
m
capaz de
n
m
AC AB BC = 2 AB e isto implicaria = 2, o que sabemos ser impossvel,
n
2
- processo de
ponto da reta obtido pela translao do ponto A, ao longo do sentido contextual positivo
(ordem crescente), por um comprimento igual a 4. O nmero real -3 representar a
transformao geomtrica T3 :
Tx Ty Ty Tx Tx y , x, y .
onde B o ponto da reta mais prximo de A do que do seu oposto, A, tal que
OB 4 OA .
ponto A da reta, por T3 (A) = B,, onde B o ponto da reta, mais prximo do oposto de A,
do que do prprio A, tal que OB 3 OA . Mais precisamente, o nmero -3 o
representante da transformao geomtrica que inverte o sentido contextual e triplica
comprimentos (mdulo).
De um modo geral, um nmero real x pode ser relido geometricamente, por meio da
operao de produto , atravs da transformao Tx :
, , , , , definida por
T T
de
translao
associada
operao
de
soma
+,
temos
x y
T T , x, y .
x<0
constante,
que
anula
transformao que preserva o sentido contextual. Como vimos, este fato est bastante
relacionado com a geometria pouco espaosa da reta, que nos permite atuar apenas
sobre os sentidos contextuais e sobre os comprimentos. Se consegussemos nos colocar
em uma posio que nos permitisse perceber direes e incluir outras transformaes
capazes de alter-las, talvez fosse possvel estabelecer algum sentido para a expresso
i 2 1 , pelo menos intuitivamente.
A partir de agora, vamos supor que somos observadores externos da reta, mais
precisamente: vamos supor que a reta
, ,
por exemplo, e que a estamos observando de algum ponto deste plano, que no pertence
a ela. No momento, no nos preocuparemos com as operaes + e , nossa colocao
ser puramente geomtrica. Repentinamente, ao nos tornarmos observadores externos
da reta com um maior conhecimento espacial (conhecemos o plano), o conceito de
direo comea a fazer sentido para ns, particularmente em
, , . Com isso, o
, ,
pelos
, ,
por
, onde as somas
so as somas usuais de
Ou seja ,dados
reais, temos
, o que implica que a operao recm definida
O grande desafio neste momento ser definir uma operao de produto no plano,
compatvel com a abordagem geomtrica feita em
x 0 y
x y
.
0 x 0
0 x y
y 0
0 .
x y
definida
pela
matriz
mais
precisamente,
mi
,
1 0
0 1 x y
Ti ( x, y )
. ( y, x) .
1 0 y x
0 1 1
0
Ao efetuarmos o produto
. , obteremos (0,1) , uma vez que a matriz
1 0 0
1
0 1
x 0 y 0 0 1 x y
( x, y) x y.i
.
0 x 0 y 1 0 y x
A transformao geomtrica definida por uma matriz, que o produto de duas outras
matrizes, igual composio das transformaes associadas a cada uma delas,
.
nas transformaes-componentes
e
y x 0 x 0 y 1 0
0 x
y 0 0 1
.
, podemos perceber que ela a resultante de duas homotetias de razo
0 y 1 0
x e y, respectivamente, que atuam em direes ortogonais. Se analisarmos a figura
x y
abaixo, veremos que a transformao promovida pela matriz
, ser uma
y x
y
rotao, no sentido anti-horrio de um ngulo correspondente a arctg ,
x
x y
A figura acima mostra o ampligiro
atuando sobre um vetor v (a, b) . O vetor
y x
x y a
resultante, tracejado em vermelho, o vetor transformado
. .
y x b
Toda a argumentao feita at aqui corrobora a participao visceral das operaes
algbricas definidas em
nos processos de deformao geomtrica por meio de
ampligiros. H pouco, conseguimos estender a operao de soma ao plano, por meio da
realizao de translaes. Mas como estender a operao de produto real ao plano?
A definio do produto ( x1, y1 ) ( x2 , y2 ) ser alcanada por meio do produto matricial,
x y1
x2 y2
1
e x2 , y2
. Se
y1 x1
y2 x2
analisarmos geometricamente tal composio, veremos que ela ser um novo ampligiro,
capaz de compor os ampligiros
x1 , y1
cujo ngulo de rotao e cujo fator de deformao so, respectivamente, iguais soma
dos ngulos de rotao e ao produto dos fatores de deformao dos ampligiros
componentes. A matriz associada ao ampligiro resultante dada por
x1 y1 x2
.
y1 x1 y2
desta matriz
y2 x1 x2 y1 y2 ( x1 y2 x2 y1 )
que
novo
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