ABC Do Desenvolvimento Urbano

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MARCl::LO LOl1 ES DE SOUZA

Oque faz, afinal, de uma cidade uma cidade? Oque tem sido
comum a todas as cidades atravs dos tempos? Ser que a causa
bsica dos graves problemas das maiores cidades brasileiras o seu
tamanho, como teima o senso comum em insistir7 Como podem
esses problemas ser adequadamente enfrentados?
Oferecer respostas para essas e outras perguntas, de forma
no simplista, mas, ao mesmo tempo, acessvel a um pblico leigo,

o objetivo deste livro. Ao nos debruarmos mais detidamente


sobre certas questes que envolvem as causas dos problemas urbanos e as maneiras de super-los, verificamos que as respostas que
muitos, no quotidiano, tm na ponta da lngua so apenas enganadoramente "bvias" e, com freqncia, incompletas ou equivocadas. No que aqueles que no so pesquisadores do urbano
no devam se pronunciar sobre as causas e as solues para aquilo
que os aflige em seus espaos de moradia, trabalho, circulao e
lazer - longe disso! Eles podem e devem faz-lo, pois tm o direito
de tomar parte nas decises sobre o futuro de suas cidades. No
entanto, no seria mais proveitoso se eles pudessem participar de
debates e deliberaes pblicos tendo travado algum tipo de contato prvio com o acervo de conhecimentos tcnico-cientficos que,
ha decadas, vem sendo produzido sobre as cidades brasileiras ou
soh111 ;1s cirlades em geral?

Do Autor (pela Bertrand Brasil):

Marcelo Lopes de Souza

O DESAFIO METROPOLITANO
Um Estudo sobre a Problemtica Scio-Espacial
nas Metrpoles Brasileiras
PRMIO JABUTI-20 01

Cincias Humanas e Educao


MUDAR A CIDADE
Uma Introduo Crtica ao Planejamento e
Gesto Urbanos

ABC DO
DESENVOLVIMENTO
URBANO
2 edio

li

BERTRAND BRASIL

Copyright 2003 Marcelo Lopes de Souza

SUMRIO

Capa: Leonardo Carvalho


Editorao: DFL

2005
Impresso no Brasil

Por que livros de divulgao cientfica, nas cincias sociais, so to

Printed in Brazil

raros? (Uma conversa pn.:li minar com o leitor) 9


Introduo: refletindo sobre as c idades, seus problemas e as manei-

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Souza, Marcelo Lopes de, 1963S716a
ABC do desenvolvimento urbano I Marcelo Lopes de
2 ed. Souza - 2 ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
192p.
ISBN 8.5-286-1013-6

ras de super-los 19

1. O que faz de uma cidade uma cidade'! 23


2. Quando e como surgiram as primeiras cidades'! 41
3. Da cidade individual rede urbana 49

1. Regies metropolitanas. 2. Desenvolvimento urbano.

3. Crescimento urbano. 4. Reforma urbana. 1. Ttulo.

03-0521

CDD-307.76
CDU-316.334.56

4. A cidade vista por dentro 63


5. Problemas urbanos e conflitos sociais 81
6. O que devemos entender por de.rn111oll'i111e11ro 11rba110'! 93

Todos os direitos reservados pela:


EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.
Rua Argent ina, 17 1 - 1 andar - So Cristvo
20921-380- Rio de J aneiro - RJ
Tel.: (Oxx:21) 2585-2070 - Fax: (Oxx:21) 2585-2087

7. Das falsas explicaes sobre us problemas urbanos s falsas

No permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por


quaisquer meios, sem a prvia autorizao por escrito da Editora.

9. Os instrumentos da reforma urbana 123

Atendemos pelo Reembolso Postal.

receitas para super-los 103


8. Reforma urba11a: conceito. protagonistas e histria 111

10. Os obstculos e o alcance da reforma urbana 133


11. "Irmos" e "primas" da reforma urbana: oramentos
participativos e organizaes de economia popular 139

A cidade em progresso

Concluso: Das tribos "globalizao" - a aventura humana e o


papel das cidades 153
Termos tcnicos explicados 167

No cresceu? Cresceu muito! Em g randeza e misria


Em graa e dise nteria
Deu franquia especial doena venrea
E alta quinquilharia.

Bibliografia comentada 181


Sobre as ilustraes 189

Tomou-se grande, srdida, 6 cidade


Do meu amor maior!
Deixa-me amar-te assim, na laridade
Vibrante de calor!
(Do poema A cidade em progresso, de Vincius de Moraes)

6
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Por que livros de divulgao cientfica,


nas cincias socia is, so to raros?
(Uma conversa prel iminar com o leitor)

Um professor de Fsica que tive, no terceiro ano do ensino mdio


- chamado, na poca, de 2? grau-, costumava, fazendo um gracejo de
duvidosa qualidade, dividir as cincias em "exatas" e "exticas".
Fora mais ou menos dois anos antes, no comeo do ensino mdio,
que eu comecei a enveredar mais seriamente pelo caminho que me
levaria, anos depois, a optar profissionalmente pelas "cincias exticas". Entretanto, as minhas grandes paixes intelectuais, durante a
maior parte da adolescncia, foram outras: Astronomia e, justamente, Fsica. Foram essas duas paixes que, se no me abriram propriamente as portas de um mundo maravilhoso, o mundo dos livros (as
quais j tinham sido abertas anos antes), certamente me estimularam
ainda mais a explor-lo. Foi por essa poca que travei contato com
algo fundamental para despertar vocaes nos jovens, assim como
para a informao do pblico leigo em geral: as obras de divulgao

ciellljica.
Inesquecvel, para mim, o convvio com autores capazes de traduzir em linguagem simples , mas sem banalizar demais, e, muito
menos, sem distorcer, idias muitas vezes complexssimas. o caso
do grande matemtico e filsofo Bertrand Russell, cujo ABC da relatividade devorei sofregam ente l pelos meus quatorze ou quinze
anos. O ttulo do presente livro, alis, no plgio, e sim uma espcie de homenagem ao li vro de Russell e ao que ele representa. Alm
desse, muitos outros livros os trago em boa memria: os do fsico
russo-americano George Gamow, que chegou a criar um personagem, Mr. Tompkins, para explicar aos adolescentes, em meio s suas

9
lm.ITTl

ll:lJ

aventuras e peripcias, os princpios da Teoria da Relatividade; os do

Antropologia e alguns trabalhos de historiadores. No entanto, por

astrnomo Carl Sagan, que ficou famoso entre o grande pblico,


sobretudo, graas a uma srie de TV, adaptao de seu maravilhoso

qualquer razo, meu contato com essa literatura foi tardio.

livro Cosmos; os do famosssimo escritor (com formao cientfica

do problema que me motivou a escrever este livro e a torrar a pacin-

em Bioqumica, creio eu) Isaac Asimov, to bom autor de fico

cia do leitor com o aparente exerccio narcsico de falar sobre as

cientfica quanto de livros de divu lgao cientfica, especialmente

minhas leituras de ado lescente: a constrangedora escassez de livros

nas reas de Astronomia, Astronutica e Robtica. Esses, ao lado de

de divulgao cientfica no mbito das cincias humanas e sociais.

vrios outros livros -como o Da Terra s Galxias, do grande astr-

Quais as razes dessa escassez, dessa quase aus nc ia? Por que o

nomo brasileiro Ronaldo Rogrio de Freitas Mouro-, foram impor-

"vulgarizador" (no sentido francs de vulgarisateur), isto , o perito

tantssimos companheiros de adolescncia. A eles devo o meu interesse pela cincia, de um modo geral.

que tambm se preocupa com a popularizao do conhecimento cien-

quase de pasmar, assim, que eu. apesar disso, tenha acabado

relao qual.justia lhes seja feita, os historiadores tm sido a prin-

optando pelo que o meu professor de Fsica chamava de " ci ncias

cipal exceo, pois vm brindando o pblico le igo cultivado, e no


de hoje, com livros deliciosos e atraentes para qualquer amante da

mim, empurrando-me para elas, e o meu interesse febril de adolescente pela histria da Segunda Guerra Mundial, logo em seguida des-

leitura.)
Nas cincias naturais, em que tudo parece to certinho, sabe-se

dobrado em um juvenil e um pouco ingnuo interesse pela Geopo-

muito bem o que faz a diferena entre um livro para iniciantes, um

ltica, assim como o meu hbito ainda de adolescente de ler algumas

outro para estudantes avanados, um para profissionais e um livro

propriamente), devem ter influenciado a minha deciso. Com certeza, no foram os equivalentes sociolgicos, geogrficos, econmicos
ou politolgicos de Russell, Gamow, Asimov ou Mouro, pela simples razo de que eles quase no existiam. O "quase" vai aqui, na verdade, na conta de um eufemismo ou de uma concesso minha ignorncia, pois a tentao de ser mais duro grande. No terreno das c incias sociais, a nica obra realmente de divulgao cientfica, prato

[li

(ou, normalmente, artigo) que contenha resultados de pesquisa de


ponta, lidando com a fronteira do conhecimento. A diferena entre o
li vro para um pblico leigo e aquele para um pblico de especialistas
mais fcil ainda de reco nhecer: ela imposta pela prpria presena,
no segundo caso, de termos tcnicos em a bundncia, muitas vezes
tamb m pelo elevado grau de conhecimento matemtico que exigido do leitor para acompanhar a exposio. No caso das c incias da
sociedade, e m largussima medida em funo de seu objeto (e no, ao
contrrio do que a lguns poderiam imaginar, em funo da menor

alis mu ito saboroso, que c heguei a degustar durante os anos de

inteligncia dos cientistas sociais), as coisas no se do dessa forma.

minha formao, veio tarde demais, quando euj cursava o primeiro

Os termos tcnicos das cincias da sociedade so, em grande parte,

a no da universidade: A era da incerteza (livro e srie de televiso,

ou mesmo na sua maioria, palavras e expresses que tambm esto

ambos muito bons), do economista John K. Galbraith. Com os meus

presentes no discurso do se nso comum: classe social, territrio,

o lhos de hoje, admito que certas obras das cincias da sociedade,

democracia, sociedade, partido poltico, lugar, modernizao, ordem,

mesmo tendo sido escritas por especialistas e para especialistas, so

poder... Bem diferentes, por exemplo, de "coisas" como quasar, neu-

to gostosas de ler (em grande parte devido ao prprio objeto), que eu

trino, genoma, sinapse, metamorfismo.fractais e, obviamente, tripanossoma cruzi ou oligoclsio (isto , em bom "quimiqus", (Na,Ca)

poderia me ter com elas deleitado: por exemplo, certos clssicos da

10

tfico, personagem to pouco usual nas cincias sociais? (Regra em

exticas". Sem dvida, deveria haver algo de muito forte, dentro de

coisas de Filosofia (mais julgando entend-las que entendendo-as

ITTL[ITj

Mas, o que importa, nesse prefcio, no falar de mim, mas sim

11

(AI, Si)4 0 ), que so inteiramente obscuras para a grande maioria


8
dos no-especialistas... Mais do que isso: nas cincias da natureza,

sem base emprica e sem rigor reflexivo. (Em linguagem mais tcni-

no so apenas os termos tcnicos que criam barre iras impenetrveis

dizer que tais constructos so refratrios a mensuraes nas escalas

para o leigo; o prprio objeto, normalmente, consiste em uma reali-

de razo e intervalo, embora sejam tratveis em escala ordinal.) E


tambm no pelo fato de lidar com fe nmenos que, de alguma

dade fora do alcance do indivduo comum, ou porque pertence ao


mundo do muito pequeno (s acessvel com a ajuda de microscpios

maneira, dizem respeito a todos, e a respeito dos quais todos se jul-

e ciclotrons), ou porque se situa no campo do muito distante e muito

gam capazes de dizer algo, que o cientista social ir enxerg-los da

grande (acessvel somente com o auxlio de telescpios e radioteles-

mesma maneira; o microscpio e o telescpio devem ser substitudos,

cpios), ou, ainda, porque no faz parte da experi ncia quotidiana

pelos cientistas sociais, pela capacidade de perscrutar e examinar o

das pessoas, re metendo a investigaes feitas em laboratrios . O

que se passa em vrias escalas simultaneamente (do local ao global,

objeto do cientista natural, ademais, alm de prestar-se muito m ais

passando pelo regional, pelo nacional...), integrando os conhecimen-

facilmente quantificao, esse verdadeiro apangio da cincia positivista, cS muito ma is passvel de ser visto como "exterior" ao pesqui-

tos e mobilizando grandes volumes de dados e informaes de natu-

sador. A relao de um pesquisador com uma rocha, com uma gal-

rezas diversas, coisa que exige um treinamento especfico.


Tudo isso no sign ifica que, e m um sentido poltico essencial, o

xia distante ou mesmo com um outro ser vivo de ordem qualitativa-

direito de os no-especialistas se pronunciarem - e mais, o direito de

mente diferente de sua relao com outros seres humanos, especial-

eles decidirem - sobre coisas que afetam suas vidas e seus destinos,

mente se pertencerem sua prpria sociedade.

[ILJ

nos terrenos da poltica, da economia, da cultura e da organizao

Por tudo isso, parece que as cincias da sociedade lidam, de

espacial , no seja verdade iro ou legtimo, ai nda que esse direito no

certo modo, com o "bvio", enq ua nto que as cincias da natureza

seja reconhecido pelos tecnocratas e pelas e lites dominantes. Apenas,

desvendariam os mistrios e segredos do universo. claro, contudo,

desejo lembrar que h, sim, uma dimenso tcnica/cientfica cuja

que o "bvio" muito menos "bvio" do que parece. O fato de utili-

apreenso exige conhecimentos que no se confundem inteiramente


com o senso comum. Esses conhecimentos so, potencialmente, de

zar freqenteme nte palavras que andam de boca em boca no s ignifica que elas sej am empregadas da mesma maneira; ao menos teorica-

12
lm.ITTl

ca e precisa, tambm explicada no glossrio ao final do livro, pode-se

grande relevncia, por contextualizarem o saber prtico e quotidiano

mente, trata-se, para o cientista social, de termos que tm por trs de

dos no-especialistas e revelarem os limites do senso comum; mas,

si conceitos, e cuja exigncia de rigor tem de ser grande.


Por falar em rigor: no porque a matematizao muito mais

apesar di sso, no so sempre "superiores", e nem mesmo so capazes


de garantir, sempre, maior eficcia s intervenes sobre a realidade.

difcil o u mesmo, em grande parte, indesejvel e ardilosa na esmaga-

Por lti mo, no por estar infinitamente mais exposto s interfe-

dora maioria dos setores das c i ncias sociais (uma exceo parc ial e

rncias de valores poltico-filosficos - a prpria expresso " interfe-

um pouco ilusria sendo a Economia), que o rigor e a preciso, e nten-

r ncia" , alis, um bocado inadeq uada aqui - , que o trabalho do

didos em um sentido mais amplo , vo, necessariamente, estar ausen-

cientista social h de ser "pouco objetivo", como aind a se ouve,

tes. Dito de outra forma: no porque idias to centrais (chamadas,

depreciati vamente. Afinal, mesmo no desejando se esconde r por

tecnicamente, de constructos - vide a seo Termos tcnicos expli

trs de um quimrico manto de " ne utralidade ax iolgica" (isto ,

cados ao final do livro) como poder, carisma e autoridade e fenme-

neutralidade com re lao a valores) e assumindo seus pressupostos

nos como identidade scio-espacial ou influncia cultural se mos-

motivacionais e panos-de-fundo poltico-filosficos, o cientista

tram refratrios a mensuraes que se pode falar o que be m quiser,

social no se v desobrigado de distinguir entre discursos panflet13

rfil

14

lill1m
rn.J

rios e vulgarmente ideolgicos, ntida e grosseiramente parciais, de


um lado, e argumentaes empiricamente bem fundamentadas e to
honestas e livres de vieses quanto possvel, de outro lado.
Seja como for, os cientistas sociais tm, sim, maiores dificuldades para apresentar para os leigos os seus resultados. Na verdade, o
que se buscou foi, algumas vezes, de certa maneira, o inverso da
divulgao cientfica: revestir anlises com uma capa de complicao desnecessria, terminolgica ou matemtica, com o objetivo de
granjear maior "respeitabilidade cientfica". O resultado disso foi
decepcionante, para no dizer ridculo: textos hermticos sobre
assuntos os mais variados, em que o formalismo matemtico e/ou o
linguajar pedante mais atrapalham do que ajudam a ganhar conhecimento novo realmente relevante. Exemplos vo, aqui, dos antigos
"modelos gravitacionais" para explicar migraes at as recentes tentativas de usar a Geometria dos fractais para explicar e planejar o
crescimento urbano (vide o significado de " modelos gravitacionais"
e "Geometria dos fractais" no glossrio ao final do livro). Talvez esse
complexo de inferioridade-felizmente no presente em todo mundo,
claro - tenha contribudo um pouco para fazer com que aqueles que
abraaram as cincias da sociedade no se interessassem por trazer
ao alcance do indivduo le igo letrado seus muitas vezes importantssimos resultados, seus exerccios de desconstruo do senso comum
e de desconfiana em face do aparententemente bvio. Que pena: no
h nada to fascinante e complexo, e por isso mesmo demandante de
elucidao e divulgao adequadas, do que a aventura humana sobre
a face da Terra.
O presente livro deseja ser uma contribuio para o preenchimento dessa lacuna. Sua meta, porm, modesta, pois seu objeto
bem demarcado: o desenvolvimento urbano. Conhecimentos oriundos das diversas disciplinas que colaboram com os estudos urbanos
(Geografia e Sociologia, principalmente, mas tambm Economia,
Antropologia Social e outras mais), alm de abordagens e tcnicas de
planejamento e de gesto urbanos: tudo isso ser mobilizado dentro
de uma tentativa de explicar o que faz das cidades locais bons ou
ruins para se viver e como surgem e se agravam - e como podem ser
enfrentados - os problemas urbanos.

Diferentemente das cincias naturais, no se tratar, aqui, de


tomar um punhado de verdades estabelecidas (ainda que apenas provisoriamente, lgico), simplific-las e coloc-las ao alcance dos
no-especialistas. A respeito de grande parte dos assuntos abordados
nas cincias sociais, controvrsias deri vadas de vises de mundo
divergentes so parte integrante e constante do espetculo - o que
no , bem ao contrrio do que comumente se pensa, necessariamente um problema, podendo ser, isso sim, algo altamente estimulante.
Assim como estimulante , tambm, o desafio de dar conta de um
objeto to rapidamente mutvel e sempre surpreendente (pense-se na
velocidade de mudana e na capacidade de nos surpreender inteiramente que so tpicas de fenmenos sociais os mais variados, e
compare-se isso dinmica da crosta terrestre ou, mais ainda, s leis
da Fsica: mais ou menos como a diferena entre pegar um trem
parado ou quase parado e tentar pegar um trem a 100 km/h... ). Por
isso, no se buscar passar para o leitor a impresso de que o autor
um adulto ensinando a uma criana coisas difceis de modo simples,
sobre as quais os especialistas j se puseram de acordo h muito
tempo. O leitor ser tratado como um cmplice e como um companheiro de jornada, convidado a tirar suas prprias concl uses e, ao
mesmo tempo, confrontado com os resultados de dcadas de pesquisa. Pesquisas essas que, se por um lado merecem respeito ( uma
eterna tentao, e no s por parte dos leigos, descartar ou afrontar os
resultados de investigaes criteriosas, s vezes rduas, com base
somente em intuies pretensamente geniais embaladas em atraente
retrica), no devem ser objeto de adorao. O conhecimento cientfico sobre a sociedade , "to-somente", por mais refinado e complexo que seja - ao tentar integrar e dar conta das relaes entre uma
enorme quantidade de fatores e elementos atinentes a diferentes fenmenos operando em distintas escalas -, um conhecimento elaborado
a partir de saberes, significados e prticas socialmente produzidos.
Saberes, significados e prticas esses que dizem respeito, o mais das
vezes diretamente (diferentemente, digamos, de pesquisas em Astrofsica), aos problemas e dilemas com os quais a sociedade se v confrontada, incluindo mesmo, em grande parte, os problemas mais quo15

imlm
IJtJ

tidianos. Falar sobre eles e ser informado sobre eles direito de


todos, porque direito de todos participar das decises que os envolvam. No mnimo tanto qua'flto o saber das cincias naturais, o saber
das cincias da sociedade precisa, regularmente, ser ressocializado
de forma transparente e democrtica. Para variar, essa no uma
questo cientfica: tica e poltica. O que no a faz menos digna de
reflexo por parte de todos os cientistas .

portuguesa, e sempre se trata de livros, nunca de artigos publicados


em algum peridico especializado e de difcil acesso. O motivo
simples: no se desejou, com a bibliografia, demonstrar erudio,
mas, realmente, orientar e aj udar o leitor (presumivelmente, um leigo
ou, na melhor das hipteses, um estudante de graduao dos primeiros perodos) interessado em aprofundar o seu conhecimento.

.....
Agora, alguns esclarecimentos ao leitor sobre a estrutura e o estilo deste li vro.
claro que, em um livro como este, q ue no foi escrito para
especialistas, deve-se evitar, ao mximo, o uso de termos tcnicos.
Entretanto, nem sempre isso possvel, e algumas vezes tampouco
aconselhvel. Em vez de explicar o sentido de determinadas palavras
e apresentar certos conceitos em notas de rodap, preferi faz-lo ao
fi nal do texto, sob a forma de um glossrio onde os termos tcnicos
se acham todos reunidos. Sempre que uma palavra aparecer em itlico, precedida pelo smbolo ~, o leitor deve consultar a seo
Termos tcnicos explicados. O smbolo s foi utilizado, porm,
quando da primeira apario da mesma palavra no texto.
A bibliografia no foi citada, no corpo do texto, dentro dos
padres acadmicos convencionais, para tornar a leitura mais escorreita e menos pesada. Q uando algum nome de autor for mencionado,
porm, o leitor ir, normalmente, encontr-lo tambm ao fi nal do
li vro, na seo Bibliografia comentada. evidente que um texto
como o presente, que aborda assuntos bem diversificados a respeito
da dinm ica urbana, dos problemas das cidades e das tentativas de
enfrentamento desses problemas, toca em temas que vm sendo estudados h geraes. Por outro lado, este livro no um tratado, mas
sim uma obra de divulgao. Por essa razo, a bibliografia foi restringida a alguns trabalhos fundamentais, de acesso relativamente fcil
para o leitor interessado. As referncias so quase todas em lngua

O presente livro deriva de uma significativa experincia de pesquisa do autor no campo dos estudos urbanos. E, no entanto, diferentemente dos meus livros anteriores, no foi algum projeto em particular, ou um conjunto de projetos, que forneceu a inspirao e o contexto mais imediato para a feitura do trabalho. Complementarmente
quilo que escrevi pginas atrs, posso dizer que a inspirao foram
as minhas muitas tentativas de explicar, para leigos e para estudantes
de graduao (os quais, ao menos quando se encontram nos perodos
iniciais, muitas vezes no apresentam uma bagagem de conhecimento especfico significativamente superior de muitos leigos), conceitos, teorias, processos empricos e instrumentos de planejamento.
Traduzir em linguagem clara todo um acervo acumulado de conhecimentos, sobre a base de minhas prprias pesquisas ou das de colegas
prximos ou distantes, de modo a informar um grande pblico, foi o
desafio que motivou a empreitada que se corporificou no livro que o
leitor tem diante si. Por isso, vou dispensar os agradecimentos de
praxe a agncias de fomento, assistentes de pesquisa etc. O grande
agradecimento vai, isso sim, para as involuntrias "cobaias" preferenciais de sempre: meus alunos da Universidade Federal do R io de
Janeiro, notadamente os de graduao. Uma "provadora" muito especial foi a economista-mais-que-economista (felizmente!) Claudia Bisaggio Soares, que, lendo a primeira verso do manuscrito, me ajudou, com seus olhos de "semileiga", a aperfeioar o estilo e, mais que
isso, a aprimorar certas argumentaes; a ela o meu muito obrigado.
Afora isso, a lembrana de algumas conversas que mantive com cole-

16

17

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[llJ

gas estudiosos do urbano e da urbanizao, ao longo dos ltimos


anos. contribuiu para que eu ficasse particularmente atento com relao necessidade de ser bastante claro no momento de expor certas
idias e certos argumentos. Meu intercmbio com o colega e amigo
Pedro de Almeida Vasconcelos, professor do Departamento de
Geografia da UFBA, a respeito da pertinncia ou no de se aplicar o

INTRODUO

Refletindo sobre as cidades, seus problemas


e as maneiras de super-los

termo "segregao (residencial)" ao caso brasileiro, um exemplo


disso (embora eu persista em discordar de Pedro, que preferiria utilizar a palavra "excluso", que me parece perigosa). A esses interlocutores (e, certamente, tambm a outros) devo, sem dvida, estmulos
importantes.

Ah, mais uma coisinha. Quando, no ttulo deste prefcio, assim


como em outras partes do livro, eu me refiro ao leitor, usando apenas
o gnero masculino, isso no mach ismo. Estou presumindo - e,
acima de tudo, desejando - ter, tambm, muitas leitoras. O objetivo,
ao escolher s um gnero, foi o de simplificar, evitando ter de recorrer, a todo momento, construo "o(a) leitor(a)", a qual tornaria
pesado um texto cuja vocao , precisamente, a de ser leve. Quanto
ao fato de eu, ao simplificar, ter escolhido, justamente, o gnero masculino, isso se deu por uma questo de costume, da mesma maneira
como, em portugus, nos referimos "ao homem" ou "aos homens",
tantas vezes, querendo dizer, simplesmente, a espcie humana. Espero no deixar nenh uma leitora zangada por causa disso. E, afinal de
contas, este livro dedicado, como o anterior tambm fo i, a uma
(possvel) futura leitora: minha filhi nha, Larissa.
Rio de Janeiro, dezembro de 2002.
M.L.S.

De acordo com o Censo Demogrfico de 2000 do IBGE, cerca


de 82% da populao brasileira viviam, naquela ocasio, em espaos
rnns iderados como urbanos (cidades e vilas). bem verdade que
l'SSe dado no l muito confivel, j que, devido a um problema
rn nceitual e metodolgico, mesmo vilas e "cidades" com poucas
tc.:ntenas de habitantes e ntidas caractersticas de aglomerado rural
silo classificadas como urbanas. Mas, seja como for, o fato que o

18

rnTil
ITLJ

19

rnTil
ITLJ

Brasil , realmente, um pas predo minantemente urbano, e que se


urbaniza mais e mais, em grande velocidade. A A'mrica Latina, al is,
um continente bastante urbanizado, em comparao com outras
partes do que ainda se costuma chamar de "Terceiro Mundo" : mais
de trs quartos da sua populao vivem em reas consideradas como
urbanas. O grau de urbanizao do planeta como um todo tem, tambm, crescido sem cessar: estimativas apontam o percentual da populao mundial vivendo em ncleos com mais de 5.000 habitantes (o
que, muito simplificada e generalizadamente, pode-se tomar como a
parcela da populao do globo vivendo em espaos urbanos) como
sendo de apenas cerca de 3% em 1800, um pouco mais de 6% em
1850, entre 13% e 14% em 1900, um pouco mais de 28% em 1950 e
um pouco mais de 38% em 1970. Hoje em dia, cerca da metade da
populao do globo vive em espaos urbanos, e a proporo aumenta incessantemente. Antes de 1850, informa-nos Kingsley Davis (ver
Bibliografia comentada), nenhuma sociedade poderia ser considerada como predominantemente urbana, e por volta de 1900 s a GrBretanha o era. Hoje, um sculo depois, somente no grupo dos pases
de mais baixo nvel de desenvolvimento econmico (principalmente
na frica ao sul do Sahara e na sia das mones) que ainda preponderam os pases cuja populao predominantemente rural.
Contudo, no o simples fato de que a populao urbana aumenta em proporo e em tamanho absoluto, em praticamente qualquer
escala que se considere (mundo, "Terceiro Mundo", Amrica Latina,
Brasil...), que tem feito as atenes de todos se voltarem, nas ltimas
dcadas, cada vez mais para as cidades e seus problemas. o fato,
isso sim, de que a vida em muitas cidades, para no dizer em quase
todas elas, tem sido percebida com um misto de sentimento de orgulho e satisfao, por um lado, e descontentamento e frustrao, e at
mesmo medo, por outro._A cidade, especialmente a grande cidade de
um pas perifrico ou semiperifrico (-t pases perif ricos, semiperifricos e centrais), vista como um espao de concentrao de oporJ_u11idades de satisfao de -t necessidades bsicas materiais (moradia, sade ... ) e imateriais (cultura, educao ... ), mas, tambm, como
um local crescentemente poludo, onde se perde tempo e se gastam

20

00

nervos com engarrafamentos, onde as pessoas vivem estressadas e


amedrontadas com a violncia e a criminalidade.
Apesar da gravidade dos problemas constatados no dia-a-dia da
vida de qualquer morador de cidade grande (e, cada vez mais, tambm mdia) brasileira, o leitor leigo que se dirigir a uma livraria buscando uma obra para informar-se sobre a natureza das questes
envolvidas, a gnese e as causas das dificuldades e as possibilidades
de promoo de cidades mais justas e agradveis ir, provavelmente,
se desapontar. Discusses sobre esses assuntos no tm faltado, mas
tm ficado excessivamente confinadas em um ambiente acadmico
ou de profissionais de planejamento urbano. As obras disponveis
sobre esses ternas foram escritas por especialistas e para especialistas
(e estudantes universitrios destinados a se tornarem profissionais da
rea). Ao grande pblico restam, assim, principalmente, as opinies,
anlises e impresses veiculadas pela imprensa, da autoria de jornaIistas, polticos e administradores pblicos, e s uma vez ou outra
tambm de pesquisadores de temas urbanos e profissionais de planejamento urbano. Ocorre, porm, que, no apenas dev ido ao fato de
que as anlises de jornalistas e polticos costumam no primar pelo
rigor, mas, ainda por cima, em decorrncia da brevidade e da superficialidade quase que impostas pelo tipo de veculo de divulgao
Uornal, revista, televiso ou rdio), h uma enorme carncia de anlises que, sem serem, necessariamente, "complicadas", sejam correras, profundas e abrangentes. Conforme eu j disse na "conversa preliminar com o leitor", esse tipo de lacuna que o presente livro quer
ajudar a preencher.
Refletir sobre as cidades e seus problemas s ignifica refletir
sobre algo a respeito do que muita gente acha que tem "a" resposta na
ponta da lngua. "O problema a falta de planejamento", costuma-se
ouvir; "essas cidades cresceram demais, preciso livrar-se de uma
parte da populao", dizem outros, normalmente sem explicar como
seria a forma mais adequada de "livrar-se" de um s uposto "excedente populacional"; "a partir de um milho de habitantes qualquer cidade torna-se insuportvel", asseveram vrios, com ar de quem est de
posse da verdade suprema e inquestionvel; " preciso impedir a for-

21

rum

UlJ

mao de novas ~ favelas" , clamam no poucos, ao que crutros ou


eles mesmos acrescentam ser imperativo remover as favelas j existentes (afinal, as favelas so, para tantos moradores da classe mdia e
abastados, "antros de marginais", ameaas constantes paz na cidade e ao valor dos imveis de sua propriedade). Que respostas, entretanto, so essas? Ao observ-las com rigor e ateno, pode-se notar
que abrigam esteretipos, clichs, preconceitos lamentveis e perigosos, na esteira de equvocos e simplificaes. A mdia, muitas vezes,
mais contribui para reproduzir e amplificar vises distorcidas que
para corrigi-las. Entender a cidade e as causas de seus problemas
uma tarefa muito menos simples do que se poderia imaginar. E entender corretamente a cidade e as causas de seus problemas uma condio prvia indispensvel tarefa de se delinearem estratgias e instrumentos adequados para a superao desses problemas. S que
informar-se sobre essa temtica no deve ser visto como tarefa
somente para especialistas: ainda que apenas em um nvel muito
aproximativo e genrico, os indivduos no versados no assunto precisam conhecer corretamente as causas dos problemas dos espaos
onde vi vem e as linhas gerais dos debates correntes sobre como superar os diversos problemas. Essa a nica maneira de participar mais
ativamente, como cidado, da vida da cidade, no se deixando tutelar e infantilizar to facilmente por polticos profissionais e tcnicos

1.O que faz de uma cidade


uma cidade?

a servio do aparelho de Estado.

Definir uma coisa que nada tem de muito simples, pois exige
um razovel, s vezes at mesmo um elevado (dependendo da complexidade daquilo que se deve definir) poder de abstrao. "Abstra\'tto" e "abstrato" no so termos pejorativos, ao contrrio do que
mui tos pensam. Raciocinar abstratamente significa buscar coisas em
rnmum, ou regularidades, entre coisas diferentes. Essas "coisas"
podem ser objetos, podem ser comportamentos, podem ser processos
l11s16ricos ... Por exemplo: se eu falo "co", estou lidando com um
11fvcl de abstrao maior do que quando falo "pastor alemo", e
11111ito maior ainda do que quando falo do "meu co Rex, que um

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mm

UiJ

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mm
UiJ

pastor alemo". O " meu co Rex" situa-se em um nvel eminente-

aumentaram exponencialmente no decorrer do sculo XX. O nvel de

mente concreto, e expressa, inclusive, uma singularidade, ou seja,

controvrsia a respeito do conceito, por m, no diminuiu - pe lo con-

uma coisa que nica (pois aquele co c hamado Rex, que o meu,

trrio. Assim sendo, no seria uma temeridade pretender, em um

nico, no sentido de que s existe um); j "co" situa-se em um nvel


m uito geral, pois existem muitos milhes de ces no mundo, perten-

li vro de divul gao cientfica, enfrentar tema to delicado? Sem


dvida, uma temeridade. Mas, que fazer? preciso que nos ente n-

centes a numerosssimas raas. As definies cientficas, normal-

damos, min imamente, sobre o conceito de uma realidade a respei to

mente, se referem a fenmenos bastante ou at mesmo extremamente gerais, ou mesmo universais, como se d, em especial, nas cincias

O jeito, ento, advertir o le itor para o fato. inevitvel, de que o que

naturais. Ningum se interessaria em construir um conceito a prop-

se pode fazer, aqui, , meramente, uma aproximao, com uma forte


dose de generalizao embutida.

sito de algo que sej a nico. Nas cincias, mesmo nas sociais, a pesq uisa de relaes parte essencial do trabalho, e as comparaes,

Para o socilogo Max Web~. em um escrito seminal sobre a

m enos ou mais explcitas, menos o u m ais inte nsas, di fic ilmente


podem estar completamente ausentes. O singular e o particular devem

natureza das cidades, publicado originalmente em 1921 (vide a cole-

ser e nte ndi dos luz do que geral (o que no significa, absolutamen-

de nem todo " local de me rcado" ser uma cidade (basta pensar, como

as variaes, as especificidades e as suas causas, e inclusive conside-

e le sugere, em mercados peridicos tendo lugar e m aldeias, isto ,

rar os fenmenos singulares).

assenta mentos no- urbanos), toda cidade um local de m ercado,

difcil de se definir. Como no estou falando de um determinado tipo


de cidade, em um momento histrico particular, preciso ter em

00

t nea organizada por Otvio Velho, na Bibliografia comentada), a


cidade , primordial e essencialmente, um local de mercado. Apesar

te, que apenas o que geral interessa: necessrio, sempre, analisar

A cidade um objeto muito complexo e, por isso mesmo, muito

24

de cujos problemas e suas possveis solues pretende-se discorrer.

onde se d um intercmbio regular de mercadorias.


Pouco mais de uma dcada aps a publicao daquele escrito de
Weber, o j citado Christalle r deu uma co ntribuio importante,

mente aquilo que uma cidade da mais remota Antigidade e cidades

introduzindo o conceito de localidade central. Toda cidade , do

contemporneas como, digamos, Cairo, Nova Iorque e Tquio, mas

ponto de vista geoeconmico, isto , das atividades econmicas vis-

__

tambm um a pequena cidade do interior brasileiro ("uma dessas

tas a partir de uma perspectiva espac ial, uma localidade central , de

cidades to pacatas que nem tm lugares que no devam ser freqen-

nvel maior ou menor de acordo com a sua centralidade -ou seja, de

tados", para recordar uma frase do humorista M illr Fernandes), tm

ncordo com a quant idade de bens e servios que ela oferta, e que

em comum, para encontrar uma definio que d conta dessa ime nsa

fazem com que e la atraia compradores apenas das redondezas, de

variao de casos concretos. Conceituar o que seja um co , segura-

urna regio inteira ou, mesmo, de acordo com o nvel de sofisticao

mente, uma tarefa me nos espinhosa...


O economista e gegrafo alemo Walter Christaller, no seu livro

do bem ou servio, do pas inteiro e at de outros pases. A aldeia


(m1, para adaptar real idade brasileira, o povoado.j que aldeia um

Lugares centrais na Alemanha Meridional, onde exps a sua famosa


"teoria das localidades centrais", j havia registrado (em 1933!), em

tt1 mo

uma nota de rodap, a existncia de uma " numerosa literatura sobre

tl11 aldeia, ou do povoado, mais "centrfuga", para usar um termo de

que, entre ns, remete, em prime iro lugar, a assentamentos

111dgcnas), diversamente, no uma localidade central. A natureza

o conceito de cidade". Numerosa e, como ele tambm mostrou, pre-

< '111 istaller, porque

nhe de controvrsias. A literatura a respeito do assunto "cidades" e,

'" ~uas bordas (onde comeam os campos de cultivo), do que "centr-

conseqentemente, tambm as discusses sobre o conceito de cidade,

p1tu", como ocorre com a cidade, onde a rea central de negcios (em

as atenes de seus moradores esto voltadas para

25
lffilITl
IJlJ

economicamente, o seu entorno imediato, ou seja, as cidades vizinhas,


para que sua rea de influncia j possa ser considerada digna de nota.
~ idade_._sob o ngulo do uso do solo. ou das atividades econ_:
micas que a caracterizam, um espao de produo no-agrcola (ou
seja, manufatureira ou propriamente industrial) e de comrcio e oferecimento de servios. Bem, at a "morreu Neves", pode o leitor dizer;
afinal, nada mais bvio que o fato de que a cidade, qualquer que seja
ela, no um espao que se caracterize pelas -t atividades primrias.
Ocorre, porm, que a coisa no to simples assim. No to simples,
no tanto porque, s vezes, podem ser encontradas, como minsculas
ilhotas em meio a um oceano de espao construdo, "extravagncias
espaciais" como plantaes de hortalias, verduras e legumes (olericultura), desenvolvidas debaixo de torres de altas tenso - ou seja, em
1crrenos que, dificilmente se prestariam para qualquer outro aprovei1umento econ mico. Esse tipo de "extravagncia espacial" se v,
11inda hoje, em alguns subrbios do Rio de Janeiro, cidade onde moro
r 1rabalho, e com a qual estou mais familiarizado. No, decididamen1~ a coisa no to s imples, principalmente, porque, nas bordas da
r 1<lade, comum existir uma "faixa de transio" entre o uso da terra
l1picamente rural e o urbano. E~xa de transio~ hamada, ent;;
llN gegrafos anglo-saxes, de franja rural-urbana, e, entre os france~1s, comumente, de espao periurbano. No Brasil ambas as expres\1)c s so empregadas pelos estudiosos. Qua..!)19 maior a cidade, em
1~ral, mais complexo tende a s ~ o p e ~ . Nele se enconII um misturadas duas "lgicas", por assim dizer, de uso da terra: a
1111:11 e a urbana. A "lgica" rural a da terra enquanto terra de trabalho para a agricultura e a pecuria; o solo, aqui, tem valor no apenas
1kvido localizao do terreno, mas, tambm, um valor i11tr11seco,
1hv1<lo s di~erenas de fertilidade natural. J a "lgica" urbana J!. d_Q_
11)0 e nquanto um simples suporte para ati vidades que independem de
\11" atributos de ferti lidade: produo industrial (indstria de transl11111111o e construo civil), -t atividades tercirias, habitao e cir1111111;110 (ruas. avenidas etc.).\ que pode confundir que, na franj; \
1111111 urbana, muitas vezes a face visvel do espao (a paisagem) con-

ingls, central business district, ou CBD), ou o seu embrio, atrai os


consumidores de todo o tecido urbano, fazendo com que as atenes
dos citadinos se voltem para o centro do assentamento, e no para as
suas franjas. (Uma observao: um autor norte-americano, C. C.
Colby, usou, tambm na dcada de 30, as mesmas expresses "centrfugo" e "centrpeto", mas para referir-se a outra coisa: s foras
que estimulam a descentralizao das atividades econmicas na escala da cidade, dando origem, por exemplo, ao aparecimento dos chamados subcentros de comrcio e servios.)
Alm do mais, as cidades so assentamentos humanos extremamente diversificados, no que se refere s atividades econmicas alL_
desenvolvidas, diferentemente dos assentamentos rurais que so as
aldeias e os povoados. A vida econmica da aldeia ou do povoado
g ira em torno da agricultura e da pecuria, s vezes do extrativismo
mineral, quer dizer, daquelas atividades econmicas que, por excelncia, definem uma identidade geoeconmica, ou seja, econmicoespacial, prpria do campo, em contraposio cidade. Na aldeia ou
no povoado, produtos agropecurios so estocados provisoriamente e,
eventualmente, sofrem algum tipo de be neficiamento, o mais das
vezes preliminar. O comrcio de aldeia ou povoado rudimentar, e
voltado para o auto-abastecimento local. Os gneros agropecurios
produzidos pelos aldees ou moradores do povoado so, eles sim, freqentemente destinados a um mercado maior, onde sero, muitas
vezes, processados e industrializados, sendo, posteriormente, reenviados a muitos outros mercados. Por outro lado, os aldees ou moradores do povoado, enquanto consumidores, precisam, para adquirir qualquer coisa que no seja produzida por eles mesmos ou que ultrapasse
aqui lo que constitui os gneros de consumo mais rotineiro (certos alimentos, dentre o utras coisas), mas que no so produzidos pela prpria fam lia, dirigir-se cidade mais prxima, s vezes a uma cidade
maior e mais distante, dependendo do bem ou servio que procuram.
Em contraste, as cidades possuem uma certa centralidade econmica. Sua rea de influncia pode, muitas vezes, no ir alm dos limites territoriais da unidade poltico-administrativa local da qual ela a
sede (no caso brasileiro, o municpio). Todavia, basta ela polarizar,

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mlffi1
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lendo um aspecto ''rural", s vezes at belamente buclico ,il p111uas plantaes, muito verde, grandes espaos servindo de pasta-

11111111

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rum
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--:-t

gem para algumas cabeas de gado - , quando, na verdade, por trs


disso se verifica uma presena insidiosa e cada vez mais forte da
'"lgica" urbana de uso do solo. Grandes reas servindo de pastagem
para umas tantas cabeas de gado, por exemplo, nada mais so, freqentemente, que uma "maquiagem" para glebas mantidas como
reserva de valor por empreendedores urbanos; so, assim, terras de
especulao, "em pousio social", por assim dizer, e que sero convertidas, depois de muitos anos ou mesmo aps algumas dcadas, em
loteamentos popu lares ou condom ni os fechados de alto status,
dependendo de sua localizao. Nem tudo aquilo que parece ser, por
conseguinte, de fato , em matria de espao periurbano... (Ver, para
uma contextualizao mais apropriada do espao periurbano na cidade, o Cap. 4, A cidade vista por dentro.) \
Alm de tudo isso, a cidade , igualmente, um "centro de gesto
do territrio", por sediar as empresas. Porm, nem tudo se resume
economia! A cultura desempenha um papel crucial na produo do
espao urbano e na projeo da importncia de uma cidade para fora
de seus limites fsicos, assim como o poder. A cidade um centro de
gesto do territrio no apenas enquanto sede de empresas (privadas
e estatais), mas tambm enquanto sede do poder religioso e poltico.
Alm do mais, uma cidade no apenas um local em que se produzem bens e onde esses bens so comercializados e consumidos, e
onde pessoas trabalham; uma cidade um local onde pessoas se
organizam e interagem com base em interesses e valores os mais
di versos, formando gru pos de afi nidade e de interesse, menos ou
mais bem definidos territorialmente com base na identificao entre
certos recursos cobiados e o espao, ou na base de identidades territoriais que os indivduos buscam manter e preservar.
Uma questo interessante, a respeito do conceito de cidade, a
seguinte: existe um "tamanho mnimo" para se poder falar de cidade?
E, se existe, qual ele? A partir de mil, cinco mil, dez mil habitantes?
A resposta a isso bem menos simples do que se poderia pensar. Cada
pas adota os seus prprios critrios oficiais para estabelecer o que
uma cidade -ou, mais amplamente, um ncleo tido como propriamente urbano-, distinguindo as cidades de ncleos rurais como aldeias e

povoados. Isso faz muito sentido, quando se tem em mente que, em um


pas onde predomina um quadro em que a populao rural rarefeita e
vi vc dispersa, um aglomerado de umas tantas centenas de habitantes
podi.: j apresentar funes urbanas, enquanto que, em outro pas, no
qual a densidade demogrfica do campo muito elevada e a populao
l lll'al vive concentrada em aldeias, um ncleo de uns tantos milhares de
lwbi1antes bem pode ser, basicamente, rural. Fixar um limite mnimo,
11n matria de nmero de habitantes, como forma de se estabelecer O
q111: cidade e o que no , em um determinado pas, o jeito mais
n1111odo de se enfrentar a tarefa prtica de distinguir entre ncleos
111 banas e rurais, e pode no dar em resultados ruins, desde que se prol tda a isso tomando por fundamento um conhecimento slido da realltlaclc scio-espacial do pas em questo. No entanto, essa soluo
1quda muito pouco na hora de se entender o que uma cidade, proble111.1 esse antes de ordem qualitativa que quantitativa.
Alm da estipulao de limites demogrficos mnimos h, tamlil1rn, critrios "funcionais" muito vagos, que deixam tudo em aberto:
I o caso do Brasil, onde ncleos urbanos so as cidades e as vilas,
,tndo que as primeiras so sedes de municpios e as segundas so
M'des de distritos (subdivises administrativas dos municpios). E, de
11110, nenh um outro contedo se associa a essa "definio" brasileira
olicial de cidade e de vila: certo, sem dvida, que uma vila, que
~ldia um simples distrito, menor que uma cidade, que sedia todo
11111 municpio; mas, a elevao de uma vila categoria de cidade, na
1~1eira da emancipao do distrito e criao de um novo municpio
(pois, se um municpio pode comportar vrios distritos e, portanto,
diversas vilas, no pode haver um municpio com duas cidades),
11111 processo essencialmente poltico. Uma cidade pode ter, assim,
111uitos mi lhes ou apenas uns poucos milhares de habitantes, e uma
~1111plcs vila de um municpio populoso pode ser maior que a cidade
q111 sedia um outro municpio, em outra regio...
de se esperar, evidentemente, como eu j disse, que os critrios
111,11111 sentido e reflitam, ao menos substancialmente, a realidade do
11111~ m questo (no caso do Brasil, como se pode ver, o tipo de cri" 110 adotado se presta pouco a esse tipo de considerao). Entre29

mm

IJiJ

tanto, que "realid ade" essa que os limites formais adotados na


maioria dos pases deveriam, de algum modo, refletir? Uma cidade,
para ser uma cidade, precisa, mais que possuir um dado nmero de
habitantes x ou y, apresentar uma certa ce11tralidade eco11111ica (e,
adicionalmente, tambm poltica) e algumas caractersticas econmico-espaciais que a distinguem de um simples ncleo formado por
lavradores ou pastores, agrupados, em um habitat rural concentrado,
por questes histricas ligadas a tradies ou segurana. Em uma
cidade (ou, mais amplamente, em um ncleo urbano) se concentram
classes sociais no vinculadas, diretamente, agricultura ou pecuria, como os capitalistas, os trabalhadores (industriais, do comrcio
etc.) e os profissionais liberais. Da decorre que as atividades econmicas ali desenvolvidas sero diferentes das que se podem encontrar
em um mero povoado rural; j se viu que a vida econmica da aldeia
e do povoado gravita em torno da agricultura e da pecuria, e que na
aldeia e no povoado o comrcio e os servios so simplrrimos e voltados para o auto-abastecimento local, reduzindo-se a bens de consumo muito rotineiro (alis, muitos bens que os moradores de uma
cidade, especialmente de uma grande cidade, compram no comrcio
de bairro, em uma aldeia ou povoado costumam ser feitos em casa
pelos prprios habitantes, como o po e outros alimentos). Na cidade, em contraste com isso, a vida econmica diversificada, e to
mais diversificada quanto maior for a cidade. Ou quase...
Na verdade, a diversificao das atividades econmicas da cidade no depende s do seu tamanho demogrfico, do seu nmero de
habitantes. Ela ocorre, tambm, muito em funo da renda das pessoas que J moram (tanto da renda mdia quanto, evidentemente, da
sua distribuio), alm de outros fatores histrico-culturais. Alm da
diversidade econmico-espacial, tambm a sofisticao dos bens e
servios ofertados no ncleo urbano ter muito a ver com a renda
mdia da populao. E, por fim, a centralidade econmica, e, por
conta disso, o status do ncleo como um centro de gesto do territrio, ter, igualmente, no s a ver com a quantidade de habitantes,
mas, tambm, com a renda dos habitantes e outros fatores. Uma cidade mdia em uma regio pobre, como o Nordeste brasileiro, tender a

no apresentar comrcio e servios to diversificados e sofisticados


quanto uma cidade de mesmo porte em uma regio mais prspera,
com uma presena bem mais expressiva de estratos de renda mdios,
romo o interior de So Paulo ou o Sul do pas, por exemplo. E essa
mesma cidade localizada em uma regio brasileira comparativamente
prspera, se comparada a urna cidade de mesmo porte da Alemanha,
NC mostrar muito menos diversificada e sofisticada: uma cidade de
100.000 habitantes, mesmo em reas relativamente prsperas do
Brasi l, no costuma oferecer certos bens e servios tipicamente preNCnles em cidades alems do mesmo porte: servios mdicos altamente especializados, espetculos teatrais - e, no raramente, s vezes at
rnmrcio e servios menos sofisticados, abundantemente presentes
1m uma cidade alem desse porte, como livrarias, esto quase ou
101almente ausentes de uma cidade mdia-pequena brasileira. O tamanho demogrfico, assim, muito pouco explica sozinho: o que explica
'" caractersticas econmico-espaciais, em matria de diversificao,
\Ol"isticao e centralidade, o que ela representa enquanto mercado o tamanho do mercado potencial, claro, mas tambm o nvel e adis111buio da renda e as caractersticas culturais dos consumidores.
Resumindo: no que diz respeito s cidades, pode-se dizer, se me
pl.lrmitem a brincadeira, que, de maneira semelhante ao tipo de resposta que os sexlogos costumam dar para indivduos do sexo mast II lino, atormentados com certas preocupaes a respeito de sua,
digamos, performance sexual, "tamanho no documento", ou s o
1 111~ certo ponto - j que isso, por si s, no basta, ou de muito pouco
11dianta isoladamente ...
Ainda a propsito do assunto tamanho demogrfico, pode-se
rnmplementar o que se disse anteriormente neste captulo com uma
discusso introdutria sobre a questo da hierarquia urbana, a ser
I omplementada no Cap. 3, Da cidade individual rede urbana.
11idos j ouviram falar em metrpoles e megalpoles. Essas palavras
11vtstcm, por um lado, co11ceitos, usados h dcadas por estudiosos
d lls problemas urbanos e do planejamento e gesto das cidades, mas,
111> 1111.!smo tempo, so usadas popularmente, pela imprensa e pelo
111111dc pblico, freqentemente sem qualquer rigor. bem verdade

30

31

lffi.ITTl

fll1!11

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rnj

que, mesmo entre pesquisadores e estudiosos, persistem algumas


controvrsias conceituais ou operacionais; possvel e necessrio,
seja l como for, fornecer, aqui, um esclarecimento geral baseado em
conhecimentos que so, hoje em dia, largamente consensuais e ntre
aqueles que estudam as cidades.
Costuma-se pensar em uma cidade como uma entidade isolada e
fortemente individual: a cidade x (uma cidade qualquer, hipottica)
fo i fundada em algum momento, h alguns ou muitos sculos, cresceu, sofisticou-se ... Ocorre que as cidades, m uito freqenteme nte,
situam-se to prximas umas das outras que a interao entre elas vai,
medida que crescem e se relacionam mais e mais entre si, sofrendo
uma transformao importante. Com o tempo, j no se trata mais,
apenas, de que os bens produzidos em uma so vendidos na outra, ou
de que os habitantes de uma buscam certos servios mais especializados na outra, o u, ai nda, de que eventuais instituies polticoadministrativas, legislativas,judicirias, religiosas ou militares, sediadas em uma, exeram seu poder tambm sobre a outra. O que vai
ocorrendo que elas se situam to prximas e os vnculos entre elas se
tornam to inte nsos que certos fluxos passam a "costur-las" muito
fo rtemente e, no fundo, elas passam a existir como se fossem uma s,
ao menos sob vrios aspectos. No caso, o fluxo mais significativo o
de trabalhadores assalariados, que reside m em uma cidade e trabalham e m outra: o que se c hama de movimento pendular dirio (local
de residncia~ local de trabalho~ local de residncia), ou commuting em ingls. E m algumas situaes, so os prprios tecidos urbanos
de uma e de outra que, em dado momento, se e ncontram e se juntam;
tem-se, ento, o fenmeno da ~ conurbao. A partir da, est-se
diante de uma nica mancha urbana, ainda que espraiada por dois ou
mais municpios - o que significa que, formalmente, continuam existindo vrias cidades, cada uma sede de um municpio d iferente.
Uma aglomerao urbana se forma quando duas ou mais cidades passam a atuar como um "minissistema urbano" em escala local,
ou seja, seus vnculos se tornam mui tssimo fortes, no sentido acima
exposto. Em vrias situaes, tem lugar tambm uma conurbao,
e mbora no seja necessri o que isso acontea para se estar diante de
uma aglomerao. O importante que nenhuma das cidades envolvi-

das pode ser muito grande, a ponto de satelitizar completamente as


demais sua volta e possuir uma rea de influncia regional (ou, s
vezes, nacional e internacional). Aglomeraes se compem, tipicamente, de duas ou mais cidades mdias e pequenas. Exemplos de
ug lomeraes urbanas so abundantes no Brasil atual: Volta Redonda-Barra Mansa (RJ), So Jos dos Campos-Caapava-Jacare (SP),
'l'au bat-Trememb (SP), C ui ab-Vrzea Grande (MT), Ipatinga('oronel Fabriciano-T imteo (MG), Juazeiro do Norte-Crato-Barhal ha (CE), dentre outras tantas. O mapa da figura l traz para o leitor
localizao dessas aglomeraes, cuj os nomes aparecem, l, sim-

11

111ificados por meio da meno apenas a um dos municpios que compl)cm a aglomerao e m questo.
Se uma das cidades que formam uma aglomerao urbana cres l' e se destacar demais, apresentando-se como uma cidade grande e
rnm uma rea de influncia econmica, pelo menos, regional, ento
11n se est mais diante de uma simples aglomerao, mas de uma
11111rpole. Uma metrpole , tambm, por conseguinte, um "minis~1~1ema urbano" em escala local, polarizado, esse sistema, por uma
I Idade principal, que abriga o ncleo metropolitano (esse conceito
w 1~ explicado no C ap. 4). Conurbaes so freqentes, mas no so
1~11 itamente necessrias, da mesma maneira como no so impres< 111dfveis no caso das aglomeraes submetropolitanas: ncleos urbanos isolados podem e costu ma m faze r parte d as metrpo les . O
1111portante q ue todos os espaos urbanos se achem fortemente
I rn,iurados", especialmente com a ajuda da "linha" mais importante,
,111> l'SSe aspecto, que so os deslocamentos d irios de trabalhadores,
j'l ,111dc parte dos quais trabalha no ncleo metropolitano e reside nas
11l.1dcs vizinhas a este. Metrpo les so realidades scio-espaciais
q1w, na maioria dos pases, passam a ter sua existncia formalmente
1, 1 1111hccida: so chamadas, nos EU A, de reas metropolitanas (ou,
111 ,1 1~ prec isamente, "reas metropolitanas estatsticas padro") e, no
11 111,il , regies metropolitanas. O termo regio, adotado no Brasil,
1111<11', diga-se de passagem, l muito rigoroso, pois uma regio, conl11111w te nde a co ncordar a maioria dos autores, um espao de
d1i111'11Nf\cs normalmente maiores, situado entre a escala nacional (o
1' 11,) ,. 11 escala local (a cidade ou municpio, ou mesmo uma aglome1

32

00

33

rnTil

[J1J

Figura 1
BRASIL: PRINCIPAIS AGLOMERAES E METRPOLES E A
MEGALPOLE SO PAULO-CAMPINAS-SANTOS

111o ou uma metrpole); uma rea metropolitana corresponderia,


111a is corretamente, a uma escala "local ampliada", especialmente no
l' IISO de um pas grande. Isso, porm, no o maior problema: a difir 1ildade quando se quer e levar ao status de metrpole, aose criarem
I q ~ies metropolitanas formais, realidades que, no fundo, no pash llffi de aglomeraes, pois no possuem nem uma complexidade,
111Jm uma rea de influncia que justifique isso.
No Brasil, foram criadas, na dcada de 70, nove regies metropol1111nas: Belm, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de
[11111.:iro, So Paulo, Curitiba e Porto Alegre. No resta dvida de que

w !ratava de reconhecer, formalmente, a existncia de metrpoles de

-10

17

13

O Megalpole
Metrpole nacional
Metrpole regional
Aglomerao

1 Porto Alegre
2 Curitiba
3
4
5
6
7
8
9

Santos
Campinas
So Paulo
Rio de Janeiro
Belo Horizonte
Vitria
Salvador
10 Recife
11 Fortaleza
12 Belm
13 Braslia

1.000km

14 So Jos dos Campos


15 Taubat
16 Volta Redonda
17 Cuiab
18 lpatinga
19 Petrolina
20 Juazeiro do Norte

11110. Mesmo Belm, cuja regio metropolitana era, poca, restrita a


Ih11s municpios (alm de Belm, Ananindeua) e no possua complex1dudc l muito grande, apresentava grande centralidade, pois sua hin111lfi ndia (regio de influ ncia) se espraiava pela imensa rea da
A11111z nia. A razo desse reconhecimenlu formal das metrpoles era
tl11plu: explicitamente, tornar mais racional, sob o ngulo econmico,
li JH llSlao dos chamados servios de interesse comum, isto , servi1, 11~ que interessam a mais de um municpio e que podem ser mais
11111ligcntemente oferecidos por meio de uma gesto integrada, como
.11 b 1inao do lixo, o abastecimento de gua, a proteo ambiental e
111111os mais; para isso foi criada, em cada regio metropolitana, um
111 p,lo de planejamento e gesto. Mas havia, tambm, um objetivo no
11w l11do por trs da criao das regies metropolitanas: um objetivo
t\1 "'l'copoltica interna" , que dizia respeito ao interesse do regime insI il11do pelo golpe militar de 1964 em intervir mais facilmente nesses
q111 1ram os espaos-chave da vida econmica e poltico-social brasil, 1111, sem precisar e liminar mais ainda a j muito restrita margem de
11111111,l)ru de estados e municpios. e vidente, assim, que a criao e a
I' ,llll dessas primeiras regies metropolitanas se deram sob a gide
.!11111111ralismo e do autoritarismo - o que, inclusive, engendrou con11 1d11,0cs que contribuiriam para a fraqueza e o pouco crdito desses
11

gestores metropolitanos, os quais no dispunham de verdadei111111nomia financeira o u poltica, te ndo servido, e m decorrncia

li

11,

111 vn11~

pura muito pouco. Com a Constituio de 1988, a incumbncia

34

35

ITT'JITI
[[LI

im.1:n1

l1iJ

de criar regies metropolitanas passou da Unio para os estados. Essa


mudana representou e representa uma oportunidade positiva, pela
flexibilidade para a adoo de solues mais adaptadas a cada realidade local e regional, e implementadas de modo mais democrtico; por
outro lado, percebe-se que a falta de critrios tcnicos compartilhados
e a idia de que "ser metrpole" representa um grande status vm
levando criao de regies metropolitanas onde, de fato, talvez s
exista, no fundo, uma aglomerao de porte no-metropolitano ... Seja
citado, a ttulo de exemplo, o caso da Regio Metropolitana de Blumenau (SC), nucleada por uma simples cidade mdia. J outras
"novas regies metropolitanas", que eram reconhecidas como aglomeraes at a dcada de 80, so, indiscutivelmente, entidades metropolitanas: o caso da Regio Metropolitana de Campinas, no estado
de So Paulo, antiga aglomerao Campinas-Vinhedo-Paulnia~
Sumar-Indaiatuba-Nova Odessa-Valinhos. O mapa da figura 1 mostra a localizao tanto das "velhas regies metropolitanas", herdadas
dos anos 70, quanto de algumas "novas regies metropolitanas", criadas posteriormente Constituio de 1988 pelos respectivos estados.
Tendo expl icado o que so as metrpoles, possvel, agora,
explicar o que so as megalpoles, termo popularizado pelo gegrafo francs-americano Jean Gottmann , a partir da dcada de 60.
comum ouvir frases do tipo "a megalpole de So Paulo", como se
uma megalpole fosse algo assim como uma "cidade monstruosamente grande". Isso , para dizer o mnimo, muito impreciso. Uma
rnegalpole , tambm, urna espcie de "sistema urbano" fortemente
integrado, inclusive por fluxos de deslocamento dirio de passageiros
na base de transportes coletivos de massa. S que, diferentemente das
metrpoles, as rnegalpoles no so, do ponto de vista fsico, entidades locais; elas se espraiam por reas muito maiores, em escala regional ou, pelo menos, sub-regional. De fato, megalpoles so formadas
por duas ou mais metrpoles, que se acham "costuradas" por fluxos
de modo semelhante como cada metrpole individual se acha articulada internamente. Por isso um etTO chamar So Paulo, por exemplo, de megalpole: uma megalpole no se confunde com uma
metrpole; ela um conjunto de duas ou mais metrpoles muito pr-

36

00

111mas umas das outras e muito fortemente articuladas entre si. Megalnpoles mundialmente conhecidas so, para citar alguns exemplos, a
do Yale do Ruhr, na Alemanha; Tkio-Yokohama-Nagoya-OsakaKobc, no Japo; a "Boswash" (Boston-Washington), nos EUA; a
< 'liicago-Detroit-Cleveland-Pittsburgh, igualmente nos EUA; e a
"Sansan" (Santa Brbara-San Diego), tambm nos EUA.
E quanto ao eixo So Paulo-Rio? Formaria ele uma megalpole?
hun Gottmann j havia previsto, no comeo dos anos 70, o desenvolv11ncnto de uma megalpole ao longo desse eixo, e vrios autores
111~1umam referir-se a ele como sendo uma megalpole. Eu no diria
q11l' isso est inteiramente errado, ou que um completo absurdo;
11111\, deve-se admitir que , no mnimo, um caso duvidoso. O que
!lu las as megalpoles anteriormente mencionadas tm em comum ,
p11'l'isarnente, um "costuramento" ao longo de todo o eixo, por meio
,h l'Xcelentes rodovias e, tambm, por transporte de massa: especifiI n111entc, por meio de trens, inclusive trens de alta velocidade, que
I'' 111111cm que uma distncia de duas ou trs centenas de quilmetros
, 111 vencida em relativamente pouco tempo (duas horas, no mxi11111) Nos casos europeu e japons isso particularmente verdadeiro.
1 ~11 fnlta ao eixo Rio-So Paulo, exatamente porque falta a facilita~111 1dos fluxos de passageiros por intermdio de uma articulao fer111v1111'i u com base em trens modernos e de grande velocidade. A
111111ll' area , pelo custo do transporte, muito seletiva, notadamente
11111111 pas como o Brasil. Quanto ao transporte rodovirio (carros e
11111h11s), alm de ele no garantir com a mesma facilidade um "costu, 111w1110" macio entre espaos situados a grandes distncias um do
11111111, h que se levarem conta que a eficincia da ligao rodoviria
11111 R,o e So Paulo no a mesma de uma grande via expressa
111 ,, h umcricana ou europia. Com efeito, a barreira para movimen" 1 11111dulares para alm de cada uma das metrpoles que polarizam
" 1 11 Rio-So Paulo evidente. bem verdade que h movimentos
I" 11d11 l11rcs que extravasam os limites formais das regies metropoli111111~. l'Specialmente no mbito das tendncias recentes de "fuga da
1111 l111pnlll", em que pessoas buscam uma melhor qualidade de vida
" , ,1 l1
11,111rnm-se mais e mais do ncleo metropolitano e de sua perifed , p11l1n, embora mantendo a possibilidade de uma interao diria

37
mLITTl

UiJ

com o ncleo: o que ocorre com muitos cariocas que se mudam


para Petrpolis (que fez parte, at 1987, da regio metropolitana formal, mas hoje no pertence mais a ela), ou com paulistanos que vo
residir, por exemplo, em Jundia. S que, nesses casos, o que se tem
, meramente, um ligeiro espraiamento da prpria metrpole, e no
fluxos que extravasam muito os seus limites. Mais consistente, por
conseguinte, que o eixo Rio-So Paulo, em matria de megalpole,
seria o eixo formado pelas metrpoles de Campinas, So Paulo e
Santos. Esse eixo, mais que o Rio-So Paulo, seria, mais apropriadamente, passvel de ser chamado de a megalpole brasileira, representada no mapa da figura 1. Uma figura pode no valer sempre mais
que mil palavras, mas que ajuda, ah, isso ajuda; por isso, os modelos
grficos da figura 2 tencionam complementar as definies apresentadas verbalmente neste e nos pargrafos anteriores.
.
Por ltimo, o termo "megacidades" fez sua apario h alguns
anos, popularizado a partir do ambiente anglo-saxo (megacities). No
se trata, propriamente, de um conceito, mas apenas de uma palavra
sugestiva - ou, diriam os mais custicos e mordazes, garrafa nova para
vinho velho ... O fato que aquilo que se chama de "megacidades" so,
no fundo, metrpoles. Talvez para chamar mais a ateno do grande
pblico, tomando um termo de uso to comum (cidade) e acrescentando-lhe um prefixo capaz de emprestar-lhe fora dramtica (mega).
passou-se a usar, com freqncia, essa expresso, sem que ela, via de
regra, seja explicada ou conceituada. A rigor, no passa de um termo
suprfluo, do qual bem se pode abrir mo. Entretanto, agncias pblicas e privadas de financiamento de pesquisas e a imprensa apreciam
muito mais quando as coisas vm embaladas com um papel mais vistoso e atraente, no verdade?... Em uma era onde a comunicao
(quase) tudo, e onde no se faz pesquisa de envergadura sem financiamentos especficos (e, claro, a divulgao na mdia sempre d um
empurrozinho), poucos so aqueles dispostos a tentar evitar que o
rigor seja, sem grandes cerimnias, sacrificado no altar da retrica.
E chega-se, assim, quase ao fim deste longo captulo inicial
sobre o conceito de cidade. Mas ainda ficou faltando uma coisa, sem
a qual, mesmo sem querer complicar em demasia, algo importante
estaria sendo omitido. Sem prejuzo para o que foi dito anteriormen-

38
ITTLf.fil

UlJ

Figura 2
DO CENTRO ISOLADO A MEGALPOLE: MODELOS GRFICOS

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2

~:;:!:':PJ
3

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~
4

5
1 Centro isolado

2 Aglomerao com conurbao


3 Aglomerao sem conurbao
4 Metrpole

5 Megalpole
(A~ seta~ indicam movimento pendular dirio
res1dnc1a---.local de trabalho---.residncia)

39
iffi[:1]

UlJ

te a respeito da natureza da cidade, o fato que, sempre pensada em


contraposio ao "campo", essa natureza precisa ser considerada,
atualmente, luz da enorme redefinio pela qual a oposio campo/
cidade passou nas ltimas dcadas.
A presena cultural da cidade nas reas rurais , tambm no
Brasil, muito grande, e cada vez maior, valores e modas, veiculados
pela televiso, "conquistam" o campo e vo influenciando hbitos e
subvertendo ou minando tradies, mesmo nas mais remotas regies.
E, apesar disso, no Brasil ainda h muitssimos povoados rurais bem
tradicionais e reas pouco "urbanizadas" no sentido da penetrao de
hbitos urbano-metropolitanos "modernos" difundidos pelos meios de
comunicao de massa e pela economia capitalista em geral. O quadro
diferente, porm, quando se olha para um pas como, por exemplo, a
Alemanha de hoje. A frase "a cidade est em todo canto; a cidade n~o
est em lugar algum", usada por um articulista escrevendo sobre problemas das grandes cidades no semanrio alemo Die Zeit (Hanno
Rauterberg, "Leben im unheimlichen Heim; Die Zeit, 02/05/2002),
est longe de ser um jogo de palavras vazio. Em um pas comparativamente pequeno e densamente povoado como a Alemanha, onde
aldeias e cidades se sucedem separadas por no grandes distncias
entre umas e outras, e onde a vida nas aldeias se modernizou e " urbanizou" incrivelmente desde os anos 50 (infra-estrutura tcnica e social
bsica quase sempre toda ela presente e de tima qualidade, afluncia
econmica, abundncia de faci lidades da vida moderna etc.), a paisagem apresenta, sim, contrastes "funcionais" (belos campos cultivados
e bosques intercalados com aldeias e espaos de maior adensamento,
que so as cidades de todos os tamanhos) e demogrficos (maior uu
menos densidade), mas no os crassos desnveis culturais e de modo e
padro de vida que ai nda se podem observar em um pas perifrico ou
semiperifrico. claro que, mesmo em um pas como a Alemanha,
existem cidades em contraposio quilo que no cidade - sejam as
aldeias, sejam os campos de cultivo, as fl orestas etc., no contexto geral
do que se poderia, ainda, chamar de "campo". Contudo, em uma situao assim, como se a cidade, embora continuasse podendo ser delimitada "geograficamente", tivesse sua presena cultural e econmica
fortemente diluda por todo o espao.

2. Quando e como surgiram


as primeiras cidades?

111

Nas cincias sociais, mu itas vezes fica mais fcil explicar um


1111ito apresentando a gnese daquilo que se deseja dar a conhecer.

l '11 1 1 ~su razo, o presente captulo , em parte, no apenas um pros11


' 11 1 11H.:nto

lgico, mas uma complementao do contedo do anteOs fenmenos sociais so "densos de histria" e s so comi'" 1 11, rvcis luz da hist ria; alm disso, como se transformam, em
11.,11de parte, muito velozmente, a perspectiva histrica atenta
11111

' 111
1111 111,

,.ti para que se verifique se, ao falar de um determinado fen1k\;adas ou sculos depois, est se falando, ainda, do mesmo

1, 11,, 11w 110, ou, quem sabe, de duas coisas que, no fundo, so bem dis-

40

41

00

00

..

cada vez maiores, gerando-se, inclusive, um excedente alimentar. Se,


na base de uma simple s economia de caa e coleta, todos os membros

local. A R evoluo Urbana foi situada por C hilde no terceiro mil nio

adul tos do grupo eram obrigados a participar da busca e obteno de

antes de Cristo - logo, alguns milhares de anos aps o surgimento

alimento, sob pena de morrerem de fome se no o fizessem, a possi-

dos mais antigos assentamentos com caractersticas urbanas, como


Jeric e atal Hyk.

bil idade tcnica da obteno de excede ntes propiciava condies

44

00
'

para que certos indivduos se desvinculassem da produo, dedican-

Cumpre sublinhar que o aparecimento e a proliferao de c ida-

do-se a o utras funes em carter "especializado" : fazer a guerra,

des pelo mundo antigo, na Mesopotmia, no vale do Nilo e no vale

c uidar dos servios reli giosos etc. A cidade, e m contraposio ao cam-

do rio Indo, e mais tarde na China, na bacia do Mediterrneo e na

po, que de o nde vinham os al imentos, foi se constituindo, paulati-

Amrica das civilizaes pr-colombianas, teve relao no apenas

namente, como um local onde se concentravam os grupos e classes


cuja existncia, enquanto pessoas no-di retamente vinculadas s ati-

rnm as inovaes tcnicas que permitiram a agricultura e a formao


de excedentes alimentares capazes de alimentar uma ampla camada

vidades agropasto ris, era tornada possvel graas possibi lidade de

de no-produtores diretos - com destaque, aqui, para a irrigao em

se produzirem mais al imentos do que o q ue seria necessrio para alimentar os produto res d iretos.

111uclanas da ordem social em geral. A regra foi a de que o surgimen-

Para o arquelogo australiano V. Gordon C hilde, o perodo de


proliferao das c idades subseqe ntemente Revoluo Agrcola do

111 das primeiras c idades se desse entrelaado com o aparecimento de


lrn mas cen trali~adas e hierrquicas de exerccio do poder; e, com

neoltico foi, em si, uma revoluo: uma verdadeira "Revoluo


Urbana". Talvez essa expresso seja um pouco exagerada, princ ipal-

1k i10 , foi justamente a formao de sistemas de domi nao, com


111011arcas e seus exrcitos, que permitiu, ao lado das inovaes tcni-

mente porque Childe deu a e ntender, em seus li vros A evoluo cul-

111s, uma crescente extrao de excedente alimentar, sobre o funda-

tural do homem e O que aconteceu na histria (vide Bibliografia


comentada), que a "Revoluo Urbana" e a "Revoluo Neoltica"
que a precedeu teriam ocorrido de um mpeto s, no Oriente Mdio,
qua ndo hoje se sabe que a agricultura, assim como o fenmeno urbano, se desenvolveu em locais diferentes e em momentos diferentes
(houve, por assim dizer, ento, vrias "re volues neoltic as" e vrias
"revol ues urbanas"). Se se quiser, porm, apenas c hamar a a teno
para um processo de passagem da produo de subsistncia para uma
produo de a li me ntos visando tamb m o comrcio externo , assim
como para o surgimento da manufatura e specializada, tudo isso te ndo
um rebatimento demogrfico sob a forma de uma ace ntuada expanso da populao - fundame ntos sobre os quais se daro a transformao de povoados de agricultores em cidades e a proliferao destas - , ento no h problema em se falar e m "revoluo" urbana, para
sublinhar a im portncia do fenmeno, desde que no se pense que e le
teve lugar de uma vez por todas, irradiando-se a partir do mesmo

larga escala -, mas com mudanas culturais e polticas profundas,

llll'lllO da opresso dos produtores diretos. Os imprios da Antipll idade foram, alm disso, disseminadores de cidades, como observ, 111 G ideon Sjoberg (ver a coletnea Cidades - a urbanizao da

li11111r111idade, na Bibliografia comentada), pois elas eram pontos de


11p11io para manter a supremac ia militar nas regies conquistadas.

I l registro de umas poucas excees a essa regra de tendncia


d, l'Cntralizao de poder na esteira da gradual sedentarizao e do
d, 1111nio da agricultura, como a antiga Islndia e a Cabila, no norte da
\ 1)'t" lia e nas terras a ltas do Marrocos. Em geral, contudo, acabou se

d1w 11volvendo, em muitos loca is simultaneamente, um aparelho de


1 11r1tfo , vale dizer, uma estrutura de poder e de dominao formalizad,1, dltcrminando, no seio da sociedade, uma separao rgida e auto-

1" 1p11u vel entre dirigentes e dirigidos, entre "elite" e "povo". Ao


111 11 ~ 0 da histria da humanidade, poucos foram os momentos e,
1l111111t10, perodos mais ou menos d uradouros, em que essa separa' h 1.
1

11111a vez instalada, foi desafi ada e superada; merecem destaque

11d,1dcs gregas da Antigidade onde vigorava a """-? democracia

45
lillJ.Til

U1J

direta, em substituio monarquia e aristocracia, especialmente


Atenas. O fato de terem existido poucas exceties a essa regra, evidentemente, no quer dizer que ela no possa ser desafiada e superada novamente.
Recapitulando: as primeiras cidades surge1n como resultado de
transformaes sociais gerais - econmicas, tec\'iolgicas, polticas e
culturais - , quando, para alm de povoados de agricultores (ou
aldeias), que eram pouco mais que acampametitos permanentes de,
produtores diretos que se tornaram sedentrios, surgem assentamentos permanentes maiores e muito mais compleiws, que vo abrigar
uma ampla populao de no-produto res: governantes (monarcas,
aristocratas), funcionrios (como escribas), sacerdotes e guerreiros.
A cidade ir, tambm, abrigar artesos especiallzados, como carpinteiros, ferreiros, ceramistas, joalheiros, teceles~ construtores navais,
os quais contribuiro, com suas manufaturas, pa~a O florescimento do
comrcio entre os povos. Em vrios sentidos 1 por conseguinte, a
cidade difere do tipo de assentamento neolttc 0 que a precedeu,
menos complexo.

46
;jj_[IT]

rnJ

Entretanto, as cidades continuaram a transformar-se durante os


milnios seguintes ao seu aparecimento, e continuam a transformarse sem cessar. A Revoluo Industrial na Euroi:1a, a partir de fins do
sculo XVIII, e, mais amplamente, os processos de industrializao
pelo mundo afora, tambm ti veram um impa,cto enorme sobre o
tamanho e a complexidade das cidades. Muito embora haja razes
para se usar o mesmo termo para assentamento~ to diversos quanto
a pequena Ur, no alvorecer do fenmeno. urbanc:i, e uma grande cidade contempornea, de se perguntar: poder ~ conceito de cidade
passar inclume, inalterado, por milnios de tl'ansformaes materiais, polticas e culturais? Presumir que sim se,'ia acreditar que nossos conceitos no so histricos, mas sim etern~s e imutveis, 0 que
seria um equvoco. Da surgirem, em momentos diferentes, novos
termos e novos conceitos, como conurbao, m~trpole e megalpole, que se acrescentam e enriquecem a nossa vi~o do que seja ou do
que pode ser o fenmeno urbano. Presentement~. com a urbanizao
acelerada do campo, e m sentido econmico, material e cultural.j se

diz, como se viu no captulo anterior, que a cidade, de certa maneira,


''est em toda parte"; no s seus limites fsicos se mostram cada vez
mais complexos, com a conurbao e a integrao de cidades formando aglomeraes, metrpoles e megalpoles que se superpem a
uma malha territorial formada, s vezes, por muitas dezenas de municipalidades, mas, alm disso, a prpria idia de um "campo" como
um meio muitssimo diferente da cidade em matria de relaes de
produo, alm de culturalmente tradicional e retrgrado, que vai
perdendo a sua validade. Estamos caminhando, em grande parte,
mais para diferenas de grau e intensidade, deixando para trs a oposio cidade/campo em sua verso mais rgida. Por outro lado, dentro
de muitas grandes cidades, fenmenos de dissoluo, ou de fragmen1ao sociopoltico-espacial, vm tendo cada vez mais lugar (ver,
\llbre isso, o Cap. 5). O futuro dir que conseqncias tudo isso ter
pura a prpria idia de "cidade".

47
;jj_[IT]

rnJ

3. Da cidade individual
rede urbana

'

~~.....--'....---+---~,,,--~
/\ exposio girou, at agora, em torno de cada cidade, indivi11i11ilmcnte considerada - sua economia, sua influncia, a gnese das
11111111:iras cidades ... No mximo, foram mencionadas essas articulai, 1)1, muito densas de cidades (a ponto de, em certo sentido, existirem
I p1,1w que como uma nica cidade) que so as metrpoles e as megal111111lcs, que se estendem, respectivamente, em escala local ("local
1111pliada", pode-se dizer) e sub-regional ou regional. Ocorre, porm,
q111 1x istem, no mundo todo, muitas dezenas de milhares de cidades,
, , 111 alguns pases muito grandes, como o Brasil, milhares de cidatl1 , Mesmo no interior de um nico pas, claro que nem todas elas

49

lilllITl

rnJ

se arti cul am diretamente entre si; algumas se articulam muito forte e


d iretamente entre si (mediante meios de comunicao e transporte.
permitindo fluxos de informao, bens e pessoas), mas outras se articulam apenas indi retamente. por intermdio de o utras cidades. O que
importa que, seja no interior de um pas, sej a em escala planetria ,
nenhuma cidade existe totalmente isolada, sem trocar informao e
bens com o mundo exterior; caso contrrio, no seria uma cidade. De
maneira muitss imo varivel no q ue concerne ao tipo de fluxo e,
sobretudo, intensidade dos fl uxos, todas as cidades se acham ligadas entre si no interior de uma rede - no interior da rede urbana.

De pequenos centros quase sem centralidade, que somente intlu' m1a111 o territrio do municpio (ou seja l o nome que, dependendo
d11 pas, tiver a unidade poltico-administrativa local) onde se encon11.1 111 c para o qual servem de sede, at grandes metrpoles, ao longo
il11 1cde urbana se d istribuem ncleos urbanos com tamanhos e cen1111l1tlades muito variadas. Dois papis so desempenhados por esses
11111lcos; para usar as felizes expresses de Armstrong e McGee (ver
lllhliografia comentada), os papis de teatros de acumulao e de
, ,111ros de difuso.
Na qualidade de teatros de acumulao, as cidades exercem v-

costume falar da rede urbana como se ela fosse um fenmeno,


por assim dizer, "nacional", pelo fato de que os estudos e classifica-

11,1~ funes eco nmicas. Para comear, a funo de extrao e cap1,1r,10 do excedente alim entar. O excedente alimentar extrado do

es das cidades ao lo ngo da rede urbana, usualmente, possuem uma


abrangncia nacional: rede urbana brasileira, rede urbana alem, rede
urbana argentina ... Todavia, todos sabemos que as cidades d e um

, 1111po (gneros agropecurios e extrativistas) no ne las somente


, 1111Numido, mas tambm armazenado (s vezes em diversas cidades,
111 longo de uma cadeia de distribuio e comercializao) e, comu1111111c, benefi ci ado (embalado e processado industrial mente) nos
, , 111 ros urbanos. T radic io nalmente, no os pr prios produtores

pas esto, direta ou indi retamente, ligadas s cidades de outros pases. Os bens que so consumidos, ou as informaes trocadas entre
empresas, o dinheiro enviado por emi grantes e os lucros remetidos
por fil iais de empresas multinacionais - tudo isso, e muito mais , mostra como, mesmo na escala internacional, as cidades esto articuladas
entre si. econmica, cultural e at politicamente. Em ltima anlise,
a rede urbana um fenmeno que pode e deve ser examinado em
diferentes escalas: pode fazer mu itssimo sentido em se falar de uma
rede urbana regional, especialmente em uma regio com uma forte
coerncia de identidade scio-espacial e de fluxos internos; contudo,
e la ser, ao me smo tempo. um subconjunto de uma rede urbana
maior, nacio nal, a qual, por sua vez, estar menos ou mais fortemente articul ada no interior de uma rede urbana g lobal.

1111 111s, mas sim atacadistas baseados em pequenas cidades que reco1111111 os produtos do campo e os repassam para serem distribudos
11111

11\ kvam para serem beneficiados e p rocessados. Os atacadistas assu1111111, com isso, o papel de intermedirios no processo de distribuio
, , 11111ercializao; sq os popularme nte chamados "atravessadores".
1 1111 c o campo e a mesa do consumidor final, nas cidades pequenas,
1111dias e grandes da rede, se estabelece toda uma cadeia de distribui~111 1e comercializao em que os agentes, em nmero bem varivel,
111 os comerciantes atacadistas, os transportadores (no caso de no
, 11111 os prprios atacadistas) e, por fim , os comerciantes varejistas.

A rede urbana no " inocente", no sentido de ser um "simples"


conjunto de c idades ligadas entre s i por fl uxos de pessoas, bens e
informaes, como se isso fosse coisa de somenos importncia ou
nada tivesse a ver co m os mecanismos de explo rao eco nmica e

exerccio do poder existentes em nossas sociedades. Por intermdio


da rede urbana, tendo-a como suporte, a gesto do territrio se exer-

1,

ce. Vamos examinar isso co m calma, paulatinamente.

11m outro atacadista, baseado em um centro maior (o qual, por sua

, 11.. redistribuir parte dos produtos para centros ainda maiores), ou

,111.1 um desses agentes econmicos exigir, naturalme nte, a s ua

11111111cm de lucro. Quanto maiores as distncias mas, tambm, quan1, 1 111ais complexa for essa cadeia, mais caro sair o produto para o
11 1M11n idor final, sem que o produtor primrio esteja se beneficiand11 111m isso. Como bem lembra Roberto Lobato Corra, em se u livro
1 , ,,/" 11 rbana ( vide Bibliografia comentada), as grandes redes de

50

51

lilllITl

lilllITl

l1lJ

l1lJ

supermercados vieram introduzir um elemento diferente nesse quadro. Possuindo esquemas prprios de distribuio e desincumbindose tanto do atacado quanto do varejo, elas simplificam a cadeia e eliminam os intermedirios. Os produtores, contudo, como salie nta
Corra, no ganham com isso ; de fato, o que ocorre que essas redes
de supermercados aufere m margens de lucro excepcionais. E em
alguns casos, at parte da produo (fazendas p rprias) e do processamento e embalagem dos produtos se d sob os seus auspcios.
A drenagem da re11dafu11diria, ou renda d a terra, outra funo
das cidades associada ao papel de teatros de acumulao. A renda da
terra o tipo de remunerao obtido pelos proprietrios rurais, via de
regra gra ndes proprietrios, que arrendam suas terras a terceiros.
Muitos proprietrios, particularmente em pases perifricos e semiperifricos, entregam suas propriedades nas mos de capatazes e administradores ou as arrendam, total ou parcialmt:nle, passando a resid ir,
a maior parte do ano, ou mesmo em carter definitivo, nas cidades.
So proprietrios ausentes quase todo o tempo de suas terras, sendo
c hamados, por isso, de absentestas. Seus rec ursos, que poderiam ser
reinvestidos no prprio campo (modernizando a lavoura e a criao,
mel horando as condiP.s de vida e de trabalho dos empregados etc.),
so, na realidade, em grande parte gastos com o prprio consumo pessoal e familiar (compra de ma nses e de bens de consumo diversos,
gastos com viagens), e, em grande parte, empregados em investimentos na prpria cidade (terras urbanas, para serem mantidas, especulativamente, como reserva de valor; apartame ntos e outros imveis para
serem alugados; investimentos no mercado fi nanceiro).
Por ltimo, mas no com menos importncia, assoma a funo
das cidades, ainda enquanto teatros de acumulao, como locais onde
se d a acumulao propriamente d e capital. Essa acumu lao de
capital se fundame nta, em princpio, na indstria de transformao, e,

52
ITTllITl

rnJ

Na qualidade de centros de difuso, as cidades se apresentam, ao


l, 11110 da rede urbana, como suportes para a disseminao de bens e
1d, 11h, das cidades maiores para as cidades menores, at c hegar ao
1

1111po. Os bens so os mais variados produtos fabricados nascida-

ol, , lnnto bens de consumo (ou seja, bens que sero consumidos d ire-

t,111111111c: roupas, alimentos, brinquedos, eletrodomsticos etc.) quan111 lll11s de produo (que so aq ueles bens que servem para produzir
111 11 1os bens, como mquinas industriais). J as idias podem ser as
1 1111 chamadas "inovaes" tecnolgicas (as quais, nos pases do
l 11c1,;i ro Mundo", freq entemente no passam de pacotes de tecno1111'111 j ultrapassada, comprados dos pases centrais) mas, tambm,
111111 l11s e d iretrizes e informaes das sedes de grandes empresas para
1 ~1111s fi liais e plantas industriais, alm de informaes e dados refe1, IIIL'~ u ll uxos financeiros, no interior da rede bancria.
Por ludo isso e com tudo isso, nota-se, muito faci lmente, que o
1111po se acha submetido cidade, do ponto de vista econmico, e
11,111 ~< do ponto de vista econmico - muito embora, em um pas
t 1 1111)pcrifrico como o Brasi l, e principalmente em suas regies
111111, pobres e tradicionais, a vida poltica local e regional seja muito

il11, t.1mcnte infl uenciada ou at determinada por proprietrios fundi 11 1ns (geralmente absentestas), chegando a sua infl uncia at a
, ., 11 1.i nacional.
Nilo foi sempre que a cidade .exerceu esse papel to e cada vez
111.11~dom inante. Na Europa medieval, durante a vigncia do ~ modo
,/, ,,,,,duo feudal, o campo era largamente auto-suficiente em
11111111la de produo de bens os mais diversos: de roupas simples a
11111,1111cntos, selas, ferrad uras e arados, grande parte dos bens de con111110 e produo era man ufaturada nas dependncias ou em anexos
,1111 ,1~1clo senhorial ou pe los prprios servos da gleba. Q uanto a ali1111 111os. e nto, obviamente, nem se fala: prod utos que o moderno

nesse mbito, pode-se dizer, na explorao do trabalhador industrial.


Mais amplame nte, ela re mete , tamb m, s atividades tercirias

1111l1ll'lramente, no comrcio de bairro, eram, ento, produzidos em

(comrcio e prestao de servios), sem contar que no se devem

, 1

esquecer as relaes de dependncia entre o setor produtivo e o sistema bancrio-financeiro.

, lh11lino, especialme nte o morador de uma grande cidade, adquire,

,1 No me refiro, aqui, apenas a coisas como po e compotas (que,

111 ,1 i,c de passagem, ainda hoje so, e m grande parte, produzidos em


1 11, nus reas rurais), mas ao fato de que no havia uma "indstria

53
lill.ITTl

rn_j

de alimentos", como hoje em dia, a receber matrias-primas do

As cidades de uma rede urbana so agrupadas em categorias

campo, process-las e reenvi-las s cidades e at de volta ao campo .

, Jh'l' fic as, conforme a sua centralidade. No Brasil, o estudo Regies


,/, 111/l1111cia das cidades, publicado em 1987 pelo IBGE (ver Biblio11111111 comentada), consagrou uma hierarquia que vai do cemro de

Havia, nos burgos e nas c idades, mercados, permanentes e te mporrios (as feiras), onde produtos fabricados por artesos da prpria
c idade ou oriundos de outros centros, s vezes de pases distantes e
longnquas terras, eram comercializados. Isso no era, porm, sufi-

11 .il 1ilade). passando pelo ce11tro sub-regio11al, pela capital regional e


l 1111il111cnte, metrpole nacional. claro que essa hierarquia somen-

relativamente cidade no que se refere poltica e, at mesmo, cul-

II p111 a na metrpole nacional por ser o estudo do IBGE uma radio-

tura. Os modernos Estados nacionais ainda no se haviam formado, e


os senhores feudais eram amplamente soberanos em suas possesses.

l(llll

No Brasil, onde no existiu, propriamente, feudalismo, um certo

1111111' partem fluxos (informaes, ordens etc.) e os quais recebem

paralelo com essa situao pode ser enco ntrado nos grandes enge-

1111

I" 111 ,entro submetropolitano, at chegar metrpole regional e,

11111111 da rede urbana nacional; no entanto, centros de nvel hierro ainda mais elevado, situados fora das fronteiras do pas, dos
11\

1 ,

(mercadorias, lucros, informaes etc.) que articulam as di ver-

urnomias nacionais, podem ser encontrados: o caso, especial-

econmico.
Karl Marx e seu colaborador, Friedrich Engels (ver Bil;>liografia

111111ll', das chamadas~ "cidades globais", com destaque para Nova

comentada), estiveram entre os primeiros a mostrarem, a inda em


meados do sculo XIX, que o modo de produo capitalista ir trazer
uma inverso de papis: a cidade, que durante o fe udalismo tinha

11111 1!11.ida criteriosamente, lastreada teo ricamente na Teoria das

expresso econmica limitada e expresso poltica, em regra, limita-

11,111", ~ Segunda G ue rra Mundia l), em que foram levantados, por

dssima, lutando para preservar a sua autonomia (enquanto " cidade

1111111 de amostras, os fluxos de des locamento para a aquisio de

livre" ou "burgo livre") perante os senhores feudais, passaria a ser,

111 11~ ,. servios (quem adquire o qu e onde) que revelam as centrali-

gradualmente, "senhora" do campo, submetendo este. No decorrer

I uh t.: reas de infl uncia variveis dos diversos centros urbanos.

l1111Jlll', Londres e Tquio. Seja como for, trata-se de uma pesquisa


1 11111litlades Centrais de Walter Christaller (e em uma reviso crtica

,h l.1 , l'laborada por diversos autores no decorrer das dcadas poste-

dos sculos XIX e XX o campo mostrar-se- cada vez mais depen-

t > , e ferido estudo de 1987, ele prprio um_a reviso de um estu-

dente das cidades, e em particular das grandes cidades: dependente

1, ,11111:rior do prprio IBGE (a Diviso do Brasil em regies funcio-

das mquinas e ferramentas produzidas nos centros urbanos; depen-

''"' 111IH11ws, do comeo da dcada de 70), sofreu, na dcada de 90.

dente dos conhecimentos tcnicos e tecnolgicos gerados em univer-

111111 .1111alizao, promovida pelo IPEA em parce ria com o IBGE e o

sidades, laboratrios e centros de pesquisa situados, via de regra, em


cidades; dependente dos fertilizantes qumicos, dos agrotxicos e das

111 llli11l1 de Economia da UNICAMP (vide referncia na Bibliogra11,1 1 umcntada [IPENIBGE/NESUR, 1999)), c uja qualidade, po-

sementes selecionadas produzidos nos ncleos urbanos; e, por lti-

1 111 p11rcce ser inferior da verso dos anos 80. Apesar de possuir

mo. dependente do sistema bancrio, por meio do crdito ao produtor

,1, 11111>1\ virtudes, como a tentati va de estar em sintonia com as mais

(sem o qual a moderna agricultura de mercado no opera) e do crdi-

, , 1111, abordagens tericas sobre a urbanizao e a dimenso espa-

to em geral, sistema esse ancorado ao longo da rede urbana, onde as


sedes dos grandes bancos nacionais (inclusive estatais) e estrangeiros
se articulam com as agncias de pequenas cidades.

&[]

(s ituado um nvel acima do s imples centro local, quase sem cen-

ciente para caracterizar uma clara dominncia da c idade em relao


ao campo. Alm disso, o campo era, tambm, fortemente autnomo

nhos do perodo colonial, largamente auto-suficientes sob o ngulo

54

, 11111

I li

il11 l't'Onomia, o trabalho apresenta algumas deficincias concei-

111 ,1 , 111ctodolgicas. Em decorrncia disso, o resultado dessa radio111111 d11 rede urbana brasileira foram, s vezes, posies bastante

55

00

questionveis, como a elevao de antigas metrpoles regionais


(como Fortaleza, Recife, Salvador, Curitiba, Belo Horizonte e Porto
Alegre) categoria de metrpole nacional e a atribuio do ttulo de
"metrpoles globais" (s vezes chamadas, no prprio estudo, de
"metrpoles mundiais") s duas metrpoles nacionais, So Paulo e
R io de Janeiro. Que projeo econmica de monta verdadeiramente
em escala nacional possuem essas metrpoles regionais, especialmente Fortaleza, cuja rea de influncia imediata se restringe ao
Cear e ao oeste do Rio Grande do Norte, que justifique a sua classificao como metrpoles nacionais? E como ignorar o fato de que a
pretendida "metrpole global" (ou " mundial") do Rio de Janeiro vem
perdendo importncia at mesmo como metrpole 11acio11al, perante
So Paulo? fcil ver que um estudo que merea tais ressalvas, mas
que acaba servindo de referncia para vrios tipos de usurios, contribui para gerar, ao lado do problema j mencionado a props ito da
criao de novas regies metropolitanas, um panorama classificatrio e terminolgico contraditrio. Como se j no bastasse a confuso
crescente em torno do que seja uma metrpole, agora, a depender de
estudos como esse, j no se ter muita clareza, igualmente, sobre
quais so as reais condies para que algo possa ser chamado, sem
maiores dvidas, de metrpole nacional o u "global".
Vou me permitir ser redundante, para reforar: uma metrpole
nacional possui uma rea de influncia que abrange todo ou quase
todo o territrio nacional. Em outras palavras: os bens e servios nela
produzidos e por ela ofertados so distribudos nacionalmente e
comercializados e vendidos em todas as regies do pas, de maneira
inequvoca e insofismvel. esse, exatamente, o caso de So Paulo,
e, de maneira cada vez mais plida medida em que se sucedem os
anos e as dcadas, tambm do Rio de Janeiro. So essas as duas nicas metrpoles nacionais brasileiras, sendo que a distncia entre a
primeira e a segunda aumenta mais e mais; So Paulo , crescentemente, o grande centro de gesto do territrio no Brasil. Ao mesmo
tempo em que o estado de So Paulo (e, de forma menos intensa, o
Centro-Sul do pas) assiste, h trs dcadas, a uma significativa desconcentrao da produo industrial, a metrpole paulistana concentra

56
lill.ITTl

illJ

sem parar as sedes das empresas (indstrias, empresas comerciais,


grandes consultorias e bancos), o que significa uma centralizao
constante em matria de capacidade de gesto do territrio. So
Paulo, a rigor, vai alm da condio de simples metrpole nacional:
embora subordinada, por se localizar em um pas semiperifrico, e la
poss ui uma importncia econmica claramente internacional, inclu~ive sendo o centro de gesto territorial mais relevante da Amrica do
Sul, com destaq ue para o seu papel no mbito do MERCOSUL. So
l'aulo , com efeito, uma "cidade global" dependente/semiperifrica.
A centralidade de uma cidade,j se viu, funo, acima de tudo,
dl sua capacidade de ofertar bens e servios para outros centros urba11ns, estabelecendo, desse modo, uma rea de influncia. Essa centra-

lidade, portanto, de natureza, acima de tudo, econmica. Uma cidad1 ,cr tanto mais complexa e possuir uma posio tanto mais elev11du na hierarquia da rede urbana, quanto mais ela possuir essa capa' 1d11dc de ofertar bens e servios e capturar uma rea de influncia
1111111,r. No entanto, primeira vista, dois tipos de situao parecem
I" 111irbar essa presuno de correspondncia entre complexidade do
11
11110 urbano, centralidade e posio hierrquica na rede urbana.
A primeira situao refere-se quelas cidades que, por serem
1
1p1111is nacionais, possuem uma rea de influncia nacional, mesmo
111 w 1cm metrpoles nacionais. , justamente, o que ocorre com
li, 1 ,Ilia. Quando observamos o panorama internacional, constatamos
1 11111110 comum a cidade-capital ser, ao mesmo tempo, a grande
111, 1, 11polc nacional - Londres, Paris, Tquio ... - ou, at mesmo, uma

1,.,/, 11rimaz, isto , uma cidade que concentra um percentual


1 ,tv11mente grande da populao e da economia do pas, o que
1 11 1, r qlll:nte no "Terceiro Mundo", sendo isso, via de regra, uma
l ' 1111 11 rn lonial - Cidade do Mxico (a metrpole concentra quase
l I ol11 p11pulao do pas), Buenos Aires (a metrpole de Buenos
h 1 111tc111ra cerca de 1/3 da populao argentina) ... Contudo, em
1 11 11 p11hcs do mundo, alm do Brasil, como os Estados Unidos,
111 '' 1~ltl 11gto11 (que foi uma cidade planejada, assim como Braslia
, 1111111 s(culo e meio depois) e a Austrlia, com Camberra, acida1" il11 '"" u capital do pas no uma grande metrpole nacional.

57
filll
lJlJ

Deveria a cidade-capital ser sempre considerada como uma metrpo-

"centralidade", por assim dizer, efmera e a ltamente seletiva e es-

le nacional. devido ao fato de que a sua abrangncia nacional? No.

pecfica. Findo o evento, ela volta a ser o que normalmente : uma

E m prime iro lugar, porque, do ponto de vista geogrfico, ela ne m

cidade pequena, ocupando uma posio modesta na hierarquia da


rede urbana.

sequer precisa corresponder, propriamente, a uma metrpole. Em


segundo lugar, porque a sua influncia muitssimo especfica:

Quanto ao e xemplo de uma cidade mdia ou pequena abrigando

poltica. freqente, por conseguinte, que, e mbora l sej am tomadas,

uma ou mais plantas industriais onde se d o fabrico de bens sofistica-

formalmente, as grandes decises legislativas, executivas e judici-

dos, o raciocnio que a se deve aplicar no muito distinto. Trata-se

rias, os principais grupos de interesse, que pressionam, influenciam

de atividades produtivas especficas, comandadas a partir de centros

ou mesmo determinam o c urso dos processos decisrios (as classes

maiores, dentro ou at mesmo, no caso de empresas transnacionais,

dominantes e grupos de elite especficos), estej am baseados e m outro

c m ltima a nlise fora do pas. Fenmenos de desconcentrao indus-

local, notadamente nos grandes centros econmicos e demogrficos.

trial vm ocorrendo no Brasil (no estado de So Paulo j desde a dca-

A cidade-capital , sempre, sob o ngulo estritamente poltico-formal,


um centro de gesto do territrio importantssimo (formalmente, o

da de 70, e de modo mais abrangente, no Centro-Sul do pas, mas sem-

mais importante de um pas), mas no por isso que sua posio na

centrao fsica de atividades; isso se d porque, se a localizao da

hierarquia da rede deveria ser, automaticamente, equivalente de

unidade produti va em um grande centro se beneficiou, inicialmente e

uma verdadeira metrpole nacional.

durante muito tempo, de vantagens locacionais (desfrutando das cha-

A segunda situao conce rne a centros urbanos, no necessaria-

madas~ economias de aglomerao), ligadas proximidade do mer-

mente grandes, que abrigam atividades muito especializadas, alcan-

cado consumidor e de outras empresas e devido infra-estrutura de

ando , com isso, uma considervel rea de influncia. Pense-se, por

hoa qualidade e abundncia de mo-de-obra qualificada, a partir de

exemplo, em uma cidade pequena como Cannes, na Frana, a qual,

r c rto mome nto certos transtornos associados, cada vez m ais, ao

por conta do festival anual de cinema, conhecida internacionalmen-

11111biente fsico, econmico e social das grandes metrpoles - escas-

te e torna-se, durante alguns d ias por ano, referncia para os cinfilos

\CZ de terra

do solo, congestionamentos, poluio, crimina lidade violenta ... - ,

que abrigam plantas industriais onde se d a produo de bens sofisticados, distribudos nacionalmente ou at exportados para outros

rnmeam a desestimular a localizao em um grande centro que j

pases e continentes. Nenhum desses dois exemplos, por m, fere, a

,idades menos proble mticas, mas que apresentam boa infra-es trutura

rigor, a presuno de correspondncia entre complexidade do centro

urbano, centralidade e posio hierrquica na rede urbana.

11 ,lo crescer rapidamente, tornando-se grandes e tendendo, e las -pr-

Uma cidade que sedia um evento de durao limitada, mas de


infra-estrutura adequada, sobretudo uma infra-estrutura de hotis e
restaurantes, capaz de comportar uma enxurrada anual de visitantes.
No toa que tais cidades, como Cannes (ou, no Brasil, Gramado,

para expanso industrial e conseqente elevao do preo

do mundo inteiro. Outro caso o de cidades mdias ou at peque nas

alcance nacional ou internacional, precisar, certo, possuir uma

58

pre a partir de So Paulo, desde os anos 80), promovendo uma descon-

rnmea a apresentar sinais de saturao e a estimular a localizao em


outros requisitos. Muitas vezes, essas mdias (e pequenas) cidades

p11as, a apresentar certos problemas, como se percebe no Brasil (o


1 11,0 de

Campinas, hoje e m dia abrigando o ncleo de uma metrpole,

lrnstante ilustrativo). O que importa ressaltar, de toda maneira, que

,1

plsto tende a continuar centralizada nos centros principais; ou seja:

no Rio Grande do Sul), costumam ser, quando no so grandes cen-

.1 p1 oduo, fisicamente, se desconcentra, mas no necessariamente o


p1 ulcr (no raro, a centralizao do poder de gesto territoria l at sofre

tros, pelo menos centros tursticos importantes. No obstante, sua

11111 111cremento), o que est associado permanncia, nos centros mais

59
ITT1.Im

llli

importantes, de atividades econmicas de ponta, ligadas ao setor

111,lis importante, queimando etapas. Isso se d principalmente em

financeiro e a servios sofisticados.


Outra considerao a ser feita, no que diz respeito s relaes

1111~M>S dias, devido s facilidades de transporte. Dependendo do


1'11 la aquisitivo, h aqueles que, mesmo residindo longe de um cen1111 de alta posio na hierarquia da rede urbana, podero se dar ao
111 ~, 1de, pegando um avio, ir direto para um centro maior (por exem-

hierrquicas no interior da rede urbana, tem a ver com o progresso


tecnolgico e os fatores institucionais que facilitam, cada vez mais, o
transporte de bens e pessoas, as comunicaes e a mobilidade espacial do capital em geral, redundando em aumento das inter-relaes e
interdependncias econmicas entre firmas, cidades e pases. A rede
urbana sofre transformaes sob o efeito da globalizao econmicofinanceira. Pode-se dar destaque, quanto a isso, ao fato de que a complementariedade entre centros urbanos de mesmo nvel hierrquico
conhece um aumento, sobretudo no interior do conjunto espacial formado pelos pases e regies que compem o "Primeiro Mundo".
Mas, note-se: esse incremento da complementariedade entre centros
de mesmo nvel, alimentada pela maior mobilidade espacial do capital, no nos autoriza a d izer que as relaes hierrquicas e as disparidades, genericamente, se enfraqueam. Analisando em escala mundial, assim como na escala dos pases e regies do "Terceiro Mundo", notaremos que, em parte, hierarquias e disparidades at se fortalecem, se considerarmos o efeito que o de "cidades globais" de pases semiperifricos, conectadas de modo particularmente intenso e
sofisticado aos principais centros da economia internacional, apresentarem, em matria de dinamismo econmico e padres de consumo mais semelhana e mais conexo com "cidades globais" de pases 'centrais do que com muitos centros urbanos situados em seus pr-

pl11, para tratamento mdico), s vezes s ituado at mesmo no exte11111, queimando muitas etapas. Em contraste com isso, h aqueles
111111os, to numerosos, que, devido sua pobreza, ao no encontra111l'm sua cidade o bem ou o servio de que necessitam, simples-

i,

1111111c tero de abrir mo dele, por no terem condies de busc-lo


11 11 11111 centro maior. A mobilidade espacial funo da renda, e isso
1111ltwncia decisivamente a maneira como a rede urbana vivenciada
, 1p1c'> pria estrutura da rede. Por isso fica fcil entender a razo pela
q1111 I. nos pases subdesenvolvidos, e especialmente em suas regies
111111', pobres e de renda mais concentrada, a rede de localidades cen111h \C mostra "achatada", com uma baixa presena de centros de
111, 11 1111crmedirio em comparao com um grande nmero de cen11tl'J10res, como fez notar Roberto Lobato Corra em seu livro A
, , ,/, ,,, bana (ver Bibliografia comentada): uma vez que esses cen-

1i , 1.

11, 1 1111ermedirios oferecem bens e servios consumidos com menor


111 qlh'ncia e, muitas vezes, apenas pelos segmentos de poder aquisi11 "
1

111l'dio ou elevado, a possibilidade de multiplicao de cidades


.1 porte esbarra no fato de a renda se achar muito concentrada.

1 , 1111
1 111

,~~o. o perfil da rede urbana se mostra uma boa expresso do

d1 desenvolvimento do pas ou da regio.

prios pases.
Por fim, registre-se que a situao em que uma pessoa, para
adquirir bens e servios no encontrados em sua cidade, d_irige:s~,
primeiramente, para o centro de hierarquia mais elevada mais prox1mo dela, e apenas no existindo a o que procura dirige-se a um centro ainda maior, largamente terica. Dificilmente pessoas que
morem em cidades de baixa posio na hierarquia da rede e que estej am situadas no entorno de um centro importante ou mesmo de.um
ncleo metropolitano pensaro em "galgar os degraus" paulatinamente, preferindo, como de se esperar, ir di retamente ao centro

60

61

00

rmJ.m

rn.J

4. A cidade vista por dentro

lloi repetido vrias vezes, nos captulos anteriores, que uma

especialmente uma grande cidade, uma entidade scio1111complexa. E, no entanto, a cidade foi examinada, at agora,
111 Nt' levar em conta, com detalhes, como ela se apresenta estrutu 11 111 /11tl'fnamente. chegada a hora de nos debruarmos sobre aqui!,, q111 NC chama de a organizao interna da cidade, a qual a chave
I' 11 11 1 hegarmos aos processos sociais que animam o ncleo urbano e
1111 , ~1,lo envolvidos na dinmica da produo do espao, e que , ao
111, 11H1 lcmpo, uma chave privilegiada para observarmos e decifrar111t 1 11 N1111 complexidade enquanto produto social.
lol ,1d1,
11111

63
lill..ITTl

IJlJ

Para comear, qualquer cidade apresenta diferentes tipos de


espaos, de acordo com a atividade predominante. Em reas onde
predomina claramente o uso residencial (s vezes at por causa de
restries presena de outros usos, corporificadas em um zaneamento - esse assunto, o do planejamento urbano, ser discutido mais
frente, em outro captulo) encontra-se, freqentemente, nada mais
ou no muito mais que um comrcio de bairro, onde as pessoas e
famlias podem fazer compras para seu abastecimento dirio, semanal ou mensal com gneros alimentcios e outros de consumo rotineiro. J em alguns espaos concentram-se o comrcio e os servios,
apresentando-se como verdadeiras localidades centrais intra-urbanas. Ao tratar da rede urbana, a idia de localidade central foi resgatada com referncia a cada ncleo urbano como sendo, no seu conjunto, uma localidade dotada de maior ou menor centralidade em
comparao com outras. Isso no errado, mas , dependendo da
escala que se considera, uma simplificao, pois os espaos onde os
bens mais sofisticados ("bens centrais" mais importantes, para usar a
linguagem de Christaller) so produzidos (reas industriais) ou
comercializados (espaos comerciais) no esto totalmente dispersos
no tecido urbano, mas, muito pelo contrrio, tendem a se restringir a
algumas reas no interior da cidade. A despeito disso, muitas reas
no interior da cidade apresentam uma forte mistura de usos do solo,
quando no h restries legais (de zoneamento) a essa mistura, ou
quando as restries so desrespeitadas.
Os espaos onde as ati vidades de comrcio e servios se concentram so de vrios tipos. A grande maioria das cidades possui, claramente, o seu "centro", correspondendo, o mais das vezes, ao centro
histrico (local onde a urbe foi fundada, e que abriga prdios de um
certo ou mesmo um grande valor histrico-arquitetnico). Esse "centro", no caso das cidades maiores, tendeu, muitas vezes, a se expandir e evoluir at atingir as dimenses de uma moderna rea central de
negcios, mais conhecida, entre os estudiosos, pela sigla CBD (abreviatura, como se viu no Cap. l , de central business district). O CBD
sozinho, porm, no daria (;011ta de atender a todas as demandas da
cidade por bens de consumo no-rotineiro. Uma cidade, ao crescer,

v aumentarem as distncias, e a combinao de densidade demogrfica, distncia em relao ao centro e renda da populao faz aparecerem importantes subcentros de comrcio e servios, o que evita
que os moradores dos diferentes bairros precisem, necessariamente,
se deslocar para o CBD sempre que precisarem adquirir um bem
mais sofi sticado que po, leite ou jornais. claro que, entretanto,
esse quadro varia muito de acordo com o porte da cidade: uma cidade peq uena, s vezes at uma cidade mdia, pode no ter conhecido,
dependendo do seu contexto econmico-social regional e nacional (e,
portanto, dependendo da renda de sua populao, tanto no que concerne ao seu nvel quanto no que diz respeito sua distribuio), o
desenvolvimento de verdadeiros subcentros, estando o comrcio
limitado a um CBD medocre e, afora isso, apenas a um comrcio de
bairro ou pouco mais que isso.
Em muitas circunstncias, os subcentros no s florescem mas,
gradualmente, vo "roubando a cena" do prprio CBD. um fenmeno comum nos ncleos metropolitanos brasileiros uma perda de
prestgio, ou mesmo uma visvel decadncia do CBD; o comrcio
mais chiq ue e os servios mais refinados, que antes l se encontravam concentrados, tendem a deix-lo em troca de outros locais, buscando uma maior proximidade com os consumidores de alto poder
aquisitivo. Esse fenmeno, que j vinha se notando, no Brasil, h
algumas dcadas (o caso do R io de Janeiro exemplar, com o subcentro de Copacabana, que data dos anos 60), foi intensificado q uando, a partir da dcada de 80, se estabelece solidamente e comea a
proliferar um outro smbolo da descentralizao das atividades tercirias, o shopping center. Diferentemente dos subcentros tradicionais, o shopping center no "aberto", mas , isso sim, um espao
(normalmente, um grande prdio) nitidamente separado do ambiente
externo e onde a preocupao com a segurana uma constante .
Alis, em grande parte devido ao crescente clima de insegurana reinante nas grandes cidades, no Brasil assim como em o utros pases, o
shopping center vem desbancando os subcentros tradicio nais, os
quais, algumas vezes, entram cm visvel declnio, da mesma maneira
como o prprio CBD.

64

65

ffij

lill1m
rnJ

Enquanto o CBD propriamente dito era e, apesar de tudo, ainda


um espao de atividades tercirias em grande parte especializadas e
sofisticadas (comumente circundado por uma rea comercial de
padro muito mais baixo, correspondendo, total ou parcialmente, a
reas ditas de obsolescncia ou deterioradas, onde uma populao
moradora de baixo poder aquisitivo se mistura com comrcio popular. oficinas etc.), os subcentros apresentam um status que reflete as
caractersticas socioeconmicas da populao que reside em seu
entorno. H subcentros de alto status, de mdio status e, at, subcentros populares, na periferia metropolitana. No caso das c idades de um
pas como o Brasil, os prprios shopping centers, inicialmente associados a uma imagem de "exclusividade" e sofisticao, tendem a se
adaptar, medida que se multiplicam no tecido urbano, s condies
socioeconmicas dos contextos imediatos nos quais se inserem;
surge, assim, a figura do "shopping popular", voltado para o atendimento de uma classe mdia "suburbana" ou at perifrica.
Os espaos residenciais, como se sabe muito bem, tambm se
diferenciam entre si sob o ngulo socioeconmico. No Brasil, ao
menos de forma direta, a varivel renda a principal definidora dessa
diferenciao. O que no quer dizer, contudo, que, indireta ou media-

tamente, outros fatores, especialmente o fator tnico ("racial"), no


esteja entrelaado, historicamente, com o fator renda: a maioria dos
moradores de favelas nas cidades do Sudeste, do Nordeste e do
Centro-Oeste do Brasil afrodescendente (negros e mulatos), e
mesmo no Sul do pas, onde h uma presena muito mais expressiva
de brancos pobres residindo em favelas, boa parte da populao fa ve-

reas pobres . Seja com o ~or, em alguns outros pases, o fator tnico
que aca ba sendo o principal de modo muito
. e 1aro.
Em termos mui to

.
denciais de uma cidadege;.1;, essa d1!erenciao entre as reas resi.
.
- i erenc1aao, em ltima an lise e
,
na de condies de qualidade de vid . 1 .
,
' m mate.
a, me um do a1 tanto aspectos
. t .. .
~;ae~\~~::::o ~o::~:eimateriais co~o prestgio e poder - reflete
.
grupos soc1a1s. Em outras palavras difere .
as econom1cas
sociais
n
fl
' de poder, d e status etc. entre diversos grupos
se
d re. . etem no espao, determinando ou, pelo menos .mfluenciando
~c1s1 vamente onde os membros de cada grupo pode'm vi ver
, .

:~::::~:.,,~::~:;::: de pod"' de prnstigio so foo d~;,,;::


f

_
. .
em uma sociedade capitalista moderna so
unao, pnme1ramente, da classe social do ind 'd
,
ver com a
ivi uo, a qual tem a
, pos1ao que ele ocupa no mundo da produo. lgico
que, al:m das grandes c lasses em sen tido estrito (sob retud
. o dos
e mpresanos o u capitalistas, isto , os proprietrios de
od ---, meios e
,
uao,
e
os
trabalhadores
assalariados
q
t.
d
ue em e vender a sua
Pf
ora
para sobreviver alm d e outras classes como os
fi de
. trabalho
.
pro
liberais
independentes) subd ..
- . d essas classes
'
h iss1
, o, na1s
.
_
ivisoes
as

amadasfraoes de classe, so referncias importantes ca it . , ..


industna1s, capitalistas lioados ao setor imobT / .
. p alistas
Contud
r. .
~
i ian o etc., por exemplo.
.
o, como JU se disse, outros fato res, al m do eco , . ,
nom1co,
devem ser considerados o pertenc
, 1 1 .. , .
.
imento a um grupo tnico cult . . sociedades
.
'
u
1,nhas
de
111 - 111gu1st1co ou rel igioso defi ne e m muitas
l'1.1v1oem
m

f
,
.
'
.' ~ - uito ones, as vezes intransponveis, e que se refletem nas
pa1aoes dos grupos assim definidos no espao da cidad p
w por e
e. ense. .
xemp_Io, nos guetos de j udeus na Europa, durante sculos -

\l

111 .ilguns pa1ses da Europa Oriental at meados do sculo XX (


p11lnvra "gueto", alis, tem origem com o famoso guetto de Yenez:

lada descende de escravos africanos; isso mostra, muito elonqentemente, a fora de inrcia de uma 'liberdade" formalmente conquistada h mais de um sculo, mas que no veio acompanhada de condies reais de acesso qualificao profissional, educao e moradia digna, do que resultou uma reproduo, gerao aps gerao, de
um quadro geral de pobreza e estigmatizao. No Norte do pas, alm
da presena dos afrodescendentes, os descendentes de um outro
grupo oprimido, os indgenas (descendentes esses denominados de
"caboclos"), representam parcela considervel dos moradores d<=

66

!IT.P

lJ1_

s)l'.:c ulo XVI, nica rea na qual era permitido aos jude us resid'i~
111 , pe nse-se ' t1mbm
'
, nas c1d ades sul -africanas da
. d
\1111rtheid,
- possua li vre mobilidad
poca o
.
.onde a po puiaao negra nao

111,1
11

Plll'1
' e
, a l e vivia confinada em reas pobres eorno a. f amosa rea pob
Sowcto,
nos
arredores
de
Johi
b
.
re
1111 111do~
. .
'nnes u1go; pense-se, por fim, nos

. U~idos, on_de pertencer a uma minoria tnica foi e continua


' ,11 111 u111 fator dec1s 1vo para se determ111a1. ond e se ir
. viver.
.

67
ITTlffil

[J1J

O fenmeno da segregao residencial , sem dvida, muito

~nicas. A literatura clssica sobre segregao residencial, que prin-

geral ao longo da histria da urbanizao. Quase sempre existiram

c1palrne~te norte-americana, tende a apresentar a segregao, por

grupos que, devido sua pobreza, sua etnia ou a outro fator eram

c~nsegumte, corno um problema de grupos minori trios. No Brasil,


d1v_ers_amente, a segregao afeta urna enorme parcela, no raro a

forados a viverem em certas reas (geralmente as menos atraentes e


bonitas, menos dotadas de infra-estrutura, mais insalubres etc.),

rna1on a da populao de uma cidade, a qual mora em favelas, em

sendo, na prtica ou at formalmente, excludos de certos espaos,

loteamentos_ de periferia ou em cortios. No se trata, nessa situao,

reservados para as classes e grupos dominantes da sociedade. A

da segregaao de um grupo especfico, por razes fortemente tnicas

segregao (residencial) induzida pode ser observada em cidades

ou cultura_i~ em~ora a correlao e ntre pobreza e etnicidade sej a,

desde a Antigidade. O moderno capitalismo, inicialme nte na Europa, depois em outras partes do mundo, ir, todavia, acarretar uma

conform~ J~ se d_1sse, forte; o que se tem uma situao na qual os


pobres sao mduz1dos, por seu baixo poder aquisiti vo, a residirem em

mudana de magnitude (e de escala) no padro de segregao. Con-

locais afastados do CBD e das eventuais amenidades naturais e/ou

sidere-se uma cidade e uropia medieval: nela, a separao espacial

desprezados pelos moradores mais abastados. Nesses locais, no

entre ricos e pobres, ou entre segmentos sociais com status diverso,

a~en~s a carncia de infra-estrutura, a contrastar com os bairros pri-

era, ainda, pouco complexa, em comparao com uma grande cidade

v~egiados da classe mdia e das e lites, que evidente; a estigmatiza-

capitalista industrial do sculo XIX na prpria Europa, ou em uma


sem dvida, uma dimenso "horizontal" da diviso espacial do traba-

ao das_pessoas em funo do local de moradia (periferias, cortios


e, prmc1palrnente, favelas) muito forte. Srios problemas de integrao e de convivncia entre grupos sociais diferentes e de auto-

orande cidade no "Terceiro Mundo" atual. Na cidade medieval havia,


e,
lho (como no caso dos bairros onde se concentravam os artesos vin-

estima coletiva costumam estar associados a essa questo. Por isso,

culados a uma dada corporao de ofcio) e da separao entre estra-

.n esmo se tratando de maiorias, e no de minorias, corno nos EUA,

tos sociais, mas a mistura de classes e estratos era grande, sobretudo

laz sentido, sim, falar-se, tambm a propsito das cidades de um

do ponto de vista "vertical": no mesmo prdio coabitavam o mestre


arteso e sua famlia, seus aprend izes e empregados e o local de tra-

pas como o Brasil, de segregao reside ncial, e no meramente de


"excluso".

balho, ocupando andares diferentes. Em contraste, o capitalismo trar

Sobre o termo "excluso", hoje em dia to na moda, fao ques-

consigo uma separao crescente entre local de trabalho e local de


moradia, e os locais de moradia dos proletrios tendero a se distan-

1,10
11

de ressaltar, de passagem, corno eu j havia feito em trabalhos

111crior~s, que ele a rdiloso. preciso, ao us-lo, no mnimo quali-

ciar dos locais de moradia dos industriais e, at certo ponto, e cada

I u .ir muito bem e m relao a que ou de que os pobres urbanos esto

vez mais, tambm dos locais de moradia dos pequeno-burgueses e

' w ludos. No sentido preciso de excludos das benesses do sistema,


11

profissionais liberais - enfim, da dita classe mdia.


As diferenas e ntre a segregao em uma cidade norte-ameri-

11 de certos a_mbientes, OK; o que no correto expressar-se gene," ,1111cnte, pois corre-se o risco de esquecer que a maioria dos pobres

cana contempornea e e m uma grande c idade brasile ira so , todavia,

1
111
11 l11 ns

enormes, apesar de serem ambas produtos de um modelo social capi-

1111 1111,

talista. Nos EUA, a etnicidade possui um significado imenso e nquan

1, hui:> poder aquisitivo e eleitores, muitas vezes at como eleitores


p1111ic.os_conservadores ... At mesmo os que encontram ocupao

to um fa tor que, em si, e independentemente de outros fatores (como


a renda), determina a segregao de certos grupos. Alm do mais, o~
orupos
seoreoados
correspondem a minorias, basicamente a minoria.
e,
e, e,

est integrada, sim, econmica e mesmo poltica e cultural-

no sistema, enq uanto trabalhadores explorados, consumidores

1
1
' '1
lor

"

1 11111

111formal esto, de alguma forma, aqui e ali, integrados no


do sistema econmico, a despe ito da precariedade de s uas

68

69

ffiJ..

ijjlj)]]

L1i!

70
liiLITT1

rn.J

condies de vida. Nem mesmo traficantes de drogas de varejo baseados em favelas deixam, em ltima instncia, de estar vinculados a

so, no Brasil, os condomnios exclusivos da Barra da Tijuca, no mu-

um sistema que os arma e financia.


evidente que, no caso da segregao induzida, as pessoas no

na Regio Metropolitana de So Paulo.

"escolhem" viver aqui e no ali, sendo foradas a isso. Mesmo quando, no decorrer de geraes, se percebe que os membros de determi-

gao, tampouco se trata de uma "escolha", pois as pessoas tentam

nicpio do Rio de Janeiro, e o chamado "Complexo de Alphaville",


Algum poderia alegar que, tambm no caso da auto-segreescapar de problemas. Essa seria, porm, uma interpretao forada,

nados grupos (especialmente no caso de mi norias tnicas) como que

por duas razes: primeiramente, porque os que se auto-segregam no

relutam, muitas vezes, em abando nar o gueto ou equivalente, se

costumam ver seus antigos espaos com olhos nostlgicos, ou seus

aventurando a morar em outras partes da cidade, mesmo tendo con-

novos espaos como representando uma perda; em segundo lugar,

dies econmicas para isso, tal fato no deve ser confundido com

porque os que se auto-segregam, na condio de moradores, so, em

uma "escolha": afinal, o medo de ser hosti lizado ou de se se smtir

grande parte, os mesmos que, na condio de elite d irigente, so. ao

s (e, se difci l ser minoria em grupo, o muito mais quando seest

menos, co-responsveis pela deteriorao das condies de vida na

sozinho) que influencia a deciso. Isso poderia, primeira vista, ser

cidade, inclusive no que se refere segurana pblica, seja por suas

interpretado como uma espcie de auto-reproduo da segregao,

aes, seja por sua omisso. Em suma: h de se manter uma distino

mas O fato que a persistncia de certos preconceitos ou dios, dis-

muito forte entre a segregao induzida e a auto-segregao.

seminados no interior da sociedade, que dificulta a mobi lidade espa-

Levando-se e m conta essa d iferenciao das reas intra-urbanas

c ial dos membros de grupos m inoritrios, mesmo quando alguns

segundo a renda e o status dos grupos sociais, e considerando a inda a

deles alcanam um poder aquisitivo sufic ie nte para residir em reas

localizao das atividades industrial e comercial, foram, ao longo do

de mais alto status. Esse um problema ainda muito forte nos EUA,
apesar do notvel progresso da populao negra norte-americana nas

sculo XX, propostos diversos modelos da organizao inte rna da


cidade. Um modelo tem por finalidade apresentar a lguns traos

ltimas dcadas. No Brasil, por outro lado, comum, e m meio a um


universo cultural um tanto hipcrita, "esquecer" ou "relevar" a cor da

qual se pretenda um alcance menos ou mais geral (as cidades de um

essenciais de uma realidade; no caso de um modelo g rfico para o

pele de um negro ou mulato economicamente bem-sucedido; o cha-

pas ou continente, ou de um determinado "modelo social"), as for-

mado "branqueamento cultural", o qual, erroneamente, induz muitos

mas e estruturas espaciais tero de ser representadas de modo estili-

a acreditarem que no nosso pas no h racismo, e que a nica questo relevante a ser enfrentada, em matria de (in)justia social, a da

zado. Um modelo implica, sempre, uma simplificao, e as razes

pobreza.
Diferente mente, no caso da auto-segregao so as pessoas que

razo didtica, facili tando a comunicao de aspectos fundamentais

pelas quais se constri um modelo podem ser, pelo menos, duas: uma
e deixando de lado, ao menos e m um primeiro momento, traos

fazem a opo de se afastar ou apartar o mais possvel da cidade. Esta

menos essenciais; e uma razo prtica para o prprio pesquisador, ou

vista como barulhenta, congestionada e, por isso desagradvel. E,


como tambm sinnimo de pobreza pelas ruas, de asssaltos etc.,

cesso de e laborao do modelo, estrutura e disciplina melhor o pr-

vista como mais do que desagradvel: vista como ameaadora. A

prio raciocnio espacial do estudioso e a prpria anlise. Um modelo

auto-segregao, nas grandes cidades da atualidade, est fortemente

bem construdo, porm, aquele que no sonega coisas essenciais e

"heurstica", como se diz tecnicamente, a qual, ao longo do pro-

vinculada busca por segurana por parte das elites, embora esse no

111uito menos distorce a realidade, caricaturando-a; a lm disso, quem

seja O nico fator. Exemplos de espaos residenciais auto-segregados

11presenta o modelo deve deixar claro que es t be m consciente do

71

imlm
IJ.iJ

nvel de simplificao implicado. O que impossvel um modelo

reas res idenciais, aos suburbs (os quais, diferentemente dos "subr-

retratar "tudo": caso contrrio, no seria um modelo. Encontrar o

bios" de certas grandes cidades brasile iras, so, normalmente, reas


residenciais de status md io ou mesmo alto).

equilbrio entre "elementos demais" e "elementos de menos" em um


modelo grfico quase uma "arte"; assim como o excesso de simplificao induz a equvocos, contraproducente um modelo ser sobrecarregado com detalhes, o que o toma pesado e antididtico at para
profissionais da rea.

Insp irados na realidade americana, esses modelos, independenteme nte de seus vieses ideolgicos explicativos, no davam conta,
adequadamente, nem sequer em termos descritivos, da realidade
espacial de outras realidades q ue no a norte-americana. Com o

O primeiro e, at hoje, mais famoso modelo de organizao


interna da cidade, o de E. Burguess, socilogo pertencente clebre Escola de Chicago, o qual, nos anos 20, props um modelo em
que a cidade aparecia como um conjunto de crculos concntricos
(vide figura 4), te ndo no centro o CBD, em seguida o anel das reas

Figura 4
MODELO DE ORGANIZAO INTERNA
DA CIDADE OE E. BURGESS

de obsolescncia (com seus guetos, sua boemia etc.), depois dele o da


classe trabalhadora mais bem integrada e, por fim, o ane l das camadas privi legiadas. Para Burguess, representante do que ficou conhec ido como abordagem de "Ecologia Humana", uma certa analogia
com as leis da natureza, especialmente com a teoria de Darwin sobre
a seleo natural, seria cabvel para se explicar a dinmica urbana: a
sociedade urbana testemunharia a "sobrevivncia do mais forte" em
meio "luta pela vida", com aqueles indivduos mais aptos e talentosos conseguindo escapar do gueto. O q ue B urguess e a Escola de
C hicago, assim, punham em primeiro plano, no era uma estrutura

social menos ou mais j usta, mas os indivduos, competindo entre si.


Expresso mais clara do individualismo norte-americano, im possvel. Outros modelos muito conhecidos so o de H. Hoyt e o de C.

Harris e V. Ulmann (vide figura 5). O modelo de Hoyt toma o de


Burgess como base, mas o torna mais complexo ao combinar crculos com setores (refinamento introduzido ao levar-se em conta a
influncia da malha viria e dos transportes). Quanto ao de Harris e

Distrito Central de Negcios (CBD)


"rea de transio"

Ulmann, tambm conhecido como " modelo de mltiplos ncleos",


e le procura fazer justia desce ntralizao do setor tercirio no interior da grande cidade, destacando a existncia de subcentros de
comrcio e servios, e presena de reas industriais e residenciais

rea residencial da classe trabalhadora


rea residencial dos estratos de re nda
mdio e alto

localizadas no entorno da cidade, as quais correspondem, no caso das

72

ITTlffil
UlJ

73
mfil
UlJ

nvel de simplificao implicado. O que impossvel um modelo

reas residenciais, aos suburbs (os quais, diferentemente dos "subr-

retratar "tudo": caso contrrio, no seria um modelo. Encontrar o

bios" de certas grandes cidades brasileiras, so, normalmente, reas

equilbrio entre "elementos demais" e "elementos de menos" em um

residenciais de status mdio ou mesmo alto).

modelo grfico quase uma "arte"; assim como o excesso de simpli-

Inspirados na realidade americana, esses modelos, independen-

ficao induz a equvocos, contraproducente um modelo ser sobrecarregado com detalhes, o que o torna pesado e antididtico at para

adequadamente, nem sequer em termos descritivos, da realidade

profissionais da rea.

espacial de outras realidades que no a norte-americana. Com o

temente de seus vieses ideolgicos explicativos, no davam conta,

O primeiro e, at hoje, mais famoso modelo de organizao


interna da cidade, o de E. Burguess, socilogo pertencente clebre Escola de Chicago, o qual, nos anos 20, props um modelo em
que a cidade aparecia como um conjunto de crculos concntricos
(vide figura 4), te ndo no centro o CBD, em seguida o anel das reas

Figura 4
MODELO DE ORGANIZAO INTERNA
DA CIDADE DE E. BURGESS

de obsolescncia (com seus guetos, sua boemia etc.), depois dele o da


classe trabalhadora mais bem integrada e, por fim, o anel das camadas privilegiadas. Para Burguess, representante do que ficou conhecido como abordagem de "Ecologia Humana", uma certa analogia
com as leis da natureza, especialmente com a teoria de Darwin sobre
a seleo natural, seria cabvel para se explicar a dinmica urbana: a
sociedade urbana testemunharia a "sobrevivncia do mais forte" em
meio "luta pela vida", com aqueles indivduos mais aptos e talentosos conseguindo escapar do gueto. O que Burguess e a Escola de
Chicago, assim, punham em primeiro plano, no era uma estrutura
social menos ou mais justa, mas os indivduos, competindo entre si.
Expresso mais clara do individualismo norte-americano, impossvel. Outros modelos muito conhecidos so o de H. Hoyt e o de C.
Harris e U. Ulmann (vide figura 5). O modelo de Hoyt toma o de
Burgess como base, mas o torna mais complexo ao combinar crculos com setores (refinamento introduzido ao levar-se e m conta a
influncia da malha viria e dos transportes). Quanto ao de Harris e
Ulmann, tambm conhecido como "modelo de mltiplos ncleos",
ele procura fazer justia descentralizao do setor tercirio no interior da grande cidade, destacando a existncia de subcentros de
comrcio e servios, e presena de reas industriais e residenciais

Distrito Central de Negcios (CBD)


"rea de transio"
rea residencial da classe trabalhadora
rea residencial dos estratos de renda
mdio e alto

localizadas no entorno da cidade, as quais correspondem, no caso das

72

mm
[[LJ

73

mm
[[LJ

Figura 5
MODELOS DE ORGANIZAO INTERNA DA C IDADE DE
H. HOYT (1) E C. HARRIS E E. ULLMAN (2)

tempo, assim, foram sendo criticados menos ou mais profundamente,


e s vezes substitudos por outros ou at adaptados para as cidades de
o utros pases e continentes: surgiram, assim, modelos espaciais da
"cidade europia ocidental", da "cidade is lmica", da "cidade latinoamericana"... O nvel de concretude, quer dizer, de proximidade com
a realidade, tendeu a aumentar, mas permaneceu, mesmo assim, insuficiente - at porque, nem sempre os autores tinham perfeita conscincia de que as realidades cujas cidades eles pretendiam dissecar
por meio de seus modelos eram, na verdade, mais heterogneas do
que eles induziam o leitor a pensar. Por exemplo, por mais ti l que
seja, o modelo dos gegrafos alemes Biltr e Mertins para a "cidade
latino-americana", do comeo dos anos 80, foi, a rigor, inspirado
pelo contato emprico intenso dos autores com alguns poucos pases
da Amrica hispnica (e, do ponto de vista de sua construo grfica,
visivelmente se inspirou no modelo "dos setores" de Hoyt), tendo
sido a realidade urbana brasileira, diferente em alguns aspectos da de
outros pases latino-americanos, essencialmente deixada de lado.

No comeo da dcada de 90, tive a oportun idade de modelar a


organizao interna do Rio de Janeiro. O que da resultou foi, primeiramente, um mapa, com um fo rte grau de simplificao e generalizao, que apresenta uma classificao dos espaos da cidade. O mapa
da figura 6 uma verso atualizada e um pouco modificada daquela
outra, do comeo dos anos 90. O seu nvel de abstrao muitssimo
menor que o de um modelo grfico que tenha a pretenso de dar
conta de aspectos das c idades de todo um pas ou continente, ou

[IJ Distrito Central de Negcios (CBD)

~ rea residencial do estrato de renda baixo

C!J

W
~

00
74
..

00

rea residencial do estrato de renda mdio


rea residencial do estrato de renda alto
Comrcio atacadista e indstrias leves
Indstria pesada

Suburb residencial
(status mdio/alto)
Suburb industrial

Subcentro de
comrcio e servios

mesmo de um modelo grfico como aquele que, por razes prticas,


apresento desdobrado em duas figuras (7 e 8), tambm sobre o R io de
Janeiro, modelo esse que representa um sculo e meio da evoluo da
cidade. Essa muito menor abstrao no , em princpio, nem uma
vantagem, nem urna desvantagem, pois tanto esquemas muito particulares, como esse do Rio de Janei ro, quanto modelos mais gerais e
abstratos podem ser teis, desde que sejam elaborados criteriosamente. De qualquer maneira, a referida "radiografia" da organizao
interna da metrpole carioca, na sua maior parte, no deixa de ser til
para a compreenso da estrutura espacial das grandes cidades brasi-

75
ITTl.ITTl

IJ1J

leiras em geral, mesmo no tendo existido essa intencionalidade. Vale


a pena, por isso, reproduzi- lo. Ele traz a Regio Metropolitana do Rio

Figura 6

de Janeiro classificada em quatro grandes tipos de espaos sociais: o


ncleo, que corresponde quela parte do municpio do R io de Janeiro
(abrangendo, tambm, parte de Niteri) que apresenta uma ocupao

REGIO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO:


CLASSIFICAO DA ORGANIZAO ESPACIAL EM GRANDES
TIPOS SEGUNDO A DINMICA ECONMICO-SOCIAL
(SITUAO NO FINAL DOS ANOS 90)

mais densa, sem muita margem de manobra para especulao imobiliria horizontal em larga escala, e onde no h grande carncia de
infra-estrutura tcnica, ainda que a sua qualidade varie conforme o
status do bairro (as excees so, sem dvida, as favelas, que, no
caso do Rio, se encontram, em grande parte, encravadas no prprio
ncleo); a periferia, que aquele espao dominado, tipicamente (mas
no exclusivamente!) por~ loteamentos irregulares e grandes glebas mantidas ociosas ou subutilizadas, refletindo uma espec ulao
fundiria em grande escala; o espao de atrao da auto-segregao,

lllllll
1
2

3
4

reas conurbadas e centros isolados


Ncleo metropolitano
Periferia
Espao de atraao da auto-segregaao

Franja rural-urbana (espaos periurbanos)

--- Limite da regio metropolitana


_
Limite municipal

a "Nova Zona Sul", basicamente correspondendo Barra da Tij uca,


que encerra a maior parte dos condomnios exclusivos que so o smbolo do processo de auto-segregao; e, finalmente, a franja ruralurba11a (tipo de espao conhecido, tambm, como espaos periurbanos) j conceituada no Cap. 1, e que so, recapitulando, aqueles espa-

os preteritamente rurais, mas que, mais e mais, so tomados por uma


lgica urbana de uso da terra (especul ao fundiria, residncias de
fim-de-semana o u mes mo princ ipais de famlias de classe mdia,
algumas favelas, atividades de lazer, restaurantes etc.), sendo a agricultura algo puramente residual, ou um verniz, uma aparncia que
esconde a essncia mais profunda.
Tambm na mesma poca, no comeo da dcada de 90, elaborei
o outro modelo grfico, mais abstrato, que representa um sculo e
meio da evoluo urbana do Rio de Janeiro, e que as figuras 7 e 8
reproduzem em uma verso ligeiramente modificada e parcialmente
atuali zada. A convenincia de apresent-lo aqui, creio, reside no fato
de que ele no de difci l visualizao nem sequer para leigos, e os

76

rnilITl
I.IlJ

4
12km
"'---"-----'

tivo segunda metade do sculo XIX correspo nde a um Rio de


Janeiro com um CBD ainda em formao, e em cujo entorno existiam
numerosos cortios e casas-de-cmodos; a segregao residencial
era, tambm, relativamente pouco complexa, em termos comparati-

comentrios a cada fase da evoluo urbana retratada permitem, mui-

vos. A situao em meados dos anos 20 do sculo passado j era dis-

tas vezes (mas nem sempre, pois cada situao concreta possui suas
peculiaridades!), vis lumbrar analogias com processos semelhantes

tinta: j tendo passado pela Reforma Pereira Passos e pelo desmonte


do Morro do Castelo, a maior parte dos cortios e casas-de-cmodos

desenrolados em outras grandes cidades brasileiras. O esquema rela-

havia sido erradicada da rea central, e as favelas se multiplicavam

77
lm.ITTl
[llJ

pelo tecido urbano. Mais um salto e, em meados dos anos 40, est&-se
diante de um quadro mais complexo no que se refere segregao
residencial: j se distingue com muita clareza uma periferia, onde
proliferam os loteamentos irregulares, em contraposio ao ncleo,
onde ainda se concentram as favelas que continuam a se multiplicar.
Os primeiros conjuntos habitacionais tambm j haviam surgido. No
comeo dos anos 70, o que o esquema mostra o pice do processo
de remoo de favelas, com a transferncia de suas populaes para
conjuntos habitacionais s ituados na periferia ou em subrbios distantes. A existncia de subcentros de comrcio e servios (como Copacabana, Praa Saens Pe iia, Mier e Mad ureira) , ig ualme nte, um

Figura 7

MODELO DA EVOLUO DA SEGREGAO SCIO-ESPACIAL


NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: DA SEGUNDA METADE DO
SCULO XIX AO COMEO DOS ANOS 70

Meados
doa anos 20

Sogunda metade
do llculo XIX

fenmeno relevante ali indicado. Por fim, no comeo do sculo XXI,


situao retratada no modelo da figura 8, o fato novo apontado no
esquema, e que remonta segunda metade da dcada de 70 e da em
diante, a formao do espao de atrao da auto-segregao como
uma extenso da Zona Sul, ele prprio abrigando um subcentro de
comrcio e servios e se achando, cada vez mais, "perturbado" por
favelas que vo, aos poucos, se faze ndo presentes at mesmo ali. (O
leitor interessado na evoluo urbana do Rio de Janeiro pode recorrer, para o necessrio aprofundamento, ao li vro de Maurcio de
Almeida Abreu, citado na Bibliografia comentada, que abrange
desde a fo rmao da cidade at a maior parte do sculo XX.)

Meados
dos anos 40

Comeo
doa anos 70

Estratos de renda:

Alto+ mdio-alto

O CBD em formao

Predominantemente mdio

O CBD

Baixo

o Subcentro

Predominantemenle baixo

Cortio, casa-<le-cOmodos

Baixo + mdio

Favela

Pouca diferenciao

)(

Favela removida

78

fil!i1
IJlJ

Conjunto habitacional
Transferncia forada
de populao

79

00

Figura 8

MODELO DA SEGREGAO SCIO-ESPACIAL NA CIDADE DO


RIO DE JANEIRO: SITUAO NO COMEO DO SCULO XXI

5. Problemas urbanos e
conflitos sociais

Estratos de renda:

[Il]
~

Alto+ mdio-alto

CBD

Predominantemente mdio

Subcentro

Conjunto habitacional

Cortio, casa-de-cmodos

Baixo
Baixo+ mdio

Favela

Quais so os "problemas urbanos"? Essa pergunta chega a parecer malfeita, pois o nmero de problemas , aparentemente, infinito,
especialmente em uma grande cidade do "Terceiro Mundo". E, digase (ou pergunte-se) de passagem: existem problemas especificamente urbanos, ou apenas problemas sociais gerais na cidade?
Tome-se o exemplo da violncia urbana. claro que a violncia
tem se manifestado desde sempre tanto na cidade como no campo, e
nas mais diferentes formas possveis: guerras convencionais, guerras
civis, revolues, crimes polticos, crimes passionais, latrocnios (ou

80

00

~eja, roubo seguido de morte) ... Naturalmente, no haveria de ser o

81
lill.[l11
[l1J

simples fato de que urna dada manifestao de violncia tem corno

sobrevivncia, legais e ilegais, que a ela se vinculam (do comrcio

palco urna cidade que bastaria para qualific-la de tipicamente ou espe-

ambulante ao trfico de drogas de varejo).


Quanto segregao residencial, ela , essencialmente, um pro-

cificamente urbana. Um crime passional, perpetrado por um marido


ciumento, pode ser cometido em um apartamento no centro de So
Paulo (ou de Manhattan, ou da Cidade do Mxico ...) e em uma casa de
campo; est upros ocorrem freq entemente na periferia do Rio de
Janeiro e ocorreram, maciamente, em reas rurais na Bsnia, em passado recente, como a imprensa internacional fartamente divulgou;
massacres foram tanto os de Vigrio Geral (favela do Rio de Janeiro),
da Candelria (no centro do Rio) ou do Carandiru (peni tenciria de So

muito mais que das cidades pequenas. A segregao residencial um


problema por vrias razes. Destacarei duas:

Paulo), nos anos 90, quanto o de Eldorado dos Carajs, que vitimou

l) Menos segregao reside nc ial tende a s ignificar maiores


chances de interao entre grupos sociais diferentes, e maio r
interao tende a facilitar enormemente a demolio de pre-

violncia em geral, que esto intimamente conectados s peculiarida-

conceitos.Teme-se e odeia-se muito mais faci lmente aquele s


que, no fundo, no se conhece, embora se pense conhecer;
mais difcil ou menos provvel questio nar o estatuto de
humanidade daqueles que so diferentes e deixar de reconhe-

rivais de traficantes de drogas; os choques entre gangues de ruas ou


bairros diferentes ... Diante disso, pode-se dizer que, ao mesmo tempo
que as causas da violncia so mltiplas (variando, evidentemente,

cer as semelhanas entre "ns" e "eles" quando h mais con-

com o tipo especfico de violncia ou crime violento, e existem nume-

2) Melhores condies de habitao, na escala da casa e tambm


na escala do local de moradia em sentido mais amplo, na estei-

rosssimos tipos) e tm a ver com fatores que podem dizer respeito a


fe nmenos em vrias escalas, da internacional domstica, existem,
s im, certas manifestaes de violncia ou crime vio lento tipicamente
urbanas, incl usive algumas bastante especficas de grandes cidades.
Dois grandes conjuntos de problemas, o u duas grandes problemticas, associam-se fortemente s grandes cidades: a da pobreza e a
da segregao residencial. A pobreza, obviamente, nada parece ter
de tpica ou especificamente urbano, primeira vista. Sabe-se, inclusive, que a pobreza, nos pases do "Terceiro Mundo", quase sempre
maior no campo que na cidade, po is nas reas rurais que os percen~

pobreza absoluta costumam ser maiores. Contudo, a


pobreza urbana se reveste de peculiaridades, tanto por conta de suas
formas de expresso espacial caractersticas (favelas, perife ri as
pobres, reas de obsolescncia), quanto por caus a das estratgias de
tuais de

IJiJ

segregao residencial um fenmeno urbano, e da grande cidade

trabalhadores rurais sem-terrn no Par, tambm na dcada passada. H,


porm, alguns tipos de manifestao de criminalidade violenta, ou de
des do espao urbano (formas espaciais, modos de vida e estratgias de
sobrevivncia): a violncia no trnsito; os quebra-quebras de protesto
e m estaes ferrovirias ou de nibus; os conflitos e ntre quadrilhas

82
lill.ITTl

duto da cidade. Meros povoados ou aldeias rurais no possuem uma


complexidade que d origem a bairros inteiros ou grandes espaos
segregados, sendo, pelo contrrio, relativamente homogneos. A

vivncia. A convivncia fa vorece a tolerncia; a segregao


realimenta a intolerncia.

ra de in vestimentos pblicos em infra-estrutura tcnica e


social, em habitao popular, em regularizao fundiria etc.,
devem contribuir para uma diminuio dos preconceitos contra os espaos segregados tpicos das c idades brasileira s,
especialmente no caso das fa velas. Menos preconceitos po dem ter, a mdio ou lo ngo prazo, uma repercusso bastante
positiva na auto-estima coletiva, o que, por s ua vez, um
componente importante de um processo de desenvolvimento
urbano autntico (sobre a id ia de desenvolvimento urbano
voltarei a discorrer, especificamente, no prximo captulo).
A segregao residencial um resultado de vrios fatores, os
q1111is, em si, so altame nte problemticos: da pobreza (e do racismo,

83

00

84

mm
[li

dl' se proteger dos efeitos sociiais negativos derivados dos impactos

sobretudo em uma situao como a dos EUA) ao papel do Estado na


criao de disparidades espaciais em matria de infra-estrutura e no

111nbien1ais. Explicando melho:r, com a ajuda de um exemplo: ao con-

favorecime nto dos moradores de elite (pri ncipalmente em um pas

11 ~rio dos empresrios e dos quadros de executivos situados frente

como o Brasil). S uperar ou reduzir a segregao depreende a supera-

de indstrias causadoras de P<:::>l uio do ar, os trabalhadores pobres

o ou a reduo desses problemas. Em uma hipottica situao, na

11li e mpregados no somente s~ beneficiam apenas residualmente dos

qual todos os grupos fossem igualmente poderosos e materialmente

lucros gerados pela atividade, c uja gesto escapa ao seu poder deci-

bem aq uinhoados, e na qual as diferenas se restring issem a diferen-

M~rio, como ta mb m, alm disso, no t m muita escolha em matria

as tnico-culturais, o problema se circ unscreveria, provavelmente,

de local de moradia, te ndo que se suj eitar a uma expos io muito

s dificuldades e aos atritos obscurantistas derivados dos preconcei-

mais intensa e direta polui o que, muitas vezes, as suas prprias

tos e da fa lta de dilogo. Injustia social, contudo, no seria uma

lbricas acarretam. Moral da his tria: atividades que geram impactos

questo central. Em uma cidade capitalista, no entanto, especialmen-

negativos podem ser malficas, de vido ao prprio impacto, para uma

te se situada em um pas (semi)perifrico, o quadro muito diverso:

enorme parcela da sociedade, mas no para todos, caso c ontrrio no

a segregao est entrelaada com disparidades estruturais na distri-

M.:riam praticadas; se o so, porque h quem lucre, e s vezes mui-

buio da riq ueza socialmente gerada e do poder. A segregao deri-

tssimo, com e las. De outra Parte, os que menos ganham, direta ou

va de desigualdades e, ao mesmo tempo, retroalimenta desigualdades

mesmo indiretamente, com essas atividades impactantes, so, tam-

(~ retroalimentao positiva), ao condicionar a perpetuao de preconceitos e a existncia de intolerncia e conflitos.

bm, normalmente os que m enos t m capacidade para se proteger,


por meio de um local de moradia aprazvel e afastado, das fontes de

pobreza urbana e segregao residenc ial podem ser acres-

impactos negativos. As perdas e os ganhos com as atividades acarre-

centados outros problemas, no raro intimamente associados com

ludoras de efeitos ambientais negativos se acham, assim, muito desi-

e las duas. Um deles o da degradao ambiental, em rel ao qual,

gualmente distribudos scio-e spacialmente, c aracterizando uma

a lis, se percebe, em cidades como as brasileiras, uma interao entre

situao de flagrante injustia.

problemas sociais e impactos ambientais de tal maneira que vrios

Outro problema o conjunto de dificuldades vinculadas a um sis-

proble mas ambientais, que iro causar tragdias sociais (como des-

tema de trfego ineficiente, ariti-ecolgico e car.o . A prioridade do ve-

moronamen tos e deslizamentos em encostas, enchentes e poluio

culo particular de transporte de passageiros evidente no Brasil; ela

atmosfrica) , tm orige m em problemas sociais ou so, pelo menos,

re flete tanto di stores de menta lidade e defeitos de planejamento

agra vndos por eles. s vezes, os prprios pobres so imediatamente

q uanto, sem dvida, a influncia da poderosssima indstria automobilstica e seus interesses. Mesmo o transporte coletivo intra-urbano,

responsveis por certos impactos, conquanto no o sejam em ltima


i11st1Zcia (por exemplo, no seria justo nem correto culpar simples-

que tem como clientela bsica a populao pobre, se baseia quase que

mente os pobres que desmatam e perturbam a drenagem natural em

exclusivamente em nibus. Os antigos bondes, que so pequenos

uma encosta urbana para construir casas de favela sem levar em con-

tre ns urbanos cujos trilhos. ao menos em parte, se superpem s vias

siderao o con texto eco nm ico-social que os induz a isso) . Por


outro lado, aq ueles que, em ltima anlise, menos so responsveis

tambm utilizadas pelos automveis partic ulares, nibus e caminhes,


desapareceram das cidades brasile iras, sob alegaes como a de que

pelos impactos ambien tais, j que no pertencem elite dominante

eram um entrave ao progresso, a de que atrapalhavam o trnsito e coi-

da sociedade, so, tambm, aq ueles que menos ganham com as ativi-

sas que tais; ironicamente, esse o mesmo tipo de veculo de transpor-

dades que geram os impactos e, por fim, os que menos tm cond ies

te coletivo de passageiros que, a inda hoje em dia, pode ser encontrado

85
ITT1.ITTl

[J

em tantas cidades europias, e das quais os europeus no abrem mo...

disponibilidade para investimentos em infra-estrutura , normalmen-

( bvio que se trata, a, de bondes modernos e rpidos, coisa que

te, mu ito menor! Infelizmente somos, para variar, tambm aqui, mais

pode at soar paradoxal entre ns, j que a imagem que temos dos

realistas que o rei. E o curioso que essa opo deformada, q ue pri-

bondes, congelada no tempo, a de uma pea digna de um museu.) O

vi legia a parcela da pop ulao q ue poss ui automvel particular,

metr, especialmente aquele propriamente dito, subterrneo (no me

acaba, no fundo, sendo ruim para quase todos, at mesmo para a clas-

refiro ao chamado "metr de superfcie"), uma soluo ecologica-

se mdia: no apenas devido aos custos ecolgicos, ou porque o custo

mente satisfatria, mas excessivamente cara para ser razovel para

econmico maior pesar nos bolsos dos contribuintes em geral, mas

as grandes cidades de pases perifricos e semiperifricos, ou, pelo

tambm porque os engarrafamentos, cada vez mais insuportveis,

menos, para a esmagadora maioria delas.

86

00

iro afetar a quase totalidade da populao. A fig ura 9 busca retratar

No Brasil, a deformao que a exagerada prioridade dada ao

as diferenas espaciais no padro de expanso urbana em duas cida-

transporte particular e ao transporte sobre rodas movido a derivados

des hipotticas: uma, onde o transporte sobre rodas reina soberana e

de petrleo em geral, em detrimento do transporte sobre trilhos, no

exclusivamente ("Rodpolis"), e outra, onde o transporte sobre tri-

esconde, a despeito das tentativas de pint-la como eficiente, pelo


fato de que permite uma flexibilidade muito maior, que ela traz enor-

lhos foi preservado e expandido ("Trilhpolis"). Nesta ltima, so


principalmente os e ixos de c irculao sobre trilhos que a rcam co~ a

mes custos para a cidade como um todo. A expanso urbana, em vez

funo de orientar a expanso urbana, e mbo ra, logicamente, no

de acompanhar eixos bem definidos, que so aqueles determinados

substitua m inteiramente o transporte sobre rodas coletivo o u privado,

pelos corredores ferrovirios, avana em todas as direes como uma

que segue sendo importantssimo e imprescindvel.

mancha de leo, embora, ao mesmo tempo, avance aos "saltos",

Como as pessoas reagem aos problemas urbanos? Reagem de

devido presena dos "vazios urbanos" a serem debitados na conta

mane iras diferentes, conforme a c lasse social e as circunstncias:

da especulao imobiliria. A dem anda por instalao de infra-

migrando para outra parte da cidade ou mesmo outra cidade e at

estrutura cresce de maneira assustadora, medida que a malha viria

outra regio, enclausurando-se em "condomnios excl us ivos", orga-

se multiplica rapidamente, e as distncias, a serem vencidas, em

nizando-se para reivindicar, saqueando superme rcados, quebrando

grande ou na maior parte, na base do transporte sobre rodas, vo

trens e incendiando nibus e m s inal de pro testo ... Certas reaes,

aumentando e aumentando. A flexibilidade de deslocamento propor-

como as estratgias de sobrevivncia ilegais, contribue m, e m s i mes-

cionada pelo transporte sobre rodas no deve nos cegar quanto ao


alto custo econmico (os trens transportam mais gente a um custo

mas, para agudizar a problemtica de declnio dos padres de sociabilidade e qual idade de vida experimentados, de forma to dramtica,

menor) e ecolgico (poluio atmosfrica e sonora maior) associado

nas grandes cidades brasileiras, em especial nas me trpoles, sem que,

a essa modalidade de transporte. Isso no s ig nifica que o transporte

por outro lado, se constituam e m reaes construtivas que possam

sobre rodas deva ser draconia namente condenado; significa, to-

colaborar, no lo ngo prazo, para melhorar a qualidade de vida dos

somente, que a nfase no deve ser dada a ele, e sim ao transporte de

pobres. No e ntanto, o crime se apresenta como uma "opo" aceit-

massa sobre trilhos, e que o resultado deve ser uma soluo de com-

vel quando os indivduos percebem ou crem q ue as "opes" con-

promisso, na base de uma combinao inteligente das vrias modali-

formes lei e mais conve nientes para a parcela privilegiada da popu-

dades de transporte. Isso, que tantas vezes julgado como vlido at

lao, como resignar-se a salrios miserve is ou a esmolar, no

mesmo aos olhos de europeus, olhando para as suas prprias cidades,

valem a pena ou so ainda piores que os riscos e sofrimentos que uma

deveria ser uma regra de ouro entre ns, habitantes de cidades onde a

"carreira" criminosa aca1Teta. Alm disso, pura que as estratgias ile-

87

00. .

gais se mostrem aceitveis ou atraentes, no basta que haja pobreza e


Figura 9

desigualdades: necessrio que isso seja visto como injusto, e que o

SISTEMA DE TRANSPORTES, PADRO DE EXPANSO


URBANA E CONSEQNCIAS SCIO-ESPACIAIS

crime seja visto como desculpvel e algo que, sim, pode compensar, o
que significa que fatores culturais e institucionais desempenham um
papel crucial. certo, alm disso, que no so somente certos tipos de
reao protagonizados pelos pobres urbanos que colaboram antes para
piorar a situao do que para resolv-la: a auto-segregao, por exemplo, no passa de uma pseudo-soluo escapista.
As tenses se vo avolumando medida que os problemas so-

ciais de base, alimentadores de problemas urbanos como a pobreza e


a segregao, e influenciadores, por tabela, das estratgias ilegais de
sobrevi vncia, no so resolvidos ou mesmo se agravam. Ressentimentos entre os pobres e aqueles que so segregados, de um lado, e
aqueles que se auto-segregam (ou a classe mdia e as e lites urbanas
em geral), de outro, recrudescem, e os preconce itos e dios de parte
a parte se multiplicam. Os confli tos de interesses, contudo, no se
desenrolam como " luta de classes", uma vez que a violncia possui
um fortssimo componente de "desordem despolitizada" : muitas

vezes, so os prprios pobres que, por poderem se proteger menos,


so vtimas da criminalidade violenta, ao sofrerem, apenas para citar
um exemplo, assaltos em nibus.
A cidade cada vez menos se parece com uma "unidade na diversidade", onde, apesar da segregao, pessoas de diferentes classes e
grupos sociais ainda podem interagir sem grandes problemas (o que,
evidente mente, no deve ser exagerado, muito menos romantizado),

Cidade hipottica "Rodpolis": o transporte sobre rodas e baseado no uso


de combustiveis fsseis reina absoluto. Conseqncias: mais gastos com infraestrutura urbana, maior consumo geral de energia (combustvel), mais poluio
atmosfrica e, particularmente em um pas perifrico/semiperifrico, tendncia
formao de grandes vazios urbanos associados especulao imobiliria
em larga escala ('urbanizao em saltos').
Cidade hipottica "Trilhpolls": o transporte sobre trilhos foi preservado e
expandido. Conseqncias: investimentos em infra-estrutura mais bem
direcionados para reas ocupadas ou ocupveis ao longo dos eixos de
circulao sobre trilhos, que orientam a expanso da cidade; menor dispndio
geral de combustvel, menos poluio atmosfrica e menor tendncia
formao de grandes vazios no interior do tecido urbano.

e cada vez mais vai se assemelhando a uma coleo de compartimentos quase estanques j ustapostos. Favelas e outros espaos residenciais segregados vo, como no Rio de Janeiro (e, em grau um pouco
menor, em So Paulo, e em grau muito menor em vrias outras cidades bras ileiras), sendo control ados (ou, como se diz tecnicamente,
"territorializados") por quadrilhas de traficantes de drogas, que intimidam ("lei do sil ncio"), impem regras de uso do espao ("toque
de recolher", proibio de crimes comuns como roubos e estupros) e
punem severamente os que transgridem essas regras. Na o utra ponta
do espectro social, multiplicam-se os condomnios exclusivos, com

88
ITTl..ITTl

[11J

89
ITTl..ITTl

[11J

seus dispositi vos de segurana, funcionando como "bolhas de proteo" que, em uma gerao inteira de adolescentes e jovens, j contri-

locais etc.). Os espaos pblicos, associados, crescentemente, a

buiu para incutir sentimentos de preveno contra a cidade real s itua-

menos freqentados (com exceo daqueles que tambm p assam a

da fora dos muros dos condomnios, vista como perigosa, amedron-

dispor de dispositivos de segurana, como certos parques e certas

locais perigosos e desprotegidos, vo se tornando, muitas vezes,

tadora e, na sua quase totalidade, virtualmente desconhecida. O Esta-

praas), e o comrcio vai se concentrando em shopping centers, vis-

do, tradicional promotor de segregao residencial Uunto com o capi-

tos pela classe mdia como uma alternativa muito mais confortvel e

tal imobilirio, ou tendo este por trs ...), ao investir diferencialmente

segura para se fazerem compras e se divertir que os subcentros tradi-

nas reas residenciais da cidade e estabelecer estmulos e zoneamen-

cionais e os logradouros pblicos. Est-se diante, portanto, de mais

tos e outras normas de ocupao do espao que consolidam a segregao, atua, tambm, como agente repressor, via de regra na tentati-

que um simples agravamento da segregao residencial, muito embo-

va de "colocar os pobres no seu devido lugar": antes uma guarda d as

devido maior estigmatizao dos moradores de espaos segregados

ra esta se agrave medida que a fragmentao avana: por exemplo,

e lites que uma polcia cidad, igualmente respeitadora de brancos e

pela sua associao, preconceituosa e generalizante, com o trfico de

negros, de moradores pri vilegiados e pobres.

drogas, luz da opinio pblica e sob mediao da mdia. A fragmen-

O resultado sinttico desse quadro o que eu venho chamando

tao do tecido sociopoltico-espacial , ta mbm, muito ma is que,

de "fragmentao do tecido sociopoltico-espacial". "Fragmenta-

meramente, um aumento das di sparidades sociais: assiste-se, de

o" virou, foroso reconhecer, uma palavra da moda, muito a

mane ira bastante consolidada no Brasil, no Rio de Janeiro e e m So

reboque da popularidade daquilo que muitos consideram a realidade

Paulo (e, embrionariamente, em outras cidades e metrpole~), a um

em relao qual e la um contraponto: a globalizao. Assim, a


" fragmentao", freqentemente vista no e m sua expresso espa-

processo no qual a cidade, do ponto de vista sociopoltico, de fato se

cial, mas apenas enquanto aumento de disparidades e fraturas sociais,

e psicossociais muito negativas . a " lgica" do "salve-se quem

vai fragme ntando, <.:Om <.:onseqncias socioculturais, sociopolticas

e ncarada como uma espcie de subproduto de uma globalizao

puder", que se faz presente tanto nas estratgias de sobrevivncia cri-

econmico-financeira, que gera riqueza cada vez mais concentrada e,

minosas (e nas tentativas dos moradores no-criminosos de espaos

por conseguinte, pobreza para muitos. Diferentemente disso, a "frag-

segregados de minimizarem os efeitos colaterais de sua convivncia

mentao do tecido sociopoltico-espacial" no apenas uma forma

forada com criminosos) quanto no escapismo da classe mdia e das

nova de se designar o aumento de disparidades sociais, nem mesmo

e lites, que tentam colocar-se a salvo do amedrontador "mundo exte-

um j eito novo de se referir ao agravamento da segregao residen-

rior" por meio de muros, guardas armados, interfones, cmaras de

cial; ela uma expresso que designa um processo que abrange tanto

TV, carros blindados etc.

a formao de enclaves territoriais ilegais, controlados por grupos de


criminosos, a t o "auto-enclausuramento" de uma parte c rescente da
classe mdia e das elites.
Nas duas pontas do espectro social a cidade "se fecha" mais e
mais, e tambm segmentos que nem so to claramente segregados,
nem se auto-segregam, tentam se valer de dispositivos e estratgias
de segurana para se protegerem (gradear seus prdios, pr guaritas
na entrada de seus loteamentos, sair menos de casa, evitar certos

90

00

91
ITTl1m

[IlJ

6. O que devemos entender


por desenvolvimento urbano?

t~Gt ~ 1# ~~l 'i'

S agora, no sexto captulo, comeo a focalizar, diretamente, o


assunto do desenvolvimento urbano, que d ttulo a este li vro. O leitor ir compreender, porm, que era necessrio, antes de examinar as
condies de desenvolvimento da cidade, possuir uma viso ampla
sobre a natureza da prpria cidade e de sua dinmica.
Vou propor, agora, um exerccio de imaginao ao leitor. Imagine o leitor uma cidade que cresce, horizontal (expanso do tecido
urbano, incorporao de novas reas) e verticalmente ("verticalizao": substituio de casas e prdios baixos por prdios altos e
modernos em certas partes da cidade); uma cidade que se sofistica, ao

93

imlm

[1lJ

ofertar bens e servios cada vez mais variados, ao ver se multiplicarem subcentros de comrcio e servios e ao apresentar uma centralidade cada vez maior; uma cidade, alis, onde a oferta cultural crescente, com cada vez mais cinemas, teatros, casas de espetculos, galerias de arte etc. A isso se poderia acrescentar toda uma lista de trun-

94

00

fos econmicos, como presena crescente de indstrias, a umento


constante do PIB municipal, e por a vai. S que ... essa cidade a
mesma cidade onde o nmero de favelas aumenta vertiginosamente,
onde as tenses recrudescem, onde a incorporao de novas reas se
deu, em grande parte, deixando um saldo ambiental negativo (destru io de manguezais, desmatamentos, aterros de lagunas ...), onde a
poluio (do ar, sonora, visual e hdrica) vai se tornando, a cada dia,
menos suportvel, onde a renda est cada vez mais concentrada...
More seja l em que cidade brasileira more, especialmente se ela
for de grande porte, o leitor, ao fazer o exerccio de imaginao proposto, deve ter, a dada altura, encontrado alguma analogia com o que
se passou ou vem se passando com a sua prpria cidade. As intensidades variam conforme o tamanho, a complexidade e a localizao (o
contexto regional) do ncleo urbano, mas os traos essenciais so os
mesmos.
Poderia ser diferente? Muito dificilmente. Em uma sociedade
capitalista, muito principalmente em um pas perifrico ou semiperifrico, a riqueza material e cultural gerada apropriada muito seletivamente, os impactos ambientais so de difci l domesticao e resultam de uma necessidade de produzir cada vez mais (pois, sob o capitalismo, o crescimento econmico um imperativo, e no crescer ,
a longo prazo, fatal, para empresas assim como para pases) e a diversidade cultural e scio-espacial , com freqncia, vista antes como
um estorvo pelas elites econmicas do que como um bem a preservar
(afinal, a diversidade cultural pode ser um obstculo para a difuso
de gostos padronizados, e a preservao da beleza cnica, da natureza e do patrimnio histrico-arquitetnico, que pode ser considerada
como til para os interesses do prprio capital imobilirio no longo
prazo, pode ser um simples detalhe a ser convenientemente ignorado
no curto prazo). Sabe-se que as desigualdades sociais e as agresses

contra o patrimnio ecolgico e arquitetnico no se do da mesma


l'o rma em todos os pases. A distncia entre o nvel de disparidade socioeconmica e de degradao ambiental de uma grande cidade brasileira e o de uma grande cidade europia (alem ou escandinava, por
exemplo) gigantesca. Mas, deixando de lado o fato de que mesmo
o "Primeiro Mundo" no est isento de problemas (basta ver o crescimento do desemprego e da pobreza, as ondas de xenofobia e intolerncia racial. .. ), fora de dvida que a superao dos problemas
111ateriais mais bsicos, nos pases ditos "desenvolvidos", produto
de um processo histrico de muitos sculos ... em que muitos deles,
alis, se beneficiaram, direta ou indiretamente, da explorao de suas
colnias ou neocolnias no "Terceiro Mundo". Por isso irrealista
imaginar que o "desenvolvimento" dos pases (semi)perifricos
uma "simples questo de tempo", e que esses pases esto atualmente em um "estgio" que os pases centrais j vivenciaram no passado:
ns chances que aqueles pases que se industrializaram primeiro e se
to rnaram potncias colonizadoras e imperialistas tiveram, so chances historicamente localizadas e irreprodutveis da mesma forma
como se deram no passado, e essas chances os pases (semi)perifricos no as tiveram ou tm - exatamente porque esses pases foram o
"o utro lado", as colnias de explorao, as neocolnias ... Margens de
manobra para se superarem os problemas existem, mas situaes historicamente muito diferentes no podem ser comparadas. E as margens de manobra existentes hoje em dia so, convenhamos, muito
limitadas. Os reflexos disso nas grandes cidades, que so como que
us principais caixas de ressonncia dos problemas econmicos e
hOCiais de cada pas, tornam-se cada vez mais ntidos.
Para algumas pessoas, uma cidade "desenvolve-se" ao crescer,
no se expandir, ao conhecer uma modernizao do seu espao e dos
transportes, ao ter algumas reas embelezadas e remodeladas. Esquecem-se, com muita facilidade, duas coisas: os custos, sociais e
umbientais, de tais progressos, via de regra muito seletivos, social e
c.:spacialmente; e o contexto mais amplo (regional, nacional, internado nal) de tais melhoramentos, os quais, normalmente, s ignificam
que est em curso, dependendo do pas, uma extrao de ~ mais-

95
ffiITT1

UiJ

valia e uma drenagem de renda fundiria de outras reas, dentro ou


at fora do pas, as quais alimentam os projetos de embelezamento,
"revitalizao" etc. que conferem prestgio a certas partes de certas
orandes
cidades . O desenvolvimento estritamente econmico (isto ,
o
crescimento+ modernizao tecnolgica) em uma cidade capitalista
costuma cobrar um alto preo. O brilho desse "progresso" , contudo,

tamanho, ou tambm to intensificado com a ajuda do marketing e da


propaganda, que cega a maioria das pessoas. Cabe, no entanto, parar
e perguntar: que "desenvolvimento urbano" esse, que vem no bojo
de tantas e de tamanhas contradies?
Sob um ngulo social abrangente, ou seja, que leve e m conta os
interesses legtimos de toda a sociedade, o desenvolvimento que
importa no ou deve ser meramente econmico, mas sim scio espacial. O que isso significa, exatamente? Vou expor o argumento
aos poucos. comeando pela anlise das limitaes do conceito de
desenvolvimento econmico.
Desde a dcada de 50 a preocupao com o desenvolvimento sendo a palavra normalmente tomada como uma simples forma abreviada de se referir ao desenvolvimento econmico - inspirou a construo de ideologias, a criao de ctedras universitrias e de instituies de cooperao tcnica internacional e a redao de milhares de
livros, milhares de teses acadmicas e ainda mais numerosos artigos.
Grandes expectativas de emancipao e bem-estar foram geradas
pelo mundo afora - as quais foram, quase sempre, frustradas.
O que , no entanto, o desenvo lvimento econmico? Na sua
essncia, uma combinao de duas coisas: crescimento econmico e
modernizao tecnolgica. No nada incomum os manuais uni versitrios fazerem referncia a "bene fcios esperveis" do desenvolvimento econmico como a melhoria de "indicadores sociais", a exemplo do aumento da taxa de adultos alfabetizados ou da reduo da
taxa de mortalidade infantil; no entanto, quem acredita, hoje em dia,
que benefcios sociais sejam um produto automtico do crescimento
econmico ou da modernizao tecnolgica? Desde a dcada de 70,
mesmo entre economistas conservadores (isto , no de esquerda,
inclusive vinculados a instituies como o Banco Mundial), mas

96

iIBlITJ

r.:ru

dotados de um mnimo de bom senso, se admite que, sem instituies


e programas especficos voltados para a redistribuio de renda e a
satisfao de necessidades bsicas, o desenvolvimento econ mico
tende a no se fazer acompanhar de uma melhoria nos indicadores
sociais. Em outras palavras, preciso reconhecer que tambm o sistema poltico, os valores e padres culturais e, deve-se acrescentar, a
organizao espacial, devem ser adequadamente considerados; tudo
isso junto, e no somente o aumento da produo de bens e o progresso tcnico/tecnolgico na produo desses bens, ir influenciar o
nvel de bem-estar e de justia social em uma sociedade.
prec iso evitar o mal-entendido de se pensar que estou di zendo,
pura e simplesmente, que a preocupao com o crescimento econmico e com a modernizao tecnolgica seja irrelevante. O que desejo denunciar como uma impostura, infelizmente ainda hegemnica,
atribuir ao desenvolvimento econmico uma importncia intrnseca,
como se ele, em vez de um simples meio de promoo de qualidade
de vida e justia social, fosse um fim em si mesmo. Um fim em si, ele
no poder ser nunca; isso parece bvio, uma vez que ningum
"veste crescimento econmico" e "se alimenta de modernizao tecnolgica", e uma vez que, entre o crescimento e a modernizao, de
um lado, e a satisfao das vrias necessidades humanas (materiais e
imateriais), muitos fatores de natureza no econmica (polticos, culturais ... ) se fazem presentes, dificultando o u facilita ndo a tarefa. H,
porm, mais ainda do que isso: a partir do momento em que se percebem alguns limites fundamentai s do modelo social capitalista, como
o seu carter anti-ecolgico (devido ao imperativo de crescimento, j
mencionado pargrafos atrs) e a ex plorao do trabalho assalariado
inerente ao modo de produo capitalista - isto , a partir do momento em que o contexto em que se d o desenvolvimento econmico
capitalista posto em questo-, mesmo a utilidade do crescimento e
da modernizao tecnolgica como meios seguros de promoo de
desenvolvimento social em sentido mais amplo abalada. Alm
disso, no razovel esperar que todos os pases e regies tenham, no
f1mbito do sistema mundial capitalista, uma real chance de alcanarem e manterem um nvel de desenvol vimento econmico satisfat-

97

miffil

[llJ

rio. Considere-se seriamente a existncia de mecanismos econmicos perpetuadores das desigualdades internacionais (hiato tecnolgico crescente entre os pases centrais e aqueles tipicamente perifricos, barreiras protecionistas importao de produtos dos pases
perifricos etc.); leve-se em conta, tambm, a existncia de fatores
geopolticos que igua lmente contri buem para manter o u reforar
essas desigualdades (presses diplomticas, apoio a golpes de Estado
e at ameaa de intervenes militares por parte das potncias hegemnicas, sempre que os seus interesses estratgicos so ou podem vir
a ser feridos em decorrncia de mudanas polticas e econmicas em
algum pas do "Terceiro Mundo"); e leve-se em considerao, por
fim, os li mites ecolgicos a uma expanso planetria dos padres de
consumo dos pases centrais: ao se pr tudo isso na balana, no fica
difcil ver que, com as regras do jogo existentes, um ou outro pas
pode at subir de posio no ra11ki11g internacional (como vem ocorrendo com a Coria do Sul), mas prometer uma reduo muito significativa dos desnveis internacionais vender uma iluso.
Se o desenvolvimento econmico, por si s, insuficiente, ou
pode at mesmo estar sendo conduzido de modo social e ecologicamente inadequado, que tipo de desenvolvimento, ento, interessa ao
indi vduo comum, no pertencente s elites econmicas do planeta?
Falar de desenvol vimento social parece, prime ira vista, razovel,
desde que se explic ite que o adjetivo, aqui, est abrangendo a totalidade social em suas vrias dimenses: economia, poltica (no sentido
amplo de relaes de poder) e cultura. Contudo, falta algo: aquilo que
se pode chamar de a dimenso espacial da sociedade. O espao
social foi, com freqncia, totalmente o u quase totalmente esquecido
pelos tericos do "desenvolvimento", e, mesmo naqueles casos em
que a dimenso espacial foi ou tem sido lembrada e prestigiada, a sua
importncia e o seu alcance tm sido, via de regra, subestimados. E o
que mais decepcionante: tanto por conservadores quanto, at
mesmo, por crticos da ideologia capitalista do desenvolvimento econmico. Isso porque, mesmo naqueles casos em que a dimenso
espacial foi o u bastante valorizada, comumente trata-se de uma
viso muito parcelar da espacialidade: o espao reduzido a uma de

98
mi..ITTl

WJ

suas facetas, como o "espao econmico", que nada mais que a projeo abstrata da dimenso econmica no espao, ignorando os fatores polticos e culturais (caso de certas teorias econmicas do desenvolvime nto regional), ou o espao natural, que o meio ambiente
(caso do antigo "ecodesenvolvimento" dos anos 70, nos anos 80
substitudo pelo rtulo "desenvolvimento sustentvel"). O espao
social, que a natureza transformada pelas relaes sociais, porm,
vai muito alm disso. E h razes de sobra para ele ser levado em
conta adequadamente.
O espao social no um simples "dado" sem maior importncia para a vida social. O espao social , ao mesmo tempo, um produto das relaes sociais, e um condicionador dessas mesmas relaes. A organizao espacial e as formas espaciais refletem o tipo de
sociedade que as produziu, mas a organizao espacial e as formas
espaciais, uma vez produzidas, influenciam os processos sociais subseqentes. Aquilo que, em linguagem mais tcnica, corresponde ao
substrato espacial, ou seja, as formas espaciais concretas, materiais
(um campo de cultivo, o solo urbano etc.), representa tanto um produto da sociedade quanto um condicionador das relaes sociais na
medida em que: a) no qualquer coisa que se pode fazer com qualquer estrutura espacial, e uma estrutura produzida por determinadas
relaes sociais para atender a determinados interesses pode no se
prestar a satisfazer adequadamente outros propsitos; b) a produo
do espao de uma determinada maneira exclui outras possveis alternativas, algumas vezes at em carter permanente, seja devido ao elevadssimo custo (financeiro e, mais amplamente, para a sociedade)
de se reestruturar inteiramente o espao, seja devido destruio,
muitas vezes irreparvel, do patrimnio natural ou histrico-arquitetnico. Mas ... no s o espao em seu sentido material que condiciona as relaes sociais ! Tambm as relaes de poder projetadas no
espao (espao enquanto territrio) e os valores e smbolos culturais
inscritos no espao (espao como espao vivido e sentido, dotado de
significado pelos que nele vivem), tudo isso serve de referncia para
as relaes sociais: barreiras e fronteiras fsicas ou imaginrias; espaos naturais o u construdos que, por razes econmicas, polticas ou

99

ffiJ

culturais, resistem ao tempo e s investidas modernizantes; imagens


positivas ou negativas associadas a certos locais...
Devido a essa importncia da dimenso espacial que eu acredito ser legtimo falar de desenvolvimento scio-espacial, em vez de,

tantivo desenvolvimento, com a ajuda dessa adjetivao. E que se

"desenvolvimento do espao social", como se se tratasse de transfor-

atente para a crtica da tradio ("desenvolvimento econmico" etc.)

mar apenas o prprio espao (situao em que a grafia deveria ser

que o novo sentido carrega. Mas, no vamos brigar por ou em torno

socioespacial), mas transformao das relaes sociais e do espao social, simultaneamente. Na minha convico, o desenvolvimento , nos seus termos mais simples, um processo de mudana para
melhor, um processo incessante de busca de mais justia social e

de palavras, desde que haja comunho de idias. Se o leitor concor-

e isso exige, tanto em matria de anlise de problemas quanto de formulao de estratgias para a superao dos problemas, no somente
a considerao das vrias dimenses que compem as relaes
sociais, mas tambm uma viso de como essas relaes se concretizam no espao.
No estou ignorando que, nas ltimas trs dcadas, avolumaramse e radicalizaram-se as crticas ao chamado "mito do desenvolvimento", a ponto de alguns crticos no se restringirem a uma crtica
da ideologia capitalista do desenvolvimento ( econmico), passando,
implcita ou explicitamente, a rejeitar a prpria "idia" de desenvolvimento em si (e, por tabela, at a palavra). Para esses analistas,
como se falar em desenvolvimento, sempre e necessariamente, significasse endossar a ideologia capitalista do desenvolvimento econmico, ou, pelo menos, uma viso da histria como se todas associedades tivessem de percorrer os mesmos "estgios" ao longo de um
processo de "desenvolvimento" predeterminado, viso essa, ainda
por cima, eurocntrica (ou seja, que assume ser o mundo ocidental
um modelo a ser imitado por todas as culturas e todas as sociedades).
S que, insisto eu, no precisa ser assim. A palavra desenvolvimento
suficientemente plstica, sendo capaz de ser moldada, conceitualmente, de forma alternativa sua captura pela ideologia capitalista.
E, se assim, por que falar de "mudana social positiva", ou, mais
precisamente, de "mudana social positiva que , simultaneamente,

IJ1J

pode, em nome da economia de palavras e da elegncia, falar de

desenvolvimento scio-espacial? No se incomode o leitor, porm,


sem necessidade: que se veja o sentido que estou atribuindo ao subs-

somente, desenvolvimento social. A referncia, aqui, no apenas ao

melhor qualidade de vida para o maior nmero possvel de pessoas -

100
ITTl]TI]

uma transformao das relaes sociais e do espao" (ufa!), se se

dar comigo, no essencial, mas preferir referir-se a uma "mudana


social positiva que , simultaneamente, uma transformao das relaes sociais e do espao", em vez de desenvolvimento scioespacial, que assim seja.
Voltemos, agora, para arrematar o captulo, ao tema mais especfico do "desenvolvimento urbano". Diante do que se argumentou
at agora neste captulo, fica evidente ser necessrio modificar e depurar a viso que se tem sobre o que seja o tal "desenvolvimento
urbano". Um desenvolvimento urbano autntico, sem aspas, no se
confunde com uma simples expanso do tecido urbano e a crescente
complexidade deste, na esteira do crescimento econmico e da
modernizao tecnolgica. Ele no , meramente, um aumento da
rea urbanizada, e nem mesmo, simplesmente, uma sofisticao ou
modernizao do espao urbano, mas, a ntes e acima de tudo, um

desenvolvimento scio-espacial na e da cidade: vale dizer, a conquista de melhor qualidade de vida para um nmero crescente de pessoas e de cada vez mais justia social. Se uma cidade produz mais e
mais riqueza, mas as disparidades econmicas no seio de sua populao aumentam; se a riqueza assim produzida e o crescimento da cidade se fazem s custas da destruio de ecossistemas inte iros e do
patrimnio histrico-arquitetnico; se a conta da modernizao vem
sob a forma de nve is cada vez menos tolerveis de poluio, de
estresse, de congestionamentos; se um nmero crescente de pessoas
possui televiso em casa, para assistir a programas e filmes de qualidade duvidosa e que, muitas vezes, servem de inspirao para atos de
violncia urbana, violncia urbana essa que prospera de modo alarmante; se assim, falar de "desenvolvimento" ferir o bom senso.

101
ITTl]TI]

IJ1J

Pode-se, em um tal caso, falar de crescimento urbano, complexificao da cidade e at mesmo modernizao do espao urbano e dos
padres de consumo ; mas seria um equvoco tomar isso por um processo de desenvolvimento urbano autntico, vale dizer, por um processo de desenvolvimento scio-espacial na e da c idade coerente e
ise nto de grandes contradies.
Visto isso, estamos preparados para enfrentarmos juntos o desafio de refletir sobre as maneiras de se pr em marcha rumo a um
desenvolvimento urbano autntico. Ou, parafraseando o ex-jogador
de futebol Dario, o "Dad Maravilha", integrante da seleo tricampe em 1970: depois de anal isar a problemtica, preciso passar
"soluciontica" ... Isso vai ficar, entretanto, para a partir do Cap. 8.
Antes disso vou me deter, no prximo captulo, em algumas falsas
explicaes sobre os problemas urbanos e em algumas falsas receitas
de superao desses problemas, dignas de figurar em uma das memorveis antologias humorsti cas da srie "FEBEAP", quer dizer,
"Festival de Besteira que Assola o Pas", de autoria do saudoso jornalista e escritor Srgio Porto, mais conhecido como "Stanis law
Po nte Preta".

7. Das falsas expl icaes sobre


os probl emas urbanos s falsas
receitas para super-los

Voltando discusso sobre o tamanho urbano: estou acostu mado a ouvi r, do taxista, do barbeiro e at de estudantes na universidade, que o tamanho maior ou menor de uma cidade explica a intensidade maior ou menor de seus problemas. primeira vista, isso parece fazer muito sentido: afinal, se uma cidade maior, ela possui mais
habitantes, mais automveis, e portanto mais vtimas de assalto em
potencial, mais assaltantes em potencial etc. etc. etc., sendo sensato
esperar que ela seja mais pol uda, mais violenta, mais insegura etc.
etc. etc .. Certo? Errado. Ou, pelo menos: estd longe de ser to simples assim. Se tudo o que parece ser primeira vista se confirmasse
aps um exame mais atento e criterioso, ainda estaramos falando

102

lill.im

[l1J

103

ffiJ

[l1J

que o Sol gira em torno da Terra, e Coprnico no teria promovido a

111terpretao puramente econmico-social simplista. Ela no leva

sua famosa revoluo cientfica.

c m conta que, entre o ser pobre e o pegar em armas para assaltar, h

Se o tamanho explicasse, por si s, alguma coisa, a regio metropolitana de Londres, com doze milhes e meio de habitantes (a

toda uma mediao de valores culturais (percepo disso como uma

Grande Londres, que menor que a metropolitan region, possui sete

poltico-institucionais (maior ou menor capac idade do aparato

milhes de habitantes), deveria ser, ento, mais de quatro vezes mais

repressivo e judicirio do Estado em desestimular a prtica de cri-

poluda e insegura que a metrpole de Recife, com seus um pouco

mes). E, alis, tambm esquece de que no existe o "crime violento"

mais de trs milhes de habitantes, e ser ainda mais problemtica, em

e nquanto tal, mas sim "n" tipos diferentes de crimes violentos, cada

matria de trnsito catico e violncia urbana, que a metrpole do

qual com a sua prpria " lgica": como comparar, por exemplo, o

Rio de Janeiro, com os seus mais de dez milhes de habitantes. Como


at intuitivamente j d para desconfiar, sem precisar ser um especia-

delito praticado por um pivete subnutrido com um crime passional

lista no assunto, no isso que ocorre. Bom para os londrinos ...

104
f;JJ11

WJ

injustia social, e no como uma fatalidade ou um "karma") e fatores

perpetrado por um indivduo de classe mdia?


Seriam, assim, essas falcias puramente idiotas e destitudas de

As falcias sobre quantidade, porm, no se limitam ao tamanho

qualquer base lgica? Bem, nem tanto ao mar, nem tanto terra.

urbano. Na verdade, existe toda uma "famlia" de falcias desse tipo.

Voltemos a Coprnico: se nada houvesse que pudesse sugerir aos

Uma outra, bem conhecida, a que atribui pobreza a explicao

homens que o Sol gira em torno da Terra, em vez de o contrrio, cer-

exclusiva no que se refere criminalidade violenta nas grandes cida-

tamente essa inverdade no teria se mantido por tantos milnios. A

des brasileiras. Enquanto a falcia do tamanho urbano tende a desa-

questo que algumas aparncias, que induzem a concluses fala-

g uar em um oceano de proposies autoritrias e at de fundo racista


(ao culpabi lizar os migrantes nordestinos, ou os pobres em geral,

ciosas, no so confirmadas por um exame que v alm delas. O que


11o quer dizer que tudo, absolutamente tudo, que est contido nessas

pelos males de So Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo), essa

interpretaes do senso comum, seja pura tolice.

outra falcia soa, em princpio, simptica, pois exala um perfume de

Vejamos o caso do tamanho urbano. O que se pode afirmar, sem

preocupaes sociais. No entanto, deixando de lado o fato de que h

medo de errar, que, para uma cidade que, "qualitativamente", j

um risco enorme de injustia embutido em uma associao banali-

problemtica (o que fruto de todo um processo histrico, normal-

zante entre "pobres" e "criminosos", resta o problema de que, se a

mente bastante complexo), ou seja, para uma cidade onde as estrutu-

pobreza fosse a causa nica ou quase exclusiva da criminalidade vio-

ras de poder, os canais de distribuio de riqueza etc. se mostram

lenta, Calcut, na ndia (que apresenta um nmero de pobres absolu-

viciados e apresentando um ntido vis excludente e de grande injus-

tos muito superior ao do Rio de Janeiro), seria muito mais violenta

tia social, e onde a qualidade de vida j se acha ameaada desde

que o Rio de Janeiro, coisa que no se d. Isso eu pude, pessoalmente, constatar, em 1997, ao caminhar, no ite, pelas ruas de Calcut,

sempre devido ao desenfreada de grupos de interesse que atentam

sem maiores preocupaes com a segurana (de fato, com muitssi-

mais demanda por moradias, por infra-estrutura, por empregos ...

mo menos preocupao do que teria no Rio ou em So Paulo), ainda

mais carros particulares circulando ... - tendero, sem dvida, a agra-

contra o patrimnio natural ou arquitetnico, presses quantitativas -

que desviando-me de centenas e centenas de pessoas dormindo nas

var continuamente o quadro. Essas presses quantitativas, resultantes

caladas. Mesmo quando se tenta sofis ticar um pouco a anl ise,

de fenmenos demogrficos ou econmicos, agravam, mas no

ampliando a pobreza para incluir no s a pobreza absoluta, mas tam-

criam os problemas fundamentais. Muito menos sensato culpar jus-

bm a relativa (ou seja, as desigualdades de renda e patrimnio), a

tamente os mais pobres, que muito mais reagem do que agem, pela

105
ITTLITTl

IJlJ

existncia dos problemas. E ncontrar bodes expiatrios , como sempre, mais fcil e mais cmodo do que discernir e enfrentar as causas
mais profundas.
No que se refere po breza como alimentadora da criminalidade
violenta, certo que ela , em certa medida, um fator relevante. Longe
de mim pretender negar isso ! O que se deve, uma vez mais, contextualizar a contribuio explicativa potencial da pobreza e da desig ualdade. Sem a considerao da cultura e das instituies policiais e
judicirias de uma sociedade, fica impossvel proceder a uma anlise
satisfatria e, partir da, tirar concluses que sirvam de fundamento
para recomendaes em matria de estratgias de soluo.

106

muni
111.J

Outras hipersirnplificaes muito comuns, freqentemente realimentadas pela grande imprensa, incluem os famosos "o problema a
falta de planejamento" e "o problema a falta de vontade poltica".
Existem muitas explicaes, dadas por estudiosos o u no mbito do
senso comum, que so, em si mesmas, falsas; j outras no so problemticas por serem totalmente equivocadas, mas sim porque, embora ajudem a explicar urna problemtica complexa, so postas corno
se fosse, cada urna delas, a explicao, a verdade, e no uma parte da
verdade. Por isso so, tecnicamente, falaciosas, ainda que no sejam
inteiramente absurdas. As hipersimplificaes "o problema a falta
de planejamento" e "o problema a falta de vontade poltica" fazem
parte deste rol.
A "falta de planejamento" (ou melhor: falta de densidade, falta
de tradio, despreparo tcnico e dificuldades organizacionais no que
se refere ao planejamento) um problema real. Se eu no acreditasse
nisso no teria publicado um livro de 556 pginas sobre planejamento e gesto urbanos (refiro-me ao li vro de 2002, que aparece na
Bibliografia comentada), sem contar as muitas outras atividades,
entre projetos de pesquisa, preparao de textos, cursos, palestras e
consultorias, que tenho dedicado ao assunto desde muitos anos. A
limitao reside em se achar que mais planejamento e que um planejamento melhor (tecnicamente) seriam como que a chave para abrir a
porta da superao das dificuldades concernentes aos problemas
urbanos. preciso considerar o seguinte: 1) a escassez de planeja-

rnento e as suas imperfeies tcnicas no surgem "por acaso", e se


no entendermos as causas institucionais, econmicas e culturais
mais amplas de certas deficincias no vislumbraremos uma boa
parte daquilo que necessrio enfrentar para ultrapass-las, e o resultado que ficaremos apelando, no mximo, para o chavo "se houvesse vontade poltica ... " (o qual comentarei no prximo pargrafo);
2) os planejadores tambm so "planejados" (ou seja, fo rmados/deformados durante seus cursos superiores, no ambiente de trabalho
burocrtico do dia-a-dia de uma Prefeitura etc.), o que significa o
seguinte: no basta haver "bastante planejamento" e "bons planejadores" (num sentido tcnico muito geral e descarnado), preciso
saber at que ponto os planejadores profissionais esto tica e tecnicamente preparados para abraar uma perspectiva de autntico desenvolvimento urbano, nos termos propostos ao final do captulo precedente, ou se, pelo contrrio, se contentaro em contribuir (inclusive legitimando tecnicamente) para um desenvolvimento entre aspas,
ao mesmo tempo em que se arvoram em "tcnicos neutros e racionais"; 3) os planejadores profissionais so funcionrios a servio de
um apare lho administrativo no qual o que conta, em ltima anlise e
ao frigir dos ovos (especialmente em um pas como o Brasil, embora
no s), so injunes polticas e interesses econmicos, e no a
"verdade cientfica" ou a "adequao tcnica" (de maneira que no se
pode fazer abstrao do corpo tcnico, esq uecendo o contexto onde
ele se insere e o q ual determina a sua margem de manobra). Alm
disso tudo, note-se que um dos problemas fundamentais, se bem que
no o nico, que o da escassez de recursos para investimentos
(escassez relativa, muitas vezes), exige que se levem em conta problemas que transcendem a questo do planejamento em escala local,
tanto tematicamente, quanto esca larmente: sem se conferir maior
autentic idade ao "pacto federativo" brasileiro, disponibi lizando mais
recursos para os municpios (e, de preferncia, no sob a forma de
"mesada", ou seja, transferncias dos nveis polticos superiores para
o nvel municipal), e sem que se alterem os termos determinados pelo
quadro macroeconmico (inclusive no que diz respeito s restries
impostas ao pas como um todo, seja por conta da sangria de recursos

107

!rnlfl1

111.J

em funo do pagamento do servio da monstruosa dvida externa,


seja em decorrncia das vicissitudes que atravessa a economia brasileira na esteira de polticas econmicas inadequadas ou lesivas ao
interesse nacional, seja, por fim, como resultado das restries ditadas pelo mercado externo devido a problemas como medidas de protecionismo econmico nos pases do "Primeiro Mundo" ), no ser

nante, mesmo que tenha convices ideolgicas consistentemente


democrticas, pode, simplesmente, se recusar a mandar reprimir protestos de trabalhadores, se no estiver respaldado por uma forte coa-

pobres urbanos. Diante disso, parece estar claro que uma frase como
"o problema a falta de planejamento" bastante ingnua. Pre-

popular fortssimo, ele cair. Pode um empresrio capitalista deixar

sionificar mais e melhor em um sentido tecnocrtico, em que os tc-

nicos acham que so os nicos competentes para dizer alguma coisa


sobre o assunto), assim como precisamos, sim ultaneamente, de
vrias outras coisas, as quais criam um contexto sem o qual o clamor
por "mais" e "melhor" planejamento ser vazio.
E quanto "falta de vontade poltica"? evidente para quase
todos que s nossas elites polticas falta a "vontade" de resolver os
problemas fundamentais. Mas... por que falta at mesmo a vontade?
Seriam todos uns celerados e insensveis irrecuperveis, beirando o
sadismo? O moralismo pode at ganhar pequenas batalhas ele itorais,
especialmente se bem embrulhado com uma retrica demaggica
convincente; contudo, no serve para ganhar a longa guerra contra os
problemas de base. Sem quere r sugerir que "insensibilidade" nada
tenha a ver com a histria, o fato que preciso entender que essas
e lites, das mais "ilustradas" e "modernas" s mais "atrasadas" e "oligrquicas", so produtos seculares de tradies e ambientes ideolgicos, e no s isso: perseguem, com a maior objetividade e eficcia
que a inteligncia individual permite, os seus interesses econmicos
e polticos enquanto classes e fraes de classe. No adianta apelar
para o "senso moral" de uma classe dirigente que, necessariamente,
com maior ou menor virulncia ou suavidade, maior ou menor primitivismo ou requinte, desempenha um papel de explorao econmica
e dominao poltica. Os indivduos que pertencem a essa classe no
exploram e oprimem (ainda que de modo, s vezes, to indireto,

illJ

nveis "gestores do bem comum" ou "heris do mundo empresarial


moderno") porque so perversos, mas porque, enquanto indivduos
que pertencem a essa classe, no podem fazer outra coisa. Um gover-

possvel fazer face, a contento, ao desafio de prover os meios para a


satisfao das necessidades bsicas de uma massa crescente de

cisamos, sim, de "mais" e de "melhor" planejamento (o que no deve

108
fill.l.l1]

sofisticado ou brando a ponto de poderem aparecer como inquestio-

lizo de cunho popular? Se se recusar, na ausncia de um respaldo


de visar, em primeiro lugar, o lucro, passando a visar, acima de tudo,

melhoria da qualidade de vida dos pobres ou proteo ambiental?


Se assim o fizer, e le falir. A moral da histria no "bem, ento no
tem jeito". A moral da histria : no se trata apenas, ou em primeiro
lugar, das inclinaes e virtudes individuais, mas dos papis sociais
que os indivduos so chamados a desempenhar, e das instituies

sociais que do sentido a esses papis. Por isso pode-se e deve-se,


s im, fazer apelos aos indivduos e ao seu senso tico e de responsabilidade social; afinal, os indivduos existem, com um mnimo de livrearbtrio e capacidade de opo. Mas no basta apelar aos indivduos
illdividualmente, preciso entender que instituies (e que papis
sociais) precisam ser transformadas ou eliminadas. Sem isso, vai se
continuar cobrando dos governantes uma capacidade de resolver
todos os problemas que eles, devido a restries econmicas, institucionais e (no caso dos conservadores) poltico-ideolgicas, no tm e
no tero.
A partir de agora, nos prximos captulos, vou explorar aquilo
que parece ser uma resposta adequada aos desafios detectados e disc utidos neste livro at este momento. No obstante, preciso advertir o leitor de que no seria vivel, num trabalho to introdutrio
como esse, aprofundar a discusso sobre as possveis solues. Para
comeo de conversa: se os problemas que se concretizam e manifestam nas cidades tm causas que no so apenas locais, mas que remetem, muitas vezes, a fatores que operam em outras escalas (nacional
e at mesmo internacional), as solues, conforme eu acabei de salie ntar, no podem ser buscadas e alcanadas, todas, apenas por meio

109
ITTilIT1

illJ

do planejamento e da gesto das cidades, mesmo que isso seja entendido de forma bem aberta e ampla (ou seja, sem reduzir o planejamento urbano ao Urbanismo e s preocupaes tipicamente urbansticas com a remodelao das formas espaciais, por razes funcionais
e estticas). E, no entanto, por razes prticas, o que eu posso fazer,
aqui, me deter um pouco sobre a escala local e aquilo que possvel fazer dentro dos limites dessa escala, mobilizando os recursos
(econmicos, polticos, intelectuais ...) a disponveis. Algo, porm,
me conforta: a escala local no tudo, mas est longe de ser irrelevante. A estratgia da reforma urbana, apresentada a segui r, exige
que se explore ao mximo a margem de manobra possvel existente

8. Reforma urbana: conceito,


protagonistas e histria

na escala local (mas, repita-se: sem esquecer os condicionantes e as


tarefas que remetem a escalas mais abrangentes, inclusive em matria de ancoragem jurdica e institucional da reforma urbana), um
dos caminhos que escolhi para discutir as maneiras de chegar a um
desenvolvimento urbano mais autntico. Sem dvida, no o nico
caminho, e nem deve ser enxergado isoladamente. De qualquer
modo, a reforma urbana um caminho dos mais importantes, e a partir de sua discusso fica mais fcil abordar com profundidade outras
tarefas, como foi feito no Cap. 11, o nde eu analiso, brevemente,
estratgias que admitem ser entendidas como complementares da
reforma urbana.

O que significa "reforma urbana"? preciso comear definindo


que se entende por essa expresso, uma vez que ela facilmente pode
llc prestar a vrias interpretaes. Vou comear com um exemplo 11u melhor, com um contra-exemplo.
Pensemos na Reforma Passos, ou seja, naquele conjunto de
111lras de remodelao e embelezamento que, entre 1902 e 1906, teve
l11Bar no centro Rio de Janeiro, sendo o engenheiro Francisco Pereira
l '11ssos o prefeito da cidade. Hoje em dia, aceita-se que a Reforma
1'11ssos possuiu trs grandes objetivos: um, econmico (adaptar o
li

Rio, ento capital da jovem repblica brasileira, s exigncias de uma

110

111

ml.ITTl

00

ITIJ

economia urbana capitalista, deixando para trs a velha cidade colo-

mais recente, o de promover um desenvolvimento urbano autnti-

nial, com suas ruas apertadas e sua paisagem arcaica); outro, de natureza poltica, ou sociopoltica ("limpar" a rea central dos cortios e

co, nos termos delineados no Cap. 6 deste li vro.


Os objetivos especficos da reforma urbana, por outro lado, so

casas-de-cmodos, vistos como estando perigosamente prximos dos

diversificados. Os mais importantes so: 1) coibir a especulao imo-

prdios que abrigavam o poder poltico formal e sediavam os negcios

biliria, a qual, tipicamente, corre desenfreada em cidades de pases

econmicos, por abrigarem pobres e indivduos considerados ameaa-

perifricos e semiperifricos; 2) reduzir o nvel de disparidade socio-

dores, como capoeiras); e, finalmente, um objetivo ideolgico-sim-

econmico-espacia l intra-urbana, assim reduzindo o nvel de segre-

blico (modernizar e, assim, tornar mais digna a capital do Brasil, cuja

gao residencial; 3) democratizar o mais possvel o planejame nto e

imagem, to associada a epidemias e outras mazelas, permitia um


constrangedor contraste com as europeizadas rivais platinas, Buenos

a gesto do espao urbano.


Alm desses, outros dois objetivos, ambos extremamente relevan-

Aires e Montevidu). Para lograr esses objetivos, o Estado promoveu

tes, podem ser apontados como objetivos auxiliares do objetivo espe-

a abertura e o alargamento de ruas (demolindo at bem alm do que

cfico relativo reduo do nve l de disparidade socioeconmico-

seria estritamente necessrio, o que demonstra nitidamente a meta de


promover uma expulso macia da populao pobre), alm da constru-

espacial intra-urbana: 1) garantir segurana jurdica para para as populaes residentes em espaos carentes de regularizao fundiria, tais

o de praas e da promoo de outras obras de embelezamento. A


construo do novo porto, embora sendo da alada do Governo Fede-

como favelas e loteamentos irregulares; 2) gerar emprego e renda para

ral, esteve intimamente conectada com a Reforma Passos.

do objetivo especfico de reduo do nvel de disparidade socioeco-

A Reforma Passos foi autoritria em seus mtodos e conservadora em seus objetivos. A meta era modernizar a cidade, em funo de
imperativos econmicos, polticos e ideolgicos, no torn-la mais
justa. Para fazer isso, sacrifcios foram impostos a proprietrios de
imveis, a negociantes e, acima de tudo, aos moradores pobres, cuja
sorte no interessava muito ao Estado. Autoritria e conservadora, a
Reforma Passos representa, no fundo, o inverso do esprito da reforma urbana, no sentido que passarei, agora, a apresentar. Melhor seria
cham-la de uma reforma urbanstica, socialmente conservadora
ainda por cima.
A reforma urbana, no sentido do presente li vro, no se circunscreve a uma remodelao do espao fsico. Ela uma reforma social
estrutural, com uma muito forte e evidente dimenso espacial, tendo
por objetivo melhorar a qualidade de vida da populao, especialmente de sua parcela mais pobre, e elevar o nvel de justia social.
Enquanto uma simples reforma urbanstica costuma estar atrelada a
um entendimento estreito do que seja o desenvo lvimento urbano,
pode-se dizer que o objetivo geral da reforma urbana, em seu sentido

112

mUJil

rnJ

os pobres urbanos. Este lti mo objetivo pode ser considerado auxiliar


nmico-espacial intra-urbana porque, se um espao segregado (sobretudo se for uma favela) receber dotao de infra-estrutura e passar por
regularizao fundiria sem que a renda dos seus moradores se altere,
h uma grande probabilidade de que ao menos uma parte da populao
original, que seria a beneficiria da interveno, acabe sendo compelida a deixar o local ("expulso branca"), por no poder arcar com o
nus tributrio deco1Tente da regularizao fundiria e, tambm, ao ser
pressionada pela valorizao de seus imveis no mercado.
Os objetivos especficos e auxiliares acima elencados podem ser
atingidos com a ajuda de vrios instrumentos de planejamento e de
gesto, que sero apresentados no prximo captulo. Deve ser salientado, desde j, que no basta dispor de uma boa "caixa de ferramentas" (isto , de um bom conjunto de instrumentos de planejamento e
mecanismos de gesto, legalmente amparados e economicamente
viveis) para se alcanarem bons resultados. Pensar assim seria de
um tecnicismo ingnuo, espec ialmente em um pas como o Brasil,
onde, por exemplo, como reza o conhecido dito popular, h leis que
"pegam" e leis que "no pegam" . Mas que bons instrume ntos aju-

113

00

dam, ah, isso ajudam ... E muito. Sua existncia no uma condio
suficiente, mas , sim, uma condio necessria.

lhadores assalariados que trabalham fora de casa para um patro, um


meio de produo. A renda dos assalariados urbanos depende, geral-

O segundo obj etivo especfico - reduzir o nvel de disparidade

mente, de fatores outros, macroeconmicos e polticos, que, normal-

socioeconmico-espacia l intra-urbana, ass im red uzindo o nve l de

mente, remetem a escalas mais abrangentes que a local, onde as decises de poltica econmica, tributria e trabalhista so tomadas.

segregao residencial -, particularmente, possui um g igantesco


cao espacial de investimentos pblicos, investindo-se mais em

O fato de diferir bastante de sua irm mais velha, a reforma agrria, no que diz respe ito sua capacidade de gerar renda, no quer dizer

reas tradicionalmente negligenciadas (e que, no por acaso, so os

que nada, no que tange gerao de emprego e renda no espao urba-

espaos residenciais dos pobres), e ao se aplicarem instrumentos e

no e para a populao pobre (especialmente desempregados e subem-

apelo prtico para o homem comum. Ao se modificar a lgica da alo-

mecanismos que viabilizem processos de regularizao fundiria de

pregados), possa estar vinculado a uma reforma urbana. Se a reforma

favelas e loteame ntos irregulares, de urbanizao de favelas etc. de

agrria inclui uma redistribuio de patrimnio (terra) que se traduz,

maneira eficiente e eficaz, promove-se, no mdio e no longo prazos,

d iretamente, em gerao de renda, uma reforma urbana, mesmo sendo

uma espcie de redistribuio indireta de renda. Essa uma das

mais conhecida pelos mecanismos e instrumentos que propiciam o

maiores potencialidades de uma reforma urbana bem executada. (Na

tipo de redistribuio indireta de renda anteriormente mencionado,

verdade, mesmo que uma reforma urbana ampla no esteja em curso,

pode e deve, s im, e nglobar medidas que propiciem a gerao de

a concre tizao de um oramento participativo consistente e ambi-

emprego e renda. Uma grande parte, s vezes a maior parte da popu-

c ioso pode te r um s ignificativo impacto positivo nesse sentido.

lao de certas cidades de pases perifricos e semiperifricos, vive de

Retornarei ao assunto dos oramentos partic ipativos no prximo


captulo.) Uma redistribuio de renda direta algo que, no geral,

oc upaes informais. Apesar de, muito freqentemente, essas ocupa-

transcende a marge m de manobra prpria da escala local, pois depen-

ruas, como ocorre com o comrcio ambulante-, o local de moradia ,

de de coisas como uma reforma tributria profunda e de medidas

algumas vezes, tambm um suporte para atividades econmicas que

es serem desenvolvidas fora do local de moradia - muitas vezes nas

ainda mais ousadas, que remete m escala nacional e, de certo modo,

geram renda suplementar para a famlia. Mesmo no caso da utilizao

mesmo internacional (pois muitos problemas essencia is s podem

de espaos pblicos como suporte para atividades econmicas tem-se

ser equacionados considerando, detidamente, o contexto internacio-

a converso do solo urbano em um meio de produo para os pobres,

nal mais a mplo, as brec has que e le oferece e as restries que ele

ai nda que em uma situao precria e muito pouco convencional;

impe). U ma reforma agrria at que consegue carregar dentro de si

alm disso, necessrio levar em conta a possibilidade (e, para mui-

o potencial de uma redistribuio de renda direta, na este ira e como

tos, a real idade) de o local de moradia vir a ser uti lizado como supor-

deco1Tncia da redistribuio de patrimnio (terra), pelo fato de que

1e para atividades econmicas, passando, nesse caso, a atuar, tambm,

o solo, do ponto de vista do pequeno agric ultor a ser beneficiado por

como meio de produo. Programas governamentais os mais varia-

uma tal reforma, o meio de produo por excelncia, por interm-

dos, indo da (re)capacitao profissional absoro de mo-de-obra

dio do qual ele aufere sua re nda. J o solo urbano s meio de pro-

local para a reali zao de obras de urbanizao e saneamento bsico

duo para os capitalistas (industriais, comerciantes etc.), ao passo

cm reas pobres, passando pelos chamados microcrditos (pequenos

que, para a populao urbana pobre, que a principal beneficiria e m

mprstimos oferecidos a juros muito baixos, normalmente com o

potencial da reforma urbana, o solo urbano um suporte para a sua

objetivo de se abrir um pequeno negcio prprio) e pelo estmulo a

vida (moradia, circulao, lazer), mas no , ao menos para os traba-

1:ooperativas de produtores, podem e devem ser integrados e ntre si e,

114

115

mJl1
rn.J

mJl1
rn.J

de algum modo, inseridos no contexto geral de um programa de reforma urbana (ver, mais adiante, o que diz o Cap. l l sobre "economia
popular"). Tais iniciativas podem, para alm de representarem um alvio imediato para uma populao que sofre com altas taxas de ---1
desemprego aberto e disfarado, conter, em alguns casos, um grande
potencial de gerao de conscincia crtica e desenvolvimento de formas mais solidrias e cooperativas de coexistncia.
Falta ainda, porm, fazer a pergunta: quem pode mudar o qu?
Quem so os protagonistas da reforma urbana? Ser que tudo depende do Estado, do Poder Pblico? Certamente que no. O aparelho de
Estado tem um papel muito importante a cumprir, especialmente em
um pas marcado por crassas disparidades sociais e espaciais como o
Brasil. Seria absurdo imaginar que os mecanismos de mercado, por si
ss, possam corrigir as distores geradas no interior do prprio capitalismo, garantindo, sem interferncia, reduo da inj ustia social e
das agresses contra o meio ambiente. No fundo, o capitalismo um
modo de produo timo para gerar riqueza, mas pssimo para
distribu-la com justia e com ateno para a necessidade de proteo
ambiental ... Tambm seria pouco razovel imaginar que os grupos da
sociedade civil, por si ss, e revelia do Estado, conseguiriam, no
mdio prazo, muita coisa: afinal, certas mudanas podem ser conseguidas (e outras tantas s podem ser conseguidas) com mudanas dos
marcos legais e institucionais. O aparelho de Estado possui competncias regulatrias e normatizadoras que no podem ser ignoradas;
mesmo em um pas onde certas leis "pegam" e outras "no pegam",
conq uistar marcos legais adequados uma tarefa importante a ser
perseguida. Alm disso, certas intervenes precisam, para serem
realizadas, de recursos, cujas captao e mobilizao tornam o auxlio por parte do Estado, ao menos em um primeiro momento, quase
imprescindvel. Isso no significa que, no longo prazo, se deva continuar apostando, indefinidamente, em auxlios estatais. E, como o
longo prazo se constri aqu i e agora, cabe sociedade civil buscar
conquistar e manter espaos autnomos de ao, onde aes e planejamentos alternativos possam florescer - s vezes a despeito do
Estado, nos interstcios do sistema; s vezes contra o Estado, resistin-

11 6

mm

[lli

do; s vezes, em circunstncias favorveis, com o Estado, mas sempre mantendo uma vigilncia crtica.
O Estado, por sua margem de manobra econmica e poltica,
deve ser encarado como uma instncia importante, a ser capturada
pelo campo progressista, de um ponto de vista pragmtico. Por que,
porm, "de um ponto de vista pragmtico"? Porque, em uma sociedade capitalista, marcada pela explorao do trabalho pelo capital, fundada sobre a separao entre trabalhadores e meios de produo, as
desigualdades tendem a ser "estruturais", ou seja, a existncia de
pobres, de populaes segregadas, de desemprego etc. no fortuita
ou ac idental, mas um componente tpico da "lgica" do sistema.
Nesse ambiente, o aparelho de Estado tende a ser no um "j uiz neutro", pairando acima das classes sociais e acima do bem e do mal, mas
uma instncia de poder muito complexa e, ainda que influenciada por
diversos interesses e submetida a muitas presses, inclusive dos setores populares, a tendncia geral a de que o contedo da ao do
Estado seja conforme aos interesses mais amplos das classes dominantes e, sem dvida, da perpetuao do prprio sistema. Por isso, o
Estado possui limitaes intrnsecas enquanto promotor de justia
social, pelo menos em ltima anlise. Pragmaticamente, contudo,
importante conquistar a mquina do Estado para promover, por meio
dela, alguns avanos relevantes. O que no quer dizer que somente
isso tenha importncia, ou que o Estado deva se intrometer demais nos
assuntos da sociedade civil. As organizaes da sociedade civil (de
associaes de moradores a entidades profissionais) precisam estabelecer alianas, cooperar entre si e desenvolver a capacidade de elaborar propostas de ao e polticas pblicas, capazes de servir como ferramentas para pressionar o Estado e baliz:u a ao estatal, e realizar,
autonomamente, aes e projetos. Mesmo em situaes em que o
Estado se apresenta mais democratizado e transparente, mais permevel participao popular, uma certa tenso entre a ao estatal e as
organizaes da sociedade civil dever permanecer (e saudvel que
isso ocorra, pois, sem esse "controle externo", o risco de corrupo e
intransparncia da mquina estatal cresce); necessrio que essas
organizaes defendam e mantenham o mximo de independncia em
relao ao Estado, o qual deve, por sua vez, respeit-la.

117

mm

111.J

Focalizarei, agora, a evoluo do iderio da reforma urbana.


A bem da verdade, a idia de uma reforma urbana j havia feito
seu aparecimento nos anos 50; naquela poca, porm, o problema da
escassez de moradias centralizava excessivamente as atenes, em
detrimento de uma compreenso mais ampla dos problemas urbanos
e suas interconexes. Com o golpe militar de 1964, os debates foram
seriamente prejudicados e, sobretudo aps a edio do tristemente
famoso AI-5 (Ato Institucional n? 5), que marcou o incio da fase
mais dura do regime militar, eles praticamente foram interrompidos.
Lderes de favelas, que resistiam contra a poltica de remoes do
governo, e no somente militantes de partidos de esq uerda, foram
perseguidos e presos; a intelectualidade crtica foi amordaada, e no
foram poucos os intelectuais que tiveram de ir para o exlio. Somente
nos anos 80, aps o incio do processo de "abertura" lenta e gradual
do regime, o debate em torno do assunto seria retomado, desta feita
dando lugar construo de um verdadeiro iderio, ou seja, de um
conjunto estruturado de idias a respeito da natureza e dos meios de

118
ml.ITTl

lllJ

va, sim, obrigado a receber a emenda, mas no a incorpor-la no


texto constitucional ... No fundo, portanto, era mais uma mecanismo
consultivo que propriamente deliberativo!
No decorrer de uma longa tram itao, a emenda, que originalmente possua duas dezenas de artigos e abrangia vrios temas importantes, foi "emagrecendo", sendo podada, podada, at que, quando a
Constituio foi, finalmente, promulgada, em J988, o captulo sobre
poltica urbana da Carta Magna continha apenas dois artigos, o J 82 e
o 183. Convm reproduzi-los:
Art. J82 - A poltica de desenvolvimento urbano, executada
pelo Poder Pblico Municipal, conforme d iretrizes gerais fixadas em
lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funes
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

1? - O Plano Diretor, aprovado pela Cmara Municipal, obrigatrio para cidades com mais de vinte mil habitantes, o instrumento bsico da poltica de desenvolvimento e de expanso urbana.

promoo da reforma urbana.


Quando o regime militar se aprox imou de seu final, ficou claro
que seria necessrio elaborar e aprovar uma nova Constituio para o

2? - A propriedade urbana cumpre s ua funo social quando


atende s exigncias fundamentais de ordenao da cidade expressa
no Plano Diretor.

pas, que vigorasse aps a "redemocratizao". Quando o ltimo


general-pres idente (Joo Baptista Figueiredo) deixou o poder, em
1985, sendo substitudo por Jos Sarney (que assumiu o cargo devido ao falecimento do presidente eleito pelo Congresso, Tancredo
Neves, antes mesmo de sua posse), iniciaram-se os preparativos para
a elaborao da nova Constituio Federal, que deveria s ubstituir
aquela de 1967. Foi aberta a possibilidade para que a prpria sociedade civil apresentasse, diretamente ao Congresso, propostas legislativas, denominadas de "emendas populares". Os requisitos para que
tais emendas fossem recebidas pelo Congresso Constituinte eram os
seguintes: a e menda deveria ser subscrita por, pelo menos, 30.000
e leitores e, alm disso, deveria ser apoiada por, pelo menos, trs entidades da sociedade civil. Uma dessas "emendas populares" foi justamente a da reforma urbana, que obteve o apoio de cerca de 150.000
eleitores. Ocorre, porm, que havia um problema: o Congresso esta-

3? - As desapropriaes de imveis urbanos sero feitas com


prvia e justa indenizao em dinheiro.
4? - facu ltado ao Poder Pblico Municipal, mediante lei

especfica para reas includas no Plano Diretor, exigir, nos termos


da lei federal, do proprietrio do solo urbano no edificado, subutilizado ou no utilizado, que promova seu adequado aproveitamento
sob pena, sucessivamente, de:
1 - Parcelamento ou edificao compulsrios;
II - Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - Desapropriao com pagamento mediante ttulos da dvida
pblica de emisso previamente aprovada pelo Senado Federal, com
prazo de resgate de at dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real para indenizao e os juros legais.

119

00

Art. 183 - Aquele que possuir, como sua, rea urbana de at


duzentos e cinqenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposio, utilizando-a para sua moradia ou de sua famlia, adquirir-lhe- o domnio, desde que no seja proprietrio de outro
imvel urbano ou rural.
1? - O ttulo de domnio e a concesso de uso sero conferidos
ao homem ou mulher, ou a ambos, independente do estado civil.
2? - Esse direito no ser reconhecido ao mesmo possuidor por
mais de uma vez.
3? - Os imveis pblicos no sero adquiridos por usucapio.
(CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988)

Diante desse resultado, pareceu restar, como opo, concentrar


os esforos em uma tentativa de converter os planos diretores municipais em meios de promoo da reforma urbana, mediante a previso de instrumentos e mecanismos capazes de contribuir para o atingimento dos objetivos da reforma. Paralelamente, mas sem alarde e,
deve-se dizer, sem grande fo ra, buscou-se regulamentar os dois
captulos da Constituio por meio da Lei Federal de Desenvolvimento Urbano (mais conhecida como Estatuto da Cidade), somente
aprovada em meados de 2001, aps onze anos( !) de tramitao no
Congresso Nacional.
Uma certa euforia inicial com os "novos planos diretores" e suas
potencialidades teve lugar, pelo menos at a metade da dcada de 90.
No que os planos e as leis no sejam importantes, como referenciais
tcnicos e marcos jurdicos. Contudo, ao mesmo tempo em que a
ateno se voltava cada vez mais para uma discusso tcnica em
torno dos intrumentos de planejamento e, cada vez mais, tambm
para questes legais, o contexto social mais amplo, que o que d
sentido a todo o resto, era banalizado ou negligenciado. como se o
aparelho de Estado, por si s, pilotado por foras polticas esclarecidas e assessoradas por planejadores e juristas progressistas, fosse realizar a reforma urbana; uma espcie de reforma urbana, portanto,
mais e mais com cara de ser uma reforma "de cima para baixo".

Impossvel, para mim, no recordar a contraditria (e sintomtica)


frase do ex-presidente Joo Figueiredo, o qual, imaginando ser possvel estender a um pas a discipl ina da caserna, e ignorando que uma
democracia s autntica se uma construo coletiva, disse, em
algum momento, que " iria fazer do Brasil uma democracia". A
mesma contradio, embora apresentada em um invlucro muito
mais sofisticado que aquele ao alcance do velho general da cavalaria,
parece ter dominado os coraes e mentes de muitos tcnicos e gestores simpticos reforma urbana, que se puseram a pensar em tudo,
menos na dinmica da prpria sociedade civil...
O movimento pela reforma urbana - no fundo, uma ampla frente de indivduos e entidades, com interesses s vezes dspares - tem
tido uma vida marcada por altos e baixos. A momentos de aglutinao e grande atividade das organizaes e indivduos que o animam,
momentos esses nos quais a qualificao de movimento se mostra
mais apropriada (como em meados dos anos 80), sucedem momentos
de uma existncia quase vegetativa, em que, exceo das atividades
de algumas organizaes vertebradoras, a aparncia de hibernao.
At hoje, alis, a bandeira da "reforma urbana" ainda muito pouco
conhecida da opinio pblica brasileira, e mesmo entre intelectuais
ela no moeda corrente, a no ser em certos nichos de discusso
mais especficos. preciso cuidar para difundir muito mais o iderio
da reforma urbana, ao mesmo tempo em que se d conta de duas tarefas imprescindveis: primeiro, prosseguir com o esforo de, em meio
complexidade de agentes modeladores e interesses que caracteriza
as cidades brasileiras, extrair snteses de fcil compreenso, sob a
forma de propostas claras e operacionalizveis; ao lado disso, cumpre valorizar certas questes que, por diversas razes, tm sido negligenciadas: por exem o, a questo do racismo nas cidades brasileiras, a qual, devido a uma supernfase sobre os conflitos de classe,
tem sido, tradiciona mente, esquecida, provavelmente por ser equivocadamente subsun ida ou reduzida problemtica geral da explorao capitalista. O fdo de a possibilidade de um "branqueamento
cultural" nitidamente disti nguir a situao brasileira da nortemec;c,o,, fa,eodo oom \
";,ol "e,,;," te,h,, cm,; mesma,

120

12 1

lF1
UlJ

lF1
UlJ

no nosso pas, um peso menor que nos EUA para explicar a segregao residencial e as injustias sociais, no autoriza a concluir pela
inexistncia de preconceitos de fundo tnico ou presumir que a agenda da reforma urbana pode, tranqilamente, passar ao largo da questo do racismo.

9. Os instrumentos da
reforma urbana

No basta, para contribuir para o desenvolvimento urbano, ter


princpios, objetivos e uma estratgia; preciso munir-se de instru111entos adequados para implementar as propostas. necessrio,
ento, agora, examinar alguns instrumentos que podem servir aos
propsitos da reforma urbana, e que so de vrios tipos.
Vou comear a exposio relembrando os objetivos especficos
da reforma urbana: 1) coibir a especulao imobiliria; 2) reduzir o
nvel de disparidade socioeconmico-espacial intra-urbana; 3) demol'l'iltizar o mais possvel o planejamento e a gesto do espao urbano.
Que instrumentos podem ajudar a alcanar cada um deles?

122
ITT1lni

IJ1J

123
ITT1lni

IJ1J

124

00

Para coibir a especul ao imobiliria, instrumentos poderosos


so o parcelamento e a edificao compulsrios, ou seja, tornados

,,km da regulamentao por lei federal, tambm uma lei munici pal (a

obrigatrios para o proprietrio de um terreno que, por estar compro-

ki do plano diretor) se faz imprescindvel como requisito prvio

vadamente ocioso o u s ubutilizado, no ate nde, nem minimamente

11plicao desses instrumentos. Pelo que se v, ademais, existe uma

que seja, ao que a Constituio Federal consagrou como a "funo

~l!quncia a ser respeitada: primeiro o proprietrio de uma rea man-

social da propriedade (privada)"; o IPTU (Imposto Predial e

I ida

Territorial Urbano) progressivo no tempo, que o IPTU normal


acrescido, ao longo do tempo, por um nmero "x" de anos, de um

uma notificao de que deve dar um desti no sua propriedade, partclando o u edificando; se ele nada fizer, poder-se-, ento, ultrapas-

ociosa ou subaproveitada, como mera reserva de valor, recebe

percentual crescente de majorao, com fins punitivos e para forar O

sado um determinado prazo, comear a aplicar alquotas progressivas

proprietrio de um terreno comprovadamente ocioso ou subuti lizado

sobre a base do valor normal do IPTU, confe rindo a este, assim, um

a dar a este um destino que atenda, minimamente que seja, ao princpio consti tucional da " funo social da propriedade", e a d esapro-

carter de progressividade no tempo, por um determinado perodo;

priacio, como sol uo extrema. Esses instrume ntos encontram-se


como se viu no captulo anterior, previstos na Constituio Federa;

pode, por fim, desapropriar.

(Arl. 182), promulgada em 1988, mas tiveram a sua aplicao bastan-

mal, s que tornado progressivo no tempo com uma finalidade puni-

te prejudicada porque, a rigor, assim como o utros artigos da


Constituio, tambm eles precisavam ser regulamentados por uma

tiva, para coibir a especulao imobiliria. Aps ser notificado sobre

findo esse perodo, e se o proble ma no ti ver sido resolvido, o Estado


O IPTU progressivo no tempo nada mais do que o IPTU nor-

o utra le i federal antes de serem efetivamente posto em prtica. Essa

a exignc ia de parcelamento ou construo, o proprietrio de um


imvel que, por suas caractersticas (relao e ntre tamanho e utiliza-

regulamen tao dos dois artigos que tratam da poltica urbana na

o efetiva), seja considerado ocioso ou subutilizado, ter um prazo

Constit uio brasi leira s veio a ocorrer e m 200 l : 0 Art. 182 foi
regulamentado por meio do Estatuto da Cidade (Lei n? 10.257, de

ser majorado anualmente, dentro de limites especificados no Esta-

para cumprir aque la exigncia. Caso no o faa, o valor de seu IPTU

10/07/2001), o qual, como di sse no captulo precedente, ficou mais


de um decnio tramitando no Congresso Nacional; e o Art. 183, que

tuto da Cidade.

foca liza, como se viu no captulo precedente, especificamente, 0

promova o seu adequado aproveitamento, mesmo aps ser notificado

tema da regu larizao de terrenos urbanos ocupados irregula rme nte

e pagar, durante anos, o IPTU majorado, resta lanar mo da desapro-

Caso o proprietrio de um terreno ocioso o u subutilizado no

por populao pobre, foi regulamentado alguns meses depois, a inda

priao, prevista no Art. 182 da Constituio e, tambm, no Estatuto

em 200 l , por meio de uma medida provisri a baixada pe lo

da C idade. A desapropriao um recurso usado h m uitssi mo

Pres idente da Repblica. Alm disso, o Art. 182 da Constituio, aos

tempo pelo Estado, com finalidades diversas, sem pre ditas de " utili-

especi ficar que " facultado ao Poder Pblico mun icipal, media nte

dade pblica" ou de " interesse social", como a construo de grand es

lei especfica para rea includa no plano diretor, exigir, nos te rmos

obras de engenharia (por exemplo, viadutos). A relativa novidade a

da le i federal, do proprietrio do solo urbano no edificado, s ubutili-

possibilidade de seu e mprego macio para coibir a especulao imo-

zado ou no utilizado, que promova o seu adequado aproveitamento,

biliria. E mais: conforme determina a Constituio (Art. 182, 4?,

sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificao com-

inciso III), a inden izao se far mediante ttulos da dvida pblica,

pulsrios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urba-

resgatveis em at dez anos, e no em dinheiro. As nicas indeniza-

na progressivo no tempo; III - desapropriao ( ... )", mostra que,

es em dinheiro, prvias e justas, so aquelas que no tm carter


punitivo (Art. 182, 3?).

125
ITTI.Ifll

rnJ

Outro instrum ento interessante, de natureza tri butria como o

IPTU progressivo no tempo, a contribuio de melhoria. Aquilo


que justifica a aplicao da contribuio de melhoria a valorizao
imobilir ia decorrente de obras pblicas. Ou seja, o aumento de valor
dos imveis prximos a alguma obra realizada pelo Poder Pblico,

126
ITTL[ITJ

illJ

privi legiada da populao, acarretam uma sobrecarga nada desprezvel sobre a infra-estrutura instalada, a qu al foi paga pelo conjunto dos
contribuintes. bem verdade que o IPTU j deve trazer embutidas,
em si, vrias das caractersticas do imvel que determinam o seu valor
de mercado, referentes ao seu tamanho, sua localizao etc.; isto no

portanto com o dinheiro de todos os contribuintes, e decorrente da


prpria obra. importante entender, porm, que, j que o provimen-

compensa a coletividade diretamente, porm, pelos custos, especifi-

to de infra-estrutura bsica a todos os cidados um dever do Estado,

fato de que o impacto sobre os equipamentos e o risco de saturao

no se deve restringir o tipo de obra pblica que venha a justificar a


cobrana desse tributo a obras que no sejam para satisfazer~

do no deve ser encarado como suprfluo apenas porque j existe a

necessidades bsicas. O Decreto-Lei n~ 195, de 24/02/1967, ao arrolar as obras passveis de j ustificarem o lanamento do tributo, inclui
coisas como a pavimentao, a ilumi nao, a arborizao e mesmo os
esgotos pluviais e outros mel horamentos bsicos de logradouros
pblicos, o que me parece inaceitvel. O tributo da contribuio de
melhoria interessante, pelo seu potencial de progressividade; ou
seja, de recapturar para os cofres pblicos pelo menos parte da valorizao imobiliria decorrente de intervenes do Estado. Porm, se
no se restringir a sua aplicao a bairros privilegiados e a certos
tipos de obras, corre-se o srio risco de introduzir um tributo regressivo, causador mais de novos problemas que de solues. A contribuio de melhoria um tributo muito antigo, previsto na legislao
brasileira desde os anos 30; entretanto, raramente foi utilizado. As
razes so menos de ordem propriamente tcnica (como dificuldades
de clculo) que de ordem gerencial (pois h a necessidade de se ter
um acompanhamento adequado do mercado imobilirio) e poltica.
Ainda um outro instrumento digno de meno a outorga onerosa do direito de construir, mais conhecida pelo seu apelido: "solo
criado". A expresso "solo criado" vem do fato de que, ao se construir um prdio, cada pavimento ou piso para alm do trreo correspo nde a uma espcie de solo artificial; como se se "criasse solo",
portanto. O solo criado corresponde a uma espcie de tributo ou contraprestao que o incorporador imobilirio paga municipalidade.
A lgica a seguinte: prdios altos, via de regra construdos para
atender s necessidades residenciais ou de negcios de uma camada

camente, quando da proliferao de edifcios muito altos, devido ao


da infra-estrutura so, nesse caso, significativos. Ou seja: o solo criacobrana do IPTU.
Juridicamente, a premissa necessria para a aplicao do solo
criado uma certa separao entre o direito de propriedade e o direi-

' de construir. O primeiro , em uma sociedade capitalista, inviolvel; isso no significa, porm, que ele no possa ser, mesmo em uma
1al sociedade, limitado por razes de interesse coletivo, por exemplo
reg ulando-se e restringindo-se o segundo. (A propsito: o parcela!llento e a edificao compulsrios, o IPTU progressivo e a desapropriao com fins punitivos correspondem a um outro tipo de limitao do d ireito de propriedade: a restrio do "direito de nada fazer"
~om um imvel urbano ou de deix-lo subutilizado.) O solo criado
lcm sido objeto de diferentes controvrsias, como aquela em torno da
~ua natureza de tributo em sentido estrito ou no. , tambm, um inslrumento complexo, interessante e multifacetado, cuja aplicao, se
hem gue no seja simples e exija cuidados, pode valer a pena.
.
A reduo do nvel de disparidade socioeconmico-espac1al
lntra--urbana no um objetivo simples (como, alis, o combate
1~pec-ul.a o imobiliria tampouco o ). Para alcan-lo, instrumentos
1omo

fundos de desenvolvimento urbano e zoneamentos de priorida-

rl1s podem e devem ser utilizados.

Um fundo de desenvolvi mento urbano uma concentrao de


,rc ursos, de procedncias diversas (por exemplo, recursos auferidos
,tun O JPTU progressivo, na base da sobretaxao daqueles que comp1ova,.damente mantm terrenos ociosos com propsitos especulativos),
,1un O

objetivo de, mediante financiamentos, promover-se o desenvol-

127

fmll1l

[fiJ

vimento urbano. O fundo deve ser complementado pelo zoneamento de


prioridades, que um a identificao de espaos (ou zonas, como prefere o linguajar tcnico) que, por serem problemticos, so considerados
como merecedores de ateno especial por parte do Poder Pblico.
Esses espaos podem ser favelas e loteamentos irregulares, demandan-

grandes distncias), e essa expanso desordenada foi, com freq ncia, um subproduto de zoneamentos de uso do solo inadequados, que
respaldam os interesses especulativos. Aquela rigidez e o incentivo
"cidade espraiada" so incompatveis com o espri to da reforma

O tipo mais usual de zoneamento o zoneamento de uso do solo.


Nele, a cidade dividida em zonas conforme o tipo de uso do solo
mais adequado para as diferentes partes do tecido urbano. Um exemplo: no faz sentido prever ou aprovar a localizao de indstrias

urbana, ass im como tambm o a atri buio de uma importncia


exagerada ao zoneamento de uso do solo. A "cidade compacta", com
o mxi mo de diversidade de usos por bairro (exceo feita, lgico,
mistura de usos que realmente atritem muito entre si), , por outro
lado, uma meta perfeitamente compatvel com os ideais de justia

zoneamento o zoneamemo de densidade, o qual procura ordenar o

social que levaram concepo do zoneamento de prioridades.


Os instrumentos de regularizao fundiria devem, agora, ser

crescimento e o adensamento demogrfico e construtivo da cidade,


para evitar tanto o extremo da saturao de infra-estrutura quanto o

ocuparem terras particulares podero se beneficiar do instrumento

outro extremo que a exist ncia de partes inteiras do municpio,


potencialmente propcias expanso urbana, com ocupao muito
rarefeita. Para conseguir um balanceamento e evitar esses extremos,

chamado de usucapio, previsto no Art. 183 da Constituio Federal.


O usucapio (ou, como preferem os puristas, embora soe horrvel: a
usucapio), aplicvel quando se puder provar que algum (homem ou

buscando uma cidade compacta mas no superadensada, pode-se lanar mo de instrumentos que visem a limitar a atividade construtiva

mu lher) possui u, "como sua, rea urbana de at duzentos e cinqenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposi-

(como a limitao do nmero de pavimentos, ou do percentual do ter-

o, utilizando-a para sua moradia o u de sua famlia", pode ser indi-

reno em que se pode construir). O zoneamento de prioridades no

vidual ou coleti vo, isto , se dar sob a forma de um ato que beneficia,

vem s ubstituir esses dois outros tipos de zoneamento, mas sim

conj untamente, um grande nmero de famlias ao mesmo tempo. No


caso de as terras ocupadas serem de propriedade do Estado (Prefei-

complement-los. importante, de toda maneira, chamar a ateno


para o fato de q ue o zoneamento de uso do solo, sobretudo no passado, mas tambm ainda hoje, costuma ser concebido de modo muito
rgido, na base de uma separao muito detalhada entre os usos e,
inclusive, entre usos que, na verdade, beneficiam a populao quando esto mesclados (sempre observando certos preceitos de salubridade e bem-estar, claro), como o comercial e o residencial. Com
isso, ele acaba, vrias vezes, causando problemas, como a necessidade de a populao vencer grandes distncias para adquirir bens e servios. Tambm a previso e o estmulo expanso horizontal desor-

00

pas subdesenvolvido, via de regra de modo descontnuo, dev ido


especulao imobi liria), so negativos, sob o ngulo do gasto de
energia (consumo de combustvel aumentado em decorrncia das

do regul arizao da propriedade da terra e investimentos em infraestrutura; podem ser, tambm, reas de preservao ambiental. O ass unto dos zoneamentos exige, contudo, um pouco mais de detalhe.

poluentes em uma rea residencial; isso seria atentar contra a sade e


o bem-estar dos moradores de uma maneira gritante. Outro tipo de

128

denada, espraiando demais a mancha urbana (mas, em uma cidade de

mencionados mais detidamente. No caso das favelas, aquelas que

tura, Poder Pblico estadual ou Unio), o usucapio no se aplica,


sendo previsto um outro instrumento, a chamada concesso de direito real de uso. No caso da concesso de uso, no h transferncia de
propriedade; no entan to, os direitos dos moradores ficam bastante
assegurados, pois se trata de um contrato formal, a ser registrado no
Registro de Imveis.
Resumindo, os diversos instrumentos devem interagir da seguinte forma: instrumentos tributrios como o IPTU progressivo, ao lado
de terem utilidades mais especficas (no caso do IPTU progressivo,

129

00

II

recursos adicionais para o Poder Pblico; esses e outros recursos sau


destinados a um fundo especfico, o qual servir para financiar invc~
timentos em reas definidas por um zoneamento, nas quais, confor

11overnantes.
O leitor talvez esteja se perguntando: mas, de que valem tantos
Instrumentos e mecanismos, mesmo que amparados em lei, se esta111os em um pas onde, como se diz, h algumas leis que "pegam" e
outras que " no pegam"? De que valem leis se as leis no so respei111das? Essa uma questo muito importante. Antes de mais nada,
preciso deixar claro que, independentemente de q ualquer coisa,
muito melhor existir uma lei, e uma boa lei, que lei alguma. Se a lei
i;xiste, ela pode ser at desrespeitada, mas ela est l, pelo menos
omo uma arma em potencial, para ser usada pela populao para
defender seus direitos. Entretanto, claro que isso no basta. E para
que leis "peguem" e instrumentos sejam implementados, muito
importante que a sociedade civil esteja informada e se mobilize para
exigir e fiscalizar o cumprimento da lei. Vou retornar a esse assunto
dos obstculos para a implementao da reforma urbana no prximo
aptulo, mas fundamental ressaltar, j aqui, que a partic ipao
popular no planejamento, que , como se viu, um dos trs pilares
constitutivos da reforma urbana, pode contribuir decisivamente para
a efetiva implementao das leis, j que, estando direta e fortemente
en volvida no processo, a sociedade civil ir colaborar muito mais efi-

me o tipo de problema, sero ide ntificadas zonas de in vestimento~


p blicos priori trios, como favelas, loteamentos irregulares e reas
de proteo ambiental.
A democratizao do planejamento e da gesto , mais q ue um
obj eti vo, um princpio fundame ntal. Mesmo no interior de uma
sociedade caracterizada por uma separao estrutural entre dirigentes
e dirigidos possvel avanar bastante nessa direo. O fu nd o de
desenvolvimento deve ser gerido por um conselho com participao
popular. O problema que h formas e formas de participao, algumas sem aspas e muitas com aspas, de modo que dizer, apenas, que
existe um conselho "participativo" no basta. Ser que se a sociedade civil presente no conselho for chamada apenas a opinar sobre
determinadas mat rias, sem poder, efetivamente, tomar decises,
essa ser uma participao com ou sem aspas? E se, no conselho, a
metade dos assentos for oc upada por representantes do prprio aparelho de Estado, com direito a voz e voto: ser esse um consel ho verdadeirame nte partic ipati vo? Alm do mais preciso saber tambm
outras coisas: como so escolhidos os conselheiros? Como e com que
freqncia eles prestam contas s suas respectivas bases sociais? E les
tm acesso a informao suficiente e correta, para poderem decidir
com conheci mento de causa (ou seja, para no serem, simplesmente,
induzidos a aprovar coisas de interesse da Prefeitura)? O E stado se
preocupa em capacitar tecnicame nte os conselheiros, para que
melhor possam discutir certos assuntos? Que mecanismos garantem
que, mesmo e m um conselho deliberativo, as decises tomadas ou
mo ni toradas pe los conselheiros sero executadas exatamente da
forma como foram aprovadas? Essas e outras perguntas evidencia m
que uma partic ipao popul ar q ue no seja mero engodo, o u mera
cooptao, no coisa to simples de se conseguir quanto se poderia

130

mWll
rn.J

instncia de participao tenha vida efetiva e no se desvirtue, ou


~1rva apenas de fachada ou artifcio de legitimao nas mos dos

coibir a especulao imobiliria e, assim, reduzindo problemas co11111


os " vazios urbanos" e a " urbanizao e m saltos"), ajudam a gc 1a 1

imaginar. preciso criar uma srie de condies favorveis para que

cazmente na fiscalizao do cumprimento das leis.


Por fim, mas no co m menor nfase: antes de se partir para a
reforma urbana o u paralelamente a ela, preciso fazer a "lio de
casa" bsica! Cadastros imobilirios e tcnicos, plantas de valores
(q ue a base para o lanamento do IPTU), reforma administrativa...
Tudo isso so coisas que no podem, em hiptese alguma, ser negligenciadas. Cadastros e plantas de valores precisam ser atualizados
com freqncia. E uma reforma administrativa, muitas vezes, imperativa para se poder tornar a mqu ina estatal menos burocrtica, mais
eficiente e, tambm para fac ilitar a cooperao e ntre secretarias e
rgos e a prpria abertura participao popular.
Antes de concluir este captulo, vale a pena, por desencargo de
conscincia, repisar um ponto fundamental. Eu disse, bem no comeo do captulo, que " no basta, para contribuir para o desenvolvimen-

131

00

to urbano, ter princpios, objetivos e uma estratgia; preciso munirse de instrumentos adequados para implementar as propostas". Por
outro lado, no se pode, em absoluto, pensar que basta pr em um
plano diretor uma boa quantidade de instrumentos "progressistas"
para que se logre avanar muito. Os instrumentos, mesmo aqueles
menos ambguos ou ambivalentes, de pouco ou nada adiantam se no
existirem as condies polticas, sociopolticas e poltico-culturais
para que eles sejam aplicados, e bem aplicados. Com isso se reforam duas coisas: para o analista, a exigncia de nunca descurar a anlise da sociedade em favor de uma supernfase sobre os instrumentos
e os marcos legais; e, para todos, o lembrete de que a democratizao
do planejamento e da gesto, longe de ser apenas um detalhe , o u um
simples ingrediente a mais, o que d sentido e vida a todo o resto.

1O. Os obstculos e o alcance


da reforma urbana

IPTU
PROGRESSIVO

No so poucos os obstculos para a implementao de uma


reforma urbana. Um deles o prprio fato de que, diferentemente da
reforma agrria, a urbana , ainda, como j se disse, muito pouco
conhecida. E, evidentemente, as chances de que a sociedade pressione ou clame por ela variam na razo direta do conhecimento de seu
contedo e de sua importncia por parte da opinio pblica. Contribuir para disseminar esse conhecimento fora dos crculos de especialistas foi uma das razes pelas quais decidi elaborar este livro.
Inicialmente, devem ser considerados os obstculos polticos.
Uma reforma urbana, ao representar a aplicao de instrumentos de
planejamento e gesto urbanos, possui, naturalmente, uma forte di132

iw.lm

[fi.j

133

ITTl1m
[fiJ

134

menso tcnica. Negar isso, e afirmar que " tudo no passa de uma

dt: Materiais de Construo/ANAMACO, Associao Paulista de

questo poltica", seria de um panfletarismo to burro quanto irres

Empresrios de Obras Pblicas/APEOP-SP, Associao Brasileira dos

ponsvel. No entanto, inegvel que os obstculos principais no so

Escritrios de Arquitetura/ASBEA, S indicato dos Corretores de Im-

de natureza tcnica, mas sim poltica: os interesses contrrios a uma

veis do Estado de So Paulo/SCIESP, Sindicato da Indstria da Cons-

genuna reforma urbana so poderosos de mais, sua capacidade dc

truo de So Paulo/SINDUSCON, e vrias o utras) contra a proposta

presso sobre o Estado muito grande. Instrumentos como o IPTU


progressivo no tempo, o "solo criado" e outros contrariam os interes-

de plano diretor apresentada pela Prefeitura de So Paulo em 2002.

ses dos agentes modeladores do espao urbano que ganham com a

muito bom de tentativa de implementao do iderio da reforma urba-

/\pesar de ser essa proposta at tmida, e de ela no ser um exemplo

especulao imobiliria, com a densificao excessiva em certas reas

na, bastou a meno a certos instrumentos e a certos objetivos regula-

nobres da cidade, com a destruio do patrimnio natural e histrico-

trios para mobilizar dezenas de entidades representantes de grupos de

arquitetnico. Muitas vezes, argumentos "tcnicos" contrrios uti-

interesse diversos e justificar, por exe mplo, uma matria publicitria

lizao desses instrumentos tm por trs de si interesses muito bem

de quatro pginas inteiras nos jornais (vide Folha de So Paulo,

articulados de defesa do direito de se fazer o que quiser com as pro-

30/06/2002) sob o ttulo, em letras garrafais, "Quem perde com o novo

priedades e o espao da cidade, em nome da "liberdade individual",

Plano Diretor de So Paulo?" (ao que se respondeu, tambm em letras

da "modernizao", do "progresso" ou coisas que tais.

garrafais e fazendo-se uso de fotografias de forte apelo emocional: "O

Os obstculos polticos so secundados e, em larga medida, viabi-

trabalhador perde" - argumento do perigo da perda de empregos em

lizados graas capacidade que os grupos e as classes dominantes tm

funo da retrao da construo civil-, "A fa mlia perde" - argumen-

de, por meio da propaganda, e utilizando-se da mdia, "fazerem a cabea" da opinio pblica e, muitas vezes, dos prprios tcnicos e estudio-

to de que o sonho da casa prpria ficar mais distante - e "A cidade


perde" - argumento de que o novo plano trar confuso, insegurana,

sos. So os obstculos culturais/de mentalidade. Assim, ao mesmo

fuga de investimentos etc.). Diante disso, no deixa de ser expresso de

tempo em que o senso comum costuma crer que o grande problema das

uma certa tacanhez (e, tambm, um obstculo cultural/de mentalidade

cidades brasileiras a "falta de planejamento" (atribuindo, com isso,

disseminao do iderio da reforma urbana), que uma conside rvel

ao planejamento estatal uma capacidade que ele no tem e no pode ter

parcela da intelectualidade crtica brasileira ligada aos estudos urbanos

em matria de resoluo de proble mas e superao de conflitos), os

continue a dar muito menos ateno do que deveria ao planej amento e

grupos dominantes costumam boicotar te ntativas de se regularem o

gesto das cidades (discusses sobre reforma urbana includas),

crescimento urbano e o uso do solo, tentando fazer crer que o planeja-

concentrando-se, excessivamente, sobre diagnsticos e a nlises,

mento, mesmo q uando at relativamente tmido em matria de combate especulao imobiliria e ao superadensamento, pode ser noci-

menos ou mais argutas, da realidade existente, muitas vezes sob argu-

vo. Um exemplo formidvel disso a campanha que foi orquestrada


por um pool de trs dezenas de entidades (Associao das Adminis-

"todo planejamento conservador".


Existem, tambm, obstculos econmicos variados. Eles dizem

tradoras de Bens Imveis e Condomnios de So Paulo/ AABIC,

respeito no apenas s resistncias dos grupos economicamente do-

Associao dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil/ADVB,

minantes, j abordadas ao se mencionarem os obstculos polticos,

mentos constrangedoramente simplistas e generalizantes no estilo

Associao das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano

mas, tambm, escassez de recursos para que certos objetivos pos-

do Estado de So Paulo/AELO, Associao Brasileira de Lojistas de

sam ser alcanados, escassez essa deri vada do endividamento do

Shopping Centers/ALSHOP, Associao Nacional dos Comerciantes

Poder Pblico municipal, da desatualizao de cadastros imobili-

135

imlTil

ITLJ

rios, de gastos governamentais irresponsveis, da fraqueza da base


econmica de muitos municpios, e por a vai. Sem recursos suficientes para investir, a adoo de um oramento participativo, apenas
para exemplificar, pode acabar gerando frustrao, por criar expectativas que no podero ser satisfeitas. A soluo no , ento, jogar a
toalha no ringue e desistir de implementar objetivos mais ambiciosos
em matria de promoo de justia social, mas cuidar de tentar
melhorar as finanas municipais.
Importantes so, tambm, certos obstculos especificamente
jurdico-institucionais, grandemente derivados dos obstculos anteriormente comentados. Mesmo com o Estatuto da Cidade, no se fez,
ainda, tudo o que se pode fazer para respaldar adequadamente os
esforos em prol de uma reforma urbana em nvel federal, mediante
legislao adequada; alis, o prprio Estatuto da Cidade est longe de
ser perfeito, sob esse aspecto. Faz falta, tambm, uma estrutura institucional mais apropriada, no mbito do governo federal, para auxiliar
no suporte tcnico, econmico e mesmo jurdico a um eventual esforo concertado de impulsionamento da reforma urbana em escala
nacional, na base da cooperao entre Unio, estados e municpios.
Aos obstculos polticos, culturais, econmicos e jurdicoinstitucionais podem ser adicionadas as dificuldades gerenciais e tcnicas. Elas compreendem coisas muito variadas, indo desde a falta ou
escassez de quadros tcnicos bem preparados nas prefeituras at o
puro e simples desconhecimento dos instrumentos, passando pelas
dificuldades de implementao destes devido inexistncia ou defasagem de cadastros, ineficincia burocrtica etc.
A esses obstculos deve ser acrescentado, por fim, um outro, de
natureza sociopoltica, e cuja importncia cresce a olhos vistos no
Brasil atual, especialmente em algumas grandes cidades, mas no s"
nelas: os impactos da presena e expanso do trfico de drogas dl'
varejo, particularmente a formao de enclaves territoriais controla
dos por grupos de criminosos. De certo modo, a prpria gesto d11
cidade, em sentido bastante geral, que tem de se adequar a uma situu
o em que, como no Rio de Janeiro, nenhuma interveno do Podl1
Pblico tem lugar em uma favela controlada pelo trfico sem que M'

tenha, antes, de "negociar" com este e obter sua anuncia. No entanto, precisamente quando se trata de pensar em democratizar o planejamento e a gesto, introduzindo esquemas de participao popular, que a fragmentao do tecido sociopoltico-espacial e o utros
impactos do trfico de drogas se mostram poderosos obstculos: que
participao "voluntria" e minimamente " li vre" se pode esperar da
populao de uma favela tutelada por traficantes, os quais, de acordo
com sua convenincia, restringem a liberdade dos moradores ("toque
de recolher" e congneres), instrumentalizam e manipulam lderes
comunitrios e, quando estes no colaboram, os ameaam, expulsam
e mesmo matam? De certo modo, o planejamento urbano precisa ser
pensado, nesses casos, articuladamente com uma poltica de segurana pblica arejada e progressista. No possvel, hoje em dia, falar
de reforma urbana sem fazer referncia explcita, clara e destacada a
esse problema; as condies de hoje no so, tambm sob esse aspec10, as mesmas do comeo dos anos 80.
Como se viu, no so poucos os obstculos para uma reforma
urbana digna desse nome. E, apesar de todas essas barreiras, de todos
1sses empecilhos, lcito, mesmo assim, perguntar: ser a reforma
urbana suficiente? Qual o alcance de uma reforma urbana a ser conduzida no interior da ordem social capitalista, e ainda por cima em
11111 pas semiperifrico?
Existem vrias "escalas de problemas" no que diz respeito aos
p1 oblemas enfrentados pelos moradores das cidades brasileiras.
Alguns so especficos da prpria cidade, ou tm, pelo menos, a ver
1111n particularidades de cada cidade;j outros, se no so exclusivos
,k um estado ou de uma regio, so, pelo menos, influenciados, posillvnmente (amenizados) ou negativamente (agravados) por fatores
11onmicos, polticos e culturais em escala estadual ou regional,
, 111110 a pujana econmica e a conjuntura poltica. Vrios problemas
1111portantes nos remetem escala nacional: so aqueles que, s vezes
lrndo razes multisseculares, e remetendo vez por outra ao prprio
jlil\Sado colonial, se referem s particularidades e margem de ma1111hra econm ica e poltico-institucional do pas, alm de terem a ver,
t 1111hm, com especificidades de ordem cultural. A cada escala se

136

137

iwll1l
ITIJ

00

associa uma certa margem de manobra para o Estado ou a prpria sociedade civil (movimentos sociais, organizaes diversas etc.) tentai
superar problemas; e cada escala "filtra', por assim dizer, as influncias que emanam de outras escalas: por exemplo, circunstncias
muito favorveis em nvel local, estadual ou regional (administraes
eficientes e comprometidas com uma agenda que priorize a justia
social, pujana econmica, sociedade civil bem organizada etc.)

11_"Irmos" e "primas" da reforma urbana:


oramentos participativos e
organizaes de economia popular

podem contribuir, e muito, para mitigar problemas nacionais. No


entanto, h fatores que esto alm da esfera de influncia e competncia de qualquer prefeito, governador o u mesmo presidente da
repblica, assim como de qualquer movimento social: os fatores derivados da prpria dinmica geoeconmica (dinm ica do capitalismo,
globalizao) e geopoltica em escala mundial. E, em ltima anlise,
e em grande parte, o que se passa nas cidades brasileiras e no prprio
Brasil resultado de fatores econmicos e polticos que escapam ao
controle de agentes operando apenas dentro do territrio nacional.
Uma reforma urbana, se for bem conduzida, pode ser uma contribuio decisiva na direo da superao de diversas dificuldades; e, se
a margem de manobra econmica e poltica nacional for bem explorada, no h por que duvidar de que uma reforma urbana possa vir a ser
bem conduzida. Ela no seria capaz, contudo, de eliminar inteiramente a segregao e erradicar completamente a pobreza urbana. A explorao de classe no desaparecer sem que se supere o prprio modelo
social capitalista, e isto tarefa que ultrapassa as possibilidades de um
nico pas. Da mesma forma, a democratizao do planejamento e da
gesto das cidades exigem, no limite, muito mais do que uma simples
"participao popular" ou uma "co-gesto" Estado/sociedade civil,
por mais que isso possa, se for bem feito, representar um avano real:
demandam uma eliminao da separao estrutural entre dirigentes e
diri gidos, demandam uma verdadeira autogesto, o que depreende
uma ruptura radical com o modelo poltico existente. Em circunstncias excepcionais, um pas pode, talvez sozinho, dar largos passos na
direo de metas bem mais ambiciosas, a despeito das formidveis
presses contrrias que, certamente, ho de vir do exterior. Isso, todavia, , pelo momento, apenas um exerccio especulativo...

138

liil.ITTl

rnJ

H, alm da reforma urbana, outras iniciativas e mecanismos


bora tambm sofrendo as restries impostas pelos marcos
que, em
. I'
ntados pela conjugao do modo de produo capita ista com
represe
I' . - d
a~ democracia representativa - a isso se aliando as tmttaoes a
manobra econmica e poltica vinculada escala local margem de
_ .
semelhana daquela, prestar uma colaboraao importante
podem,
l'd d
na tarefa de fazer das nossas cidades lugares com melhor qua t a e
'd e socialmente mais justos. Por partilharem a mesma vocao
de v1 a
.
da reforma urbana, os oramentos participativos e as _orgamzaoes
de economia popular sero chamados de, respectivamente, os
"irm.os" e as "primas" da reforma urbana.

139

Complementando o assunto da reduo do nvel de disparidmh


socioeconmico-espacial intra-urbana focalizado no Cap. 9, e adc11

il os chamados, normalmente, de "conselheiros", que vo ser os porta-

trando novamente o tema da participao popular no planejamento,


na gesto, deve-se mencionar um mecanismo de gesto urbana (011,

q uc

depois, a sociedade c ivil s e organiza (reunies e assemblias em bair-

mais prec isamente, municipal) que vem ganhando crescente e rpitl11

popularidade: o oramento participativo. Trata-se, como nome sugc

pcogr fico, mas tambm, eve ntualmente, reunies "setoriai s", por

re - pelo menos em uma situao ideal...-, de delegar poder aos pr

te ma, como tem ocorrido) para discutir suas necessidades e estabele-

prios cidados para, diretame nte, decidirem sobre o destino a s01

i:Cr prioridades; por fim, instala-se um conselho, onde, de pre fer n-

dado aos investimentos pblicos.

l: ia, o Estado no te nha representantes com direito a voto (mas, sim,

imlJll

IJ1J

foi decidido pe la base seja, de fato, previsto e implementado);

os comuns e favelas, ou em agregados de ba irros e fa ve las, por setor

As prime iras experincias brasileiras de participao popular nu

11penas tcnicos, para ori e ntar os de legados da sociedade civil) - e

elaborao do ora mento pblico municipal re montam ao final da

1.:sse conselho que ir con solidar, para todo o muni cpio, as demandas

dcada de 70 e ao incio da dcada seguinte: em Lages (estado de

e.las bases sociais, ve rific ando possve is proble mas (como demandas

Santa Catarina), ainda nos anos 70, e em Pelotas (Rio Grande do Sul)

no conformes legislao) e monitorando a elaborao da pea

e Vila Velha (Esprito Santo), nos anos 80, esquemas de envolvimen-

oramentria que ser, a o fi nal, enviada Cmara Munic ipa l para

to direto da populao nas decises sobre o oramento municipal

apreciao e votao pel os vereadores.


Porto Alegre no fo i apenas re lativamente pioneiro, por inaugu-

foram adotados. No entanto, tais experincias, at pela conjuntura

140

vozcs da base social junto administrao, cuidando para que aquilo

poltica naciona l em que tiveram lugar (ainda durante o Regime

rar toda uma nova fase, na qua l os orame ntos participativos vm se

Militar, embora em sua fase final), no chegaram a ter grande alcance, nem ge rar um efeito multiplicador significativo. Elas pertencem,

difund indo rapidamente. O oramen to parti cipati vo da capital ga-

como eu tenho chamado, a uma espcie de "pr-histria" do ora-

ma is ousado e avanado e squema partic ipativo em curso no pas. Isso

cha fo i e continua se ndo , tanto quanto seja do meu conhecime nto , o

mento participativo. A fase atual de difuso desse tipo de experincia

no quer dizer que no haja, l, problemas, ou gargalos que precisam

no Brasil comea com Porto Alegre, em 1989. Desde ento, dzias e

ser superados; no obstante, a fama, naciona l e at internac ional que

mais dz ias de outros municpios vm adotando esquemas ditos de

o oramento partic ipativo porto-alegrense vem obtendo (admi nistra-

oramento participativo, na grande maioria dos casos sob inspirao

dores pblicos de c idades do Terceiro e mesmo do Primeiro Mundo,

direta ou indireta da experincia de Porto Alegre.

assim como boa parte da esquerda internacional, vm observando

Um oramento participativo consiste, tipicamente, em uma

com respe ito e crescente interesse o que se passa e m Porto Alegre,

sucesso de etapas ao longo do ano, durante as quais ocorre, aproxi-

inclusive com o objetivo de extrai r e nsinamentos para seus prprios

madamente, o seguinte: primeirame nte, a Prefeitura informa a populao sobre a realidade oramentria prevista para o prximo ano,

pases e c idades) bastante justificada.


Atualmente, mo nta a cerca de uma centena e meia o nmero de

presta contas sobre as despesas do ano anterior e busca (de prefern-

ad mini straes munic ipais que, alegadamente, ado ta m um " ora-

cia em parceria com organizaes e grupos da sociedade c ivil) atrair

mento participat ivo"(ou, e m alguns casos, o equi vale nte disso sob

novos participantes; em seguida, so escolhidos delegados dentre os

outro rtulo). Contudo, a de Porto Alegre , dentre as experi ncias de

grupos da sociedade civil presentes s primeiras assemblias anuais,

oramento partic ipati vo que investiguei ou sobre as quais dispo nho

com o objetivo de ajudar a organizar e monitorar o processo (podem

de infor maes, a nica da qual se pode dizer, sem restries funda-

j ser escolhidos, nessa etapa, ou em uma etapa posterior, os delega-

mentais, que, de fato, pa rece corresponder a uma genuna delegao

14 1

imlJll

IJ1J

142
ITTL[n]

Ui'

de poder do Estado para a sociedade civil. L, c ritrios bsicos como

mobilizao da sociedade c ivil, as condies econmicas de base

transpar ncia do processo, carter verdadeiramente deliberativo,

(disponibilidade de recursos para investime ntos, para comeo de

e nvolvimento da populao na definio de todas as " regras do jogo"


(da malha terri torial que serve de refernc ia para a organizao do

conversa) e por a vai.


Os oramentos participativos tm tido uma histria prpria em

processo "metodologia" e ao calendrio) e deciso sobre um per-

relao s tentativas de concretizar a reforma urbana com a ajuda de

centual expressivo do o ramento (em Porto Alegre, a totalidade dos

planos direto res e dos instrumentos vistos no Cap. 9. Quase nunca os

investimentos, mais a apreciao em torno do restante das despesas,

estudiosos que dedicaram ateno reforma urbana e se ocuparam do

mais rgido) so, ainda que, em alguns casos imperfeitame nte, aten-

uso progressista que se pode fazer de instrumentos de planejamento

didos de modo satisfatrio. Em outras situaes, problemas diversos


costumam comparecer - s vezes um e outro, no raro vrios deles de

urbano foram os mesmos que, desde o comeo dos anos 90, pensaram e pe nsam os oramentos participativos. Apenas recentemente se

uma s vez: a informao circula muito mal, o que faz com que os

vem notando uma pequena melhoria desse quadro. E mais: a prpria

delegados e conselheiros opinem (e, eve ntualmente, delibere m) sem

integrao prtica entre oramento participativo e planejamento

muito conhecimen to de causa, podendo ser muito facilmente manipulados; muitos critrios, s vezes todos, so definidos previamente

T alvez uma parte da e xplicao para esse desencontro resida no fato

urbano progressista ainda algo largamente a ser conquistado.

pelos tcnicos e administradores, em gabinete; o percentual das despesas disponibilizado para a esfera da participao popular peque-

de que reforma urbana e orame nto participativo v m sendo pesqui-

no (apenas uma parte dos investi mentos, e m alguns casos at uma

destacam-se aqueles profissionais mais tradicionalmente ligados ao

parte pequena); o aparelho de Estado se faz presente, com direito de


voz e voto, nas instncias de liberativas, dessa fo rma restring indo

planejamento urbano, a despeito da forte interdisciplinaridade (~m


primeiro plano aparecem os arquitetos, e em segundo plano profis-

sauos po r grupos profissiona is di ferentes: no primeiro caso,

consideravelmente qualquer autonomia de deciso dos delegados e

sionais como gegrafos e soci logos, sendo que, nos ltimos anos, os

conselheiros da sociedade civil. A "consistncia participativa" da

juristas vm comparecendo com mais e mais fora); no segundo

maior parte das experincias no parece ser, pelo que mostra a m inha
experincia de pesq uisa com o assunto, muito e ntusiasmante. Isso

caso, 0 dos orame ntos participativos, a maioria dos traba lhos tem
sido realizada por soci logos e cientistas polticos, com al guma par-

no prova, certamente, que os cticos de planto esto cobertos de

tic ipao dos eco no mist as interessados e m Economi a do Setor

razo ao duvidarem de que avanos importantes so possveis em


nvel local e nas condies concretas do Brasil atual; afinal, tambm

Pblico. Uma outra parte da explicao, provavelmente, tem a ver


com O fato de que a partir do comeo ou meados da dcada de 90,

h casos bastante positivos, ainda que, aparentemente, minoritrios.

quando se d a multiplicao acelerada das experincias de oramen-

Isso prova, por m, que no se devem subestimar as dificuldades, e

to participativo pelo Brasil afora, as discusses em torno da reforma

que no basta importar e adaptar (por exemplo, de Porto Alegre) uma

urbana perdem f lego. Seja l como for, duas coisas so certas: 1)

boa " me todologia" (critrios, balizamentos tcnicos, regras) para que

reforma urbana e oramentos participativos so igualmente re levan-

se obtenha um bom resultado. O xito de uma experincia de oramento participati vo, assim como de qualquer experincia de partici-

tes; 2) 0 oramento participativo comple menta os instrumentos de


planejamento apresentados no Cap. 9 Os oramentos participativos

pao popular no planejamento e na gesto urbanos, ir depender,

so to compatveis com o esprito de uma reforma urbana que se

sempre, de um conjunto variado e complexo de fatores: a coerncia

poderia, at, perguntar se no faria sentido consider-los no interior

poltico-ideolgica da administrao, o nvel de conscientizao e

de um concei to ampliado de reforma urbana, ou seja, como parte

143

m
lliJ

integrante desta. Na minha opinio, isso faz sentido, sim. Entretanto.


no possvel ignorar, de uma hora para o utra, o fa to de serc111
ambientes de discusso d ifere ntes e de terem tido histrias bastantL
prprias. Fica, assim, provisoriamente, g uardada a distino concei
tual entre reforma urbana e oramento participativo.
Abordarei. para finalizar este tratamento dos oramentos participativos, uma questo que a muitos tem preocupado: a da legalidade
dessa forma de poltica pblica. Conquanto seja muitssimo discutvel a conve nincia de se criarem leis muni cipais para "regulamentarem" esse tipo de mecanismo de gesto, isso est longe de significar,
como j alegaram al guns desavisados (ou mal-intencio nados), que o
oramento participativo " ilegal". Na verdade, a participao popular na elaborao do oramento acha-se, atualmente, prevista, ainda
que de modo muito vago, em duas leis federais importantes: na Lei
de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n'.' 101 , de 4/5/2000),
em seu Art. 48, e no Estatuto da Cidade (Lei n'.' l 0.257 , de
10/7/2001 ), em seus artigos 4 (alnea f do inciso III) e 44. Vivemos

se explicar direitinho, tomar a economia popular por alguma out~a


coisa, da qual ela pode estar at prxima, mas com a qua~ela nao
. dd como a economia informal ou o terceiro setor.
.
deve ser cont un I a A economia informal compreende os indivduos, firmas~ orgamz~es dedicados produo ou venda de mercadorias ou a prestaao
~e servios sem que as atividades estejam constitudas de acordo com
as leis em vigor no pas: na economia informal no se recol~em
impostos, os trabalhadores no so registrados (e, p~rt~nto, su_a s1t.uao trabalhista e previdenciria precria ou precar'.ss1ma) e mex1ste
uma contabilidade formal das atividades. O setor mforma~ a~range
desde o comrcio ambulante at atividades fortemente cnmmosas,
como o trfico de drogas e armas e o contrabando. Embora o setor

Brasil, a le i existe para ser comprida"), muitos acham que a sol uo


estaria em aumentar mais e mais o nmero de leis, produzindo-se leis
para tudo. Em matria de oramentos participativos isso no s um

da dos pobres urba nos por postos de trabalho, demanda essa impo~-

que se esquece que o interesse de vrios em regulamentarem os orame ntos participativos por meio de leis tem a ver com um desejo de
enfraquecer, e no de fortalecer esse tipo de experincia (por exemplo, no caso de vereadores in teressados e m preservar, como uma
espcie de " reserva de mercado", um percentual dos investime ntos
para ser loteado da ma neira tradicional, na base d e acertos entre eles
e entre eles e o prefeito, mediante emendas proposta oramentria
enviada Cmara). E violncia porque uma das caractersticas essen-

[J1J

a ser economia popular?


Expresses como economia informal (ou setor informal~ e ~er.
- fi1gurm
. has fceis na mdia, e no, s nos textos
tecmcoceiro setor sao
.
_
cientficos de especialistas para especialistas. E fcil, por isso, se nao

em um pas onde, ao mesmo te mpo e m que freqentemente as leis


so descumpridas (como diz a turma do Casseta & Planeta: "no

contra-senso; uma imprudncia e uma violncia. Imprudncia por-

144
ITT1J}ll

Seja o leitor apresentado, agora, s "primas" da reforma urbana,


p
g nta o que vem
as organizaes de economia popular. nme1ra per u .

informal seja, em grande parte, uma vlvula de escape para a ~emansvel de ser completamente satisfeita pelo setor formal em um pais
p erifrico ou semiperifrico, ele abarca, tambm, atividades que possuem um impacto ambguo sobre a vida dos pobres urba_n~~ moradocomo o comrcio de drogas ihc1tas), alm
res d e espaos segregados (
.
de se fazerem em associao espria com parcelas da econom'.a formal e mesmo do aparelho de Estado (financiamento do tr'.1co de
drooas de fora para dentro das favelas, lavagem de dinheiro SUJO, cor,1 . 1 t ) Quanto ao chamado "terceiro setor" , trata-se, ai,
rupao po 1cia e e ..
de uma expresso de inspirao norte-americana, que recobre u~
conjunto de atividades teoricamente sem fins lucrativ?s, mas de ut'.-

ciais de um esquema autntico de participao popular dessa nature-

lidade pblica, desenvolvidas por entidades filantrpicas ou organi-

za consiste, j ustamente, na possibilidade de a sociedade civil instituir, e la prpria. as regras (ou seja, a " lei" em um sentido amplo),
modificando -as anualmente, se necessrio, para aprimo r-las; uma

zaes no-governamentais (ONGs).


A economia popular, ou economia popular urbana, ~orrespo~d-e

lei formal, nesse caso, c riaria uma camisa-de-fora para o processo.

vidades levadas a cabo pelos pobres urbanos, com ou sem algum tipo

a um recorte conceituai diferente. Ela d iz respeito ao conJunto de ~tt-

145

00

de apoio estatal, no contexto de algum tipo de organizao estimuladora de solidariedade e, quem sabe, de novas for mas de sociabilidade (cooperativas e outras modalidades de associao de trabalhadores). H, portanto, um ingrediente de juzo de valor, alm de algumas
diferenas factuais, que distinguem a economia popular da economia

com O "superior" em grande parte, mas, em ltima anlise, serve


reproduo do s istema. O "circuito inferior" no era visto como por-

informa l: a economia popular gerida pelos prprios pobres, embora estes possam (e, em algumas circunstncias ou em alguns casos,
devam) contar com o apoio do Estado e de organizaes da socieda-

tador de valores ou criador em potencial de novas formas de sociabilidade; ele seria algo puramente reativo. Sua conceituao se dava,
basicamente, em funo do que lhe falta (acesso a crdito formal,

de civil para a consecuo de seus objetivos (ou seja, no so o u no


devem ser apenas a "ponta de varejo" de uma cadeia que, na outra
po nta, a do atacado, a da importao e a da exportao, controlada

montante significativo de capital de giro, organizao burocrtica,

por "peixes grados", como ocorre no trfico de drogas e em outras

intrinsecamente positivo: um circuito alternativo capaz no apenas


de evitar o agravamento do aumento da pobreza absoluta, mas, tambm, de gestar formas de solidariedade e cooperao entre os explorados e opri midos. Se se considerar, em acrscimo a isso, que, nos

fatias da economia informal); alm disso, as organizaes de economia popular envolvem, ou deveriam envolver, uma certa preocupao explcita com a construo de novas formas de relacionamernto

trabalhos de Milton Santos, os "circuitos" inferior e superior da eco-

solidria (a qual tem se tornado comum no Bras il), em vez de, simplesmente, economia popular. Uma vez que esta ltima expresso

difcil a compreenso de algo como o trfico de drogas dos anos 80


em diante com a ajuda desse aparato conceituai), pode-se admitir que

possui mais tradio no ambiente intelectual latino-americano como

a importncia da teoria dos "dois circuitos da economia urbana dos

um todo, e levando em conta, tambm, o desgaste a que o adjetivo


"solidrio" vem sendo submetido no Brasil (pense-se no malfadado

pases subdesenvolvidos" , para os propsitos de entendiment~ da


economia popular, ou mesmo da economia informal hoje, de utilida-

programa governamental "Comunidade Solidria" ... ), p refiro a


expresso "economia popular".

de um pouco limitada.
J se vi u, no Cap. 8, que o fato de a reforma urbana diferir da reforma aorria no que se refere sua capacidade de gerar renda para

porm, que se fazer uma ou outra ressalva. O "circuito inferior" descrito por Milton Santos s aparece despido de menes s atividades
fortemente criminosas porque, por um lado, isso foi um certo descuido, e, por outro, porque, de fato, elas no tinham, h trinta ou vinte e
cinco anos, a importncia q ue tm hoje nas grandes cidades de um
pas como o Brasil. Alm do mais, Milton Santos via o "circuito infe-

146

rnJ

preos fixos, relaes impessoais com a clientela, ajuda governamental importante etc.), e no por conta do que ele poderia trazer de

e ntre as pessoas, para alm da questo estrita da sobrevivncia. H,


inclusive, por esta ltima razo, quem prefira a expresso economia

A economia popular seria, aparentemente, algo muito prximo


daquilo que Milton Santos, nos anos 70, denominava de "ciicuito
inferior da eco no mia urbana dos pases subdesenvo lvid os"; h,

ITTL[ITj

elas no explodem, propriamente, embora se deteriorem fsica e


socialmente), sendo, dessa forma, "funcional" ao sistema capitalista,
nos marcos de uma aparente contradio: o "circuito inferior" atrita

rior" como uma vlvu la de escape (a grande questo, para ele, no


por que as nossas cidades explodem, mas sim, justamente, por que

nomia urbana aparec iam como muito bem demarcados (o que torna

os seus benefic irios no quer dizer que nada pode ser feito em materia de gerao de emprego e renda no contexto de uma reforma urbana. Essa articulao pode se dar de uma maneira mais simples e
emergencial, logo muito limitada, sob a forma de "frentes de trabaIho" e de recrutamento organizado de pessoas desempregadas e
subempregadas para serem ocupadas, justamente, com coisas como
um esforo de urbanizao de favelas e de construo de moradias
populares em larga escala; o u, de maneira mais duradoura e con.sistente, sob a forma do estmulo e do apoio do Estado e de orgamzaes da sociedade civil formao de cooperativas e ao desenvolvi-

147

mITl
UiJ

mento de atividades de economia popular, a comear pelos espaos

um distanc iamento crtico e lutando para preservar um mn imo de

segregados onde mora a maior parte da populao pobre, nas favelas

autonomia de organizao e de idias, para planejar uma cidade mais

e nos loteamentos irregulares. neste segundo caso que a integrao

j usta. ( certo que a d istino entre Estado e sociedade civil mais

e ntre reforma urbana e economi a popular fica mais evidente.

complicada do que pode parecer, pois os atores socia is, e precisa-

As organizaes de economi a popul ar podem e devem, muitas

mente os mais ativos e dinmicos, costumam circ ular entre partidos,

vezes, receber incentivo governamental. Esse incentivo pode vir de

cargos e m admi nistraes e posies de liderana na sociedade ci vil.

vrias formas: microcrditos (ou seja, crdito para a compra de

Seja como for, Estado e sociedade civil no se confundem, sendo instncias dife rentes da sociedade. Essa d istino s desaparecer e m

pequenos estoques de mercadoria o u matria-prima, para rearranjo


de espaos etc.), cursos de capacitao e treinamento, apoio a "incu-

um a socied ade autogerida, e m que no haja mais uma separao

badoras de cooperativas", e por a vai. No entanto, o Estado deve

estrutural entre d irigentes e dirigidos.) Os oramentos participativos,

ceder tentao (algumas vezes bem-intencionada) de se imisc uir

na prtica, tm sido uma iniciativa do Estado ou, pe lo menos, como

dema is. Alguns tipos de apoio no deveriam faltar, especialmente

em Porto Alegre, uma inic iativa dividida (e uma paternidade um

quando solicitados, sob a forma de polticas e programas especficos.

pouco disputada) entre Estado e sociedade civil. Quanto mais auten-

Entretanto, a prpria sociedade civil que deve lutar para se organi-

ticamente participativa for a experincia de oramento participativo

zar mais e mais, buscando solues. O Estado pode, aqui e ali, apoiar,

em questo, maior tender a ser ou dever ser o peso da sociedade

pois ele possui recursos indispensveis; deve-se, por m, evitar a todo

civil no processo. Quanto economia popular, o papel do Estado pode

custo uma tutela, a qual mata a criatividade e a esperana: o Estado

ser, nesse caso, em princpio, ape nas o de um apoiador financeiro e

deve evitar paternalizar, e os grupos da sociedade civil devem recu-

tcnico-gerencial (cursos de capacitao, esquemas de tre inamento),

sar qualquer tutela e lutar para manter o controle sobre suas ativida-

se bem que a expanso consistente e em larga escala da economia

des e seus destinos.


No fundo, portanto, os protagonistas da reforma u rbana, dos
oramentos participativos e da economia popular deveriam ser, na

popular precisar de planos de md io e longo prazo, a serem e laborados como inic iativa e responsab ilidade conjuntas da sociedade civil e
do Estado, pragmaticamente.

maior parte das vezes e basicamente, os mesmos. H, certamente,

Ainda em mat ria de diferenas, acrescente-se que a economia

algumas diferenas, tal vez mais aparentes que reais. O Estado preci-

popu lar interessa, basicamente, aos pobres, pelo menos em termos

sar ter um papel mais ativo na reforma urbana em sentido estrito,

imediatos. De sua parte, os oramentos participativos, tendo um car-

uma vez que med idas institucionais e judiciais se fazem necessrias

ter mais geral - a democratizao das decises em torno do oramen-

em grande escala, sem esquecer da constante necessidade de alterao e adaptao de legis lao e do aporte de recursos em volume

to munic ipal - , deveriam interessar, um pouco mais diretamente,


prpria classe mdia. Qua nto reforma urbana, em certo sentido ela

muito significati vo. (Basta pe nsar nas necessidades em matria de

possui um a lcance geral imed iato, ao lidar com o planejamento alter-

moradia popula r, diante do gigantesco --} dficit habitacional atual-

nati vo da c idade como um todo, embora suas prioridades estej am

mente constatad o no Brasil; caso contrrio, a " habitao popular" s

voltadas, aci ma de tudo, para a melhoria da qualidade de vida dos

poderia ser aquela da bri ncadeira de Millr Fernandes: " uma casa

pobres urbanos. Na prtica, contudo, o quadro um pouco mais com-

sem portas e e m que no se podem colocar janelas por no haver

plicado. A classe mdia, freqentemente, e nxerga os oramentos par-

paredes".) Isso no exime a sociedade civil de ter um pape l muito

ticipati vos, por exem plo, como "coisa de pobre", em parte por j ter

ativo, em parceria com o Estado muitas vezes, mas sempre mantendo

as suas necessidades materiais bsicas satisfeitas, e em parte, talvez,

148

149

llfll
[li

lffillll
UlJ

por depositar excessiva confiana na capacidade de os seus "repre-

cipativo, espaos aut nomos para a sociedade c ivil precisam ser

sentantes" usuais no Executivo e no Legislativo municipais (prefeito

garantidos; o importante que se admita que, em todos os trs casos,

e vereadores) cuidarem adequadamente dos seus interesses. Por seu

o Estado no deve, em ltima anlise, ser o centro das atenes: o

turno, ao poder contribuir, graas gerao de renda, para reduzir os

centro das atenes o que se passa na sociedade e o que ela pode

nveis de tenso e violncia urbana, a economia popular algo cujo

fazer para se tornar (se fazer) mais li vre, mais autnoma. Ainda que

florescimento, em termos mediatos, interessa, e muito, tambm aos

a partic ipao do Estado (com suas leis, seus recursos e tc.) no deva

segmentos mdios. necessrio, portanto, encontrar formas eficien-

ser descartada a priori como desnecessria ou sempre nociva, o apa-

tes de se envolver tambm as camadas mdias no esforo de se fazer

relho de Estado, em si, no geral e em ltima instncia, o smbolo e

das nossas cidades locais mais agradveis e socialmente mais justos.

a ossatura instituciona l de uma separao entre dirigentes e dirigidos.

Moral da histria: os protagonistas da reforma urbana, dos oramen-

A democracia representativa oferece uma certa margem de manobra

tos participativos e da econo mia popular, mesmo te ndo pesos um

no que se refere ao esforo da maioria da populao em se reapro-

pouco diferentes conforme o caso, so, ou devem ser, essencialmen-

priar dos recursos arrecadados pelo Estado e dos canais e instncias

te os mesmos.

de poder estatais, mas tambm carrega seus limites, incluindo o limi-

Pergunte-se, agora, para concluir este captulo: o que pode a eco-

te essencial de, com base nela, no se poder ultrapassar os fundamen-

nomia popular? E la no "resolve tudo", mas ou deve ser encarada

tos econmicos e polticos ltimos do modelo socia l capitalista.

como sendo, potencialmente, bem mais do que um simples paliativo,

possve l e necessrio, contudo, saber explorar, a cada momento, a

um simples remendo. A meta no reme ndar o sistema, contribuin-

real margem de manobra associada ao do Estado, em cada escala

do para a sua sobrevivncia; a meta , ou deveria ser (de fato, a inter-

(local, estadual, nacional), seja diretame nte (parcerias, "co-gesto"

pretao do alcance dos oramentos participativos e da economia

Estado/sociedade civil), seja indire tame nte (marcos legais e suportes


instituci onais), para se conquistarem certos avanos. Que isso no

popular carrega suas controvrsias, a esse respeito), construir alternativas ao prprio s istema, ainda que se comece limitadamente e a par-

leve j amais a esquecer ou subestimar, porm, os riscos e as limita-

tir do seu interior, sem desprezar a margem de manobra legal e insti-

es inerentes a essa jornada, to cheia de obstculos e imprevistos.

tucio nal existente para certos avanos. Assim como a reforma urbana e o oramento participativo, a economia popular opera dentro dos
marcos da sociedade existente: portanto, e la no e limina o capitalismo, nem o pe fora de combate. Contudo, ela tampouco o confirma
ou legitima. Ela prospera nas margens, l, onde o sistema revela mais
agudamente o seu fracasso - ou, em ltima anlise, o preo do seu
"sucesso", que sempre o sucesso de uma minoria. Mas, assim como
a reforma urbana e o o ramento participativo, a economia popular
pode contribui r, hoje, um pouco modestamente, para construir um
amanh mais ambicioso; a sua dimenso poltico-pedaggica. Foi
a isso que eu desejei fazer referncia ao enfatizar o desenvolvimento
de teias de solidariedade e de novas formas de cooperao e sociabilidade. Assim como no caso da reforma urbana e do oramento parti-

150

mill11
rn.J

151
ITTl.ITTl

rn.J

Concluso: das t ribos


"globalizao" - a aventura humana
e o papel das cidades

? ? ?

H milhares de anos coletividades humanas aprenderam a viver


em espaos relativamente pequenos e em cond ies de grande densidade demogrfica, nos quais se foram concentrando as atividades
econmicas no ligadas diretamente ao setor primrio da economia,
assim como foram se concentrando, tambm, a produo intelectual
e o poder poltico: as cidades. Em comparao com essa histria multimilenar, porm, fato relativamente recente que regies e pases e,
cada vez mais, continentes inteiros e mesmo o planeta inteiro, se
apresentem mais e mais urbanizados, abrigando um percentual majoritrio de populao vivendo em espaos tidos como urbanos, ao

153

mllITI

rnJ

mesmo tempo em que a populao rural diminui em termos relativos


_ e, em no poucos pases, encolheu e vem enco lhendo at mesmo

vez mais. Pela riqueza de estmulos intelectuais e de meios de expresso poltica e cultural e de satisfao de necessidades que as cidades

eJ11 nmeros absolutos. Alguns autores at j arriscaram profecias

oferecem, estas representam, em um certo sentido, a grande criao

e vaticnios sobre quando o g lobo inteiro estaria, por assim dizer,


"totalmente urbanizado", como se um nico espao urbano (no
inteiramente contnuo, lgico, devido s florestas remanescentes e

coletiva da espcie humana. O espao urbano um ambiente que os


homens e mulheres criaram para si prprios, afastando-se, muito

aos espaos de produo agropecuri a a ltamente moderna que sobrarilJm, embora bastante despovoados) cobrisse toda ou quase toda a

natureza. Nesse ambiente fortemente artificial, no sentido de cons-

superfcie habitada do planeta, uma malha incrivelmente densa de

tram-se e interagem entre s i, animados pelo trabalho humano, os


meios - equipamentos, mquinas, construes ... - que so como que
extenses do nosso prprio corpo, as quais potencializam as nossas
foras e capacidades: a capacidade de locomoo (automveis,

cidades de tamanhos diferentes e articuladas por modernssimas tecnologias de trans portes e comunicaes... No me interessa, aqui, e
mesmo por princpio, esse tipo de exerccio de futurologia, que beira

trens ... ), a capacidade de saber proteger-se do frio e das intempries


(se a roupa como uma "segunda pele", a moradia o nosso misto de

parte da frica ao sul do Saara, por exemplo) permanecer sabotando esse tipo de utopia a respeito da urbanizao da Terra como um

abrigo e refgio), a capacidade de mudar a superfcie da terra (promovendo aterros, expandindo o tecido urbano, abrindo tneis, demo-

processo em que todos seriam gradativamente integrados em uma

lindo morros inteiros ...) e de transformar matrias-primas em bens

rede urbana global", desfrutando dos benefcios de uma vida moder-

cada vez mais sofisticados.


Mas, infelizmente, as cidades no so e nunca foram apenas a

na proporcionados pela tecnologia...


O que importa ressaltar que, de fato, a urbanizao avana aceleradamente, mesmo em pases bastante pobres (nos quais.justamente, um crescimento excessivamente rpido das cidades agrava problemas estruturais d e ordem eco nmico-social). A vida em espaos
urbanos j , hoje, um fato para a maioria dos seres humanos. Quer se
queira ou no, quer se aprecie a vida nas cidades ou no, teremos de
aprender a viver da melhor maneira possvel nesses espaos, c uj a
predominncia muito pro vavelmente irreversvel. O que interessa,
ento, saber como tirar o mximo proveito possvel da vida nas
cidades, evitando o u minimizando os problemas como a pobreza, a
segregao, a criminalidade, a poluio d o ar, visual, hdrica e sonora, a sensao de apinhamento e a desumanizao ou o abandono dos
esp:ios pblicos ...
As cidades tm sido, ao lo ng o da histria da humanidade, locais

filllITl
1111

trudo pela sociedade a partir da transformao da natureza, concen-

lizao quase que de pases e continentes inteiros (pense-se na maior

a fico cientfica. Para comeo de conversa, a pobreza e a margi na-

154

mais que no contexto da vida no campo, do contato direto com a

humanidade "em sua melhor forma". As sociedades humanas possuem contradies e conflitos, especialmente aquelas sociedades - a
esmagadora maioria delas, no decorrer da histria - onde a opresso
e a explorao de uns sobre outros era ou um fato constitutivo essenc ial da vida social. tambm nas cidades onde se concentram tais
contradies e confli tos. Diante da magn itude de certos problemas,
somos tentados, inc lusive, a pensar que a capacidade humana de
resolver problemas foi ig ualmente acompanhada pela tendncia de
permanncia e at de agravamento de certos tipos de problemas, ou
pela capacidade que os seres humanos tm de criarem novos embaraos e dificuldades para si prprios.
A pesquisa cientfica sobre a dinmica scio-espacial nascidades e sobre as causas dos problemas urbanos avanou muito ao longo

onde o tesouro da criao intelectual (artstica, cientfica e tecnolgi-

do sculo XX, mas muitos temas permanecem controvertidos. A produo intelectual a propsito das possveis solues (literatura sobre

ca) das vrias sociedades e culturas tem tendido a se concentrar cada

planejamento e gesto urbanos, sobre polticas pblicas e sobre a

155

mITl

lliJ

mudana social em geral, incluindo aquela sobre movimentos sociais) tamb m se avolumou enormemente, sobretudo na segunda

seus valores, seus meaos e suas necessidades mutveis e variveis,


assim como com os seus conflitos ... Diversamente, nas cincias natu-

metade do sculo. Apesar disso, polmicas sobre a efetividade, o al-

rai s lida-se com uma natureza "exterior" ao homem enquanto ser

cance e mes mo a desejabi lidade de certos instrumentos e estratgias

social (ainda que da transformao da natureza dependa a sociedade

continuam a existir. Parafraseando o humorista Millr Fernandes,

para existi r e para "fazer-se", e ainda que, nesse processo, valores

"os maiores desentendimentos se do entre os entendidos" ...


Nas cincias sociais, as controvrsias no so apenas empricas

sociais sejam projetados sobre o mundo natural).

(no estilo: ser a realidade assim ou assado?) ou tericas (do tipo:

cas, outras so muitssimo gerais, de cunho filosfico ou ideolgico,

qual ser a melhor e mais completa explicao geral para essa ou

Portanto, enquanto algumas das controvrsias so mais especfimas que influenciam muito de perto as pesquisas empricas e as for-

aquela classe de fenmenos?), mas, muito freqentemente, relativas

mu laes tericas, seja e nquanto pesquisa bsica, seja enquanto

ao pano de fundo poltico-filosfico e tico dos analistas. Isso faz

pesquisa aplicada. Sem ter a menor pretenso de oferecer uma lista

com que, muitas vezes, teorias e anlises muito antigas, que se julga-

exaustiva, algumas controvrsias bem atuais so as seguintes:

va estarem superadas. possam retornar vida, como que saindo de


um perodo de hibernao, devido sua revalorizao (ainda que

hoj e se arrasta uma velha controvrsia que ope, de um lado, os que

um todo, isto , fora dos muros da universidade, a conjuntura ideol-

defende m baixas densidades de ocupao, e de outro, aqueles que

gica ou mesmo poltica mudou, assim como mudou a predisposio

advogam altas densidades. Os que so favorveis a baixas densidades

coletiva, em funo dos fracassos ou acertos de polticas _pblicas

argumentam que somente e las so capazes de proporcionar uma qua-

associadas a determinadas abordagens, para se ser mais simptico a

lidade de vida realmente boa, uma vez que as pessoas no foram fei-

essa ou quela interpretao. Nas c incias naturais diferente: se,

tas para viverem "empilhadas" umas sobre as outras em prdios de

nelas, um puro e simples "retorno", por exemplo, Fsica newtonia-

apartamentos; alm d isso, chamam a ateno para os inconvenientes

na, impensvel aps a revoluo relativista do comeo do sculo

da densificao excessiva, como a saturao da infra-estrutura tcnica e social, os congestionamentos etc .. As populaes da Europa e

XX (uma superao da Fsica atual, alis envolta em controvrsias de


base, no se dar como uma volta ao passado), uma revalorizao,

156

lilllm

UlJ

Densidade urbana: qual ser a densidade urbana ideal? Ainda

reciclada e atualizada), pelo fato de que, na escala da sociedade como

dos EUA, em geral, so fs das baixas densidades: seu ideal de vida

ainda que modificada, da Economia keynesiana e de seus princpios

no passa, via de regra, por um apartamento, mas por uma espaosa

de um Estado regulador atuante, aps duas dcadas de hegemonia do

residncia unifamiliar, com jardim e o mais longe possvel da polui-

pensamento neoclssico, reciclado como "neoliberal", perfeita-

o e do burburinho do CBD. De sua parte, os que defendem as altas

mente cogitvel (alis, a volta do pensamento terico e prtico neo-

densidades trazem o seguinte argumento principal: quanto mais

clssico/neoliberal a uma posio hegemnica, nos anos 80 e 90, se

espraiada, mais cara ser a cidade para a prpria coletividade, uma

deu como recuperao dos princpios lanados entre os fins do scu-

vez que isso exigir percursos mais longos (com decorrente gasto de

lo XIX e o comeo do sculo XX, os quais haviam sido postos e m

energia) e exigir, tambm, que o Poder Pblico gaste mais com as

xeque e acuados pelo pe nsamento keynesiano hegemnico durante

redes de infra-estrutura. Por isso, advogam o que chamam de "cida-

dcadas, e ntre os anos 40 e 70). Seria possvel ser muito diferente?

de compacta", mais eficiente e mais "ecolgica" (porque menos des-

Provavelmente no, uma vez que, nas cincias sociais, o objeto so

perdiadora de recursos) que a "cidade espraiada". Parece, assim,

os prprios homens e mulheres, organizados coletivamente, com

que maxim izar uma boa qualidade de vida depreende, em matria de

157

lilllm

UlJ

opo por tal ou qual densidade, equilibrar interesses individuais e

vm se acum ulando e agravando nas ltimas dcadas. Traos dessa

coletivos, dado que a maximizao dos interesses individuais (resi-

fragmentao, que, como foi dito no Cap. 5, atualiza mas vai alm da

dncias uni familiares espaosas) no necessariamente redundar em

segregao residencial, se disseminam ao longo da rede urbana bra-

uma maximizao dos inte resses coletivos. Isso correto, mas uma
viso muito s imples. Em primeiro lugar, porque, em uma cidade

sileira, e mbora as nicas expresses " plenas" do fenmeno paream


ser as metrpoles do Rio de Janeiro e de So Paulo. Prever a e volu-

capitalista, marcada por desigualdades estruturais (que se refletem na

o do fenmeno pode ser um exerccio estril de fu turologia, na

segregao residencial), no seriam, de qualquer maneira, todos os

base de projees simplistas, se se imaginar que existe algo como

indi vduos ou todas as famlias que poderiam escolher morar em resi-

uma inevitabilidade ou uma trajetria predeterminada que "todas" as

dncias unifam iliares espaosas, mesmo que desej assem (coisa que,

cidades teriam de percorrer; mas pode, por outro lado, ser uma opor-

alis , nem todos desejam, por diversas razes). Alm disso. no se


pode perder de vista que a densidade no uma simples questo de

tun idade para interessantes simulaes, tendo por base uma abordagem flexvel mediante a construo de alguns cenrios provveis,

"escolha dos consumidores (moradores)"; interesses pod erosssimos,

simulaes essas que podem aj udar a emitir alertas e balizamentos

como os ligados ao capital imobilirio, influenciam o u pressionam o

consistentes para os agentes sociais em diversas escalas. So ainda

aparelho de Estado com o objetivo de obterem a aprovao e a imple-

escassos os esforos de compreenso mais global do fenmeno, e h

mentao de planos e programas que lhes sejam teis (por exemplo,

diversas cont rovrs ias em t orno do que fazer a respeito de cada

nas cidades brasileiras, no restri ngindo a densificao). A densida-

aspecto em particular, do tr fico de drogas de varejo auto-segre-

de torna-se, assim, piv de disputas de poder entre grupos diferentes

gao, passando pelo tratamento a ser dado aos espaos pblicos

de agentes modeladores do espao urbano, o nde no a "maximizao

onde as pessoas se acham mais expostas ao risco de sofrerem algum

da qualidade de vida", mas o lucro ser, para alguns, o motor de sua

tipo de vio lncia. De minha parte, estou convencido de q ue, sem uma

atuao. A densidade ideal no ser, ademais disso, nunca uma cons-

conjugao de planejamento urbano alternativo, programas consis-

tante universal, posto que ela dependente da matriz cultural (cultu-

tentes de gerao de emprego e renda, aes criativas na rea da cul-

ras difere ntes podem apreciar densidades e estilos de vida diferentes)


e do momento histrico (no interior de uma mesma matriz cultural as

tura e polticas alternativas de segurana pblica - o que depreende


med idas a serem tomadas em vrias escalas, da local nacional-, no

preferncias podem se modificar ao longo do tempo, s vezes muito

se conseguir, sequer, evitar o agravamento do fen me no, o que d ir

significativamente: pense-se, por exemplo, no estmulo que o cres-

revert-lo.

cente sentimento de falta de segurana pblica vem dando vertica-

I izao em cada vez mais cidades brasileiras, em detrimento da


opo macia por residncias unifami liares).

"Fmg111entacio do 1ecido sociopoltico-espacial da cidade":


como pode evoluir? O que pode ser fei10 para evitar, estancar 011
revenero processo? A fragme ntao do tecido sociopo lticoespacial, descrita no Cap. 5, avana a passos largos para se tornar a
feio mais dramt ica da vida nas grandes cidades brasileiras, uma
espcie de sntese e produto da sinergia de d iversos proble mas que

158

lmlITl
U:lJ

Como a "globalizao" ( o prprio termo controvertido!)


condiciona a dinmica social no meio urbano e a margem de manobra para a soluo de problemas? Para alguns autores, a "globalizao", que ter-se-ia tornado evidente dos anos 70 para c, representaria uma fase inteiramente nova na histria da humanidade; para
outros, d iversamente, ela nada mais que uma simples " nova etapa"
do processo multissecular de expanso e internacionalizao do capital; para outros, ainda (entre os quais me incluo), e la, ao mesmo
tempo em que no re presenta algo " inteiramente novo" , introduz

159
ITTfl1

rnJ

vrios ingredientes novos, no sendo, assim, uma "mera" extenso


do processo de internacionalizao do capital. Para alguns observadores a globalizao , essencialmente, boa, por oferecer grandes
oportunidades; para outros, ao contrrio, ela , isso sim, essencialmente perversa, por s oferecer boas oportunidades para o grande

possui apenas um lado ruim (embora, na atual conjuntura, ele predomine), que o de ser comandado pelo grande capital e servir aos seus
interesses, mas tambm possui aspectos interessantes e socialmente

a construo de um "clima de negcios" favorvel, tornando a cidade mais e mais competitiva aos olhos de potenciais investidores

positi vos, como o da potencial facilidade extraordinria de comunicao e transporte - potencial, deve-se sublinhar, porque nem todos
possuem os meios econmicos para estar plugado na internet ou desfrutar de viagens internacionais. Na verdade. no contexto da globalizao econmico-financeira atual, os benefcios eventuais para a parcela majoritria da populao que no est diretamente vinculada aos

nacionais e internacionais. No fundo, o encolhimento da margem de


m a nobra para a ao estatal regulatria parece ser indubitvel, na

interesses do grande capital (industrial e, sobretudo, financeiro) no


parecem ser, em sua maioria, mais que efeitos marginais de inovaes ou processos concretizados com a fin alidade de atender s
necessidades dos global players por excelncia, ou "atores globais",
que so as grandes empresas multinacionais e o grande capital financeiro. Esses "atores globais" atacam o Estado- nao - no, certamente, naquilo que ele tem de antipopular ou autoritrio, mas, justamen-

lhimento ainda maior algo simplesmente inevitvel. O que ocorre


que muitos se rendem, alegremente, diante tio enfraquecimento do
"Estado de bem-estar" (ou de seus arremedes terceiro-mundistas),
com isso fazendo o jogo dos interesses dominantes por trs da "globa lizao". Agir assim, tratando a cidade como se ela fosse uma
empresa, isto , subordinando tudo ao objetivo ltimo de fazer acidade ficar mais competitiva perante as suas rivais na atrao de investimentos, significa criar as condies para o agravamento crescente de
problemas sociais e socioambientais.

A participao popular no planejamento e na gesto das cida-

tncia de poder eventualmente passvel de ser mobilizada em prol de


certos avanos, mediante investimentos soc ialmente teis e regula-

des continua alimentando acaloradas discusses. H os que argumentam que essa participao desejvel e totalmente legtima, por se

o de interesse do ponto de vista da promoo de justia social e da

tratar de um direito (especialmente considerando os limites e as deficincias da democracia representativa) e, mesmo, por razes de eficincia (argumenta-se que, sobre a base da participao popular, as

mobilidade do capital e a facilidade das transaes econ micofinanceiras, devendo, portanto, ser abolidas. (No se chega, ao con-

IJlJ

atual conjuntura. Entretanto, ela no desapareceu, nem o seu enco-

te, naqui lo que ele ainda guarda de socialmente til , por ser uma ins-

proteo ambiental. Para os "atores globais", as regu laes impostas


pelos Estados nacionais so restri es indesejveis, q ue dificultam a

rrnIIT1

mente o discurso desregulacionista e privatista "neoliberal", as duas


escalas que contariam hoje em dia seriam, alm da global, a local,
cabendo aos gestores, na escala local, cuidar para estabelecer as condies econmicas (de isenes tributrias a oferecimento de vrias
outras vantagens), viabilizadas por meio de acordos polticas (amplos
"consensos" entre os mais diferentes grupos e classes), que permitam

capital transnacional; para outros, ainda (entre os quais me incluo),


ela um fato, provavelmente irreversvel, mas que, alm disso, no

160

dar a criar, com seu aparato policial e militar, um mnimo de segurana para os negcios.) Para muitos autores, que endossam acrtica-

decises sobre a alocao de recursos ou sobre intervenes no espa-

trrio do que alguns do a entender, ao ponto de se defender a pura e

o estaro sendo mais bem info rmadas, luz das necessidades reais
da populao, reduzindo-se, assim, o desperdcio; argumenta-s~,

simples extino do Estado-nao, na medida em que este continua


tendo alguma serventi a para o grande capital transnacional: por

tambm, que, uma vez que se sintam participantes de processos deci-

exemplo, ao oferecer garantias contra a quebra de contratos, ou a aj u-

perante os bens pblicos e os destinos da cidade). Esse tipo de argu-

srios, as pessoas tendero, tambm, a se sentir mais responsveis

161

rmIIT1

IJlJ

mentao, alis, tambm valo riza o fato de que a participao no s


pode pressupor uma certa conscincia poltica prvia, mas, tambm,
pode, em um efeito de retroalimentao positi va, estimular o amadurecimento po ltico posterior da coletividade, assim func ionando
como uma "escola de cidadania" importante do po nto de vista da
construo de uma sociedade mais j usta. Contrariamente a tudo isso,
h os que, por razes tanto tcnicas quanto ideolgicas, argumentam
que a participao popular pode acarretar ineficincia alocati va, alm
de ser de legit im idade questio nvel : para esses observadores, os
representantes eleitos (prefeito e vereadores) e o corpo tcnico da
Prefeitura teriam legitimidade suficiente e a competncia tcnica e
administrativa necessria para tomar as decises sobre os assuntos de
interesse coletivo, uma vez que, ao contrrio da populao comum,
disporiam dei nfo rmaes sobre um quadro geral (e, no caso dos tcnicos, de uma formao especializada). Ao lado e como desdobramento de detalhe dessa polmica, h controvrsias, tambm, sobre a
natureza e o alcance da participao popular desejvel (no caso de se
concordar, em algum nvel, com ela): por exemplo, deveria ela ser
apenas consultiva (isto , com as pessoas apenas sendo consultadas
pelos governantes) ou deveri a ser ela realmente deliberativa (ou seja,
o Estado de legari a poder dec isrio prpria sociedade civil)?
Embora sucessos e fracassos concretos e estudos empricos possam e
devam continuar ali mentando esse debate, tornando-o cada vez mais

im.rnl
WJ

bons resultados o "saber local", a experincia daqueles que vivem e


trabalham nos lugares, com a experincia e os conhecimentos dos
estudiosos e planejadores, vrias coisas so necessrias, a comear
pela "humildificao" destes ltimos. No entanto, em uma sociedade
onde a tutela, menos o u mais autoritria, menos ou mais benevolente, menos ou mais esclarecida da minoria de dirigentes sobre a maioria de dirigidos a regra geral, a arrogncia dos estudiosos e planejadores no fortui ta nem gratuita: ela faz parte de um contexto muito
mais amplo que a gera (desde a formao na universidade, e mesmo
a ntes) e a reproduz. preciso planejar os prprios planejadores de
um modo diferente ; por exemplo, reeducando-os e disseminando
novos contedos e novas abordagens. E imprescindvel que informaes se disseminem entre a populao, quebrando o mo noplio
que tantos peritos pretendem ter para serem os nicos a poderem
compreender (ou achar que compreendem...) o q ue se passa nas
cidades e o que deve ser feito em matria de planejamento e gesto.
Mas tudo isso cair no vazio se as condies de exerccio do poder,
em uma cidade, e na sociedade em geral, no se modificarem.
Conjunturalmente, avanos so possveis mesmo sob o capitalismo,
e mesmo em um pas semiperifrico. Avanos realmente muito pro-

fundamentado, seria iluso imaginar que ele ir, em algum momento,


simplesmente desaparecer ou "morrer de velho", o que s seria cogitvel caso as contradies e os contl itos sociais que o fazem existir
fossem superados.

fundos, porm, exigem uma mudana nas estruturas da sociedade.


Moral da histria: preciso tomar certas medidas aqui e agora, no

Como co111billar o co11heci111e11to tcnico, ou tcnico-cientfico,


com o "saber local"? E m uma de suas deliciosas tiradas, Millr

"Mais Estado" o u "menos Estado"? E qual o contedo dese-

Fernandes observou, certa vez, que "ainda est para nascer o erudito
que se contenha em saber s o que sabe". O conhecimento tcnico, o u
tcnico-cie ntfico, , sem dvida, relevante, no raro muitssimo
importante; o problema comea q uando o "especialista" se mete a
querer desejar pelos outros, sentir pelos outros ... e a imaginar que

162

sabe tudo. como se as pessoas fossem tratadas como crianas, com


o tcnico dizendo sempre "eu sei o que melhor para vocs; no
sejam travessas, o u o Estado vai dar palmadas!". Para conjugar com

estilo "consertar o carro com ele em movimento", mas sabendo dos


li mites disso - e dos limites do prprio carro.

jvel das intervenes e da regulao estatais? Divergncias a esse

respeito esto por trs das diferenas entre vertentes de planejamentO e gesto urbanos que, atualmente, disputam a preferncia dos estu-

diosos e da sociedade em geral: planejamento e gesto liberalizantes


(tambm chamados, segundo os seus crticos, de empresarialistas,
que preconizam que o Estado facilite ao mximo a atuao do capital

163

ffij

Longo prazo, em termos econmicos ( e ecolgicos) assim como


polticos? Em caso negativo: quais seriam as alternativas, e qual a

110

privado, dessa forma servindo ao bem comum); desenvolvne11111


urbano sustentvel, que entende que um mnimo de regulao estu111I
imprescindvel tarefa de preservao ambiental; estilos de pla111
jamento urbano crticos (no Brasil, vinculados ao iderio da refor11111
urbana), que defendem a regulao e as intervenes estatais noN
marcos de uma preocupao com a conteno da especulao imobi
liria e com a reduo das injustias sociais, ao mesmo tempo em qul
enfatizam, menos ou mais radicalmente, a importncia da participu
o popular no planejamento e na gesto das cidades. O desdobramento dessas divergncias so controvrsias mais especficas, tanto
tcnicas quanto (embora nem sempre isso fique explicitado) polticas, a propsito de determinados instrumentos de planejamento e
mecanismos de gesto.
O assunto da sustentabilidade, apesar de, aparentemente, contar com uma enorme margem de consenso, suscita controvrsias - e
um sintoma disso o fato de que h dzias e dzias de definies e
conceituaes sobre o que seja "desenvolvimento sustentvel" , em
geral, e, por tabela, sobre o que seja um "desenvolvimento urbano
sustentvel" e uma "cidade sustentvel". H muitos autores (na verdade, a maioria) que do uma importncia central sustentabilidade
no sentido ecolgico, ou seja, sustentabilidade enquanto preservao
da base de recursos e minimizao da degradao ambiental; esses
autores costumam banalizar a anlise dos problemas propriamente
sociais e de suas causas (que so, tambm, em larga medida_, as causas mais profundas da problemtica ambiental), preferindo ater-se a
um discurso vago ("pobres"/"ricos", "Sul"/"Norte" ...) e, s vezes, de
forte apelo moral (clamor por uma mudana das conscincias e de
mentalidades), em vez de considerar contradies sociais estruturais
e conflitos profundos objetivos, tanto intername nte a cada pas, quanto na escala das relaes internacionais . Para alm de querelas conceituais e tericas, h, aqu i, a presena de dive rgncias de base,
usualmente no explicitadas e sobre as quais, muitas vezes, nem se
tem muita conscincia: o que se deseja "sustentar" - o atual modelo

164
ITTllTII

UlJ

de sociedade, capitalista? Em caso afirmativo: ele "sustentvel ",

sua viabilidade? comum a retrica em torno das "cidades sustentveis" e da "sustentabilidade urbana" colocar no centro das atenes
os vnculos entre sociedade e natureza, secundarizando ou banal izando a anlise das relaes sociais e, com isso, subestimando o fato de
que, para alm de questes como a crescente poluio ambiental nas
cidades, a formao de ilhas de calor e os problemas quanto ao desti no do lixo urbano, ou como a contribuio das cidades para o aquecimento global, as cidades se tornam, tambm ou, acima de tudo, em
um sentido estritamente social, cada vez mais insustentveis (crescentes disparidades socioeconmicas no espao, violncia urbana
etc.) ...
Qual o significado e quais so as conseqncias da competiio interurbana'? Apesar de a mdia e os "especialistas" martelarem,
a todo momento, a tecla da globalizao, com alguns tendo chegado
a afirmar que ela decretou o "fim do espao" ou dos "territrios", o
fato que, como alguns outros, mais argutos, vm chamando a ateno. a globalizao relativiza a importncia das distncias fsicas,
mas no, propriamente, a das vantagens locacionais. As vantagens
locacionais mais importantes de hoje no so mais, em grande parte,
as de dcadas atrs; mas, nem por isso os atributos do espao ou do
que ele "contm" deixam de ser importantes. Pelo contrrio: com o
capital dotado de muito maior mobilidade, diversos agentes econmicos e po lticos territorialmente referenciados (em um municpio,
em um estado ou provncia, em um pas), como prefeitos, no caso da
escala local. passam a liderar uma competio para atrair grandes
investidores. Estes se apresentam com a promessa de trazer "desenvolvimento" e de gerar empregos, razes pelas quais, e buscando
prestgio e ganhos poltico-eleitorais, administradores pblicos rivalizam entre si para ver quem oferece mais em matria de renncia fiscal (iseno de IPTU por muitos anos, por exemplo), de fornecimento de infra-estrutura, e por a vai. Para as grandes empresas, nacionais
e, sobretudo, multinacionais, com um enorme poder de barganha e

165
ITTllTII

UlJ

uma enorme flexibilidade locacional. a situao no poderia ser mais


cmoda; como um leilo, em que elas sabem que no iro perder. E
o contribuinte, e o muncipe? A relao custo/benefcio entre as concesses a serem feitas e os ganhos esperados objeto de polmica,

Termos tcnicos explicados

mas, ao que indicam muitas evidncias, os ganhos so menos importantes do que se poderia supor, e os prejuzos, no agregado e no longo
prazo, so considerveis.
E chego, com isso, ao fi nal do livro. No pretendo ter focalizado
todas as questes importantes referentes aos problemas urbanos e s
maneiras de super-los; desejo, to-somente, ser sido feliz no tratamento das questes que selecionei. Espero, apesar disso, que as pginas precedentes tenham s ido uma introduo segura e clara ao assunto, alm de, tanto quanto possvel, agradvel de se ler. E, se o leitor
chegou at aqui, porque, provavelmente, consegui alcanar meu
obj etivo.

Atividades primrias, secundrias e tercirias: essa uma


forma muito conhecida de se dividir a economia em setores; provavelmente o leitor se lembrar de que, no ensino mdio, j viu isso
alguma vez, normalmente durante alguma aula de Geografia. Vale a
pena, porm, relembrar: as ati vidades primrias compreendem o
extrativismo vegetal (coleta silvestre), o extrativismo animal (caa e
pesca), o extrativismo mineral, a agricultura e a pecuria. Alm
disso, compreende, tambm, coisas menos usuais como a criao de

ostras, crustceos e peixes. As atividades secundrias so simbolizadas pela indstria de transformao, em que so produzidos bens
econmicos a partir da transformao, pelo trabalho, e utilizando-se
mquinas e ferramentas, de matrias-primas oriundas de atividades
extrativas, agrcolas ou de criao animal (a chamada indstria da
construo civil tambm faz parte do setor secundrio). Por fim, as
ati vid ades tercirias englobam o comrcio e os servios. Embora no
seja to comum, usa-se, tambm, o termo setor quatemrio para
referir-se, especificamente, aos servios mai s sofisticados. "de
ponta", como consultorias econmicas internacio nais e pesquisa
cientfica e tecnolgica.
Cidades globais: a expresso '"cidades globais" (global cities)

166
lm.[l1]

lBJ

popularizou-se, sobretudo, aps a publicao do livro The Global


City. de Saskia Sassen, em 1991 (o livro As cidades na economia
111111u/ia/. da mesma autora, e que retoma as anlises da obra anterior.

167
lm.ITT1

rnJ

apareceu alguns anos mais tarde, e, tendo sido traduzido para o portugus, se acha citado na Bibliografia comentada). Uma cidade global um centro de gesto do territrio em escala p lanetria, vale
dizer, um ponto de comando na economia internacional; concentra
sedes de empresas multinacionais e de bancos em um volume desproporcionalmente grande, concentrando, por tabela, servios de ponta,
o mercado financeiro e a produo de inovaes tecnolgicas. Poucas
so as cidades globais "plenas" ou indiscutveis; as trs mais citadas
so Nova Iorque, Londres e Tquio. Centros de alcance igualmente
internacional, mas menos importantes ou completos, so, apenas para
exemplificar, Frankfurt e Paris, mas tambm Hong Kong e So
Paulo. Pode-se dizer que h, hoje em dia. um razovel nmero de
cidades g lobais no mundo, que so todas aquelas que exercem um
papel de destaque na economia mundial, embora, s vezes com uma
abrangncia meramente continental (como So Paulo ou Cidade do
Mxico); e, no entanto, cidades globais em sentido forte ("cidades
globais plenas"), que so os verdadeiros centros nevrlgicos da economia globalizada, so pouqussimas, e seguramente no incluem
nenhuma cidade de pas semiperifrico ou perifrico.
Constructo: os constructos so abstraes que sintetizam um
nmero muito grande de aspectos particulares, os quais so acessveis observao e, s vezes, mensurao usando-se uma escala
mais poderosa que simplesmente a ordi nal (ver o verbete escalas de
me11suracio, mais adiante neste glossrio). Ilustrando: "qualidade de
vida" um constructo bastante abstrato e complexo, c uja interpreta-

Conurbao: termo criado pelo escocs Patrick Geddes ( 18541932), significa o resultado do "encontro" de dois ou mais tecidos
urbanos em expanso. Nesse caso, mesmo que os limites formais
entre dois municpios permaneam, no h mais descontinuidade de
tecido urbano edificado entre eles, pois os seus ncleos urbanos principais cresceram at se tocarem e formarem uma verdadeira coalescncia, uma mancha nica de espao construdo.
Dficit habitacional: o dficit habitacional consiste na quantid ade de moradias condizentes com a dignidade humana (ou seja: rea
compatvel, materiais de qualidade pelo menos razovel, localizao
em rea saneada e dotada de infra-estrutura e boa acessibilidade) que
se fazem necessrias para substituir as habitaes inadequadas em
que vive a maior parte dos pobres urbanos. Por habitao inadequada
podem-se entender tanto as moradias precrias e, no raro, insalubres
de favelas e loteamentos irregulares, como, tambm, moradias muito
antigas, decrpitas, ainda que situadas em bairros comuns ou mesmo
prximas rea central da cidade. Deve-se considerar, por fim, a
massa dos sem-teto que vivem em condies de extrema precariedade e improvisao, muitas vezes ao relento; nesse ltimo caso, contudo, no se faz necessria apenas uma reforma estrutural como a reforma urbana (e o utras), mas sim, so imperativos programas emergenciais para combater a indigncia, q ue o estrato mais baixo da pobreza absoluta.
Democracia direta/democracia representativa: a democracia

o, ademais, passa pelo crivo subjetivo individual, apesar de certos

um regime poltico e111 que 1.1111 nmero muito alto de membros da

padres culturais gerais de referncia; entre seus numerosos componentes esto o nvel de poluio ambiental, o grau de liberdade pol-

coletividade (cidados) participa do processo de tomada de decises


de i11teresse coletivo. Na democracia direta, muito bem exemplifica-

tica e o conforto material. Um cientista social (socilogo, cientista


po ltico, gegrafo social, economista, historiador ou antroplogo)

da pela plis grega clssica, especialmente por Atenas, os indivduos


participavam diretamente dos processos decisrios, reunidos em
assemblia na praa do mercado (gora); havia, sim, funes especficas, administrativas ou de outra natureza, desempenhadas por indi-

lida, a todo momento, com constructos, no podendo deles prescindir: "carisma", "poder" e "status" so alguns exemplos.

vduos eleitos (caso dos comandantes mi litares), mas a maior parte


dos cargos era sorteada entre os cidados, de modo a evitar cristaliza-

168
lill.ITT1

lliJ

169
lill.ITT1

illJ

es de poder e a perpetuao de indivduos em determinadas posies. J na democracia representativa moderna, os cidados escolhem seus representantes, os quais iro represent-los na administrao e no parlamento, decidindo em seu nome. A democracia representativa, diversamente da direta, torna estrutural e permanente uma
separao entre diri gentes e dirigidos. Poder-se-ia argumentar que,
e m princpio, todos (ou quase todos, excetuando-se os menores de
idade, os criminosos presos etc.) tm o direito de se candidatar a um
cargo pblico; entretanto, em uma sociedade desigual, marcada por
diferenas de classe e, especialmente no Terceiro Mundo, por crassas
disparidades socioecon micas e por vrias deformaes polticoculturais ("coronelismo", "voto de cabresto" etc.), as chances reais
de que um cidado comum pobre, sem vncu los o u acordos com
mquinas polticas estabelecidas e sem um financiamento de sua
campanha, conquiste um cargo pblico pela via eleitoral, so pequenas. Alm disso, a pouca transparncia do aparelho de Estado ("razes de Estado", decises tomadas a portas fechadas etc.), mais as
dificuldades para a perda de mandato do representante improbo o u
co rrupto, fazem com que a democracia representativa, no fundo,
s irva mais para perpetuar o status quo econmico-social vigente do
que para, com base nela, corrigi-lo. bem verdade que, por outro
lado, a democracia representativa possui uma inclinao wziversalista, coisa que no ocorria na plis clssica, j que existia a escravido

170
ITTL[TI]
[llj

e as mulheres no eram propriamente cidads com direitos polticos.


Todavia, por s ua natureza, a democracia representativa , no fundo,
um a democracia com aspas; ela este nde certos direitos formais a
muitos gru pos (como as mul heres), mas perma nece s uperficia l.
Modernamente, algumas tentativas de se introduzirem, pelo menos,
elementos de democracia direta no contexto da democracia representativa vm ocorrendo; como se estar di ante de coletividades muitssimo maiores que uma p/is grega da Antigidade, a participao
direta da popul ao acaba tendo de se dar com a ajuda de artifcios
como a delegao (que difere da representao na medida em que o
delegado, ao contrrio do representante, apenas um porta-voz de
sua base, e no algum que recebe um mandato para decidir livre-

mente em nome de outrem) e a descentralizao poltico-territorial.


Uma sociedade autogerida do futuro, baseada na democracia direta,
se vier a existir, ter, forosame nte, de recorrer a esses expedientes
(e, tambm, s modernas tecnologias de informao e comunicao)
para viabilizar os processos decisrios.
Desemprego aberto e disfarado: o desemprego aberto quando o indi vduo, forado ociosidade por no conseguir ingressar no
mercado de trabalho formal (indivduo jovem em idade de trabalhar)
ou ter perdido o emprego, no exerce nenhuma atividade econmica
remunerada em carter mais ou menos permanente, e disfarado
quando ele se acha exercendo atividades fora do mercado de trabalho
formal, comumente em uma situao de muito baixa remunerao e
gra nde precariedade sob os ngulos trabalhista e previdencirio. O
desemprego disfarado corresponde ao chamado subemprego, que
compreende os trabalhadores no-registrados e que so, via de regra,
os mais pobres. Hoje em dia, situaes de informalidade h que, sem
dvida, desafiam um pouco essa simplificao; pense-se, para ilustrar, nos traficantes de drugas de varejo baseados em uma favela, os
quais, justamente, ingressam na "carreira" criminosa para no ter de
se submeter seja a um emprego formal de baixa rem unerao, seja,
em meio a elevadas taxas de desemprego, a um subemprego qualquer. Entretanto, essa no apenas a exceo que confirma a regra,
mas nem sequer uma exceo por completo: basta ver a vida que a
maioria desses traficantes leva, prisioneiros em seus prprios "domnios" e com uma expectativa de vida muito baixa.
Economias de aglomerao: as economias de aglomerao
correspondem ao que se chama de "economias externas de escala"
firma, ou "externalidades". Essas tm a ver, como indica o nome,
com efeitos econmicos sobre as empresas que derivam de fatores
que lhes so externos. As ex ternalidades podem ser positivas o u
negativas. No caso de a presena de vrias firmas prximas no espao criar uma economia de escala favorvel a todas elas, coisa que
resulta, justamente, da ao conjunta das empresas individuais (ou,

171

MJ

tambm, no caso de a influncia pos itiva advir da cidade como um

irregulares, 3) ...; tipos de relao jurdica com o imvel: 1) proprie-

todo, em sua co mplexidade), a externalidade ser positiva; por exem-

trio, 2) inquilino, 3) posseiro, 4) outra). A escala ordinal j informa

plo. quando firmas que desenvolvem ati vidades complementares se

sobre quantidades, associando-as s variveis e comparando-as umas

localizam prximas umas das outras. Quando a influncia da aglome-

com as outras; mas as quantidades no so expressas por nmeros,

rao de firmas ou de outros aspectos referentes vida urbana for

nada informando, portanto, sobre as distncias entre os valores (por

desfavorvel, a externalidade ser, claro est, negativa. Alm disso,

exemplo : 1) alto status social, 2) mdio status social, 3) baixo status

as economias de aglomerao se subd ividem e m dois tipos: as econo-

social). As escalas ordinais so as mais importantes, na prtica, para

mias de concentrao e as econolllias de urbanizao. As prime iras

as c incias da sociedade. A escala de intervalo pressupe que os

ocorrem quando as e mpresas prximas pertencem ao mesmo ramo;


po r exe mplo, uma conce ntrao de lojas especializadas e m um

sui um zero absoluto, mas sim, apenas um zero arbitrrio, como o

mesmo produto e m uma mesma rua, cria ndo, para a cidade inteira o u

zero de um termmetro (zero, nesse caso, no significa "ausncia de

intervalos entre as categorias sejam idnticos, mas a escala no pos-

grande parte dela, uma referncia junto clientela e m potencial, o

temperatura"). Por fim, na escala de razo o zero no arbitrrio,

que acaba be neficiando todos, ao menos enquanto no houver satura-

representando, si m, ausnc ia a bsoluta. No apenas no fcil,

o do mercado. O segundo tipo de economia de aglomerao, as

porm, estabelecer quantidades expressas numericamente para os

economias de urbanizao, comparece quando se est diante de rela-

constructos com os quais os cientistas sociais lidam (como medir,

es de complementaridade, alm de se considerarem, tambm, as

diretamente, poder ou carisma?...), mas, alm disso, o zero tende a

influncias positi vas do ambiente urbano (i nfra-estrutura tcnica e

ser uma fico em numerosssimos casos: " zero" poder, "zero" sta-

social, qua li ficao da mo-de-obra etc .). Note-se, contudo, que,


quando h uma saturao, um ambiente favorvel pode passar a ser

tus. em sentido realmente absoluto? Ou, numa escala de tamanho


de mogrfico de cidades: pode ser difcil definir "a partir de quanto"
se pode falar de cidade, como seu viu neste livro , mas no existe,

desfavorve l, e fatores como polu io, congestionamentos, violncia


etc. conduzem ao inverso das economias de aglomerao, que so as
deseco110111ias de aglomerao.

obviamente, uma cidade com zero habitante!


Favelas: as favelas aprese ntam vrias caractersticas, rnas

Escalas de mensurao (nominal, ordinal, de intervalo e de


razo): quando se diz que se pode medir a lguma coisa, o verbo

172

lfillTil

[llJ

nenhuma delas parece ser to especfica quanto o seu status jurdico


ilegal, na qualidade de ocupao de terras pblicas ou privadas per-

"medir" costuma ser associado idia de que uma grandeza ou rela-

te ncentes a terceiros. A pobreza de sua populao , sem dvida, uma

es en tre grandezas diferentes sero e xpressas por nmeros: por

caracterstica distintiva muito comum, mas o nvel de pobreza bas-

exemplo, a al tura de uma pessoa, a taxa de in fl ao ou a rea de um


municpio. Na verdade, ao se me nsurar alguma coisa nas c incias

tante varivel no s entre favelas (uma favela recente de periferia


tende a ser mais pobre, na mdia, que uma favela antiga e consolida-

sociais, o que se est fazendo associar valores a uma varive l, mas

da, localizada prxima a bairros privilegiados), mas tambm no inte-

esses valores no precisam ser expressos numericamente. Existem

rior de favelas grandes e consolidadas, especialmente quando situa-

quatro tipos de escalas de mensurao , sendo que a mais simples

das e m reas valorizadas . A carncia de infra-estrutura, assim como

de las, a nominal, purame nte qualitativa: e la apenas c lassifica os

a pobreza, , igualmente, uma caracterstica muito comum, mas, no

fenme nos ou nos informa sobre sua presena o u ausnc ia (por

menos que a pobreza, varivel. A esses critrios se poderiam acres-

exemplo: tipos de espaos segregados: 1) favelas, 2) loteamentos

centar a malha viria totalmente irregular e mais alguns outros. O lei-

173

lfillTil

WJ

tor pode estar se perguntando: "mas, e se o Estado dotar uma favela


de infra-estrutura e promover a sua regularizao fundiria? O espao continuar a ser um a favela?". E m princpio, no; no entanto,
como a fora de inrcia dos preconceitos muito grande, provvel
que, no imaginrio coletivo da populao privilegiada, as concentraes de pessoas pobres que continuariam a ser esses espaos, provavelmente conti nuariam recebendo algum tratamento discriminatrio
no quotidiano. Da a importncia de se enfrentarem, complementar-

explicao ou um esclarecimento que um texto oferece (e um texto ,


ele prprio, uma simplificao, um "modelo verbal", por mais rico e
complexo q ue seja) muito maior que a margem de manobra permitida por um diagrama sistmico, a mesclar texto (com torturante economia de palavras) e relaes grficas. Ao elaborar o modelo, buscando distinguir o que essencial do que acessrio, o prprio pensamento ganha mais clareza sobre limites e relaes. Po r isso,
constitui-se em um timo exerccio.

mente dotao de infra-estrutura e regularizao fundiria, o problema da pobreza e, tambm, o desafio representado pelos elementos
racistas e estigmatizantes presentes no imaginrio e associados s
imagens de certos lugares.

Loteamentos irregulares: um loteamento considerado irregular quando ele no obedece ao que prev a legislao que dispe
sobre o parcelamento do solo, especialmente a Lei Federal 6.766/79,
conhecida como "Lei Lehmann" em homenagem ao senador (Otto

Geom etria dos fractais: a Geo metria dos fractais busca demonstrar que estruturas naturais de complex idade aparentemente
infinita, como nuvens e galx ias, apresentam, no fundo, uma surpreendente regularidade, a chamada "invarincia de escala". Ou seja:

cumprirem com a sua parte no que se refere a certas obras e melhorias infra-estruturais; com isso, deixam para trs parcelamentos irre-

examinando-se essas estruturas a partir de nveis de aproximao os


mais variados, topa-se, fundamentalmente, com os mes.mos elemen-

via de regra uma populao pobre, moradora de periferias urbanas,


que ter, penosamente, de lutar junto ao Poder Pblico para levar

tos bsicos. Para alguns analistas, cidades poderiam ser "decodificadas" com a ajuda dessa nova "linguagem" matemtica. Esquecem-se

infra-estrutura, inclusive saneamento bsico, at o local, e regularizar


a sua situao. Quando, ainda por cima, o loteador nem sequer bus-

ou ignoram que,justamente, em matria de espao social, e para alm


de seme lhanas formais, uma mudana de escala implica uma

cou aprovar um projeto de loteamento junto Prefeitura, o loteamento, alm de irregular, denominado de clandestino. Em alguns casos,

mudana qualitativa: por exemplo, os fenmenos observados e


observveis na escala da rede urbana no so, em geral, os mesmos
observveis na escala intra-urbana, e vice-versa.

loteadores inescrupulosos loteiam at mesmo terrenos que nem


sequer lhes pertencem, assim se encontrando os adquirentes dos lotes
em uma condio de posseiros (ocupantes ilegais), correndo o risco

Lehmann) que foi o seu relator. muito comum os loteadores no

gulares em face da legislao, e a prpria populao do loteamento,

de serem expulsos, muito embora tenham agido de boa-f.


Heurstica: no sentido usado neste livro, heurstico um procedimento de busca das fon tes ou causas, por aproximaes sucessivas.
Quando, no corpo do texto, eu disse que um modelo (grfico. por
exemplo) possui uma funo heurstica, eu queria dizer que, ao construir o modelo, e para construi-lo, o cientista forado a possuir um
aprecivel poder de sntese e, ao mesmo tempo, um grande senso de

174

00

equilbrio, pois ele dever proceder a simplificaes sem, contudo,


distorcer grotescamente a real idade. A margem de manobra para uma

Mais-valia: a mais-valia um conceito herdado do pensamento


marxista, e corresponde ao chamado "trabalho no pago", ou ao valor
que o trabalhador cria alm do valor de sua fora de trabalho. Fica
mais fcil explicar com a ajuda de um exemplo hipottico. Suponhamos que os operrios de uma determi nada f brica produzam uma
q uantidade "x" de uma certa mercadoria por ms, quantidade essa
que ser vendida pelo empresrio (dono da fbrica) por um valor "y".
175

ffiJ

evidente que os operrios no iro receber, ao final do ms, o valor


"y" dividido igualmente entre eles a ttulo de remunerao (isso
poderia ocorrer se se tratasse de uma cooperativa, e no de um
empreendimento tipicamente capitalista); do valor " y" o capitalista
dever deduzir um valor "z", o qual abrange coisas muito diversas:
antes de mais nada, o valor que o empresrio tem de pagar ao proprietrio do terreno onde se situa a fbrica, no caso de ele no ser, ao
mesmo tempo, o dono do terreno (a essa remunerao ao propritrio
do terreno d-se o nome de renda fundiria, ou renda da terra). O
que resta do valor "z" aps esse desconto aquilo que Marx chamava, genericamente, de lucro. Uma parte do lucro dever ser usada
para cobrir os mais diferentes custos com infra-estrutura (energia,
gua etc.), com impostos e com a compra de matrias-primas; uma
outra parte dever ser usada para o pagamento dos assalariados no
diretamente envolvidos com a produo (inspetores, supervisores
etc., que so aqueles que Marx denominava, de modo bastante questionvel, de "trabalhadores no-produtivos"); uma outra parte do
lucro ser reinvestida, visando ampliao, ao crescimento e
modernizao da produo e da empresa; uma parte ir, eventualmente, para o pagramento de juros bancrios, decorrentes de emprstimos contrados pelo capitalista; por fim, depois de todos esses descontos, o que sobra o lucro da empresa, que inclui a remunerao
pessoal do capitalista ou dos acionistas. O valor "z" a prpria maisvalia. que , como se viu, a base do lucro. Em resumo, a mais-valia
extrada de um trabalhador a diferena entre o valor que ele produz
e aquilo que pago por sua fora de trabalho.
Meios de produo: os meios de produo consistem tanto no
objeto sobre o qual se trabalha (matria bruta, que a substncia que
provm diretamente da natureza, ou matria-prima, que aquela que
j sofreu algum tipo de modificao), quanto nos meios de trabalho
em geral (ferramentas, mquinas etc., mas tambm o terreno da
empresa ou firma, com as construes e as benfeitorias - isto , o
substrato espacial). No capitalismo, os trabalhadores no so proprietrios dos meios de produo, e sobre essa separao que se

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R.[nJ

UlJ

assentam a extrao da mais-valia e o processo de explorao econmica de uma parcela da sociedade por outra.
Modelos gravitacionais: a tentao do formal ismo levou, j h
vrias dcadas, economistas regionais e gegrafos quantitativos a
quererem analisar fenmenos scio-espaciais com a ajuda de analogias com as leis da Fsica e mediante a importao de mtodos dessa
cincia. O exemplo mais conhecido e clssico a anlise de migraes e interaes espaciais por meio de "modelos gravitacionais", em
que a interao vista como decorrente de uma relao entre "massas" e "distncias", a atrao (no caso, de populao) se dando na
razo direta das massas envolvidas e na razo inversa do quadrado da
distncia.
Modo de produo: Parece simplesmente pleonstico, mas no
: o modo de produo a maneira como bens econmicos so produzidos, combinando relaes de produo determinadas com certas
foras produtivas. As relaes de produo compreendem as relaes
de trabal ho, que so as relaes que os trabalhadores estabelecem
entre si e com os proprietrios dos meios de produo (no caso de no
serem eles mesmos os proprietrios), e os sistemas de propriedade. J
as foras produtivas abrangem os meios de produo e a prpria fora
de trabalho. O conceito acha-se muito marcado pelo pensamento marxista, mas passou a ser usado mesmo por pessoas que, a rigor, no so
marxistas, o que, em princpio, no oferece maiores problemas, desde
que as modificaes e adaptaes sejam explicitadas e no conduzam
a uma "salada de frutas" terico-conceitua!. Por exemplo, a fora de
trabalho est muito longe de ser uma simples fora produtiva, uma vez
que os trabalhadores resistem, de vrios modos, aos imperati vos do
processo de produo, no mbito do prprio quotidiano da fbrica ou
empresa, coisa usualmente subestimada pelo marxismo. Outro problema, mais abrangente, o da incipincia (e, s vezes. inexistncia) da
crtica marxista s foras produtivas capitalistas, como se fosse possvel e desejvel que uma sociedade ps-capitalista, pretendidamente
mais justa, simplesmente aproveitasse toda a matriz tecnolgica e a

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R.[nJ

UlJ

organi zao espacial legadas pela atual sociedade capitalista, sem

ciais como "Primeiro Mundo"/"Te rceiro Mundo", "pases desenvol-

maiores crticas ou re vises. Para o marxismo, por fim, o modo de

vidos"/"pases subdesenvolvidos" e outros. Pases perifricos tpicos

produo da vida material de termina o processo da vida poltica e

so muito pouco industrializados, a composio de seu Produto

espiritual, determinismo esse que passou a ser crescentemente rejeita-

Interno Bruto (PIB) e, mais ainda, a sua pauta de exportaes, revela

do o u relativizado (inclusive por marxistas menos ortodoxos), por

uma economia muito depende nte do setor primrio (agric ultura,

secundarizar o papel do imaginrio e das motivaes de carter no-

pecuria, extrativismo); alm disso, possuem problemas sociais gra-

econmico. O modo de produo um conceito importante, mas de

ves (enorme pobreza absoluta e mesmo fome endmica, desigualda-

alcance limitado; o conceito de modelo social o u civilizatrio vai mais

des etc.). Pases centrais so aqueles que, alm de industrializados,

alm, pois diz respeito imbricao das dimenses econmica, po ltica e c ultural no seio de um dado tipo de sociedade.

so geoecono micamente e geopoliticamente dominantes em escala


global, apesar das diferenas entre eles (por exemplo, a dis tncia de
pote nc ial militar que separa os EUA dos pases europeus o u do

Necessidades bsicas: o conceito de necessidades bsicas til

Japo). E mbora no estejam li vres de diversos problemas (como

e, ao mesmo tempo, ard iloso, pois comum as pessoas ac harem que

racismo, xenofobia e, mesmo, pobreza e desemprego), historicamen-

podem definir, em gabinete e de uma vez por todas, independente-

te, as sociedades desses pases conseguiram superar, e m geral, os

mente do momento e da cultura, e em nome dos outros, quais so as

prob lemas materiais mais graves, como a pobreza absoluta, e a mobi-

necessidades bsicas. Em uma primeira aprox imao, no difcil


ente nder como necessidades bsicas materiais aquelas ligadas, por

lidade vertical bastante signifi cativa. Pases semiperifricos so


aqueles que mesclam algumas caractersticas dos pases centrais,

exemplo, a lime ntao, morad ia salubre e di gna e ao vestu rio,

como o forte nvel de industrializao (embora, via de regra, no

assim como necessidades bsicas imateriais seria m as ligadas, por


exemplo, ao lazer e cultura. Contudo, o que bsico, e o que no-

sej a m indstrias de tecnologia de ponta), com muitas caractersticas

bsico? Quem defi ne a fronteira entre os dois tipos? De que modo

se miperifricos so, normalmente, ou "pases s ubdesenvolv idos

necessidades materiais e imateri ais depende m umas das o utras e se

industrializados", como o Brasil, ou, tambm, pases europeus que

condicionam reciprocamente? Eis algumas q uestes que precisam, a

no c hegaram, nunca, a se afi rmar como pases centrais, mesmo

todo mo mento, ser recolocadas.

tendo sido, em alguns casos, pot ncias coloniais, como Portugal.

dos pases perifricos, a comear pelos problemas sociais. Os pases

Pases p erifricos, semiperifricos e centrais: a terminologia

Pobreza absoluta e pobreza relativa: pobre, e m sentido abso-

" pases centrais"/"pases perifricos" deve muito s diversas corren-

luto, aquele indi vduo cujos re ndime ntos no so suficientes para

tes da c hamada "Teoria da Dependncia". Immanuel Wallerstein

assegurar-lhe nem sequer a satis fao mnima de todas as suas neces-

popul arizou, mais tarde, o conceito de "pas semiperif rico", no

sidades bsicas. J o indivduo que apenas relativamente pobre

mbito de sua teori a sobre a formao e a din mica do "sistema mun-

pode ter, pelo menos, as necessidades bsicas minimamente satisfei-

dial capitalista" . Independentemente de se concordar inteira mente

tas, mas ele considerado pobre e m comparao com outros segmen-

com as anlises de Wallerstein (e u, partic ularmente, no concordo

tos sociais, no rmal mente sendo visto como tal pela sociedade e,

com diversas coisas, cuja explicitao no cabe aq ui), o trip concei-

inclusi ve, vendo-se a si prprio nessa condio, em funo de seu

tuai pases perifricos, semi perifricos e centrais parece-me, h mui-

local de moradia, de sua di ficuldade de acesso a certos bens de con-

tos anos, til, pois substitui ou complementa, com vantagem, referen-

sumo (especialmente de consumo durvel) e tc.

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Retroalimentao positiva: na linguagem da Teoria Geral dos

Bibliografia comentada

Sistemas, uma retroalimentao positiva se d quando o fenmeno


"B", que gerado pelo fenmeno "A", reincide sobre "A", reforando-o. Corresponde qui lo que, em linguagem comum , quotidiana,
muitas vezes se chama de "crculo vicioso". Nesses casos, o efeito
atua sobre a causa, reforando-a e gerando um efei to ainda mais
forte, e assim prosseguindo, indefin idamente, at que se consiga de
algum modo, quebrar ou interromper a cadei?

Vrios dos livros arrolados e comentados a seguir foram citados no


corpo do texto, mas nem todos. Mesmo assim, esta Bibliografia comentada
bastante sucinta, e objetiva ser nada mais que um guia inicial para o leitor
interessado em aprofundar seus conhecimentos a propsito dos temas abordados no livro.
ABREU, Maurcio de Almeida ( 1988): Evoluo urbana do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar/lPLANRIO, 2'. ed.
O livro de Maurcio Abreu, atualmente em sua terceira edio, no
somente um bonito trabalho - bonito pela iconografia (que inclui reprodues de mapas antigos, de fotografias, de pinturas e at de caricaturas
de poca) e, tambm, por conta da elegante prosa do autor-, mas, sem
dvida, um livro extremamente importante por seu contedo: ele uma
fonte de referncia obrigatria para quem se interessa pela histria do
Rio de Janeiro e, mais amplamente, por Geografia Urbana Histrica e
Histria Urbana.
ARMSTRONG, Warwick e McGEE, Terry (1985): Theatres of Accumulation. Studies in Asian and Latin American Urbanization. New York:
Methuen & Co.
Trata-se, este livro de Warwick Armstrong e Terry McGee, de uma
coletnea de ensaios, em que alguns so mais gerais e tericos, enquanto que outros so anlises empricas de casos especficos. A discusso
que o livro encerra, a propsito das cidades capitalistas como "teatros
de acumulao" e, ao mesmo tempo, "centros de difuso" (de "inovaes"), bastante importante.
BENEVOLO, Leonardo (2001): Histria da cidade. So Paulo: Perspectiva,
3?ed.
O livro de Benevolo uma bela obra de referncia sobre a histria da
cidade, vista pelo olhar de um arquiteto. O destaque vai, em grande
parte, para a enorme quantidade de ilustraes.

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CASTELLS, Manuel ( 1983): A questo 11rba11a. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

A questo urbana foi publicado n~. Frana. originalmente. em 1972. e


tornou-se o principal livro-smbolo da Sociologia Urbana de corte marxista que. e ntre fins dos anos 60 e incio dos anos 70. iria. inicialmente
na Frana. e logo em seguida na Inglaterra e nos EUA, submeter a Sociologia clssica (marcada pelo c ulturalismo e pelo funcional ismo) a rigorosas crticas. O li vro de Castells possui vrias deficincias que foram
aparecendo com o tempo. e seu prprio autor se distanciou de sua abordagem de ento (alis, Manue l Castells mudou vrias vezes de posio
nos ltimos trinta anos); no entanto, esse li vro. que marcou e, e m grande
parte, inaugurou vrios debates, uma referncia obrigatria.

ria em sua formulao clssica), ir s fontes sempre recomendvel.


W a lte r Chri staller era economista de fo rmao. mas doutorou-se
em Geografia com Robert Gradmann . Sua Teoria das Localidades
Centrais foi levada e m conta para planejar o reordenamento espac ial
dos pases ocupados pelo Terceiro Reich na Europa do Leste, e o prprio
Christalle r cultivou relaes de cooperao com a Alemanha de Hitler,
tomando-se, inclusive, membro do Partido Nacional-Socialista (nazista)
em 1940. Isso deve te r sido decisivo para fazer com que ele, aps a
Segunda Guerra, jamais tenha a lcanado a posio de c atedrtico.
Apesar disso, seu nome e sua obra obtiveram fama mundial, depois de
ser esta ltima recuperada, nos anos 60 e 70, pelos gegrafos quantitativos anglo-saxnicos e por economistas espaciais. Na verdade, ades-

CH ILDE, Yere Gordon ( 1973 [ 194 1]): O que aconteceu na histria. Rio de

peito das mculas que pesam contra o seu autor, no plano moral ou

Jane iro: Zahar, 3~ ed.


_ __ (1981 [?)): A evoluo cultural do homem. Rio de Janeiro: Zahar,

ideolgico, sua teoria uma das mais robustas (simples e, ao mesmo


tempo, consistente) at hoje j elaboradas no campo dos estudos urbanos e regionais, e o sistema alemo de ordenamento espacial a tem, at
hoje, como um de seus fundamentos tericos.

5~ ed.
Ambos os livros do a rquelogo australiano V. Gordon Chi Ide so clssicos absolutos. Escritos como livros de divulgao c ientfica para um
pblico de no-especialistas e m Arqueologia ou Pr-Histria. so le ituras. ao mesmo tempo. e nriquecedoras e envolventes, porque acessveis.
Mesmo tendo os avanos posteriores nos estudos arqueolgicos levado
obsolescncia de certas interpretaes de Childe, sem contar certas
imprecises conceituais (como a designao por "totalitrio" do tipo de
Estado teocrtico-autoritrio do antigo Egito faranico, ou da sociedade
espartana), o panorama geral descortinado por ele sobre o surgimento
das cidades continua valendo a pena ser lido. Embora a editora carioca
Zahar no mais exista, seus li vros costumam ser encontrados com facilidade em bibliotecas e sebos.
CHR IST ALLER, W alter ( 1966 (1933]): Ce11tral Places in So111hem
Germany. New Jersey: Prentice-Hall.
No existe uma trad uo da obra clssica de Christaller Die zentrale11

One in Sddeutschland (As localidades cemrais na Alemanha Meridional) para o portugus. Dou, ento, a referncia de uma traduo para o
ingls, j que o alemo inacessvel para a esmagadora maioria dos leitores brasileiros. O li vro de Christaller leitura obrigatria para que m
se interessar mais a fundo pelo assunto das redes urbanas. Muito embora muita coisa tenha sido publicada desde que Christaller lanou seu
li vro, h setenta anos (em parte criticando o u revendo aspectos da teo-

CORRA, Roberto Lobato ( 1993): O espao urbano. So Paulo: tica (=


srie Princpios, n? 174), 2? ed.
_ _ _ ( 1989): A rede urbana. So Paulo: tica (= srie Princpi os,
n. 168).
Esses dois livros de Roberto Lobato Corra, professor do Departamento
de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-gegrafo
do IBGE, conseguem ser, ao mesmo tempo, rigorosos e didticos.
Foram escritos para estudantes de graduao, no para leigos; contudo,
seu didatismo, a linguagem direta e os muitos exemplos concretos, juntamente com um glossrio, tomam-nos bastante acessveis tambm para
o pblico no-especializado. O espao urbano complementa, sob vrios
aspectos, o que se disse, especialmente, no Cap. 4 do presente livro (A
cidade vista por dentro), enquanto q ue A rede urbana uma altamente
recomendvel leitura suplementar ao Cap. 3 (Da cidade individual
rede urbana).
DAVIS, Kingsley et ai. (1977): Cidades - a urbanizao da humanidade.
Rio de Janeiro: Zahar.
Trata-se de uma coletnea de textos publicada em fins dos anos 60 nos
EUA. Boa parte dela "datada", uma vez que os dados e mesmo algumas interpretaes envelheceram. De qualquer maneira, vale a pena

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consultar no apenas por estar disponvel em portugus, mas tambm


por conter alguns textos que ainda podem ser lidos com proveito pelo
leigo e mesmo pelo estudante de graduao, como o de Kingsley Davis
(A urbanizao da humanidade) e o de Gideon Sjoberg (Origem e evoluo das cidades).

em parceria com o Departamento de Geografia do IBGE, o estudo busca


atualizar o trabalho Regies de influncia das cidades, publicado e m
1987 pelo IBGE. O resultado no foi, a meu ver, inteiramente satisfatrio, devido a problemas de base de ordem conceituai e metodolgica.
Seja como for, a referncia mais atual e abrangente de que se dispe a
propsito da rede urbana brasileira, o que a torna uma leitura necessria

HALL, Peter (2001 ): Cidades do amanh. So Paulo: Perspectiva.


O livro do gegrafo Peter Hall uma das mais completas histrias do planejamento urbano j escritas -e, possivelmente, a mais gostosa de se ler.
HARVEY, David ( 1980): A justia social e a cidade. So Paulo: HUCITEC.
Ajustia social e a cidade foi publicado nos EUA em 1973 e constituise, ao lado de A questo urbana, de Manuel Castells, em um dos dois
livros-smbolo da "guinada para a esquerda" que caracterizou boa parte
dos estudos urbanos na virada dos anos 60 para os anos 70. David
Harvey j era, poca da publicao do livro, muito respeitado e conhecido no meio da Geografia norte-americana, tendo se destacado no
mbito da "revoluo quantitativa". No comeo dos anos 70 sua viso
muda, e "converte-se" ao marxismo. A justia social e a cidade uma
"obra de transio", composta de duas partes, em que fica bem clara a
trajetria do autor, de uma viso de mundo liberal para uma marxista.
Certas anlises, sobretudo da segunda parte, como aquelas sobre a formao do gueto e sobre os papis dos agentes modeladores do espao
urbano em uma cidade capitalista, j podem ser consideradas, hoje, passagens "clssicas", por sua condio de referncia obrigatria, assim
como, em ltima anlise, o prprio livro.

para quem quiser se aprofundar no assunto.


JACOBS, Jane (2001): Morte e vida de grandes cidades. So Paulo: Martins
Fontes.
Jane Jacobs atraiu para si a ira do establishment urbanstico ao publicar,
em l 961, esse livro, que rapidamente viraria um best-seller. Sua crtica
arguta e ferina no poupou as duas mais populares correntes urbansticas de ento, a das "cidades-jardim" e a modernista. Morte e vida de
grandes cidades (traduo truncada do ttulo original americano The
Death and Life of Great American Cities) permanece sendo, depois de
mais de quarenta anos, uma leitura edificante. Isso serve um pouco de
consolo para o pblico brasileiro, j que a traduo foi publicada, aqui,
somente quatro dcadas depois do aparecimento do livro nos EUA.
KOWARICK, Lcio (1979): A espoliao urbana. Rio de Janeiro e So
Paulo: Paz e Terra.
Embora seja uma coletnea de textos escritos ao longo da dcada de 70,
A espoliao urbana guarda uma fortssima unidade interna. No conjunto, consiste na tpica abordagem crtica de Sociologia Urbana brasileira dos anos 70 - com seus temas recorrentes, como favelizao, autoconstruo nas periferias e lutas urbanas - em sua melhor forma.
Continua sendo uma leitura muito importante.

IBGE (1987): Regies de influncia das cidades. Rio de Janeiro: IBGE.


Coordenado tecnicamente por Roberto Lobato Corra, Regies de
influncia das cidades atualiza um outro estudo, Diviso do Brasil em

regies funcionais urbanas, de 1972. A parte terica e metodolgica


muito boa. Vale como indicao de leitura para quem queira se aprofundar sobre o assunto rede urbana, em especial no tocante sua aplicao
ao Brasil.
IPEA/IBGE/NESUR (1999): Caracterizao e tendncias da rede urbana
do Brasil. Campinas: UNICAMP, 2 vais.
Encomendado pelo IPEA e preparado pelo Ncleo de Economia Social
Urbana e Regional (NESUR) do Instituto de Economia da UNICAMP

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im.ITT1

lliJ

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich ( 1982 [1848]): Feuerbach. Oposio das


concepes materialista e idea/isra (Captulo primeiro de "A ideologia
alem"). ln: MARX/ENGELS: Obras escolhidas. Moscou e Lisboa:
Edies Progresso e Edies "Avante!".
No captulo primeiro de A ideologia alem, assim como no prprio
Manifesto comunista, Marx e Engels oferecem anlises rpidas mas
interessantes sobre a oposio cidade/campo e a mudana de seu significado na e steira da transio do feudalismo para o capitalismo. Por
falar em Marx e Engels, espec ialmente este ltimo contribuiu, em
outros textos, para a anlise de problemas urbanos; vide os seus A situa-

185

rnJ

o da classe trabalhadora na Inglaterra (em particular o captulo "As


grandes c idades") e A questo da habitao, ambos facilmente e ncontrveis em portugus.
MUMFORD, Lewis ( 1982 [ 1961 )): A cidade na histria. Suas origens,
transformaes e perspectivas. So Paulo e Braslia: Martins Fontes e
Editora UnB.
A cidade na histria um clssico que, mesmo depois de decorridas
tantas dcadas aps sua primeira edio em lngua inglesa, no perdeu
seu encanto e sua utilidade - e por isso mesmo um clssico. Monumental, do alto de suas mais de setecentas pginas, e erudito, no deve,
s por isso, assustar o leitor: com sua prosa fluente e agradvel, quase
que se l como se l um romance. Ou, dependendo do leitor, ainda com
mais apetite.
PERLMAN, Janice ( 1977 (1 976)): O mito da marginalidade. Favelas e poltica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
O estudo de Janice Perlman O mito da marginalidade marcou, decisivamente, o debate sobre a chamada "marginalidade urbana", no Brasil, em
particular, e na Amrica Latina, em geral. Uti lizando como "laboratrios" ou "observatrios" fave las do Rio de Janeiro, a ento (comeo dos
anos 70) jovem sociloga Janice Perlman documentou, de modo dificilmente contestvel, que os favelados, a despeito dos clichs e preconceitos correntes, no so "marginais" (no sentido de "estarem margem"),
pois no so economicamente parasitrios (so, isso sim, na sua maioria, trabalhadores pobres, dos quais depende a economia), nem culturalmente desajustados, nem politicamente perigosos. Seu livro veio se
somar a contribuies de mesmo esprito, na mesma poca, como a de
Lcio Kowarick.

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fil!l
rn.J

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos ( 1981): Movimentos urbanos no Rio


de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar.
De toda a vasta literatura que se produziu no Brasil, especialmente nos
anos 70 e 80, sobre movimentos sociais urbanos (a maior parte dela
estudos empricos com frgil base terica), o livro de Carlos Nelson
uma das no muitas coisas realmente boas e marcantes. Muito bem
escrito e agradvel de ser lido, no deixa, por isso, de ter um compromisso com o rigor. Sobre os movimentos sociais (no s urbanos em
sentido mais estrito), uma publicao recente que, a despeito de algumas inconsistncias, digna de meno, o livro Teorias dos movimen-

tos sociais, de Maria da Glria Gohn (2000. So Paulo, Loyola, 2~ ed.).


Dentre os livros mais antigos. os interessados podem recorrer. por
exemplo. ao excelente Quando novos personagens entraram em cena.
de Eder Sader ( 1995. So Paulo. Paz e Terra. 3~ re impresso).
SANTOS, Mi lton ( 1979 [ 1973)): O espao dividido. Os dois circuitos da
economia urbana dos pases subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Milton Santos forneceu, com O espao dividido, uma anlise da economia urbana dos pases subdesenvolvidos que rompeu, decisivamente,
com as abordagens dualistas dos anos 60, substituindo a dualidade
"moderno" versus ''tradicional" pela dialtica entre um ''circuito superior" (correspondendo, basicamente economia formal) e um "circuito
inferior" (que equivale. no geral, ao setor informal, embora no se tenha
dado ateno sua parcela propriamente criminosa), em que, apesar de
eventuais atritos entre ambos, o "circuito inferior" seria parte das condies de reproduo da fora de trabalho pobre, e portanto da reproduo do prprio sistema. Publicado originalmente na Frana, O espao
dividido acabou tendo, no Brasil , uma divulgao menor do que merecia, inclusive entre gegrafos de formao.
De Milton Santos vale a pena ler, tambm, A urbanizao brasileira,
publicado pela HUClTEC (So Paulo) e m 1993. Ele oferece, nesse
livro, uma panormica do processo de urbanizao no nosso pas, em
uma linguagem acessvel.
SASSEN, Saskia ( 1998): As cidades na economia 1111111dial. So Paulo:
Nobel.
Para o pblico brasileiro interessado em aprofundar-se sobre o papel
das grandes cidades na economia internacional na era da "globalizao", a leitura desse livro de Saskia Sassen {publicado alguns anos
depois de sua famosa obra Th e Global City, ainda sem traduo para o
portugus) altamente recomendvel.
SOUZA, Marcelo Lopes de (2000): O desafio metropolitano. Um estudo
sobre a problemtica scio-espacial nas metrpoles brasileiras. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil.
_ _ _ {2002): Mudar a cidade. Uma introduo crtica ao planejamento e

gesto urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.


Meus dois ltimos livros podem ajudar o leitor que deseje um aprofundamento sobre determinados tpicos abordados no presente livro. A

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Jmffi!
rn.J

discusso sobre os impactos scio-espaciais do trfico de drogas.


incluindo a anlise da "fragmentao do tecido sociopoltico-espacial''
da cidade, e uma anlise dos movimentos sociais urbanos e sua crise no
Brasil dos anos 80 e 90, podem ser encontradas em O desafio metropo/ita110. O livro mais recente, Mudar a cidade, de sua parte, contm uma
introduo, para um pblico especializado, a temas como reforma urbana e instrumentos de planejamento passveis de servirem aos propsitos
de construo de uma cidade mais justa.
VELHO, Otvio Guilherme (1987): O fenmeno urbano. Rio de Janeiro:
Guanabara, 4~ ed.
A coletnea O fenmeno urbano contm alguns textos imperdveis para
quem quiser se aprofundar no assunto da natureza e do conceito decidade, como A ,netrpole e a vida memal, do socilogo alemo Georg
Simmel, e Conceito e categorias de cidade, de Max Weber. Para quem
quiser e tiver a pacincia de procurar, a editora The Free Press, de Nova
Iorque, publicou, em 1958, o livro The City, de Weber, o qual rene
vrios textos do socilogo alemo sobre o assunto. O acesso do pblico
leigo no muito fcil, mas h, pelo menos, a vantagem de no ser em
alemo.
VENTURA, Zuenir (1994): Cidade partida. So Paulo: Companhia das
Letras.
Obra de um jornalista e escritor, Cidade partida uma crnica do padecimento do Rio de Janeiro com o trfico de drogas e a violncia que a
ele foi, mais e mais, se associando. O livro virou, com justa razo, um
best-seller, e merece ser lido no somente por aqueles interessados no
Rio de Janeiro.
ZALUAR, Alba (1994): Condomnio do diabo. Rio de Janeiro: Revan e
Editora da UFRJ.
Co11dom11io do diabo uma coletnea de ensaios da antroploga Alba
Zaluar, a qual se destacou, ao longo dos anos 80 e 90, como uma importante pesquisadora da violncia urbana (especialmente em sua conexo
com o trfico de drogas) no Brasil. Esse e outros livros seus (como A
mquina e a revolta, publicado em So Paulo em 1985, pela
Brasiliense) devem ser lidos por todos aqueles que desejem se aprofundar nesse assunto.

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im.ITTl

IJ1J

Sobre as ilustraes

As ilus traes so todas minhas, m as em algun s casos houve


uma fonte de inspirao e/ou informao, a qual, naturalmente, deve
ser c itada.
D Afigura 3 baseia-se, especificamente no que se refere planta da cidade de Ur, na ilustrao constante da pgina 12 do dtv-Atlas
Stadt, de Jrgen H otzan (Munique, Deutscher Taschenbuch Verlag,

1997, 2~ ed.).Tambm na Histria da cidade, de Leonardo Benvolo


(vide Bibliografia comentada), pode ser vista uma p lanta da cidade
(p. 28).
D A ilustrao que abre o Captulo 3 (Da cidade individual
rede u rbana) uma verso, l igeiramente modificada e simplificada,

para servir a fins meramente "decorativos", de u ma das principais


figuras constantes da obra-prima de Walter Christaller sobre as
localidades centrais (ver Bibliografia comentada).

o Afigura 4 e afigura 5 trazem, ligeiramente simplificados, os


modelos de Burgess, Hoyt e H arris e Ulmann. As verses o riginais
desses modelos grficos podem ser encontradas em vrios manuais
de Geografia Urbana, cujo acesso, e mbora ne m sempre fcil para o
le itor leigo , pelo menos mais fcil que o acesso aos trabalhos originais em que os modelos apareceram pela primeira vez. Um desses
manuais, bastante popular nos pases de lngua inglesa, Tlze Study

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of Urba11 Geography, de Harold Carter (Londres, Edward Arnold,


198 1. 3~ ed.).
O O mapa da.figura 6 a verso ligeiramente modificada e atualizada de um outro, constante de minha tese de Doutorado, publicada
na Alemanha (Marce lo Lopes de Souza, Armut, sozialriiumliche
Segregwioll w1d so~ia fer Koll}likt ili der Metropolita11regio11 vo11 Rio
de Jalleiro. Eill Beitrag ~ur Allalyse der "Stadrfrage" in Brasilien.
Tbingen, Se lbstverlag des Geographischen Ins tituts, 1993). Sua
fonte foram trabalhos de campo rea lizados em 1991 (para a referida
tese de Doutorado) e complememados em ocasies posteriores ao
longo da dcada de 90.
O Tambm o modelo grfico que se desdobra na figura 7 e na
jigura 8 teve uma encarnao anterior em minha tese de Doutorado.
As fig uras 7 e 8 correspo ndem a uma verso ligeiramente modificada e acuali zada do modelo.

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