A Consagração Do Movimento Histórico (1820-1960) - CHOAY

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Captulo IV

A CONSAGRAO DO MONUMENTO HISTRICO


(1820-1960)

"Os monumentos da Frana antiga tm um carter e um


interesse particulares; eles pertencem a uma ordem de idias e de
sentimentos eminentemente nacionais que, contudo, no mais
se renovam": primeiras linhas do primeiro volume de Voyages
pittoresques et romantiques dans l'ancienne France, publicado
em 1820 por Charles Nodier e o baro Taylor. Essa constatao
de um esgotamento irremedivel e a observao, que logo se
acrescentou, de que os autores no percorrem a Frana "na qua-
lidade de eruditos (...), mas como viajantes curiosos dos aspectos
interessantes e vidos de nobres lembranas", em suma, que se
trata de "uma viagem de impresses'", traduzem uma mudana
de mentalidade. Nodier um dos primeiros a pressentir que
o sculo XIX atribuir uma nova importncia s antigidades.
O monumento histrico entra ento em sua fase de consagrao,
cujo trmino pode ser fixado por volta da dcada de 1960 ou, se
desejarmos um outro marco simblico, em 1964, data da redao
da Carta de Veneza/.

1. Op. cit., "Introduo", p. 4.


2. Esse documento, publicado em 1966, marca a retomada, depois da Segunda Guerra
Mundial, dos trabalhos tericos relativos proteo dos monumentos histricos,
no contexto de um pblico internacional mais amplo. O primeiro texto interna-
cional desse gnero foi publicado em 1931, sob a gide da Sociedade das Naes
(cf. p. 12), mas ainda era estritamente europeu.

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\ \1 I I.' llilA I H) l'AI lUl\.llll':IO A CONSACRAO DO l\IO;-..J{~l\[ENTOHISTRICO

Esse recorte cronolgico pode parecer muito grande pri- de que o monumento histrico investido, suas delimitaes
nu-ira vista. Ele engloba acontecimentos, fatos e diferenas que espao-temporais, seu estatuto jurdico e seu tratamento tcnico.
poderiam, ao que parece, dar margem a uma periodizao mais Com efeito, o advento da era industrial como processo de
detalhada. o caso, por exemplo, das contribuies originais e transformao - mas tambm de degradao - do meio ambiente
sucessivas dos diferentes pases europeus para a teoria e as prti- contribuiu, ao lado de outros fatores menos importantes, como o
cas de conservao do monumento histrico: o avano da reflexo romantismo, para inverter a hierarquia dos valores atribudos aos
britnica mantm-se at as ltimas dcadas do sculo XIX, quando monumentos histricos e privilegiar, pela primeira vez, os valores
a Itlia e os pases germnicos tomam as rdeas da inovao. o caso, da sensibilidade, principalmente estticos. A revoluo industrial,
tambm, das descobertas das cincias fsicas e qumicas, das in- como ruptura em relao aos modelos tradicionais de produo,
venes das tcnicas ou ainda dos progressos da histria da arte e abria um fosso intransponvel entre dois perodos da criao
da arqueologia que, em conjunto, marcaram o desenvolvimento da humana. Quaisquer que tenham sido as datas, que variam de acordo
restaurao dos monumentos como disciplina autnoma. E ainda com cada pas, o corte da industrializao continuou sendo, durante
da evoluo e das revolues da arte e do gosto, cujos interditos toda essa fase, uma linha intransponvel entre um antes, em que se
e entusiasmos determinaram fases distintas no tratamento e na encontra o monumento histrico isolado, e um depois, com o qual
seleo dos monumentos histricos a serem protegidos, chegando comea a modernidade. Em outras palavras, ela marca a fronteira
at, no caso das vanguardas arquitetnicas do sculo XX3, a militar que limita, a jusante, o campo temporal do conceito de monumento
~"
contra a conservao dos monumentos antigos: o Plan Voisin, de Le
,I histrico - este pode, ao contrrio, estender-se indefinidamente
Corbusier (1925), destrua a velha Paris, poupando apenas uma meia a montante, medida que avanam os conhecimentos histrico
dzia de monumentos. Esse manifesto do movimento moderno fez e arqueolgico.
escola depois da Segunda Guerra Mundial e inspirou a renovao" A revoluo industrial como processo em desenvolvimento
destruidora levada a efeito at a dcada de 1960 e ainda depois. planetrio dava, virtualmente, uma dimenso universal ao concei-
~, Os critrios nacionais, mentais ou epistmicos, tcnicos, to de monumento histrico, aplicvel em escala mundial. Como
}
estticos ou ticos permitem assinalar os momentos marcantes e processo irremedivel, a industrializao do mundo contribuiu,
os momentos significativos na histria do monumento histrico. por um lado, para generalizar e acelerar o estabelecimento de leis
As divises cronolgicas que eles introduzem tm, no entanto, um visando proteo do monumento histrico e, por outro, para
alcance meramente relativo e secundrio em comparao com a fazer da restaurao uma disciplina integral, que acompanha os
unidade do perodo (1820-1960) que os engloba: unidade soberana progressos da histria da arte.
que impe, por seu reconhecimento, coerncia e estabilidade, o A dcada de 1820 marca a afirmao de uma mentalidade
status adquirido pelo monumento histrico com o advento da era que rompe com a dos antiqurios e com a poltica da Revoluo
industrial. Esse status pode ser definido por um conjunto de de- Francesa. J na dcada de 1850, apesar do descompasso de sua
terminaes novas e essenciais, relativas hierarquia dos valores, industrializao, a maioria dos pases europeus consagrou o monu-
mento histrico. Tal consagrao poderia ser definida, para todo o
3. E preciso notar, porm, que no Brasil os membros dos Congressos Internacionais perodo, a partir de dois textos simblicos e complementares, um
de Arquitetura Moderna esto na origem da conservao da arquitetura nacional.
oficial e administrativo, outro contestador e potico: o Rapport
4. Este termo designa, de forma imprpria, por abuso de sentido, a "demolio,
"apresentado ao rei em 21 de outubro de 1830 por Guizot, Mi-
tendo em vista uma construo nova, de um setor urbano", Dictionnaire de
l'urbanisme et de l'amnagement, publicado sob a direo de P. Merlin e F. Choay. nistro do Interior, sugerindo a criao do cargo de inspetor geral
Paris, PUF, 1988. dos monumentos histricos da Frana"; e o panfleto publicado em

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i\ AI ,H;( )]{JA DO PATRIl\1NIO A CONSAGRAO DO MONUMENTO HIST()RICO

1854 por John Ruskin sobre "A abertura do Palcio de Cristal e XVII e XVIII. A ligao com o universo do fazer diminui. No sculo
suas relaes com o futuro da arte". XIX, os historiadores que queriam e sabiam olhar os monumentos
A virada do sculo XIX marcada, sobretudo na Itlia e antigos eram excees e continuaram sendo por muito tempo.
na ustria, por um questionamento complexo, de uma lucidez Em seu Rapport au roi [Relatrio ao rei], Guizot destaca bem a
raramente igualada da por diante, dos valores e das prticas do nova importncia que se atribui arte e ao seu estudo cientfico, sa-
monumento. Contudo, quando em 1964 a assemblia do Icomos'' lienta o valor dos monumentos para os especialistas, entre os quais
redige a Carta internacional sobre a conservao e a restaurao ele no se inclui. Seus conhecimentos pessoais sobre o assunto no
dos monumentos e dos stios, o quadro terico e prtico no interior constituem um progresso, em comparao com os de Grgoire.
do qual se inscreve o monumento histrico continua sendo o que Em sua viso, o gtico continua sendo sinnimo de arte nacional.
se criou no sculo XIX. Esse estilo precedido por outros "bastardo[s] e degradado[s]",
que ele qualifica, de um modo geral, como "intermedirio[s]": cinco
anos antes, o jovem Victor Hugo j falava de arte romnica7.Em
compensao, j na primeira linha do Rapport, "o solo da Frana'"
o conceito de monumento histrico em si mesmo simbolizado por seus monumentos. Para Guizot, assim como para
a maioria dos historiadores de seu tempo, os edifcios antigos j no
Valor cognitiuo e valor artstico contribuem para fundar um saber, aquele que construdo por sua
disciplina, mas para ilustrar e com isso servir a um determinado
J reconhecido de longa data, o valor cognitivo do monumen- sentimento, o sentimento nacional.
to histrico permanece solidamente ligado a ele durante todo o De fato, o lugar dos antiqurios tomado pelos recm-
perodo de que tratamos. Smbolo brilhante da permanncia do chegados ao mundo do saber, que so os historiadores da arte.
lao que unia a historiografia e os estudos de antigidades, foi Para eles, as criaes da arquitetura antiga doravante sero objeto
;~ Franois Guizot - autor de Essais sur l'histoire de France e um
] de uma pesquisa sistemtica relativa a sua cronologia, tcnica,
dos historiadores notveis da poca - quem criou na Frana o morfologia, gnese e fontes, sua decorao constituda de afrescos,
cargo de inspetor dos monumentos histricos. esculturas e vitrais, assim como sua iconografia.
Cumpre observar, porm, que no sculo XIX a economia dos
saberes centrou a funo cognitiva do monumento histrico no 7. V. Hugo, "Guerre aux drnolsseurs", artigo escrito em 1825, publicado quarto
domnio, recm-determinado e ainda em fase de organizao, da anos mais tarde na Revue de Paris. Reeditado com uma segunda parte original em
1832 na Revue des deux mondes, ele figura no volume Littrature et philosophie
histria da arte.
mles das suas obras completas. No artigo de 1825, Hugo fala em duas passagens
Com efeito, a despeito de resistncias locais, o sculo da histria sobre "igrejas romnicas" (Saint-Germain-des-Prs, em Paris, e Sainte-Croix,
tomou uma certa distncia em relao aos antiqurios". A histria em La Charit-sur-Loire), op. cit., p. 153-4. Ele deve esse vocbulo ao antiqurio
poltica e a das instituies voltam toda sua ateno para o docu- normando Jean-Achille Deville (1789-1875), com quem mantinha contato e que
pode ser considerado o criador do termo romnico. Cf. em especial L'glise et
mento escrito, sob todas as suas formas, e do as costas ao mundo l'abbaye de Saint-Georges de Boscherville (1827).
abundante dos objetos que desafiavam os eruditos dos sculos 8. O Rapport de Guizot parece ter-se inspirado diretamente no "Discours prli-
minaire", que serve de introduo obra Monuments de Ia France, de Alexandre
5. Da sigla inglesa para Conselho Internacional dos Monumentos e dos Stios, criado de Laborde, lembrando "esses monumentos que cobrem o solo da ptria, que se
em 1964 por recomendao da Unesco. unem a nossas lembranas, que recordam seus triunfos ou sua prosperidade (...).
6. Nem por isso estes desapareceram. Numerosas associaes de antiqurios exis- A Frana, menos antiga que muitos pases da Europa, mais rica que qualquer
tem ainda hoje, fiis sua vocao de erudio. outro em monumentos de todas as pocas (...)".

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A CONSACRA:\O DO r...IONlll\.lENTO HISTRICO
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Baseado no estudo dos monumentos histricos, um novo da arte e de sua vitalidade. Ele via nisso o sinalda hegemonia iminente
corpo de saber est, pois, em vias de se constituir. Alm disso, da razo e de seu triunfo, previsto pela filosofia hegeliana, sobre os
ele alimentado e muitas vezes orientado pela reflexo sobre a poderes criativos da sensibilidade e do instinto!",
arte, que se desenvolve na esteira da Crtica do juzo. J salientei Sem partilhar de uma filosofia da arte to elaborada, as
a distino operada no Renascimento entre valor informativo e mesmas inquietaes foram expressas na Frana por Mrime e
valor hednico das antigidades que, num caso, dirige-se razo Viollet-Ie-Duc. Elas atestam a permanncia e a consolidao dos
historiadora e, no outro, sensibilidade esttica. preciso voltar laos que unem o monumento histrico ao mundo do saber inte-
a essa questo, pois a conceituao do domnio da arte, a partir lectual. Os dois homens deram provas suficientes de que viveram
do Renascimento, no se refletiu apenas sobre as modalidades da a imediatez da experincia artstica, tal como a descreve Fiedler:
criao artstica. Ela trouxe, pelo vis da terminologia, confuses Mrime foi um dos primeiros a entrar, com a maior naturali-
importantes a serem esclarecidas pela semntica dos monumentos dade, no mundo romnico". Contudo, em seu confronto com os
histricos. monumentos histricos, um e outro recorreram via indireta da
As palavras antiguidades e antiqurios no tinham ambigi- anlise racional: o primeiro para convencer os franceses a conser-
dade, conotadas pelo saber. As expresses histria e historiador da var a herana monumental de que dispunham e para dissimular
arte so conotadas por arte, mais que por histria; elas facilitam a falta de sensibilidade esttica'< de que sofriam, o segundo para
uma assimilao e uma confuso entre o conhecimento da arte e tentar fundar uma nova arte de construir, vindo em socorro de um
i, "desejo de arte"? e de uma sensibilidade arquitetnica debilitados.
I I a experincia da arte, ainda hoje comum.
contra essa confuso que Rieglreage, em sua anlise axiolgica 10. Fiedler, Riegl e Sitte falam de Kunsttrieb (instinto artstico) e Viollet-le-Duc
do monumento. Ele retoma a dissociao radical entre valores de faz do instinto a essncia da arte (cf. capo V).
conhecimento e valor artstico proposta por K. Fiedler nos manifestos 11. Cf. em tudes sur les arts du Moyen Age, reeditados pela Flammarion, Paris,
da dcada de 1870, onde este descreve o desenvolvimento crescen- 1967, "Essai sur l'architecture religieuse (...)" e "L'glise de Saint-Savin et ses
l: peintures murales",
1: te, que os contemporneos mal perceberam, de uma apreciao
12. P. Mrime, Lettres Viollet-le-Duc. texto esbabelecido por P. Trahard, Paris,
intelectual dos monumentos de arte". Diante da ateno crtica
Champion, 1927. Cf. especialmente a carta de maio de 1857. "Parece-me certo
que se dispensava s criaes das artes plsticas, e particularmente que no se pode hoje formular princpio absoluto sobre nada nem, por conse-
da arquitetura, diante da multiplicao dos trabalhos historiogr- qncia, reduzir tudo a um sistema nico. Nosso papel nas artes muito difcil.
ficos que lhes eram dedicados, Fiedler temia pelo prprio destino Temos uma infinidade de velhos preconceitos, de velhos hbitos que se pren-
dem a uma civilizao que no mais a nossa, e ao mesmo tempo temos nossas
necessidades, nossos hbitos, nossas vantagens modernas. Tudo isso me parece
9. "Voltando a ateno exclusivamente para a obra de arte singular, e procuran- um bicho-de-sete-cabeas. Temos, porm, como os antigos, a capacidade de
do enriquecer cada vez mais sua compreenso, o analista observar que sua pensar e, um pouco, a de sentir. De minha parte, creio que pelo pensamento
compreenso histrica se torna a cada dia mais difcil, para finalmente se revelar que devemos trabalhar nossa gerao e estou convencido de que, habituando-a a
impossvel. Ser-lhe-a cada vez mais trabalhoso reconhecer o laos que unem a pensar, conseguiremos refinar seu gosto"(p. 28). Camillo Boito mostrou, porm,
obra a seu passado e a seu futuro; e, descendo ao insondvel da individualidade tudo o que Mrime deve" intensa influncia da literatura, da poesia e da arte
criadora do artista, ele terminar por perder completamente o fio da meada romntica", "Restaurare o conservare", in Questioni pratiche di belle arti, Milo,
histrica (...). Assim (...) aquilo em que consiste o valor histrico de uma obra de Hoepli, 1893, p. 32.
arte e em que ela depende de realizaes anteriores (...) pode se revelar apenas
13. Intencionalidade da sensibilidade que d cor criao artstica de uma poca.
como sendo uma pequena parte superficial e no essencial da totalidade com-
Sobre esse conceito, ver E. Panofsky, "Le concept de Kunstwollen" in La Pers-
pleta de uma obra de arte". (ber die Beurteilung der bildenden Kunst, 1876,
pective comme forme symbolique, Paris, ditions de Minuit, 1967, e P. Philippot,
p. 19-30 - grifo nosso). Cf. tambm Bemerkungen iiber Wesen und Geschichte
cf. nota 105, p. 167. Em Entretiens sur l'architecture, Viollet-le-Duc multiplica
der Bauhunst, 1878. Sobre Fiedler e sua contribuio teoria da arte, cf. Ph.
as evidncias da morte da arte no sculo XIX, cf. capo V.
Junod, Transparence et opacit, Lausanne, L'Age dHomme, 1975.

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Esse antagonismo entre as atividades da razo e as da arte man- em diversos Annuals [Anurios] suas primeiras "topografias pito-
teve-se no corao do debate filosficoocidental. A morte da arte anun- rescas"", vistas sintticas em que o monumento parte de um
ciada por Hegel no pra de se consumar, ao passo que a experincia conjunto no qual ele posto em cena: apresentado, esclarecido,
privilegiada por Fiedler se tornou revelao do ser em Heidegger. colorido em funo desse meio, com o objetivo de produzir um efeito.
A experincia da obra de arte como tal s pode ser difcil, Esse tipo de trabalho ilustrado multiplicou-se durante as
precria e sempre renascente. O monumento histrico no foge primeiras dcadas do sculo XIX. Monumentos e edifcios antigos,
regra. Mas ele pode tambm se dirigir sensibilidade e ao senti- que se tornaram contrapontos necessrios das paisagens naturais e
mento por vias menos rduas, largas, cmodas, acolhedoras a todos, rurais ou dos panoramas urbanos, acolhiam novas determinaes:
e pelas quais o sculo XIX enveredou resolutamente. implantao, patina, formas fantasmagricas, signos de um novo
valor pitoresco. E a pesquisa atenta e dedicada desse pitoresco
aplicava-se a todos os gneros de construes antigas, por mais
Preparao romntica: o pitoresco, o abandono e o culto da arte obscuras, secretas e modestas que fossem. Hoje, as ilustraes das
Voyages de Nodier e Taylor, que se pretendiam livres de qualquer
Com efeito, a sensibilidade romntica descobrira nos monu- preocupao cientfica, continuam sendo, em muitos casos, a nica
mentos do passado um campo de deleites de acesso mais fcil. fonte documental de que dispem os historiadores sobre a Frana
Redes de laos afetivos mltiplos e novos foram ento tecidas com urbana e rural do comeo do sculo XIX.
esses vestgios. Lembrarei apenas, rapidamente, alguns aspectos. Para alm do imediato e puro prazer visual, a imagem pito-
A pintura e a gravura romntica fazem que a representao resca pode tambm gerar um sentimento de perturbao ou de
figurada dos monumentos antigos tenha um papel praticamente angstia, em que se compraz a alma romntica, quando ela trans-
inverso ao que lhe era atribudo outrora nas obras de erudio. forma em estigmas as marcas deixadas pelo tempo nas construes
A uma iconizao museogrfica e abstrata, em que a imagem tende dos homens. Entendidas como smbolo do destino humano, estas
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a substituir a realidade concreta das antiguidades, sucede uma ico- adquirem um valor moral: emblema duplo da arch criadora e da
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nizao supletiva que, ao contrrio, enriquece a percepo concreta do transitoriedade das obras humanas. A runa medieval, menos an-
monumento histrico pela mediao de um prazer novo. O olhar do tiga, mais difundida e familiar, uma testemunha mais dramtica
antiqurio construa uma imagem do monumento independente e a que a runa antiga. O castelo fortificado reduzido a suas muralhas, a
mais analtica possvel. O olhar do artista inscreve o monumento igreja gtica da qual resta apenas o esqueleto revelam, mais do que
numa ambientao sinttica que o dota de um valor pictrico su- se estivessem intactos, o poder fundador que os mandou construir;
plementar, sem relao com a qualidade esttica que lhe prpria. mas os musgos corrosivos, as ervas daninhas que desmantelam os
A diferena entre as duas abordagens pode, s vezes, se verificar telhados e arrancam as pedras das muralhas, os rostos erodidos
em um mesmo artista, como o caso de Turner em suas gravuras. dos apstolos no prtico de uma igreja romnica lembram que a
De um lado, ele executa durante a dcada de 1790, para o antiqurio destruio e a morte so o trmino desses maravilhosos incios.
Whitaker, pranchas analticas apresentando objetos descontextua- Emoo esttica gerada pela qualidade arquitetnica ou pelo
lizados, dissociados uns dos outros e definidos com rigor por seus pitoresco, sentimento de abandono imposto pela percepo da ao
caracteres morfolgicos e decorativos". Por outro, ele apresenta

15. Por exemplo, suas primeiras vistas da catedral de Ely (1797). Depois disso, Tur-
14. T. D. Whitaker, History of the Parish ofWhalley, voI. I. Os primeiros desenhos ner publicaria no apenas Picturesque Views in England and Wales (1816), mas
de Turner para Whitaker datam de 1799. tambm outras sries inglesas e escocesas, e as de Rivers of France (1833-1835).

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corrosiva do tempo: a ascenso desses valores afetivos integra o sofrimento da alma romntica no bastam para explicar por que
monumento histrico ao novo culto da arte, chamado a substituir Hugo e os escritores de seu tempo militaram com tanta convico
aquele de um Deus, que ser dado como morto por um pensador e tanto ardor pela conservao dos monumentos histricos.
do final desse sculo. Na Europa do Norte, a igreja gtica presta-se
transio de um culto a outro: lugar privilegiado das celebraes
de uma religio ainda viva e de uma busca esttica do absoluto. Revoluo Industrial: a fronteira do irremedivel
O catlico fervoroso Montalembert testemunha essa contaminao
de forma involuntria, quando, pondo-se ao lado de Victor Hugo Escritores, intelectuais e artistas foram mobilizados por uma
em sua luta contra "o vandalismo oficial e municipal", fala de sua outra fora: pela tomada de conscincia de uma mudana de tempo
dupla "paixo antiga e profunda", "sempre crescente", pela arqui- histrico, de uma ruptura traumtica do tempo. Sem dvida, a
tetura da Idade Mdia como criao do catolicismo e da arte". entrada na era industrial, a brutalidade com que ela vem dividir
Escritores e pintores tambm buscavam traduzir em formas a histria das sociedades e de seu meio ambiente, o "nunca mais ser
literrias diferentes, adequadas aos temperamentos individuais como antes" que da resulta esto entre as causas do romantismo,
e s sensibilidades nacionais, a dimenso mstica da arquitetura ao menos na Gr-Bretanha e na Frana. Contudo, o choque dessa
gtica. Por mais dessemelhantes que sejam, as catedrais de Hugo, ruptura extravasa amplamente o movimento romntico. Ainda
de Ruskin ou de Huysmans servem, em unssono, ao culto da que se tenha refletido sobre toda a obra de autores como Hugo
arte. Da mesma forma, quer capte e absorva a luz em Turner, quer ou Balzac, ele deve merecer uma anlise particular. Com efeito, a
introduza a um mundo noturno e fantstico em Dor, ilustrador conscincia do advento de uma era nova e de suas conseqncias
de Hugo, quer seja o enigma lanado por Friedrich e Carus numa criou, em relao ao movimento histrico, outra mediao e outra
natureza-morta, entre as brancuras da neve ou o verde-escuro do distncia, ao mesmo tempo que liberava energias adormecidas em
Urwald - em todos esses casos, o monumento gtico serve de favor de sua proteo.
introduo transcendncia da arte. A mise en scne do monumento histrico tal como o consagra
Depois de se deixar arrebatar pelos sortilgios dos monu- o sculo XIX tira partido do contraste, palavra-chave que A. W.
mentos antigos, no entanto, depois de t-los celebrado da maneira Pugin usou como ttulo de um de seus livros". Em segundo plano,
devida, muitos escritores foram levados a se tornar seus defensores uma paisagem pitoresca na qual o edifcio antigo integrado.
legalmente constitudos. No texto j citado, escrito em 1833, trs No primeiro plano, o mundo em processo de industrializao, cuja
anos depois da criao da Inspeo dos monumentos histricos, agresso ele sofre em cheio. Poesia do antigo, drama de sua confron-
a Victor Hugo, e no a Guizot, que Montalembert outorga a prio- tao com o que chamado de "nova civilizao": essas duas vises
ridade e a preeminncia na defesa dessa causa". O estetismo e o do monumento antigo so simultaneamente construdas por Balzac
em Beatriz, em que, de pronto, a cidadezinha de Gurande faz
16. Du vandalisme et du catholicisme dans l'art, Paris, Debcourt, 1839. Ensaio ressurgir um passado encantador numa pgina quase proustiana'?
intitulado "Lettre M. Victor Hugo" (1833). No espao de um pargrafo (p. e simboliza o anacronismo de um grupo social que no soube ou
2), a palavra "paixo" aparece quatro vezes. Montalembert precisa: "No que diz
respeito arte, no tenho a pretenso de saber nada, tenho apenas a de gostar 18. Contrasts or a Parallel between the Noble Edifices of the Fourteenth and Fifteenth
muito". Centuries and Similar Buildings of the Present Days (...), Londres, 1836.
17. Op. cito "A posteridade inscrever entre vossas mais belas glrias as de terem 19. "Todos os artistas, e mesmo os burgueses, que passam por Gurande, experimentam,
sido os primeiros a desfraldar uma bandeira que pode unir todas as almas ansiosas como os que se detiveram em Veneza, um desejo logo esquecido de ali acabarem
por salvar a arte na Frana". seus dias na paz (...). Por vezes a imagem dessa cidade volta a bater ao templo

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,,\ ;\111,( lHL\ I)() l'AIIUMl)NJO A CONSAGRAO DO !vIONUlv1ENTO HISTRICO

no quis se adaptar nova civilizao das comunicaes, do inter- feito nos dias de hoje direta ou manualmente; tudo feito segundo
cmbio e da indstria. regras e obedece ao clculo. No apenas aquilo que nos rodeia
O mundo acabado do passado perdeu a continuidade e a exteriormente e o mundo fsico que organizado pela mquina,
homogeneidade que lhe conferia a permanncia do fazer manual mas tambm nosso mundo interior e espiritual "21. Ruskin salienta
dos homens. O monumento histrico adquire com isso uma nova a oposio de ambos os lados da fatdica linha de separao entre
determinao temporal. Doravante, a distncia que dele nos se- a arquitetura tradicional e a construo moderna ". Pblica ou
para se desdobra. Ele est refugiado num passado do passado. Tal domstica, a primeira tinha por vocao afirmar a permanncia
passado j no pertence continuidade do devi r e a ele nada ser do sagrado, enquanto encadeava na durao as diferenas" dos
acrescentado pelo presente ou pelo futuro. E, qualquer que seja homens. A segunda, annima e estandardizada, recusa a durao
a riqueza dos files arqueolgicos ainda inexplorados, essa fratura e suas marcas - a arquitetura domstica substituda por aparta-
do tempo relega o campo dos monumentos ao canto de uma fini- mentos precrios, por onde se passa como se fossem albergues; e a
tude inapelvel. Aps o Renascimento, as antigidades, fontes de arquitetura pblica cede lugar a espaos de ferro e vidro, na superfcie
saberes e de prazeres, afiguravam-se igualmente como pontos de dos quais o tempo no tem permisso para pousar.
referncia para o presente, obras que se podiam igualar e superar. A consagrao do monumento histrico aparece, pois, direta-
A partir da dcada de 1820, o monumento histrico inscreve-se mente ligada, tanto na Gr-Bretanha quanto na Frana, ao advento
sob o signo do insubstituvel; os danos que ele sofre so irrepar- da era industrial. Mas esse advento e suas conseqncias no so
~'i veis/", sua perda irremedivel. interpretados de forma idntica nos dois pases, no que se refere
assim que, sucedendo ao Nodier das Voyages, Hugo, Gui- sua influncia sobre o destino das sociedades ocidentais. Da
zot, Balzac, Mrime opem "antiga" ou "velha" Frana "a nova resultam diferenas quanto aos valores atribudos por um e outro
Frana" e sintetizam sua diferena em frmulas impressionantes. aos monumentos histricos. Na Frana, que, no entanto, um
Hugo: "A indstria substituiu a arte?'. Balzac: "Trabalhando para pas de tradio rural, o processo de industrializao legitimado
Z.
as massas, a indstria moderna vai destruindo as criaes da Arte pela conscincia da modernidade, independentemente de seus
l', ,

(...). Ns temos produtos, no temos mais obras"22. Na Inglaterra, efeitos negativos ou perversos. So a marcha da histria, a idia
Carlyle abre caminho para William Morris, definindo essa oposio de progresso e a perspectiva do futuro que determinam o sentido
como igual que existe entre o orgnico e o mecnico: "Nada e os valores do monumento histrico: em seu manifesto contra o
vandalismo, Hugo reclama a criao de "uma lei para o passado",
das recordaes: ela a entra toucada com as suas torres, ornada de suas muralhas,
"aquilo que uma nao tem de mais sagrado, depois do [uturo"?".
desprega suas vestes semeadas de lindas flores, sacode o manto de ouro de suas
dunas, exala os perfumes embriagadores de seus lindos caminhos espinhosos e
cheios de ramos atados ao deus dar". Beatriz, Cenas da vida privada, A comdia 23. "Signs of the Time", citado por R. Williams in Culture and Society, Londres,
humana, vol. II!, trad. Casimira Fernandes. Porto Alegre, Globo, 1989, p. 185. Chatto and Windus, 1958. Traduo nossa.
20. "O carter particular do mal produzido por nossa poca sua total irremedia- 24. As noes de arquitetura e de construo foram diferenciadas de forma clara,
bilidade [irreparableness] ", J. Ruskin, "On the Opening of the Crystal Palace", sobretudo em The Seven Lamps of Architecture (1849), J. M. Dent and Sons,
citado por S. Tschudi Madsen, Restoration andAntirestoration, Oslo, 1976, p. 117. Londres, 1956, p. 7. Nessa mesma passagem, Ruskin utiliza como sinnimo de
building o termo edification, que poca j havia perdido, em certa medida,
21. Op. cit., p. 155. Hugo observa: "No temos mais o gnio desses sculos". Isso
esse sentido no ingls corrente. Para o que se segue, ver "The Lamp ofMemory".
conseqncia, para ele, da industrializao, mas, sobretudo, muito antes, da morte
da arquitetura, assassinada pelo livro. Cf. "Ceci tuera cela", captulo acrescentado 25. O papel da diferena salientado em muitas passagens do captulo VI da mesma
na edio de 1832 de Notre-Dame de Paris. obra dedicada "Lmpada da memria", op. cit., p. 184-6.

22. Op. cit., p. 320. 26. Op. cit., p. 166 (grifo nosso).

136 137
A ALEGORIA DO I'ATRL\1NIO A CONSAGR\AO DO MO:-":Ul\1ENTO HISTRICO

Em contrapartida, a Inglaterra, apesar de ser o bero da Os defensores ingleses dos monumentos histricos ignoram
Revoluo Industrial, mantm-se mais ligada a suas tradies, mais esse fatalismo. Eles no se conformam com o desaparecimento dos
voltada para o passado: a idia de revival, que no se aclimata na edifcios antigos em proveito da nova civilizao, que, encarnada
Frana, inspira a um movimento Ilorescente". E, a despeito de pela Amrica, constri "um mundo sem uma lembrana, nem uma
sua adeso s idias de Karl Marx, William Morris no deixou de runa'?". Para eles, os monumentos do passado so necessrios
acreditar em uma reversibilidade da histria e de preconizar uma vida do presente; no so nem ornamento aleatrio, nem arcasmo,
retomada do trabalho manual como fundamento de uma arte nem meros portadores de saber e de prazer, mas parte do cotidiano.
popular. No , pois, de surpreender que os ingleses tenham dado
ao monumento histrico significados mais diversos e com mais
influncia sobre o presente. o valor de reverncia
Confrontados com a industrializao, os franceses se interes-
sam essencialmente pelo valor nacional e histrico dos edifcios Ruskin atribuiu memria uma destinao e um valor novos
antigos e tendem a promover uma concepo museolgica deles. do monumento histrico. "Ns podemos viver sem [a arquitetura],
Victor Hugo d o tom: "Se verdade, como julgamos, que a ar- adorar nosso Deus sem ela, mas sem ela no podemos nos lembrar".
quitetura, de todas as artes, a nica que j no tem futuro, Essa afirmao do famoso captulo VI ("The Lamp of Memory"), da
empreguem seus milhes para conservar, manter e eternizar os obra The Seven Lamps of Architecture, continua a atribuir arqui-
\II
"
monumentos nacionais e histricos que pertencem ao Estado, e tetura uma funo e um sentido que esto em contradio com
para adquirir os que esto em mos de particulares'?". O culto do as idias de Hegel e de Victor Hugo de que "Isto matar aquilo".
monumento passado coexiste com aquele que logo seria nomea- Sobretudo, ela tem origem em uma outra intencionalidade.
do "culto da modernidade", O pessimismo de Balzac vai mais Para o autor de As pedras de Veneza, a arquitetura o nico
longe. Prev a destruio completa do patrimnio antigo, que, meio de que dispomos para conservar vivo um lao com um passa-
z: a tempo, s subsistir na "iconografia literria", de que ele d o do ao qual devemos nossa identidade, e que parte de nosso ser".
): .
,)1 :11" exemplo na Comdia humana. Diferentemente dos antiqurios, Porm, mais que pela histria ou por uma histria, esse passado
concebe o monumento antigo, antes de tudo, como um precioso em primeiro lugar e essencialmente definido pelas geraes
objeto concreto que merece ser conservado, mas, diferenciando-se humanas que nos precederam. Se s vezes acontece a Ruskin
de seus contemporneos ingleses, julga-o condenado, dentro de
um certo tempo, pela marcha da histria":
do consumidor quanto da do arteso (...). Ora, para a indstria, os monumentos
so pedreiras, minas de salitre ou lojas de algodo. Daqui a uns poucos anos,
27. O gothic revival (cf. especialmente K. Clark, The Gothic Revival, Londres, Cons- essas cidades originais sero transformadas e s sero vistas nessa iconografia
table, 1928, reeditado por Pelican Books, 1964, e os trabalhos de N. Pevsner). Na literria", op. cit., p. 286-7. A frase em destaque mostra, alm disso, que Balzac
mesma poca, em uma Frana onde o ecletismo rivaliza com o neoclassicismo, percebera a dupla atividade criadora compreendida no processo de produo e
encontram-se apenas muito poucos exemplos (Sainte-Clotilde, em Paris) de de percepo dos monumentos antigos. O termo "antigo" entendido aqui no
uma arquitetura fiel aos princpios do estilo gtico. sentido contrrio ao de "novo".
28. Guerre aux dmolisseurs, op. cit., p. 165. 30.1. Ruskin, "On the Opening ...", op. cit., p. 116.
29. "A Frana (...) possui ainda hoje algumas cidades completamente fora do movi- 31. "The Lamp of Memory", especialmente X em que Ruskin evoca "the strength
mento social que d ao sculo XIX sua fisionomia (...). Contudo, de trinta anos [of past buildings 1 which, through the lapse of seasons and times, and the decline
para c, esses retratos das pocas antigas comeam a se apagar e se tornam raros. and birth of dynasties (...), connects forgotten and following ages with each
Trabalhando para as massas, a indstria moderna vai destruindo as criaes da others and half constitutes the identity, as it concentrates the sympathy, of
arte antiga, cujos trabalhos eram absolutamente pessoais, tanto da perspectiva nations", op. cit., p. 191.

11.:,1
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interrogar os monumentos pela memria objetiva da histria, ele ou nas muitas conferncias que deu a partir da dcada de 1850,
prefere uma abordagem afetiva. Contudo, nele, o puritano des- ele se indaga sobre a construo de sua poca, em particular, e
confia sempre do esteta " e teme cair nas armadilhas hedonistas sobre a natureza da arquitetura, em geral. Ele se pergunta como,
da arte. Por isso, pela intermediao de sentimentos morais, a na crise aberta pela Revoluo Industrial, ela poderia recuperar
reverncia e o respeito, que ele entra sem dificuldade no passado. o valor de reverncia que lhe consubstancial. Ou, em outras
O que lembram, ento, os edifcios antigos? O valor sagrado dos palavras, como, segundo uma frmula aparentemente sibilina,
trabalhos que homens de bem, desaparecidos e desconhecidos, "a arquitetura do presente [poderia] se tornar histrica=". Ela s
realizaram para honrar seu Deus, organizar seus lares, manifestar poderia merecer essa qualificao, segundo Ruskin, se readquirisse
suas diferenas. Fazendo-nos ver e tocar o que viram e tocaram sua essncia e seu papel memorial pela qualidade do trabalho e
as geraes desaparecidas, a mais humilde " habitao possui, da do investimento moral de que seria objeto.
mesma forma que o mais glorioso edifcio, o poder de nos pr em V-se que Ruskin, aproximando assim os edifcios do presente
comunicao, quase em contato, com elas. Ruskin utiliza uma me- e do passado, no est longe de restituir ao monumento histrico o
tfora com a qual Bakhtin mais tarde nos haveria de familiarizar: valor e a funo do monumento original" Com efeito, abstraindo
os edifcios do passado nos falam, eles nos fazem ouvir vozes" o valor histrico que lhe inerente, o primeiro no se distingue
que nos envolvem em um dilogo. mais do segundo seno pelo carter impreciso, geral e mesmo
preciso, contudo, lembrar que os monumentos histricos genrico, daquilo que, pelo sentimento difuso de reverncia, ele
no so o ponto de partida da reflexo de Ruskin sobre a arqui- evoca - a figura intacta da obra, solidria e manualmente realizada
tetura. Em Seven Lamps, assim como em As pedras de Veneza pelas geraes humanas.
As idias de Ruskin enriqueceram o conceito de monumento
histrico, fazendo que nele entrasse, de pleno direito, a arquitetura
32. Ele teme o carter elitista do esteta e, nesse sentido, postula uma arquitetura
acessvel a todos. por isso que transfere deliberada mente a importncia da obra domstica. Alm disso, criticando aqueles que se interessem ex-
li :
) de arte para aqueles que a realizaram e para suas qualidades morais: "We take clusivamente pela "riqueza isolada dos palcios":", sonha tambm
pleasure, or should take pleasure, in architectural construction, altogether as the com a continuidade da malha formada pelas residncias mais
manifestation of an admirable human intelligence (...) again in decoration or beauty
it is less the actualloveliness of the thing produced, than the choice and intention humildes: ele o primeiro, logo seguido por Morris, a incluir os
concerned in the production which are to delight us; the love and thoughts of the "conjuntos urbanos'<", da mesma forma que os edifcios isolados,
workman more than his work", The Stones ofVenice, Londres, 1851, t. I, capoIl, no campo da herana histrica a ser preservada.
5, p. 37 (grifo nosso). Cf. tambm "The Lamp of Memory", op. cit., IV, p. 185.
Trazendo memria afetiva a dimenso sagrada das obras hu-
33. "True domestic architecture, the beginning of ali other, which does not disdain
to treat with respect and thoughtfulness the small habitation as well as the large,
manas, o monumento histrico adquire, alm disso, uma universalidade
and which invests with the dignity of contended manhood the narrowness of sem precedentes. O monumento tradicional, sem qualificativos, era
wordly circumstance", Seven Lamps, ibid., IV, p. 185; cf. tambm V. universalmente difundido, mas fazia reviver os passados particulares
34. Em Seven Lamps, op. cit., X, p. 190, ele cunha o soberbo neologismo voicefulness de comunidades especficas; o monumento histrico fazia at
(O senhor Bakhtin far de sua voz aquilo que diferencia os objetos das cincias
humanas dos objetos das cincias fsicas, "pistrnologie des sciences humaines"
in T. Todorov, Mikhail Bakhtin, le principe dialogique, Paris, Le Seul, 1981). 35. Seven Lamps, op. cit., n. p. 182.
A mesma idia retomada em As pedras de Veneza, com a distino entre as
36. Cf. nota 27, citao das Pedras de Veneza. Em Seven Lamps, Ruskin joga, de
duas funes da arquitetura: a ao ("acting, as to defend us from weather or
resto, com a sinonmia de monumental e memorial.
violence") e o discurso ("talking, as the duty of monuments or tombs to record
facts and express feelings, or of churches, temples, public edifices, treated as 37. Grifo nosso, Seven Lamps, op. cit., V, p. 185.
books of history ..."l. op. ct., capo n, I, p. 35. 38. Especialmente em: "On the Opening of the Crystal Palace".

140 141
A CONSAG RAO DO l\.100:UMENTO HISTRICO
A ALEGORIA DO PATRIMNIO

ento referncia a uma concepo ocidental da histria e a suas at a Turquia e o Egito, onde procura fazer que se protejam as
dimenses nacionais. Em contrapartida, na concepo ruskiniana, arquiteturas rabe e copta".
quaisquer que tenham sido a civilizao ou o grupo social que o Em todos esses domnios, os britnicos foram pioneiros. Em se-
erigiram, ele se dirige igualmente a todos os homens. guida, foram substitudos pelos italianos, especialmente por Gustavo
Ruskin e Morris so os primeiros a conceber a proteo dos Giovannonr". Este, j em 1913, desenvolveu o conceito de "arquite-
monumentos histricos em escala internacional e a mobilizar- tura menor", que, numa perspectiva mais geral, menos moral, mais
se pessoalmente por essa causa. Na imprensa e em campo, eles histrica e esttica, ultrapassa e engloba o conceito de arquitetura
militam e lutam pelos monumentos e pelas cidades antigas da domstica. A arquitetura menor torna-se parte integrante de um
Frana, da Sua, da Itlia. Ruskin se preocupa: "Ser preciso novo monumento, o conjunto urbano antigo: "Uma cidade histrica
que esta pequena Europa, este canto no globo semeado de tantas constitui em si um monumento, tanto por sua estrutura topogr-
igrejas antigas, tingido pelo sangue de tantas batalhas, ser pre- fica como por seu aspecto paisagstico, pelo carter de suas vias,
ciso que este pequeno fragmento do pavimento do mundo, gasto assim como pelo conjunto de seus edifcios maiores e menores; por
pelos passos de tantos peregrinos, seja integralmente varrido e isso, assim como no caso de um monumento particular, preciso
decorado novamente para a mascarada do Futuro'P''? Ele chega aplicar-lhe as mesmas leis de proteo e os mesmos critrios de res-
a propor, j em 1854, a criao de uma organizao europia de taurao, desobstruo, recuperao e inovao't". Constataremos
proteo, dotada das estruturas financeiras e tcnicas adequadas, a novidade das idias e opinies de Giovannoni no captulo, a nosso
t" ver mais que justificado, sobre a complexa histria da inveno do
H e cria o conceito de "bem europeu't". Quanto a Morris, depois
de se ter levantado contra a destruio de um bairro popular em patrimnio urbano histrico desde as primeiras lutas de Ruskin.
Npoles41, estende o combate para alm das fronteiras europias,
39. Op. cit., 15, p. 115.
Z 40. Ibd., 19 e 20. Essa organizao no-governamental foi concebida segundo o
i
Prticas: legislao e restaurao
) modelo das associaes beneficentes de salvaguarda que se desenvolveram na
jJ II
Inglaterra. Administrada com fundos privados doados por seus membros, ela
devia ser representada em cada cidade de alguma importncia por "observado- A consagrao do monumento histrico no mereceria esse
res e agentes" encarregados, por um lado, de inventariar todos os monumentos nome caso se limitasse ao reconhecimento de contedos e valores
antigos dignos de interesse, por outro, de fazer, uma ou duas vezes por ano, um
levantamento de sua situao, assinalando os projetos de interveno que eles
novos. Ela , alm disso, baseada num conjunto de prticas cuja
poderiam sofrer. "A sociedade forneceria assim os fundos para comprar ou alugar institucionalizao foi catalisada pelo poder das foras destrutivas,
todos os edifcios ou todos os imveis desta nao suscetveis a todo momento
de serem postos venda, ou, ainda, para assistir seus proprietrios, privados ou 42. Com esse objetivo, ele lana uma espcie de manifesto, publicado noAthenaeum
r.
pblicos, na tarefa de conservao indispensvel sua proteo (... O projeto (1877), que logo recebe a assinatura de numerosos escritores e artistas como
de Ruskin foi atualizado sob a forma do National Trust, associao privada que Carlyle, Ph. Web, Burne Jones, Holman Hunt.
a partir de 1895 administra o essencial do patrimnio histrico ingls.
43. (1873-1943) Engenheiro, arquiteto e historiador da arte, criador da cadeira de
41. "Ouvistes falar da destruio de casas que atualmente se d em Npoles a pretexto de arquitetura da Escola de Engenharia de Roma, ele desenvolveu tanto atividades
destruir os pardieiros dessa cidade e reconstru-Ios em seguida. Mas no a existncia tericas quanto prticas de urbanismo e de conservao dos monumentos e da
desses edifcios erguidos por nossos ancestrais a causa da degradao da habitao malha urbana antigos. "Vecchie citt ed edilizia nuova' (Nuova antologia, 1913)
em Npoles ou em Londres, mas antes essa mesma ignorncia crassa e fatalista que ao mesmo tempo o ttulo do artigo, no qual ele apresenta sua doutrina pela
destruiu os edifcios antigos", in "Speecli at the Annual Meeting of the Society for the primeira vez, e o ttulo do livro em que esta recebeu, em 1931, uma formulao
Protection. of Ancient Buildings", 1889. A temos uma proteo muito prxima mais extensa e mais complexa. Cf. prximo captulo.
de uma perspectiva social. Nesse sentido, podemos relacionar esse texto ao de
um espantoso artigo escrito por Edmond About em 1867 para o Paris-Cuide. 44. Vecchie citt ed edilizia nuoua, Turim, Unione Tipografico Editrice, 1931, p. 140.

142 143
A ALEGORIA DO PATRIMNIO A CONSAGIU\O DO MONUMENTO HISTRICO

no mais deliberadas e ideolgicas, mas inerentes lgica da era demolio (batistrio Saint-Jean, torre Saint-Porchaire de Poitiers)
industrial, que doravante ameaam os monumentos histricos. ou da deteriorao (Saint-Savin, Notre-Dame de Poitiers) as peas
A mutao que transforma ao mesmo tempo os modos de vida maiores do patrimnio da regio de Poitou.
e a organizao espacial das sociedades urbanas europias torna No contexto do sculo XIX, a ao dos defensores do patri-
obsoletos os aglomerados urbanos antigos. Os monumentos que mnio s podia ser eficaz assumindo as duas formas especficas e
neles se encontram afiguram-se subitamente como obstculos e complementares de uma legislao protetora e de uma disciplina
entraves a serem eliminados ou destrudos para vagar lugar ao de conservao.
novo modo de urbanizao, a seu sistema e suas escalas virias
e parcelares. Alm disso, a manuteno dos edifcios antigos vai
sendo cada vez mais negligenciada e sua restaurao no obedece Origem da legislao francesa referente aos monumentos histricos
mais a tcnicas normatizadas. Defrontamo-nos, assim, com dois
tipos de vandalismo, que na poca foram designados, na Frana e na Independentemente do interesse que possam ter, no posso
Inglaterra, com os mesmos qualificativos: destruidor e restaurador. aqui examinar o contedo e as particularidades das diferentes legis-
Montalembert elaborou para cada um deles uma mordaz laes nacionais", Lembrarei apenas os trabalhos que precederam o
lista de laureados. Atribui o primeiro prmio de "vandalismo estabelecimento da legislao francesa, que durante muito tempo
destruidor" ao "governo", o segundo aos "prefeitos e [s] cmaras constituiu uma referncia, primeiro na Europa, depois no resto
municipais", o terceiro aos "proprietrios", o quarto aos "conselhos do mundo, pela clareza e racionalidade de seus procedimentos.
de administrao de bens religiosos e [aos] padres". "Em quinto O caminho fora aberta pelo Comit de Instruo Pblica sob a
lugar, e bem atrs dos precedentes, [vem] o tumulto". No que se Revoluo. Contudo, foi rduo o caminho que levou promulgao,
refere ao "vandalismo restaurador", a palma vai para o clero, segui- em 1887, da primeira lei sobre os monumentos histricos. Entre
do pelo governo, pelas cmaras municipais e pelos proprietrios. 1830, quando Guizot criou por decreto o cargo de inspetor dos
O tumulto tem ao menos "a vantagem de no restaurar nada?". monumentos histricos, e 1887, houve uma longa e herica fase
Tais so os protagonistas, praticamente nessa ordem de im- de experimentao e de reflexo: todo o dispositivo (centralizado)
portncia, com que se defrontar Mrime quando de seus giros de proteo apia-se na f e no devotamento de alguns homens
de inspeo, no departamento da Vienne ", por exemplo, onde que assistem, desinteressadamente, o inspetor. Eles no dispem
durante vinte anos ele travar uma luta homrica para preservar da nem de instrumentos especficos, nem de servios especializados
para ajud-los a cumprir a misso que assumiram.
45. Op. cit.; p. n. O primeiro a ocupar o cargo de inspetor foi Ludovic Vitet.
46. Em 1835 e 1840. S. Fouch - Poitiers et Ia Commission des monuments histori-
Demite-se em 1834, em favor de Mrime, aps ter decidido dedi-
ques entre 1830 et 1860, dissertao para DESS, Institut franais durbanisme, car-se carreira de deputado, que lhe permitiria orientar a poltica
Paris, 1989 - mostra claramente, em parte com a ajuda de documentos de oramentria do Estado em favor dos monumentos. A misso do
arquivos inditos, tanto a natureza das opes ideolgicas e tcnicas de Mrime
quanto as diferentes foras conjunturais com as quais ele se defronta. Em matria
de destruio, o primeiro lugar cabe, na verdade, municipalidade. Para proceder ao 47. No que diz respeito Frana, cf. P. Dussaule, La Loi et le service des monuments
traado de uma nova rua (do centro porta de Limoges), ela exige, por duas vezes, historiques [ranais, Paris, La Documentation franaise, 1974, assim como as
a demolio do batistrio Saint-Jean e, em seguida, levanta os maiores obstculos edies publicadas pelo IO. [Dirio Oficial da Repblica Francesa] dos textos
sua preservao. Pelas mesmas razes, ela tenta condenar a torre Saint-Porchaire. legislativos e regulamentares relativos "ao patrimnio histrico e esttico da
A princpio, a administrao pblica alinha-se com essa orientao, na pessoa do Frana". Quanto Europa, cf. P. Rupp, Rpertoire europen des politiques du
prefeito Alexis de Jussieu; seu sucessor apia, ao contrrio, as reivindicaes locais. patrimoine, publicadas em 1996 pelas ditions du Conseil de l'Europe.

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I, \1 11,( !lUI\ IlI) l'i\TI{II\10NIO
A CONSAGR:\(t) DO MONUMENTO HISTRICO

inspetor determinar, ou, dito de outro modo, a partir de agora, ideologias e por suas posies doutrinais. Inconveniente do siste-
"tombar" os edifcios que devem ser considerados monumento hist- ma: a tarefa do inspetor muito penosa. Prova disso o primeiro
rico. Logo ele auxiliado, nessa tarefa e na distribuio dos fundos Rapport [relatrio] de L. Vitet - menos de um ano depois de sua
do Estado'", alocados para a manuteno e restaurao dos edifcios nomeao - ao Ministro do Interior sobre "os monumentos, as
tombados, pela Comisso dos Monumentos Histricos, criada pela bibliotecas, os arquivos e os museus dos departamentos da Oise,
circular de 10 de agosto de 1837. Os abnegados membros dessa da Aisne, da Mame, do Norte e do Pas-de-Calais". As condies
comisso e do Comit de Trabalhos Histricos, criado em 183049, em que se fazem as viagens de inspeo so horrveis. Na sua cor-
haveriam de desenvolver, durante dcadas, com entusiasmo, com- respondncia, Mrime deixa entrever os efeitos da situao das
petncia e regularidade, um trabalho de discriminao, ao mesmo estradas e da hotelaria sobre a sade>'.
tempo reflexivo e prtico, de que foram os primeiros profissionais Os trabalhos que cabem comisso tambm so considerveis.
verdadeiros. Ao lado de Victor Hugo, Montalembert e Victor Alm disso, como bem mostrou F. Berc-", essa centralizao se faz
Cousin, o baro Taylor'" foi uma das figuras mais originais e ativas. em detrimento das associaes locais de antiqurios e das sociedades
Vantagens do sistema: o procedimento de tombamento, de arqueologia, recm-fundadas 55 sob a influncia de Arcisse de Cau-
investido da autoridade do Estado, completamente centralizado monto Em lugar de desenvolver suas competncias e estimular suas
e na dependncia imediata do Ministro do Interior, torna-se um iniciativas, num trabalho de colaborao, a estrutura central criada
formidvel instrumento de balizamento e controle. O nmero de por Guizot as marginaliza. Apesar da penria de seus meios, os ho-
~I monumentos tombados passa de 934 a 3 .000 entre 1840 e 184951 mens de Paris tm cimes do poder dessas instituies. Eles temem
As regras de sua seleo no so ditadas por critrios de erudio, os que intervm localmente, e os confinam a tarefas de erudio que
mas pelos imperativos pragmticos e econmicos de uma poltica desejariam subalternas. E, beirando a inconseqncia, acusam-nos,
de conservao e de proteo=. Elas permitem, assim, uma unida- ocasio, de no estarem empenhados nos circuitos prticos da
de de ao impossvel s associaes inglesas, divididas por suas conservao e da restaurao dos monumentos, que eles mesmos
l ..
1 ,.' 48. Segundo Rcker, op. cit., p. 206, a primeira alocao de recursos para a con- contriburam par lhes fechar. o inverso da situao inglesa, em
servao dos monumentos histricos data de 1831. Vitet ser presidente da que as associaes de proteo'" continuam a prosperar e a se engajar,
Comisso de Finanas da Cmara. Graas a ele, o oramento dos monumentos
passar de oito a duzentos mil francos em 1840.
53. Carta a Viollet-le-Duc de 27 de setembro de 1852: "Quase morri para ir ver
49. O Comit dos Trabalhos Histricos fora encarregado pelo Ministrio da Instruo
a famosa rotunda de Simiane. Senti por voc, no pelo sol que voc poderia
Pblica de inventariar e descrever os monumentos, assim corno de publicar os ter tornado comigo, mas pela singularidade do monumento (...)", ou ainda a
"Documents ndts de l'histoire de France". A Comisso dos Monumentos Hist-
carta ao mesmo de 17 de dezembro de 1856: "Sabes que nossos monumentos
ricos, subordinada ao Ministriodo Interior, era presidida pelo Ministro. Inicialmente, desmoronam porque no so conhecidos o bastante. E no o so porque no h
seu vice-presidente foi Vitet; depois, Mrime. Entre seus membros, contava albergues [...]" (e contrapor essa situao da Itlia), op. cit., supra.
com Taylor e Lenormant.
54. F. Berc, Les Premiers Travaux de Ia Commission des monuments historiques,
50. Figura marcante do meio romntico francs, o baro Taylor (1789-1879), gravador,
Paris, Picard, 1980.
escritor e filantropo, foi tambm inspetor das Belas-Artes e dos Museus.
55. Caumont criara em 1823 a Associao dos Antiqurios da Normandia, que
51. Os edifcios religiosos so maioria. As runas galo-romanas vm em segundo serviu de modelo Associao dos Antiqurios do Oeste. Em 1834, ele criou a
lugar, antes dos edifcios civis.
Associao Francesa de Arqueologia.
52. As abordagens cognitiva e prtica so representadas, respectivamente, pela
56. Associaes religiosas corno a Church Building Society, que tiveram origem no
comisso dos monumentos histricos e pelo comit dos trabalhos histricos. movimento eclesiolgico, ou associaes arqueolgicas (Oxford Architectural
Este ltimo ser rivalizado por diversas associaes de antiqurios. Sua vocao Society e Cambridge Camden Society, 1839, Cambridge Antquariam, 1840,
erudita foi retomada pelo Inventaire gnral des richesses artistiques de Ia France,
British Archaeological Society, 1843). A variedade de suas doutrinas no interfere
criado por decreto, em 1964, por Andr Malraux, por sugesto de A. Chastel. em sua eficcia, que, entretanto, se manifesta sob formas muito diversas.
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se-m intermedirios, nas tarefas de conservao. Exemplo: W. Morris constitui o contexto administrativo, tcnico l' jurdico dos proce-
cria em 1877 a Society for the Protection of Ancient Buildings. Um dimentos. Disso d provas a definio do monumento histrico:
ano depois, ele j havia reunido uma documentao sobre 749 igrejas mvel ou imvel "cuja conservao apresenta, do ponto de vista
intactas. ltima desvantagem da Frana, em relao s associaes da histria ou da arte, um interesse pblico"?'. Ela no se faz
de proteo britnicas, privadas e locais: financiamentos magros do acompanhar nem de uma anlise do conceito, nem de critrios de
Estado, que no recebem ajuda de nenhum mecenato. O inspetor discriminao prtica. Essa carncia, cujas causas mereceriam ser
e a comisso so obrigados a sacrificar numerosos monumentos. buscadas e analisadas, provavelmente responsvel pelo atraso da
Os salvos so em geral tirados aleatoriamente do uso e destinados Frana nesse domnio no sculo xx.
ao mesmo tipo de "visita" que os objetos de museu. Em 1825, Victor Hugo se indignava com o abandono em que se
Uma primeira lei foi finalmente promulgada em 1887. Uma encontravam os monumentos franceses. E acrescentava: " preciso
regulamentao vem complet-Ia em 1889. Em 1913, do-lhe uma deter o martelo que mutila a face do pas. Uma lei bastaria. Que
forma definitiva, que hoje constitui o texto legislativo de refern- seja feita. Independentemente de quaisquer direitos de proprieda-
cia da lei sobre os monumentos histricos": a instituio de um de, no se deve permitir a destruio de um edifcio histrico"!".
rgo estatal centralizado, dotado de uma poderosa infra-estrutura Linhas significativas. Elo de um longa cadeia, elas antecipam as
administrativa e tcnica, o Servio dos Monumentos Histricos, restries que o legislador francs, herdeiro da Revoluo de 1789,
e de uma rede de procedimentos jurdicos adaptados ao conjunto vir impor ao direito de propriedade dos detentores privados
dos casos passveis de previso. do patrimnio histrico. Mas elas do mostras de um otimismo
Essa legislao confirma a centralizao, a unidade e a coe- exagerado: mesmo combinada com medidas penais, uma lei no
rncia da poltica francesa de conservao dos monumentos his- basta. Hoje isso patente. A preservao dos monumentos antigos
tricos, que se v em seguida dotada de meios de ao prprios. antes de tudo uma mentalidade.
De acordo com a tradio centralizadora da Frana, ela no deixou
de funcionar como modelo em outros pases em que o papel do
Estado era menos preponderante e a descentralizao era parte
da tradio (Alemanha, Itlia). Na Inglaterra, a interveno do A restaurao como disciplina
Estado na administrao e conservao dos monumentos histricos
s aconteceu tardiamente, com o Ancient Monuments Protection Querer e saber "tombar" monumentos uma coisa. Saber
Act, de 1882, e permanece reduzida'". conserv-Ios fisicamente e restaur-Ios algo que se baseia em ou-
Alei de 1913 no deixaria, porm, de apresentar alguns incon- tros tipos de conhecimento. Isso requer uma prtica especfica e
venientes: morosidade da burocracia; reduo progressiva do papel pessoas especializadas, os "arquitetos dos monumentos histricos",
ativo, estimulante e anticonformista dos voluntrios, substitudos que o sculo XIX precisou inventar.
por funcionrios - a comisso dos monumentos mantm apenas
um poder consultivo e, em muitos casos, suas recomendaes 59. Ver os dois primeiros captulos da lei. Essa definio no ser mais aperfeioada
no so seguidas -, enfim, fraqueza maior, o vazio doutrinal que com a introduo de novos tipos de objetos no corpus dos monumentos.
60. Op. cit., p. 155-6 (grifos nossos). Entre os edifcios demolidos, desfigurados ou
deixados ao abandono, ele cita "s pressas e sem preparao, escolhendo ao acaso
57. Cf. P. Dussaule, op. cit., e seu mui pertinente comentrio. [lembranas de uma excurso recente]: as igrejas de Saint-Germain-des-Prs
58. N. Boulting, "The Law's Delays, Conservationist Legislation in the British Isles", em Paris, de Autun, de Nevers, de La Charit-sur-Loire, a catedral de Lyon, os
in J. Fawcett, op. cito castelos de Arbresle, de Chambord, de Anet (...)".

148 149
i\ ,\1.1':( ;UHIA DO PATRIMNIO
A COJ\'SAl;Hi\('t\O ])0 :-'lU~C:-'lENTOHISTRICO

Na Frana, essa inveno foi obra de Vitet e de Mrime. apenas pelos arquitetos, mas tambm por historiadores da arte da
Evocar, mesmo ligeiramente, sua aventura particular faz aflorar estatura de Caumont'".
um conjunto de problemas gerais, ainda atuais, que envolvem, Mrime sofre exemplarmente as conseqncias desse desco-
sua maneira, o sentido do monumento histrico. Voltemos nhecimento quando de suas idas ao Poitou. Graas a subvenes do
ao exemplo da Vienne. J em sua primeira viagem, Mrime Estado concedidas em 1835 e 1837, Dulin, arquiteto do departamen-
determina que a Igreja de Saint-Savin seja tombada. O edifcio, to da Vienne, cimentou a fissura longitudinal da abbada da Igreja
cuja abbada est cheia de fissuras, precisa com urgncia de re- de Saint-Savin, sem se preocupar com os afrescos que a adornam.
paros e consolidaes. Mrime no arquiteto. Diferentemente "Esse crime, escreve Mrime a Vitet, obra do ltimo arquiteto
dos antiqurios e dos historiadores da arte, categoria de que demissionrio. Seu sucessor no me inspira nenhuma confiana.
alis ele faz parte, sua misso o faz defrontar-se com questes Ele tem a infelicidade de ser terrivelmente estpido e ignorante'F'.
prticas e tcnicas relativas construo e arquitetura. Ele Semelhante desastre ocorreu no batistrio Saint-Jean de Poitiers,
serve de correia de transmisso entre o saber dos historiadores onde os antiqurios do Oeste promoveram a destruio de macios
e o conhecimento dos arquitetos e se choca, nesse papel, com romnicos em razo de uma temerria reconstituio do edifcio
trs obstculos maiores. paleocristo original?".
O primeiro comum ao conjunto dos pases europeus, com Segundo obstculo, prprio da Frana, o antagonismo
relativa exceo da Inglaterra: a ignorncia dos arquitetos, e es- entre Paris e o interior do pas. A tendncia centralizadora dos
pecialmente dos arquitetos dos departamentos e das comunas, inspetores e da Comisso dos Monumentos Histricos faz que se
em matria de construes medievas'". A partir da era clssica o escolham arquitetos formados na Escola de Belas-Artes de Paris.
estudo da construo antiga faz parte da formao dos arquitetos. Estes enfrentam a hostilidade e mesmo a malevolncia local'".
Mais que isso, estes contriburam ativamente para o avano da Obstculo mais grave, enfim, o trabalho de consolidao e
arqueologia greco-romana. Na trilha dos Soufflot e dos Le Roy,
62. "A arquitetura dos primeiros sculos da Idade Mdia apresentava todos os
Hittorf e Garnier, por exemplo, conseguiram as provas da poli-
caracteres da arquitetura romana, num avanado estado de decadncia; ns
cromia da arquitetura antiga. Em compensao, tudo est por a chamvamos de arquitetura romane [romnica]. O tipo romnico persistiu
aprender no que diz respeito ao gtico. A situao da arquitetura at o sculo XII", A. de Caumont, Abcdaire ou rudirnent d'archologie, Paris,
Caen, Rouen, 1850, p. l.
romnica ainda pior: esta desprezada e julgada sem valor, no
63. S. Fouch, op. cit., p. 9. Esse Dulin membro da Associao dos Antiqurios
do Oeste.
61. A situao analisada com lucidez por Vitet: "No basta decidir teoricamente
64. S. Fouch, ibid., p. 32 e seguintes, cita o relatrio dos Antiqurios do Oeste, que
que se restaurem doravante os monumentos dentro de um esprito histrico;
salienta que aqueles se interessam apenas pela valorizao e boa apresentao do
preciso ter arquitetos bastante versados em histria da arte para no cometerem
edifcio (urna parte do qual deve ser destruda "visto que essas construes, no
impercias nem absurdos. Quando se trata de monumentos antigos, no existe
estado em que se encontram atualmente, formariam urna massa de aparncia
muita dificuldade, visto que o estudo desses monumentos o tema quase exclu-
desagradvel no centro de urna praa pblica a que se pretende, com o tempo, dar
sivo em nossa escola, e a arte das restauraes precisamente um dos exerccios
urna forma circular ..."), e por sua forma paleocrist: da a destruio, a pretexto
aos quais os alunos se aplicam com maior sucesso.
de "conservao" (aqui entendida no sentido de reconstituio), das adies que,
"Quando se trata, porm, da Idade Mdia e de nossos monumentos nacionais,
desfigurando a forma primitiva, fizeram-na "perder o interesse" que apresenta
no se tem mais que principiantes; e os prprios professores teriam muita difi-
"do ponto de vista arqueolgico e histrico".
culdade em lhes dar lies ou exemplos. Na verdade, alguns homens de talento,
fora de pesquisas e de viagens, tiveram a pacincia de se iniciar por si mesmos, 65. E mesmo quando, como na Vienne, Mrime escolheu um prtico da regio, nem
fora da escola, nessa nova matria", L. Vitet, tudes sur les beaux-arts, t. l, p. por isso o gesto deixa de significar a ingerncia de Paris nos assuntos da provncia.
292. A ltima frase revela muito bem o processo de autoformao da primeira Ele acaba por atrair e concentrar a animosidade de todos os agentes locais, do
gerao dos historiadores da arquitetura. Conselho Municipal aos antiqurios, passando at pelo prefeito. Ibid., p. 80 e ss.

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\ .\110.1 II,L\ t x r !'AIIW,H)NJO
A CONSAGR,N,:O DO MONUMENTO lIISTC)IUCO

n -staurao j no satisfaz os restauradores. Ele no d prestgio, tcnicos, ligados sobretudo degradao dos materiais'". Mas a his-
no requer o "gnio criador" do artista e tampouco remunera bem. tria da arquitetura continuou sendo absolutamente fundamental.
E. Labrouste, o clebre criador da sala de leitura da Biblioteca Ela representou, como veremos, um grande trunfo na Itlia e nos
Nacional, foi escolhido, em razo de sua competncia e de sua pases de lngua alem, onde muitas vezes foi integrada ao ensino
cultura ecltica, para restaurar a igreja colegiada de Mantes. Alguns das escolas de arquitetura. Na Frana, esse ensino sempre esteve
meses mais tarde, o campanrio desta desmorona. Descobre-se ausente na Escola de Belas-Artes.
que Labrouste, ocupado com misses mais gloriosas, delegara a A interveno de restauradores especializados nos monumen-
obra a um colega 10ca166. tos histricos exige no apenas conhecimentos seguros, histricos,
No bastava aos inspetores dar mostras de perspiccia psico- tcnicos, metodolgicos. Ela implica tambm uma doutrina que
lgica para descobrir, entre os arquitetos laureados de Paris, ou pode articular de forma muito diferente esses saberes e esses
quando de suas viagens ao interior, os poucos homens capazes savoir-faire, modificando os objetivos e a natureza da interveno
de dedicar sua atividade profissional conservao do passado. arquitetnica. A nova disciplina que se constituiu a partir da dca-
Era preciso tambm form-los: inici-los na histria da arte e da da de 1820, a conservao dos monumentos antigos, reconhece
construo, ento ainda embrionria, fazer que transformassem necessariamente os valores e os novos significados atribudos ao
em mtodo a circunspeco e a humildade. Os prprios Mrime monumento histrico.
e Vitet foram obrigados a ministrar essa pedagogia, na falta de uma
L instituio especializada ou, no mnimo, de um curso de histria
da arquitetura medieval, que eles no conseguiram fazer instituir As aporias da restaurao: Ruskin ou Viollet-le-Duc
na Escola de Belas-Artes",
No curso do sculo xx, os estudos preparatrios para a conser- dessa forma que o debate sobre a restaurao, que havia di-
vao e restaurao dos monumentos histricos exigiram a aquisio vidido os antiqurios e os arquitetos ingleses antes dos demais, no
~ :
suplementar de novos e numerosos conhecimentos cientficos e fim do sculo XVIII, v-se enriquecido e ampliado em dimenses
11"
que abarcam a cena europia. Esquematicamente, duas doutrinas
66. F. Berc, op. cito
se defrontam: uma, intervencionista, predomina no conjunto dos
67. Ver os conselhos dados por um e outro a seus arquitetos favoritos, Daniel Rame,
no caso de Vitet e, alm de Viollet-le-Duc, Questel, no caso de Mrime. Cons-
pases europeus; a outra, antiintervencionista, mais prpria da
tatao clara: "Acriao de um curso pblico, destinado especialmente a ensinar Inglaterra. Seu antagonismo pode ser simbolizado por aquele dos
a histria da arquitetura na Idade Mdia, torna-se atualmente uma verdadeira dois homens que as defenderam com mais convico e talento:
necessidade, e no se pode entender que a Escola de Belas-Artes tenha se preo-
Viollet-Ie-Duc e Ruskin, respectivamente.
cupado apenas em se opor a essa criao, obrigando assim o governo a imp-Ia",
L.Vitet, op. cit., p. 293. Na verdade, apesar da ajuda da fora pblica, o governo
no conseguiu impor o curso de histria da arquitetura de Viollet-le-Duc, que foi Na Gr-Bretanha, os termos da polmica endureceram. Do
obrigado a parar depois de algumas sesses, contentando-se em apresentar uma lado dos intervencionistas, Wyatt, inimigo nmero um de Carter e
verso escrita do curso em seus Entretiens sur l'architecture. Na srie de artigos
que dedicou ao "Entretien et Ia restauration des cathdrales franaises" (Revue Milner, foi substitudo por Gilbert Scott (1811-1878), principal alvo
gnrale de I'architecture, 1851-1852, rubrica "Histoire"], Viollet-le-Duc faz o de Ruskin e Morris. O conhecimento de arquitetura medieval muito
balano da contribuio do governo restaurao e acrescenta: "Falta-nos apenas superior ao de seu predecessor no impede que Scott defenda, em
uma coisa, se desejamos que esses sacrifcios sejam fecundos: uma sementeira de
jovens artistas, arquitetos, pintores e escultores, nutridos pelo estudo de nossos 68. Cf., por exemplo, o papel. da fsica, da qumica, da bioqumica, tal como se
mais belos monumentos e, portanto, capazes de restaur-Ias com competncia desenvolveu nos institutos de pesquisa aplicada como, na Frana, o Laboratrio
(...). O mal est no ensino", op. cit., 1852, t. X, p. 371. de Pesquisa dos Monumentos Histricos. Cf. tambm o papel da fotogrametria.

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\ .\III,III!Ii\ IH11'AIJW\J(')N!() A CONSACRAO \)0 MONUMENTO HISTRICO

nome da fidelidade histrica, posies "corretivas". Ele publica, em Concluses: -nos proibido tocar nos monumentos do pas-
IHSO,Defesa da restaurao fiel de nossas igrejas antigas=" aps sado. "Ns no temos o mnimo direito de faz-Ia. Eles no nos
ter declarado, oito anos antes, que gostaria de expurgar a palavra pertencem. Pertencem em parte queles que os edihcaram, em
"restaurao" do vocabulrio arquitetnico?". D-se ao luxo at de parte ao conjunto das geraes humanas que viro depois de ns."?
criticar a posio de Viollet-Ie-Duc, de que sua prpria doutrina , Qualquer interveno sobre essas "relquias'?" um sacrilgio.
contudo, uma verso mais radical, alis defendida pela Sociedade A violncia das imprecaes ruskinianas contra a restaurao
dos Eclesilogos". Esse apoio permitiu-lhe intervir na maioria das explode na segunda parte do "Lamp of Mernory", reflete-se nas
grandes catedrais inglesas, e suas idias tiveram praticamente fora conferncias posteriores do crtico e repercute de forma vibrante
de lei na Gr-Bretanha at a dcada de 1890. em parte da imprensa inglesa". No sentido prprio, restaurao
De sua parte, Ruskin, seguido por Morris, defende um antiin- significa "a mais completa destruio que um edifcio pode sofrer",
tervencionismo radical, de que at ento ainda no havia exemplo, e "a coisa uma mentira absoluta". O projeto restaurador absurdo.
que deriva de sua concepo do monumento histrico. O trabalho das Restaurar impossvel. como ressuscitar um morto.
geraes passadas confere, aos edifcios que nos deixaram, um carter Morris, talvez melhor que Ruskin, denuncia a inanidade da
sagrado. As marcas que o tempo neles imprimiu fazem parte de sua reconstituio ou da cpia. Elas supem que se possa ao mesmo
essncia. Morris desenvolve esse tema segundo uma argumentao tempo penetrar o esprito do tempo em que foi construdo o
pessoal, deixando aberta a hiptese otimista de um revival da arte edifcio e identificar-se completamente com o artista". Para
L antiga: o valor dos monumentos do passado deriva menos da grande Ruskin e Morris, querer restaurar um objeto ou um edifcio
atentar contra a autenticidade que constitui a sua prpria essncia.
ruptura dos savoir-faire provocada pela Revoluo Industrial do que
de uma tomada de conscincia prpria ao sculo XIX. O desenvol- Ao que parece, para eles o destino de todo monumento histrico
vimento dos estudos histricos permitiu a esse sculo pensar, pela a runa e a desagregao progressiva.
primeira vez, o carter nico e insubstituvel de todo acontecimento,
I.
) I"il
assim como de toda obra que pertence ao passado ". tempo. E esses tempos antigos eram to plenos que eles no tinham momentos
de folga algum para especular sobre os sucessos do passado ou do futuro. Vale a
pena salientar o quanto a situao mudou hoje. A tomada de conscincia, cada
69. A Plea fOI' the Faithful Restoration of our Ancient Churches, completado em 1864 vez mais forte, do presente, mostra-nos como homens aparentemente animados
com um cdigo de restaurao com vinte pontos, "General Advice to Promotors of das mesmas paixes que ns eram na realidade diferentes (...); essa tomada de
Ancient Buildings", publicado em 1864-1865 in Sessional Papers of the Riba. A idia conscincia, embora salientando essa diferena, ligou-nos de tal modo ao passado
central (pretensamente conservadora) fazer que os edifcios voltem ao seu estado que ele parte integrante de nossa vida e mesmo de nosso desenvolvimento. Esse
inicial. Para isso, preciso suprimir, corrigir, inventar, s conservar as restauraes fato, ouso dizer, nunca tinha acontecido antes. algo completamente novo. (...)
anteriores se no estiverem "deslocadas"; conforme 1. Fawcett, op. cito
"Repito: ns, que pertencemos a este sculo, fizemos uma descoberta impossvel
70. On the Conservation of Ancient Monuments, citado por 1. Fawcett. Esta d s pocas precedentes: sabemos agora que nenhum novo esplendor, nem obra
igualmente a lista e as datas das intervenes de G. Scott nas catedrais inglesas moderna alguma pode substituir para ns a perda de um trabalho antigo que
desde Stafford, Ely e Westminster, na dcada de 1840, at Exeter, Worcester seja uma autntica obra de arte", The Builder, artigo sobre "The Restauration
e Rochester na dcada de 1870. of Ancient Buldngs", 28 de dezembro de 1878.
71. Viollet-le-Duc o alvo das zombarias dos eclesilogos que o tomam como smbolo 73. "The Lamp of Memory", op. cit., XX, p. 201. Os grifos so de Ruskin. As
da incompreenso francesa em matria de restaurao. Cf. nota 93, adiante. citaes seguintes so excertos dos XVIII e XIX, p. 199 e 200.
72. Devemos "levar em conta a grande mudana que se insinuou no mundo, transfor- 74. A palavra usada com mais freqncia por Ruskin que por Morris.
mando a natureza de seu sentimento e de seu conhecimento da histria (...).
75. Com mais nfase, a paixo ruskiniana faz escola. "Restauration, ton nom est
Nossos antepassados consideravam tudo o que tivera lugar no passado exata-
absurdit", S. Huggins, The Builder, 28 de dezembro de 1878.
mente como os mesmos fatos se lhes afigurariam em sua prpria poca. Eles
julgavam o passado e os homens do passado segundo os critrios de seu prprio 76. The Builder, artigo citado.

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A CONSJ\CH:\(;O DO I'vlO0.'Ul\1ENTO HISTRICO
A :\l.FGORIA DO PATRIMNIO

Percebe-se contudo que, na realidade, esse fim pode ser retarda- arbitrrio conveniente denunciar - fachada gtica inventada
do, e que os dois campees do antiintervencionismo preconizam a da catedral de Clerrnont-Ferrand, flechas acrescentadas Notre-
manuteno dos monumentos e admitem que sejam consolidados, Dame de Paris e Sainte-Chapelle, esculturas dcstrufdas ou
desde que de forma imperceptvel". De fato, a intransigncia com mutiladas substitudas por cpias, reconstituies fantasiosas do
a qual condenam a restaurao se explica por sua f incondicional castelo de Pierrefonds, reconstituies compsitas das partes
na perenidade da arquitetura como arte; da a afirmao dogrn- superiores da Igreja Saint-Sernin, em Toulouse.
tica de uma necessria "arquitetura histrica", em Ruskin, e de um Esse retrato grotesco deve, porm, ser relativizado, ainda que
reuiual. necessrio, em Morris. Para este ltimo, os monumentos seja inserindo-o no contexto intelectual da poca e lembrando o
antigos fazem "parte do mobilirio de nossa vida cotidiana'?". estado de degradao em que se encontravam, na Frana, a maioria
A expresso boa. Ela demonstra bem a precariedade que os insere dos monumentos sobre os quais pairavam suspeitas de desfigurao.
na grande cadeia temporal e situa-os, ao contrrio dos objetos de Cumpre lembrar tambm os textos em que Viollet-le- Duc descreve
museu, no mesmo plano dos edifcios do presente, chamados a a diversidade dos edifcios religiosos do sculo XIII, "todos nascidos
desempenhar a mesma funo e a ter o mesmo destino. do mesmo princpio", grande famlia em que cada membro possui,
Do lado francs, a doutrina e a prtica da restaurao so todavia, "um trao de originalidade bem marcada", em que "se sen-
dominadas pela figura de Viollet-le-Duc. Com base em seus es- te a mo do artista e se reconhece sua individualidade'f". No se
critos sobre o assunto e em suas intervenes nos monumentos deve, igualmente, ignorar seu interesse pela histria das tcnicas e
h franceses, fcil traar um perfil de sua obra, que se contrape,
ponto por ponto, de Ruskin. Quase um sculo depois, a con-
dos canteiros de obras, seus mtodos de pesquisa in situ, o fato de
ter sido um dos primeiros a valorizar os registros fotogrficos e a
tribuio de Viollet-le-Duc em geral se reduz a uma definio maneira como soube retirar das fachadas as esculturas demasiada-
clebre de seu Dictionnaire: "Restaurar um edifcio restitu-lo a mente frgeis e ameaadas. Alm disso, L. Grodecki'" demonstrou
I
t um estado completo que pode nunca ter existido num momento que o castelo de Pierrefonds, do qual s restavam runas, servira de
!; : dado"79 e a uma concepo "ideal" dos monumentos histricos, grande divertimento a Viollet-le-Duc: "um brinquedo gigantesco'f",
r
que criam na prtica um intervencionismo militante cujo carter deplorado por Anatole France, ele nos parece atualmente uma
antecipao das "Disneylndias",
77. "La Lampe de mmoire", 2 parte. Para Ruskin, a atitude francesa consiste preciso sobretudo interrogar-se sobre o sentido real das
"primeiro em negligenciar os edifcios, para depois restaur-Ias". Ele acrescenta restauraes "agressivas" ou "historicizantes" de Viollet-le-Duc.
sensatamente: "Cuda bem de vossos monumentos e no vos ser preciso restaur-Ias preciso mostrar com clareza as preocupaes que inspiram suas
depois", XIX, p. 200-1. Da mesma forma, no artigo sobre o Crystal Palace, probe
tocar o monumento autntico "salvo na medida em que seja preciso consolid-Ia ou
a de W. Morris: "Preservar os edifcios antigos significa conserv-Ias no mesmo
proteg-Ia [...]. Essas operaes necessrias se limitam a substituir as pedras gastas
estado em que os recebemos, reconhecveis, por um lado, como relquias histricas,
por novas, no caso em que estas sejam absolutamente indispensveis estabilidade
e no como cpias suas; por outro, como obras de arte executadas por artistas que
do edifcio; a escorar com madeira ou metal as partes suscetveis de desabamen-
tinham toda a liberdade de trabalhar de outra forma, se o quisessem", ibd,
to; a fixar ou cimentar em seu lugar as esculturas prestes a se desprender; e, de
modo geral, a arrancar as ervas daninhas que nascem nos interstcios das pedras e 80. Revue gnrale de l'architecture, 1851, t. IX, na rubrica "Entretien et restauration
a desobstruir os condutos pluviais. Mas nenhuma escultura moderna e nenhuma des cathdrales de France", segundo artigo, p. 114.
cpia devem, jamais, sejam quais forem as circunstncias, ser associadas s obras 81. L. Grodecki, "La restauration du chteau de Pierrefonds", Les Monuments
antigas", op. cit., IX, p. 112, grifas de Ruskin. historiques de Ia France, 1965, n. 95, eLe Chteau de Pierrefonds, Paris, Caisse
78. The Builder, op. cito nationale des monuments historiques, 2" ed., 1979. Esses textos foram reeditados
em Le MoyenAge retrouu, t. 2, Paris, Flammarion, 1990.
79. Essa definio constitui a referncia implcita com base na qual se situam todas as
outras definies da restaurao propostas pelos adversrios de Vollet-le-Duc, como 82. P. Noziere, Paris, A. Lernerre, 1899, p. 172.

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A ALEGORIA DO PATRIMNIO
A CONSAGHN:O no !v1()l\'l1l\1ENTO HIST(JRICO

intervenes corretivas e que Mrime estava longe de poder ima- no se tornara um hbito mental'". Apesar de sua experincia, o
ginar na dcada de 1840. A leitura de Entretiens sur l'architecture prprio Viollet-le-Duc muitas vezes d provas disso. Esse o caso,
[Colquios sobre a arquitetura] revela que o incomparvel desenhista por exemplo, da advertncia que ele dirige aos inspetores diocesanos
das antigidades romanas, o medievalista formado pelo Curso de em 1873: "Seria puerilreproduzir [numa restaurao] uma disposio
antigidades de Arcisse de Caumont, que o fino conhecedor do eminentemente viciosa". Um tal julgamento de valor pe em dvida,
Renascimento italiano dedicou a segunda metade de sua carreira ao mesmo tempo, o conceito de monumento histrico, que se torna
a uma aposta no presente e busca de uma hipottica arquitetura uma abstrao, e o de restaurao, que no leva mais em conta a
moderna. Contrariamente s hipteses continustas de Ruskin e de autenticidade do objeto restaurado.
Morris, mas em conformidade com sua prpria abordagem estrutu-
ral da histria, essa arquitetura nascer, para ele, de uma ruptura.
Ela haver de se apresentar sob a forma de um sistema indito em A Frana e a Inglaterra
que os monumentos antigos, testemunhas dos sistemas histricos
obsoletos, tm como principal interesse sinalizar o espao vazio. Ao lado das posies radicais de Viollet-le-Duc, a atitude
Encontra-se inapelavelmente morto esse passado que, segundo muito mais nuanada de Vitet e de Mrime, como da maioria
Ruskin e Morris, devemos manter vivo. A atitude do Viollet -le-Duc de seus contemporneos franceses ligados defesa dos monu-
restaurador explica-se pela constatao desse bito. mentos histricos, parece prxima da dos ingleses reunidos em
Viollet-le-Duc tem a nostalgia do futuro, e no a do passa- torno de Ruskin e de Morris.
do. Essa obsesso explica o endurecimento progressivo de sua Desde sua primeira viagem pelo Oeste, Mrime observa, a
abordagem de restaurao, de que talvez no se tenham apontado propsito do "Templo Saint-Jean" de Poitiers, restaurado ou, antes,
determinados traos arcaicos, curiosamente associados a um esp- reconstitudo segundo a tradio dos antiqurios: "Gostaria que a
I, '
1 rito de vanguarda. Assim, Viollet fazia suas as anlises estruturais nova restaurao no acrescentasse nada ao que o tempo nos deixou,
I de Caumont; alm disso, ele foi um dos primeiros a salientar a limitando-se a limpar e a consolidar. Em alguns lugares, cobriram os
,)
importncia das dimenses social e econmica da arquitetura. muros com um reboco novo, o que um erro grave, porque se devia
A noo de estrutura, porm, levava-o a retomar, ao empreender a conservar religiosamente a aparncia antiga das muralhas que outrora
restaurao real dos edifcios medievais, a atitude idealista que havia foram vrias vezes reparadas'f". Para ele, constitui um princpio que
presidido s "restauraes" dos monumentos clssicos desenhadas o arquiteto reparador intervenha o mnimo possvel, sempre que o
pelos antiqurios e que davam continuidade s "restituies" da estado do monumento o permita. Insiste nesse ponto com Vollet-
Escola de Belas-Artes. Reconstituindo um tipo, ele se mune de le-Duc e com seus outros interlocutores. De resto, esse tambm o
uma ferramenta didtica que restitui ao objeto restaurado um valor
histrico, mas no sua historicidade. Da mesma forma, a rudeza de 83. "A restaurao [dos monumentos antigos] uma inveno totalmente moderna
suas intervenes em geral prende-se ao fato de que, absorto em e que s existe em nossa poca (...). Essa idia que todas as outras artes obser-
suas preocupaes didticas, ele tende a esquecer-se da distncia vam, cada uma sua maneira, nunca foi posta em prtica pela arquitetura. Cada
sculo de algum modo se imps a lei de s construir de determinada maneira,
constitutiva do monumento histrico. Um edifcio s se torna "his- de s obedecer ao prprio gosto, aos prprios usos, quer construindo algo novo,
trico" quando se considera que ele pertence ao mesmo tempo a quer concluindo ou reparando as obras do passado. Se a moda mudou durante
dois mundos: um mundo presente, e dado imediatamente, o outro o perodo da execuo do monumento, tanto pior para a unidade e a simetria;
os primeiros planos foram deixados de lado e o edifcio foi concludo de acordo
passado e inapreensvel. Vitet dedicou a essa necessria tomada de
com os planos em moda", Fragments, op. cit., p. 293.
conscincia linhas cuja vivacidade mostra que, poca, ela ainda
84. S. Fouch, op. cit., p. 33.
1;( i
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159
Biblioteca Setof"ipt
A CONSACRr\(,:Ao DO lvjO,\,'1 JlvlENTO HISTRICO
A ALEGORIA DO PATRIMNIO

nico meio de conservar uma qualidade essencial dos monumentos, colocar-se num ponto de vista exclusivo, despojar-se de toda idia
sua ptina. Victor Hugo defende a mesma posio para os monu- atual e esquecer o tempo em que se vive para se fazer contemporneo
mentos histricos que, "envelhecidos ou mutilados, receberam do do monumento que se restaura, dos artistas que o construram, dos
tempo ou dos homens uma certa beleza" e nos quais "sob nenhum homens que o habitaram. preciso conhecer a fundo todos os processos
pretexto se deve tocar, porque os desgastes e supresses feitos da arte, no apenas de suas principais pocas, mas desse ou daquele
pelo tempo ou pelos homens so importantes para e histria e perodo de cada sculo, a fim de restabelecer, se necessrio, toda uma
s vezes tambm para a arte. Consolid-los, impedi-los de cair, parte de um edifcio vista de simples fragmentos, no por capricho
tudo o que podemos nos perrnitir'f". Vitet tambm preconiza um ou por hiptese, mas por uma rigorosa e conscienciosa induo"89.
respeito que ele compara ao que se deve ter s jias de famlia. No se pode encontrar melhor forma de evitar colocar o pro-
E, aos franceses, ele chama a ateno para o exemplo ingls: seria blema da autenticidade esttica, que conferida a um monumento
necessrio enviar os jovens arquitetos Inglaterra, assim como so histrico por sua singularidade e por sua idade, e que, reconhecida
enviados a Roma, para aprender a conservar e a restaurar'". mais tardiamente, no coincide com sua autenticidade histrica e
A semelhana de determinadas formas no nos deve enganar. tipolgica. Pode-se verdadeiramente abstrair-se do tempo em que
Os franceses concordam apenas em parte com as posies ruskinianas. se vive? Ser que se pode transpor o mtodo indutivo do dom-
Para eles, os monumentos "intocveis" so poucos. Victor Hugo nio das cincias naturais para o da arte? Essas questes no so
afirma que a maioria se constitui, ao contrrio, da categoria daqueles abordadas. Postulando a possibilidade de uma restaurao fiel e
~ ,
de uma cpia cuja perfeio faz que no se diferencie do original,
"que, longe de ganhar, perderam com o envelhecimento e com os
desgastes'". Com efeito, na Frana, um monumento histrico no os franceses transformam em verdade uma mentira denunciada
visto como uma runa, nem como uma relquia que se destina por Ruskin e Morris e revelam a importncia que atribuem aos
memria afetiva. Ele , em primeiro lugar, um objeto historicamen- valores da memria histrica'", em comparao com os da memria
'I. '
te determinado e susceptvel de uma anlise racional, e s depois objeto afetiva e do uso piedoso. No mesmo esprito, embora critiquem
I: de forma pertinente determinadas reutilizaes dos edifcios
,,) :." de arte. A abordagem francesa geralmente subentende um postulado
I, .
impensvel para Ruskin: a restaurao a outra face, obrigatria, antigos, os franceses tendem a favorecer, mais que os ingleses,
da conservao; necessria, ela deve e pode ser fiel; trata-se, nesse a museificao dos monumentos histricos. Vitet sintetiza, sem
caso, de uma questo de mtodo e de savoir-faire. segundas intenes, a lgica dessa atitude quando lamenta que
necessrio, diz Hugo, que os trabalhos "sejam feitos com nossas catedrais continuem a servir ao culto, porque "o uso uma
cuidado, cincia e inteligncia'f". Vitet mais preciso: " necessrio espcie de vandalismo lento, insensvel, despercebido, que arruna
e deteriora quase tanto quanto a brutal devastao"?'.
85. Interveno de sbado, 16 de maio de 1846, no Comit das Artes, publicada
por Massin em sua edio das CEuvres completes, p. 1248. carter de cada edifcio, de acordo com cada sculo e cada clima. Que ele se
imbua da linha geral e da linha particular do monumento que lhe confiam e que
86. Fragments, op. cit., "De l'architecture du Moyen Age en Angleterre", 1836, p.
saiba unir sua arte do do arquiteto antigo", op. cit., p. 165 (grifo nosso).
174. "No nos faltam arquitetos ditos produtores, ou que se consideram como
tais, enquanto h grande carncia de arquitetos reparadores", ibid., p. 175. 89. Entretiens sur les Beaux-Arts, op. cit., p. 290 (grifo nosso).

87. Ibid. 90. A restaurao "supe (...) um culto do belo sob todas as formas e uma inteligncia
imparcial da histria", bd,
88. Ibid., p. 1248. Cf. tambm "Guerre aux dmolisseurs", 1832: "Mandai reparar
esses belos e graves edifcios. Fazei-os reparar com cuidado, com inteligncia, 91. "De l'architecture du Moyen Age en Angleterre", op. cit., p. 147.Algumas linhas
com sobriedade. Tendes em torno de vs homens de cincia e de gosto que vos antes, ele afirma: "S na Inglaterra se encontram edifcios religiosos que, despo-
iluminaro nesse trabalho. necessrio sobretudo que o arquiteto restaurador jados h trezentos anos de uma parte de sua primeira destinao, s subsistem
seja frugal em suas prprias imaginaes, para que estude com curiosidade o como objetos de arte e de curiosidade" (grifo nosso).

160 161
A CONSAGHAAO DO M00!UMENTO HISTRICO
A ALEGORIA DO l'AIRIMNIO

Essa anlise das atitudes e dos comportamentos que contra- foi traduzida e publicada pela Revue gnrale de l'archuecture",
pem a Frana Gr-Bretanha no que diz respeito restaurao e as restauraes de Viollet -le- Duc foram analisadas e criticadas
tem apenas um valor geral. Procurei determinar tipos ideais e duramente, j em 1844, por Didron em seus Annales archologiques,
tendncias. Desconsiderei, deliberadamente, as excees e os casos- bem antes que Anatole France se ocupasse do assunto".
limite. Houve, na Inglaterra, rivais de Viollet-le-Duc, como alis o tambm fato que a doutrina de Ruskin nasceu e se difundiu
mostrou o exemplo de G. Scott e de seus partidrios eclesilogos. na Inglaterra, e no alhures, e que a Frana, na medida em que protegia
Da mesma forma, na Frana, Montalembert (talvez sozinho) defen- seus monumentos, seguia na, maioria dos casos, os preceitos de
de uma ideologia revivalst em pginas de laivos ruskinianos'". Viollet-le-Duc, Como o prprio Ruskin compreendeu'", o desti-
Viollet-le-Duc, a quem Ruskin e Morris nunca perderam a oportuni- no desse antagonismo doutrinal era previsvel. Que podia a tese
dade de denegrir ou vilipendiar'", foi defendido publicamente, com do deixar envelhecer (e perecer) e suas complexas consideraes
sutileza, por determinados arquitetos ingleses?', enquanto Morris sobre a consolidao contra o projeto racionalizado e espetacular
era taxado de fetichista e ridicularizado abertamente pelo editoria- dos arquitetos e dos historiadores intervencionistas? A Europa inteira
lista do Builder">. De forma anloga, a carta enviada de Alexandria estava pronta para aderir s idias de Viollet-le-Duc. Estas reuniam
(18 de maro de 1851) ao Athenaeum por William Morris tambm especialmente as aspiraes historicistas dos restauradores forma-
dos nos pases de lngua alem e da Europa central.

92. Op. cito "O velho solo da ptria, coberto que era com as criaes mais maravi-
lhosas da imaginao e da f, torna-se cada dia mais nu, mais uniforme, mais
descalvado (...). Dir-se-ia que eles querem se persuadir de que o mundo nasceu
r,
ontem e que vai acabar amanh (... p. 7. E tambm, na p. 67 e ss., a propsito Snteses
das igrejas: "L se ergue ainda diante de ns toda a vida de nossos avs, essa
..
I vida to dominada pela religio, to absorvida por ela, (...) sua pacincia, sua
I
atividade, sua resignao (...), tudo isso est l, diante de ns (...) como uma Todo conhecimento em processo de formao provoca a
I pequena materializao de sua existncia (...)". Compare-se com os textos de crtica de seus conceitos, de seus procedimentos e de seus proje-
I)
Ruskin citados nas notas 24 e 5S. tos. As disciplinas afins quanto conservao e restaurao dos
93. Ver, por exemplo, em The Builder, 22 de junho de 1861, a ata da sesso da Eccle-
monumentos histricos no fugiram regra. Depois do trabalho
siological Society, "On the Destructiue Character of Modern French Restoration",
na qual Ruskn, "recebido com aplausos", profere uma de suas mais belas diatribes fundador da primeira gerao, veio, no fim do sculo, outra refle-
contra a restaurao, em geral, e as dos franceses e dos alemes, em particular. xo, crtica e complexa.
94. Ibd. No curso da mesma sesso, o arquiteto J. Parker ope-se a todos os seus
96. A carta de Morris preconizava, especialmente, que se criasse uma associao
colegas, salientando as diferenas de contextos (poltico, ideolgico, cultural)
para proteger o patrimnio histrico internacional.
que tornam complexa a comparao entre os dois pases. Ele insiste especial-
mente na eficincia, na Frana, da ao do Estado "que, em lugar de abandonar 97. Pierre Nozieres, op. cito A. France acusa Viollet-le-Duc at de vandalismo em
a preservao dos edifcios pblicos ao sentimento e opinio pblica, man- Pierrefonds, onde ele "destruiu as runas, o que uma espcie de vandalismo".
da tombar todas as categorias de edifcios, e no apenas as catedrais, como Ele resume asperamente o mtodo de Vollet-le-Duc: "Agora [o arquiteto] de-
monumentos histricos". Ele defende Vollet-le-Duc, lembrando seu imenso mole para envelhecer. Faz-se que o edifcio volte ao estado em que se encontrava
conhecimento e enumerando exemplos ingleses de vandalismo. O inventrio originalmente. Melhor ainda: faz-se que volte ao estado em que ele deveria se
ps-morte de Viollet mostra que ele possua as obras de Parker. encontrar", p. 177-8 e p. 241 e ss.
95. A propsito de sua Society for the Protection of Ancient Buildings, acusada 98. "On the opening", op. cit., 10, p. 112. "Infelizmente, consertos desse tipo, exe-
de ter suas sesses presididas por "nobres estetas", sustentados por damas bem- cutados com conscincia, so em geral desprovidos de carter espetacular e so pou-
pensantes e subjugadas por suas torrentes de eloqncia. Os objetivos da nova co apreciados pelo grande pblico; por isso, os responsveis pelas obras sentem-se
sociedade, que vem inutilmente se somar a instituies anteriores, do mostras necessariamente tentados a executar os consertos indispensveis de um modo
sobretudo de "um fetichismo abjeto", The Builder, 29 de junho de 1878. que, ainda que aparentemente adequado, seja na realidade fatal ao monumento".

162 163
A t\l.EGORIA DO PATRIMNIO A CONSN;10\(':\O DO lvIO:-\lJ.vlENTOHISTRICO

Para alm de Ruskin e de Viollet-le-Duc, Camillo Boito lei italiana de 1909. G. Giovannoni a elas se reporta e adere)
sem reservas, quando, em 1931) faz um balano da "restaurao
Desde o ltimo quartel do sculo XIX) a hegemonia da dou- italiana dos monumentos na Itlia", no contexto da Conferncia
trina de Viollet-le-Duc comea a ser abalada por uma postura mais de Atenas. Contudo, a abordagem dialtica de Boito no encontra
questionadora, mais nuanada, mais informada tambm) graas aos melhor expresso que num ensaio escrito em forma de dilogo)
progressos da arqueologia e da histria da arte. Essa orientao foi "Conservare o restaurare") publicado em sua compilao Questioni
sendo posta em prtica paulatinamente) de forma annima e quase pratiche di belli arti, em 1893102.
furtiva. Foi) porm) definida) executada e defendida de modo Nele, o autor d a palavra alternativamente a dois restaura-
brilhante por um homem cuja obra inovadora hoje praticamente dores, um dos quais defende as idias de Viollet-le-Duc, que ele
ignorada) salvo em seu pas de origem) a Itlia?". invoca e cita muitas vezes) enquanto o outro, o alter ego de Boito,
Camillo Boitc''" (1835-1914) um desses arquitetos italianos critica-as recorrendo a argumentos tomados de emprstimo a
que) como Giovannoni na gerao seguinte) devem a originalidade Ruskin e Morris (cujos nomes no so mencionados). Boito cons-
de suas obras e de suas idias a uma formao sem igual na Frana tri sua prpria doutrina com base nessa oposio) mas vai alm.
e na maioria dos outros pases. Engenheiro) arquiteto e historiador A Ruskin e a Morris ele deve sua concepo da conservao
da arte) suas competncias lhe permitem situar-se na confluncia dos monumentos baseada na noo de autenticidade. No se deve
de dois mundos que se tornaram estranhos: o da arte) passado e preservar apenas a ptina dos edifcios antigos) mas os sucessi-
~i atual) e o da modernidade tcnica. vos acrscimos devidos ao tempo - verdadeiras estratificaes,
Na Itlia) assim como em outros lugares, os princpios de comparveis s da crosta terrestre) que Viollet-le-Duc condenava
Vollet-le- Duc inspiraram a maioria das grandes restauraes, sem escrpulos. O respeito autenticidade deve igualmente fazer
sobretudo em Florena, Veneza e Npoles, onde Ruskin e Morris rejeitar a concepo "paleontolgica", com base na qual Viollet
i
os atacara diretamente. Confrontado com essas duas doutrinas reconstitui as partes desaparecidas dos edifcios, e mais ainda sua
I:
I) :,':' antagnicas, Boito recolhe o melhor de cada uma, extraindo delas, tipologia estilstica, que, apesar de certas declaraes contrrias,
em seus escritos, uma sntese sutil, que alis nem sempre haver termina por ignorar o carter singular de cada monumento'I'''.
de aplicar em suas prprias restauraes. Boto, com Viollet-le-Duc, contra Ruskin e Morris, postula
Foi por ocasio de trs congressos de engenheiros, reunidos a prioridade do presente em relao ao passado e afirma a legiti-
em Milo e em Roma entre 1879 e 1886, que Boito foi levado a midade da restaurao. verdade que esta no passa de paliativo.
formular um conjunto de diretrizes para a conservao e a res- Ela s deve ser praticada in extremis, quando todos os outros
taurao dos monumentos histricos'?'. Estas foram incorporadas meios de salvaguarda (manuteno, consolidao, consertos im-
perceptveis) tiverem fracassado. Ento, a restaurao se revela o
99. Em sua Storia dell'architettura moderna, Turim, Einaud, 1951, Bruno Zevi
complemento indispensvel e necessrio de uma conservao que,
faz de Boito um heri nacional e atribui a ele o papel de pioneiro que nega a
Giovannoni, Para a bibliografia crtica de Boito, cf. C. Ceschi, Teoria e storia sem ela, no pode subsistir nem mesmo em projeto.
deZ restauro, Roma, Bulzoni, 1970.
100, Depois de ter feito cursos na Itlia, na Alemanha e na Polnia, ele leciona 102. Subttulo: Restauri, concorsi, legislazione, professione, insegnamento, Milo,
(Accademia Brera) e trabalha como arquiteto e restaurador dos edifcios Ulrico Hcepli, 1893.
antigos em Milo. Fundou a revista Arte italiana decorativa ed industriale.
103. Ele cita Mrime de forma caricatural: este, num esprito oposto ao de Viollet-
dele tambm a obra Crrnamenti per tutti gli stili (1888). le-Duc, declarava que "convm deixar incompleto e imperfeito tudo o que se
101. Elas tinham a forma de uma recomendao, verdadeira carta em oito pontos, encontra incompleto e imperfeito, [e que J no devemos nos permitir corrigir
que Boito reproduz em "Restaurare o conservare", op. cit., p. 28 e ss. as irregularidades ou consertar os erros", op. cit., p. 13.

164 165
'li'

A ALEGORIA DO PATRIMNIO ,\ CONSACRAAo DO !vl0;-JUMENT{) HISTRICO

Afirmar a compatibilidade de duas noes que Ruskin e Os conceitos de autenticidade, hierarquia de intervenes, estilo
Morris julgavam incompatveis, e que Viollet-Ie-Duc entendia de restaurao permitiram a Boito estabelecer os fundamentos
como sinnimas, leva a uma concepo complexa da restaurao. crticos da restaurao como disciplina. Ele enunciou um conjunto
A maior dificuldade consiste, em primeiro lugar, em saber avaliar de regras que foram moduladas e aprimoradas -, por causa das
com justeza a necessidade ou a oportunidade da interveno, destruies causadas pelos conflitos armados, a partir da Primei-
em localiz-Ia, em determinar sua natureza e importncia. Uma ra Guerra Mundial - de acordo com a evoluo das tcnicas de
vez admitido o princpio da restaurao, esta deve adquirir sua construo - mas que, em sua essncia, continuam vlidas.
legitimidade. Para isso, necessrio e suficiente fazer que seja
reconhecida como tal. O carter pertinente, adventcio, ortop-
dico do trabalho refeito deve ser marcado de forma ostensiva. Alois Riegl: uma contribuio maior
Ele no deve, em nenhuma hiptese, poder passar por original.
imperioso que se possa, num relance, distinguir a inautentici- Um trabalho de reflexo mais ambicioso com respeito a
dade da parte restaurada das partes originais do edifcio, graas atitudes e condutas ligadas noo de monumento histrico foi
a uma disposio engenhosa que recorra a mltiplos artifcios: realizado no comeo do sculo xx pelo grande historiador da arte
materiais diferentes; cor diferente da do original; aposio de vienense Alois Riegl (1858-1905)105. Este encontrava-se prepara-
inscries e de sinais simblicos nas partes restauradas, indicando do para tal tarefa em razo de sua tripla formao - de jurista,
~ as condies e as datas das intervenes; difuso, local e na im- filsofo e historiador - e pela experincia concreta que adquiriu
prensa, das informaes necessrias, e em especial fotografias das como conservador de museu 106.
diferentes fases dos trabalhos; conservao, em local prximo do Em 1902, Riegl foi nomeado presidente da Comisso Austra-
monumento, das partes substitudas por ocasio da restaurao'!". ca dos Monumentos Histricos e encarregado de esboar uma nova
" . Alm disso, Boito reconhece no apenas que toda interven- legislao para a conservao dos monumentos. Um ano depois,
; I.1 ,oU o arquitetnica num monumento necessariamente datada e publicava, guisa de introduo a medidas jurdicas, Der moderne
marcada pelo estilo, pelas tcnicas e savoir-faire da poca em que Denkmalkultus [O culto moderno dos monumentos)l7. Esse fino
feita. Lamenta, ademais, a igualdade de tratamento que se d
diversidade dos monumentos e prope trs tipos de interveno, 105. Entre 1889 e 1901, numa srie de obras importantes, Riegl estabeleceu os
de acordo com o estilo e a idade dos edifcios: para os monumen- princpios da histria e da teoria da arte, tais corno foram depois continuadas
por H. Wfflin, H. Sedlmayr, P. Frankl, E. Panofsky, R. Krautheimer etc. Um
tos da Antigidade, uma restaurao arqueolgica, que busque sculo depois de sua publicao, so traduzidas para o francs: Questions de
antes de tudo a exatido cientfica e, em caso de reconstituio, style (1893), traduo de S. Muller, prefcio de H. Damisch, Paris, Hazan,
considere apenas a massa e o volume, deixando de certo modo em 1992, e L'Origine de l'art baroque Rome (curso, ed. pstuma, 1907), tra-
duo de H. A. Baatsch e F. Rolland, com urna importante "Apresentao"
branco o tratamento das superfcies e sua ornamentao; para os
de P. Phlppot, Paris, Klincksieck, 1993. Sobre a obra de Regl, ver tambm
monumentos gticos, uma restaurao pitoresca, que se concen- H. Zerner, "Lart", in 1. Le Goff e P. Nora (orgs.), Faire de i'histoire, t. Il,
tre principalmente no esqueleto (ossatura) do edifcio, deixando O. Pcht, "A. Riegl", Burlington Magazine, 1963, traduzido para o francs
a carne (estaturia e decorao) em deteriorao; enfim, para os para servir de introduo Grammaire historique des arts plastiques, Paris,
Klincksieck, 1978, e W Sauerlnder, "A. Riegl und die Entstehung der auto-
monumentos clssicos e barrocos, uma restaurao arquitetnica nomen Kunstgeschichte am Fin de sicle", in R. Bauer (org.) Fin de siecie zur
que leve em conta os edifcios em sua totalidade. Literatur und Kunst der Iahrhundertuiende, Frankfurt/Meno, 1977.
106. No Museu de Artes Decorativas de Viena (1886-1898).
104. Op. cit., p. 15, ss. e 28. 107. Ver introduo, nota 25.

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166 167 tW:'RN/CERES-Caic6""
~.
Blbliotca Seforial
A ALEGORIA DO PATRIMNIO A CONSN;RN,:Ao no l\loNlJMENTO HISTRICO

opsculo uma obra fundadora. Ele se vale de todo o seu saber e histrico, que remete a um saber, o de "ancianidade" percebido
experincia como historiador de arte e conservador de museu para de imediato por todos. Ele pode, pois, dirigir-se sensibilidade
empreender uma anlise crtica da noo de monumento histrico. "de todos, ser vlido para todos, sem exceo". Riegl no men-
Este no abordado apenas sob uma perspectiva profissional, como ciona Ruskin. evidente, porm, que seu valor de ancianidade,
a de Boito, mas tratado como um objeto social e filosfico. S a que suscita uma "ateno reverente" para com os monumentos
investigao do sentido ou dos sentidos atribudos pela sociedade histricos, prximo do valor ruskiniano da reverncia. Seu sig-
ao monumento histrico permite fundar uma prtica. Da uma nificado, contudo, bem diferente. Ruskin milita por uma tica e
dupla abordagem - histrica e interpretativa. busca impor sua concepo moral do monumento a uma sociedade
Riegl o primeiro a apresentar, sem ambigidade, a distino cujas tendncias orientam-se em sentido inverso. Riegl parte, ao
que procurei apontar entre o monumento e o monumento histrico, contrrio, de uma constatao. Um outro olhar sobre a sociedade
cuja origem ele situa, em algumas linhas, na Itlia, no sculo XVI. industrial: historiador, no normativo. O valor de ancianidade do
Tendo sido tambm o primeiro a definir o monumento histrico a monumento histrico no para ele uma promessa, mas uma rea-
partir de valores de que foi investido no curso da histria, faz-Ihes o lidade. A imediatez com a qual esse valor se apresenta a todos, a
inventrio e estabelece uma nomenclatura pertinente. facilidade com que se oferece apropriao das massas (Massen),
Sua anlise estruturada pela oposio de duas categorias a seduo fcil que ela exerce sobre estas deixam entrever que ele
de valores. Uns, ditos "de rememorao" (Ernnerungswerte), ser o valor preponderante do monumento histrico no sculo xx.
so ligados ao passado e se valem da memria. Outros, ditos" de A segunda categoria (Gegenwartswerte) no menos rica,
contemporaneidade" (Gegenwartswerte), pertencem ao presente. nem menos diferenciada que a primeira. Ao lado do transcendente
A essa estrutura dual corresponde a distino, que utilizei larga- "valor artstico", Riegl coloca, com efeito, um valor terreno "de
mente, entre valores para a histria e a histria da arte, de um lado, uso", relativo s condies materiais de utilizao prtica dos monu-
e valores artsticos, de outro'!". Mas Riegl no parou a. Entre os mentos. Consubstancial ao monumento sem qualificao, segundo
valores de rememorao, tambm descreveu, e logo inscreveu, um Riegl, esse valor de uso igualmente inerente a todos os monumentos
I' '"
novo valor, que v surgir na segunda metade do sculo XIX e que histricos, quer tenham conservado seu papel memorial original e
chama de "anciandade", Esta diz respeito idade do monumento suas funes antigas, quer tenham recebido novos usos, mesmo
e s marcas que o tempo no pra de lhe imprimir: assim se evoca, museogrficos. A ausncia de valor de uso o critrio que distingue
por meio de um sentimento "vagamente esttico", a transitoriedade do monumento histrico tanto as runas arqueolgicas, cujo valor
das criaes humanas cujo fim a inelutvel degradao, que no essencialmente histrico, quanto a runa, cujo interesse reside
entanto constitui a nossa nica certeza. Diferentemente do valor fundamentalmente na ancianidade. Quanto ao valor artstico, Riegl
108. Um esquema pode ajudar o leitor a se orientar entre as diferentes categorias o decompe em duas categorias. Um deles, o dito "valor artstico
de valores. relativo", refere-se parte das obras artsticas antigas que continuou
Valores de rememorao (ligados ao passado): acessvel sensibilidade moderna. O outro, chamado de "valor de
- para a rnemria (monumento);
novidade" (Neuheitswert), diz respeito aparncia fresca e intac-
- para a histria e a histria da arte (monumento histrico);
- de ancianidade (monumento histrico). ta dessas obras. Ela "deriva de uma atitude milenar, que atribui
Valores de contemporaneidade: ao novo uma incontestvel superioridade sobre o velho (...). Aos
- artstico; olhos da multido, s o que novo e intacto belo:"?". Esse valor
. relativo (monumento histrico);
. de novidade (monumento e monumento histrico); I09. Ou antes a seu "desejo de arte" (Kunstwollen). Sobre esse conceito, ver P.
- de uso (monumento e monumento histrico). Philippot, op. cit., nota 105, p. 167.

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A ALEGORIA DO PATRIMNIO A CONSAGRAO DO l\IONUMENTO HISTRICO

torna-se ainda mais interessante ao se considerar que, apesar da antecipar, na mesma escala societal, mas em seu campo memorial
universalidade que Riegl lhe atribui, certamente com razo, ele especfico, as anlises de O mal-estar na civilizao, o pequeno
nunca tinha sido evidenciado, nem claramente apontado antes. livro escrito vinte anos depois por seu contemporneo vienense
A anlise de Riegl revela, pois, as exigncias simultneas Sigmund Freud. Riegl com certeza no foi entendido assim na
e contraditrias dos valores de que o monumento histrico foi poca, nem mais tarde, alis. Mas, como se ver adiante, a partir
cumulado ao longo dos sculos. Com toda a lgica, o valor de an- das pistas sintomticas abertas por ele no Moderne Denkmalkultus
cianidade, ltimo a surgir, exclui o de novidade e ameaa tambm que se pode pensar atualmente em patrimnio histrico.
o valor de uso e o histrico. Mas o valor de uso contraria freqen-
temente o valor artstico relativo e o histrico. Esses conflitos, j A obra de Boito e, de forma mais ampla, a de Riegl mostram
esboados por Boito no domnio da restaurao, manifestam-se que na virada do sculo XIX para o XX a conservao dos monu-
igualmente quando se trata da reutilizao e, de modo mais ge- mentos histricos conquistara o status disciplinar que s uma
ral, do tombamento dos monumentos histricos. Riegl mostra indagao sobre seus conceitos e procedimentos lhe podia conferir.
que eles no so, contudo, insolveis e em verdade dependem de Essa abordagem crtica completava um balizamento do campo
compromissos, negociveis em cada caso particular, em funo espao-temporal dos monumentos histricos que, j em fins da
do estado do monumento e do contexto social e cultural em que dcada de 1860, apresentava, ao menos de modo terico e virtual,
se insere. A anlise axiolgica do historiador vienense funda uma quase os mesmos contornos que atualmente. O campo tipolgico j
concepo no dogmtica e relativista do monumento histrico, inclua a arquitetura menor e a malha urbana. O campo cronolgico
em harmonia com o relativismo que ele introduziu nos estudos continuava limitado, a jusante, pela fronteira da industrializao;
de histria da arte. mas, a montante, seus limites eram continuamente alargados pelo
Der moderne Denkmalkultus no traz, contudo, apenas um trabalho dos arquelogos e palegrafos. As descobertas de Cham-
instrumento crtico ao administrador e ao restaurador. Avaliando pollion permitiam situar e dar uma identidade aos monumentos
I:
,1 o peso semntico do monumento histrico, faz dele um proble- do Egito, cujo enigma fascinara em vo os antiqurios. Em segui-
" ma da sociedade, ponto central de um questionamento sobre o da, foi a vez da Mesopotmia. O templo de Jerusalm tambm
I

devir das sociedades modernas. A instituio a que pertence no deixava o mundo da lenda, entrando no da realidade histrica,
permite a Riegl formulaes por demais precisas e explcitas. Ele o mesmo acontecendo com os remanescentes das civilizaes
no pode, sobretudo, afirmar que, na sociedade em transio em proto-helnicas. O campo de difuso tornara-se mundial. Por um
que vive, o valor de ancianidade tende a ocupar o espao social lado - em geral poca da expanso colonial (ndia, Indochina,
que era tradicionalmente ocupado pela religio. Tal , porm, o Amrica Latina) -, a arqueologia e a etnografia ocidental anexavam
sentido que tem a palavra "culto" no ttulo de sua obra. os monumentos de civilizaes longnquas que no pertenciam
Por que as aparncias enganadoras estticas do valor de an- Antigidade mediterrnea. Por outro, o conceito de monumento
cianidade!"? Por que esse extraordinrio e crescente fervor em histrico e sua institucionalizao estabeleciam-se fora do campo
torno dos monumentos antigos? Para o leitor atual, Riegl'!' parece europeu ou dos territrios sob seu domnio.
No devemos, no entanto, exagerar no alcance de determina-
110. Ibd., p. 96. das idias e experincias precursoras, mas pontuais, que surgiram
111. F. Choay, "Riegl, Freud et les monuments historiques: pour une approche no perodo de consagrao do monumento histrico: elas no afeta-
socitale de Ia prservation" fedo orig. p. 228], World Art, Acts o] the XXV
ram profundamente prticas conservadoras que continuaram mais
International Congress of the History of Art, ed. por r. Lavin, v. III, The
Pennsylvania State University Press, 1989. ou menos idnticas durante cerca de um sculo, entre 1860 e 1960.

170 171
A ALEGORIA DO PATRIMNIO A COl\'SAGR>\O DO :vl()NUMENT() I IISTl")]{!(:()

Com efeito, at a dcada de 1960 o trabalho de conservao S em 1931 se realiza a primeira conferncia internacional
dos monumentos histricos visa essencialmente aos grandes edif- relativa aos monumentos histricos, em Atenas. Dois anos antes
cios religiosos e civis (excluindo-se os do sculo XIX). Na maioria dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM),
dos casos, a restaurao continua fiel aos princpios de Viollet-le- que, na mesma cidade, elaborou a clebre Carta de Atenas, ela
Duc, exceto nos casos em que, sob a influncia de certos arque- deu ensejo a que se levantasse a questo das relaes entre os
logos, ela se volta para uma reconstituio cujo modelo a prtica do monumentos antigos e a cidade, e que se desenvolvessem a esse
desenho dos arquitetos e dos antiqurios j sugerira, desde o incio, respeito idias e propostas discordantes, porm mais avanadas!"
para as antigidades clssicas. O valor de ancianidade no conquista que as da Carta. Mas essas concepes inovadoras acabaram pouco
as multides com a rapidez imaginada por Riegl. verdade que a difundidas. Foram formuladas margem do congresso, que, em
grande viagem de passeio democratiza-se na Inglaterra. A se cria princpio, deveria tratar dos problemas tcnicos da conservao e
a primeira agncia de turismo, Cook's, que explora principalmente da restaurao e cujos participantes eram todos europeus. Quanto
os stios legendrios do Egito, onde, em 1907, Pierre Loti'F se organizao reclamada por Ruskin em seu artigo de 1854 sobre
queixa da implantao intempestiva de hotis nas vizinhanas das o Crystal Palace, foi criada sob outra forma, exatamente cem
pirmides e do nmero excessivo de turistas. Mas tudo relativo anos mais tarde, em 19 de dezembro de 1954, com a Conveno
e trata-se de monumentos histricos excepcionais. Na Europa, Cultural Europia do Conselho da Europa.
apesar das campanhas nacionais desenvolvidas desde o comeo do Enfim, a crtica e o relativismo de Riegl esto longe de orientar
sculo por associaes privadas, como o Touring Club, na Frana, as prticas do patrimnio histrico e principalmente sua pedagogia,
e a despeito da criao, pelo Estado italiano, na dcada de 1930, de que constituiriam a base.
de uma rede de explorao das obras de arte antiga em um pas N a afirmao serena de suas convices intelectuais e de sua
que fora a terra natal do monumento histrico, o "turismo cultu- viso da histria universal, assim como na magnitude de suas rea-
ral" ainda no recebeu seu nome; ele continua sendo o privilgio lizaes, o longo perodo de consagrao do monumento histrico
I
'l ,'" elitista de um meio social limitado, rico e culto, que rene aqueles continha apenas em germe as orientaes e os questionamentos
que mais tarde sero chamados "os herdeiros"!':'. Amundializao que caracterizam o perodo atual.
I

institucional do monumento histrico, to desejada por Ruskin e


Morris, praticamente no avana. Embora - notvel exceo -
conceito e prtica se introduzam no Japo a partir da dcada de
1870, no contexto da abertura Meiji s instituies e aos valores
da Europa'!", eles s adquirem direito de cidadania nos Estados
Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, com a criao do
National Trust for Historic Preseruation">.

112. P. Loti, La Mart de Philae, Paris, Calmann-Lvy, 1909, reed. Paris, Pardes,
1990.
116. Essa conferncia, dita de Atenas, foi organizada pela Comisso Internacional
113. P. Bourdieu e l-C. Passeron, Les Hritiers, Paris, Minuit, 1964.
para a Cooperao Intelectual da SDN, com a cooperao do Conselho In-
114. Ver nota 4, p. 62. ternacional dos Museus (ICOM). Suas atas foram publicadas em 1933. Nelas
115. Organizao privada fundada em 1949 seguindo o modelo do National Trust se destacam, especialmente, trs comunicaes notveis, de V. Horta, G.
britnico. Giovannoni e G. Nicodemi.

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