CASTRO, Mariana Dos Reis Gomes De. "Tédio e Modernidade em Baudelaire"
CASTRO, Mariana Dos Reis Gomes De. "Tédio e Modernidade em Baudelaire"
CASTRO, Mariana Dos Reis Gomes De. "Tédio e Modernidade em Baudelaire"
Tdio e Modernidade
em Baudelaire
MESTRADO EM FILOSOFIA
Tdio e Modernidade
em Baudelaire
MESTRADO EM FILOSOFIA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Profa. Doutora Jeanne Marie Gagnebin
(Orientadora)
____________________________________
Prof. Dr. Peter Pl Pelbart
(Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo)
____________________________________
Prof. Dr. Luciano Ferreira Gatti
(Universidade Federal de So Paulo)
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Palavraschave:tdio,melancolia,modernidade.
ABSTRACT
The aim of this work is to circumscribe tedium notion in modernity. The first
chapter is dedicated to APhilosophyof Boredom (1999), Lars Svendsen book, which
willenableustodifferentiatediversekindsofapathieswhichoccurredalongmankind
history, by philosophy and literature. The second chapter is destined to verse about
somewritingswhichthephilosopherWalterBenjamindestinedtoCharlesBaudelaire,
notedlytheessayOnSomeMotivesinBaudelaire(1939)andsomefragmentsofhis
surveyParisoftheSecondEmpire(1938). In thethirdchapter,wewilldedicateto
thepartoftheEssaysincontemporarypsychology(1883),PaulBourgetbook,destined
toanalyseCharlesBaudelaireandtoinserthiminwhattheliterarycriticcallsnihilism,
pessimism. In the fourth chapter we will examine tedium in Baudelaire from the
perspective by an Erich Auerbach article and, also, the Jean Starobinski reflections
concerningthefigureofthemelancholic.Finally,wewillusepassagesofClaudioWiller
doctoratethesistothinkaboutthebodyandthedeathinBaudelairepoems.
Keywords:tedium,melancholy,modernity.
SUMRIO
Introduo...........................................................................................................10
Captulo1.............................................................................................................12
Captulo2.............................................................................................................48
Captulo3.............................................................................................................89
Captulo4...........................................................................................................100
ConsideraesFinais..........................................................................................114
RefernciaBibliogrfica.....................................................................................116
INTRODUO
Essadissertaopretendedelimitaranoodetdionamodernidade,sendo o
focodenossoestudoaobradeBaudelaire.Consideramosotdioumtemarelevante
parapensaramodernidadeeomundoatualmedidaqueapenetraodesteestado
desprito se popularizou e se tornou bastante frequente a partir da acelerao do
tempo,indissociveldoquenostrouxeocapitalismo.Otdioeaaceleraodoritmo
impostospelasgrandescidadesepelotrabalhonoso,comopoderiamparecernum
primeiromomento,opostosoucontraditrios;mas,sim,umparcomplementar.
Escolhemos tratar este assunto atravs da obra de Baudelaire porque ele foi o
primeiro poeta a versar de modo to particular sobre o impacto que as metrpoles
tiveram sobre a sensibilidade humana, como nos ensinou a lerWalter Benjamin,e o
tdio est sempre presente de maneira mais ou menos pronunciada em toda a sua
obrapotica.Seusversossoinditosnoquetangetarefadeseralgumquecantaa
modernidade,quetomaparasiestedever,enospareceimpossvelfazlosemcantar,
simultaneamente,amelancoliaqueprpriaaestetempo.
Como desenvolve Franklin Leopoldo e Silva1, ao mesmo tempo em que
Baudelairerecusaomundoemquevive,tambmpertenceaestemundo,aindaque
estasejaumaexperinciaqueimplicaoexlio.Baudelaireaceitaoseupresentecomo
a sua inevitabilidade como um destino ou uma fatalidade ; este um trao
constitutivodesuamelancolia.ComodirJorgeColi,
FilosofiaeIntuiopoticanamodernidade.CivilizaoeProgresso:Ambivalnciadaexperincia
poticaemBaudelaire.CursoministradoporFranklinLeopoldoeSilvanosmesesdemaroseabrilde
2011noTUSP.
2
COLI, Jorge. Conscincia e herosmo no mundo moderno. In: NOVAES, Adauto (Org.). Poetas que
pensaramomundo.SoPaulo:CompanhiadasLetras,2005.p.291304.
10
Otrabalhodeimergirnamodernidadeparadaextrairasuabeleza,oseuvigore
oseuherosmofoiatarefaqueBaudelairetomouparasi.Opoetaqueriavalercomo
um antigo, em sua modernidade. Devemos dizer, no entanto, que se Baudelaire
assumeamissodecantarohericoeoBeloprpriosaosculoXIX,estascategorias
j no guardam relao com aquelas que pertencem ao romantismo nem
Antiguidade. Baudelaire abriga em sua poesia uma tnica prpria reificao do
mundomoderno.Elejrepresentavaasimesmocomoumsersolitrioeregidopor
suasprpriasleis,emmeiomultido.Sehapossibilidadedeumherosmoedeum
gozo com acidade, nOPintor da vida moderna, por exemplo, h o vazio, o tdio,o
esgotamento e a resignao, o gozo na solido que reinam primordialmente n As
FloresdoMalenOsPequenosPoemasemProsa.
11
CAPTULO1
II
"Otdiobaixousobretodasascoisasque,porumlongo
tempo,haviamparecidoboasdemais".
JulienGracq,LeRivagedesSyrtes(1951).
"Seuserestavasemeixoouperfil,seucentroemtodaparteeaperiferiaem
partealguma,umpntanonomapeadodepreguia".
Beckett,DreamofFairtoMiddlingWomen.
LarsSvendsen,logonocomeodoprimeirocaptulo,apontaparaumaquesto
fundamental:nohaveria,paraele,umadistinotoclaraentreosaspectossociaise
ospsicolgicosquandotratamosdefalarsobreotdio.Esteumestadodeesprito
que atinge o indivduo, porque atinge tambm de forma total a nossa cultura, diz
respeitoaestemomentohistricoemquevivemos.Otdionoseria,assim,apenas
um estado interior, uma vez que participamos de prticas culturais que esto
impregnadasatomaisaltograudestaparticularformadeapatia.
Oautorfazumarelaoentreotdioeainsnia,estadoemqueoeuperdesua
identidadeevaganaescurido,numvaziocomoqueinfinito.Terradeningumentre
avigliaeosono.Caracterizadopelafaltadequalidades,otdioenredaohomemem
sensaesquenoodeixampensar,agirouser.Avontadenoconsegueseagarrara
coisaalguma.
Atticaaqueesteautorrecorrerparainvestigareprocurardizerotdioparece
ilustrar bem o seu pressuposto de que no estamos tratando de um mal individual:
como discursos e reflexes provindos de uma introspeco, de um eusubjetivo
mostramse rapidamente insuficientes para dar conta deste objeto, s lhe restar
debruarse no que nos d a cultura: narrativas, filmes, obras filosficas, canes e
poemas.
13
Por que o tdio aparece aqui como um objeto interessante filosofia? Outros
camposdosaberedaculturatomaramparasuacomarcaconceitosqueparecemter
uma relao de consanginidade (e no de identidade) para com o tdio. A acdia,
como examinaremos mais adiante, vista de um ponto de vista mais teolgico. A
melancoliadegrandeinteresseparaaestticaeparaapsicologiaepsicanlise.Ja
depresso um diagnstico clnico da psiquiatria epidmico nos dias atuais. O tdio
parece um assunto de menor importncia por no possuir nem a gravidade da
depresso nem o encanto da melancolia, atribudo a partir do elo que esta teria, ao
menosimaginariamente,comabeleza,asabedoriaeasensibilidade.
De acordo com Svendsen, o tdio lhe particularmente caro como tema
filosfico porque neste terreno que nos deparamos com a falta de sentido, de
significado, em outras palavras, o significado aparece como algo passvel de ser
perdido; a relao com o mundo, a relao entre sujeito e objeto (seja este objeto
Deus,osoutroshomens,aprpriacultura,otrabalho)estextraviada.Segundouma
curiosaenunciaosua,otdioinumano,umavezqueroubaosignificadodavida
humana ou a expresso de tal ausncia. 3 O que caracterizaria uma questo
filosfica?Paraesteautor,talquestoimprescindedeuma"espciededesorientao"
e,assim,Svendsenjustificaotemaemsuarea.
III
Dizerqueotdioespecficomodernidadenoexcluiroutrasformasquese
deram durante toda histria da humanidade e da filosofia de desgosto, desprezo ou
indiferena diante da vida. Vamos explorar agora algumas figuras que em sua
descrio e sintomas se assimilam ao tdio que nos interessa, para tornar possvel
importantesdistinesentreelas.
No grego antigo, a palavra mais prxima ao tdio que Lars Svendsen aponta
akedia, composta de kedos (importarse com) somada de um prefixo negativo. Mas
estaideiapareceterdesempenhadoumpapelmarginalnopensamentogregoantigo,
quedescrevia"umestadodedesintegraoquepodiasemanifestarcomoestupore
Svendsen, Filosofia do Tdio, RJ: Zahar, 2006. Traduo: Maria Luisa X. de A. Borges. Pg. 34.
14
15
IV
Paradiferenciarotdioqueassolaamodernidade,deflagradopeloRomantismo,
dasoutrasformasdeapatiaquesederamnodecorrerdahistriadahumanidade,o
autorfazumadistinoentreotdiosituacionaleotdioexistencial.Oprimeiroum
aborrecimento que envolve certo contexto: uma aula, uma conversa, um seminrio,
umamsica,umdiaqueentediante.Aqui,otdioseriaamanifestaodeumdesejo
poralgoespecfico,aindaquetaldesejosejaapenasdesembaraarsedasituaoque
enfada. O que importa que o tdio situacional, para ser mitigado, pode apenas
requereralgumasortedevivnciasnovas,incomuns.
Aafirmaoprincipaldolivro,aonossover,a teseemtornodaqual orbitaro
outrostemastambmimportantesadequeapartirdoRomantismo,otdiosurge
deformaexistencial,influenciando,assim,gravementeonossohumor,onossomodo
deser,anossarelaocomomundodemaneiraglobal,absoluta.Nestecaso,odesejo
no tomaria forma especfica, mas seria o anseio por todo e qualquer objeto ou,
talvez,oanseiopelotodo,peloinfinito.Oqueumoutromododedizerque,notdio
profundo este nevoeiro silencioso, este frio mental, este distanciamento
incompreensvel est perdida a capacidade de se encontrar qualquer objeto
desejvel. Um tal estado de esprito careceria de qualquer expressividade, como se
esta falta "contivesse a intuio implcita de que ele no pode ser superado por
nenhumatodevontade"5.
Svendsen recorre a uma frase do dirio de Kafka que ns consideramos muito
bonitaesignificativaparadizerestasituao:Kafkasequeixavadeexperimentaralgo
que era como "se tudo que eu possusse tivesse me deixado, e como se tudo isso
dificilmentepudesseserobastantecasoretornasse"6.
Hcercadedoissculos,ohomempassouasepercebercomoumserindividual
quedeveserealizar,queestcondenadonecessidadedefazerdesuaprpriavida
algointeressante.Assim,avidacotidianapassaaservistacomoumaprisoeanica
forma de ultrapassla, de no sucumbir modorra, alcanar a originalidade, a
inovao,atransgresso.Otdioaparecetambmcomoumdesejodesersubmetido
5
6
16
quesedesenvolveuapartirdopensamentodeKanteFichtedadcada
de 1790 em diante, tendo Iena como seu centro. Naturalmente, no
penso que vrias jovens e brilhantes mentes reunidas em Iena
Hlderlin, Novalis, Tieck, Schlegel etc. foram a origem de toda a
desgraa posterior, mas sim que ali encontramos uma formulao,
inusitadamentebemdefinida,deummododepensamentoqueesteve
disseminadonocursodosltimos200a250anos.Nspensamoscomo
faziamosromnticos.FoucaulttinharazoaodizerqueIenafoiaarena
ondeesseinteressesfundamentaisdaculturaocidentalirromperam 7.
O Romantismo , em boa medida, um tipo de realizao do
individualismofilosficotalcomoelesedesenvolveunosculoXVIII.8
Michel Foucault, The Fathers No, in Aesthetics, Method and Epistemology: Essential Works of
Michel Foucault, 1954-984. Nova York, 1998, vol. 2, pg. 18.
8
Svendsen, op. cit, Pg. 64-65.
17
partirdeumasubjetividadedoego,oeuassumesupremaciacomodoadordevalore
as coisas em si no teriam significado em si mesmas, mas somente o significado
atribudo pelo "eu". Neste caso, para utilizar uma citao de Hegel empregada por
Svendsen, "o ego tornase o amo e senhor de todas as coisas" 9. Atravs deste
movimento, ento, alm do ego tornarse absoluto em sua prpria perspectiva, o
mundo tornase vazio e... entediante. O significicante e o insignificante tornamse
efeitos da soberania que o eu assume, e o mundo est expropriado de sua
objetividade,desua"realidade".
Reduzido a tal impasse, o ego estaria aprisionado em sua vaidade vazia, sem
conseguir demoverse deste lugar. Preso em sua todopoderosa autosuficincia, a
objetividadeou"realidade"parecemestaremumcantooutemporemotoaoqual
vedado o acesso. Que o eu seja destronado no , afinal, um movimento nada
simples, que dependa apenas de detectar que estamos adoecidos de subjetivismo.
Esselugaremqueestamosfoiumademoradaconstruohistricaefilosfica.
Oqueassumeumaformaoraassombrosaoravivaznomundomodernoum
acontecimentosemprecedentes,queestamosacostumadosadenominarnafilosofia
e tambm na literatura, a partir de Dostoievski, como a morte de Deus (ou dos
deuses).Estaquestoqueoraanalisamosatravsdoromantismoedasupremaciade
9
10
18
queseimbuiuoegotodaesta,umavezqueaqui,ohomemseviuimpelidoaocupar
aposiodivina.
ParaSvendsen,osubjetivismo,adoenamaisrepresentativadenossotempo,
estassociadorevoluocopernicanarealizadaporKantnafilosofia.
AmortedeDeusnoalgoqueaconteaapenasemNietzsche.Deusj
est morto em Kant, pois no pode mais garantir a objetividade da
cognio e a ordem do universo. Alis, j no havia mais nenhum
desejodessagarantia11.
Odesafiocomqueosujeitomodernosedeparadarcontadestegrandevazio
que se apoderou de todas as coisas. Para suplantar um grande Significado, este o
problema,nonoscontentamoscomoquenosresta:atarefadeencontraredecriar
significadospossveis,provisrios,nototalizantes.
Este o elo entre o tdio e o romantismo: aquele que se entedia no sabe
exatamenteoqueprocura,masestabusca,aindaqueindefinida,nomodesta:a
ambiodeumaplenitudedevidaindeterminada,deuminfinito.Semestesignificado
maisculo, nenhum outro interessa, convence, faz vibrar a vida. Entre a ambio de
umtudooutodoeoterrveldesapontamentoemquenaufragasemforaoumotivo
pararesistir,ohomemcolocanocentroestaimensidadequeagoraopossui:onada.
No seria o caso de questionar no o que est no centro, mas a prpria ideia de
centro, disto que em ns quer um astro? a pergunta que alguns filsofos da
modernidade parecem enderear ao seu prprio tempo como ao porvir e que
continuamosformulandonostemposatuais.
VI
19
Commetumeplairais,nuit!sanscestoiles
Dontlalumireparleunlangageconnu!
Carjecherchelevide,etlenoir,etlenu!12
Nestesversosseencontramovazioeonegro,tambmodesconhecidofonte
de onde jorra tanto de sua potica e matriz do belo. A poesia de Baudelaire parece
caar o desconhecido, bem como o inopinado, no s na forma do enigma que a
Naturezaassume.Estabuscaestpresentetambmtendoacidadeporcenrio,como
amulhervisodeAUmaPassante.Nestecaso,abelezadevmdeumdesconhecido
que acaso, de um encontro fugitivo, efmero esta mulher... de luto!, que um
claro. A ela, o poeta pergunta, Ne te verraije plus que dans l'ternit? 13. A
aspirao ao eterno invade mesmo a viso mais fugaz. La douceur qui fascine et le
plaisir qui tue 14: na beleza esto tramados seus pontos de morte e prazer, do
efmero e da eternidade. Imortalidade, ou desejo de fixar, de fazer ficar que no se
realizasenoatravsdapalavra.Apaixoquesseestabilizaeseequilibranaforma.
Desejar o infinito uma imagem que surge habitualmente nos versos
baudelairianos, que frequentemente est pareada morte, que surge como uma
paixo; a morte que , justamente, a marca inapelvel do finito, da interrupo; o
cerceamentodovivido.Amelancolia,ospleenestomarcadospeloinfinito(poruma
tristezainfinita),e,noentanto,solimitadospelamorte.
Tambm encontramos estes traos da perseguio quilo que no tem fim no
poemaemprosaOConfiteordoArtista.Estepoemaumembateentreofinitoea
12
Baudelaire, As Flores do Mal. RJ: Nova Fronteira, 1985. Obsesso, pg. 298-299. Traduo de Ivan
Junqueira: Me agradarias tanto, noite, sem estrelas / Cuja linguagem por todos to falada! / O que eu
procuro a escurido, o nu, o nada!
13
Idem., A Uma Passante, pg. 344-345. No te verei seno na eternidade?
14
Ibidem. A doura que fascina e o prazer que mata.
20
imensidade,emquevibramassensaesdontlevaguen'exclutpasl'intensit;etil
n'estpasdepointeplusacrequecelledel'Infini15.
Estaalutadequeseimbuiopoeta:oinfinito,paraele,nopodesersuportado
comoumavastidosemforma;oinfinitoque,aomesmotempo,doredeleitese
comunga com o profundo, o pontual atravs da letra. O limite do poeta (como ser
mortal que ) tem de margear, fazer bordas na paisagem, que fecunda em sua
infinitude.
Estepoemacelebratambmumaoutraformadoilimitado.Oeulricosentese
toacolhidopeloinfinito,figuradopelomarepelocusuaexistncia(afinitude)lhe
parecetopequeninaefrgilcomoavelaqueestremecenohorizontequeolimite
entreoeueavastidodomundo,dohorizonte,seesboroa.Opoetajnosabese
pensanascoisasousetaiscoisassepensamnele,porele;opensamentonotemo
rigordarazo,opensamentoimagem,operaonaquallemoiseperdvite!16.Se
ospensamentossurgemdesuaalmaouseemanamdoprpriomundo,onarradorno
podedecifrar.
O profundo e oimenso provocam tamanha intensidadeevolpia neste poema
queoinfinitotornaseumador,osofrimentodesaberqueaartenopodedomarou
conter a Natureza. Para dizer (ou seja, limitar)o infinito, o poeta profcuo, mesmo
que fracasse, e fracassa sempre. Ah! fautil ternellement souffrir, ou fuir
ternellementlebeau?17.Nestaluta,dedizeraquiloquenotemfim,opoetadepe
sua arma (a palavra): Deixe de tentar os meus desejos, o meu orgulho! estranho,
diantedesteduelo,deantemoperdido,oeulricodopoemadizmalograr,masato
fim,nodeixadetentardesertentado.
15
Baudelaire, Pequenos Poemas em Prosa (O Spleen de Paris), Hedra: SP, 2011. Traduo de Dorothe
de Bruchard: Pois certas sensaes deliciosas h das quais o indefinido no exclui a intensidade; e ponta
mais aguada no h do que aquela do infinito.
16
Baudelaire, Pequenos Poemas..., O Confiteor do Artista, pg. 36-37. (...) pois na grandeza do
devaneio, o eu se perde depressa!
17
Idem. Ah! Ser preciso penar eternamente, ou o belo eternamente evitar?.
21
VII
22
Progresso?Aforaisso,maishora,menoshora,aprpriaatividadeinfinitadeviolaro
possvelpassaaserentediante.
Algicaqueenvolveatransgresso,decertaforma,viciante,poisnuncatem
fim. Um estado de tdio profundo exige satisfao, e a transgresso oferece um
instante de prazer que precisar ser superado por uma infrao sempre maior.
Svendsensereportaaumafrasedeumromancequeanalisa,WillianLovell(179596)
doromnticoLudwingTieck,muitosignificativa:"Porqueumprazernuncaconsegue
saciar inteiramente o corao? Que anseio desconhecido, triste, me empurra para
prazeresnovos,desconhecidos?"19.Quandosefaladetransgresso,estamostambm
tratandodabuscaobsessivapelonovo,dabuscadeseavanaralmdoprprioeu
este eu que no ser mais o mesmo se posto em contato com um movimento de
expanso,deultrapassagemdeumlimite.
A nsia por crescimento e libertao parece inextirpvel ao homem, a
insatisfao que nos compe um acicate fabuloso que possibilitou muitas criaes,
transformaes, aprimoramentos, tcnicas; a questo que na modernidade, tendo
em vista que estamos imersos em uma busca insacivel pelo novo, cada anseio por
qualquer coisa que resplandea como original, comumente leva a uma repetio do
mesmo que se torna uma lgica aprisionadora. Como coloca Svendsen acerca do
romancedeTieck,
19
20
23
EstaumaquestocuriosaqueSvendsencoloca:seotdioaimannciaem
seu sentido, talvez, mais pobre, reduzido a uma impossibilidade, qui a uma
negatividade,comoconseguirumatranscendncianotdio?Todososexemplosque
existem no livro como alternativas ao tdio, que fugazmente funcionam como
possibilidades(crueldade,violncia,criminalidade,extremismo,ignornciaacercados
limites que fazem do outro uma diferena irredutvel e a busca por uma soma de
vivncias sensorialmente excitantes e extravagantes) no alteram o advir posterior
nemsatisfazemoanseiodequeseoriginameacabamporredobraraforadaapatia.
Permanecemos, na transgresso, sem recurso capaz de fazer frente ao grande
esvaziamento.
Aplanificaoaqueconduzotdioumespaoemquetudopassveldeser
transgredidoumavezquenoromantismolevadosltimasconsequncias,apenasa
subjetividadeoquecontaeorelativismoabsoluto,oquegrassaestamosnoreino
do egocentrismo (o limite entre eu e os outros no merece ser sequer notado), o
indivduodeixadetervalor,masnummausentido:nodequeooutronoimportae
seu espao pode ser desconsiderado e expropriado sem que barreiras ticas se
coloquem,alis,estamosemumcontextoemqueoilimitadoregeeaoinvsdeisto
trazersatisfaoelibertao,trazmonotonia.
Paraquealiberdadedoegostasejarealizadaplenamente,tudooquediferedo
eudevesernivelado,oquefazacontradioeofuronesteindividualismoaterrador.
Se tudo est submetido minha prpria lei, todas as diferenas esto
homogeneizadasenohcomopreencherestevazioquereclamaumoutro;nestes
termos, nada mais pode mitigar a insatisfao. O homem que prescreve a tudo e a
todosnovidadeecontentamentopleno,impsoseutdioparaomundoenenhuma
mediao poder ser satisfatria no interior desta lgica, simplesmente porque no
hmediao,nohfora."Tornaseindiferentequealgoexistaouno".21
21
24
VIII
22
Walter Benjamin, O Narrador - Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e Tcnica, arte
e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo, Brasiliense 1994, pg. 198. " como
se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienvel: a faculdade de
intercambiar experincias. Uma das causas desse fenmeno bvia: as aes da experincia esto em
baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo".
25
XIX
com o mundo. Tal ideia, em seus prprios termos, est ligada a aes que apontam
paraavidacomoumtodo;osignificadopodeserexistencialoumetafsico.Podeser
algojdado,doqualpossamosparticipar(comoumacomunidadereligiosa)oualgoa
serconstrudo(comoumasociedadesemclasses).Osignificadopodesercoletivoou
individual.
O que est apontando o autor que esta noo de significado pessoal
correspondente ao significado romntico, a saber, um significado individual que tem
de ser realizado. O tdio, neste contexto especial, seria um desconforto que indicia
queestanecessidadedesignificadonoestsendosatisfeita.
Nos parece muito interessante o caminho traado e o ponto em que o livro
cheganestemomento.Mostrandoarelaodosignificadocomatradioromnticae
a relao destes dois elementos com o tdio, com a queda de Um Significado,
podemos compreender que muitas figuras que aparecem como soluo para o
problema s o so provisoriamente. Viajar, deslocarse de um lugar comum, utilizar
todaasortedenarcticosedeexperinciassexuais,porexemplo,nomaisdasvezes,
somodosdeatacarosintoma(odesconforto),masnoopontofulcral,deondese
irradiaaquesto.
Aoladodisso,estarnumtempocomoonosso,saturadodeinformaesque
no se relacionam entre si, que vm j interpretadas, onde o ser vivente sentese
muitas vezes como expectador de um mundo que no lhe pertence e que no
compreende,comoqualnopodeserelacionar,tambmumelementoimportante
para que o sujeito no veja modos de participar politicamente e efetivamente do
tempoemquevive.Estavacuidadeeausnciaqueotdio,tambmumaformade
distanciamento,solidoedesagregaodavidasocial,daculturaoindivduonose
sentevontadenummundoemqueossignificadosjaparecemdeterminados.Todas
as aes e objetos chegam como j codificados, e neste lugar parece haver pouco
espao ou possibilidade de construir ativamente formas de ser e estar e no
simplesmenteseadequaraumtipo.Aquelequeinvoca,suplica,exigesignificadodesi
edomundo,fazademandaqueensejaotdio.
27
Aassociaoou,ainda,aidentificaodotdiocomaociosidadeestlongede
ser necessria. Se verdade que o tdio uma doena que demanda formas de
significadosedevmdeumapulsodeinterpretareagirnomundonosatisfeita,o
trabalhocomooconhecemosdesdeostemposmodernospoucotemavercomisso.
Salvo raras excees, a atividade profissional no uma maneira de realizar um
significadopossvel,deencontrarumaviadeao.Talvezsejaverdadequemesmoo
trabalho opressivo pode suprimir temporariamente o desconforto do tdio, mas no
curlo. No mais das vezes, no entanto, o trabalho (aquele que apenas fonte de
sustento,quandoo),maisaprofundaeradicalizaafaltadesentidoemqueohomem
sevsubmergido.Hpoucaspossibilidadesdequeosujeitodeixeasuamarca,oseu
estilo; muitas formas de emprego parecem exigir o contrrio: a massificao, a
nivelao de todas as diferenas basta observarmos o efeito que os uniformes
costumamfazernocorpoenostraospessoaisdosfuncionrios,apenasparadarum
exemplo.
Podeseencontrarsignificadonocio,umavezhqueformasdeatividadeque
sserealizamnaaberturaeatmesmonapassividadequemuitasvezesfazemparte
do estado ocioso esta a ambiguidade do tdio, sua potncia em ser atividade
28
Svendsen, op. cit., pg. 38. Referncia: Milan Kundera, A Identidade. SP: Companhia das Letras, 1998.
29
experincia coletiva satisfatria o que nos une. Como no famoso poema Ao Leitor
que abre As flores do Mal, de Baudelaire, o tdio (l'Ennui) o humor que, por ser
compartilhado entre o leitor e o seu pblico, faz as vezes do cristianismo em um
mundosemreligio:trazaideiadosemelhanteedoirmo.
C'estl'Ennui!l'oeilchargd'unpleurinvolontaire,
Ilrved'chafaudsenfumantsonhouka.
Tuleconnais,lecteur,cemonstredlicat,
Hypocritelecteur,monsemblable,monfrre!
A ideia de que uma profisso pode ser uma forma de criao e de implicao,
queescolhidadeacordocomascaractersticaseaptidespessoais,equepossibilita
tambmqueosujeitoseengajeepossatransformararealidadeemquevive,parece
nomaisdasvezesrestritaacertoestratodapopulao.Ocontextoemquevivemos
aproxima frequentemente ou quase sempre trabalho e explorao, tornando
intimamenterelacionadosotrabalhoeaausnciadeliberdade(deocuparumlugar
ainda que pblico! , de comer, de vestir, de saber, de poder, de ser). Se neste
contexto,adescobertaouainvenodesignificadospessoaisesociaissemostrato
impossibilitada,aapatiaseexpandecomoestagrandepaixocoletiva.
30
XI
"Adorocheirodenapalmpelamanh",
BillKilgore,tenentecoronelinterpretadoporR.
DuvallnofilmeApocalipseNow.
Versenoustonpoisonpourqu'ilnousrconforte!
Nousvoulons,tantcefeunousbrlelecerveau,
Plongeraufonddugouffre,EnferouCiel,qu'importe?
Aufonddel'Inconnupourtrouverdunouveau!
estepoemadeBaudelairequeencerraAsFloresdoMal,AViagem(doqual
apenas separamos o ltimo quarteto) que Svendsen seleciona para iniciar o tpico
sobre o tdio e a morte. Esto a alguns elementos da modernidade e, portanto,
tambm o legado do romantismo: esta exigncia e busca pelo novo, pelo
desconhecido,peloabismo.
Tal procura pelo novo no determina de antemo qualquer qualidade sua; o
desconhecido no bom ou mal em si. Esta demanda pode ser pela morte e pela
destruio, como qualquer caminho ainda no percorrido fosse ansiado para sair da
quietudeedaplacidez.EstepoemadeBaudelaireeainvestigaopelodesconhecido
lembramnoso"ManifestoFuturista"deFilippoMarinetti,publicadoemfevereirode
1909nojornalfrancsLeFigaro.
Faremosnestemomentoumdesvio,nosdescolandodolivrodeSvendsenpara
tentardizeralgumacoisasobreapulsodedestruionamodernidadeapartirdeste
textoespecfico,exemploestequenofoioautornoruegusquemescolheu,masns
mesmos.
NopoemadeBaudelaireenoManifestonospareceestaroenunciado:Queseja
bastantealtoopreoquesepaguepelaempreitadarumoaonohavido!Queoalto
31
custoparasairdaprostraosejaademolioeoinferno?Aindaassimeaindamais
assim.
O Manifesto de Marinetti um texto bastante polmico e, ns, ao o lermos,
temos a sensao de que aquilo que se desdobrar na filiao do autor ao partido
fascista em 1919 e muitas das consequncias radicais que se deram no mundo
moderno e contemporneo esto germinadas e mesmo explicitadas nas imagens
fabricadasenasposiesqueMarinettiassumeaoescreveroManifesto.Aquiesto
algunsdoselementosdeseuculto:acelebraomquinaevelocidade;aligao
erticaemortferacomoautomvel;
emaisfrente:
Euodespertei[oautomvel]comumscarinhoemseudorsotodo
poderoso(...).
32
24
33
Almdasrelaesquejtraamosentreotdioeamorte,haveriaaindaoutro
aspecto que nos interessa tocar. A manifestao do tdio suportada muitas vezes
25
36
comoumaantecipaodeumamortelenta,comoumamorteemvida,umafaltaou
diminuio de vida. Seu valor que tal travessia nos fornece uma perspectiva da
existncia. O tdio essa perspectiva mais presente em nossos tempos do que boa
partedasociedadegostariadeadmitir.Nstentamosnosdesviaratodocustodesta
sombra, recorrendo, por exemplo, ao consumismo frentico para obliterar o vazio;
masalgoescapa,algoretornacomaangstiaqueadvmapscadasaciedaderevelar
suaincompletude,apscadaobjetodesejadoseesvaziardeseupoderfascinanteno
plenoatodaposse.
Ooutrotempodofrenesi,suacontrapartida,umgrandecansao:odesejoque
no concebe nem consegue mais destinos. Neste esvaziamento, h algo mais
importante do que a posse de qualquer objeto: a possibilidade de um saber que
desvelaria,talvez,umaspectoilusrioquesefazpresentenomecanismodavontade
tal como na modernidade. H um logro que pode ser desfeito; h, por exemplo, a
possibilidadedesoltarumpoucoosfiosqueatamodesejosemprepossedeobjetos,
de entender, talvez, quais as fantasias (de sexo, dominao e influncia,
habitualmente)quesovendidasportrseparaalmdecadaproduto.Estetdioque
oautoranalisacomoexistencial,cabenoslembrar,seriaoanseioportodoequalquer
objeto;umainsatisfaoquefaznosquerertudo,oqueomesmoqueignoraroque
sequer 26.Noserocaso,nsacreditamos,dedizerqueaindstriaeomarketing
tenham construdo esta realidade. Se tomamos o que Svendsen nos deu at agora,
esta foi, antes, uma construo romntica, apropriada pela propaganda e pela
sociedadecapitalistaparafazerrodarsuaeconomianacriaodeartigossuprfluose
na criao de novas necessidades que correspondam aos objetos que tm de ser
vendidos; o que deixaver, para alm de toda a banalidade, o imenso vazio que est
impregnadonaculturaocidental.
Se verdade que a insatisfao gera lucros e cria demandas que enriquecem
empresas,empresrioseindstrias(comoaindstriafarmacutica,automobilstica,a
indstria de entretenimento, de alimentao, bebida, artigos de luxo e de bens de
consumo em geral), tambm o que esta mesma insatisfao produz quebras e
contradies no sistema, criando rasgos de improdutividade no sistema produtivo.
26
Svendsen, op. cit., pg. 39. Svendsen cita Friedrich Schlegel: Aquele que deseja o infinito ignora o que
deseja.
37
Quando esta insatisfao se manifesta de forma coletiva, isso pode gerar efeitos de
rupturaaindamaissignificativos.
Escolhemos um trecho do livro de Maria Rita Kehl, O Tempo e o Co A
atualidadedasdepresses,emqueacreditamosque,apesardoobjetodeseutextoem
questoseradepresso,omesmovaleparadizerotdio:
Adepressoaexpressodemalestarquefazguaeameaaafundar
a nau dos bemadaptados ao sculo da velocidade, da euforia prt
porter, da sade, do exibicionismo e, como j se tornou chavo, do
consumo generalizado. A depresso sintoma social porque desfaz,
lentaesilenciosamente,ateiadesentidosedecrenasquesustentae
ordenaavidasocialdestaprimeiradcadadosculoXXI.27
Emcontrapartidafutilidade,crueldadeeaoorgulhoemquevivemos,sendo
hojeovalordeumapessoaavaliadoapartirdesuapossibilidadedeconsumo,somos
lanados,naexperinciadotdio,emumaoutraperspectiva,apartirdaqualsomos
obrigados a sentir (ainda que sem saber) a insignificncia e arbitrariedade da vida
humana,ofatodesermosummeroacidentenocosmosemcontrastecomtovasto
contexto(ouniverso).Otdiosurgecomoumainfinidademontona, repetitiva,que
nos assalta do almdomundo. O tormento da apatia que seu infinito no uma
conquista:aprisodeumtempoinfecundo.Otdiotraznos,faceaumtemposem
limites,semexperincia,afinitudeeonada.Aquiestoseuvalor,suacincia:nasua
inumanidade,"ganhamosumaperspectivadenossaprpriahumanidade"28.
XII
Maria Rita Kehl, O tempo e o Co a atualidade das depresses. SP: Boitempo, 2009. Pg 171.
Svendsen, op. cit., pg. 43.
38
29
Aspessoasnoacreditamemnada.Nohnadaemqueseacreditar
agora... H esse vcuo... O que as pessoas mais desejaram, que a
sociedadedeconsumo,aconteceu.E,comoemtodosossonhosquese
realizam, h uma aflitiva sensao de vazio. Assim elas esperam por
qualquer coisa, acreditam em qualquer extremo. Qualquer absurdo
extremista melhor que nada... Bem, pensoque estamos na pista de
toda espcie de loucura. Penso que no h limite para todo tipo de
absurdos que vo aparecer, e, alguns, muito perigosos. Eu poderia
sintetizar o futuro numa palavra, e a palavra entediante. O futuro
serentediante.
39
Svendsen, op. cit., pg. 91: O diretor est perturbado pela sexualidade moderna. Qualquer espectador
capaz de ver alm do metal retorcido e da mistura de smen e leo de motor v que Crash uma crtica
moralista da civilizao moderna".
31
Svendsen, op. cit., pg. 90.
40
34
32
41
CatherineperguntaaJames,emumdadomomento,seamulherqueelehavia
penetrado em uma das cenas iniciais de Crash teve um orgasmo. James responde
negativamenteeCatherinedir:"Maybethenexttime"frasequeretornarnofim
dofilme,quandooacidentequeenvolveosdoispersonagensnoculminanamorte.
O orgasmo e a morte fazem uma trama quase de identidade no dicionrio afetivo
destes personagens; o que um outro modo de dizer que, nesta histria, a
intensidadedoprazerlevadoaoseulimitesserealiza,efetivamente,namorte.
Nas palavras de Svendsen, "a coliso necessria porque as prticas sexuais
'comuns'tornaramseinsuficienteseentediantes.Ocorpohumanonomaiscapaz
desatisfazeredevebuscarauxlionatecnologiaparaatingiroclmax"35.Osentidode
tecnologia que o autor utiliza no de algo exterior a ns. Nosso prprio corpo
tecnolgico,umavezqueseriasemprecapazdeaprendernovastcnicas.Aindaque
estejamos apenas pensando no objeto tecnolgico este, sim, exterior ao corpo
humano,talobjetopodeserconsideradocomoumprolongamentodensmesmos.
Emsuaviso,osobjetostecnolgicosseriamumaintermediaoentreomundoens
mesmos,ouseja,nossomododerelaocomomundoatravessadopelatecnologia.
O problema que se deu no contexto moderno que haveria acontecido um
deslocamento: a importncia principal teria recado na tecnologia, que no mais
serviriaparamediarohomemeomundo,masestariaelamesmanocentrodetudo.
"O antropocentrismo deu origem ao tdio, e quando foi substitudo pelo
tecnocentrismo, o tdio tornouse ainda mais profundo"
36
. Neste esquema
interpretativo,atecnologiateriapassadoaexercerumafortedominaonarelao
entreohomemeomundo.Crashradicalizaissodandonosaverumaexperincia
nemtodistanteemqueatecnologiaassumiuinteiramenteocomandodomundo
emquehabitamosedenossasvidas.
OautomvelumexemplodoqueSvendsendenominadeprtesehumanaa
extensodenossoprpriocorpoeumaprtesesempreapontamortalidade.
42
Adestruio,quersejadecorposhumanosoudemquinas,criauma
brechanahiperrealidadeeabreumespaoparaoexterior,umajanela
para a realidade. No romance, James diz: ''A coliso foi a nica
37
Ibidem, idem.
Svendsen, op. cit., pg. 99.
39
Idem, pg. 93.
38
43
experinciarealquetiveemanos''.Destruiralgumoualgumacoisa
confirmarsuaexistncia.Nacoliso,aordemdotrfegodestruda,e
arealidadeserevelanaformadematerialidadenua.quasecomoseo
colapsodatecnologiatornassearealidademaisprxima.40
44
comoumaexperinciaouumtempo.Essaumaesperanatalvezgrande
demais, e que, portanto, cria uma ausncia, um vazio. Antecipamos
temores metafsicos, baseados numa ausncia que talvez estejamos
apenas presumindo. O significado que buscamos na ausncia de
significado, a experincia na ausncia de experincia e o tempo na
ausnciadetemposeroelesmeramenteiluses?41
45
empobrecedores, dali no se tira nada, apenas se naufraga no nada, uma vez que a
prpria vida esta sendo vivida como depauperamento. Mas h tambm, como j
dissemos, maneiras de atividade que se confeccionam e se engendram no
esvaziamento.Entregarseaotdioquandoesteagecomoseqestradordavontade44,
nodesvencilharsedele,naspalavrasdeSvendsen,contrariacadafibradenossoser
e, talvez, suportar ou sustentar este estado, no tentar enxotlo, seria um desafio
que,emsuaradicalidade,podemovertodasascoisasdeseusentidohabituale,assim,
issoabrecaminhoparanovasconfiguraes,e,jastendoprivado[ascoisas]deseus
significados,permitequeadquiramnovos45.
Para Svendsen, que no haja este grande Significado, no resulta que esteja
extraviadaqualquerviadeconstruoparaumsentido.
Umafontedetdioprofundoquenecessitamosdemaisculas,ali
ondesomosobrigadosanoscontentarcomminsculas.Mesmoque
nenhum Significado seja dado, h significado e tdio. preciso
aceitar o tdio como um dado incontornvel, como a prpria
gravidadedavida.Noumasoluograndiosamasnohsoluo
paraotdio.46
44
Ibidem, pg. 162. Afinal de contas, est acima da fora de vontade humana encontrar uma maneira de
escapar do tdio.
45
Svendsen, op. cit., pg. 155-156.
46
Idem, pg. 169.
46
CAPTULO2
Gagnebin, Jeanne Marie, Sete aulas sobre linguagem, memria e histria, Baudelaire, Benjamin e o
Moderno, pg. 137. RJ: Imago, 1997.
48
Wiggershaus, Rolf, A Escola de Frankfurt, histria, desenvolvimento terico, significao poltica,
Difel: RJ, 2002. Pg. 219-245.
47
arquitetonicamenteestticosdeumuniversodocoletivo,asruaseasbarricadaseram
os lugares do estado de viglia no espao aberto da histria e tornavamse uma
conscinciaonricacapazdeproduzirimagensdialticas" 49.Mas,comovimos,apenas
a primeira parte que concernia a este grande projeto foi levada a cabo, e esta foi
recusadaeduramentecriticadaporAdorno.Aoquetudoindica,muitomaispremido
pela necessidade material do que por concordar com as reservas de seu chefe,
Benjamin retomou a segunda parte deste ensaio, O Flneur, acrescentando novas
articulaes tericas, dando nfase especial ao conceito de choque. Foi assim que
surgiuotextoSobrealgunsmotivosnaobradeBaudelaire,aoqualnosreportaremos
aseguir.
II
ApesardenodecorrerdesteestudodeBenjaminoconceitodetdio(ouspleen)
noapareceremgranderelevo,apartirdestachavequeotextoaberto,iniciado.
Nanossacompreenso,oconceitodechoquequeserdesenvolvidoaolongodetodo
esteensaio,temumarelaontimacomospleendeBaudelaire:ambossocolocados
comoobstculospossibilidadedapoesialrica,umavezqueinterceptam,influenciam
emodificamapercepohumana.Emoutraspalavras,teriahavidoumacisoapartir
demeadosdosculoXIXentreapoesialricaeoseupblico.Estaseparaonoseria
particular ao campo da esttica, seria, antes, uma ruptura ou transformao na
estruturadaexperinciahumanaemsuatotalidade.
A capacidade de concentrao e a fora de vontade do leitor moderno,
acostumado aos prazeres do sentido, no capaz de preparar seu esprito para a
recepodapoesialrica.Ospleenaqueestepblicoestacostumado"dogolpede
misericrdianointeresseenacapacidadedepercepo" 50,oquedificultaoumesmo
impedealeituraeoacolhimentodapoesialrica.
A transformao a que est submetido o pblico moderno afeta tambm,
necessariamente,afiguradopoeta,eBaudelaireescolhidoporBenjamincomoum
exemplo especial: Baudelaire aquele que se imbuiu da misso de ser o poeta da
49
50
48
modernidade, que viveu esta escolha como uma razo de estado nas palavras de
ValrycitadasporBenjamin51,aquelequeescreveaparandooschoquesocasionados
pelavidanacidade,imersonanovaexperinciadamultido,interessadoeobcecado
emextrairprecisamentedaamatriadesuapoesia.
Nopoemaquejcitamosnoprimeirocaptulo,aquelequeabreAsFloresdoMal
AoLeitorotdio(l'ennui)aparececomoaquelequeirmanaoutraaafinidades
entre o poeta e seu pblico. Na compreenso de Benjamin, esta questo mais
fecundaquandopodemosperceberqueomaldotdio,despertadonamodernidade
como um mal disponvel s massas (diferentemente dos outros momentos histricos
em que esta era uma doena que acometia fundamentalmente a aristocracia, a
nobreza e os monges), tornouse mais grave e mais radical no no presente em que
viveu Baudelaire, mas em seu futuro. "O leitor para o qual ele escrevia foilhe dado
pelaposteridade"52.
Para Benjamin, ao menos trs circunstncias podem ser elencadas para
demonstrar que a recepo da poesia havia se transformado brutalmente no sculo
XIX.Emprimeirolugar,opoetalricojnoeratidocomooPoetaporexcelncia 53e
havia sofrido uma espcie de especializao, introduzido no mbito de um gnero.
Comosegundacircunstncia,depoisdeBaudelaire,umlivrodepoesianoterianunca
maistidoumaressonnciatosignificativacomofenmenodexitoparaumgrande
pblico. O terceiro indcio que favorece esta demonstrao que o pblico tambm
teriaadotadoamesmaposturadedesinteresseoudenoacolhimentocomrelao
poesiaanterioraBaudelaire.
Essa resposta imediata de recusa s Flores do Mal sofreu transformaes.
Baudelaireque at a sua morte no obteve reconhecimento nem retorno financeiro,
tornouseumclssiconosdecniossubsequenteseseulivrodepoemasfoilargamente
editadoapartirdeento.
51
49
III
Isso[atransformaonaestruturadaexperinciahumanaqueocorreu
apartirdametadedosculoXIX]foiexplicadopelaobradeBergson.A
teoriadamemria,talcomofoidesenvolvidaemMatireetmmoire,
ligaseaumtipodeexperinciaquesofreugolpesprofundosaolongo
deste sculo XIX. Graas categoria da memria, Bergson tende a
restaurar o conceito de experincia autntica. Esta experincia
autntica existe em funo da tradio e opese assim aos modos
habituaisdeexperinciaprpriosdapocadagrandeindstria.Proust
definiuamemriabergsonianacomomemriainvoluntria,eemseu
nome tentou reconstruir a forma da narrativa. O rival desta ltima
chamase,napocadagrandeindstria,informao,edesenvolve,por
meio do choque, uma memria que Proust ope memria
bergsoniana,eaquechamoumemriavoluntria.Podeconsiderarse,
seguindo Freud, a memria voluntria como estando intimamente
ligada a uma conscincia constantemente espreita. Quanto mais a
conscincia for obrigada a aparar os choques, tanto mais se
desenvolver a memria voluntria e tanto mais a memria
involuntriaenfraquecer.(...)
54
Benjamin, in: Revista de Investigao Social, n 8, 1939 - 1940, pp 90 e segs. Retiramos este excerto
do livro A Modernidade, Editora Assrio & Alvim, Lisboa, 2006. Pg. 457-458.
50
Ochoque,enquantoformadominantedasensao,acentuadopelo
processo objetivado, capitalista, do trabalho. A descontinuidade dos
momentos de choque tem a sua causa na descontinuidade de um
trabalho que se automatizou e deixou de admitir a experincia que
antes presidia ao trabalho artesanal. Ao choque experimentado pelo
flneurnomeiodamultidocorrespondeumaexperinciaindita:ado
operriodiantedamquina.
55
Freud, Sigmund, Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, Imago, RJ: 2004. Pg. 135-182.
51
notemcomoserintegradoscadeiasderepresentaespsquicas.A
repetio do evento traumtico, na forma de recordaes e sonhos
recorrentes, teria a funo de ''fixar o trauma'', ou seja, integrar os
elementosdosestmulostraumticosentreoutrasmarcaspsquicas58.
56
52
IV
Caberia fazer aqui um desvio para distinguir de forma bastante sumria dois
conceitos fundamentais que Benjamin forja de experincia [Erfahrung] e vivncia
[Erlebnis].EstadistinodesenvolvidanoimportanteeclebreensaioONarrador:
ConsideraessobreaobradeNikolaiLeskov(1936).Apesardenoseroobjetivo
de nosso trabalho nos determos neste ensaio, as ideias de experincia e vivncia
subjazem ao texto Sobre Alguns Temas em Baudelaire e no seria possvel
simplesmenteignorlas.
ParaBenjamin,oimpactoquegeraramasnovastecnologiasdemorteinseridas
no mundo a partir da I Guerra Mundial, tornouse paradigmtico do modo como as
inovaestecnolgicasafetaramarelaodoshomenscomotempoecomosoutros
homens.Umanovaformademisriafoicriadapelatecnologia.Benjaminafirmaem
seu ensaio O Narrador que os combatentes egressos da guerra teriam voltado "no
mais ricos e sim mais pobres em experincia comunicvel" 59. Isso, dentre outros
fatores, seria ocasionado pela tecnologia de guerra que possibilitou uma nova
velocidade e a imprevisibilidade dos ataques areos. Neste contexto, as qualidades
fsicasemorais(comoaforaeacoragem,abravura,porexemplo),ashabilidadesea
intelignciaestratgicadossoldadosnocontavammais,oqueteveumdevastador
efeitodedesmoralizao.
ParaMariaRitaKehl,ocombateestavareduzidocapacidadedaconscinciade
aparar e dar sentido imediato ao choque. 60 O soldado dependia absolutamente de
suacapacidadedeprestaratenoemtodososrudos,deperceberosmnimossinais
dealteraodapaisagememtornoeacimadesi.
59
60
Benjamin, Obras Escolhidas, Magia e Tcnica, Arte e Poltica. Brasiliense, SP: 1985. pg. 198.
Kehl, op. cit., pg 155.
53
Quemquerquetenhaestadonestastrincheirastantotempoquantoa
nossa infantaria, e quem quer que no tenha perdido o juzo nesses
ataques infernais, deve ter pelo menos ficado insensvel a muitas
coisas. Quantidade demasiada de horror, quantidade excessiva do
incrvel arremessada contra nossos pobres camaradas. Para mim
inacreditvel que isso possa ser tolerado. Nosso pobre crebro
simplesmentenocapazdeabsorvertudoisso.61
AquiestaarticulaoqueBenjamindesenvolveentreaquedadaexperinciae
a nova exigncia de estrutura psquica dos soldados combatentes na I Guerra
Mundial.Avidapsquicadestessujeitostornousereduzidaurgentenecessidadede
reagiraosestmulosexternosvelozesedestruidores,ouseja,aotrabalhoexclusivodo
sistema da percepoconscincia e nenhuma experincia poderia advir da. A
experincia,paraBenjamin,aquelaquepassadepessoaapessoae"afonteaque
recorrem todos os narradores" 62; a experincia, por definio, necessariamente
comunicvel,coletiva.
CabedizerquearealidadesocialaqueBenjaminsereportaparadefiniraideia
de experincia no ensaio O Narrador, bastante diversa da realidade que adveio
comamodernidadeeocapitalismo.ocontextodascomunidades
61
Carta do estudante alemo Hugo Steinthal (citada por Maria Rita Kehl em O Tempo e o Co) enviada
do front a seus familiares, citada por Modris Eksteins, A sagrao da primavera (trad. Rosaura
Eichenberg, Rio de Janeiro, Rocco, 1991), p. 223.
62
Benjamin, Obras Escolhidas, Magia e Tcnica, Arte e Poltica, pg. 198.
63
Kehl, op. cit., pg 163.
54
chamadoModernidade,hiperestmuloeoinciodosensacionalismopopular(1995)
emumlivroqueabrigaensaiossobreavidamodernadediversosestudiosos66.Singer
se reporta a autores como Walter Benjamin, Georg Simmel e Siegfried Kracauer e,
apesardeseuestudoseconcentraremfenmenosdavidamodernaqueseiniciaram
noperodo emqueviveuBaudelaire,masoultrapassamcronologicamente,ouseja,
apesar de Baudelaire no ter sido contemporneo de algumas manifestaes que
Singeranalisa,umavezqueelasseradicalizarambastantenosdecniossubsequentes
mortedeBaudelaire(1867),nsconsideramosrelevantetrazeralgunspontosqueo
autor levanta, por exemplo, para definir o que chamamos de modernidade, ou, em
64
55
outras palavras, para discernir quais so as ideias que dominam nosso pensamento
quandoutilizamosestaexpresso.
67
56
transporterpido,peloshorriosprementesdocapitalismomodernoe
pelavelocidadesempreaceleradadalinhademontagem.68
VI
68
57
71
Benjamin, Passagens, Organizao Willi Bolle. MG: Editora UFMG. SP: Imprensa Oficial do Estado
de So Paulo. 2006. pg. 161-187.
72
Benjamin, A Modernidade, pg. 87 88.
73
Citado por Walter Benjamin, in: Passagens, Organizao Willi Bolle. MG: Editora UFMG. SP:
Imprensa Oficial do Estado de So Paulo. 2006. Pg. 185.
58
Um fator que contou para esta enorme mudana foram duas epidemias de
cleraqueexterminaramaotodocercade39milmoradores(aprimeiraem1832,a
segunda coincidindo com a Revoluo de 1848). A partir de 1848, a expanso da
malha ferroviria acelerou a trfego e o crescimento demogrfico da cidade. A
topografiadocentrodePariseraadeumambientebastantemalso,comsistemade
esgotoacuaberto,comhabitaesamontoadas,poucoarejamentoesemluzdosol.
Estas ms condies deixavam a populao que residia no centro da cidade
constantementeadoecidapelotifoepelottano.
Com o processo de haussmanizao, veio a infelizmente clebre poltica de
higienizao que no correspondia simplesmente a eliminar a doena e as ms
condiesdoambiente,masaeliminarapopulaoquealiresidia,julgadaelamesma
comodeletria.Osoperriosquehabitavamestaregiocentralforam,naturalmente,
desapropriados,obrigadosaprocurarosbairrosperifricos,poisestanovacidadeque
surgianonasciaparaeles.
NodizerdeBenjamin,osaneamentoaquegrandepartedapopulaocomeou
a perceber como inevitvel, no dizia respeito somente efetividade dos trabalhos
urbansticos, ele interferia enormemente na imagem da cidade74 esta tambm
sofreriaoprocessodehigienizao.
74
59
Auguste Blanqui, o "mais importante dos chefes das barricadas de Paris" 75,
escreveacercadapolticadeHaussmann,queeleconsideravaumlgubresintomada
decadncia: "Contra Paris. Projeto obstinado de esvaziar Paris, de dispersar sua
populao de operrios. Sob pretexto de humanidade, propese hipocritamente
repartirnas38.000comunasdaFrana75.000operriosdesempregados.1849".76
Este foi umelemento importantepara a redefinio de Paris, mas certamente
nooprincipal.AintenodeHaussmannnoerasomentetornaracidademaisbela
e mais salubre, mais moderna e mais luxuosa, mas, principalmente, impedir as
insurreieseoscombatespopulares,queutilizarammuitoatticadasbarricadasno
perododaComunadeParis.Talestratgiadelutaerapossvelpelaantigaarquitetura
da cidade, com as suas ruas de paraleleppedos estreitas e seu traado labirntico,
herana do perodo e da arquitetura gtica. Agora, alm da inviabilizao das
barricadas, as vias alargadas e pavimentadas, bem como a maior visibilidade da
cidadepossibilitavamque,emcasodeinsurreies,astropaspudessemseposicionar
demaneiramaisplenaetermaiordomniodoscombatentes."NofimdaComuna,o
proletariado,vacilante,procuraabrigoportrsdasbarricadascomoumanimalferido
demortenasuatoca"77.
VII
60
78
Idem, pg. 87. Citao de Paul Bourget: Discours acadmique du 13 juin 1895. Succesion Maxime du
Camp. Lanthologie de lAcadmie Franaise, Paris, 1921, vol. 2, pp. 191-193.
79
Benjamin, op. cit., pg. 88.
61
LeCygne
VictorHugo
I
Andromaque,jepensevous!Cepetitfleuve,
Pauvreettristemiroirojadisresplendit
L'immensemajestdevosdouleursdeveuve,
CeSimosmenteurquiparvospleursgrandit,
Afcondsoudainmammoirefertile,
CommejetraversaislenouveauCarrousel.
LevieuxParisn'estplus(laformed'uneville
Changeplusvite,hlas!quelecoeurd'unmortel);
Jenevoisqu'enesprittoutcecampdebaraques,
Cestasdechapiteauxbauchsetdefts,
Lesherbes,lesgrosblocsverdisparl'eaudesflaques,
Et,brillantauxcarreaux,lebricbracconfus.
Ls'talaitjadisunemnagerie;
Ljevis,unmatin,l'heureosouslescieux
FroidsetclairsleTravails'veille,olavoirie
Pousseunsombreouragandansl'airsilencieux,
Uncygnequis'taitvaddesacage,
Et,desespiedspalmsfrottantlepavsec,
Surlesolraboteuxtranaitsonblancplumage.
Prsd'unruisseausanseaulabteouvrantlebec
Baignaitnerveusementsesailesdanslapoudre,
Etdisait,lecoeurpleindesonbeaulacnatal:
"Eau,quanddoncpleuvrastu?quandtonnerastu,foudre?"
Jevoiscemalheureux,mythetrangeetfatal,
Verslecielquelquefois,commel'hommed'Ovide,
Verslecielironiqueetcruellementbleu,
Sursoncouconvulsiftendantsatteavide
Commes'iladressaitdesreprochesDieu!
62
OCisne80
VictorHugo
I
Andrmaca,eupensoemti!Essecrrego,
Pobreetristeespelhoondeoutroraresplandeceu
Aimensamajestadedeteussofrimentosdeviva,
EsseSimeontemendazquecresceucomtuaslgrimas,
Fecundousubitamenteminhamemriafrtil,
QuandoeucruzavaonovoCarrousel.
AvelhaParisnoexistemais(aformadeumacidade
Mudamaisrpido,aidemim,queocoraodeummortal);
Vejoapenasemespritoaquelecampodebarracas,
Aquelesamontoadosdecapitisesboadosedecolunas,
Arelva,osgrandesblocosesverdeadospelaguadaspoas,
E,refletindonasjanelas,obricabraqueconfuso.
Alihaviaoutroraumavendadeanimais;
Alieuvi,certamanh,horaemquesoboscus
FrioseclarosoTrabalhodesperta,quandoosvarredores
Levantamumasombriatormentanoarsilencioso,
Umcisnequefugiradagaiola,
E,raspandocomaspatasopavimentoseco,
Pelochosperoarrastavasuabrancaplumagem.
Pertodeumregatosemgua,oanimalabrindoobico
Banhavanervosamentesuasasasnapoeira,
Edizia,ocoraotomadoporseubelolagonatal:
"gua,quandocairscomochuva?Quandoressoars,trovo?
Euvejoesseinfeliz,mitoestranhoefatal,
Porvezesparaocu,comoohomemdeOvdio,
Paraocuirnicoecruelmenteazul
Voltaracabeavidasobreopescooconvulsivo,
ComosedirigissecensurasaDeus!
80
Traduo do livro de Jean Starobinski, A melancolia diante do espelho Trs leituras de Baudelaire,
Editora 34: SP. 2014. Traduo de Samuel Titan Jr.
63
II
Parischange!maisriendansmamlancolie
Naboug!palaisneufs,chafaudages,blocs,
Vieuxfaubourgs,toutpourmoidevientallgorie,
Etmescherssouvenirssontpluslourdsquedesrocs.
AussidevantceLouvreuneimagemopprime:
Jepensemongrandcygne,avecsesgestesfous,
Commelesexils,ridiculeetsublime,
Etrongdundsirsanstrve!etpuisvous,
Andromaque,desbrasdungrandpouxtombe,
Vilbtail,souslamaindusuperbePyrrhus,
Auprsduntombeauvideenextasecourbe;
VeuvedHector,hlas!etfemmedHlnus!
Jepenselangresse,amaigrieetphtisique,
Pitinantdanslaboue,etcherchant,loeilhagard,
LescocotiersabsentsdelasuperbeAfrique
Derrirelamurailleimmensedubrouillard;
quinconqueaperducequineseretrouve
Jamais,jamais!ceuxquisabreuventdepleurs
EtttentlaDouleurcommeunebonnelouve!
Auxmaigresorphelinsschantcommedesfleurs!
Ainsidanslafretomonespritsexile
UnvieuxSouvenirsonnepleinsouffleducor!
Jepenseauxmatelotsoublisdansunele,
Auxcaptifs,auxvaincus!...biendautresencor!
64
II
Parismuda!Masnadaemminhamelancolia
Semexeu!Palciosnovos,andaimes,blocos,
Velhosfaubourgs,tudoparamimtornasealegoria,
Eminhascaraslembranassomaispesadasquerochas.
Assim,diantedesteLouvre,umaimagemmeoprime:
Eupensoemmeugrandecisne,comseusgestosdesvairados,
maneiradosexilados,ridculoesublime,
Edevoradoporumdesejosemtrgua!E[eupenso]emti,
Andrmaca,cadadosbraosdeumgrandeesposo,
GadovilsmosdosoberboPirro,
Curvadaemxtasejuntoaumtmulovazio;
VivadeHeitor;aidemim!,emulherdeHeleno!
Pensonanegra,emagrecidaetsica,
Chafurdandonalamaebuscandocomoolharesgazeado,
Oscoqueirosausentesdasoberbafrica
Atrsdamuralhaimensadonevoeiro;
Emtodosqueperderamoquenosereencontra
Nunca,nuncamais!Emtodosquebebemsuaslgrimas
EmamamaDorcomosefosseumaboaloba!
Nosmagrosrfosmurchandocomoflores!
Assim,naflorestaemquemeuespritoseexila,
UmavelhaLembranafazsoarumatrompaaplenospulmes!
Eupensonosmarinheirosesquecidosnumailha,
Noscativos,nosvencidos!...Emmuitosoutrosmais!
65
Jean Starobinski, nascido em Genebra no ano de 1920, importante crtico
literrio,lingista,estudiosodahistriadamedicinabemcomodaliteraturafrancesa,
realizou nos anos 1987 e 1988, oito conferncias sobre a histria e a potica da
melancolia no Collge de France. Estas conferncias foram publicadas recentemente
noBrasilpelaeditora34,comonomeAMelancoliaDiantedoEspelhoTrsleituras
de Baudelaire 81. O terceiro captulo desse livro, dedicado s figuras inclinadas, nos
interessanestemomentoporsedebruarsobreopoemaOCisne.
Neste momento, Starobinski desenvolve uma ambiguidade que diz respeito
Melancolia,desdeostemposdeAristteles.Aomesmotempoemqueomelanclico
tem o esprito voltado para a exaltao, para o pensamento profundo, seu olhar
penetrado no vazio, sua imobilidade tambm sugerem o desespero e uma
concentrao extremada na ideia da morte. O vazio e o infinito podem ser, ambos,
objetospropiciadoresdamelancolia.
Assim como o melanclico pode a exaltao tambm lhe guardado o
abatimento;seuestadonavegaentreapotnciaeoperigodeterseucaminhoaberto
porideiasimortaisedesertomadopelosentimentodamorte.Starobinskinosaponta
queasgravurasquetematizamesteestadonomostramcomclarezaolimiarpreciso
"entre a tristeza estril e a meditao profunda, entre a prostrao do vazio e a
plenitudedosaber" 82.Nopossveldefinirseainacessibilidadequetomaocorpo
dosujeitoacometidopelamelancoliaumexlioouseesteestadosemapeloasua
"verdadeiraptria".
a partir da anlise das figuras inclinadas, que sustentam a cabea nas mos
quandoseentregammeditao,figurasqueabarcamtantoaimagemdopesarcomo
da fertilidade do pensar, que Starobnski chegar ao poema "O Cisne". Para ele, ali
esto presentes a melancolia diante do espelho, o luto, o sepulcro, elementos que
pertencem a uma longa tradio da poesia e do imaginrio ocidental, mas que so
retomados por Baudelaire em um contexto que lhes confere originalidade, pois se
prestamafalardamodernidade.
Neste poema encontramos a figura inclinadae o pensamento que se reporta
81
Starobinski, Jean, A melancolia diante do espelho Trs leituras de Baudelaire. Editora 34, 2014.
Traduo: Samuel Titan Jr. Ttulo original: La Mlancolie au miroir, Paris, Julliard, 1989.
82
Starobinski, op. cit., pg. 45.
66
todoumpretritomarcadopeladestruio,oluto,aperda:esseespao
anteriorsencontraapoioecorroboraonamemriadopoeta.Dele
procede a cadeia de analogias que vincula as figuras: estas so "chers
souvenirs"queohabitamparasempre.
Nodesimportantenotarqueostemposeoslugaressuperpostosem
suasrefraessucessivas(Troia,Buthrotum,ovelhoLouvre,obairroem
demolio, o novo Carrousel) correspondem s idades da poesia:
Homero,Eurpides,Virglio,Racine,oromantismo,ainvenomoderna.
Ofatodequeoprimeiroobjetodereminiscncia,Andrmaca,sejauma
67
personagempotica,atrsdaqualnosehdeencontrarnenhumser
"real", no sugere apenas que o pensamento, num mpeto de intensa
compaixo, se dirige a um engodo: tambm para uma harmonia
perdidaqueopesarsevolta:amsicavirgiliana,quejnotemlugar
nemvalorderealidadenomundopresente.83
VIII
Fizemosestedesviopoisacreditamosserimportanteteremmenteadiferena
existenteentreosconceitosdeexperinciaevivnciaetambmocontextohistrico
e social no qual viveu o poeta francs para continuar acompanhando o ensaio de
BenjaminSobreAlgunsMotivosnaObradeBaudelaire.
Aexperinciadametrpole,docontatocomamultido,comanovavelocidade
queosbondesditavamaotrnsitohumano,comofrenesidasmassas,dospasseios,
dos acotovelamentos para abrir passagem em meio turba, todas estas novas e
83
68
cotidianasvivnciasparaumhabitantedacidade,mudaramradicalmenteaestrutura
psquica do sujeito citadino e imprimiram em seu cotidiano a vivncia do choque
comonorma.
ParautilizaraterminologiaadotadaporBenjaminapartirdeFreud,nagrande
cidade, para que seja possvel aparar os choques, o sistema da conscincia tornase
preponderante em relao a outras camadas psquicas, por uma questo de
sobrevivnciaeconservaodoorganismovivo.
importante saber que, para Freud, apesar de o sistema da percepo
conscincia ser de extrema importncia como protetor do psiquismo, ele a parte
mais pobre se comparado ao trabalho do prconsciente e do inconsciente. Em sua
teoria, o psiquismo no se confunde com a conscincia, esta apenas uma funo
especficadosprocessosanmicos.
Pelofatodoprocessoestimuladorqueocorrenaconscincianodeixarmarcas,
como se d nos outros sistemas psquicos, "a conscientizao e a permanncia do
traomnemnicosoincompatveisemummesmosistema".84
Quando dizemos da importncia da possibilidade de acesso a outros sistemas
psquicos, no se trata somente do inconsciente, mas tambm de um estado de
repouso da conscincia, "possibilitado pelo abandono da ateno consciente, pela
distrao contemplativa, pelo cio, de modo que as recordaes voluntrias e
involuntriaspossamconviversemseexcluir".85
O ritmo que a cidade induz e provoca no psiquismo do homem moderno, a
preponderncia da conscincia em detrimento da atividade de outros campos
psquicos tornariam, na hiptese aventada por Benjamin, a possibilidade da
experinciapoticaextremamentereduzidaeestril.
Aquestoqueofilsofoalemoestlevantando"atquepontoapoesialrica
sepodefundarnumaexperinciaparaaqualavivnciadochoquesetornounorma"
86
.Apoesiaqueteriachancedesurgirnamodernidadetrariaconsigoaexignciade
84
69
aparar com o seu prprio ser "espiritual e fsico" 87 os choques advindos da vida
urbana.Parasedefenderenosefurtardetaisencontros,elerecorreimagemda
esgrimaeoseugesto defarejarnascidades"osacasosdarima"(poemaOSol),de
"tropearempalavrascomonacalada"tambmoquefazdesuaarte,umaarte
marcial.
NaaberturadosPequenosPoemasemProsa(OSpleendeParis),Baudelairediz
dequeintenobrotouesteseulivro,deumanseiodedizeravidamoderna:
Quemdentrensnosonhou,nosseusdiasdeambio,comomilagre
de uma prosa potica, musical sem rima nem ritmo, flexvel e
desencontrada o bastante para se adaptar aos movimentos lricos da
alma, s ondulaes do devaneio, aos sobressaltos da conscincia?
sobretudo da frequentao das cidades imensas, do cruzamento de
suasinumerveisrelaesquenasceesteidealobcecante.
Quel est celui de nous qui n'a pas, dans ses jours d'ambition, rv le
miracle d'une prose potique, musicale sans rhythme et sans rime,
assezsoupleetassezheurtepours'adapterauxmouvementslyriques
de l'me, aux ondulations de la rverie, aux soubresauts de la
conscience?
C'est sortout de la frquentation des villes normes, c'est du
croisementdeleursinnombrablesrapportsquenaitcetidalobsdant.
88
87
88
70
Baudelairenuncasecansoudefalar. 89Suarelaocomoturbilhomarcadapelos
insultos e encontres que todo transeunte de uma grande cidade conhece, mas,
mesmo em meio confuso sua postura a de quem "mantm desperta a
conscinciadesi" 90.Paraabrircaminhoemmeioaoburburinho,opoetarecorreaos
golpes,amesmaimagemqueutilizaparafalardeseutrabalhoemato,oquelevao
filsofoalemoapresumirqueamultidoatravsdaqualopoetaabrecaminhono
saquelaqueaspessoastornampovoada,mastambm"amultidofantasmtica
daspalavras,dosfragmentos,doscomeosdeversos,comosquaisopoetatravao
seucombatepelapresapoticanaquelasruassemvivalma".91
IX
Amultidoaparececomoumtemabastantefrequentenaliteraturaetambm
nafilosofia,aindaquedemaneiramaisoumenosoculta,apartirdosculoXIX.Desde
o princpio, a imagem do solitrio que se encarcera em seu retraimento e constri
nesta condio uma nova forma de egosmo e sofrimento em contraste e combate
comagrandemovimentaodacidadeapareceemrelevo.
S depois de termos andado alguns dias pelo asfalto das ruas principais
notamoscomoesteslondrinostiveramdesacrificaramelhorpartedasua
humanidadeparalevaremacabotodososprodgiosdacivilizaodeque
a cidade est cheia, e como centenas de foras neles adormecidas
permaneceraminativaseforamreprimidas...Aprpriaagitaodasruas
tem qualquer coisa de repugnante, qualquer coisa contrria natureza
humana. Aquelas centenas de milhares, de todas as classes e posies,
que a se acotovelam, no sero todas elas pessoas humanas com as
mesmas qualidades e capacidades e com o mesmo desejo de serem
felizes?... Apesar disso, passam uns pelos outros a correr, como se no
tivessemnadaemcomum,nadaaverunscomosoutros;e,noentanto,o
nico acordo tcido entre eles o de seguirem pelo passeio do lado
89
71
otranseuntequefurapelomeiodamultido,tambmhaviaoflneur,
que precisa de espao e no quer perder a sua privacidade. Ocioso,
deambula como uma personalidade, protestando contra a diviso do
trabalhoquetransformaaspessoasemespecialistas.94
92
Friedrich Engels, A Situao das Classes Operrias na Inglaterra, citado por Walter Benjamin, A
Modernidade, pg. 117.
93
"A rua transforma-se na casa do flneur, que se sente em casa entre as fachadas dos prdios, como o
burgus entre as suas quatro paredes", Benjamin, A Modernidade, pg. 39.
94
Benjamin, op. cit., pg. 55.
95
Idem, pg. 124.
72
96
Baudelaire, Pequenos Poemas..., pg. 68-69. Grifo nosso. No original : "Pour lui seul, tout est vacant; et
si de certaines planes paraissent lui tre fermes, c'est qu' ses yeux elles ne valent pas la peine d'tre
visites".
73
inseriuosseuspoemas.Asuaobranossepodecaracterizarapartirdoseulugarna
histria,comoqualqueroutra,maspretendiasereentendiasedessemodo.97
74
prazer com esta sociedade" e pouco podia experimentar o prazer no interior desta
sociedade. O que a realidade polticocultural deste momento histrico tinha como
seupontoalto,suagrandemestriaeraoqueBenjamindefinecomo"empatiacoma
mercadoria", e o pequeno burgus para verdadeiramente participar e conhecer a
satisfaodestasociedade,
Teriadesaborearessaempatiacomogozoeoreceioquelhevinham
da intuio do seu prprio destino como classe. Teria, por fim, de
corresponderlhe com um dispositivo sensvel capaz de descobrir
encanto at nas coisas j tocadas e apodrecidas. [...] A essa
sensibilidade[Baudelaire]deveoprazerquetevecomestasociedade,
comoalgumquejquasedelasetinhadespedido.101
Amultido,aomenos,umprazerouespetculoaoqualopoetaflunerpodia
recorrer; ainda que esta vivncia no pudesse fazlo esquecer de sua assustadora
realidade social. A flnerie tambm aparece em muitos momentos no texto de
Baudelaire(como,porexemplo,emOPintordaVidaModerna)comoumantdoto
oumesmo comoapossibilidadedecuraparaotdio,umadoenaqueapareceto
proliferada, no dizer de Benjamin, "sob o olhar mortfero de um regime reacionrio
saturado".102
MaspodemosdizerqueaflneriedeBaudelaireguardaumaambiguidade,pois
ao mesmo tempo que ele se sente impelido, atrado e dominado pela fora da
multido,tambmdeixaveremsuaescritaque"nooabandonaosentimentodesua
natureza inumana" 103, o que revela uma certa similaridade com o modo como
tambm Engels atravessa a turba, trazendo em seu relato palavras que traam a
imagem de uma apreenso e sentimento de ameaa, de algo que beira o bestial, o
desumano. Se a multido desperta em Baudelaire a cumplicidade, tambm evoca a
distncia;ele"deixaseabsorverlongamenteporela,parainopinadamente,comum
101
75
olhar de desprezo, a arremessar para o Nada". 104 Misantropia e uma atrao pelo
homemuniversalsealternamnomesmohomem.
SeBenjamincompreendequeoquemoveaflneriedeBaudelaireambguo,uma
vez que seu encontro com a multido permeado de empatia, encantamento e
torpor, mas tambm de repulsa e desprezo, podemos ainda lanar uma outra
hiptese: a de que seu anseio por um confronto com a alteridade seja tambm
formado por uma atrao pelo lado sombrio, incontrolado e desconhecido do
espetculoqueoferecemasruas.EmmuitospoemasdAsFloresdeMalabuscapelo
sublimepassaporparagensquetensionamlimitesdoBelo,doBemconvencionados.
Emoutraspalavras,possvelqueamultidoparaBaudelairenosejaummistode
fascnio e repulsa; mas de que a prpria ameaa possa ser um singular atrativo no
esprito do poeta que no se interessa pelo Bom e pelo Belo que a tradio
estabeleceu;maislheintrigaadestruio,ocrime,ohorror,arevolta.Emseudesejo
louco de esposar a multido, toma seu prximo como irmo sem se guiar pelas
coordenadas crists: mais do que compaixo, encontramos orgulho e uma energia
desptica.
Ofascniodeumencontrocomamultidoestpresenteemmuitospoemascomo,
porexemplo,nopoemaemprosaAVidaCrepuscular,assimcomonosversosdeseu
correspondente Crepsculo Vespertino. As cores do fim da tarde botam nos
operrioseoutroshomensextenuadosehonestosoanseiodevoltarparacasaparao
repousodosjuntos;emoutros,surgeumestranhocomicho,estadodedesassossego.
So gritos discordantes o que o poeta escuta, imitaes das harmonias do Inferno
105
106
Anseios, mpetos
Ibidem, ibidem.
Baudelaire, Pequenos Poemas..., pg. 116-117.
106
Baudelaire, As Flores... Traduo : Ivan Junqueira. pg. 350-351. No original: Cest lheure o les
douleurs des malades saigrissent ! .
105
76
compeleaaesdesarrazoadasquandoanoitece.Nohospital,nohospcio,nascasas
dejogos.Nasruas,oMeretrcioabrecaminhosqualumformigueiro.
O anoitecer eria o poeta que se ilumina em um estado de fantasia, no porque
acometido pela mesma febre, mas porque atrado por todos os sobressaltos que
buscam a felicidade no movimento e numa prostituio que eu poderia chamar de
fraternitria 107. Quando os homens se afrouxam das obrigaes diurnas e saem
procuradeescusasatividades,eventualmentemenosconstrangidospeloslugaresque
o trabalho demarca, baixa cidade outra atmosfera, queintriga o homemvido por
outrospossveis.
XI
107
Baudelaire, Pequenos Poemas..., pg. 122-123. No original: (...) tous ces affols qui cherchent le
bonheur dans le mouvement et dans une prostitution que je pourrais appeler fraternitaire (...) .
108
Idem, pg. 129-133.
77
XII
109
78
Satans. O poeta nos narra um episdio: o sujeito (que conta a histria em primeira
pessoa)estandandoemmeioaumamultidoederepenteinterpeladoporumSer
misterioso que parece conhecer sem nunca tlo visto. Os dois sentem interesse e
familiaridade recprocos e o narrador comea a seguir os passos daquele enigma.
Ambosadentramumfaustosoesconderijosubterrneo,umambienteaumstempo
cheiodedeleiteeembriaguez,quelevavaaesquecerquaseinstantaneamentetodos
os fastidiosos horrores da vida
113
esquecimentodavidapregressaedamodorra.Osrostosporquepassalheinspiram
umabelezafatal,masestehomemnotemmedododesconhecido,senteseemcasa,
comotodaaquelaatmosferajfossefamiliaredesejada,comoaquelesabortrouxesse
anostalgiadeumtempoignorado.
OSerquelheinspiraestaestranhaintimidadeochefedosdemnioseassimo
narradordescreveoqueseuanfitriolhetransmite:Seeuquisessetentardefinirde
algummodoasingularexpressodoseuolhar,diriaquenuncaviolhosbrilhandocom
maisenergiadehorroraotdioedesejoimortaldesesentirvivo114.
Eles fumam, comem, jogam e bebem longamente sem jamais se embriagar. As
libaes e o jogo, este prazer sobrehumano, intercalamse. Enquanto aposta, o que
senteonossohomemqueperdeueganhoudiversasvezesaprpriaalma,semque
aquilolheparecesseterqualquerimportncia.
113
Baudelaire, Pequenos Poemas..., Le Joueur Gnreux, p. 148-149. No original: (...) qui faisait
oublier presque instantanment toutes les fastidieuses horreurs de la vie.
114
Idem, pg. 148-149. No original: Si je voulais essayer de dfinir dune manire quelconque
lexpression singulire de leurs regards, je dirais que jamais je ne vis d'yeux brillant plus nergiquement
de l'horreur de l'ennui et du dsir immortel de se sentir vivre .
115
Ibidem, pg. 150-151. No original: L'me est une chose si impalpable, si souvent inutile et
quelques fois si gnante, que je n'prouvai quant cette perte, qu'un peu moins d'motion que si
j'avais gar, dans une promenade, ma carte de visite.
79
Comoessapassagemexpressiva,verazecmica!QuandoseduzidoporSate
por seu ambiente de esquecimento dos aborrecimentos e mesquinharia do
comezinho,quandoludibriadopelotorporepelaluxria,quando,enfim,sequestrado
pelo encantamento de seu domnio, de seu chamado ( a partir de uma simples
piscadela que Sat tem o narrador como seu) o contato com a prpria alma no
pareceterqualquervalorperderouganhla,aosabordeumlancededados,parece
umacontecimentoftil.Satexaltaefazapropagandadeumavidaquenuncamais
mereaoTdio.
O que acontece que este Jogador apenas mostra um lado: neste poema em
prosa apenas experienciamos a seduo e o prazer, no o vcio, no o horror do
retornosobriedade.
XIII
80
silncio, paz e perfumes, num registro bastante distinto daquele em que a ateno
vigilantecomandaocorpoematividadesordinrias.
Essaatmosferadedeleitesubitamenteinterrompidaporumgolpe,quetrazcom
violnciaesofrimentooeulricoparaseumundohabitual,aoqualelereconhecede
pronto.Oquartoespirituallogotomaaformadesuamoradainfame,Horror!Estou
lembrando!Sim!Estou!Estecasebre,moradadoeternotdio,realmenteomeu!118
Onicoobjetoquelhecausaprazeremmeioatodaadesolaodoretornoaoquarto
profanoeaomundocostumeiroograndedetonadordoanteriorestadodextase:
umagarrafinhadeludano.
O golpe a queda no mundo das atividades comezinhas, a invaso abrupta e
dolorosadoexterior.Estechoquerepresentadoporfigurasquetrazemamisriaea
opressodotempoacelerado,cronolgico.Obedelquevemoagrediremnomedalei
e o funcionrio do diretor de um jornal pedindo a sequncia de um artigo so as
imagens que quebram a Eternidade, trazendo a sombra e a premncia do tempo
monetizado. No por acaso, o tdio o primeiro indcio horroroso que o poeta
reconhece logo como seu; assomamse, aliados, o tdio e a percepo do tempo,
trazendoconsigotodasortedemalesemodosdeadoecimento.
O segundo momento deste poema em prosa, iniciado pelo golpe aplicado pela
chegadadotempo,muitoseassemelhacomosversosdORelgio,ltimopoema
daquelesreunidosnOSpleeneoIdeal.
Garantoqueossegundosagorasoforteesolenementeacentuados,ecadaum
delesdiz,brotandodorelgio:EusouaVida,ainsuportvel,aimplacvelVida!
(...)Sim!OTemporeina;eleretomousuabrutalditadura.Emeempurra,comose
eufosseumboi,comseuduploaguilho.Ora!Eia!burrico!Ora,sue,escravo!
Ora,viva,danado!
118
Baudelaire, Pequenos Poemas..., pg. 42-43. Grifo nosso. No original: Horreur! je me souviens! je me
souviens! Oui! ce taudis, ce sjour de lternel ennui, est bien le mien.
81
(...)Oui!leTempsrgne;ilareprissabrutaledictature.Etilmepousse,commesi
jtaisunboeuf,avecsondoubleaiguillon.Ethuedonc!bourrique!Huedonc,
esclave!Visdonc,damn!119
CompreendemosqueaprimeirapartedoQuartoDuplocorrespondeaoideal
baudelairiano. Nesta narrativa, o eulrico se entrega a uma vivncia solitria e
entorpecida,tipicamentemoderna,eoscheiros,asformas,aluminosidade,ascores
parecem harmonizadas. Com a chegada do spleen, a atmosfera e temporalidade
regidaspeloidealdolugaraoinsuportvelsentimentodotempodestruidor.
Gostaramos de trazer um trecho do conto A Queda da Casa de Usher, de
EdgarAllanPoe,porquemBaudelairenutriugrandeadmirao.Podemosencontrar
entreosdoisescritoresafinidadesprofundas.
Contempleiacenaquetinhadiantedemimasimplescasa,asimples
paisagemcaractersticadapropriedade,osfriosmuros,asjanelasque
se assemelhavam a olhos vazios, algumas fileiras de carrios e uns
tantos troncos apodrecidos com uma completa depresso de alma,
quenopossocomparar,apropriadamente,anenhumaoutrasensao
terrena,excetocomaquesente,aodespertar,oviciadoempio,com
aamargavoltavidacotidiana,comaatrozdescidadovu.120
Consideramos este trecho significativo porque ele nos soaloquaz e nos parece
contribuir para compor a atmosfera do spleen. Poe descreve um desamparo, uma
desolao e um desencantamento que, a ns, parece correspondente a descida do
vuquetambmnarraBaudelaire.Trabalharemosospleeneoideal,vistosapartirde
Benjamin,aseguir.
119
120
82
XIV
Nestemomento,tencionamosfalarsobreoconceitodedesauratizaoforjado
porBenjaminedesuarelaocomascorrespondnciasdeBaudelaire.Nestecontexto
serealamasconcepesdespleeneidealnostrscaptulosfinaisdeSobreAlguns
MotivosnaObradeBaudelaire.Parainterpretarepenetrarnestemomentotodifcil
dotextodeBenjamin,recorremosaoauxliodedoispreciososcomentadores:Jeanne
MarieGagnebineLucianoGatti.
Walter Benjamin enxerga nas correspondncias baudelairianas o modo que o
poetaencontrouparadarformaaumconceitodeexperinciaquecontemelementos
de culto. 121 A noo de culto, aqui, j no aparece caracterizada por possuir uma
funo teolgica, como nas manifestaes artsticas de outrora. Sua dimenso
desauratizada diz respeito ao culto beleza e harmonia, presente especificamente
nospoemasqueBenjaminanalisaraoescreveracercadascorrespondncias.Quando
Baudelaire tomou tais elementos para si,explicitouse a dimenso daderrocada que
ele,comopartcipedamodernidade,presenciou.Fazendodestaquedaumimpulso,o
poetaapoderousedeumdesafiocomoquemcompreendeseuprpriodestinoefez
dotestemunhododesabamentoaesporaquelhetornouautordAsFloresdoMal.As
correspondnciasdeBaudelaireseriam,ainda,umaexperinciaqueprocuraumlugar
ao abrigo de qualquer crise. 122 Benjamin as analisa como dados da rememorao,
quesevinculariamnohistria,masprhistria,vidaanterior.
Quando nos referimos a este tempo imemorial na obra de Baudelaire, em seu
elo com as correspondncias, tambm nos remetemos perda da aura, ou
desauratizao, fenmeno peculiar modernidade que se articula, ao menos em
Sobre Alguns Motivos na Obra de Baudelaire, com a queda da experincia.
Compreendemos que estes dois conceitos fundamentais de Walter Benjamin dizem
respeitosprofundastransformaesnaestruturadapercepohumanaedastrocas
sociaisqueestamosanalisamosnodecorrerdestecaptulo.
121
122
83
123
Gagnebin, Jeanne Marie, Alea, vol. 9, n 1, "Le printemps adorable a perdu son odeur", RJ : Jan/Jun
2007, pg. 66.
124
Gagnebin, Jeanne Marie, op. cit., pg. 68.
85
distinguedequalquerapariocotidiana;aaurademoveavulgaridadedojvistoefaz
surgiroinabitual.
AauradefinidaporBenjamincomoaaparionicadealgodistante.Assim,
aindaqueestealgoestejaprximodaquelequepercebetalapario,oquegarante
sua experincia que o objeto seja recebido como nico e inacessvel, velado pela
ideiadeumsegredo.ovuouainatingibilidadeque,tramadosaoobjeto,constroem
opoderaurtico.
NodizerdeLucianoGatti,
adistncianoavedaodacoisa,masumamaneiradeserelacionar
com ela que se realiza no mistrio que a envolve. H uma recusa da
imagem explcita e presente aos olhos como se o afastamento fosse
umacondiopararepresentla.ComocolocouGreffrath,experienciar
aauradeumacoisaaproximarsedelasemdestrula,semsubmet
laviolnciaconceitual125.
Compreendemosascorrespondnciascomoumanoodeharmoniacriadapor
Baudelaire, correspondncias entre cheiros, sons, cores e formas. Os poemas que
Benjaminelencaparafalarsobreesteconceitoforjadopelopoeta(VidaAnteriore
Correspondncias) dizem respeito ao ideal baudelairiano, em contraposio ao
125
Luciano Gatti, Memria e Distanciamento na Teoria da Experincia de Walter Benjamin, pg. 147148.
126
Benjamin, op. cit., pg. 137.
86
spleen.Taispoemastrazemumaexperinciaparaalmdoprpriotempo,parafora
do contexto de desmoronamento em que viveu Baudelaire; trazem tambm o
inacessvel, o infinito e o segredo, o velamento. O ideal est associado a uma
atmosferadenostalgia,pois,emseuregistro,spossvelrememorarumavidaque,
sendo imemorial, no a vida presente. A intensidade e a luminosidade vivaz que
ganham todos os sentidos, numa incomum harmonia, devm tambm do campo da
rememorao.
Ao falarmos do ideal baudelairiano, falamos de um esforo em direo a um
resgate (impossvel) da experincia. Esta no diz respeito apenas memria
individual, que o sujeito tem de suas vivncias particulares; a experincia abrange
necessariamente a memria coletiva, transmitida de gerao a gerao. Como j
vimos, o tempo histrico correspondente ao que Benjamin denominou experincia
no o auge do capitalismo em que viveu Baudelaire. Entendemos que as
correspondncias que labora o poeta so marcas de uma tentativa diligente, qui
desesperada,deconstruirumaponteentreadecomposiodopresenteeatradio
do passado. A nica possibilidade que o poeta encontra de ter qualquer espcie de
acesso experincia , pois, atravs da rememorao, de uma construo que
transmutasualricaecravanotempooqueestsendoperdido,oqueseperdeu.Se
halgumvestgiodaauranaobradeBaudelaireapartirdadesmesuradabuscade
umaexperincia,queseremeteagoraesferadoimpenetrvel,doirrealizvel,uma
vez que, com a extrema exaltao do futuro como tempo do progresso, o passado
perdeoseuvalor,oseulugar,asuaautoridade.
OsignificadomaiordoidealestnofatodeBaudelaire,aoreconhecer
[aexperinciadaauracomo]impossvelnopresente,terlhereservado
um lugar na Vida Anterior, a qual longe de ser uma fuga ou um
esquecimento das condies adversas da modernidade, guarda uma
relao profunda com ela, pois o fato de tal experincia da aura ser
87
Adespeitodabuscaqueintentaopoeta,nopossvelescapardospleen.No
hconsolaopossvelparaquemjnopodeteracessoanenhumaexperincia128.
OcantopoticodeBaudelairepartcipedeumasituaohistricaemquealricaj
notemlugarnempoderpararecomporatramadahistriaaumacoletividade,seu
canto tampouco devolve a experincia perdida. O valor da poesia baudelairiana
(essencialmente no que tange aos versos cinzentos regidos pelo spleen) devm
justamente da capacidade de no disfarar a vivncia, de expor a sua nudez, a sua
radicalidade.AmissodedarformamodernidadeaqualBaudelairetomouparasi
129
EengolemeoTempo,minutoaminuto,
Talqualaneveimensaaumcorpoenregelado.
127
Luciano Gatti, Memria e Distanciamento na Teoria da Experincia de Walter Benjamin, pg. 144.
Benjamin, op. cit., pg. 138.
129
Idem, pg. 82.
128
88
CAPTULO3
89
II
.Sensibilidadeidolatria,aocultodeumapessoaouideia.Ospoemascercadosde
rostosfemininos,aMadonadededoemristequeentesaoseuespritodesignariam,
decertamaneira,orestodeumculto.
Devemos, no entanto, ressaltar que se h, para Bourget, uma forma de
religiosidade no amor devasso do poeta, um vestgio de f, no percurso o que se
encontranoDeus,masaSuaausncia,oSeuvazio.
130
Paul Bourget, Essais de Psychologie Contemporaine, Frana, Gallimard, 1993. Pg. 6 . Este texto que
utilizamos de Paul Bourget no possui traduo para o portugus publicada.
90
Opoetasubmetidoprpriainsaciabilidade,encontrandoemumamulherno
um mero apaziguamento possvel, mas o gosto do Eterno 131. H uma passagem
direta, ento, no texto de Bourget, do que o autor designa como misticismo para a
libertinagem; como se no apelo do Eterno endereado s figuras femininas, j
houvesse tambm a volpia que ele reconhece como libertina. Bourget enxerga
Baudelaire em seus cultos e festas clandestinas, onde as sacerdotisas pags
reconhecemnopoetaodevoto,umhomemdominado.Emseumododefazerfalaro
Ideal,deixaseentreverojugo.
Jeveuxbtirpourtoi,Madone,mamatresse,
Unautelsouterrainaufonddemadtresse...132
Asordens,aternura,oardor,orefinamentoqueopoetarecolheemsuasVnus
escapam como lufadas de um bordel assim l o nosso crtico As Flores do Mal, e
podemosvernestesenhorqueaos30anosescreveuosEnsaiosPsicolgicos,orapaz
de 17 que reconhece no poeta um educador da alma, deixando traos em sua
imaginao,comoosolharesirnicoseclidosquehabitamospoemasbaudelairianos,
queperdurameperturbamatasuamaturidade.
Omisticismoeacrueldade;adevooeosadismo,acuriosidadeatormentada
encontramseafinadosemummesmopoeta.Atransiodeumavozparaoutraat
hojecausaespanto,mesmoqueagoraestejamosmaishabituadosaestemundodesde
entomoderno.BourgetencontraemBaudelairetantoapurezacomooapetitequeo
atracanacarnalidade.Odesregramento,asedeeoinfinitocompemasensibilidade
destepoetaque,seumhomemdominado,tambmsenhoremsuaintelignciae
crueldade.
Atraverstantdgarements,olasoifduneinfiniepuretsemlangela
faim devorante des joies plus pimentes de la chair, lintelligence de
lanalyseurrestecruellementmatressedellemme133.
131
91
Baudelairepossuiria,paraestecrticoliterrio,ummododesensibilidadeprpria
aolibertino,entendidoaquicomoaquelequepersegue,atravsdaspioresexcitaes,
uma crueldade luxuriosa que toca a mania, o espasmo sem reflexo que sobe dos
nervosaocrebroeque,porumsegundo,curadomaldepensar 134.Apresenadas
mulheres, sejam madonas ou prostitutas, indiciariam, atravs do eulrico
baudelairiano, uma luxria e exasperao nervosa que quebram e libertam por um
segundo!aconscincia.Estaabuscadolibertino;esta,asuaperdio.
O vcio e a crueldade levam o esprito audaz em seu interesse, atroz em sua
curiosidade a um espao onde o que vibra a dor e a morte. Alguns sabem retirar
destecanto,almdosofrimento,umaformadevida,umlugaraquetantoshomens
buscam ou no qual apenas decaem, sem conseguir dali extrair o metal precioso,
algumaforanavoz.Sobreisso,Baudelairenocalou,bemaquiderramousuatintae
tambm sua seiva vermelha e quente. Tal o modo como o poeta canta; mesmo
quando aterra ou paira pelas plancies sinistras ou paralisadas, ainda aqui ou
exatamenteassim,oseucantotonitruante,vivo,audaz.Mesmoparafalaraderrota,
aretirada,senteseasuavolpia.Nohomemanimalizadopelador,pelocansao,h
um vigor surpreendente, h o anncio de uma decadncia neste ser proftico que
conseguevernomoderno,nooProgresso,masumcertodeclnio,oseusolpoente.
EstascaractersticassoatintaematriadoestiloemBaudelaire.Aperseguio
e a submisso quilo que ele no se cansava de procurar, com a inteligncia e o
esprito, o Verbo. E tambm o que estava em seu encalo, uma espcie de sina que
algunschamamdeAbismo,outrosdefracasso.Ficaatmesmodifcildeslindarquem
acaaequem,ocaador:oAbismopersegueBaudelaireouestequeminterrogaseu
Abismo,fazdetalbuscaumasortepotica,asuachance?
134
92
III
AindasegundoBourget,acapacidadeanalticadeBaudelaireexerceumafuno
de assenhoramento com relao s outras sortes de sensibilidade que habitam o
poeta.Asuainteligncia,comodissemos,seriaummododecrueldade,queexerceria
uma forma de poder com relao ao misticismo e libertinagem. Estas duas
caractersticasouoperaesanmicassecodificamenformulesdanscecerveauqui
dcomposesessensations,aveclaprcisiondunprismedcomposantlalumire135.
A inteligncia de Baudelaire no desencarnada. Nenhuma inteligncia
prescinde do corpo, mas, segundo a formulao deste crtico, possvel perceber
neste poeta algo mais: o sangue que queima e o xtase provindo da imaginao de
suasquimerasnointerrompemopensamento,apalavra.Antes,asuapoesiadevm
deste acontecimento, das sensaes que abrasam o idealismo, de seu corpo que
imagina. A embriaguez, o xtase e a estrutura formal da poesia habitam o mesmo
poeta.
De acordo com Paul Bourget, o indito no so as trs caractersticas que ele
poderecolheremBaudelaire,queparadigmadeumatransformaosocial.Onovo
a reunio do analista, do libertino, do mstico. Tais aspectos se encontram to
imiscudos que s vezes no possvel conceber onde comea um eonde termina o
outro. Segundo a sua frmula, a crise da f religiosa, a vida em Paris e o esprito
cientficodosculoXIXcontriburamparafabricare,posteriormente,parafundirestas
trs sensibilidades. Esto postos como que de forma natural, o que um grande
artificialismo.Oartifciodacriaopotica,mastambmoartifcionosentidodeque
este novo esprito no poderia ser concebido antes deste momento histrico, do
surgimentodametrpole,destanovasensibilidadeforjada.
IV
93
Segundoele,
Unenauseuniversalledevantlesinsuffisancesdecemondesoulvele
coeurdesSlaves,desGermainsetdesLatins,etsemanifeste,chezles
premiersparlenihilisme,chezlessecondsparlepessimisme,cheznous
mmespardesolitairesetbizarresnvroses.136
136
137
94
Lillusionatsidouceetsiforte,quunefoispartie,ellenapluslaiss
de place des substitutions dune intensit infrieure. Quand on a
connulivressedelopium,celleduvincoeureetparatmesquine.En
sen allant au contact du sicle, la foi a laiss dans ces sortes dmes
unefissureparoscoulenttouslesplaisirs139.
Ibidem, pg. 10
Bourget, op. cit., pg. 11-12.
95
nopodedeixardeprocurarinsaciavelmenteportodasasformasdeexcitao,aquele
queaspirasempreoutrosmodosdevnculoeacessomstico,queagorasetornaram
mancos, insuficientes, fazendo com que, depois de cada xtase vulgar, seja possvel
perceber sua artificialidade, sua brevidade, processo que sempre torna mais
escandaloso e ntido o vazio que se quer eclipsar atrs de cada busca frentica.
Podemosobservar,apartirdenossaleituradeBaudelaire,queapassagemaomundo
mstico,nashorassombrias,sedatravsdasfigurasdodemnio,daputrefao,do
desprezo,dohorror.
Segundoaconstruodotericoqueoraacompanhamos,nestasidasevindas,
nestas viagens que buscam nas alucinaes ordinrias e parasos artificiais o prazer
transcendental,queaquelehomemcomverdadeiravocaomsticadeparasecoma
sua mais terrvel angstia. Ele percebe que toda a f trabalho e criao humana,
inteiramente subjetiva. Percebe para alm e no fundo do impulso venerao, o
caducoeoesvaziado.AssimabreseamoradaparaoTdio,paraogozononadae
afirmaocnicadaleigeraldaaniquilao,daplidaequivalnciadetudo.Nadatem
expresso,relevo.
A partir de toda esta experincia, a figura da Morte ento se destaca como
libertaodaimensaangstia,detodaaescravidoedvida,comosupremaformade
alvio.Cestlamortquiconsole,hlas!etquifaitvivre;/Cestlebutdelavieetcest
leseulespoir.140
H,ento,umafrmuladeBourget,queidentificaumeloentrealibertinageme
onada,entrealibertinagemeamorte.Odesesperoeaansiedadedesentirtudo,de
sentir todos os xtases, enlevos, arroubamentos e prazeres, de fazer do sistema
nervosoecognitivoumreceptculoparaasmaisexcitanteselbricasexperincias,a
excessivacuriosidadeeinteressedeumespritoquetudoquerdevorar,absorvereser,
revelamoudirecionamaquelequetudoquerparaamorte,paraoTdio.
140
Baudelaire, As Flores..., A Morte dos Pobres, p. 433. Traduo de Ivan Junqueira: A morte que
consola e que nos faz viver; / o alvo desta vida e a nica esperana.
96
Paraohomemquelevouseusistemanervosoestafa,humaincapacidadede
encontrar qualquer tremor que satisfaa sua sensualidade extremada. O que poder
fazlovibrar,satisfazersuansiaporexaltao,agora,ador.Fazersofreresofrer
asinistrapaixoqueseapossadolibertinoquenoencontrajamaisapaziguamentoou
descanso de suas cobias, mquina infernal do desejo. O aparelho sangrento da
Destruio142sacia,porumfrgilinstante,sualuxriadesgovernada,quesesubmete
atudoquesejapromessadeentorpecimento.Tendolhesidonegadaumasatisfao
veraz,provindadeumailusoouDeusqueodeixouagoradeserto,qualquercoisaque
ofereaumefeitonarcotizanterecebidacomansiedadeedesespero.
Paraolibertino,ansiadeultrapassarolimitetornouseftil,improvvel:no
hmaisointeressepelosutil,nabuscadeumgozosempremaior.Abuscaobsessiva,
exasperadapeloprazer,apontaparaseuinverso,parasuaincapacidade.Aprocurapor
sentirmais,tornaseaprocurapelanarcoseeainsaciabilidadeesgotaaspossibilidades
de ser. Aqui est a frmula invertida: a busca pelo prazer, tornada vcio, perde sua
riqueza,seusentido,suaaptidoparaaabertura.
J'aidemandsouventdesvinscaptieux
D'endormirpourunjourlaterreurquimemine;
Levinrendl'oeilplusclairetl'oreilleplusfine!
141
97
J'aicherchdansl'amourunsommeiloublieux;
Maisl'amourn'estpourmoiqu'unmatelasd'aiguilles
Faitpourdonnerboirecescruellesfilles!143
Quelspensersdanstonmevide
Descedent?rponds,libertin.
Insatiablementavide
Del'obscuretdel'incertain144.
143
98
Aalmavaziaeaavidezinsaciveldoobscuroedoincerto.Oquecorresponde
libertinagemdopoetanoserestringeaoseucomportamentoouimoderaosensual;
suasofreguidodizrespeitoaumdesejoinominado,pelodesconhecido,umdesejoe
ansiedadesemobjeto,umaexpectativapeloquenofoivivido,umansiasemforma
doporvir.Nestepoemaenoanterior,Alquimiadadorqueformamumaaliana,
asimagensquepercorremeconvivemcomestainsatisfao/insaciabilidadeso:dor,
cadver,luto,sarcfago,sepultura.
Odesejotornadoinferno.Noestnestafrmulaomaldusicle,oquerercomo
gestoquesempresereverteremesvaziamento,emfracasso,frustraooumorte?O
eulricodoHorrorSimpticocolocasecomoMidas,"omaistristealquimista",hbil
em transmudar o paraso em inferno. Compreendemos aqui como o querer, para
Baudelaire,muitasvezessentidocomoatroz,diablico,leteu.Ansiadeconhecero
quenotemnome,oOrgulhomododacuriosidadeatormentada,tornadaObsesso
de ultrapassar os limites, a atrao pelo desconhecido resultam, em sua desmedida
apaixonada,emalgomortfero.Volupt,torturedesmes!145
Humacontrapartidaeumacontradio:agnosedopoeta,suansiaporsaber,
suaCincia,aconstruodeumsaberpotico,deumfazerpotico,asuatcnica.
Conhecer e desvelar, inventar, atravs da palavra, os possveis, conferindo realidade
atravsdesuaobra,desuaimaginao.Seoeulricobaudelairianoacometidopela
negaodavontadeeissootornaconformadoaosonoederrota,fazendocomque
sedeitesempudordiantedecadaobstculo,suabelaesgrimadeixanosolegadoque
termos de nos defrontar, a partir da leituradAs Floresdo Mal, com nossa prpria
quedaetdio,comestaquedaecomestetdioqueprprionossamodernidade.
145
99
CAPTULO4
Vaislevarme,avalanche,emtuaquedaabrupta?146
Eleescreveuemestiloelevadosobreaansiedadeparalisante,sobreo
pnicodiantedoemaranhadosemesperanadenossasvidas,sobreo
colapsototalumempreendimentoaltamentehonroso,mastambm
uma negao da vida. A lngua alem tem um termo apropriado para
estespleen:dasgraueElend,amisriacinzenta.148
Baudelaire,emsuavida,esteveenredadoaotdio,acedia,esteestadoemque
depomosasarmas,dandonosporvencidosantesmesmodehavercombatido.
146
100
Morneesprit,autrefoisamoureuxdelalutte,
LEspoir,dontlperonattisaittonardeur,
Neveutplustenfourcher!Couchetoisanspudeur,
Vieuxchevaldontlepiedchaqueobstaclebutte.
Rsignetoi,moncoeur;dorstonsommeildebrute.149
Estesversosfalamdeformatoeloqenteadesesperana,aderrota,ocansao!
Estadoselugaresemquecomumenteapalavranovemsocorrer.Humaresignao
infinita numa tristeza tambm sem fim. No por acaso que h a imagem do velho
cavalo e do sommeil de brute. O homem est reduzido num mau sentido a sua
animalidade; aqui sinonmica bestialidade e estupidez. Nenhum esforo se faz
possvel; em seu modo de perceber, toda ao v. inconcebvel opor qualquer
resistncia, furtarse degradao anunciada, vivida; o eulrico sequer tem energia
paraprocurarumabrigoqueoprotejadeseraniquilado.PercebemosemBaudelaire
que mesmo para falar a paralisia preciso o deslocamento (da lngua), que
necessriaavitalidadeparadizeroquedesisteepercebemosdequantoinvestimento
seimbuoespritoparadarformafrustrao,aodecaimento.
Hocansao,odesesperosemremdio,atristemisria;estadosemqueseest
inbilparaaao,paraotrabalhoesobreestamatriaqueBaudelairesedebrua,,
curiosamente,apartirdesteestadonoafeitolutaqueelevaiexercitarsuaesgrima.
Isso porque esta paralisia no meramente algo a ser combatido, ela objeto e
princpiodafonteamargadasFloresdoMal.Aatividadeeloucaambioqueopoeta
realiza , na expresso de Auerbach, a de saltar diretamente de sua misria para o
sublime
150
Baudelaireescreve,oque,aonossomododecompreender,umasupremaformade
resistnciaedecriao.Ali,ondeseuespritoestimpossibilitadodeconferirvalor
vida,elerealizaumaescritaquetransmutarovalordapoesia:dotandodedignidade
aquilo que no era suficientemente elevado para poder ser tematizado. No dizer de
149
150
101
II
Ilyadesnaturespurementcontemplativesettoutfaitimpropres
l'action, qui cependant, sous une impulsion mystrieuse et inconnue,
agissentquelquefoisavecunerapiditdontellesseseraientcrueselles
mmesincapables.
(...)
Undemesamis,leplusinoffensifrveurquiaitexist,amisunefoisle
feu une fort pour voir, disaitil, si le feu prenait avec autant de
151
102
154
Baudelaire,PequenosPoemas...,LeMauvaisVitrier,pg.5257.Nooriginal:Existemnaturezas
puramentecontemplativasetotalmenteimprpriasparaaaoque,noentanto,sobumaimpulso
misteriosaedesconhecida,agemsvezescomumarapidezdequeelasprpriassejulgariamincapazes.
Umdosmeusamigos,omaisinofensivosonhadorquejexistiu,ateoufogoumavezaumafloresta,
paraver,dizia,seofogopegavacomtalfacilidadecomoseafirmacomumente.Dezvezesconsecutivas
aexperinciafalhou;mas,nadcimaprimeira,foipordemaisbemsucedida.Outroiracenderum
charutoaoladodeumbarrildeplvora,paraver,parasaber,paratentarodestino,paraseforarasi
mesmoadarprovasdeenergia,parasefazerdejogador,paraconhecerosprazeresdaansiedade,por
nada,porcapricho,pordesocupao.umaespciedeenergiaquejorradotdioedodevaneio;e
aquelesnosquaiselasemanifestatoinopinadamenteso,geralmente,comoeudisse,osmais
indolentesesonhadoresdosseres.Outro,tmidoapontodeabaixarosolhosmesmodiantedos
103
Podemos melhor explorar a aparente contradio entre a ociosidade e energia
aonosdetermosnanarrativaOMauVidraceiro155.Estepoemaemprosarevelauma
verdade sobre o estado dalma chamado Tdio o spleen e o ennui baudelairianos.
Longe de poder ser reduzido a uma renncia completa, que esvaziaria todas as
possibilidadesvolitivasdeumser,tornandoovaziodecoragem,mpeto,movimento,
oTdioguardafrequentemente,portrsdofenmenododesbotamentoedaapatia,
umareviravolta.
Nestepoemaemprosa,Baudelairefalasobrenaturezastmidas,contemplativas,
que repentinamente se vem compelidas ao, como a flecha de um arco 156. O
mpeto que move atividade no se identifica ao vigor que o trabalho, o exerccio
dotam, mas a uma fora inusual que provm de um humor histrico segundo os
mdicos, satnico segundo os que pensam um pouco melhor que os mdicos 157.
Tratase de uma vitalidade sem precedentes, do gro da insanidade que vigora no
homemletrgicolevadoaacenderumcharutopertodobarrildeplvoras,paraque
sintaqualquercoisaemsivibrar,paraqueseponhaemprovas.
Tratase da fria que descende do aborrecimento fomentado no cio, do
surgimento de uma ao que se expande sem mostrar sua gnese e se acumula nas
pulsessilenciosas,nosubterrneo;deumaexaltaoqueveminstaurarseuinferno,
praticaradesordem,imporafaltadesentidoporquesevpossuda.
olharesdoshomens,apontodeserlheprecisoajuntartodaasuapobrevontadeparaentrarnumbar
oupassardiantedeumabilheteriadeteatro,ondeosfiscaislhepareceminvestidosdamajestadede
Minos,acoeRadamanto,sejogarbruscamentenosbraosdeumancioqueestiverpassandoaoseu
lado,eobeijarcomentusiasmodiantedamultidoespantada.Porqu?Porque...porqueessa
fisionomialheerairresistivelmentesimptica?Talvez;maismaislegtimosuporqueeleprpriono
saibaporqu.Fuivtima,maisumavez,dessascrisesedessesimpulsos,quenosautorizamacrerque
Demniosmaliciososseinsinuamdentrodensenosfazemcumprir,revelia,suasmaisabsurdas
vontades.
155
Idem.
Ibidem. No original : (...) comme la flche dun arc.
157
Baudelaire, Pequenos Poemas..., pg. 54. No original : (...) ne ft-ce que par lardeur du dsir, de
cette humeur, hystrique selon les mdecins, satanique selon ceux qui pensent un peu mieux que les
mdecins, qui nous pousse sans rsistance vers une foule dactions dangereuses ou inconvenantes.
156
104
Tratasedansiadespticaqueserecobraemumespritoacostumadoaotdio,
que se voluntaria a um ato torpe a despeito da paga da danao eterna; qu isso
importa,perguntaopoeta,aquemencontrounumsegundooinfinitodoprazer?158
III
Omeiodiaahoradodemnioedaacediaexasperada.159
VoltaremossconfernciasdadasporJeanStarobinski,squaisrecorremosno
captulo 2, para desenvolver algo mais sobre as suas reflexes sobre a melancolia. A
lentido e o peso fazem parte da melancolia, quando no a imobilidade completa.
Evidncia de precariedade, da falta de profundeza e da Vanidade sem recurso. Um
espelho de volpia solitria, e um espelho de dor tambm solitria. A melancolia
aparecehoradomeiodia.OsprimeirosespelhosdeBaudelairepertencemshoras
vespertinasenoturnas,elescelebramumprazerperverso.
StarobinskirecolheumaexpressodeumpoemadeBaudelairebastanteprecisa
para falar a melancolia: Estril volpia. H uma associao, para Baudelaire, entre a
belezaeamelancolia(suailustrecompanheira);entreabelezaeoinfortnio,entrea
beleza e Sat. Uma mistura de volpia e tristeza o que faz seu ideal de Belo e de
seduo. Melancolia, saciedade, cansao. A amargura provinda da privao ou da
desesperana.
Idem, pg. 56. No original : Mais quimporte lternit de la damnation qui a trouv dans une
seconde linfini de la jouissance ?
159
Starobinski, A melancolia diante do espelho Trs leituras de Baudelaire. Editora 34, 2014.
Traduo: Samuel Titan Jr. Ttulo original: La Mlancolie au miroir, Paris, Julliard, 1989. Pg. 17.
160
Starobinski, op. cit., p. 22. A citao a que Starobinski recorre neste trecho de Jornaux intimes, de
Baudelaire, nas Ouvres Compltes I, pg. 668-69.
105
quenoangelicaleharmonioso,masdivinoesatnico.Sehharmonia,elaprovm
doinferno.
Vienstuducielprofondousorstudelabme,
OBeaut?tonregard,infernaletdivin,
Verseconfusmentlebienfaitetlecrime,
Etlonpeutpourcelatecomparerauvin.
(...)
Sorstudugoufreenoiroudescendestudesastres?
LeDestincharmsuittesjuponscommeunchien;
Tusmesauhasardlajoieetlesdsastres
Ettugouvernestoutetnerpondsderien.
Atraosatnicaaodesfiladeiro.Seabelezaprovmdoprofundoabismooudos
astros, no sabemos, mas somos impelidos ao mal como ao bem, pois em ambos a
beleza vibra, princpio do terror. O convite beleza, como fascnio, um convite
perda dos limites, ao esquecimento de si. O que faz a beleza, portanto, no o que
produzobomeomau,masoqueproduzintensidade.Aoacaso,abelezaalegriae
desastre.Ohorroreamortedanamemseuventre.Abeleza,estemonstroqueabre
aportad'unInfinitquej'aimeetn'aijamaisconnu162.
MaseisaambiguidadedeBaudelaire:seamelancoliacaracterizadaporuma
profunda tristeza e abatimento, consequentemente pela passividade, por um estado
de recebimento e afetao mrbidos, onde a mnima ao est na fronteira da
impossibilidade; transmudada, em uma operao interna, em uma atividade, fazse
sarcasmo, o corte da monotonia. O estado da acedia transformase por sbita ao,
sem se despojar, no entanto, daquele veneno. A agressividade tornase um ato de
conscincia;aprofundadorautoreferidafazafiarumgume:amaldade,acrueldade
voltamseparafora,paraalngua.
161
162
106
Ondeincandesceacrueldadeeador,odiaboestpresente.possvelobservar
no poema em prosa O Mau Vidraceiro: o que emprestarepentina ao desvairada
aosespritosconsumidospeloTdioaesporadeSatohumorsatnico.
Estacrueldadequesevoltouparafora,noentanto,encontraumcorrespondente
no interior, no est erradicada. H uma dor que continua, e essa dinmica, nas
palavras de Starobinski, a quintessncia do sadomasoquismo, uma vez que a dor
interiorizadatornase,tambmdoreprazernaagressoaumoutro,demodoquea
duplatorturadortorturadotornaseativadentrodoprpriosujeitooferido,queao
ferirse,tambmcastigaseuOutro(aqueleque,noraro,oobjetodeseuamor).A
Ironiatomaafiguradeuminimigontimo".
IV
Adorinvestidacontraooutro,semmotivaoexplcita,voltasecomoadorcom
que se fere o prprio corpo. A ao sdica retorna como dor masoquista, uma dor
infringida sem dio e sem clera. Starobinski analisa o famoso poema
L'Hautontimoroumnos para falar da figura da ironia. A Ironia (amaiusculada por
Baudelaire, crescida em importncia e como que personificada), entidade distinta,
animadadeenergiaindependenteehostil,aadversriaativa,suplantando(faceao
eupotico)avtimapassiva.Oefeitoqueissotem,nopercursodopoema,ode
duplicar aquele que fala, sempre em figuras/objetos de ao antagonista. O eu est,
portanto,duplicado,contraditoedespersonalizado.
Jesuislaplaieetlecouteau!
Jesuislesouffletetlajoue!
Jesuislesmembresetlaroue,
Etlavictimeetlebourreau!
Jesuisdemoncoeurlevampire,
Undecesgrandsabandonns
Aurireternelcondamns,
107
Etquinepeuventplussourire!163
NaspalavrasdeStarobinski,nomovimentodopoema,arelaoasisuplantoua
relao com o outro. O desdobramento se d a partir da operao em que ferir a si
mesmo tornase um gesto representvel, homlogo e inverso ao gesto de ferir ao
outro. O aougueiro e o animal presentes no poema foram interiorizados. Assim, a
alegoriadesi(Jesuis...,Jesuis...),queumadeclaraodaidentidade,multiplicaas
figurasdealteridade.Opontomaisinteressantedestaanlise,segundoanossaleitura,
aseguirexpostopeloautorqueoraacompanhamos:
PoispersonificaosingularizantedaIroniasucede,comoatributosdeJe
suis,umaventaniadealegoriasfugazeseintercambiveis.(...)Aalegoria,
desta feita, no se vincula mais personificao: ela despersonalizante,
desvitalizante.164
No pudemos, pelo tempo que nos exguo, desenvolver nenhum captulo a partir da anlise que
Sartre escreveu sobre a obra de Baudelaire, mas no poderamos ignorar que em seu livro acerca do poeta
francs, o filsofo se debruou sobre L'Hautontimoroumnos. Embora a anlise de Sartre nos parea
estar demasiado focada no tipo psicolgico que foi Baudelaire, e no em sua obra, destacamos um
pargrafo de seu estudo sobre o poema: Ainsi les supplices quil sinflige miment-ils la possession: ils
tendent faire natre une chair sous ses doigts, sa propre chair, pour que dans la douleur elle se
reconnaisse sienne. Faire souffrir cest possder et crer tout autant que dtruire. Le lien qui unit
mutuellement la victime et linquisiteur est sexuel. Mais il tente vainement de transporter dans sa vie
intime ce rapport qui na de sens quentre personnes distinctes, de transformer en couteau la conscience
rflexive, en blessure la conscience rflchie : dune certaine faon, elles ne font quun ; on ne peut
saimer, ni se har, ni se torturer soi-mme : victime et bourreau svanouissent dans lindistinction totale,
lorsque, par un seul et mme acte volontaire, lune rclame et lautre inflige la souffrance.Par un
mouvement inverse mais qui conspire au mme but, Baudelaire voudra se faire sournoisement complice
de sa conscience rflchie contre sa conscience rflexive : lorsquil cesse de se martyriser, cest quil
essaie de stonner lui-mme. Il feindra une spontanit dconcertante, il fera semblant de sabandonner
aux impulsions les plus gratuites pour se dresser soudain devant son propre regard comme un objet
opaque et imprvisible, bref comme un Autre que lui-mme. Sil y parvenait, la besogne serait plus qu
moiti faite : il pourrait jouir de soi. Mais, ici encore, il ne fait quun avec celui quil veur surprendre.
Cest un peu de dire quil devine son projet avant mme que de le concevoir : il prvoit et mesure sa
surprise, il court aprs son propre tonnement sans jamais latteindre. Baudelaire, cest lhomme qui a
choisi de se voir comme sil tait un autre ; sa vie nest que lhistorie de cet chec. Sartre, Jean-Paul.
Baudelaire. Paris : Gallimard, 1947. Pg. 27-28. No h traduo para o portugus publicada.
164
Starobinski, op. cit., pg. 33.
165
Idem. Pg. 34.
108
todasessasimagens,presentesnopoemaSpleenLXXVI166,oeuestobjetificado.A
matria viva est transmutada em seu sonho de pedra. O eu est marmorizado, e
nestatransformaoencontramossuamorte,suaparalisiamelanclica.Nocemitrio
e na alcova: aqui tambm est a figura da morte que se encontra com o prazer e
talvez possamos ainda dizer, o prazer convertido em vcio; pois que no cenrio do
bordel, como no da jogatina que Baudelaire desenha em seus poemas, aparece
sempreumamisturadeluxriaetristeza,prazeredesespero,estranhabelezaebusca
poralgoquenuncasesatisfaz.
Hmulheresqueinspiramavontadedevenclasegozlas;masestado
desejodemorrerlentamentesobseuolhar.167
Desdecrianaquesintoemmimdoisimpulsos
contraditrios:umdehorroreoutrodeexaltaopelavida.168
166
109
171
110
esteIdeal,efazdoparoxismosurgirumaimagemquechoca,osaltoexpressoneste
quarteto:
Etpourtantvousserezsemblablecetteordure,
Acettehorribleinfection,
toiledemesyeux,soleildemanature,
Vous,monangeetmapassion!
111
Oui!tellequevouserez,lareinedesgrces,
Aprslesdernierssacrements,
Quandvousirez,sousl'herbeetlesfloraisonsgrasses,
Moisirparmilesossements.
Alors,mabeaut!diteslavermine
Quivousmangeradebaisers,
Quej'aigardlaformeetl'essencedivine
Demesamoursdcomposs!175
NasimagensqueBaudelaireconcebenoltimoquartetodopoema,novamente
estamortelbrica,osvermesqueverdadeiramentecomemacarne,combeijos,eo
eulricogozaeri,gozaezomba,sabendoquedetmumpoderquefingesermaiordo
queamorte,opoderdoartifcio:aformaeaessnciadivinaestoparaalmdavida
apodrecida, da morte consumada. O poema salva da desfigurao para alm do
sensvel.Aindaqueimpotente,humtriunfo:TodaPoderosaamorte,masocanto
dopoetasalva,elevandoseapartireparaalmdacarnedecomposta.
As imagens que Baudelaire realiza pela linguagem so atormentadas e
sangrentas,masaconstruodeseuspoemasdeumritmoeformaquereportama
umestiloelevado.Nospoemasbaudelairianos,comumente,umaimagemprovindada
primeiraestrofedeumpoemapreparaparaagrandezaouparaabelezaclssica,para
depoisfrustrartalexpectativa,esbofetearoleitor,suplicilo.Aconstruodopoema
perfeita,masoqueseexperimenta,atravsdosversos,adegradao,amorte,o
corpo devassado. Nesta voz que tortura e afronta, sada de uma aparncia de
dignidadeprovindadaforma,reside,tambm,asuaironiaoseudesprezoeoseu
dio.
Segundo a interpretao de Claudio Willer, a morbidez de Baudelaire uma
viso de mundo, regida por uma lgica inflexvel: o mundo feito de matria cada,
cenrio da degradao. A natureza e o corpo tm como destino a corrupo. Uma
Carnia condensa tal viso. Podemos compreender que a ambivalncia e a
175
112
Willerapontaemseutextodoispoemasespecialmenteemqueomovimentoda
abjeoparaosublimenoserealizahapenasomovimentodedescendncia:do
Ideal para o horror. Um dos poemas explicitados As metamorfoses do vampiro.
Neleapareceumhomemnarrandooencontrocomumamulhertimideetlibertine,et
fragile et robuste
176
especiarias,deviagenssutisatravsdossentidosoalmscareaframboesa,oincenso,
amirra;trazemsuanudezalua,osol,ocueasestrelas.Mulheruniverso,ciodas
passagens 177,doutaemvolpias,elaquemdiz:Moi,j'ailalvrehumide,etjesais
la science / De perdre au fond d'un lit l'antique conscience. A apario audaz e
poderosa, propiciadora de efeitos, depois de sugar a medula deste homemvampiro
saciado,revelasepus,podrido,privadadesanguecomodavida.Nestepoemano
encontramos sublimao: A forma Ideal novamente tornouse esqueleto; no h
consolo,remissonaTerra.
WillerentendequeBaudelairehipostasiouomalcomoforaqueregeomundo,
matria degradada, e esta existncia feita a partir da queda vivida como um
pesadelomultiformeeimensodesenhadoporDeus 178.Esteestranhopoeta,emseu
restomstico,emseucultopago,acendeumavelapraDeus,outraprodiabo.
176
113
CONSIDERAESFINAIS
Arealizaodestetrabalhofoiimportanteparaquenstivssemosumanoo
dotdiomaissituadanaHistria,paraquepudssemoscompreenderoseufenmeno
deformamenospsicolgicanosentidofracodotermo,naqueleemqueseanalisa
apenasoindivduodeformadescoladadosacontecimentossociaisedeseucontexto.
Paraanalisaroobjetodenossoestudoumobjetodifcildeserpego,umavez
que se manifesta frequentemente como ausncia ou dficit recorremos a tericos
muitodsparesentresi.Noacreditamosterdadocontademarcaraenormedistncia
quesituacadaumdosautoresqueescolhemosutilizar.Aescolhaderecorreramuitas
vozes sobre o tdio e sobre Baudelaire, se nos permitiu, de certa forma, uma viso
maisvria,tambmnosceifouaprofundidade.Nopodemosafirmaraocertosequer
seonossoobjetofoidelimitadodemaneiraprecisa:tdioevazio,tdioequeda,tdio
emelancoliaacreditamosapenastersondadooqueaproximaesteselementosmais
oumenoscircunscritos.
Infelizmente, no demos conta de muita coisa, um pouco pela premncia do
tempo,outrotanto,porfaltademanejo.AobradeSartresobreBaudelaire,bemcomo
os trabalhos de Dolf Ohler, no foram contemplados nesta dissertao, como
gostaramos. Tambm acreditamos que no aproveitamos muitos textos como estes
mereciam, como principalmente foi o caso das conferncias de Starobinski
desejvamosteraprofundadomaisasquestesqueesteautorlevanta.
Ao lado do tdio, tambm reincidiram no percurso deste trabalho figuras que
colaboram com a percepo do tempo como marcha arrasadora, representadas
atravs do poder narctico do amor, do jogo, do trabalho ou da droga. Figuras da
destruio do tempo aparecem com recorrncia ao lado do tdio, ainda que o peso
moraldadoaestanecessidadedeobliterarovazioaparea,atravsdaconduode
cadaautor,deummododiferente.
TantoSvendsenquantoBenjamin(queaproximamosapenasaqui!),enxergamno
tdioumfenmenoprpriomodernidade,masseelesesboamalgumasoluoou
modo de conviver com este ensombrecimento, estes no tomam a forma, como em
Bourget, de uma conclamao a um retorno religiosidade. De acordo com a nossa
leitura, a modernidade, para estes primeiros autores, no vista como um
114
depauperamentooucomodeclnio:oqueseconstatanaanlisedeambosqueuma
transformao radical aconteceu e que, se isso indcio de uma queda ou perda da
experincia, como na interpretao benjaminiana, e se colocada em questo a
prpria possibilidade da poesia lrica, ao mesmo tempo, Benjamin tambm constata
que a riqueza da poesia de Baudelaire com o desamparo, a solido, a narcose, a
melancolia e o tdio que lhe so prprios tambm devm do engajamento e da
percepo do momento histrico que foi o seu, da relao que manteve com a
vacuidade e as transformaes relativas ao tempo e ao espao (a cidade de Paris)
instauradasemseupresente.
115
Referncias Bibliogrficas
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