"Pare, Olhe, Escute!" - Um Prefácio Tim Ingold
"Pare, Olhe, Escute!" - Um Prefácio Tim Ingold
"Pare, Olhe, Escute!" - Um Prefácio Tim Ingold
Ponto Urbe 3
Publisher
Ncleo de Antropologia Urbana da
Universidade de So Paulo
Electronic version
URL: http://pontourbe.revues.org/1944
DOI: 10.4000/pontourbe.1944
ISSN: 1981-3341
Electronic reference
Tim Ingold, "Pare, olhe, escute!" um prefcio , Ponto Urbe [Online], 3 | 2008, posto online no dia 14
Agosto 2014, consultado o 30 Setembro 2016. URL : http://pontourbe.revues.org/1944 ; DOI :
10.4000/pontourbe.1944
Dos vinte e trs captulos que fazem parte do meu livro, The Perception of the Environment, a
maior parte foi escrita na dcada de 90. Pare, olhe e escute! foi o ltimo a ser escrito e
foi, de longe, o mais extenso e o mais difcil de escrever. Tentando lidar com a questo
geral de como as pessoas percebem o mundo sua volta, fiquei to animado quanto
frustrado pela literatura sobre o que era, na poca, o campo emergente da "antropologia
dos sentidos". Por um lado, ela prometia um mbito de investigao rico e fascinante,
desvendando reas da experincia humana negligenciadas previamente ou, at,
intocadas. Por outro lado, no entanto, o que ela parecia oferecer, por trs de sua retrica
de uma "revoluo sensria" no conhecimento, era apenas mais do mesmo, sucumbindo,
inocentemente, a um relativismo cultural cansado e amplamente desacreditado. Assim
como a antropologia mais antiga (que opunha ns ocidentais aos outros no ocidentais)
havia retratado esses outros em mundos culturais diferentes, a antropologia dos sentidos
parecia retrat-los, do mesmo modo, em mundos sensrios diferentes. Alm de substituir
"cultura" por "sentidos" e "modelos culturais" por "modelos sensrios", nada havia
mudado.
Em meu livro, procurei repudiar o axioma fundador desse tipo de relativismo de que a
percepo consiste, notadamente, na modelagem cultural de experincias recebidas pelo
corpo e substitu-lo por uma compreenso da percepo como engajamento ativo e
Essa mudana de foco, de como as pessoas percebem o mundo real no qual habitam, para
como elas habitam os mundos virtuais de sentido, j foi bem estabelecida no estudo
daquilo que ficou conhecido como "cultura visual" e fez parte de um movimento mais
amplo de pensamento que impulsionou a expanso inflacionria dos assim chamados
estudos culturais. Para os estudiosos do visual, ver, aparentemente, no diz respeito
observao, a olhar a prpria volta ou a atentar para o que est acontecendo. Tampouco
diz respeito experincia de iluminao que torna essas atividades possveis. Antes, diz
respeito, estreita e exclusivamente, ao exame cuidadoso de imagens. Onde no h
imagens para ver, no h viso. como se os olhos no se abrissem para o mundo em si
mesmo, mas para um simulacro do mundo cujos objetos testemunham a experincia da
viso e nos devolvem essa experincia em nosso olhar. Desorientado nesse mundo de
imagens, no qual tudo que se pode ver em si mesmo um reflexo da viso, o observador
parece cego ao prprio mundo.
Uma das principais reivindicaes da antropologia dos sentidos , claro, de ter destronado
a viso da posio soberana supostamente ocupada por ela no panteo intelectual do
mundo ocidental e destacar as contribuies de outras modalidades sensrias, no
visuais, acima de tudo para a formao sensria dos povos no-ocidentais. , portanto,
irnico que no redescobrimento dessas modalidades audio, tato, olfato, e assim por
diante antroplogos dos sentidos tenham efetuado exatamente a mesma manobra que
seus aliados intelectuais no estudo da cultura visual. Aos mundos de imagens criados por
esses ltimos, eles simplesmente adicionaram mundos de sons, tatos e cheiros. Um
sintoma desse artifcio a multiplicao de paisagens de todos os tipos possveis. Se os
olhos devolvem para ns o mundo em sua imagem visual, concebido como paisagem,
ento do mesmo modo os ouvidos revelam uma paisagem sonora, a pele uma paisagem
ttil, o nariz uma paisagem olfativa, e assim por diante. claro que, na realidade, o
ambiente que as pessoas habitam no dividido por caminhos sensrios pelos quais elas
podem acessa-lo. o mesmo mundo, no importa o caminho que escolham. Mas essas
mltiplas paisagens no se referem ao mundo prtica e produtivamente habitado. Elas se
referem aos mundos virtuais criados pela captura das experincias encorporadas e
perceptuais da habitao e pela sua devoluo, em formas artificialmente purificadas,
para interpretao e consumo.
Nos anos que se passaram aps 2000, quando Pare, olhe e escute! foi publicado pela
primeira vez, a virada sensria no conhecimento foi de vento em popa, em grande parte
graas aos incansveis esforos de seu principal representante, David Howes. Acompanhla tornou-se uma moda acadmica. Numerosas publicaes surgiram, incluindo
Assim, em seu livro Sensual Relations, David Howes declara que a pior coisa que os
antroplogos podem fazer basear suas anlises nos modelos de sistemas perceptuais
propostos por psiclogos como James Gibson ou filsofos como Maurice Merleau-Ponty 2.
bvio quem Howes tem em mira! Para ele, qualquer um que esteja interessado na viso e
em como ela funciona, inclundo eu mesmo, , automaticamente, acusado de
imperialismo epistemolgico. Essa acusao , certamente, risvel. A viso , obviamente,
importante para a maioria dos seres humanos mundo afora, e acusar qualquer um que
deseje escrever sobre ela de ter sucumbido ao visualismo to absurdo quanto banir
pesquisas sobre a fabricao de ferramentas pelo homem pela razo de que isso significa
conspirar para o projeto modernista de dominao mundial tecnolgica!
NOTES
1. D. Howes, Sensual Relations: Engaging the Senses in Culture and Social Theory, Ann Arbor:
University of Michigan Press, 2003; M. Bull and L. Back (eds), The Auditory Culture Reader,
Oxford: Berg, 2003; V. Erlmann (ed.), Hearing Cultures: Essays on Sound, Listening and
Modernity, Oxford: Berg, 2004; D. Howes (ed.), Empire of the Senses: The Sensual Culture Reader,
Oxford: Berg, 2005; C. Classen (ed.), The Book of Touch, Oxford: Berg, 2005; J. Drobnick (ed.), The
Smell Culture Reader, Oxford: Berg, 2006; M. Paterson, The Senses of Touch: Haptics, Affects and
Technologies, Oxford: Berg, 2007; E. Edwards and K. Bhaumik (eds) Visual Sense: A Cultural
Reader, Oxford: Berg, 2008; D. Howes (ed.) The Sixth Sense Reader, Oxford: Berg, 2009.
2. D. Howes, Sensual Relations: Engaging the Senses in Culture and Social Theory, Ann Arbor:
University of Michigan Press, 2003, pp. 49-50. Em relao ao imperialismo epistemolgico, ver
ibid. pp. 239-40, fn. 8
AUTHOR
TIM INGOLD
University of Aberdeen