Seleção Textos Odylo Costa, Filho
Seleção Textos Odylo Costa, Filho
Seleção Textos Odylo Costa, Filho
A ponte
Para quem sabe andar de olhos abertos
existe um mundo em cada gro de areia.
Dentro dele h segredos encobertos
onde a matria se desencadeia.
E ao mesmo tempo o mar meu consolo.
O homem criou o barco, e de paredes
fez a casa, tijolo aps tijolo,
para o abandono sensual das redes.
O infinito da linha do horizonte
se dispersa e concentra no infinito
do universo das coisas pequeninas.
No tenhas medo, minha amiga. A ponte,
que liga a vida e a morte como um grito
de amor, cobriu -se agora de boninas...
1.
Boca da noite
Boca da noite
2.
A morte do atleta
A morte do atleta
Como um fruto partido
solua a mo do atleta.
Ainda quase um menino.
Podia ser um poeta.
O tiro que o matou
nasceu da madrugada
trazendo a doida face
da morte mascarada.
O tiro que o matou foi
tiro de assassino.
Era apenas um atleta
desarmado, um menino.
No era rei, filsofo,
poltico ou profeta.
Tinha alma de menino
em seu corpo de atleta.
O tiro que o matou
era um tiro sem meta:
o dio abriu-lhe no ar
uma estrada secreta.
E o grande corpo morto
santificou o cho.
Quem morre pelos outros
nunca morreu em vo.
Jamais a ideia limpa
e o jogo do destino
encobriro de sonho
o tiro do assassino.
Quem mata um inocente
com riso de menino
no quer a liberdade:
tem alma de assassino,
qualquer que seja o credo,
a raa, a roupa, o hino,
quem mata um inocente,
um atleta, um menino.
Massacre de Munich, 1972
Livro Notcias de Amor, Editora Artenova, Rio, 1979
3.
Eterno
Eterno
4.
No
Nem
mas
que
5.
Antemanh
Antemanh
Quem cr na vida no recusa a morte,
sabe que a noite vem, espera a aurora.
Mergulha ambas as mos no azul da sorte,
aguarda, serenssimo, sua hora.
Lembra (e di) a delcia que encerrou
nos paladares crus da mocidade.
Mas em vez de prender-se ao que passou
desenha as utopias de outra idade.
De uma outra idade mais feliz e quanto!
onde haja imperfeio, onde haja pranto
mas no falte consolo humano a quem
precisa de outro algum que o sinta algum.
Nesse mundo melhor, de brao dado,
viveremos o sonho inacabado.
Os mirantes do Ilhu, livro Boca da Noite, Editora Salamandra, Rio,
1979
6.
Inocncia
Inocncia
Quando eu era pequeno
sonhava fazer um acordo com todos os homens
para no prenderem mais pssaros.
Hoje me pergunto:
Nem homens?
Livro Notcias de Amor, Rio, 1977
7.
O Perseguido de Deus
O Perseguido de Deus
1
Deus di dentro de mim como estrela cadente.
Mas por que sua linguagem de extremos?
Por que fala mais sofrimento? Por que tantas vezes se cala?
Por que esconde a alegria como semente no cho seco?
Deus pula dentro de mim como o alto-mar nas manhs,
como a diferena das mars no porto, de que dependem os barcos para
partir.
Mas por que to descompassado? Por que aos saltos?
Deus no uma casca de rvore a se desmanchar de velha.
Deus novo. Novo! No s eterno, mas novo.
No uma pele esticada a se romper sobre um corpo,
mas uma presena entre os homens,
um companheiro a quem se d o brao para ir ao caf da esquina.
Por que ento aos gritos me fala como um
desconhecido a outro desconhecido?
2
Penso em Deus como rede de dormir dentro da noite,
na mata, sob as estrelas.
Noite suave, noite fresca mas sem ventos que a turvem:
luar que sbito invade, grilos midos, me-da-lua longe.
Deus de repente, porm pressentido e manso.
Ento me jogarei em Deus como num tambor reteso
e em fogo mas de que nasam apenas sons encadeados de marcha
voluntria
espera da chegada do Reino na clareira.
E da alma brotaro rios de sono
para serem partilhados de porta em porta como po.
Rio, fevereiro de 1972.
8.
9.
O anjo da guarda
O anjo da guarda
Deus fez um anjo para cada homem,
confiou-lhe seu corpo e seu destino.
Disse-lhe: Impede que as paixes o domem.
Guarda-o para ser bom desde menino.
Na inumervel multido dos povos,
na confuso das lnguas e das gentes,
no falta um anjo em meio aos anjos novos
para seguir os seres inocentes.
Por mais que a vida dispa as iluses
e enodoe a pureza, por ferina
que seja, e mate a f, mate a esperana,
h sempre uma hora para os coraes
em que, dobrando o canto de uma esquina,
volta o anjo da guarda da criana.
Livro Os Anjos em Terra Editora Monteiro Soares Rio de Janeiro 1979
10.
A Assuno
A Assuno
A mais pura das mulheres,
entre elas abenoada,
sobe para os cus abertos
pelos anjos carregada.
As almas todas dos homens,
em perfeita comunho,
se juntam para pedir-lhe
sua doce intercesso.
Rede nos cus navegando,
por entre os astros subindo,
no se sabe se Maria
vai morta ou se vai sorrindo.
Anjos e estrelas em volta
da me de Nosso Senhor
cantam cantigas de roda,
embalos de puro amor.
Livro Os Anjos em Terra Editora Monteiro Soares Rio de Janeiro 1979
11.
A andorinha
A andorinha
Ia uma andorinha
caminho do Cu.
Partiu-se uma asa,
caiu num mundu.
No cu no se caa,
me reclama o Lus.
Mas foi na viagem,
a Aninha lhe diz.
Ora esta andorinha,
muito distrada,
caiu num mundu,
quase perde a vida.
Jesus pequenino
no colo a pegou,
com cuspe e palavra
a asinha sarou.
Livro Os Bichos no Cu, Rio de Janeiro, 1978
12.
O astronauta
O astronauta
Ia um astronauta
pelo cu sozinho:
deixou seu foguete,
perdeu seu caminho.
Era tudo branco
por dentro ou por fora
porm no chorava,
porque homem no chora.
Pediu: Meu Senhor,
acabai com a Guerra,
mesmo que eu no possa
voltar para a Terra!
Foi Deus e mandou
um anjo levar
o moo, na Pscoa,
de volta pro lar.
E exrcitos de asas
vieram pelo ar
com palmas e rosas
a Guerra acabar.
13.
A dor
A dor
Faz que a dor apenas te aponte num canto da boca:
assim as pedras escondidas no mar
se desmancham na espuma dos recifes.
Em Arca da Aliana, Livro Cantiga Incompleta, Rio, 1971
14.
Dilogo
Dilogo
Um homem chegou e disse:
A mim interessa sobretudo o porqu das coisas.
Por que a cobra?
Mas outro respondeu:
A mim ainda mais interessa o para qu.
Para que o mar?
15.
Elegia
Elegia
A pedra, e o que h dentro dela.
A rvore, e o que h dentro dela.
O corpo, e o que h dentro dele.
Leves so as nuvens no cu.
Mesmo no cemitrio abandonado
h flores e velas acesas: o amor vive.
Os jasmineiros cobrem as sepulturas
pobres como renda cheirosa e lenol branco.
As mos se fecham. Juntas escondem
a veia aberta.
Em Arca da Aliana, Livro Cantiga Incompleta, Rio, 1971
16.
Noite
Noite
O pior no quando o sono custa a chegar.
H sempre invenes (velhas e novas) para suportar a vida.
Quantos sculos ter a palavra passatempo?)
Se no sabes mexer no gamo, que menino viste os velhos jogarem na
varanda,
vai ao cinema ou mesmo toma LSD.
A televiso no te d sono?
O pior acordar no meio da noite
e esperar esperar! at que as sombras se mexam na antemanh.
Em Arca da Aliana, Livro Cantiga Incompleta, Rio, 1971
17.
Ptria
Ptria
No te quero, Brasil, para sonhar-te
na fantasia intil de quem dorme,
nem muito menos chegaria a odiar-te
na confisso de um desespero enorme.
Em cada face que a meu lado escuta
procuro ler-te. E vejo desde o campo
onde a flor mida encobre a laje bruta
e cheira aos ps do meu cavalo pampo.
Abro a janela sobre a rua escura
e alta. A cidade grande ri mas sente
crescer, sob ao e vidro, a desventura.
Ptria, te escondo em mim. s a semente
que no sangue germina impressentida
para que no perea ressequida.
So Paulo, abril de 1970
Em Arca da Aliana, Livro Cantiga Incompleta, Rio, 1971
18.
Soneto
do amor teimoso
19.
Soneto do retrato de Portugal que o autor no consegue concluir
por se ver perdido em meio s suas lembranas
concluir por
20.
Soneto de N. S. do Bom
Parto
a
a
a
a
22. Ilhu
Ilhu
Nasci numa ilha.
Era meu destino.
Numa ilha vivo
desde pequenino,
a estender os braos
pelo mundo todo
em busca de traos
que terra me liguem.
Quero o continente!
No me deixem s,
no me quero ausente.
Ningum me compreende
esta busca ansiosa:
tenho o mar comigo,
quero ainda a rosa.
Joguem fora a ncora!
Pois o amor que achei,
meu anel de amigos
e a casa do rei
trazem sede e fome
de mais terra e cu.
Por Deus compreendam
quanto sou ilhu!
Careo de afetos
em roda de mim.
Foi sorte ou desgraa,
numa ilha vim.
Tempo de enxurrada
nessa ilha nasci,
como a gua que corre
sou daqui, dali.
Por Deus me acarinhem
que nasci na ilha,
num ms de enxurrada,
ms de gua andarilha,
sobrados e terra
porm terra pouca,
lavado azulejo
sob uma gua rouca.
Meu amor me abraa
porque sou ilhu
ando s na areia
entre guas e cu.
Os mirantes do Ilhu, livro Boca da Noite, 1979