Tania Stolze
Tania Stolze
Tania Stolze
Dukare! Venha nos dizer onde voc viu porcos! Primeiro v buscar a
borduna. Tire o calo, pegue um punhado de cinzas e esfregue nos tes-
tculos. Ento, segure a borduna e nos conte o que voc viu. E os Juru-
na do grandes risadas. assim que Mareaji interpela seu primo que h
pouco retornou da pesca dizendo ter visto em tal lugar uma vara de por-
cos. Trata-se de uma cena de brincadeira tpica da relao entre pri-
mos cruzados, e quer dizer, nesse caso, mais ou menos o seguinte: eu o
desafio a mostrar aqui diante de todos que voc homem! O sol se pe.
Os homens vo-se reunindo porta da casa da me de Mareaji, onde ele
toma a palavra para interrogar Dukare, que se mostra muito envergonha-
do, e combinar com os outros uma caada para o dia seguinte. Dukare
muito jovem, casado h pouco tempo, por isso tmido demais para assu-
mir a organizao da caada. Mareaji o estimula a faz-lo e ao mesmo
tempo toma a frente do grupo.
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que sonhou com uma aldeia de porcos em cujo porto ela e eu tomvamos
banho, at que descobrimos que estvamos atoladas em uma lama da
qual os porcos diziam ser, justamente, sua mandioca puba.
O porco-xam diferencia-se dos demais por carecer de plos no tra-
seiro e ter plos avermelhados na cara. Representa um dos espritos auxi-
liares que o xam pode adquirir na iniciao. Em sonho, o xam v esse
porco se transformar em um homem, e busca fazer amizade com ele, ofe-
recendo-lhe o cigarro para fumar. Ao sentir que a amizade est consoli-
dada, o xam lhe diz que os homens de seu grupo pretendem fazer uma
caada; e o porco-xam combina com ele o local e o dia da travessia. Os
caadores vo caa.
preciso deixar sobreviver o auxiliar do xam, e isso vale, inclusive,
para as caadas que no so possibilitadas por xamanismo. Ningum se
preocupa em identificar antecipadamente o porco-xam; ele sabe se livrar
dos caadores, atingindo a margem frente da vara ou nadando com
ligeireza rio abaixo. Em todo caso, ele aquele que seguiu vivo adiante.
Se o acompanham mais um ou dois, os caadores tambm os deixam
escapar: so a esposa e/ou o filho. No caso de algum o matar sem que-
rer, jogam-no no rio, pois a carne tem sabor de tabaco queimado em fun-
o do hbito de fumar o cigarro do xam. Alm disso, se algum o matar,
ele pode levar consigo a alma do xam juruna que, conseqentemente,
adoecer e morrer.
A morte de um porco-xam traz-lhe um destino singular. Sua alma
vai viver com as almas dos mortos juruna, de cuja vida participa como
um semelhante. Em contrapartida, um caador que morresse na caa se
tornaria um porco.
Conta-se que houve um tempo em que xams se especializavam no
xamanismo de caa, consumindo um vegetal conhecido como droga do
porco que cresce nos rochedos em cujo interior habitam os mortos. Dese-
jando-se comer a caa, dizia-se ao xam: V chamar os porcos! Ele usa-
va para isso um apito de coco, rplica do apito que os porcos fabricam e
definem como sua flauta. Os porcos ouviam a msica e diziam: Eles
vo dar uma festa! vamos! vamos! Alegres com a oportunidade de dan-
ar e beber com os Juruna, demoravam de um a trs dias para chegar,
conforme a distncia em que se encontravam. Quando desembocavam
no rio, atravessavam em direo aos Juruna, passando por entre as casas
(situadas em uma ilha), e de novo entravam nas guas. Nesse momento,
vocs vo e matam, dizia o xam. Era excelente!.
Havia um xam que recebia na aldeia, durante a viglia, a visita de
um porco-xam, com quem ele fumava, bebia cauim e danava. O visi-
24 O DOIS E SEU MLTIPLO
Ele recitou,
Eles davam gargalhadas,
Ah, quer dizer que melfero?
Assim, quando o xam est sonhando com porco,
Ou quando est embriagado,
Ns dizemos: No digam bobagens!.
O um e seu outro
mento guarani recusa o um que devemos concluir sua opo pelo mlti-
plo esta oposio sendo demasiadamente grega. Nem o um nem o ml-
tiplo, trata-se antes de uma afirmao do dois. A verdade na cosmologia
juruna (onde, alis, inmeros paralelos podem ser traados com a cosmo-
logia guarani), sendo decididamente alheia ao um, alheia ao ponto de
vista de Srio, foi por mim interpretada como pluralidade e polivocidade
projetada, como ela , sobre planos csmicos diferenciados ou disper-
sa entre pontos de vista diferentes (Lima 1995:438). Porm, isso apenas
uma abordagem de conjunto sobre o perspectivismo juruna, e no deve
ser compreendido como multiplicidade na acepo da metafsica ociden-
tal. Em uma abordagem mais localizada ou atenciosa para com o regime
da variao dos pontos de vista o que se observa um regime binrio:
tucunar/cadver, carnia/moqueado, gua/sangue, puba seca/carne hu-
mana podre, humanos/porcos e assim por diante. Estas categorias sendo
objeto de uma disputa entre os humanos e alguma outra categoria de al-
teridade.
No creio afastar-me da hiptese de Clastres no que vou tentar mos-
trar agora: como o dois tambm tem o seu mltiplo. Passamos assim para
a anlise da etnografia da caa dos porcos apresentada no incio deste
artigo.
por dois sujeitos, conforme nosso modelo relativista. Pelo contrrio, ela
pe um acontecimento para os humanos e um acontecimento para os por-
cos. Em outras palavras, ela se desdobra em dois acontecimentos parale-
los (melhor dizendo, paralelsticos 11),
como pessoas e agem como humanos: bebem seu cauim, tocam sua flau-
ta, defrontam-se com desconhecidos na mata, no rio ou nas margens das
roas alheias.
Se esse jogo de simetrias que a cosmologia juruna constri nos d
algum direito de seguir, podemos deduzir que a dimenso animal do ani-
mal (a face animal dos porcos), fazendo parte da experincia sensvel dos
humanos, e escapando inteiramente aos porcos, sendo a parte de si igno-
rada pelo sujeito, est para os porcos assim como a experincia da alma
est para os humanos. Se o animal pudesse ver a si mesmo, ele se defron-
taria com seu duplo. Ora, isso to impossvel quanto o para um huma-
no se defrontar com sua prpria alma. O sujeito e seu duplo se ignoram.
O duplo invisvel no exatamente porque seja imaterial, ou mes-
mo porque tenha uma matria diferente da do corpo. Alma e corpo so
conceitos que no designam primeiramente substncias, mas efeitos de
perspectivas. Esses conceitos operam por intermdio de uma noo, o
ponto de vista, que articula tanto as duas dimenses da experincia
humana (se minha alma viu porcos vivos, eu verei inimigos) quanto a di-
menso sensvel de um com a dimenso espiritual do outro. Poderamos
designar as duas ltimas como Natureza e Sobrenatureza, no esquecen-
do que tais conceitos so necessariamente dependentes do ponto de vis-
ta de algum, isto , funcionam como categorias relacionais.
Antes de prosseguir, gostaria de fornecer uma evidncia suplemen-
tar para a interpretao que proponho. Tomemos o tema da captura da
alma do caador pela caa. Um aspecto aparentemente irracional des-
ta... como dizer... metafsica da caa seria o seguinte. Porcos e humanos
confrontando-se na caa so viventes suponhamos. Uma premissa cos-
molgica elementar diz que a alma de um vivente que assinala a pre-
sena do mesmo s almas (dos mortos ou ogros-fantasma). Ou seja, assim
como um vivente no pode ver (o corpo de) uma alma, uma alma s pode
ver e atuar sobre a alma do vivente. Na caada, porm, a alma do caa-
dor, se lhe ocorre abandonar seu stio devido ao medo que atinge o sujei-
to, no apenas visvel para os porcos como capturada e vai viver com
eles, ganhando, com o tempo, corpo de porco, visvel ao olhar humano.
Minha interpretao , pois, perfeitamente justificada: uma vez projeta-
da como duplo, a alma dos caadores faz parte da apreenso sensvel dos
porcos, em contraposio ao fato de que aquilo que para os porcos repre-
senta seu prprio duplo faz parte do campo da apreenso sensvel huma-
na. O que, portanto, Natureza para os humanos intercepta a Sobrena-
tureza para os porcos, e vice-versa. por isso que estas so categorias
que antes de distinguirem este mundo e o alm em termos absolutos dife-
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renciam planos que compem cada ser e acontecimento. So elas que de-
finem a unidade e a relatividade do dois.
Voltemos aos dois acontecimentos paralelos em que consiste a caa.
Cada sujeito caadores e guerreiros tem o seu prprio ponto de vis-
ta como realidade sensvel, e considera o ponto de vista do Outro como
a dimenso supra-sensvel ou sobrenatural da sua experincia (no
haveria de ser toa que os porcos tm o seu xam!). Deste modo, o acon-
tecimento, que para cada sujeito o nico verdadeiro, considerado por
ele de um duplo ponto de vista, o seu prprio e o do Outro. Ou seja, tan-
to a caa quanto o caador apreendem o seu acontecimento de um
duplo ponto de vista:
como projeo das relaes humanas defronta-se com uma perda etno-
grfica substantiva. A distino humano/animal plena de importncia
para um pensamento sempre pronto a tambm levar em conta a animali-
dade especfica do animal que atua como Outro.
Uma luta ento est em curso luta entre a caa de um e a guerra
do outro. O infortnio do caador o resvalamento da caada na guerra.
Cientes da dimenso sobrenatural que o ponto de vista dos porcos repre-
senta para eles, os humanos utilizam-se de meios atravs dos quais pre-
tendem impedir toda possibilidade de os porcos virem a impor seu ponto
de vista.
Na preparao da caada, no se brinca com as palavras custa dos
porcos, no se pode bancar o primo cruzado ou amigo do animal. Na caa-
da, no se exprime o medo gritando, como se o caador fosse a presa. Se,
para os porcos, os humanos so seus afins potenciais, e se a caa uma
guerra, aquele caador que aceitar este ponto de vista favorece a atuali-
zao da inteno virtual da caa: os porcos (o atacam e) o capturam, e
ele, morto para os humanos, acabar transformado em porco.
Como peculiar ao dilogo da afinidade (onde se aguarda o momen-
to certo, mas no se deixa o humor irnico sem resposta, isto , onde o
estmulo e a resposta so constitutivamente separados por um inter-
valo de tempo maior que o dilogo comum), dirigir brincadeiras aos por-
cos ceder-lhes a palavra involuntariamente, precipitando assim uma
inverso que se faria sentir em ambos os acontecimentos paralelos:
Notas
andorinha, mas no se trata disso; so mis produzidos por duas abelhas dife-
rentes. A propsito, em uma lista de 24 nomes de mel, predomina a associao de
particularidades da abelha com particularidades de animais. Por exemplo, o mel-
jacu produzido por uma abelha cuja cabea dita lembrar a do jacu; o mel-
sava produzido por uma que tem cheiro de sava. H casos anmalos: o mel-
coat produzido por uma abelha identificada como aquela cujas patas so
parecidas s do maribondo. H casos em que o nome construdo por associa-
o com o orifcio da colmia este o caso do mel-vagina, produzido por abe-
lhas de distintas espcies.
muito simples: aos pronomes pessoais objetivos, acrescenta-se uma partcula que
significa para. Existe, porm, uma diferena capital entre a noo propriamen-
te dita e sua expresso lingstica: esta tem um uso muito mais geral. Assim, uma
frase como isso anta para mim quer dizer, simplesmente, que o sujeito d a
certa carne o mesmo uso que outrem d anta (Lima 1995:19). Ou seja, a mesma
expresso lingstica tambm usada para se fazer analogias.
10 Isso deve ser matizado. Os urubus, por exemplo, tm certos itens culturais
ria jakobsoniana da potica (Jakobson 1963; 1977). Esse o princpio que predo-
mina nas narrativas mticas indgenas e os Juruna empregam-no eventualmente
na prosa cotidiana. Ver seu aparecimento nesse comentrio sobre a refeio das
almas no festival dos mortos (inay):
Os inay comem a comida, mas no comem, no.
Eles dizem que as panelas esto vazias, mentira deles!
Para si prprios a comida acabou, para ns prprios a comida est l.
Eles s comem a alma do peixe, e, comendo, a alma acaba para eles.
O peixe acabou! As panelas esto vazias!
Vocs podem comer tambm... se sobrou... vocs podem comer, dizem eles
(Lima 1995:260).
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Resumo Abstract
A partir da caa de porco do mato, este This article takes the wild boar hunt as
artigo um ensaio etnogrfico sobre the basis for an ethnographic essay on
uma noo indgena de ponto de vista, an indigenous notion of point of view,
aplicada ao campo das relaes entre o applied to the field of relations between
humano e o animal, na cosmologia de humans and animals in the cosmology
um povo Tupi, os Juruna. Alm de reve- of a Tupi people, the Juruna. In addition
lar a complexidade particular dessas to revealing the particular complexity
relaes, a noo de ponto de vista per- of these relations, the concept of point
mite mostrar como a noo de duplo of view shows how the notion of dou-
irredutvel noo de alma, como na- ble is irreducible to that of soul, like
tureza e sobrenatureza so efeitos natureand supernatureare effects
de perspectivas, e como, finalmente, a of perspectives, and finally how the hunt
caa se insere em uma estrutura es- is included in a multiple bilinear spa-
pao-temporal bilinear mltipla, evo- tial/temporal structure, evoking the
cadora dos labirintos que os Juruna labyrinths that the Juruna paint on
desenham na pele. their skin.