Someck, Nadia - Preservando o Patrimônio Histórico - Manual para Gestores

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Nadia Somekh ORGANIZADORA

PRESERVANDO O PATRIMNIO HISTRICO: um manual para gestores municipais


PRESERVANDO
O PATRIMNIO
HISTRICO:
um manual para gestores municipais
Nadia Somekh ORGANIZADORA

PRESERVANDO
O PATRIMNIO
HISTRICO:
um manual para gestores municipais
FICHA TCNICA

Organizao Contribuies (Boxes)

Nadia Somekh Denise Anotnucci


Eliana Rosa de Queiroz Barbosa
Autores
Jos Geraldo Simes Junior
Vanessa Fernandes Correa Lorreine Agostinho Claudio
Mauro Srgio Procpio Calliari Nadia Somekh

GRUPO DE PESQUISA PROJETOS URBANOS, PATRIMNIO HISTRICO E INCLUSO SOCIAL

Professores

Anglica Aparecida Tanus Benatti Alvim


Eunice Helena Sguizzardi Abascal
Luiz Guilherme Rivera de Castro

Pesquisadores (Doutorado, Mestrado e Graduao)

Bruna Beatriz Nascimento Fregonezi


Carolina Tavares Henriques do Carmo e Silva
Cassia Calastri Nobre
Christiane Fillet Bellato
Daniela Eigenheer Gustavo Gazzi Zulian Nathalia Martins Carvalho
Dulcilei de Souza Cipriano Isabela Meiwa Roberta Laredo
Fernanda Amorim Militelli Larissa Prudencio Bonattoian Rodrigo Ramos e Costa
Fernanda Ferreira Sawatani Larissa Ferrer Branco Paula de Moraes Lopes
Guilherme Gagliotti Marina Montera Tatiane Waileman
Thiago Pires Conti
Vitria Ribeiro Ramos dos Santos

FOMENTOS

Mackpesquisa - Fundo Mackenzie de Pesquisa


DPH - Departamento do Patrimnio Histrico PMSP

PROJETO GRFICO E EDITORAO

Sempreviva Produo e Contedo

Guiomar Prates Fernando Rizzotto Roney Rodrigues


Coordenadora de Produo Editor de Arte Jornalista

CAU/SP

Daniele Moraes Epaminondas Pereira Neto


Assessora de Comunicao Tcnico de Comunicao

Fotos da capa e quarta capa por Cristiano Mascaro

ISBN: 978-85-68867-00-6
Ind.
I.
As transformaes da cidade contempornea_ 13
Projeto Cramique, Maastricht, Holanda (1987-1998)_ 15

II.
Cartas patrimoniais_ 23
Hafencity, Hamburgo, Alemanha_ 24

III.
Patrimnio e desenvolvimento_ 31
LONDRES: a delicada convivncia entre a verticalizao e a
preservao do patrimnio arquitetnico_ 35
PARIS Bercy: Patrimnio Histrico, Sustentabilidade e
Desenvolvimento Urbano_ 38

IV. Democratizao do patrimnio_ 43

V. Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_ 49


Passo 1: Conhecer os bens relevantes para o patrimnio da cidade _ 49
Estratgias de preservao_ 50
Passo 2: Insero urbanstica _ 52
O caso de Lisboa_ 53
Passo 3: Valorizao econmica e social _ 55
O caso do Pelourinho_ 57
Passo 4: Agilidade de procedimentos_ 59
Passo 5: Valorizao e capacitao do quadro tcnico_ 61
Apresentao

Preservar o patrimnio histrico e arquitetnico manter


viva a memria de uma cidade, de um pas. Um povo que no
preserva sua histria dificilmente conseguir planejar o seu fu-
turo. O patrimnio construdo e preservado um ativo urbano
de fundamental importncia para as futuras geraes.
Arquitetos e urbanistas so os profissionais que possuem
atribuio legal para fazer frente tarefa de preservar a mem-
ria de nossas cidades por meio da conservao e restaurao
das edificaes de interesse histrico, arquitetnico, artstico e
turstico.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo, autarquia fede-
ral criada pela lei federal 12.378/2010, vem consolidar e dar a
roupagem legal a essa responsabilidade, que j era conferida
a ns, arquitetos e urbanistas, desde a criao do Instituto de
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), em 1937.
O CAU/SP busca apoiar os rgos de defesa do patri-
mnio nas esferas local, regional e estadual, a constituio de
grupos de trabalho, editais de patrocnios a entidades/institui-
es que promovam seminrios, palestras e discusses sobre
o tema, reforando, assim, o papel dos arquitetos e urbanistas
no processo de preservao.
O manual que voc tem em mos mais uma ferramen-
ta para tornar esse compromisso realidade, contribuindo de
maneira concreta e primorosa com a misso fundamental de
guardar a memria e a identidade de nossas cidades.

Afonso Celso Bueno Monteiro


Presidente do CAU/SP
Introduo

A preservao do Patrimnio Histrico uma questo ur-


bana. A cidade contempornea se pauta pela perda de vnculos
e destruio da memria com grande rapidez. Resgatar nossas
origens significa resistir mantendo nossas identidades mlti-
plas. Saber preservar e identificar a histria das cidades um
esforo coletivo que depende da participao dos cidados,
mas deve ser coordenada pelo poder pblico.
Este manual foi desenvolvido para fornecer subsdios s
prefeituras e seus arquitetos e tcnicos que estejam elaboran-
do ou reformulando suas polticas de preservao do patrim-
nio histrico, inseridas na Poltica Urbana.
O texto produto das reflexes do grupo Metrpole
Contempornea, Projetos Urbanos, Patrimnio e Incluso: Um
Manual de Experincias, da Universidade Presbiteriana Ma-
ckenzie. Durante um ano, 25 pesquisadores se encontraram
semanalmente para discutir os conceitos e experincias que
envolvem a preservao patrimonial.
Vrios estudos de caso, feitos in loco nas cidades de Ham-
burgo, Lisboa, Paris, Maastricht e Londres pelos membros
do grupo trazem um relato de experincias que referncia
quando se trata da insero da preservao do patrimnio em
projetos urbanos. Apesar das condies econmicas, sociais e
polticas diferenciadas, entendemos que elementos de replica-
bilidade podem servir a nossa realidade.
Alm das reunies e pesquisas, ao longo de 2013, o grupo
de estudos e a Diretoria do Patrimnio Histrico da Prefeitura
de So Paulo promoveram dois seminrios e uma palestra para
discutir a preservao do patrimnio histrico no contexto do
planejamento urbano da cidade. A oficina Projetos Urbanos,
Patrimnio Histrico e Plano Diretor: princpios, aes e ins-
trumentos reuniu 95 profissionais em maio, durante trs dias.
Em setembro foi a vez do seminrio Paisagem Cultural: Pre-
servao e Transformao, do qual participaram 123 pessoas,
durante dois dias. Por fim, em dezembro, foi realizada a pales-
tra Contribuio formulao da poltica de patrimnio da
cidade de So Paulo, proferida pelo professor Carlos Lemos,
com pblico de 67 pessoas, preocupadas com a questo do Pa-
trimnio e insero urbanstica.
Os participantes dos seminrios - arquitetos, urbanistas,
gestores pblicos de grandes cidades, estudiosos brasileiros
e estrangeiros e equipes dos rgos de preservao - produ-
ziram, em oficinas e debates, uma grande quantidade de re-
flexes e conhecimento. Esse material precioso aparece sis-
tematizado neste manual, que esperamos contribuir na (re)
formulao de Polticas Urbanas, baseado nas preexistncias
de importncia coletiva e cidad.

Nadia Somekh
I.
I.
As transformaes da
cidade contempornea

Uma das principais caractersticas da sociedade contem-


pornea a velocidade de suas transformaes.
Esse novo cenrio traz um desafio para as cidades: a ne-
cessidade de conciliar os novos hbitos de sua populao, em
constante mutao, ocupao territorial, ou seja, s solues
de habitao, de localizao de equipamentos pblicos, de mo-
bilidade.1
Essas mudanas so um reflexo da insero das cidades
na economia global, o que aumentou o nmero de atores (em-
presas, instituies pblicas, associaes) envolvidos na con-
duo das polticas pblicas, aumentando sua complexidade.
Com a multiplicao das demandas sociais, no lugar de
solues nicas para a cidade, deve-se considerar a segmenta-
o cada vez maior de interesses. cada vez mais difcil ima-
ginar que uma ao pblica v atingir a aspirao de todos em
um nico objetivo comum.

1 (Asher, 2012)

_As transformaes da cidade contempornea | 13


H que se pensar em sistemas mais geis de governana
urbana, em que os cidados so chamados a participar das de-
cises para aes de pequena ou grande escala.
Alm de todos os desafios impostos pela inconstncia e a
fragmentao das demandas sociais, vivemos um divrcio en-
tre poltica e poder. Um levantamento recente mostra que 500
empresas respondem por metade do PIB mundial2. Algumas
chegam a ser maiores que pases e conseguem muitas vezes
colocar os seus interesses acima do bem comum das naes.
Para fazer frente a essas transformaes, um novo tipo
de planejamento urbano necessrio. Conceitos rgidos do
lugar flexibilidade, anlise de cenrios alternativos e in-
cluso da sociedade na formulao das polticas.
Nesse contexto novo, o patrimnio histrico precisa ser
integrado ao planejamento da cidade, sob pena de ficar deri-
va em um mar de interesses puramente econmicos.
Para Manuel Castells, um dos mais importantes tericos
da contemporaneidade, no momento histrico em que vive-
mos, caracterizado pela desestruturao das organizaes, das
instituies, dos movimentos sociais e das expresses cultu-
rais, a identidade est se tornando a principal, e s vezes ni-
ca, fonte de significado.
Mas, ao mesmo tempo em que as pessoas anseiam por se
sentir parte de algo maior, as dinmicas sociais contempor-
neas, com suas relaes virtuais em comunidades eletrnicas,
como no Facebook, tornam as identidades cada vez mais frag-
mentadas e difceis de compartilhar.
Se isso ocorre, a valorizao do patrimnio histrico, e
dos significados nele incorporados, passa a ter um papel ainda
mais relevante na busca de uma identidade comum.

2 (Pochmann, 2011)

14 | As transformaes da cidade contempornea_


Escolhido com participao popular, e no apenas atra-
vs de um saber tcnico, o patrimnio ganha legitimidade. E
justamente a legitimidade social que poder fazer frente s
avassaladoras dinmicas do mercado, canalizando a fora de-
las para a produo e conservao dos valores simblicos e de
identidade que contam a histria da cidade.

PROJETO CRAMIQUE, MAASTRICHT,


HOLANDA (1987-1998)

A cidade de Maastricht medieval, murada e compacta, come-


ou a ganhar traos industriais a partir de 1827. Em 1850, foi
fundada a Socit Cramique (uma indstria cermica) em
uma faixa de terra de 23 hectares nas margens do Rio Maas.
Aps quase 120 anos, esta rea j fazia parte do permetro ur-
bano, mas se configurava com uma grande ilha murada sem
urbanizao.
Com a progressiva desativao da fbrica, em 1987, o ter-
reno foi oferecido prefeitura, que viu uma grande oportuni-
dade de controlar o desenvolvimento daquela parte da cidade
por meio de um desenho urbano e arquitetnico de qualidade
que abrigasse usos diversos.
A administrao municipal no podia arcar sozinha com
o investimento, por isso formou-se uma Parceria Pblico-Pri-
vada (PPP) entre a prefeitura e o maior fundo de penso da
Holanda.
O principal objetivo do plano de urbanizao era reconci-
liar aquele territrio com as diferentes caractersticas de cada
parte do entorno, lig-lo ao centro histrico atravs de pontes
sobre o rio Maas e conectar o virio interrompido garantindo
uma expanso harmnica da cidade.

_As transformaes da cidade contempornea | 15


Arquitetos locais de destaque, como Arn Meijs e Bob van
Reeth, e renomados arquitetos estrangeiros, entre eles lvaro
Siza e Aldo Rossi, foram convidados para projetar os edifcios.
Aps estudos de demanda de mercado e potencial do ter-
reno, o resultado foi a construo de 1.600 unidades residen-
ciais, 70.000 m de terrenos para escritrios e instituies, 5.000
m para lojas, restaurantes e servios, 20.000 m para hotis,
20.000 m de funes culturais e/ou pblicas e 4.400 vagas de
estacionamento subterrneo.
O desenho urbano tinha como proposta recriar as situa-
es presentes na cidade histrica e que fazem parte da cultura
dos cidados de Maastricht. A cidade antiga se caracteriza por
trs grandes praas cheias de lojas, restaurantes e edifcios p-
blicos que servem de pontos de encontro dos moradores.

reas internas das quadras na cidade antiga e em


Cramique. Fotografia: Lorreine Cludio, 2013.

16 | As transformaes da cidade contempornea_


Foram estabelecidas uma srie de normas bastante espe-
cficas, garantindo a unidade visual do novo bairro com crit-
rios e parmetros baseados na tradio construtiva e tipolgica
holandesa.
O tijolo cermico foi empregado em quase todos os edi-
fcios novos. O sistema construtivo usado foi o padro para as
construes holandesas. caracterizado por grandes painis
de 6,30 x 11 metros, tanto nos quarteires como nos edifcios.
Nas quadras habitacionais verifica-se grande influncia
de conceitos modernistas, com a liberao do solo para uso
coletivo, que se reflete no mximo de permeabilidade e trans-
parncia visual nos trreos dos edifcios, como sonharam os
modernos, mas com a mistura de usos e edifcios de uso misto.
No decorrer do projeto foi escolhida uma srie de ele-
mentos histricos a serem preservados com novas funes:
uma frao dos galpes industriais Wiebenga, trechos do anti-
go muro que faz divisa com o bairro de Akerpoot e alguns frag-
mentos da antiga fortificao da cidade medieval, demolida em
1870 e descobertos nas escavaes para o novo projeto urba-
no. Alm disso, foram aproveitados a Villa Jaunez (antiga resi-
dncia do diretor da fbrica) e o Biscuit Working Building,
edifcio onde eram feitas as pinturas e apliques das peas de
porcelana antes da queima. Bem pouco para uma rea de 60
hectares da antiga fbrica, no restando quase nada da mem-
ria industrial.
Para satisfazer ao plano diretor, era necessrio trazer um
equipamento cultural para a borda sul do projeto, que servisse
como ncora dentro do plano urbano. Com o projeto de Aldo
Rossi, o novo museu aproveitou uma pequena parte do que foi
possvel ser preservado do grande conjunto fabril Wiebenga,
agora destinado a servir de anexo ao novo museu com sua pe-
culiar torre em abbada, bem nas margens do rio.

_As transformaes da cidade contempornea | 17


Na borda sul, os edifcios de maior gabarito projetados
por Wiel Ariets e de Arn Meijs compem bem com os edifcios
dos anos 1980 de Randwyck, bairro onde se encontram impor-
tantes equipamentos regionais, como a sede do Governo Pro-
vincial, o Centro de Exposies e Congressos de Maastricht,
alm do prprio Hospital Universitrio de Maastricht.
A Avenida Cramique, estruturadora do virio, tem no
final de seu eixo um edifcio vertical, smbolo do novo bair-
ro, projetado por lvaro Siza. neste novo eixo monumental,
quase um boulevard, que esto locadas as circus, ou quadras
perimetrais, que contm os principais edifcios pblicos e pri-
vados.
A reconexo com os bairros vizinhos no foi apenas vi-
ria, mas resolvida pela arquitetura e paisagismo de forma dife-
rente em cada situao do entorno. As escalas da arquitetura
vo aumentando medida que a via vai se alargando, criando
uma agradvel rea de mudana, reforada pela continuao
do mesmo piso de pedra, e o uso de revestimentos nos mes-
mos tons, passando uma sensao de continuidade.
Na borda Leste, voltada para o rio Maas, recuperou-se a
vista para o rio atravs do grande parque Charles Eyk, com
bancos, playground e uma rea bastante usada como rea de
lazer nos fins de semana e de agradvel circulao para o dia
a dia. Ainda na margem do rio, se configura outro importante
espao pblico junto ao Museu Bonnefanten, de Aldo Rossi.
praticamente a nica rea onde se encontra preservada uma
parte da antiga configurao fabril.
Na borda de Akerport, tambm a Leste, foram preserva-
das partes do antigo muro que, ora perfurado, ora rebaixado,
guardam os vestgios de sua antiga origem fabril. Atravs dele
se acessa dois grandes jardins triangulares semipblicos aber-
tos para pedestres e bicicletas.

18 | As transformaes da cidade contempornea_


Vista do Parque Charles Eyk, com conjunto residencial, e Museu
Bonnefanten de Aldo Rossi ao fundo. / Vista do antigo muro da fbrica,
mostrando as antigas casas do entorno e o jardim triangular criado por
elas e os novos edifcios. Fotografia: Lorreine Cludio, 2013.
O bairro de Cramique se consolidou rapidamente. A
implantao de importantes empresas criou um polo de ser-
vios voltados ao terceiro setor, que hoje referncia no s
na Holanda, alcanando uma posio de liderana no mapa da
Europa.
Mesmo no se destinando prioritariamente populao
de renda mais baixa (embora no exista grande desigualdade
social na Holanda), o plano valoriza os espaos pblicos para
convivncia, preserva o patrimnio histrico e moderniza a
rea com a criao de novas formas de emprego e renda, guia-
dos por uma gesto compartilhada entre os agentes pblico e
privado. O acesso aos espaos e equipamentos pblicos de C-
ramique franqueado aos moradores dos bairros fronteirios,
sem qualquer tipo de controle, que frequentam estes espaos
ou o usam para acessar o centro histrico.
A qualidade do projeto urbano permitiu atender ao esco-
po inicial de valorizao do rio Maas, de respeito e continuida-
de do projeto com o entorno e de conexo da nova rea sem
perder sua ligao simblica e fsica com o centro histrico.
Como consequncia, obteve-se a qualificao e valorizao de
Cramique e do prprio centro.

20 | As transformaes da cidade contempornea_


II.
II.
Cartas patrimoniais

Cartas Patrimoniais so documentos elaborados por or-


ganizaes nacionais internacionais, que renem as principais
diretrizes e recomendaes para conservao e salvaguarda do
patrimnio mundial.
A primeira carta foi redigida em 1931 (Carta de Atenas)
e, atualmente, h mais de 40 delas. Nas sucessivas cartas, os
conceitos de preservao foram evoluindo. Partindo dos Monu-
mentos, considerados inicialmente como objetos isolados, pas-
sando pelos Stios Histricos, Centros Histricos e, atualmente,
Paisagem Urbana Histrica, a definio do que deve e como
deve ser preservado acompanhou a evoluo das sociedades
que os produziram e os utilizaram.
De todos os documentos, a Carta de Veneza (1964) o mais
citado e referenciado por ampliar a noo de monumento histri-
co de uma criao arquitetnica isolada para um stio urbano e ru-
ral e tambm por estabelecer os critrios que devem ser observa-
dos nas conservaes e restauraes de monumentos histricos.
A partir da Conveno de Paris (1972) so definidos os
conceitos de Patrimnio Cultural e Patrimnio Natural e as
principais recomendaes para sua preservao, que amplia a
abrangncia das reas de proteo.

_Cartas patrimoniais | 23
Com a Declarao e o Manifesto de Amsterd, ambos de
1975, fica estabelecido que a conservao do patrimnio arqui-
tetnico deve constituir um dos objetivos maiores do planeja-
mento das reas urbanas e do planejamento fsico-territorial.
Para isso, cria-se a Conservao Integrada, mecanismo que
garante a permanncia dos habitantes de condies modestas
nestes centros.

HAFENCITY, HAMBURGO, ALEMANHA

A cidade alem de Hamburgo, a segunda maior do pas, tem


sido radicalmente transformada ao longo dos dois ltimos s-
culos, tanto por meio de decises do poder pblico, como por
um incndio em 1842 e bombardeios nas duas grandes guerras.
As torres das cinco igrejas principais e da prefeitura so ainda
os pontos arquitetnicos que definem a silhueta da cidade. O
rgo do patrimnio histrico local listou 17.900 edifcios como
monumentos, alm de 2.100 conjuntos urbanos relevantes
para preservao. Apenas 1.600, no entanto, foram tombados.
Hoje, Hamburgo, importante centro industrial com um
dos maiores portos do mundo, abriga dois grandes projetos
urbanos: Hafencity e IBA (International Building Exhibition).
Ambos representam o desafio de muitas cidades europeias
frente ao futuro: como preservar uma urbanidade tipicamente
europeia e a histria e atualizar os usos da cidade?
No incio de 1990, tornou-se evidente que uma rea de
porto na costa nordeste do rio Elba, ao sul da zona de arma-
zns, se tornaria obsoleta para usos porturios modernos. Em
maio de 1997, o prefeito de Hamburgo anunciou o plano para
o retorno da cidade ao rio, transformando a rea separada do
centro da cidade em um novo bairro, HafenCity.

24 | Cartas patrimoniais_
Vista de HafenCity. Destaque para a Sala de concertos Herzog & de
Meuron. / Vista panormica de Hamburgo a partir da torre da Catedral
de St. Mary. Fotografias: Denise Antonucci, julho, 2013.
Em 1999, um concurso internacional de arquitetura foi or-
ganizado. A ideia era criar um bairro que combinasse trabalho
e moradia para grupos sociais de diferentes nveis de renda.
A equipe vencedora, o grupo holands/alemo Kees Chris-
tiaanse/ASTOC, conseguiu em sua proposta apresentar: boas
ligaes entre a nova HafenCity, o complexo de edifcios do
Speicherstadt e o centro histrico da cidade de Hamburgo;
uma ampla gama de tipologias de bairros contemporneos; e a
diviso da rea em oito distritos urbanos de uso misto.
Um plano diretor elaborado pela prefeitura determinou
regras quanto ao tipo e intensidade de uso para toda a rea, e
detalhou o desenvolvimento da infraestrutura para os vrios
distritos. A construo em lotes individuais pelas incorporado-
ras tambm foi baseada em concursos de arquitetura e urba-
nismo (Harms, s/data, s/pag.).
No incio de 2000, o plano diretor foi aprovado e as obras
comearam. Em 2008, a primeira fase foi concluda, com edi-
fcios residenciais e de escritrios. A segunda fase est em
construo e o centro comercial e cultural se encontra em fase
avanada de planejamento.
Uma srie de vias de acesso pblico, vrias praas na bei-
ra do rio e canais, e pontes para pedestres, ligando o bairro
ao centro da cidade, foram construdas. Alm disso, uma nova
sala de concertos (projeto de Herzog & de Meuron), usando um
antigo armazm, e um museu martimo, tambm em armazns
antigos, esto em execuo.

26 | Cartas patrimoniais_
Conjunto gtico-expressionista
Chilehaus Arquiteto Fritz Schumaker
/ Museu Martimo. Fotografias: Denise
Antonucci, julho, 2013.
Novos edifcios e espaos pblicos. / Paredes recuperadas do cais.
Fotografias: Denise Antonucci, julho, 2013.
III.
III.
Patrimnio e desenvolvimento

A preocupao com o patrimnio no significa uma opo-


sio ao desenvolvimento das cidades. Ao contrrio, casos de
preservao ao redor do mundo deixam clara a relao direta
entre preservao e desenvolvimento econmico.
Um estudo recente na cidade de Zaanstad, ligada Idade
de Ouro Holandesa no sculo 17, mostrou que os imveis com
significado histrico (no necessariamente tombados) valem
26,9% mais do que os imveis comuns. Alm disso, compra-
dores esto dispostos a pagar 0,28% a mais em um imvel para
cada edifcio histrico ao seu redor em um raio de 50 metros.
J os imveis vendidos em reas protegidas pelo patrimnio
histrico valem 26,4% a mais.3
Tanto os efeitos diretos como indiretos demonstrados na
cidade de Zaanstad mostram o valor social associado aos bens
histricos e a herana cultural que eles representam. Outro
caso que mostra bem essa relao o das transformaes im-
plantadas em Barcelona nos anos 1990.
Atravs de um projeto urbano com intervenes pontuais
de grande impacto, fazendo da identidade da cidade uma mar-

3 (Lazrak, Nijkamp, Rietveld, & Rouwendal, 2011)

_Patrimnio e desenvolvimento | 31
ca que a valoriza, Barcelona se tornou o terceiro destino mais
visitado da Europa, atrs apenas de Paris e Londres. Uma das
estratgias mais importante desse projeto foi a valorizao do
patrimnio cultural da capital catal, desde as pinturas de Mir
e Picasso aos edifcios de Gaud. As intervenes tiveram ainda
o cuidado de manter o traado urbano original como uma das
qualidades histricas locais.
Isso se d porque o valor simblico atribudo a deter-
minados bens se transforma tambm em valor econmico ao
fortalecer a imagem da cidade, demonstrando sua vitalidade e
atraindo novos investimentos e negcios.
Por isso, a insero da preservao em projetos urbanos
que integram diferentes frentes (melhoramentos virios, infra-
estrutura de transportes coletivos, criao de reas pblicas,
equipamentos de sade, educao e cultura) uma maneira
promover sua articulao com a poltica urbana e viabilizar seu
financiamento.
Outra maneira de promover a articulao entre conserva-
o e planejamento urbano criar mecanismos de insero da
preservao nos planos diretores, leis de diretrizes oramen-
trias, planos plurianuais etc., alm da integrao horizontal
entre as esferas de preservao e de planejamento da cidade.
Em seu ltimo plano diretor, em 2002, So Paulo fez uma
experincia de articulao entre planejamento urbano e pre-
servao com a instituio das Zepecs (Zonas Especiais de Pro-
teo Cultural) no zoneamento da cidade. So, ao todo, 2.760
zonas que se referem tanto aos bens imveis, que j eram tom-
bados no municpio, quanto aos escolhidos pela populao por
meio das subprefeituras da cidade.
Um dos instrumentos de poltica urbana aplicveis s Ze-
pecs a transferncia do potencial construtivo, o que ocorreu
at o momento entre 50 imveis, totalizando 95 mil m. Isso

32 | Patrimnio e desenvolvimento_
equivale a 40% de toda a outorga de potencial construtivo do
municpio. Especialistas avaliam que a poltica foi relativamen-
te bem sucedida no sentido de fornecer uma contrapartida fi-
nanceira aos proprietrios que tiveram seus imveis tombados.
Mas, por no haver nenhuma regulamentao que vinculasse o
dinheiro obtido conservao do imvel em questo ou mesmo
de outros imveis, via destinao em fundo pblico, a poltica
falhou no que se refere proteo do patrimnio, necessitando
de uma regulamentao que d conta dessa deficincia.
Em Paranapiacaba, antiga vila ferroviria da companhia
inglesa RFFSA, uma poltica de preservao com base no zo-
neamento tambm foi implantada. Como a vila, que pertence
ao municpio de Santo Andr (regio metropolitana de So
Paulo), que alm de ser uma rea de proteo de mananciais,
tombada nos nveis municipal, estadual e federal, o primeiro
desafio foi promover um novo arranjo institucional que desse
conta de articular todas essas esferas e ainda contemplar parti-
cipao popular efetiva.4
A maneira encontrada para isso foi a criao de comis-
ses com representantes de todas as esferas e composta em
50% por membros da comunidade local. As normas para a
conservao dos imveis em cada uma das quatro subzonas,
como cores de pintura, ausncia de cobertura para carros e
usos compatveis com a preservao, tambm foram formula-
das nessas comisses, gerando a ZEIPP (Zona Especial de Inte-
resse do Patrimnio de Paranapiacaba).5
A base da poltica desenvolvida para Paranapiacaba foi o
conceito de paisagem urbana histrica, recentemente adotado
pelo Iphan a partir das recomendaes da Unesco.

4 (Figueiredo, 2012)
5 (Figueiredo, 2012)

_Patrimnio e desenvolvimento | 33
Nesse contexto, o tombamento aparece apenas como
mais uma das ferramentas disponveis para a conservao de
bens culturais. H outros meios de promover a conservao e
valorizao de um bem isoladamente. Um deles a chancela,
ou reconhecimento da importncia cultural do bem pelos r-
gos de patrimnio, especialmente quando vinculado ao aces-
so a fundos pblicos de desenvolvimento urbano ou mesmo
fundos especficos para a preservao.
Mas, mesmo quando se decide que, para determinado
bem, o tombamento a ferramenta mais adequada, as pres-
cries para sua manuteno podem permitir transformaes
que atualizem o uso do imvel (retrofit) dentro de critrios co-
erentes com sua conservao.
Enquanto a arquitetura imutvel, o programa [ou o
conjunto de funes do edifcio] varia ao longo do tempo, com
as mudanas sociais, com o progresso, com os novos usos
etc..6Pode-se dizer que, estando os programas satisfeitos, o
edifcio est sendo bem conservado. Demonstrao disso
que nas cidades os exemplares mais bem preservados do pa-
trimnio ambiental urbano so as igrejas e os conventos, cujos
programas pouco mudaram com o decorrer dos anos. Por ou-
tro lado, as casas vm sofrendo mudanas, deixando para trs
a simplicidade da poca bandeirista rumo a arranjos novos,
como a presena de um banheiro para cada morador.7
Mas, qualquer que seja a estratgia adotada, ou a combi-
nao delas, uma poltica de preservao eficaz precisa fechar
um ciclo completo. Esse ciclo comea com o levantamento e
estudo de bens a serem preservados, seguido pela determi-

6 (Lemos, Da Taipa ao Concreto: crnicas e ensaios sobre a memria da arqui-


tetura e do urbanismo, 2013)
7 (Lemos, Da Taipa ao Concreto: crnicas e ensaios sobre a memria da arqui-
tetura e do urbanismo, 2013)

34 | Patrimnio e desenvolvimento_
nao das diretrizes de preservao, sendo completado pelas
estratgias de restaurao ou da conservao e o financiamen-
to delas.
Um tombamento, isoladamente, no garante a perma-
nncia dos imveis. Basta ver a situao de degradao em que
muitos bens tombados se encontram.

LONDRES: A DELICADA CONVIVNCIA ENTRE A


VERTICALIZAO E A PRESERVAO DO PATRIMNIO
ARQUITETNICO

Desde o incio da Revoluo Industrial, Londres despontou


como uma das maiores aglomeraes urbanas do planeta. Se-
diou todo o processo de acumulao de riqueza decorrente do
processo de produo industrial e de internacionalizao de
mercados.
Recentemente, com a globalizao econmica, Londres
reassumiu essa liderana como capital financeira da Europa e
uma das mais importantes no cenrio mundial, junto com T-
quio e Nova Iorque.
Esse processo global, em termos urbanos, implica tam-
bm em processo de competio entre cidades, que procu-
ram atrair esses fluxos internacionais de capital e de empresas
transnacionais, se constituindo em ns desses fluxos globais. A
arquitetura um dos pilares para a construo dessa imagem
de modernidade. Seus objetos icnicos so as supertorres (tall
buildings, skyscrapers ou high-rise buildings, na terminologia
internacional), que abrigam as sedes das grandes corporaes.
Os ltimos 10 anos registraram uma produo jamais vis-
ta de edifcios com mais de 400 metros de altura, de arquitetura
e design extremamente sofisticados. A maior parte deles est

_Patrimnio e desenvolvimento | 35
na sia, em especial na regio dos Emirados rabes, no Su-
deste Asitico e na China, em cidades como Dubai, Shangai,
Hong Kong e Kuala Lumpur. Para os prximos anos, prev-se
a concluso da torre Nakheel, em Dubai, ultrapassando, pela
primeira vez, os 1000 metros de altura.
Na Europa, esse processo de adequao das principais ci-
dades s necessidades do capitalismo moderno comeou nos
anos 70, com a liberao de algumas reas para essa verticali-
zao. Cada cidade usou uma estratgia diferente: Paris criou
a zona do La Dfense, na periferia leste da cidade; Londres e
Rotterdam criaram as Docklands e Kop Van Zuid, nas antigas
zonas porturias. Barcelona permitiu certa verticalizao em
uma pequena rea histrica. Cada capital europeia procurou
se adequar, criando uma rea onde a altura das construes
poderia romper com os tradicionais 20 a 30 metros dominantes
no desenho urbano dessas cidades histricas.
Desde o incio do milnio, Londres recebeu uma srie de
construes com a inteno de reforar sua imagem de princi-
pal centro europeu da economia global, sediando instituies
financeiras internacionais, empresas de comunicao, infor-
mtica e de tecnologia.
Nessa escala de verticalizao londrina, pode-se citar a
grande roda gigante construda em 1999, a Millenium Wheel
(ou London Eye), que com 135 metros de altura, foi poca, a
maior estrutura deste tipo do mundo, e hoje um dos mais dis-
putados pontos tursticos da cidade. Depois vieram as torres
Gherkin, com 180 metros, e a The Shard, com 310 metros, que,
somadas a dezenas de outras de mesmo porte recentemente
construdas, alteraram completamente a fisionomia da tradi-
cional capital britnica.
Para proteger seus mais de 10 mil bens patrimoniais, a
Grande Londres usa alguns instrumentos auxiliares de valori-

36 | Patrimnio e desenvolvimento_
Skyline com a insero do edifcio de 30St. Mary Axe Foster + Partners.
Fotografia: Denise Antonucci / London Bridge e o edifcio do City Hall
Foster + Partners. Fotografia: Nadia Somekh

zao da paisagem urbana. O principal deles o gerenciamen-


to de vistas atravs de cones visuais: pode ser estabelecido em
relao a edifcios e monumentos especficos e em relao a
vistas panormicas. Esses instrumentos so previstos no pla-
no diretor de Londres (Great London Plan, policy 7.12) e so
monitorados pelo prefeito por uma poltica especfica, a LVMF
(London View Mangement Framework).
Alm desse instrumento, o patrimnio londrino, exce-
o de trs bens listados pela Unesco, no usa o instrumento
das reas envoltrias de proteo (buffer zones) ao redor de
cada bem, como o fazem a Frana e o Brasil. Eles utilizam o
conceito de place ou fabric e procuram monitorar a ambincia
atravs de instrumentos urbansticos associados ao uso e ocu-
pao do solo, desenho urbano e proteo paisagstica. Desta
forma, tanto em Londres, como na maior parte da Inglaterra,
o poder local (City Council) pode definir esses controles au-
xiliares, como os limites para a altura dos edifcios e os cones
visuais.

_Patrimnio e desenvolvimento | 37
PARIS BERCY: PATRIMNIO HISTRICO,
SUSTENTABILIDADE E DESENVOLVIMENTO URBANO

A empresa metropolitana pblica de Paris (le de France) e a


cidade definiram, em meados dos anos 80, uma srie de inter-
venes pblico/privados de grande qualidade urbana. Com
grandes investimentos pblicos, principalmente em transpor-
te, habitao e espaos pblicos, atravs do instrumento ZAC
(Zonas de planejamento negociados) os projetos urbanos so
historicamente implementados desde os anos 60.
No Plano Diretor definido em nvel municipal pelo APUR,
escritrio de planejamento, prevaleceu a viso de estimular a
zona leste da cidade complementando o desenvolvimento da
Defense na Zona Oeste projetado como operao urbana, na-
cionalmente, no final dos anos 50.
A problemtica do setor leste se traduzia pelas reas de
esvaziamento e sensveis em relao populao de baixa ren-
da, demandando investimentos para definio de novas ativi-
dades econmicas e equipamentos pblicos.
A operao de Bercy foi pensada dentro deste Quadro de
princpios urbansticos. Os primeiros projetos envolviam 280
ha, dos quais 250 ha de entidades pblicas: 40 ha do municpio,
armazns de antigos depsitos de vincolas; 195 ha da compa-
nhia ferroviria SNCF; 13 ha do porto de Paris; 2 ha do Estado
Nacional.
A ZAC de Bercy, aprovada em 1988, consistia em 54,5 ha
com o programa de construo de 200 (70% HIS) habitaes,
o Estdio de Bercy, 70 mil m2 de espaos comerciais no centro
da antiga vincola Saint Emilion, 85 mil m2 de escritrios, e um
centro de convenes voltado s atividades do vinho, escolas
pblicas infantis, creches, uma biblioteca e nas residncias co-
letivas para idosos e oficina de artistas.

38 | Patrimnio e desenvolvimento_
Alguns objetivos preliminares foram fixados: reequilibrar
o crescimento da cidade, ocupar vazios deixados por reas de
transformao produtiva com equipamentos metropolitanos
(Estdio e Parque), criao de bairro com habitao e ativida-
des e articular a rea com o projeto Rive Gauche do outro lado
do Rio Sena.
Os instrumentos utilizados foram os projetos da APUR, a
criao de uma SEMAEST, uma sociedade de economia mista,
um concurso internacional para o Estado e a implantao.
Do Parque e a criao de um consrcio constitudo pelo
BNP, Banco Nacional de Paris, Grupo Suez, Grupo ACCOR e
Lyonaise de guas e empresrios vinculados criao de um
centro agroalimentcio, voltado para artesanato, alimentao
tradicional e vinho, para implementao adequada do Projeto.
O arquiteto J.P. Buffi foi encarregado de acompanhar a
implementao que teve Christian de Portaznpanc e Yves Lion,
entre outros, como arquitetos responsveis pelos edifcios co-
merciais e residenciais.
Antigos armazns tombados transformaram-se num cen-
tro comercial e a rea verde original em parque com construo
originalmente vinculadas a produo vincola. A recuperao
dos edifcios e sua reconverso foi implementada pela APUR.

Centro comercial e antigos galpes de


vincola. Fotografia: Nadia Somekh

_Patrimnio e desenvolvimento | 39
Desenvolvimento habitacional Cinemateca
Francesa Escola ambiental em edifcio
preservado inserida no parque. Fotografia:
Nadia Somekh
IV.
IV.
Democratizao do patrimnio

Como j foi discutido na primeira parte deste manual, a par-


ticipao popular nas decises sobre preservao e conservao
do patrimnio histrico d legitimidade s aes da prefeitura e
ajuda a fazer frente a interesses exclusivamente econmicos que
podem no considerar a importncia dos bens culturais.
A valorizao do patrimnio s pode ocorrer socialmente,
quando a comunidade onde o bem cultural est inserido (seja ela
local, municipal, nacional ou mesmo mundial) entende que ele
relevante para contar a sua histria e construir sua identidade.
Mas, na contemporaneidade, em que as identidades es-
to cada vez mais fragmentadas, atingir consensos quanto aos
bens que se interessa preservar uma tarefa mais complexa do
que no passado.
Cada classe social, cada grupo econmico, cada meio,
cada preocupao est a selecionar elementos culturais de seu
interesse para que sejam guardados como testemunho de sua
preocupao.8
Em um pas como o Brasil, formado por uma populao
de imigrantes, no existe uma identidade nacional coesa. No

8 (Lemos, Reflexo sobre a memria nacional, 2013)

_Democratizao do patrimnio | 43
existe uma s memria coletiva, e no h unanimidade na po-
pulao para dar sentido e legitimidade aos valores apontados
pelos especialistas nessas coisas ligadas memria, histria e
s artes em geral.9
Por isso, preciso que a comunidade de cada territrio
especfico ajude a escolher os bens que ela deseja ver preser-
vados. No apenas edifcios monumentais nos centros histri-
cos, mas tambm a pequena vila operria, o traado urbano de
um pequeno centro comercial, a fbrica que conta a histria da
fundao do bairro.
Por todos esses motivos, a criao de instncias descen-
tralizadas para promover a participao popular constante
e efetiva um dos passos mais relevantes para se alcanar a
preservao. Conselhos de patrimnio histrico compostos
por atores da sociedade civil (moradores, associaes de bair-
ro, universidades, ONGs) e do poder pblico so um meio de
atingi-la. Mas em cidades maiores preciso tambm descen-
tralizar a participao, criando canais abertos populao em
diferentes regies da cidade.
A participao sempre desejvel, mas tem que ser feita
com critrio para se tornar vivel em um contexto de rgos
do patrimnio histrico cada vez mais enxutos e com verbas
limitadas.
Cabe aqui o relato sobre a experincia recente de conser-
vao do patrimnio em So Paulo de forma participativa por
meios das Zepecs.
Na elaborao do ltimo plano diretor paulistano, em
2002, 253 imveis foram indicados pela populao, por meio
das 32 subprefeituras da cidade, como bens a serem preserva-
dos provisoriamente, at sua avaliao pelo rgo municipal

9 (Lemos, Reflexo sobre a memria nacional, 2013)

44 | Democratizao do patrimnio_
do patrimnio histrico, culminando na deciso pelo seu tom-
bamento ou no.
Alm de ter havido grandes disparidades na quantidade
de imveis e na consistncia e representatividade das indica-
es nas diferentes regies, essa demanda sobrecarregou os
tcnicos da prefeitura. Disso decorre que h hoje no rgo
uma grande fila de Zepecs esperando regulamentao.
Uma maneira de contornar esses problemas seria a cons-
tituio de comisses participativas em cada regio para defi-
nir e planejar o desenvolvimento das zonas de preservao e
que essas zonas no se resumissem a imveis isolados (como
foi feito em So Paulo, apesar de se tratar de zoneamento), mas
a reas que compreendessem conjuntos urbanos.
Hoje o tombamento praticamente a nica maneira de
participao popular, o que restringe a democratizao da pre-
servao. Para ampli-la, as decises quanto ao uso de verbas
de fundos pblicos (como os fundos de urbanizao constitu-
dos com venda de Cepacs e outorgas onerosas10) podem ser
feitas por meio de conselhos gestores com grande representa-
o da comunidade.
Mas participar no basta. A participao efetiva tem que
ser bem informada. Por isso, polticas de educao patrimonial
so uma das bases para a conservao dos bens culturais. No
Mxico, por exemplo, desde o primrio as crianas so ensina-
das nas cartilhas sobre o valor do acervo deixado pelas velhas
geraes11. A educao formal uma maneira de sensibilizar

10 Cepacs (Certificado de Potencial Adicional de Construo) so ttulos (podem


ser negociados) usados em operaes urbanas para a construo acima dos
limites bsicos. J a Outorga Onerosa vinculada a um lote e corresponde
da mesma forma a um pagamento ao poder pblico para construir acima do
limite bsico.
11 (Lemos, Da Taipa ao Concreto: crnicas e ensaios sobre a memria da arqui-
tetura e do urbanismo, 2013, pg. 100)

_Democratizao do patrimnio | 45
a populao quanto ao valor de seu patrimnio. Oficinas, pu-
blicaes, eventos e museus da histria da cidade so algumas
das outras formas.
Democratizar o patrimnio no s garantir a participa-
o, mas garantir que camadas menos favorecidas da popula-
o possam usufruir de seus bens histricos e se beneficiar de
sua valorizao. Muitas vezes, o que ocorre com a recuperao
de reas histricas o contrrio.
A valorizao do patrimnio em uma rea pode levar
expulso das pessoas mais pobres vivendo ali, j que elas no
conseguem arcar com o aumento nos valores de aluguis ou
acabam vendendo sua casa por valores que parecem irrecus-
veis diante de sua renda.
A experincia da cidade italiana de Bolonha nos anos 1970
ilustra bem essa situao. Por meio da efetiva participao dos
moradores e da integrao da preservao s diferentes esferas
de gesto da cidade (educao, sade etc.), Bolonha se tornou
exemplo de regenerao de centros histricos com finalidades
sociais. A recuperao do patrimnio e habitao popular fo-
ram seus principais objetivos, um impulsionando o outro.
Com o passar dos anos, no entanto, o desmantelamen-
to da poltica adotada em Bolonha e a valorizao da rea fi-
zeram a populao original ser progressivamente substituda
por professores e estudantes universitrios, cafs, lojinhas. O
bairro outrora popular se tornou um lugar badalado e caro.12
O que ocorreu em Bolonha no foi um caso isolado. Por
isso, projetos de recuperao de reas histricas precisam de
mecanismos (como aluguis sociais subsidiados) que garan-
tam a manuteno da populao de baixa renda no local, evi-
tando sua expulso para reas perifricas e sem infraestrutura.

12 (Zancheti, 2000)

46 | Democratizao do patrimnio_
V.
V.
Os cinco passos para a
gesto do patrimnio histrico

PASSO 1: CONHECER OS BENS RELEVANTES PARA O


PATRIMNIO DA CIDADE

Escolher os bens a serem protegidos um processo chave para


a gesto do patrimnio. Ele exige um conhecimento da hist-
ria da cidade e o desenvolvimento da capacidade de escolher
aqueles bens que so mais significativos dentro dessa histria.
O pressuposto que existe uma relao nica entre o
contexto histrico, a organizao formal e as construes.
A individualidade encontra-se, justamente, no signo que
fixou o acontecimento, ou, em outras palavras, no esprito do
lugar, o genius loci. Um dos estudiosos que ajudou a valorizar
a histria das cidades e estabeleceu algumas bases para polti-
cas de preservao, Aldo Rossi, definiu que As cidades so um
passado que ainda experimentamos13.

13 ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1966.

_Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico | 49


Dentro desse conceito, o gestor do patrimnio deve bus-
car na histria as fases que explicam a identidade atual da cida-
de. Cada cidade ter exemplos de bens que representam fases
importantes da sua histria. Por exemplo, a industrializao em
So Paulo ou as fazendas de caf em Campinas so marcos de
seu passado e parte da memria coletiva dessas cidades.
Mas, como fazer essa escolha de maneira prtica?
O ponto de partida o levantamento dos bens j prote-
gidos ou tombados, seja atravs da compilao de listagens
existentes, seja com a complementao por equipes de campo.
Concomitantemente, deve-se produzir uma periodizao
histrica da cidade, um documento que resume as fases da his-
tria da cidade e que pode ser levantado a partir da evoluo
da atividade econmica e pela produo arquitetnico-urba-
nstica resultante.
A periodizao, ento, cotejada ao levantamento de
campo. Ou seja, a partir da lista inicial, as equipes envolvidas
teriam o trabalho de selecionar e escolher os bens mais sig-
nificativos de cada fase, de modo a garantir que cada perodo
histrico estivesse representado.
A quantidade de bens a serem protegidos pode variar
muito. H pesquisadores que propem que se escolha uma
amostra pequena e outros que se proteja o que for possvel.
A escolha depende, obviamente, da capacidade da cidade de
gerir os bens protegidos.

ESTRATGIAS DE PRESERVAO

A comparao entre o nmero de imveis tombados nas duas


maiores cidades do Brasil revela uma diferena de estratgia
de preservao.

50 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


Enquanto So Paulo tem mais de 2756 imveis e dez
bairros inteiros tombados, o Rio de Janeiro tem apenas 1220
imveis tombados, mas dentro de um total de mais de 22 mil
protegidos.
Na prtica, isso quer dizer que no h uma estratgia cer-
ta, mas a adequao ao que a cidade quer e pode preservar.

A preservao pode se dar de vrias maneiras e o tom-


bamento apenas uma delas. O importante que as escolhas
reflitam a significncia dos bens para a histria da cidade.
Os rgos responsveis pelo patrimnio deveriam, sem-
pre que possvel, envolver a populao de modo a garantir uma
multiplicidade de vises. Esse processo democrtico de cons-
truo de viso pode acontecer tanto na fase do levantamento
de bens, como na escolha daqueles mais representativos. Fer-
ramentas de participao eletrnica permitem a interao com
um nmero maior de muncipes.
A escolha do que deve ser preservado, portanto, parte da
histria, mas a construo da memria um processo cotidia-
no14. Sem uso, mesmo um monumento se estraga.
Ou seja, a conservao no esttica, ela deve ser vista
como parte de um processo de continuidade que incorpora as
mudanas. Assim, conservar manter as condies da inter-
pretao da significncia de intergeraes15.

14 LEMOS, Carlos. Entrevista FSP, 24/8/2013


15 ZANCHETTI, Silvio. Seminrio Cultura, Patrimnio e Plano Diretor, 2 e 3 de
setembro de 2013. Silvio Zanchetti prope tambm os seguintes passos para
a elaborao da lista de bens a serem protegidos:
1. Identificar o objeto descrever os seus atributos
2. Identificar os significados associados ao objeto e seus atributos/
3. Identificar os valores do objeto e seus atributos/

_Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico | 51


PASSO 2: INSERO URBANSTICA

O patrimnio histrico e o bem cultural esto inseridos num


contexto urbano, que deve ser considerado, em sua totalidade.
Assim, as intervenes ligadas preservao devem con-
siderar o potencial de melhoria da habitao, desenvolvimento
econmico, mobilidade e promoo da diversidade no uso de-
mocrtico do espao pblico.
A gesto das intervenes, portanto, deve procurar esta-
belecer critrios que as liguem ao seu contexto:
Qualidade de vida dos moradores da regio e do
entorno;
Viabilizao econmica dos estabelecimentos
comerciais;
Transportes;
Relao com reas vizinhas.

De posse dessas informaes, deve-se procurar garantir


que as intervenes ou as aes propostas no deixem de lado
a integrao desses elementos.
Uma das dimenses mais importantes para garantir a
costura das intervenes a dos espaos pblicos. Os espa-
os pblicos ligam-se identidade da cidade contempornea,
uma vez que, historicamente, so os locais de troca entre os
cidados, tanto econmica, como social e poltica16.
Idealmente, os espaos pblicos resultantes de interven-
es deveriam ser capazes de se transformar em smbolos da

4. Ordenar os valores (mais e menos importantes)/


5. Comparar o valor do objeto com similares (tombados ou no)/
6. Escrever a declarao de significncia do bem/
7. Resumir a declarao
16 Sennet, Richard. O declnio do homem pblico.

52 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


preocupao com o patrimnio e de exerccio da democracia,
procurando garantir os atributos de17:
Identidade o espao pblico deve refletir e realar a
identidade do lugar;
Diversidade de usos e de freqentadores que se
traduz em vitalidade e segurana;
Legibilidade a capacidade de organizar o espao e
facilitar a percepo visual dos freqentadores;
Conforto para os usurios segregao do trfego,
equipamentos urbanos bsicos (piso adequado,
bancos), multiplicidade de usos, reas verdes quando
possvel;
Integrao ao contexto urbano respeito s pr-
existncias.

O CASO DE LISBOA18

Em 2012, Lisboa criou um plano de longo prazo, o PDM Estra-


tgia 2020, para fazer frente s questes econmicas, demo-
grficas e sociais da cidade. Pela sua abrangncia, relao com
polticas urbanas e instrumentos inovadores, o plano tem sido
muito estudado e pode ser considerado estado da arte das
polticas de Patrimnio na escala municipal.
O pressuposto do plano o de estimular a atividade eco-
nmica e acolher novos moradores, dentro de uma perspectiva
de melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. Preserva-

17 Compilao de vrios autores: Christian Norberg-Schulz, Aldo Rossi, Kevin


Lynch, William Whyte, Jan Gehl.
18 Salgado, Manuel. Cultura, patrimnio e plano diretor: instrumentos de di-
logo e cidadania. Apresentao no seminrio promovido pelo Mackenzie em
28 de maro de 2014.

_Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico | 53


o do patrimnio histrico material e imaterial tem um papel
importante no plano, como fio condutor das mudanas espa-
ciais, preservando a memria coletiva, ao mesmo tempo em
que se adapta s mudanas necessrias.
O zoneamento clssico foi substitudo pelo conceito de
traados urbanos, que parte da constatao de que toda a
cidade histrica e procura estimular a diversidade de usos.
A reabilitao do espao pblico tem um importante pa-
pel nos projetos.

Representao de reabilitao do espao


pblico em Lisboa. Fotografia esquerda
superior: Denise Antonucci. Demais
fotografias: Eliana Queiroz

54 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


Num exemplo interessante de escolha dos bens materiais
e imateriais, a cidade elencou vrios itens surpreendentes para
serem preservados, como as vistas para o Tejo, as lojas tradi-
cionais e o fado, alm dos edifcios e construes.
A lista do que deve ser protegido ajudou a formular os
projetos urbanos:
Apreender a Lisboa histrica: os miradouros (a vista
ao rio) e jardins;
Regenerar o centro histrico - o exemplo da Baixa
Pombalina e a reconstruo das malhas urbanas no
Chiado;
Mouraria: reintegrar ao centro o bairro esquecido;
O Bairro Alto: um museu efmero, conciliando as
artes urbanas e o Patrimnio;
Seguir o Tejo: criao de passeio pblico, recriando a
relao perdida da cidade com o rio;
O vale de Chelas: conciliar equipamentos e qualidade
ambiental urbana.

O sistema de incentivos reabilitao um dos principais


instrumentos urbansticos e pode servir de inspirao para ou-
tros programas. Atravs de um sistema multicritrios, o munic-
pio reconhece o mrito das operaes e emite ttulos que podem
ser negociados e transferidos para outra operao na cidade.

PASSO 3: VALORIZAO ECONMICA E SOCIAL

O conceito de Conservao Integrada pressupe uma nova


perspectiva de planejamento, que envolve a integrao de v-
rias esferas e, necessariamente, o estabelecimento de objetivos
que levem em considerao a multiplicidade de interesses.
Para isso, preciso considerar:
A coordenao entre as esferas pblica e privada;
O combate a pactos entre grupos com interesses
especficos;
A garantia de respeito aos valores culturais e
ambientais;
A gesto e coordenao de propostas de uma
sociedade complexa e com variados grupos de
interesse.

Hoje h um consenso de que preciso conciliar a valori-


zao econmica e social. Apesar de, no Brasil, o tombamento
muitas vezes ser visto como um prejuzo pelo proprietrio do
imvel, em outros pases, normal o preo do ativo subir ao
ser tombado.
A mtrica de valorizao dos imveis em reas de inter-
veno deve, portanto, caminhar em conjunto com a mtrica
de atendimento s populaes que j residem na rea e sua
sustentabilidade.
Como se sabe, o risco das operaes urbanas voltarem-
-se apenas para a oportunidade de valorizao imobiliria. En-
quanto essa uma varivel que alguns autores procuram levar
em considerao, preciso garantir que haja espao para o ou-
tro lado, ou seja, a mitigao dos riscos sociais, principalmente
em relao aos moradores da regio.
Em projetos anteriores, foi visto que a fatia mais pobre
da populao corre o risco de no poder sustentar sua perma-
nncia na regio aps a operao urbana, face ao aumento dos
preos de aluguis, principalmente. Existem alguns mecanis-
mos que podem ser usados para evitar esse problema:

56 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


Subsdio pblico para habitao popular;
Estabelecimento de cotas de habitao popular,
dentro do projeto;
Monitoramento das mudanas.

O CASO DO PELOURINHO

A operao urbana que promoveu a reformulao do Pelou-


rinho, em Salvador, foi objeto de vrias discusses e, pela sua
escala e visibilidade, pode servir de exemplo para intervenes
futuras.
Com o objetivo de revitalizar a rea e atrair receitas do
turismo, a partir de 1993, a Operao Pelourinho atuou numa
grande rea da Praa da S ao Largo do Carmo, envolvendo
356 imveis em 17 quadras com um custo total de 25 milhes
de dlares.
As obras contemplavam a reforma de fachadas, estrutura,
telhados e instalaes dos edifcios. Os espaos internos foram
reformados para dar lugar aos novos usos: comrcio, servios,
lazer, artes e hospedagem.

Pelourinho Salvador. Fotografia:


Denise Antonucco, dezembro, 2013.

_Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico | 57


O questionamento em relao ao programa foi baseado
em dois pontos: o primeiro, o fato de que apenas 9% das uni-
dades foram para uso residencial. A maior parte dos antigos
moradores optou por uma indenizao para deixar o local. A
segunda, a gesto centralizada dos imveis por parte do go-
verno estadual, sem participao popular nas decises. O diag-
nstico era de que no havia sustentabilidade econmica dos
negcios na regio, entre outras coisas porque foram focados
somente no turismo e deixaram de considerar os moradores.
A stima fase da interveno visou a corrigir alguns des-
ses problemas. Na recuperao do bairro de So Dmaso, o
programa se empenhou em garantir a manuteno da popula-
o de baixa renda, rompendo com o tradicional processo de
gentrificao, segregao e glamorizao, que tem caracteriza-
do esse tipo de interveno.19
O novo plano, aps vrios percalos, permitiu a juno de
vrias instncias na gesto: restaurao de telhados e facha-
das pelo Programa Monumenta, da UNESCO, desapropriao
dos imveis de proprietrios privados pelo governo do estado,
subsdio para antigos moradores pelo Ministrio das Cidades e
financiamento de habitao a funcionrios pelo Fundo de Pre-
vidncia do Estado.
Em estudos posteriores, como o de Zancheti, 2011, cons-
tatou-se que a regio, apesar de ter aumentado a receita do tu-
rismo, ainda apresenta problemas advindos da dificuldade de
integrao da antiga populao residente, pouca sustentabili-
dade dos negcios locais e aponta para passos que considerem
a integrao das vertentes sociais e econmicas.

19 BONDUKI, Nabil. Intervenes urbanas na recuperao de centros histricos.

58 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


PASSO 4: AGILIDADE DE PROCEDIMENTOS

A gesto pblica deve acompanhar as mudanas da sociedade,


cada vez mais fragmentada e complexa.
Diante de uma realidade que ainda acelerou a velocidade
de mudanas, a gesto pblica precisa atrair e manter pessoas
mais capacitadas para lidar com as situaes novas e, diante
disso, organizar processos que permitam a flexibilidade de
ao diante de princpios e no s de processos.
Podemos ver na prtica alguns desses princpios no rela-
trio da ONU20, que lista as recomendaes para um governo
mais prximo de seus cidados:

Eficincia Crescimento do quociente input-output das


atividades que o governo realiza.

Descentralizao Transferncia das tomadas de decises para mais


perto dos cidados.

Transparncia Possibilitar que os servidores pblicos prestem


conta de suas decises.

Eficcia Maior eficcia na utilizao de recursos humanos,


financeiros e outros.

Comunicao Utilizao da experincia das diversas esferas para


desenvolver novas relaes.

No caso da gesto do patrimnio histrico, essa lista pode


ser traduzida na possibilidade de estabelecer processos com
curto tempo de resposta e alto grau de aderncia da popula-
o s decises. Algumas boas prticas podem ser destacadas,
mesmo levando em conta que h cidades com estruturas de
patrimnio muito pequenas.

20 Agenda de Reengenharia do Setor pblico, chamada Reinveno do Gover-


no, compilada por Osborne-Gaebler, em 1997.

_Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico | 59


Triangulaes entre esferas de governo
Como os rgos de Patrimnio atuam nas trs esferas do
governo municipal, estadual e federal comum existirem
casos de sobreposio. Essa situao causa desconforto para
o cidado, desperdcio de recursos e reduo na velocidade na
tomada de decises.
Alguns municpios, como So Paulo, por exemplo, j as-
sinaram acordos com o governo estadual, de modo a propor-
cionar a criao de um escritrio tcnico de gesto comparti-
lhada, o guich nico, em que um determinado processo
tocado conjuntamente e a comunicao centralizada.

Integrao entre as secretarias e instncias municipais


Quanto mais compartilhado for o objetivo de preserva-
o, menor o risco de haver conflito entre as diversas frentes
de atuao municipal na cidade. Secretarias de obras, plane-
jamento, finanas, transportes podem e devem ser represen-
tantes das polticas de preservao municipal e integrar suas
aes para concretizar os objetivos.
Algumas prefeituras harmonizam esse relacionamento
atravs da conduo direta do prefeito. Outras, procuram ga-
rantir pelo menos que os conflitos possam se dar num plano
tenso-amigvel21.

Integrao com a iniciativa privada para viabilizar


projetos
Os recursos para a viabilizao dos projetos de preser-
vao so, muitas vezes, escassos. O bom planejamento pode

21 Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimnio da Humanidade,


referindo-se de maneira bem humorada, relao entre patrimnio e plane-
jamento, em debate de 2 de setembro no Seminrio Cultura, patrimnio e
plano diretor, em So Paulo.

60 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


ajudar a reservar verbas na Lei Oramentria Anual e na exe-
cuo oramentria, no entanto, muitas vezes isso no ser su-
ficiente para garantir a preservao do patrimnio. Para isso,
a integrao com a iniciativa privada pode ajudar na obteno
de recursos adicionais.
As modalidades de associao podem incluir desde o pa-
trocnio de projetos pontuais e a iseno como contrapartida
para aes de preservao, at grandes projetos urbanos com-
partilhados.
O importante que os parmetros das intervenes se-
jam estabelecidos pelo poder pblico em consonncia com a
poltica de preservao do municpio.

Informatizao
A criao de um banco de dados do patrimnio essen-
cial e depende de uma estrutura mnima de programao para
garantir agilidade no andamento dos processos e na constru-
o de diagnsticos.

PASSO 5: VALORIZAO E CAPACITAO DO


QUADRO TCNICO

O pressuposto para que as aes descritas nesse manual acon-


team a preparao dos funcionrios ligados rea de pre-
servao do patrimnio.
Independentemente do tamanho do municpio, ele deve-
r contar com uma estrutura que seja compatvel com o desafio
de selecionar, salvaguardar e acompanhar os bens que repre-
sentem o patrimnio a ser preservado.

_Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico | 61


Como vimos, medida que se diversifica a sociedade e
que se aumenta a complexidade das ferramentas disponveis,
o desafio do gestor tambm aumenta.
A dotao de recursos um passo importante, mas a capaci-
tao das equipes fundamental para fazer frente a esse desafio:

Capacitao tcnica
Alm das tcnicas de preservao, conservao e restau-
ro, o novo profissional da rea de conservao precisa de no-
es de histria e de conhecimentos de mecanismos legais de
interveno urbana.

Conhecimento
H diversos exemplos de boas prticas em municpios
brasileiros e internacionais que podem ser acessados atravs
de visitas ou leitura de casos. Eles so uma importante fonte de
conhecimento e inspirao.

Capacitao gerencial
Para conseguir atuar de uma maneira democrtica na so-
ciedade, preciso tambm que as competncias do profissional
incluam a gesto de instrumentos de pesquisa, mecanismos de
atuao social, habilidades de comunicao e negociao.

Isso se d pelo reconhecimento de que tcnicos, polticos


e administradores tero que ser capazes de formar consensos22
para legitimar a ao pblica. Diante na necessidade de formar
consensos com grupos ou atores sociais, as atividades normati-
zadas perdem importncia em relao s tarefas de coordenao.

22 Zancheti, Silvio e Gabriel, Jordelan. Projeto de revitalizao do Centro His-


trico de Salvador da Bahia. Rio de Janeiro: XIV ENCONTRO NACIONAL DA
ANPUR, 2011

62 | Os cinco passos para a gesto do patrimnio histrico_


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