A09 - Zimerman - Cap 10 - Fundamentos Básicos Das Grupoterapia

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PAPIS.

LIDERANAS

D a mesma forma como ocorre num sistema familiar, institucional, ou so


cial, tambm um grupo teraputico comporta-se como uma estrutura na qual h
uma distribuio complementria de papis e posies. Podemos dizer que em
cada papel se condensam as expectativas, necessidades e crenas irracionais de
cada um e que compem a fantasia bsica inconsciente comum ao grupo todo.
A afirmao de que qualquer grupo cria, desde o seu inconsciente grupai,
um sistema de papis, encontra uma confirmao estatstica: basta um exerccio
de memria, por parte do leitor, para que, certamente, lembre-se de que em
qualquer de suas diversas turmas de colegas de primrio, ou ginsio, etc. sempre
houve alunos que assumiram e se destacaram ora no papel de "puxa-saco, ora
no de alvo de gozao", ou no de geniozinho, ou de "burro, ou de lder, e
assim por diante, sendo que a imagem que se guarda do grupo de professores
tambm pauta pelo mesmo nvel.
Assim, h sempre, em qualquer grupo, um permanente jogo de adjudicao
e de assuno de papis, sendo que um seguro indicador de que est havendo
uma boa evoluo grupai quando os papis deixam de ser fixos e estereotipados
e adquirem uma plasticidade intercambivel. medida que os papis forem sendo
reconhecidos, assumidos e modificados, os indivduos vo adquirindo um senso
de sua prpria identidade, assim como uma diferenciao com a dos demais.
A experincia clnica comprova que, ao longo da evoluo de um grupo, os
papis que mais comumente costumam ser adjudicados e assumidos pelos seus
membros costumam ser os seguintes:
1) Bode expiatrio. Neste caso, toda a "maldade" do grupo fica depositada
em um indivduo que, se tiver uma tendncia prvia, servir como depositrio, at
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vir a ser expulso, o que, alis, comum. Nesses casos, o grupo sair em busca de
um novo bode... Decorre dai a enorme importncia de que o grupoterapeuta
reconhea e saiba manejar tais situaes. Outras vezes, o grupo modela um bode
expiatrio sob a forma de um bobo da corte" que diverte a todos e que, por isso
mesmo, ao contrrio de uma expulso, o grupo faz questo de conserv-lo.
A teoria sistmica denomina o membro de uma familia que assume esse
papel de "paciente identificado. Por outro lado, no contexto da macrossociologia,
a condio de bode expiatrio se manifesta nas minorias raciais, religiosas, pol
ticas, etc.
2) Porta-voz. Cabe ao portador deste papel mostrar mais manifestamente
aquilo que o restante do grupo pode estar, latentemente, pensando ou sentindo.
No entanto, essa comunicao do porta-voz no feita somente atravs da voz
(reivindicaes, protestos, verbalizao de emoes, etc.), mas tambm atravs da
linguagem extraverbal das dramatizaes, silncios, actings, etc.
Uma forma muito comum de porta-voz a funo do indivduo contestador.
Nesses casos, imprescindvel que o grupoterapeuta (da mesma forma que os
pais, numa familia) saiba discriminar quando a contestao , sistematicamente,
de ordem obstrutiva ou quando ela representa ser necessria, corajosa e construtiva.
3) Radar. Este papel cabe geralmente ao indivduo mais regressivo do grupo,
como o caso de um paciente borderline em um grupo de nvel neurtico, por
exemplo. Neste caso, esse paciente, antes que os demais, capta os primeiros
sinais das ansiedades que, ainda em estado larvrio, esto emergindo no grupo.
Esse papel tambm conhecido como caixa de ressonncia, em razo de que tal
paciente-radar, por no ter condies de poder processar simbolicamente o que
captou, pode vir a expressar essas ansiedades em sua prpria pessoa atravs de
somatizaes, ou abandono da terapia, ou de crises explosivas, etc.
4) Instigador. Apesar de no se encontrar na literatura uma referncia
explcita a este papel, ele muito comum e importante nos grupos. Consiste na
funo do indivduo em provocar uma perturbao no campo grupai, atravs de
um jogo de intrigas, por exemplo, assim mobilizando papis nos outros. Assim, o
instigador consegue dramatizar no mundo exterior a reproduo da mesma con
figurao que tem o seu grupo interior, bem como a dos demais que aderiram a
esse jogo.
5) Atuador pelos demais. uma modalidade de papel que consiste no fato
de a totalidade do grupo delegar a um determinado indivduo a funo de executar
aquilo que lhes proibido, como, por exemplo, infidelidade conjugal, aventuras
temerrias, hbitos extravagantes, seduo ao terapeuta, etc. Em tais casos, o
restante do grupo costuma emitir dupla mensagem: subjacente barragem de
crticas que eles dirigem s loucuras" desse membro, pode-se perceber um disfar

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ado estimulo, um gozo prazeiroso e uma admirao pelo seu delegado, executador de seus desejos proibidos.
6) Sabotador. Conforme este nome indica, o paciente que desempenha o
papel de sabotador, atravs de inmeros recursos resistenciais, procura obstaculizar o andamento exitoso da tarefa grupai. Em geral, o papel assumido pelo
indivduo que seja portador de uma excessiva inveja e defesas narcisisticas.
7) Vestal. Da mesma forma como regra nas instituies, tambm nos
pequenos grupos muito comum que algum assuma o papel de zelar pela ma
nuteno da "moral e dos bons costumes. Um exagero nesse papel constitui a
to conhecida figura do patrulheiro ideolgico" que obstrui qualquer movimento
no sentido de uma criatividade inovadora. H um srio risco nada incomum
de que o papel venha a ser assumido pelo prprio grupoterapeuta.
8) Lder. Nas grupoterapias, o papel de lder surge em dois planos. Um o
que, naturalmente, foi designado ao grupoterapeuta. O outro o que surge, es
pontaneamente, entre os membros do grupo. Neste caso, a liderana adquire
matizes muito diferenciadas, desde os lideres construtivos que exercem o impor
tante papel de integradores e de construtores do espirit de corps, at os lderes
negativos, nos quais prevalece um excessivo narcisismo destrutivo.
A natureza e a funo da liderana exigem um estudo mais detalhado.

LIDERANAS

O termo Liderana pertence a muitas reas humansticas, como as da


Psicologia, Sociologia, Poltica, etc. e, por isso, pode ser conceituado a partir de
vrios pontos de vista, sendo que qualquer intento de classificao deve levar em
conta o critrio de abordagem empregada. Assim, til que, antes de mais nada,
se estabelea uma distino entre as lideranas que se processam nos macrogrupos (como as turbas e multides, comunidades, sociedades e naes) e nos microgrupos (so os que conservam a comunicao visual e verbal entre todos os
integrantes).
Estritamente sob o ponto de vista da psicologia psicanaltica, imprescind
vel que o estudo das lideranas se fundamenta em trs vertentes: Freud, Bion e
Pichon Rivire.
Freud, em seu importante trabalho de 1921, Psicologia das Massas e Anli
se do Ego(4], descreveu o processamento de trs tipos de formao de lideranas:
em turbas primitivas, na Igreja e no Exrcito.
Na primeira delas, alicerado nos estudos de Le Bon, Freud evidenciou a
possibilidade de um sujeito vir a perder a sua identidade individual, sempre que
estiver absorvido por uma massa. Em tais situaes, esse indivduo perde os

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referenciais de seus princpios e valores habituais, para seguir, s vezes cegamen


te, aqueles que so ditados pela liderana, a qual, nesses casos, costuma ter
caractersticas carismticas.
A Igreja foi utilizada por Freud como um modelo de liderana que se proces
sa atravs do fenmeno introjetivo, ou seja, todos os fiis incorporam a figura de
um mesmo lder na Igreja crist a figura de Jesus Cristo, o qual, por sua vez,
o representante de Deus. Forma-se, pois, uma identificao generalizada com
um lder abstrato, e isso mantm a unificao de todos os fiis ( til lembrar que
a palavra Religio se forma a partir de re e ligcure, ou seja, como uma renovada
tentativa de ficar ligado, de uma forma unida e fundida com Deus, por sua vez,
uma representao simblica da fuso da me primitiva com a do pai todo-poderoso).
Em relao ao Exrcito, Freud ensina que a liderana se processa atravs
da projeo, na pessoa do comandante, das aspiraes ideais de cada um dos
comandados.
Essa trplice conceituao de Freud acerca da formao de lderes, se for
vertida para a terminologia analtica corrente, pode ser assim entendida: o lider
carismtico de uma massa primitiva corresponde a uma fase evolutiva muito
regressiva, de natureza narcisista-simbitica, em que ainda no se processou a
diferenciao entre o eu e o outro. O modelo religioso de liderana decorre do
fenmeno de identificao introjetiva, enquanto a identificao projetiva o pro
ttipo de como se processa a liderana nas foras armadas.
Bion, emrito psicanalista britnico e pensador original, partindo de suas
raizes kleinianas, trouxe uma decisiva contribuio para a compreenso da for
mao e da significao das lideranas. Uma primeira observao que pode ser
extraida de seus estudos(3) a de que qualquer grupo tem uma necessidade
implcita de que sempre haja uma liderana. Dessa forma, as experincias que ele
fez com grupos sem lderes formais, mostrou que, em pouco tempo, inconsciente
mente, formavam-se as inevitveis lideranas.
Assim, diferentemente de Freud, que considerava o grupo como um emer
gente do lder (isto , o lder como sendo algum de quem o grupo depende e de
cuja personalidade vo derivar as qualidades dos demais), Bion fundamentou a
postulao de que o lder que um emergente do grupo (creio que esse ponto de
vista est bem consubstanciado nessa afirmao do grande lder Churchill: "como
me escolheram como lder, eu devo ser comandado por vocs).
A partir dessa .concepo do lder como um emergente do grupo, deve-se
entender que na patologia das instituies, ou de um grupo, a liderana pode ser
a manifestao de um sintoma e no a sua causa.
Seguindo a este critrio de abordagem, pode-se entender a formao de
lderes a partir da conceituao de Supostos bsicos", de Bion. Como sabemos,
esse autor descreveu trs tipos de inconscientes supostos bsicos.
O primeiro o de Dependncia, pelo qual o grupo se rene espera de ser
sustentado por um lder de quem depende para a sua alimentao material,
espiritual e proteo: neste caso, o ideal um lder de natureza carismtica.

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O segundo tipo de suposto bsico o de Luta e Fuga, em que o grupo est


reunido para lutar contra algo ou dele fugir: o seu lder ter caractersticas paranide-caudilhescas.
O terceiro tipo o de Acasalamento" (pairing, no original) ao qual deve ser
dada uma conceituao mais ampla do que o sugerido pela traduo do nome, j
que ele independe do sexo dos participantes e do nmero destes. Este suposto
bsico refere-se fundamentalmente s demonstraes de esperana" do grupo.
Habitualmente, ele verbalizado sob a forma de idias de que acontecimentos
futuros (casamento, nascimento de filhos, entrada de novos pacientes, etc.) sal
varo a todos das incapacidades neurticas. O lder ideal dessa esperana utpica
vindoura algum possuidor de caractersticas messinicas.
Na prtica clnica, as coisas no se passam to esquematicamente assim,
pois o que se observa uma maior diversificao e arranjos combinatrios dos
supostos bsicos, bem como uma freqncia de flutuaes, entre estes, ao longo
do tratamento.
Pichon Rivire(8), importante psicanalista argentino e reconhecido criador
de conceitos originais acerca de Grupos Operativos, descreveu os seguintes qua
tro tipos de lideranas: autocrtica, democrtica, laissez-faire, demaggica.
A liderana autocrtica habitualmente exercida por pessoas de caracters
ticas obsessivo-narcissticas, sendo que ela prpria de grupos compostos por
pessoas inseguras e que no sabem fazer um pleno uso de sua liberdade. A
liderana democrtica no deve ser confundida com o de uma liberalidade ou
licenciosidade; pelo contrrio, uma democracia sadia implica em uma hierarquia,
com a definio de papis e funes, e num claro reconhecimento dos limites e
das limitaes de cada um. A liderana do tipo laisez-faire alude a um estado de
negligncia e, por isso, o seu maior risco consiste na falta de um continente para
as angstias, dvidas e limites, sendo que dai decorre uma alta possibilidade da
prtica de actings de natureza maligna. A liderana demaggica aquela na qual
o lder costuma ter uma caracterologia do tipo "falso sei/', sendo que a sua
ideologia construda mais em cima de frases retricas do que de aes reais:
essa liderana provoca decepes e, dai, um reforo no desnimo dos liderados,
devido ao incremento do velho sentimento de desconfiana que eles devem ter tido
em relao credibilidade dos respectivos pais.
Creio que a classificao de P. Rivire ficaria mais completa se dela constas
se um quinto tipo de liderana que, acompanhando a evoluo sociocultural dos
grupos humanos, tem evidenciado uma presena cada vez mais freqente: tratase do lider narcisista. Como notrio, este tipo de lder costuma utilizar os mais
diferentes meios desde os suaves e sedutores, por vezes melfluos, at o empre
go de uma energia exuberante, por vezes carismtica e toda-poderosa que, no
entanto visam, sempre, manter com os seus liderados um conluio inconsciente
que tm por base uma relao de poder. Tal conluio consiste em que o lider
assegura e reassegura aos seus liderados a gratificao das necessidades bsicas,
como a da garantia de proteo e amor, desde que eles, reciprocamente, o alimen-

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tarem, continuamente, com aplausos e votos de uma admirao incondicional. No


fundo, tal processo de mtua gratificao objetiva garantir a preservao da autoestima e do sentimento de identidade de cada um e de todos. Essa liderana
narcisista, em situaes mais extremas, adquire nos liderados as caractersticas
de uma fascinao e deslumbramento pelo seu lider, sendo que til consignar
que a etimologia da palavra deslumbre, formada de: des (privao) + lumbre (luz),
indica claramente o quanto estes liderados pagam um preo elevado pela garantia
do amor desse lder: ficam cegados de suas reais capacidades e atrofiam a sua
criatividade, enquanto hiperatrofiam a dependncia.
Em certas instituies possvel observar esse tipo de liderana, em que os
princpios do ideal do ego os ticos, estticos e jurdicos esto conluiados e
depositados na pessoa do lider narcisista. Nos casos exagerados, a submisso ou
a rebelio (muitas vezes, com a formao de dissidncias) se constituem como os
extremos que os liderados utilizam para enfrentar essa situao.
Creio ser importante chamar a ateno para o fato de que comumente a
liderana autocrtica aparenta ser mais violenta do que a narcisstica (a palavra
violncia se origina do timo latino vis, que significa fora, como em "vigor, e ela
alude a uma m utilizao dessa fora). H, no entanto, um equvoco nessa
apreciao, pois, se olharmos mais atentamente, vamos perceber que em uma
instituio, como de ensino-formao, por exemplo, o lider autoritrio impe de
forma aberta a sua ideologia, mas no tira a capacidade de pensar dos seus
alunos, enquanto o lider narcisista aparentemente no impe, porm atravs da
fascinao e do emprego de imperativos categricos que modelam e definem as
suas expectativas (ideal do ego), ele deslumbra, isto , ele alimenta bem o aluno
ao mesmo tempo em que o cega e infantiliza ( interessante registrar que o termo
aluno derivado de cdere. que significa ser alimentado).
Essas ltimas consideraes adquirem uma especial significao nas gru
poterapias, pelo fato de no ser raro que o seu lider natural - o grupoterapeuta
ao invs de propiciar uma atmosfera de indagao, contestao, reflexo, e exer
ccio de liderana para todos, possa estar mantendo os pacientes de grupo unidos
atravs de uma fascinao narcsica veiculada por uma atitude sedutora e belas
interpretaes. Dai, possvel que, embora todos os participantes do grupo este
jam satisfeitos e gratificados, haja o risco de que o processo analtico propriamen
te dito esteja esterilizado.
Depreenda-se dai que o conceito de liderar no o mesmo que o de mandar
(mas sim, de co-mandar) e, da mesma forma, aceitar uma liderana no deve ser
sinnimo de submisso ou de uma dependncia em que no haja uma relativa
autonomia por parte do liderado.
Uma outra forma de entender a complementaridade dos papis em um
grupo a partir da concepo de que assim como todo o indivduo se comporta
como um grupo (de personagens internos), tambm qualquer grupo se comporta
como uma individualidade. Dessa forma, se pensarmos em termos da teoria es
trutural da mente, verificamos que parte dos componentes do grupo terapeuta

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inclusive em forma altemante, podem estar representando as pulses do Id,


enquanto os outros representam as funes e capacidades do Ego, ou as crticas
e proibies do Superego. O grupoterapeuta deve ficar especialmente atento para
a possibilidade de que a totalidade do grupo deposite nele as capacidades do ego,
tais como as de perceber, pensar, sentir, saber e comunicar, enquanto os pacien
tes fiquem esvaziados pela razo de que eles projetaram o melhor de suas capaci
dades no terapeuta, em tomo do qual eles passam a gravitar.
Um seguro indicador de que uma grupoterapia est evoluindo exitosamente
a constatao de que esteja havendo uma alternncia e modificao nos papis
desempenhados pelos membros, especialmente aos papis que se referem s lide
ranas.

Orientao Bibliogrfica
1. BERNARD, M. "La estructura de roles como lenguaje y el estatuto de los processos inconscientes
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