Deleuze Com Peirce - Consideraçâo Sobre Signo e Cinema - Alessandro Carvalho Sales
Deleuze Com Peirce - Consideraçâo Sobre Signo e Cinema - Alessandro Carvalho Sales
Deleuze Com Peirce - Consideraçâo Sobre Signo e Cinema - Alessandro Carvalho Sales
Introduo e objetivos
Foram vastos e variados os continentes de saber visitados, relacionados e reinventados por
Deleuze, para quem o conhecimento isolado, estanque, fazia-se inconcebvel: onde esto o
movimento, os liames, o prprio devir? Nesta direo, ele escreveu dois livros motivados
*
Mestre em Comunicao e Semitica (PUC-SP); doutorando em Filosofia (UFSCar); bolsista Fapesp; email: [email protected]
SALES, A. C.
pelo cinema, publicados na Frana em 1983 e 1985.1 Tais obras mergulharam a teoria e a
crtica cinematogrficas em um novo campo de possveis, terreno que vem sendo
paulatinamente explorado e que j ressoa em numerosas produes.
Foi esta a ocasio em que Deleuze se props cobrir espao e tempo um domnio
particular da cultura. Ali, portanto, est circunscrito quase um sculo de cinema. Histria?
A questo controversa. Ele mesmo o diz:
Com efeito, uma histria do cinema, de certa maneira, mas uma histria natural.
Trata-se de classificar os tipos de imagem e os signos correspondentes, como se
classificam os animais (1990:62).
Esta primeira clivagem tipolgica que, mesmo no que toca ao aspecto histrico, tambm
possui, conforme ns o veremos, uma relao precisa com o cerne do pensamento
deleuzeano envolve outras subdivises, cada uma delas pondo em jogo um
O primeiro livro Cinema 1 A Imagem-Movimento (a partir daqui, IM), publicado na Frana em 1983 e
no Brasil em 1985. O outro chama-se Cinema 2 A Imagem-Tempo (a partir daqui, IT), lanado em 1985 na
Frana e em 1990, aqui.
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(...) haver uma zeroidade antes da primeiridade de Peirce (1985: 45). Decidimos, para este trabalho, em
conformidade terminologia peirceana, retirar as aspas e adotar a nomenclatura zeridade.
SALES, A. C.
debate
SALES, A. C.
No momento em que Deleuze apresenta o signo como aquilo que move o pensamento,
aquilo em funo do qual o pensamento no consegue permanecer impune, ele est
promovendo uma inverso em relao imagem tradicional que se tem do que significa
pensar. Tradicionalmente, pensar buscar descobrir uma verdade oculta, desvelar esta
verdade, recndita desde que se postulou o distanciamento e a separao entre o mundo
inteligvel lugar dos modelos, das Idias e o mundo sensvel, nosso mundo lugar das
cpias e dos simulacros. Deleuze quer inverter esta concepo (Reverter o Platonismo)4 e
diz que no h verdade original a ser restituda, esta que seria encontrada em funo de
nossa boa vontade, do amor natural que lhe teramos (cf. 1976:16). Pelo contrrio, a
verdade construo, inveno, decifrao e criao de sentido, tudo resultado de uma
violncia exercida pelos signos, forando o pensamento a exercer sua atividade.
Quando resolve estudar domnios como a literatura, a pintura, o prprio cinema, Deleuze
se vale do pensamento que os artistas praticam nestes domnios. Para o filsofo, a arte e a
cincia, por exemplo, foram a filosofia a pensar. legtimo para a filosofia criar conceitos
a partir dos trabalhos desenvolvidos e gerados em reas como a arte e a cincia. o que
nos diz Roberto Machado na seguinte citao, segundo a qual ratifica a singularidade do
mtodo filosfico de Deleuze:
Essa relao entre saberes sempre foi muito intensa na dmarche de Deleuze e no , de
modo algum, lateral ou circunstancial, visto que (...) o objetivo principal de sua filosofia
tematizar o que seja pensar, e o pensamento no exclusividade da filosofia e sim uma
propriedade de qualquer tipo de saber. S que, vendo na filosofia o domnio do conceito,
Deleuze ir elaborar sua filosofia levando em considerao ou incorporando conceitos
provenientes de outras filosofias que ele situa no espao da diferena, mas tambm
criando conceitos a partir do que foi pensado, com seus prprios elementos, em outros
domnios (Machado, 1990: 165).5
Reverter o Platonismo, texto outrora publicado na Revue de Mtaphysique et de Morale, foi republicado
como um dos apndices de Lgica do Sentido, com o ttulo Plato e o Simulacro. um texto importante
para a compreenso do mtodo filosfico de Deleuze. Cf. 1969: 259-271 (primeiro apndice).
5
O livro de Roberto Machado, Deleuze e a Filosofia (1990), pioneiro na investigao da obra deleuziana e
se constitui relevante introduo ao seu pensamento. Sugerimos, tambm, com respeito a uma fundamentao
das relaes entre filosofia, arte e cincia, a leitura de O Que A Filosofia?, obra escrita por Deleuze e
Guattari (1991).
SALES, A. C.
De fato, a grande questo que perpassa toda a obra deleuzeana pensar o pensamento,
propondo-lhe uma nova imagem. Deleuze recusa toda uma imagem hegemnica do
pensamento, imagem da qual estamos profundamente impregnados, e que tem como
resultado o mundo tal como colocado: sculos de subjetivao em funo de uma
racionalidade que, mesmo hoje, se quer ainda guiada por absolutos. Em contraponto,
Deleuze apresenta um pensamento que abraa o devir, que valoriza o ato de criao, tudo
em funo de um critrio mximo, irrevogvel: uma tica que tem como parmetros o
movimento e a prpria vida. Assim, o pensamento no teria por fim encarcerar a vida, para
submet-la a um conjunto pr-determinado de valores e crenas supostamente universais, o
que, em instncia mais profunda, reflete toda uma problemtica de poder tpica do homem
moderno; para Deleuze, ele justamente aquilo que no tem fim, multiplicidade que se
envolve em puro devir, e que, nesta direo, no encarcera a vida, mas a promove.
Em relao a esta outra forma de pensar, Deleuze marca a clara relevncia do signo,
justamente porque o pensamento vai agir, movimentar-se em funo da fora deste de-fora
que o signo. Os signos vo aliment-lo, provoc-lo, instig-lo. So eles os motores
primeiros de tudo, dos prprios acontecimentos, trazendo um conceito bastante caro a
Deleuze.6 Podemos agora fazer o link de todo o exposto com as consideraes de Deleuze
em relao ao cinema.
Ora, o cinema, sabemos, uma mquina poderosssima, um grande emissor de signos. Se
Deleuze vai pensar as imagens e os signos a produzidos e o faz exatamente porque esta
mdia , inequivocamente, uma das invenes que mais desafia o pensamento , ele vai
buscar sistematizar, a partir de agenciamentos com Bergson e Peirce, que tipos de imagens
e de signos efetivamente se coadunam com um ponto de vista liberador da vida, pondo a
lume uma zona de indiscernibilidade na qual no mais possvel distinguir uma tica de
uma esttica. A imagem-tempo e seus signos sero, por excelncia, este lugar-resposta,
relicrio de possveis no que possa dizer respeito ao cinema. (Deleuze, 1985: 198-209)
Assim, quando Deleuze leva a termo uma classificao das imagens e dos signos
produzidos pelo cinema, ele o pratica agenciando os fatos cinematogrficos em funo das
referncias que toda a sua filosofia dispe em termos dos diferentes e antagnicos campos
SALES, A. C.
dentro dos quais pode o pensamento ser situado.7 No se trata, em absoluto, de mera
classificao, da classificao per si e que tambm traduz algo tpico do homem moderno,
ele e sua fria classificatria. Pelo inverso, o que vai interessar a Deleuze caracterizar um
determinado tipo de imagem, via signos produzidos, e de modo que possa emitir algum
juzo de valor em relao a esta imagem, de acordo com um ponto de vista tico e esttico
vitalista,
portanto
em
relao
ao
pensamento.
Tudo
numa
roupagem
So dois espaos, dois planos divergentes e opostos: o primeiro o plano da representao, da repetio, da
pura racionalidade, da transcendncia; o outro, o da diferena, da multiplicidade, da vitalidade, da
imanncia. Cf. a introduo do livro de Roberto Machado, A Geografia do Pensamento (1990: 1-22).
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A imagem-tempo, que se confunde com o cinema moderno predominante desde o fim da segunda guerra,
o tema do segundo livro. No sem razo que esta dobra histrica caiba to bem no percurso historicizado
escolhido por Deleuze. Com o segundo tomo, ele poder desenvolver todo o elogio da imagem-tempo, na
qual a relao tica e esttica entre signos e pensamento intensamente apresentada. Remetemos o leitor,
mais uma vez, a IT (1985: 198-209).
SALES, A. C.
Talvez fosse um contra-senso pensar o movimento, a imagem, justamente com base em seu
congelamento, mas o fato que era esta a direo que vinha sendo praticada j h algum
tempo na Frana, especialmente nos trabalhos realizados e difundidos, desde os idos
estruturalistas dos anos 60, pelo crtico e terico Christian Metz. Este, depois de um breve
perodo vinculado fenomenologia, mergulha no referencial semiolgico dominante dos
anos 60 e consegue o reconhecimento da sua produo. No incio dos anos 70, faz uma
conjuno com o pensamento lacaniano, recolhendo o conceito de sutura proposto por
Jacques-Alain Miller, para, depois, estabelecer um agenciamento com Benveniste e o
conceito de enunciao. No entanto, atravessando todas estas fases, algo se sobressai: era o
prprio movimento que se perdia, posto dentro de parnteses, enquadrado e paralisado nas
anlises postuladas por Metz.10
Deleuze criticava abertamente este caminho (cf. 1985: 37-43). Como no perder, no
deixar escoar aquilo que o cinema, a imagem, apresenta de mais especfico, isto , a
prpria questo do movimento? Ora, toda a filosofia de Deleuze quer valorizar o
movimento, o devir, e, portanto, na ocasio em que o filsofo decide entranhar-se nos
mistrios da arte cinematogrfica, ele precisava encontrar intercessores, aliados que o
ajudassem na atualizao da empreitada. Um deles foi Peirce.
Certamente porque, como comentamos, a teoria de Peirce tambm muito afeita ao
processo, ao movimento, na medida em que, para alm da dualidade semiolgica restritiva
e verbalizante entre significante e significado, instaura um terceiro, o interpretante,
responsvel permanentemente por uma reavaliao do pensamento, levando-o sempre para
Rodowick, A Short History of Cinema, hipertexto. Eis o fragmento original: Since Peirces theory is a
logic and not a linguistics, and since it understands signification as a process, Deleuze finds it more
applicable for understanding the generation and linking of signs in movement. Where semiology wants to
define the cinematic sign by imposing a linguistic model from the outside, Deleuze applies Peirces logic to
deduce a theory of signs from material the cinema has itself historically produced.
10
Cf. Ramos (1998: 41) e Dosse (1993), Histria do Estruturalismo II, p. 108-109.
SALES, A. C.
mais longe, fazendo-o deslizar ao longo de uma cadeia de possveis at que alguma escolha
seja realizada. Dcio Pignatari confirma:
Peirce cria um terceiro vrtice, chamado Interpretante, que o signo de um signo, (...)
um supersigno, cujo Objeto no o mesmo do signo primeiro, pois que engloba no
somente Objeto e Signo, como a ele prprio, num cotidiano jogo de espelhos (...)
portanto, o significado um processo significante que se desenvolve por relaes
tridicas e o Interpretante o signo-resultado contnuo que resulta desse processo
(1987: 43-44).
Cf. Deleuze, Conversaes (1990: 16): (...) o nico problema : isso funciona, e como que funciona?
Como isso funciona para voc? Ou, numa entrevista logo aps a publicao de O Anti-dipo: Pensamos a
mesma coisa de nosso livro. Trata-se de saber se ele funciona, e como, e para quem. Ele mesmo uma
mquina. No se trata de o reler, ser preciso fazer outra coisa. Este trecho tambm est em Conversaes
(1990: 34).
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Deus e Deus no .
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Investigar o que ocultam as formas, o visvel, o emprico, foi um dos principais pontos do programa
estruturalista francs, apresentada em obras como as de Lvi-Strauss, Lacan e Foucault. Cf. Dosse (1993),
Histria do Estruturalismo, volumes I e II. A primeiridade peirceana teria sido um motivo bastante
inspirador, no fosse a proeminncia da semiologia lingstica. Quanto a Deleuze, seus livros esto
fartamente atravessados pela proposta de Csanne (tornar visvel o invisvel). Cf. especialmente o captulo
Percepto, Afecto e Conceito em O Que A Filosofia? (1991: 211-255).
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O primeiro sistema de imagens bergsoniano est relacionado, como veremos, ao puro caos. Em O
pensamento de Deleuze ou A Grande Aventura do Esprito, tese de doutorado de Cludio Ulpiano, este
nos apresenta a importncia desta teoria para a consecuo do trabalho de Deleuze com o cinema (1998: 3138). O desenvolvimento proposto por Deleuze (captulo 4 de IM) parte fundamentalmente do primeiro
captulo de Matria e Memria. A seguir, tentamos apreender os principais movimentos da construo de
Deleuze, sempre fazendo a relao com Peirce.
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SALES, A. C.
Cf. Deleuze e Guattari, O Que a Filosofia? (1991: 59): O que caracteriza o caos, com efeito, menos a
ausncia de determinaes que a velocidade infinita com a qual elas se esboam e se apagam: no um
movimento de uma a outra mas, ao contrrio, a impossibilidade de uma relao entre as duas determinaes,
j que uma no aparece sem que a outra tenha j desaparecido, e que uma aparece como evanescente quando
a outra desaparece como esboo. Cf. tambm Ulpiano, 1998: 37.
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O vivo uma imagem esquartejada por conta da separao entre percepo e resposta,
ao e reao: desponta o sistema sensrio-motor.
Observamos ento o procedimento de Deleuze: promove uma conjuno entre o mundo
imagtico bergsoniano e a fenomenologia peirceana. Esta confluncia lhe permitiu propor
uma zeridade, pura matria difusa, vazio do tempo e do espao, mistura catica que a tudo
antecede. O aparecimento do intervalo que vai acarretar a formao de uma primeiridade,
passo inicial para a vida; numa instncia ulterior, o surgimento de cada passo evolutivo
nada mais do que intervalo entre ao e reao. No h como no invocarmos um cotejo
com as linhas evolutivas da biologia. Deleuze o faz a certa altura:
(...) os bilogos falam de uma sopa pr-bitica, que tornou possvel o vivente, na qual
as matrias ditas dextrgiras e levgiras desempenhavam um papel essencial a, no
universo acentrado, surgiriam esboos de eixos e de centros, uma direita e uma
esquerda, um alto e um baixo. Seria preciso conceber microintervalos at na sopa prbitica (...) E, finalmente, como dir Bergson, a mesma evoluo que organiza a matria
em slidos organizar a imagem em percepo cada vez mais elaborada, a qual tem por
objetos os slidos (1983: 85).
Este intervalo, lacuna misteriosa em que cabe a vida, resultar, em certo instante, no
prprio advento da subjetividade, instncia que se coloca entre a percepo de uma ao e
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SALES, A. C.
a resposta, a re-ao a esta ao. H que perceber para que se possa agir.15 Em outras
palavras, a partir de uma percepo, uma ao: o tema do movimento, do sistema
sensrio-motor. Numa ponta do hiato, a percepo, na outra, a ao, e, pelo meio, incerto e
difuso, tentando organizar respostas, o sujeito. Continua Pelbart:
A subjetividade como seleo, subtrao, preenso parcial, ao retardada,
indeterminao, imprevisibilidade, curvamento do universo ao seu redor, contrariamente
ao tomo, que percebe infinitamente mais que ns mesmos, e, no limite, percebe o
universo inteiro.16
Com o intervalo cada vez menor, estabelecido entre movimentos cada vez mais rpidos, as
subpartculas tendem a perceber sempre mais e, no limite, percebem tudo, atingindo uma
pura percepo. Em um nvel menos fundamental, mais macro, o sujeito, esquartejado
entre uma percepo parcial pois ir apreender to somente o que for de sua necessidade
ou interesse e a reao retardada de que for capaz.
A afeco o que ocupa o intervalo, aquilo que o ocupa sem o preencher nem cumular.
Ela surge no centro de indeterminao, isto , no sujeito, entre uma percepo
perturbadora sob certos aspectos e uma ao hesitante (Deleuze, 1983: 87).
De outro modo: a zeridade numa face, percepo subjetiva daquilo que interessa (no limite,
teramos a pura percepo); na outra, a secundidade, a ao, execuo da resposta que foi
organizada pelo sujeito a partir do estmulo percebido; pelo meio, aquilo que fica, resduo
que no se converte em objeto de percepo nem em ao do sujeito mas que indica, ao
contrrio, a sobreposio entre sujeito e objeto e permanece como pura qualidade, afeco,
primeiridade.
O curioso que o cinema, s vezes, parece tender a esse sistema acentrado, em que as
imagens variam todas entre si (sem variarem tambm todas em funo de uma, condio
de uma subjetividade), e onde uma espcie de alucinao devolve o sujeito vibrao da
matria pura. O que mais subjetivo que um delrio, um sonho, uma alucinao? Mas o
que h tambm de mais prximo de uma materialidade feita de onda luminosa e de
interao molecular? A escola francesa, o expressionismo alemo, mas tambm j
Vertov em certo sentido, teriam elevado o movimento das partes at o conjunto, at a
variao universal, molecular, indo do relativo ao absoluto, da sucesso ao
simultanesmo.17
Assim, a imagem mais prxima deste sistema acentrado, mais prxima de uma percepo
pura, ser uma imagem-percepo; na outra face, teramos uma imagem-ao, e, pelo
meio, embora sem preencher o intervalo, teramos a imagem-afeco. Eis o primeiro
15
Aqui, podemos pensar toda uma relao com a frmula de Berkeley, segundo a qual ser ser percebido
(frmula retomada por Beckett e por Buster Keaton em Film). Cf. Deleuze, 1983: 89.
16
Pelbart, 1998:5. Pelbart cita Deleuze (itlico), trecho que est em IM (1983: 85-86).
17
Pelbart, 1998:5. Pelbart cita Deleuze (itlico), trecho que est em IM (1983:102).
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SALES, A. C.
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Os exemplos que foram apresentados so apenas uma nfima amostragem do enorme rol analisado por
Deleuze.
15
SALES, A. C.
16
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que fazem dessa matria uma matria sinaltica. E os prprios signos so os traos de
expresso que compem essas imagens, as combinam e no param de recri-las, levadas
ou carregadas pela matria em movimento (Deleuze, 1985: 47).
Sutilmente, Deleuze coloca a relevncia de Peirce para a empreitada, com base em sua
semitica para alm da lingstica. Fica claro tambm que esses signos se combinam e se
recombinam assustadoramente, de modo que, se chegamos a classificar as imagens,
porque temos de levar em conta, na sua avaliao, o nvel de preponderncia de alguns
caracteres.
Ao lado do cinema, Deleuze tambm trava relaes com Peirce em dois espaos de Mil
Plats: em A Geologia da Moral (Quem a Terra Pensa que ?) e em Sobre Alguns
Regimes de Signos. Os conceitos do filsofo norte-americano so mais uma vez
reapropriados pelo francs, na medida em que este d curso sua viso dos temas
abordados.
Os aspectos que buscamos investigar no item anterior esto colocados essencialmente no
plano do primeiro livro, aquele que explora o estatuto da imagem-movimento, tomando-a
em acordo com sua vinculao ao surgimento do sistema sensrio-motor, de modo a
constituir, numa extremidade do intervalo, a imagem-percepo, na outra, a imagem-ao,
e, pelo meio, a imagem-afeco. Este, na realidade, o regime do chamado cinema
clssico, marcado, por exemplo, pelos trabalhos do cinema sovitico, do expressionismo
alemo, da avant-gard francesa, do cinema mudo norte-americano. No entanto,
determinados cineastas, particularmente ao fim da segunda guerra, comearam a propor
certos tipos de imagens que j no mais se ajustavam ao sistema sensrio-motor. Pelo
contrrio, eles rompiam o vnculo sensrio-motor e encontraram outro tipo de relao com
o intervalo de movimento, gerando imagens e signos de uma nova ordem, constitutivos de
uma matria ptica cristalina e transparente que vai expor, em ltima instncia, o estatuto
de um puro tempo. Os autores do neo-realismo italiano, da nouvelle vague francesa, entre
outros, criaram e aperfeioaram uma imagem-tempo, o cinema moderno, objeto do
trabalho de Deleuze em seu segundo livro. A imagem-tempo, embora no irredutvel
imagem-movimento, manter com esta mltiplas relaes.
no segundo tomo que Deleuze vai deixar mais evidente a relao entre signos imagticos
e pensamento, tema de que falamos no primeiro item deste trabalho. No entanto,
retomando o que o prprio Deleuze j recebe de Nietzsche, nunca no incio que alguma
coisa nova, uma arte nova, pode revelar sua essncia, mas, o que era desde o incio, ela s
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pode revel-lo num desvio de sua evoluo (1985: 57). O cinema mquina poderosa que
nunca deixou de provocar o pensamento, embora s recentemente um filsofo tenha lhe
dedicado um estudo mais efetivo. O cinema clssico, base para o cinema moderno, fez com
que Deleuze relesse Bergson e Peirce, pondo em foco toda a trama da imagem-movimento.
Por este primeiro tomo, conduzidos pelo fio da narrativa deleuziana, no desfilam apenas
os conceitos de Bergson e de Peirce, mas tambm os trabalhos impetuosos e corajosos dos
grandes pioneiros do cinema, como David Grifith, Fritz Lang, Murnau, Eisenstein,
Pudovkin, Vertov, Abel Gance, Chaplin, Buster Keaton, John Ford, Hitchcock, entre
muitos outros.
O denso e complexo livro de Deleuze, feito cinema, provocou este trabalho. Procuramos,
ainda que cientes de algumas limitaes, cobrir especialmente o aspecto que localizamos
como o mais frgil e delicado da imagem-movimento, qual seja, a conjuno BergsonPeirce em torno da questo do intervalo, base para toda a arquitetura do primeiro tomo.
Quem sabe este sumrio, que se quis minimamente didtico, possa ter seu espao.
Contudo, certo que no h nada como assistir ao prprio filme...
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SALES, A. C.
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