POESIA, DIÁSPORA E MIGRAÇÃO Quatro Vozes Femininas, de Prisca Rita Agustoni de Almeida Pereira

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POESIA, DISPORA E MIGRAO

quatro vozes femininas


femininas**

POESA, DISPORA Y MIGRACIN: CUATRO VOCES FEMENINAS

Prisca Rita Agustoni de Almeida Pereira*


Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO
O presente trabalho pretende colocar em dilogo a produo
potica de quatro autoras afrodescendentes contemporneas
(Dionne Brand, Lucille Clifton, Conceio Evaristo e Marie-
Clie Agnant), com o intuito de verificar de qual maneira elas
abordam e atualizam temas caros dispora africana que
originou as sociedades nas quais elas se formaram. Por outro
lado, pretende-se verificar como o processo migratrio de duas
delas (Brand e Agnant) interfere na elaborao do prprio
universo potico, atualizando as questes da dispora luz das
perspectivas globais contemporneas.

PALAVRAS-CHAVE
Migrao, poesia feminina, dispora africana

A tendncia sempre crescente ao longo da segunda metade do sculo 20 de pessoas


que migraram mais ou menos espontaneamente de um lugar para outro, de um hemisfrio
para outro, em busca de condies mais dignas de vida e de trabalho, representa um
evidente marco da nossa contemporaneidade, conforme assinala Spivak, 1 e consiste
num fluxo migratrio transnacional que, como observa Silviano Santiago,2 muitas vezes
ocorre na clandestinidade.
Para comprovar isso, s abrir os principais jornais das metrpoles do mundo, para
encontrar matrias sobre as tensas periferias urbanas, manifesto de uma sociedade em
estado de ebulio social, tnica e religiosa, conforme alerta tambm o brilhante ensaio
de Pap Ndiaye, La condition noire, publicado na Frana em 2008, ou, mais recentemente,

* [email protected]
** O presente artigo resultado da pesquisa de ps-doutoramento realizada no Programa Ps-Lit da
UFMG, sob a tutoria da professora Sandra Regina Goulart de Almeida, entre agosto de 2010 e julho de
2011. Agradece-se a Capes, pela bolsa de ps-doutoramento concedida, que permitiu a realizao desta
pesquisa.
1
SPIVAK. Diasporas old and new: women in the transnational world, p. 245.
2
SANTIAGO. O cosmopolitismo do pobre, p. 51.

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acompanhar os desdobramentos dramticos da Primavera rabe, resultante na constante
chegada (ou tentativa de chegada) de barcos norte-africanos cheios de clandestinos
desejosos de pisar o cho da idlica ilha italiana de Lampedusa, primeira porta de entrada
para uma ansiada nova vida.
Esse fenmeno migratrio, clandestino, pode-se dizer, o mais recente dos muitos
registrados na histria, determinou o perfil de espaos multiculturais, cuja ordem social
se viu fortemente afetada pela nova configurao geopoltica, conforme aponta Saskia
Sassen.3 Uma ordem geopoltica dividida em termos de classes econmicas e de gnero,
e altamente excludente, a partir da condio de sans papier de muitos dos que migraram
e decidem migrar. Mas, tambm, uma (nova) ordem geopoltica que precisa lidar com
noes sobrepostas de tempo, espao, cultura e episteme, conforme assinala Walter, 4
formando um palimpsesto em que os conceitos e as pessoas se relacionam e foram uma
negociao constante, pelo mero fato de entrarem em contato (virtual ou presencial) e
de apresentarem distintas perspectivas e vises de mundo, instadas tambm pela
velocidade e maior facilidade de acesso aos meios de comunicao instantneos.
Em decorrncia disso, os que se voltam para a anlise crtica desses fenmenos,
tanto no espao social como no simblico, devem prestar ateno para a mudana
epistemolgica que est envolvida nesse processo. Sem dvida, o paradigma de mudana
da episteme no exclusividade de nossas sociedades contemporneas, uma vez que a
histria sempre registrou grandes movimentos diaspricos ao longo dos sculos.5 Sempre
que h encontros entre culturas, surge tambm um embate epistemolgico que se
desdobra na negociao de valores, smbolos e cdigos culturais.
Conforme ainda observa Walter, ao se referir ao conceito de desterritorializao
condio daqueles que migram de um contexto geogrfico, cultural e social para
outro , consideramos que ele se refira a um duplo signo de perda e sofrimento e de
potencializao que aloja a reterritorializao, ou seja, a capacidade de transformao
enquanto oportunidade de escolher novas posies de sujeito.6 Isso j aconteceu com
a dispora africana nas Amricas, que acarretou a configurao, por parte dos sujeitos
diaspricos afro-(latino) americanos, de localizaes identitrias dinmicas e no
marcadas pelo binarismo caro ao modelo eurocntrico cartesiano e iluminista. Contudo,
como observa Leila Harris, para o sujeito diasprico, a negociao de novos espaos
culturais, crucial para a construo identitria ou seu sentido de pertencimento,
influenciada e em alguns casos determinada por questes de raa, gnero e etnia.7
Roland Walter especifica que

3
SASSEN. The global city: New York, London, Tokyo.
4
WALTER. Afro-Amrica: dilogos literrios na dispora negra das Amrica, p. 43.
5
Para uma trajetria da definio do conceito de dispora, ver CLIFFORD. Diasporas. Para a ampliao
do mesmo conceito na contemporaneidade, ver SAFRAN. Diasporas in modern societies: myths of
homeland and return.
6
WALTER. Afro-Amrica: dilogos literrios na dispora negra das Amrica, p. 65.
7
HARRIS. Em trnsito: o lar da dispora nos contos de Dionne Brand, p. 95.

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(...) esta ambivalncia caracterstica da escrita africana ps-colonial das Amricas na
qual a desterritorializao da migrao constitui um lugar de alienao e reconexo
lugar este, no somente em termos geogrficos, histricos e intersubjetivos, mas tambm
em termos de posio de classe, raa, sexualidade e gnero.8

A noo de alienao decorre, na reflexo de Walter e dos tericos da dispora pan-


africana, em funo da experincia transcultural da Middle passage e dos desdobramentos
que se produziram, nos respectivos pases, durante o processo escravocrata, aps a
abolio, ao longo do sculo 20 at chegarmos dispora migratria contempornea ou
neoliberal. Nesse sentido, a determinao do prprio eu depende menos de definies
e posies identitrias cristalizadas e mais do movimento intervalar entre um lugar e
outro, entre um sistema significante e outro, entre um sistema de valores e outro.
Isso se torna mais relevante quando nos debruamos sobre a produo literria de
mulheres afrodescendentes, pois, de acordo com a terica caribenha Carol Boyce-Davies,
a literatura escrita pelas mulheres negras deveria ser considerada como uma srie de
cruzamentos de fronteiras e no como uma categoria de escrita fixa geogrfica, tnica e
nacionalmente. 9
Isso quer dizer que, alm do elemento relacionado origem geogrfica ser ou no
ser escritor americano e alm do elemento tnico ser ou no ser escritor negro , o
dado relativo questo do gnero ser homem ou mulher quem escreve tem muita
relevncia para determinar a modalidade de escrita. De fato, isso se explica por que a
convergncia de muitos lugares e culturas que re-negocia a experincia das mulheres
negras que, ao mesmo tempo, negocia e volta a negociar outra vez sua identidade.10 A
relao entre o espao geogrfico vivenciado pelos afrodescendentes, onde materialmente
vivem e de onde constroem suas representaes, e sua produo literria (simblica),
tende a revelar, conforme assinala McKittrick, que as geografias histricas e
contemporneas dos negros localizam e centralizam a noo de que as populaes da
dispora negra contaram e esto contando de que maneira seus entornos forjaram as
prprias vidas.11
A relao entre a criao e o entorno geogrfico parece ser crucial para a configurao
das escritoras afrodescendentes contemporneas, uma vez que o escrutnio no passado
diasprico e a nova migrao contempornea destacam os dois aspectos evidenciados por
McKittrick, determinando a construo da identidade formulada nos textos.
A esse propsito, nos propomos, neste ensaio, evidenciar atravs de fragmentos
das obras das poetas Dionne Brand (Trinidad e Tobago/Canad), Marie-Clie Agnant
(Haiti/Canad), Lucille Clifton (Estados Unidos) e Conceio Evaristo (Brasil) o
movimento de escavao na memria histrica e pessoal como um procedimento que
desloca e faz migrar o ponto de vista sobre determinado acontecimento e enfatiza o que
est dito nas entrelinhas, tanto da histria quanto do texto literrio. Sem dvida, a

8
WALTER. Afro-Amrica: dilogos literrios na dispora negra das Amrica, p. 65.
9
DAVIES. Black, women, writing and identity: migrations of the subject, p. 4.
10
DAVIES. Black, women, writing and identity: migrations of the subject, p. 3.
11
MCKITTRICK. Demonic grounds: black women and the cartographies of struggle, p. XXI.

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diferena entre os distintos contextos culturais, os diferentes fatos histricos e as variadas
tradies literrias que alinhavam o discurso das poetas fato a se considerar como
amenizador para qualquer generalizao inoportuna. Tambm a partir de uma perspectiva
comparatista, essas diferenas representam um instigante estmulo para avaliar como
cada autora lida com elementos que so comuns construo de suas sociedades.
A norte-americana Lucille Clifton e a brasileira Conceio Evaristo escrevem
suas obras a partir de determinado lugar (o prprio pas) e a partir de um determinado
evento transnacional e intercultural (a dispora africana que ocasionou a emergncia
de uma srie de encontros e desdobramentos culturais), conforme aponta Gilroy, 12
identificando o Atlntico como o lugar geogrfico e simblico pelo qual transitaram
essas culturas. Em particular, na obra dessas autoras, o resgate da memria dos eventos
que so frica e a escravido, de acordo com a concepo de David Scott,13 participa
na construo dos discursos de afirmao e de autorrepresentao dos afrodescendentes,
e parece responder a uma vontade explcita de resignificar esses eventos luz de um
questionamento que possa trazer um olhar positivo, valorizador, e concreto a partir da
realidade contempornea que as rodeia.
J no caso de Dionne Brand e Marie-Clie Agnant, podemos observar que, alm desse
pano de fundo histrico-cultural relativo dispora africana no Caribe, as autoras desenvolvem
suas poticas pela perspectiva do gnero feminino e da descendncia africana, mas com o
olhar e a ateno voltados para a dispora contempornea, ou a nova dispora,14 isto , o
processo migratrio de muitos caribenhos e estrangeiros para o Canad, pas de residncia e
de segunda nacionalidade das autoras. Em particular, dentro desse processo migratrio, a
presena das mulheres como agentes que se deslocam voluntariamente, como sugere Davies15
apesar das precrias condies de vida do contexto de origem muitas vezes constituir um
estopim para a migrao, conforme veremos em Agnant , representa o eixo a partir do qual
elas falam, exemplificando, dessa forma, a nova dispora e propondo um discurso e uma reflexo
acerca desse fenmeno to intrnseco regio de origem de ambas.
A esse propsito, instigante debruar-nos sobre o trabalho das quatro poetas,
por representarem, embora com as devidas diferenas e peculiaridades, vozes de poetas
e pensadoras contemporneas ativas no cenrio literrio nacional e internacional. De
fato, elas interferem na construo coletiva de uma reflexo acerca de novas posies
de sujeito 16 negro, feminino e no mais subalterno, cientes de que as sociedades
americanas mantm, mesmo que dissimulados, elementos do legado e pensamento
colonial. Ao proporem essa reflexo, elas indicam possveis rumos das respectivas
sociedades acerca da redefinio de uma identidade deslocada, mltipla, hifenizada,
conforme assinala Stuart Hall, 17 sendo que essas sociedades se veem sempre mais
pressionadas interna e externamente por foras e agentes de natureza global.

12
GILROY. O Atlntico negro: modernidade e dupla conscincia, p. 39.
13
SCOTT. That event, this memory: notes on the anthropology of diaspora in the New World, p. 278.
14
SPIVAK. Diasporas old and new: women in the transnational world, p. 245.
15
DAVIES. Mulheres caribenhas escrevem a migrao e a dispora, p. 750.
16
WALTER. Afro-Amrica: dilogos literrios na dispora negra das Amrica, p. 65.
17
HALL. Da dispora: identidades e mediaes culturais, p. 71.

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A identidade que as autoras em tela parecem sugerir, conforme veremos ao longo
do artigo, atravs dos questionamentos levantados nos poemas e na reflexo crtica,
comporta a noo da ambivalncia, intrnseca ao processo diasprico que fundamentou
as respectivas sociedades. Por isso, vlido adotarmos, como operadores crticos, os
conceitos de roots and routes, 18 propostos por James Clifford, 19 na medida em que o
discurso que as autoras propem, fruto da conscincia da prpria origem diasprica
aliado a um distanciamento crtico para com o processo de construo da sociedade nas
quais nasceram, articula noes de fixidez e origem paralelamente a noes de
movimento, migrao e consequente redefinio da prpria identidade, como sugere
Almeida ao relacionar o deslocamento, motor da dispora, ao movimento interior de
autoconhecimento do sujeito diasprico, 20 corroendo, dessa maneira, conceitos
cristalizados de pertencimento, nao, espao e identidade.
Nesse sentido, em se tratando de quatro poetas pensadoras e questionadoras da
contemporaneidade, nos apoiamos nas reflexes de Edward Said, para quem tarefa do
intelectual tentar desfazer e questionar os esteretipos e as categorias cristalizadoras que
contribuem para enjaular o pensamento humano e difundir ideologias castradoras, ao apontar
as contradies sobre as quais se fundamenta determinada sociedade e, dessa forma, estimular
a reflexo crtica.21 No entanto, conforme sugere Said, esse modelo de intelectual atua no
cotidiano, na medida em que a mensagem que articula est vinculada a uma atitude que se
desdobra na sociedade, e se sustenta em um estado de alerta constante.22
Isso quer dizer que as tarefas, historicamente reservadas s mulheres negras, dentro
de um contexto patriarcal e escravocrata,23 assumem, luz dessa perspectiva, um valor
muito importante de transmisso de um saber coletivo e de manuteno/recriao de
uma noo de root and route, conforme observa tambm Clifford:

As mulheres da dispora ficam presas entre patriarcados, passados e futuros ambguos.


Elas conectam e desconectam, esquecem e lembram de acordo com modos complexos e
estratgicos. As experincias vivenciadas pelas mulheres diaspricas envolvem, dessa
forma, a experincia dolorosa de serem mediadoras de mundos discrepantes (...).24

O relacionar-se constantemente com um passado ambguo, silenciador das vozes


despidas de poder e de autoridade e desfigurador dos sujeitos annimos que o animaram,
um passado muitas vezes filtrado no presente atravs das fontes excludentes da
historiografia oficial, faz com que a atividade de escrita e reflexo das autoras

18
Esses conceitos indicam a noo de raiz e caminho, ou seja, de algo fixo (root) e algo em andamento
(route), revelando a ambiguidade inerente ao processo diasprico. Preferimos no traduzir os conceitos
em portugus.
19
CLIFFORD. Diasporas, p. 308.
20
ALMEIDA. A nova dispora e a literatura de autoria feminina contempornea, p. 197.
21
SAID. Representaes do intelectual: as conferncias Reith de 1993, p. 10.
22
SAID. Representaes do intelectual: as conferncias Reith de 1993, p. 60.
23
Para mais detalhes sobre a condio da mulher negra no contexto escravocrata brasileiro, indico o
livro de Sonia Maria Giacomini, Mulher e escrava: uma introduo histrica ao estudo da mulher negra.
24
CLIFFORD. Diasporas, p. 314, traduo nossa.

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afrodescendentes dinamize o passado acionando - o de tal modo que esse
incessantemente problematize o presente e interrogue o futuro.25
Essa poltica do cotidiano 26 exercida pelas autoras de forma diferenciada, de
acordo com as peculiaridades estticas e temticas de cada qual; mas parece-me que nas
quatro autoras em tela o tema da insero simblica, social e fsica do corpo negro nas
sociedades ps-coloniais s quais elas pertencem elemento central, partindo de uma
reviso dos clichs e esteretipos a ele atribudos pela mquina colonial, como no caso de
Evaristo e Clifton, passando pelo corpo, que, metonimicamente, encarna as runas do pas
de origem, como em Agnant, at chegar concepo de um corpo globalizado, como
o caso da poesia mais recente de Dionne Brand. Essas operaes de reviso e
reposicionamento do corpo feminino afrodescendente se tornam possveis graas a uma
srie de cruzamentos de fronteiras, como assinala Carol Boyce-Davies,27 ou seja, graas
quebra de fronteiras no gnero literrio, de fronteiras simblicas (so mulheres negras
que tm hoje uma posio de destaque no cenrio cultural e intelectual), de fronteiras
sociais (por terem tido uma ascenso social) e de fronteiras geoculturais (por todas elas
terem vivenciado a experincia de abertura para o mundo).
O fato de elas serem autoras oriundas da dispora afro-americana e de transitarem
num entre-lugar simblico a passagem do meio e o navio negreiro comentados por
Gilroy continuam sendo signos significantes, vetores que circulam no espao do imaginrio
das autoras faz delas garimpeiras de pequenas verses da histria com h minscula,
recopiladas em inventrios poticos, o que lhes permite desenvolver modos plurais para
escrever a propsito do conceito de casa, comunidade e exlio, conforme aponta Wendy
Walters. 28
Conforme assinalamos, a poesia da brasileira Conceio Evaristo tem como eixo
central o resgate da figura da mulher negra como fora-motriz, lugar de regenerao
da vida. Na coletnea Poemas de recordao e outros movimentos (2008), e em particular
no poema Eu-mulher, Evaristo vincula a feminilidade revalorizao do que existe
de mais natural, ancestral no sentido de vinculado com os ritmos naturais da terra, da
fecundao e da relao com o universo no corpo feminino. Com isso, no significa
que ela se sujeite dominao masculina, que, tradicionalmente, na sociedade ocidental,
associou a capacidade reprodutora da mulher sua condio de inferioridade. Ao
contrrio, Evaristo supera essa concepo binria, gendrada e eurocntrica, para se
aproximar de uma viso daquilo que Glissant preconizava como sendo um dos traos
das culturas diaspricas do Caribe: a abertura, a relao com o outro, a integrao do
sujeito com a natureza e com o cosmos, em prol de uma potica (no somente letrada)
que fizesse de cada signo, de cada gesto, de cada sujeito, o moto-contnuo do mundo. 29

25
GOMES. Visveis e invisveis grades: vozes de mulheres na escrita afro-descendente contempornea,
p. 18.
26
HOOKS. Intelectuais negras, p. 466.
27
DAVIES. Black, women, writing and identity: migrations of the subject, p. 4.
28
WALTERS. At home in diaspora, p. IX.
29
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 18.

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Ao fazer isso, Evaristo contribui para reverter o quadro de representao histrica
da mulher negra na sociedade brasileira, marcado to profundamente pela herana
escravocrata, que via na mulher negra uma fonte de explorao sexual e social, um
objeto de manuseio por parte do senhor, defraudada inclusive no sentimento mais ntimo
e primordial como o da maternidade, conforme alerta Sonia Maria Giacomini, ao
comentar fatos histricos como os infanticdios cometidos pelas escravas na poca
colonial, ou os muitos abusos e estupros que elas viviam e que acabavam gerando
gravidezes indesejadas seguidas de enfermidades e morte.30
Outros poemas revelam essa tentativa, burilada com ternura, esmero e firmeza,
de dominar a produo do discurso relativa ao seu prprio corpo feminino negro e assumir
o desejo desse corpo de mulher, cantar suas peculiaridades. Nesse sentido, o corpo na
poesia de Evaristo se conecta com a concepo de um sagrado baseado na noo de
ancestralidade, o que permite que a releitura da histria colonial permita mulher
negra ganhar transcendncia, transformao, esperana, por superar as camisas de fora
impostas sobre ela pelo olhar social e culturalmente construdo ao longo da colonizao.
Outro esteretipo central cultura colonial foi a naturalizao do corpo negro,
sua associao com a terra americana, seus frutos, suas plantas. No poema Frutfera, 31
a autora remete claramente a esse processo metonmico de transformar partes do corpo
da negra e da mulata em frutos, to em voga durante as vanguardas artsticas do incio
do sculo 20. Evaristo tambm nomeia o corpo do eu lrico atravs de metforas frutferas,
mas desta vez, a mulher que fala no poema se entrega voluntariamente, revela seu
desejo, ativa e no mais objeto passivo de abuso ou idealizao ertica. Como observa
Nazareth Fonseca, essa mudana de paradigma ocorre da inteno desse feminino
corpo da negrura de assumir as pulses de um corpo vivo, manifesto atravs do seu
desejo 32 e legitima um espao de expresso e liberdade feminina, reiterada
explicitamente no poema Do fogo que em mim arde,33 quando Evaristo escreve: (...)
Sim, eu trago o fogo, / o outro, / aquele que me faz, / e que molda a dura pena / de
minha escrita./ este o fogo, / o meu, o que me arde / e cunha minha face/ na letra-
desenho / do auto-retrato meu. 34 Em decorrncia disso, as metforas frutferas presentes
nos seus versos, assim como as referncias metatextuais (meia palavra mordida / me
foge da boca 35 ), denotam uma sensualidade que responde s pulses de um corpo vivo,
que tem pensamentos, palavras e desejos.
Na obra da norte-americana Lucille Clifton tambm encontramos uma constante
reelaborao da representao da mulher negra afro-americana, na sua concretude
corporal, na sua produo de um logos e na sua construo simblica. Nesse ponto se
concentram as principais elaboraes operadas pela autora, isto , Clifton mostra uma

30
GIACOMINI. Mulher e escrava: uma introduo histrica ao estudo da mulher negra no Brasil, p. 70-88.
31
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 66.
32
FONSECA. Vozes femininas em afrodices poticas: Brasil e frica portuguesa, p. 290.
33
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 19.
34
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 19.
35
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 18.

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tentativa constante de tematizar a maneira como ocorrem os deslocamentos simblicos
dentro do processo de reviso e redefinio identitrio.
Isso pode ser compreendido melhor se consideramos que, conforme observa Antonio
Tillis, 36 uma das proposies sobre as mudanas geogrficas e geopolticas do negro,
compartilhada pela historiografia, diz respeito noo de gerenciamento de raa e gnero,
sustentada por uma falsa representao nacional coletiva. Nesse sentido, os versos da
coletnea Some Jesus propem uma releitura, em chave racial, dos mitos fundadores do
cristianismo, como no poema Solomon, e mais particularmente, no poema Jonah:37

what i remember
is green
in the trees
and the leaves
and the smell of mango
and yams
and if i had a drum
i would send to the brothers
be care full of the ocean

Nesse poema, o processo mnemnico do eu potico traz flashes de vida cotidiana que
parecem indicar um contexto histrico-geogrfico relacionado dispora: tanto a manga
quanto o inhame so elementos que podem sinalizar o universo afro-americano, e a
meno ao tambor, signo to marcante da epistemologia da dispora nas Amricas,
fundamental, pois mostra que esse eu enunciador se serve do tambor para passar
mensagens, como um instrumento de comunicao e no (apenas) como um mero objeto
que produz som e msica.
A mensagem que esse tambor veicularia de cuidado, para que os brothers tambm
palavra que cdigo de identificao entre afro-americanos tenham cuidado com o
oceano, uma referncia Middle Passage, j mencionada. Por outro lado, esse Jonas, que
talvez releia a aventura do profeta e da sua peregrinao por trs dias na barriga de um
peixe no fundo do mar, fala tudo em tom menor, em minsculas, como a querer mostrar
que no se deseja aqui trocar um discurso de fundao por outro, e sim deslocar a
perspectiva, que, da totalidade do discurso mtico e hegemnico, dialoga e aceita as
outras histrias, adaptaes dos mitos que compem o Livro Sagrado, to importante no
contexto histrico-cultural para os afro-americanos ligados s igrejas protestantes.
A insinuao do erotismo nesse discurso religioso tambm comporta a abertura de
uma fresta na possibilidade de expresso de um eu enunciador feminino. Vejamos a
delicadeza do poema Mary,38 tambm escrito em primeira pessoa e em minsculas:

36
TILLIS. Mulher, negra, caribenha, canadense e lsbica: representando os vrios selves na poesia de
Dionne Brand, p. 149.
37
CLIFTON. Blessing the boats: new and selected poems 1988-2000, p. 100. No artigo, optou-se por
manter a citao de estrofes inteiras dos poemas em lngua original. No entanto, quando se citam
apenas alguns breves fragmentos, eles esto em portugus, em traduo nossa.
38
CLIFTON. Blessing the boats: new and selected poems 1988-2000, p. 102.

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this kiss
as soft as cotton

over my breasts
all shiny bright

something is in this night


oh Lord have mercy on me

i feel a garden
in my mouth

between my legs
i see a tree

Novamente, interessa-nos aqui a releitura do sagrado (um sagrado que mantido


vigente pela forte ligao do humano com a natureza), mas sem o discurso da ideologia
da instituio religiosa, uma vez que a noo de corpo e de erotismo deixada como
uma insinuao aberta. Dessa forma, permite-se conceber que a mulher mesmo a
mulher inscrita em determinado discurso religioso se desvincule em parte do
gerenciamento de gnero ao qual se referia Tillis na citao, 39 e assuma (ou pelo
menos camufle), atravs da voz da autora, uma significativa autonomia.
Roland Walter observa, remetendo a Glissant, 40 que uma das caractersticas da
literatura da dispora uma natureza assombrada pelo passado, e essa observao nos
parece adequada para ler as mltiplas tentativas operadas por Evaristo e Clifton para
desconstruir as verses oficiais da histria e ler em chave assombrada os processos de
construo da sociedade brasileira e americana e dos indivduos que nela habitam. A
esse propsito, interessante a leitura comparada dos poemas Vozes-mulheres, de
Evaristo,41 e Slaveships, de Clifton,42 pois os dois textos abordam a travessia dos escravos
no navio negreiro, relatada a partir da voz em primeira pessoa de um escravo ou descendente
que olha criticamente para o passado e o questiona. Mais uma vez, o assombro do passado
instiga reflexes sobre a posio do sujeito feminino, afrodescendente hoje, e se desdobra
em poemas de forte apelo reflexivo, que se vinculam diretamente com a trajetria dos
afrodescendentes no prprio pas e cultura. Nesse sentido, se em Evaristo o poema deixa
aberta a porta da esperana e da liberdade que se conquista na fala e no ato43 trao
de uma sociedade na qual muito ainda precisa ser feito para atingir um grau satisfatrio
de igualdade social , a voz de Clifton vincula-se tradio cultural norte-americana, e
est impregnada pelo sentimento de piedade e de dor ao relembrar as condies dos
escravos, e desemboca num canto que se assemelha s queixas dos blues.

39
TILLIS. Mulher, negra, caribenha, canadense e lsbica: representando os vrios selves na poesia de
Dionne Brand, p. 149.
40
CLIFTON. Blessing the boats: new and selected poems 1988-2000, p. 231.
41
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 10.
42
CLIFTON. Blessing the boats: new and selected poems 1988-2000, p. 121.
43
EVARISTO. Poemas de recordao e outros movimentos, p. 11.

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J Dionne Brand efetua uma interrogao e reviso dos fatos do passado diasprico,
mas com o foco de investigar como esse passado significa e interfere na contemporaneidade,
conforme revelam suas palavras: Dessa maneira, estava muito mais interessada nos
descendentes do vigsimo sculo e em como a histria pairava sobre eles do que em saber se
eles queriam isso ou menos, se sabiam disso ou menos, se gostavam disso ou menos44 Por
isso, a autora constri sua potica tambm a partir de uma reflexo contundente sobre o
corpo que atua na sociedade contempornea. De fato, ela j analisou com lucidez a presena
no imaginrio coletivo do corpo negro, no ensaio A map to the door of no return: notes to
belonging, observando que, na dispora, o corpo negro representa um signo, um espao de
cativeiro, um palimpsesto sobre o qual vrias cristalizaes e idealizaes so superpostas.45
Brand se move, portanto, com plena conscincia dos desdobramentos advindos da
representao do corpo negro no mundo Atlntico negro. Mas as preocupaes de Brand
parecem ir alm da vontade de reverter esse quadro denotativo. Se para Evaristo e Clifton
o mergulho no passado ainda uma atividade crucial para o resgate e a redefinio da
identidade feminina afro-americana, assim como para repensar a insero e a ocupao
geogrfica e simblica dos afrodescendentes e da prpria tradio cultural nas respectivas
sociedades em formao, Dionne Brand se relaciona com questes de cunho mais global,
geradas nas metrpoles multiculturais contemporneas (como Toronto, onde Lea mora),
preocupadas com questes do sculo 21, como meio ambiente, comunicao digital, funo
do ser humano num contexto virtual, mas que, paralelamente a essas preocupaes,
herdaram e no resolveram totalmente as questes do passado.
Nessa perspectiva, podemos dizer que as preocupaes ticas e estticas de Brand
vinculam-se com a tradio terica marxista-gramsciana na qual o Negro tambm
parte da histria humana da explorao, mas no o centro dessa preocupao. Em
Inventory, por exemplo, Brand encena situaes de rediasporizao nas quais o corpo
abordado um elemento crucial de questionamento da sociedade global contempornea,
por efetuar o registro emocional das injustias sociais, dos marginalizados, conforme
observa Diana Brydon.46 O corpo se torna receptculo de um mundo em decomposio,
no s da matria, mas principalmente dos valores e do precrio equilibro que o regem.
Sua poesia social, engajada, problematiza o sentido e a prtica de conceitos como
cidadania e individualismo, e tenciona polos tais quais global e local, resistncia
e apatia, paixo e razo, individual e coletivo, levando a uma sensao de disperso
de valores e de caos existencial mantido sob controle atravs das normas e leis de pases
democrticos, laicos e civilizados como e como se define o Canad.
Para enfrentar um mundo sempre mais annimo e hostil, governado por foras
que esmagam a vitalidade das comunidades locais, Brand prope, atravs de sua potica,
uma valorizao do emocional, uma abertura do sujeito em direo ao outro, mas no
no simples sentido da tolerncia, valor politicamente correto e empregado nas chamadas
sociedades multiculturais que mascara a diferena, o eu, o outsider. Trata-se de uma
operao mais radical, de uma reviso da episteme, na medida em que, na linha do que

44
WALCOTT; SANDERS. At the full and change of Canlit: an interview with Dionne Brand, p. 24.
45
BRAND. A map to the door of no return: notes to belonging, p. 36.
46
BRYDON. Dionne Brands global intimacies: practising affective citizenship, p. 991.

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propunham os tericos caribenhos como Glissant, implica a escuta mais ontolgica do
outro considerado como diferente, uno e autnomo, mas que se constri sempre em
termos relacionais: com relao a outro individuo, a seu entorno ambiental, partilha
de um substrato invisvel de valores e representaes.
Por ser uma autora migrante e diasprica, Brand domina instrumentos crticos e
emocionais, fazendo jus a uma lucidez da mente e do corao e do que Lorraine Code
definiu como o alongamento da imaginao. 47 Isso permite que suas personagens,
annimas, vejam e ouam o que no dito pelos canais oficiais de informao, tidos
com desconfiana pelo olhar da autora: ela escuta o que nunca foi mostrado. 48 A
reviso da histria coteja a observao, pessimista, da desagregao do humano no
sentido mais amplo na contemporaneidade, e nesse movimento de vaivm entre ontem
e hoje, Brand universaliza seu canto, preocupado com a definio de uma cidadania
humana, reinventada, como forma de pertencer e atuar no mundo hoje, como mulher
negra migrante. O fragmento a seguir mostra bem sua inteno de nos alertar e envolver
o leitor sobre a importncia de preservar o planeta, prestando sua voz para desempenhar
uma funo de conscincia coletiva que, de acordo com as j citadas reflexes de Said,
consistiria no papel do intelectual atuante: afirmo que esse grande mundo a histria,
no tenho nenhuma outra; 49 mesmo que essa atuao se restrinja simples aceitao
consciente de que ns tambm somos parte da destruio em curso.
A preocupao de cunho mais global gera um olhar atento e crtico para com os
meios de comunicao, paralelamente a um canto de alerta para a destruio do planeta,
devido ao crescimento urbano, quando afirma que a terra j est se corroendo com as
cidades, 50 e refora esse sentimento quando olha para as diferentes regies do mundo,
envolvidas em embates de cunho ambiental:

the Forest we destroyed


as far as
the Amazonas forehead, the Congos gut,
the trees we peeled of rough butter
full knowing, theres something wrong
with this.51

Nesse sentido, podemos concluir que o corpo, em Brand, est mais integrado com
o cosmos, interage e se v afetado por provocaes de natureza global, interagindo com
o ambiente que o rodeia, no s em termos culturais e simblicos, mas tambm no que
diz respeito a sua geografia e ecologia.
Por outro lado, a inscrio corporal da vivncia e do sentimento da dispora se
exemplifica nitidamente na obra da haitiana Marie-Clie Agnant, pois, j desde o ttulo
da coletnea de poemas Balafres, somos apresentados a um mundo onde os registros

47
Citado por BRYDON. Dionne Brands global intimacies: practising affective citizenship, p. 1000.
48
BRAND. Inventory, p. 28, traduo nossa.
49
BRAND. Inventory, p. 84, traduo nossa.
50
BRAND. Inventory, p. 40.
51
BRAND. Inventory, p. 31.

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corporais so signos de um discurso mais profundo, que no s reenvia biografia, mas
testemunha o discurso da histria de uma nao em processo de desmoronamento
mergulhada nas runas: o Haiti. Mas, diferentemente do que ocorre em Brand, a
perspectiva potica da haitiana no aborda a sociedade global originada pela nova
dispora contempornea e suas mazelas. Agnant mantm uma conexo simblica e afetiva
muito forte com sua terra natal, e dessa relao surgem os poemas includos em Balafres
e publicados em 1994.
O poema que d ttulo coletnea manifesta o uso de uma srie de metforas
corporais (cicatrizes, rugas, unhas) que servem para intensificar o efeito de proximidade
entre a dor alheia, relatada no texto e observada pela voz lrica, e a maneira como essa
dor sentida e vivida: sobre as rugas do mundo / para conjurar o esquecimento / quero
escrever // um longo poema// as unhas fincadas na casca da terra / na cavidade da
mentira / quero escrever // frases testemunhos.52
A observao de uma srie de abusos vividos pelo eu lrico, sugeridos no poema
o esquecimento, a mentira, a cumplicidade e a censura parece dialogar com os abusos
e problemas que acometem o Haiti, mencionados ao longo do livro. Alm disso, o tom
trgico do texto, ressaltado pelos fonemas cortantes no original em francs, d fora
voz quase coral da autora, e acrescenta uma noo de coletividade que se ergue para
abraar a causa do mundo.
No entanto, a perspectiva gendrada norteia o mergulho crtico no arquivo da
memria, pois Agnant questiona a dominao masculina vigente na prpria tradio
cultural, principalmente no tocante ao direito de uma mulher se tornar escritora. Nesse
sentido, a autora emprega um eu afirmativo bem demarcado, que semeia claros indcios
de uma subjetividade que gravou na pele as cicatrizes da prpria histria, s vezes
personificada na histria coletiva do pas. O corpo se torna com frequncia o receptculo
desse arquivo, e tambm a vlvula de escape dos sentimentos mais contrastantes do
sujeito lrico: por meio dele, ou melhor, por meio da insero de metforas corporais na
corporalidade do texto, encarnam-se os abusos, as violncias, as ternuras, os afetos, os
desejos de uma Agnant porta-voz da condio dolorida dos migrantes, dos que se
encontram no entre-lugar, no exlio, e que se agarram s palavras para elaborar o
trauma da dor mutiladora da separao da terra natal qual se refere Edward Said. 53
Uma dor que no decorre do fato de estar fora da prpria terra, e sim do fato de no
saber mais voltar, por no se reconhecer mais no lugar de origem, como lemos nos
fragmentos que seguem: Eu j no sei encontrar o caminho de casa) / Com os anos /
nem sou mais esta aqui / aquela / aquela outra do lado. 54 O reposicionamento do
sujeito diasprico parece ambguo, instvel, e aponta para uma multiplicidade de roots
e routes, ou seja, para noes de uma origem deslocada no tempo e na lembrana, e
cujos traos humanos e geogrficos tambm parecem ter sofrido um processo de eroso
causado pelo distanciamento temporal da autora. Essa noo de origem, luz dessas
reflexes, indica novos caminhos de construo do sujeito diasprico, routes que ainda

52
AGNANT. Balafres, p. 14, traduo nossa.
53
SAID. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios, p. 41.
54
AGNANT. Balafres, p. 68.

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esto abertas para futuros desdobramentos, mas que no permitem a cristalizao, a
idealizao e a falsa nostalgia de um retorno utpico.
Conforme observamos, tanto Brand quanto Agnant recusam essa noo de
retorno (veja-se o prprio ttulo do ensaio de Brand, A map to the door of no return:
notes to belonging), tentando ressignificar o lugar de origem (seja ele geogrfico ou factual,
isto , a migrao) a partir da observao crtica e distanciada das autoras, atualizando
o passado escravo em Brand, ou o passado miservel e de runas em Agnant, e colocando-
o em tenso no jogo de foras do presente.
Se considerarmos as quatro autoras em perspectiva, podemos observar que para
Evaristo e Clifton o escrutnio do arquivo da dispora parece crucial para a definio de
um discurso afirmativo e de assuno da voz de um sujeito que se localiza temporal e
geograficamente no seu contexto cultural. J para Brand e Agnant, duas poetas que
vivenciaram a experincia migratria, alm da conscincia do legado da dispora negra,
a trajetria de disperso parece inevitvel e inclusive necessria para a construo de
um novo sujeito, capaz de jogar um novo olhar sobre a sociedade civil contempornea,
fomentado pela prxis potica, civil e poltica.
AA

RESUMEN
Este artculo pretende poner en dilogo la produccin potica
de cuatro autoras afrodescendentes contemporneas Dionne
Brand, Lucille Clifton, Conceio Evaristo y Marie-Clie
Agnant), con el objetivo de verificar de cul manera ellas se
acercan y actualizan temticas caras a la dispora africana que
origin las sociedades donde ellas se formaron. Por otra parte,
se desea verificar cmo el proceso migratorio de dos de ellas
(Brand y Agant) interfiere en la elaboracin de sus universos
poticos, actualizando las cuestiones de la dispora a partir de
las perspectivas globales contemporneas.

PALABRAS-CLAVE
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