O Real Segundo Jacques-Alain Miller Criticado Por Slavoj Zizek PDF
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In simple English, no original (N. dos T.).
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Gradualmente essa natureza vai sendo substituda por um Real contingente,
um Real fora de uma lei, um Real que sempre revoluciona suas prprias regras, um
Real que resiste qualquer incluso num mundo totalista, universo de significado.
Agora, como deveramos reagir a tal constelao? Deveramos defender uma
aproximao defensiva e buscar um novo limite, o retorno a, ou, antes, a inveno
de um novo equilbrio? Isto o que a chamada biotica se esfora em fazer em
relao biotecnologia. Por causa disso, eu suspeito profundamente da assim
chamada biotica.
Agora farei algo um tanto enfadonho para descrever para vocs onde Miller
est ainda mais errado. Ser uma citao longa de duas pginas, mas de um texto
programtico para um novo congresso de sua escola lacaniana que estava dedicado
a ttulos muito bombsticos: O Real para o Sculo XXI (Ai meu Deus OK).
Por favor, escutem com ateno, simples. Uma grande citao de Miller:
Quero dizer, esta linha de pensamento espero que tenha sido relativamente
clara e simples algo que, se vivssemos numa democracia popular, Miller
acabaria no gulag, sem qualquer possibilidade de sair de l. Por qu? O que acho
problemtico nessa passagem?
Os problemas comeam pela noo de Real como natureza em sua
regularidade, como aquela que sempre regressa ao seu lugar. Isso parece
compreensvel, sabem, em sociedade pr-modernas, no Antigo Egito e etc. O ltimo
ponto de referncia foi a regularidade do movimento dos corpos: as estrelas
aparecem toda manh naquele lugar, o inverno, o outono, as estaes... h uma
regularidade maior na natureza, a qual deveria ser tambm esta regularidade
celestial, o ltimo ponto de referncia para o nosso universo humano e etc. Mas eu
considero que Miller perde/esquece algo aqui; ele faz uma leitura muito simplista
desta regularidade pr-moderna, como notou Lacan: por exemplo, para os astecas
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antigos e outras civilizaes de sacrifcio o Real natural no era simplesmente uma
regularidade (que nada) que no pode ser perturbada. Os astecas antigos
organizavam o sacrifcio humano para garantir o qu? Isso foi o que Lacan observou
[e] algo maravilhoso: por que os astecas antigos sacrificavam pessoas? No para
lutar contra as mudanas, no para garantir que quando houvesse uma seca haveria
chuva ou qualquer coisa assim, mas isto to bonito eles faziam-no
precisamente para garantir que as coisas mais costumeiras e esperadas
ocorressem. Sacrificavam pessoas para sustentar a prpria regularidade da
natureza. Vidas humanas tm de ser sacrificadas para que a natureza revolva em
seu modo regular, para que o sol nasa de manh, e assim por diante. Vocs podem
encontrar isto no que sabemos sobre a mitologia dos astecas antigos e etc. Mais
uma vez, o grande medo deles era: se ns humanos no realizarmos nossos rituais,
o sol no ir nascer, e por a vai. O Real da ordem natural onde tudo retorna ao seu
prprio lugar j repousa numa interveno simblica. No apenas um Real natural
com o qual podemos contar. Ele no independente de ns: temos de sustent-lo
atravs dos nossos rituais e sacrifcios, e h uma passagem chave deste Real
sustentada pelo sacrifcio simblico para o Real da cincia moderna, o real
newtoniano das leis naturais, da rede de causas e efeitos. apenas este Real, o
real cientfico, que realmente se volta por si s, isto , voc no precisa sacrificar,
digamos, a sua sogra (embora eu gostasse de fazer isso) para que o sol volte a
nascer na manh seguinte... (risos) (por que no? Mas ok, fica pra outra histria).
Ento aqui, novamente, apenas uma citao mais curta, desta vez de Miller:
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Lacan diz isso literalmente: Le Rel est une impasse de formalization. O
Real um impasse de formalizao. Essa a melhor frmula de Lacan. E assim
que devemos ler as frmulas da sexuao.
De novo, eu sempre desenvolvo esse ponto, no vou entrar em detalhes,
vocs podem ler nos meus livros e por a. O antagonismo primordial, a
impossibilidade do antagonismo. E ele no tem um claro ponto externo real, isso o
pior do ps-modernismo. s vezes Nietzsche escreve dessa forma, como se fosse:
O Real a verdade demasiadamente forte para ns, Se voc olhar diretamente
para ele, voc ficar cego, Ns s podemos apreend-lo a partir de fragmentos e
por assim vai. No, o Real apenas uma impossibilidade imanente. E quando ns
atribumos a esta impossibilidade uma causa externa, este talvez seja o gesto mais
elementar do fetichismo. E eu posso lhes dar um exemplo poltico bem simples aqui:
o antissemitismo. O antissemitismo precisamente isso: de forma a evitar a
imanncia do antagonismo social, voc projeta a causa em um elemento externo
perturbador os judeus que introduz o antagonismo e assim por diante. Isso
algo que vocs encontram em praticamente todos os meus livros, mas o que mais
importante e eu quero desenvolver aqui so duas coisas: primeiramente, de que
forma Miller, para seguir essa linha de raciocnio, subitamente se torna butleriano,
em referncia Judith Butler. Isto , ele reduz a diferena sexual a uma operao
simblica binria: homens fazem isso, mulheres fazem aquilo, e assim por diante.
Mas o que Lacan faz em suas frmulas da sexuao exatamente o oposto.
Quando Lacan fala da posio masculina, ele no descreve uma srie de
caractersticas, mas um certo impasse. Para colocar de outra forma, no nvel das
relaes sociais, a que as coisas (Onde ns estamos? Eu farei... Meu deus,
porra, o tempo est passando Ok).
O ponto mais perigoso como Miller estende essa lgica tambm ao
capitalismo. Para ele, novamente, estamos atualmente passando da diferena
sexual, e ele entende que a diferena sexual est sendo gradualmente minada, no
h mais dois sexos, mas uma multiplicidade louca de identidades sexuais. E para
ele o mesmo com o capitalismo. No mais uma lgica binria, mas uma
proliferao de multiplicidades. E eis a concluso perigosa: sem antagonismo, sem
lgica binria e assim por diante. (Acho que...) Em outras palavras, quando Miller
inscreve a cincia e o capitalismo nessa lgica do Real puro, fora da simbolizao e
assim por diante, ele simplesmente aceita a autodescrio ideolgica do capitalismo
tardio. assim que o capitalismo atual agora eu vou falar algo desagradvel
apesar de ela ainda ser minha amiga , a descrio ideolgica do capitalismo atual
butleriana, sabem: no h binrios, apenas a imanncia, autoconstruo, fora da lei
simblica e assim por diante. Eu defendo que exatamente esse o engano
ideolgico. Essa ideia do capitalismo atual, e no importa se voc quer control-lo
ou se voc como os chamados aceleracionistas, como Negri e outros que
defendem que o nico jeito para o capitalismo nos abandonarmos completamente
a esse Real puro, absurdo, para alm de quaisquer leis simblicas, e assim por
diante... No, desculpem-me, mas eu me mantenho aqui um marxista tradicional:
essa ideia de capitalismo em que floresce uma multiplicidade de identidades, ns
somos todos empreendedores capitalistas de ns mesmos, no existe lei, apenas
uma injuno para ser livre, esses so os belos motes de 1968: vivre sans temps
morts, viva sem tempo morto, jouir sans entraves, goze sem obstculos e etc.
Acho que o que Miller no entende que o Real puro que ele descreve
precisamente uma mscara ideolgica que esconde o antagonismo. No apenas
isso que Lacan descreve como Real puro cientfico, social, sexual , no apenas
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ele no de fato sem lei lei no sentido de um certo antagonismo bsico,
fundamental, que engendra essa exploso de multiplicidades. Lembrem-se como eu
mencionei antes o papel positivo do obstculo. precisamente o obstculo no
sentido de antagonismo ao capitalismo que faz explodir essa dinmica absurda do
capitalismo. Miller esconde isso completamente. Nem mesmo Marx puro aqui, pois
Marx aceita essa lgica absurda da dinmica capitalista. Mas ele pensa que o
capitalismo, em um certo ponto, se torna um obstculo a essa dinmica, ento se
ns abolirmos o capitalismo, para dizer de uma forma simples, ns teremos essa
dinmica de forma ainda mais absurda, a seria a verdadeira criatividade absurda.
Eu no acho que seja esse o caso. Eu acho que um grande problema para ns,
mais do que nunca, imaginar uma sociedade ps-capitalista, porque nenhum dos
modelos predominantes funciona. Eu no acredito nessa noo deleuziana de
vamos nos livrar do capitalismo, essa a noo deleuziana da desterritorializao
capitalista. muito estranho que Miller no use aqui o termo desterritorializao,
pois isso o que de fato ele quer dizer com esse Real sem lei; ele apenas
reterritorializado pelo capitalismo. Ns deveramos destruir essa reterritorializao
para obter uma reterritorializao pura, pura multiplicidade. Ou o oposto, vamos
cham-la lgica conservadora, apesar de se ter conservadores de esquerda nessa
lgica, que defende que essa modernizao radical, essa abertura sem obstculos,
uma catstrofe, que temos de inventar novos limites, novas autolimitaes, que
podem ser a natureza, para outros a religio, e assim por diante.
No, eu afirmo que a verdadeira resposta que essa a falsa oposio. O
capitalismo explode a toda hora exatamente para evitar o seu antagonismo
imanente.