Edmund Leach - Sistemas Politicos Da Alta Birmânia - Introducao-3-6-7-9-Conclusao PDF
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Parece que essa testemunha considerava que nos ltimos setenta anos ou
aproximadamente sua famlia tinha sido simultaneamente kachin e chan. Como
kachin, a testemunha era membro da linhagem do cl Lahtaw(ng). Como chan, era
budista e membro do cl Hkam, a casa real do Estado de Mng Mao.
Alm disso, Mng Mao - o conhecido Estado Chan desse nome em territrio
chins - tratado aqui como sendo uma entidade poltica do mesmo tipo e tendo
quase a mesma situao de Mng Hko, que aos olhos da administrao britnica
de 1930 nada mais era que um crculo administrativo kachin no Estado Hsenwi
do Norte.
Dados desse tipo no podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema
etnogrfico que, em termos lingsticos, situa kachins e chans em categorias
raciais diferentes.
O problema, contudo, no simplesmente o de distinguir entre kachins e
chans; h tambm a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura
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INTRO D U O
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SISTEM AS PO LTICO S DA ALTA BIRM NIA
Estrutura Social
Unidades Sociais
dos outros no s em escala mas tambm nos princpios formais luz dos quais
so organizados. aqui que reside o ponto fundamental do nosso problema.
Para certas partes da Regio das Colinas de Kachin os registros histricos
genunos remontam ao comeo do sculo XIX. Isso mostra claramente que durante
os ltimos 130 anos a organizao poltica da regio foi muito instvel. Pequenas
unidades polticas autnomas tenderam freqentemente a agregar-se em sistemas
maiores; hierarquias feudais em larga escala fragmentaram-se em unidades meno
res. Houve mudanas violentas e muito rpidas na distribuio global do poder
poltico. E portanto metodologicamente errneo tratar como tipos independentes
as diferentes variedades de sistemas polticos que encontramos hoje nessa regio;
deveriam ser consideradas claramente como parte de um sistema total mais amplo
em contnua mudana. Mas a essncia de minha tese que o processo pelo qual as
pequenas unidades se desenvolvem em unidades maiores e as grandes unidades se
fragmentam em menores no uma simples parte do processo de continuidade
estrutural; no e apenas um processo de segmentao e agregao, um processo
que envolve mudana estrutural. o mecanismo desse processo de mudana que
nos interessa em particular.
No h dvida de que tanto o estudo quanto a descrio da mudana social
em contextos antropolgicos comuns apresenta grandes dificuldades. Os estudos
de campo so de curta durao, os registros histricos raramente contm dados do
tipo correto em pormenores adequados. Em verdade, embora os antroplogos
tenham declarado amide um interesse especial pelo assunto, sua discusso terica
dos problemas da mudana social tem merecido at agora poucos aplausos12.
Mesmo assim, parece-me que pelo menos algumas das dificuldades s
surgem como um produto secundrio dos prprios falsos pressupostos do antrop
logo acerca da natureza desses dados.
Os antroplogos sociais ingleses tenderam a extrair seus conceitos bsicos
muito mais de Durkheim do que de Pareto ou de Max Weber. Em conseqncia,
esto fortemente predispostos em favor de sociedades que apresentam sintomas de
integrao funcional, solidariedade social, uniformidade cultural, equil
brio estrutural. Essas sociedades, que os historiadores ou cientistas polticos bem
poderiam considerar como moribundas, costumam ser vistas pelos antroplogos
como ricas e idealmente afortunadas. As sociedades que exibem sintomas de
faccionarismo e conflito interno que conduzem a rpida mudana so, por outro
lado, suspeitas de anomia e de decadncia patolgica13.
12. Por exem plo, Malinowski (1945); G. & M. W ilson (1945); Herskovits (1949).
13. Homans (1951), pp. 336 e s.
INTRODUO
Sistemas de M odelo
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SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
14. Salvo quando declarado em contrrio, Iodas as palavras nativas usadas neste livro so palavras da
lngua jinghpaw pronunciadas de acordo com o sistema de romanizao criado por Hanson; cf. Hanson
(1906).
15. Leach (1952), pp. 40-45.
INTRO DU O
16. ...em contradio com o sistema, e deve acarretar a sua runa. Lvi-Strauss (1949), p. 325.
17. Para esse uso da expresso pessoa social, cf. especialmente Radcliffe-Brown (1940), p. 5.
18. Malinowski (1944); Parsons (1949); Parsons & Shils (1951), Parte II.
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
Ritual
parecem satisfazer. Mas os fatos que se revelam desse modo so fatos tcnicos; a
anlise no fornece nenhum critrio para distinguir as peculiaridades de alguma
cultura ou de alguma sociedade. Pouqussimas aes, com efeito, tm essa forma
elementar funcionalmente definida. Por exemplo, se se deseja cultivar arroz,
certamente essencial e funcionalmente necessrio limpar um pedao de cho e
jogar sementes nele. E sem dvida as perspectivas de uma boa colheita melhoraro
se o terreno for cercado e as ervas daninhas forem capinadas de quando em quando.
Os kachins fazem todas essas coisas e, na medida em que o fazem, esto executando
simples atos tcnicos de um tipo funcional. Essas aes servem para atender a
necessidades bsicas. Mas h muito mais do que isso. No procedimento costu
meiro dos kachins, as rotinas de limpar o terreno, plantar as sementes, cercar o
pedao de terra e capinar as ervas daninhas so todas padronizadas de acordo com
as convenes formais e entremeadas com todos os tipos de adornos e ornatos
tecnicamente suprfluos. So esses adornos e ornatos que tornam o desempenho
um desempenho kachin, e no um mero ato funcional. E o mesmo sucede com todo
tipo de ao tcnica; h sempre o elemento que funcionalmente essencial, e outro
elemento que apenas o costume local, um adorno esttico. Tais adornos estticos,
Malinowski os chama de costume neutro21, e nesse esquema de anlise funcional
so tratados como irrelevncias menores. Parece-me, contudo, que so precisamen
te esses adornos costumeiros que fornecem ao antroplogo social seus dados
bsicos. Logicamente, esttica e tica so idnticas22. Se quisermos entender as
normas ticas de uma sociedade, a esttica que devemos estudar. Na origem, os
pormenores do costume podem ser um acidente histrico; mas para os indivduos
que vivem numa sociedade tais pormenores nunca podem ser irrelevantes, so parte
do sistema total de comunicao interpessoal dentro do grupo. So aes simbli
cas, representaes. tarefa do antroplogo tentar descobrir e traduzir para seu
prprio jargo tcnico aquilo que est simbolizado ou representado.
Tudo isso, claro, est muito prximo de Durkheim. Mas Durkheim e seus
discpulos parecem ter acreditado que as representaes coletivas estavam confi
nadas esfera do sagrado, e desde que afirmam que a dicotomia entre o sagrado e
o profano era universal e absoluta, inferia-se que s eram especificamente sagrados
os smbolos que o antroplogo submetia anlise.
Quanto a mim, acho injustificvel a nfase que Durkheim coloca na dicoto
mia absoluta entre o sagrado e o profano23. Parece, antes, que as aes acontecem
numa escala contnua. Num extremo temos as aes que so inteiramente profanas,
inteiramente funcionais, pura e simples tcnica; no outro, temos as aes que so
inteiramente sagradas, estritamente estticas, tecnicamente no-funcionais. Entre
esses dois extremos temos a grande maioria das aes sociais que participam em
parte de uma das esferas e em parte da outra.
Desse ponto de vista, tcnica e ritual, profano e sagrado no denotam tipos
de ao, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de ao. A tcnica tem
conseqncias materiais econmicas que so mensurveis e predizveis; o ritual,
por outro lado, uma declarao simblica que diz alguma coisa sobre os
indivduos envolvidos na ao. Assim, de certos pontos de vista pode-se dizer que
um sacrifcio religioso kachin um ato puramente tcnico e econmico. um
procedimento para matar gado e distribuir a carne, e acho que talvez haja pouca
dvida de que para a maioria dos kachins isso parece ser o aspecto mais importante
da questo. Um natgalaw (executar um nat, sacrifcio) quase sinnimo de uma
boa festa. Mas do ponto de vista do observador h muita coisa que ocorre num
sacrifcio que absolutamente irrelevante no que concerne a matadouro, a cozi
mento e a distribuio de carne. So esses outros aspectos que tm significado
como smbolos de status social, e so esses outros aspectos que descrevo como
rituais quer envolvam ou no diretamente qualquer conceituao do sobrenatural
ou do metafsico24.
O mito, em minha terminologia, a contrapartida do ritual; mito implica
ritual, ritual implica mito, ambos so uma s e a mesma coisa. Essa posio
ligeiramente diferente das teorias de Jane Harrison, de Durkheim e de Malinowski.
A doutrina clssica na antropologia social inglesa que mito e ritual so entidades
conceitualmente distintas que perpetuam uma outra mediante uma interdepen
dncia funcional - o rito uma dramatizao do mito, o mito a sano ou a
justificativa do rito. Esse enfoque do material torna possvel discutir os mitos
isoladamente como constituindo um sistema de crenas, e de fato uma parte muito
grande da literatura antropolgica sobre religio diz respeito quase totalmente
discusso do contedo da crena e da racionalidade ou no desse contedo. Mas
tais argumentos parecem-me um contra-senso escolstico. A meu ver, o mito
encarado como uma afirmao em palavras diz a mesma coisa que o ritual
encarado como uma afirmao em ao. Indagar sobre o contedo da crena que
no est contido no contedo do ritual um contra-senso.
Se eu desenhar um diagrama grosseiro de um automvel no quadro-negro e
escrever embaixo isto um carro, ambas as declaraes - o desenho e o escrito
24. Cf. a distino feita por Merton (1951) entre funo manifesta e funo latente.
IUTRODVO
- dizem a mesma coisa - nenhuma diz mais do que a outra, e seria claramente
um contra-senso perguntar: "0 carro Ford ou Cadillac? De igual modo, parece-
me que, se eu vir um kachin matando um porco e lhe perguntar 0 que est fazendo
e ele disser nat jaw nngai - Estou dando-o aos nats" esta afirmao 6 apenas
uma descrio do que ele est fazendo. um contra-senso fazer perguntas como:
Os nats tm pernas? Eles comem carne? Eles vivem no cu?
Em algumas partes deste livro farei freqentes referncias mitologia kachin,
mas no farei nenhuma tentativa de encontrar qualquer coerncia lgica nos mitos
a que me refiro. Os mitos, para mim, so apenas um modo de descrever certos tipos
de comportamento humano; o jargo do antroplogo e o uso que ele faz dos
modelos estruturais so outras tantas maneiras de descrever os mesmos tipos de
comportamento humano. Na anlise sociolgica nunca podemos ter uma autono
mia absoluta. Por abstrata que seja a minha representao, minha preocupao
sempre com o mundo material do comportamento humano observvel, nunca com
a metafsica ou com sistemas de idias que tais.
Interpretao
Em suma, portanto, minha opinio aqui que ao ritual e crena devem ser
entendidas como formas de afirmao simblica sobre a ordem social. Embora eu
no afirme que os antroplogos esto sempre em condies de interpretar esse
simbolismo, digo entretanto que a principal tarefa da antropologia social tentar
tal interpretao25.
Devo admitir aqui um pressuposto psicolgico bsico. Suponho que todos os
seres humanos, qualquer que seja a sua cultura e o seu grau de complexidade
mental, tendem a construir smbolos e a fazer associaes mentais do mesmo tipo
geral. Isso uma suposio muito ampla, se bem que todos os antroplogos a
faam. A situao importa nisto: suponho que com pacincia eu, um ingls, posso
aprender a falar qualquer outra lngua verbal - por exemplo, kachin. Alem disso,
suponho que ento serei capaz de dar uma traduo aproximada em ingls de
qualquer afirmao verbal comum feita por um kachin. Quando se trata de afirma
es que, embora verbais, so inteiramente simblicas - como, por exemplo, na
poesia , a traduo toma-se muito difcil, visto que uma traduo literal, palavra
por palavra, provavelmente no traz quaisquer associaes para o leitor ingls
25. O conceito de tid o s, tal com o foi desenvolvido por Batcson (1936), lem relevncia para essa parte de
minha argumentao.
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
comum; suponho todavia que posso, com pacincia, chegar a compreender apro
ximadamente at mesmo a poesia de uma cultura estrangeira e que posso ento
comunicar a outros essa compreenso. Da mesma maneira, suponho que posso dar
uma interpretao aproximada mesmo de aes simblicas no-verbais, como itens
do ritual. difcil justificar completamente esse tipo de suposio, mas sem ele
todas as atividades dos antroplogos tornam-se sem sentido.
Desse ponto de vista posso voltar ao problema que levantei no comeo deste
captulo, isto , a relao entre uma estrutura social considerada como modelo
abstrato de uma sociedade ideal e a estrutura social de qualquer sociedade emprica
concreta.
Estou afirmando que onde quer que eu encontre um ritual (no sentido em
que o defini) posso, como antroplogo, interpret-lo.
O ritual em seu contexto cultural um modelo de smbolos; as palavras com
que o interpreto so outro modelo de smbolos composto largamente de termos
tcnicos inventados por antroplogos - palavras como linhagem, classe, status etc.
Os dois sistemas de smbolo tm algo em comum, a saber, uma estrutura comum.
De igual modo, uma partitura musical e sua execuo tm uma estrutura comum26.
Isso o que estou querendo dizer quando afirmo que o ritual torna explcita a
estrutura social.
A estrutura que simbolizada no ritual o sistema das relaes corretas
socialmente aprovadas entre indivduos e grupos. Essas relaes no so formal
mente reconhecidas em todos os tempos. Quando os homens esto envolvidos em
atividades prticas para satisfazer o que Malinowski denomina as necessidades
bsicas, as implicaes das relaes estruturais podem ser totalmente desprezadas;
nm chefe kachin trabalha em seu campo lado a lado com o menor dos seus servos.
Na verdade, estou preparado para afirmar que o desprezo da estrutura formal
essencial para o prosseguimento das atividades sociais informais ordinrias.
No entanto, se quisermos evitar a anarquia, os indivduos que compem uma
sociedade devem de tempos em tempos ser lembrados, pelo menos em smbolo, da
ordem bsica que presumivelmente guia suas atividades sociais. Os desempenhos
rituais tm essa funo para o grupo participante como um todo27; eles tornam
momentaneamente explcito aquilo que de outro modo fico.
Minha opinio quanto ao tipo de relao que existe entre estrutura social e
cultura58 uma decorrncia imediata disso. A cultura proporciona a forma, a
roupagem da situao social. Para mim, a situao cultural um fator dado,
um produto e um acidente da histria. No sei por que as mulheres kachins antes
de se casarem andam com a cabea descoberta e o cabelo cortado curto, mas usam
um turbante depois, tanto quanto no sei por que as mulheres inglesas pem um
anel num dedo particular para denotar a mesma mudana de status social; tudo o
que me interessa que nesse contexto kachin o uso de um turbante por uma mulher
tem esse significado simblico. uma afirmao sobre o status da mulher.
Porm a estrutura da situao largamente independente da sua forma
cultural. O mesmo tipo de relao estrutural pode existir em muitas culturas
diferentes e ser simbolizado de maneiras correspondentemente diferentes. No
exemplo que acabamos de dar, o casamento um relao estrutural que comum
tanto sociedade inglesa quanto kachin; simbolizado por um anel em uma e
por um turbante na outra. Isso significa que um nico e mesmo elemento da
estrutura social pode aparecer com uma roupagem cultural na localidade A e outra
roupagem cultural na localidade B. Mas A e B podem ser lugares adjacentes no
mapa. Em outras palavras, no existe razo intrnseca pela qual as fronteiras
significativas dos sistemas sociais devam sempre coincidir com as fronteiras
culturais.
Admito que as diferenas de cultura so estruturalmente significativas, mas
o mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente no implica
necessariamente - como quase sempre se sups - que pertenam a dois sistemas
sociais totalmente diferentes. Nesse livro pressuponho o contrrio.
Em qualquer regio geogrfica que carea de fronteiras naturais bsicas,
provvel que os seres humanos das regies adjacentes do mapa tenham relaes
uns com os outros - pelo menos at certo ponto no importa quais possam ser
28. Como este livro pode ser lido tanlo por antroplogos americanos com o ingleses, devo advertir que o
termo cultura, tal com o o uso, no aquela categoria abrangente que constitui o tema da antropologia
cultura] americana. Sou um antroplogo social e estou interessado na estrutura social da sociedade
kachin. Para mim, os conceitos de cultura e sociedade so absolutamente distintos. Se se considera a
sociedade com o um agregado de relaes sociais, enlSo a cultura o contendo dessas relaes, A
sociedade encarece o componente humano, o agregado de pessoas e as relaes entre elas. A cultura
enfatiza o componente dos recursos acumulados, (anto imaterial com o material, que as pessoas herdam,
empregam, Iransmutam, aumentam e transmitem (Firth, 1951, p. 27). Para o uso algo diferente do
termo cultura corrente entre os antroplogos americanos, ver Kroeber (1952) e Kroeber & Kluckhohn
(1952).
S IS T E M A S P O L T IC O S D A A L T A B IR M N IA
Deve ter ficado evidente, pelo que foi dito, que um requisito bsico para a
compreenso da tese deste livro que o leitor seja capaz de conceituar para si
mesmo exatamente o que se entende por categoria kachin e chan e suas vrias
subdivises, e tambm pelas subcategorias contrastantes kachin gumsa e kachin
gumlao. O presente captulo uma tentativa de tornar claras essas distines no
plano muito superficial da etnografia descritiva; somente mais tarde patentear-se-
at onde se podem distinguir as categorias no nvel da estrutura social,
Chan
lidades so considerveis, mas ainda assim, parte umas poucas excees espe
ciais, pode-se dizer que todos os chans da Birmnia do Norte e do Yun-nan
Ocidental falam uma mesma lngua, a saber, o tai. As excees so os chans de
Mng Hsa (os maingthas ou achangs), que falam o que parece ser um dialeto do
maru; os chans do vale do Kubaw, que falam atualmente uma corruptela do
birmans; e pequenos bolses heterogneos de chans nas regies do alto Chindwin
e do vale do Hukawng, cuja lngua atual parece ser principalmente o jinghpaw,
com forte mistura do tai e do assams. A maior parte da populao conhecida pelo
nome de kadu parece entrar nessa categoria1. H tambm um pequeno grupo de
pessoas que habitam o Irrawaddy, perto de Sinbo, que vivem como chans mas falam
uma lngua chamada hpon, mais ou menos intermediria entre o maru e o birmans.
Segundo parece, a maioria dos derradeiros falantes do hpon - existem apenas
algumas centenas deles - consideram-se tais.
Um critrio mais importante de identidade de grupo que todos os chans so
budistas2. verdade que a maioria no muito devota, e o budismo chan inclui
vrias seitas decididamente herticas, mas ser budista simbolicamente importante
como ndice da complexidade chan. Quando, como sucede com no pouca freqn
cia, um kachin se torna um chan (sam tai), a adoo do budismo uma parte
decisiva do processo. O indivduo que na Birmnia atual (1951) recebe o ttulo
oficial de Chefe do Estado de Kachin um budista-kachin-e-chan desse gnero.
Um segundo critrio geral que todos os povoados chans esto associados
cultura do arroz irrigado. Podemos aqui combinar o conceito chan com os dados
citados no captulo 2. A Birmnia do Norte uma regio de colinas e montanhas.
Os chans esto espalhados por essa regio, mas no aleatoriamente. Os povoados
chans ocorrem somente ao longo dos vales dos rios ou em bolses de territrio
plano nas colinas. Esses povoados esto sempre associados s terras de arroz
irrigado. H portanto uma grosseira equivalncia entre cultura e sofisticao. Nessa
regio, a prosperidade que provm das plancies onde se cultiva o arroz irrigado
subentende o budismo, que por sua vez subentende a vinculao a um Estado feudal
chan. As nicas excees a essa generalizao encontram-se mais ou menos fora
da regio que estamos estudando. Os palaungs no derivam sua prosperidade
econmica do arroz irrigado, mas do cultivo do ch; so budistas e tm um sistema
social do tipo chan, mas habitam as colinas3. Existem tambm alguns habitantes
sofisticados nos Estados de Was, que se enriqueceram com os lucros decorrentes
4. Aparentem ente, essa expresso usual somente nos distritos de Bhamo e de Myitkyina; ver Bennison
(1933), p. 189.
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Mapa 4. Distribuio da populao chan e kachin por volta de 1825 na poro norte da Regio das Colinas de Kachin.
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
los como os chans que possivelmente estabeleceram uma certa aliana poltica com
o antigo Estado Chan de Mogaung (Mng Kawng).
At a metade do sculo XVIII os Estados Chans da Birmnia do Norte
conservaram um grau significativo de independncia e demonstraram muito mais
lealdade China que Birmnia. No ltimo quartel do sculo XVIII, no curso de
uma srie de guerras algo irresolvidas entre a Birmnia e a China, os vrios
principados chans da regio do alto Irrawaddy (Mogaung, Mohnyin, Waingmaw,
Bhamo) parecem ter tomado o partido dos chineses; em conseqncia, sofreram
uma destruio nas mos dos exrcitos birmaneses5. A partir do final do sculo
XVIII no houve prncipes chans (saohpa) regulares nesses Estados. Estes eram
tratados como dependncias feudais diretas da coroa birmanesa. Os rendimentos
do departamento de myosa dependiam da merc do rei e o governante do Estado
(myowun) era nomeado diretamente pelo castelo de Ava.
Hkamti6parece ter sido originariamente um ttulo associado famlia real de
Mogaung. Depois da eliminao de Mogaung como unidade poltica independente,
continuou a servir para descrever aqueles principados chans que anteriormente
haviam sido dependncias polticas de Mogaung num sentido feudal.
Como esses Estados Hkamtis desempenharam um papel de relevo nos neg
cios dos kachins, vale a pena enumer-los em detalhe.
a . Hkamti Long (Grande Hkamti), hoje uma confederao de sete pequenos principados
chans, situada perto das cabeceiras do Irrawaddy (Mali Hka). Embora a princpio tenha sido
talvez colonizado diretamente desde a China, Hkamti Long parece ter sido uma dependncia de
Mogaung nos sculos XVII e XVIII7. No mapa 2, Hkamti Long aparece com o nome de Putao;
os principados componentes so mostrados no mapa 4.
b. Chans do vale do Hukawng, sobretudo os de Maingkwan, Ningbyen e Taro. Esses
chans so hoje, em sua maioria, dependentes politicamente dos kachins circunvizinhos. Diz-se
que so os remanescentes de uma populao outrora muito mais numerosa em linhagens feudais8
(mapa 4).
c. Singkaling Hkamti. Pequeno Estado chan no alto Chindwin. O grosso da populao
local formado de kachins e de nagas. O elemento chan, inclusive a famlia governante, parece
ter vindo de Ningbyen, no vale do Hukawng'* (mapas 3 e 4).
d. Os Hkamti de Assam. Localizados a leste de Sadiya e tambm na margem do Dihing
perto de Ledo (mapa 4). Os primeiros derivam de colonizadores vindos de Hkamti Long que
entraram em Assam por volta de 1795. Os ltimos provm de vrios grupos de colonizadores
5. Ver Imbault-Huart (1878), onde Meng Kong = Mogaung; Meng Yang = Mohnyin.
6. Conhecem -se as variantes: Kanti, Kansi, Khampti, Khamti etc.
7. Barnard (1925); MacGregor (1894).
8. Kawlu Ma Nawng (1942), p. 41.
9. Chan S tates and Karenni, pp. 75-76.
A S CATEG O RIAS C H AN E K AC H IN E SU AS SU BD IVIS ES
chans que entraram em Assam, durante os sculos XVIII e XIX, procedentes do vale do
Hukawng10. Nos ltimos 120 anos os hkamtis de Assam sempre estiveram muito misturados
com os assameses, os mishmis, os nagas e os kachins (singphos)11.
e. A regio das Minas de Jade, que foram um fator importante na queda dos prncipes do
Mogaung no sculo XVIII, estiveram, pelo menos nos ltimos sessenta anos, sob o controle de
uma linhagem de chefes kachins. Esses chefes, chamados embora de kachins pela administrao
britnica, imitaram as maneiras dos chans e casaram-se nas famlias chans. Assumiram tambm
o ttulo de Kansi (Kanti) duwa como herdeiros, segundo parece, do domnio chan original12
(mapa 2).
Por essa lista pode-se ver que existe uma confuso entre o uso do termo
hkamti para denotar um grupo particular de povos de origem tnica supostamente
comum e o uso do mesmo termo como o nome de um estado poltico. Essa
ambigidade aplica-se tambm ao termo mais geral chan. Quase todos os Estados
Chans da Regio das Colinas de Kachin incluem elementos de populao no-chan.
Em muitos casos, os elementos no-chans so muito mais numerosos que os
elementos chans. A capital poltica de um estado chan , em todos os casos, uma
municipalidade localizada na vizinhana de terras de arroz irrigado, mas as depen
dncias feudais de tal estado podem incluir no apenas outras comunidades de
chans cultivadores de arroz irrigado, como tambm vrias aldeias de colina com
uma populao no-chan e uma economia de taungya. Em alguns casos, a hierar
quia poltica da resultante um tanto complexa. Por exemplo, antes de 1895, o
atual Estado de Mng Wan, chan chins, inclua no s as aldeias chans do vale
do Nam Wan como tambm numerosos povoados kachins que hoje esto no lado
birmans da fronteira. Em sua maioria, os aldees chans da plancie de Nam Wan
no pagavam seus impostos feudais diretamente aos saohpa de Mng Wan, mas a
um ou outro de vrios chefes tribais kachins. Os chefes kachins, por seu turno,
pagavam seus impostos aos saohpa de Mng Wan. Os aldees chans pagavam seus
impostos com arroz, enquanto os chefes kachins pagavam os seus com plvora,
arranjo economicamente muito satisfatrio para ambas as partes13.
Uma referncia ao Chan States Gazeteeru mostra que em 1900 havia nume
rosos exemplos similares nos quais os domnios polticos kachins estavam integra
dos numa estrutura feudal chan mais ampla. A total separao poltica do territrio
kashin e chan, que prevaleceu durante a ltima fase do regime britnico na
15. H uma extensa literatura sobre este tpico; ver, por exem plo, Enriquez (1933); Hanson (1913); Lowis
(1919); Eickstedt (1944). Na crtica, Green (1933; 1934) indicou que as diferenas nos tipos fsicos no
Nordeste da Birmnia no correspondem de modo nenhum s distribuies lingsticas; isso invalida
toda a tese.
16. Eickstedt (1944).
A S CA TEGORIAS C H AN E K A C H IN S U A S SU BD IVIS ES
mtodos chans, que se pode inferir com alguma probabilidade que os kachins
tenham devastado ou desalojado uma populao chan. E quanto a isso, se
deparamos com povos de lngua kachin cultivando arroz pelos mtodos chans,
quase se poderia inferir que esses kachins j esto em via de se tomarem chans.
bem possvel que nos ltimos mil anos, ou aproximadamente, tenham
ocorrido muitas migraes e mudanas demogrficas substanciais entre a popula
o monlanhesa ao longo da Regio das Colinas de Kachin, mas cumpre lembrar
que essas mudanas poderiam ocorrer sem afetar a posio da populao chan nas
plancies e nos vales. Fatos ou inferncias sobre a histria de um segmento da
populao total podem, portanto, dar-nos certos indcios sobre a histria do outro.
Histria fatual, pois qualquer parte da Regio das Colinas de Kachin
fragmentria. Dou um resumo dessa histria estabelecida no captulo 8, juntamente
com minhas prprias conjecturas sobre alguns dos fatos decisivos acerca dos quais
no dispomos seno de provas circunstanciais. Mas no captulo 8 ocupo-me
principalmente da histria kachin, e por isso ser melhor expor desde j minhas
conjecturas sobre os chans.
Um dos fatos que se podem dar como estabelecidos que os chineses, j no
sculo I d. C., estavam familiarizados com vrias rotas do Yun-nan ndia. No
podemos saber ao certo quais eram essas rotas, mas, desde que so constitudas
apenas por um nmero muito limitado de desfiladeiros atravs das principais
cadeias de montanhas, as rotas no podem ter diferido muito das que conhecemos
hoje. No desarrazoado ver a colonizao chan original dos vales dos rios como
um processo associado permanncia dessas rotas de comrcio. H testemunhos
de que as comunicaes eram mantidas atravs de uma srie de pequenas guarni
es militares estabelecidas em postos apropriados ao longo da rota. claro que
essas guarnies precisaram manter-se a si mesmas e deveriam portanto estar
situadas num terreno adequado ao cultivo do arroz. 0 povoado assim formado iria
constituir o ncleo de uma regio de cultura complexa que, com o passar do tempo,
evoluiria para um tipo de Estado chan subalterno.
A extenso em que qualquer estado particular iria desenvolver-se seria
condicionada pelas circunstncias locais. Em Hkamti Long, por exemplo, a rea
apropriada a desenvolver-se em plancie de arroz substancial, e, segundo parece,
no passado foi de fato cultivada uma rea muito maior do que agora. As rotas
comerciais atravs de Hkamti Long permaneceram pouco usadas por mais de um
sculo: antigamente, quando essa rota comercial era muito mais freqentada,
possvel que a populao tenha sido maior.
Em contrapartida, a escala da comunidade chan em Sima-pa dificilmente
deve ter mudado durante sculos. Trata-se de uma pequena plancie de arroz de
10!
SISTEM AS P O L li O S D A A L T A BIRM NIA
mais ou menos sete quilmetros quadrados, situada a uma altitude elevada (cerca
de 1700 metros acima do nvel do mar). Constitui uma das principais passagens
do Yun-nan para a Alta Birmnia e situa-se na rota das antigas caravanas de jade
de Mogaung para Tengyueh. Est portanto localizada estrategicamente e esteve
certamente ali durante longo tempo. apenas um lugarejo, mas em alguma poca
do passado pode ter sido um pouco maior, pois fica a pelo menos um dia de marcha
de qualquer outra comunidade chan ou chinesa, e toda a terra de arroz que
disponvel no local est plenamente ocupada (mapa 2, p. 87).
Essa explicao segundo a qual a localizao e a escala das comunidades
chans foram determinadas pela estratgia e economia das rotas comerciais
claramente especulativa, mas ajusta-se melhor aos fatos conhecidos do que as
teorias que explicam a atual distribuio dos povoados chans como o resultado de
alguma fabulosa conquista militar em larga escala17. Uma importante implicao
de minha tese que a cultura chan, tal como a conhecemos hoje, no deve ser
considerada um complexo importado de fora, j pronto, para a regio, como a
maioria das autoridades no assunto parece ter suposto. um desenvolvimento
nativo resultante da interao econmica, durante um longo perodo, de colnias
militares de pequena escala com uma populao montanhesa nativa.
O processo pelo qual ocone o desenvolvimento de tipo chan bem ilustrado
pela descrio de Mng Ka feita por Davies. Os atuais habitantes de Mng Ka so
chineses de lngua lisu; sua semelhana cultural geral com os chans de comunida
des similares, como a de Sima-pa, muito grande. O topnimo Mng Ka chan.
Davies escreve o seguinte:
A pequena plancie de arroz de Mong Ka (1 700 km1) habitada por chineses e lisus. A
terra totalmente cultivada, mas no frtil, e o povo no obtm dela seno o necessrio para
viver [...] O chefe de Mng Ka conhecido pelo nome de Yang-hsing-kuan, que significa
simplesmente o funcionrio cujo sobrenome Yang. Seu cargo hereditrio. Parece que um
seu antepassado, numa outra poca, conquistou os habitantes lisus originais para o governo
chins e, como recompensa, ele e seus homens se estabeleceram ali como colonizadores-solda-
dos, e o governo do lugar foi dado a ele e a seus descendentes. Os lisus e os chineses agora
vivem juntos em perfeita amizade e sem dvida os colonizadores originais casaram-se com
mulheres lisus de modo que seus descendentes so por raa to lisus quanto chineses19.
17. desnecessrio dizer que as prprias tradies chans sobre o assunto sio expressas em funo de
conquistas militares [cf. Elias (1876)], mas lais relatos no tm valor histrico.
18. Davies (1909), pp. 37-38. Mftng Ka um posto de servio na rota de Sadon para Tengyueh.
A S CATEG O RIAS C H A N E K AC H IN E SU A S SU BD IVIS ES
membros de tribos das colinas que foram, no passado recente, assimilados por
formas mais requintadas de cultura budista-chan. Por exemplo, Wilcox, o primeiro
ingls a visitar Hkamti Long, menciona que a massa da populao trabalhadora
da tribo khaphok, cujo dialeto estreitamente aparentado com o singpho19.
Esse termo chan kha-phok ou hka-hpaw pode traduzir-se por escravo ka-
chin20. Barnard, mais tarde uma autoridade na mesma regio, menciona que dois
grupos de classe baixa da sociedade hkamti so denominados hsampyens (isto ,
sam hpyen) e chares21. Na lngua jinghpaw esses termos significariam soldado
mercenrio chan e "soldado contratado, respectivamente; subentende-se que esses
chans de classe baixa so de origem kachin jinghpaw. De modo anlogo, se se
examinar, como fizemos, a longa sucesso de referncias aos hkamtis de Assam que
aparecem em documentos de lngua inglesa, oficiais e outros, entre 1824 e 1940,
inevitvel a concluso de que os ancestrais de muitos povos hoje classificados como
hkamtis (isto , chans) teriam sido mais apropriadamente classificados, um sculo
atrs, sob algum outro nome, como singpho, lisu ou nung (isto , kachins).
Detalhes sobre essa mudana evidente de identidade cultural so dados no
apndice 1. O que eu quero ressaltar aqui que a localizao territorial, a relativa
complexidade e as principais caractersticas da organizao econmica do que
chamamos agora de sociedade chan so determinadas em grande parte pelo meio
ambiente. Dados os requisitos de uma economia assentada no cultivo do arroz
irrigado nesse terreno, os povoados chans dificilmente seriam diferentes do que
so. Eis por que me sinto autorizado a tratar o sistema social de tipo chan como
um ponto relativamente estvel no fluxo total.
Nos meus ltimos captulos tericos discuto os sistemas sociais kachins - o
tipo gumlao e o tipo gumsa - como sendo intrinsecamente instveis, ao passo que
considero o tipo oposto, chan, como intrinsecamente estvel. A justificao para
isso deve ser encontrada em dados de campo como os que mencionei acima. A
cultura chan atual estende-se por bolses esparsos de Assam a Tongking e, para o
sul, a Bangkok e ao Cambodja. Os povos das colinas vizinhos dos chans so
espantosamente variados em sua cultura; os chans, dada sua ampla disperso e sua
forma esparsa de povoamento, so espantosamente uniformes. Minha tese que essa
uniformidade est correlacionada a uma uniformidade da organizao poltica chan,
que por sua vez largamente determinada pelos fatos econmicos especficos da
situao chan. Minha suposio histrica que os chans dos vales assimilaram em
SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA
toda parte, durante sculos, seus vizinhos das colinas, mas os fatores econmicos
imutveis na situao significaram que o padro de assimilao foi muito semelhan
te em toda parte. A prpria cultura chan foi relativamente pouco modificada.
Kachin
104
4S CATEG O RIAS C H A N E K A C H IN E SU AS SU BD IVIS ES
105
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM N IA
1892 Tribos e cls kachins dentro de nossa linha de postos fronteirios e aldeias estabele
cidas [...] devem ser colocados em p de igualdade com os chans birmaneses e outros
entre os quais eles se fixaram.
1893 As Colinas de Kachin deveriam ser administradas na medida em que estavam includas
dentro da rea provisria de nossa administrao em linhas distintas dos trechos de
terra baixa, onde s deviam vigorar a lei ordinria e os tributos ordinrios1^,.
106
A S CA TEGOF1AS CHAN E KA CH1N SV A S SUBDIVISES
2. Maru - n u m erosos d ialetos con sid erad os m utuam ente in in telig v eis (o m anj est m ais perto
do birm ans do que do jin gh p aw )
4. Lisu - vrios dialetos regionalmente distintos. Essa lngua difere amplamente tanto do
jinghpaw quanto do maru, mas a gramtica do tipo birmans. Os falantes do lisu so
marginais s Colinas de Kachin, conforme se discute neste livro.
38. A literatura menciona ainda um povo chamado naingvaw descrito com o maru do Norte oti maru negio;
mas naingvaw apenas a designao maru de povo de naing (nung) e um termo aplicado pelos
marus do Sul a uma populaSo descrita corrtumente como nung; e.g., ver Pritchard (1914). Para melhor
descrio de nung, ver Qarnard (1934).
39. Grani Brown (1925), captulos 2 e 8; Dewar (1933).
108
-4 JC .1 TEGORIAS C H A N E KACH IN SU AS SU BD tViSO E S
constantemente a assimilar os seus vizinhos que falam naga, maru e palaung. Essa
assimilao no ocorreu em decorrncia de alguma poltica ativa de conquista, mas
porque, nas regies de lngua mista, o poder poltico esteve por muito tempo nas
mos dos aristocratas de fala tai ou jinghpaw. Assim, tomar-se tai ou tomar-se
jinghpaw teve vantagens polticas ou econmicas. Em reao a isso, os aristocra
tas genuinamente tais ou jinghpaws desenvolveram por seu turno formas lings
ticas prprias. Fizeram isso mediante a incorporao em sua fala diria de
numerosas expresses floreadas e poticas tiradas da linguagem de seu ritual
religioso. Quando dois estranhos que falam jinghpaw se encontram, o sotaque e a
fraseologia traem no apenas o seu lugar de origem como tambm a sua classe
social.
Em segundo lugar, a unidade lingstica pode ser usada como um distintivo
de solidariedade poltica ou nacional. Nas Ilhas Britnicas, a capacidade de falar
gals constitui exatamente esse distintivo. Devo observar que muitas dessas comu
nidades de fala galesa usam o ingls em seus negcios cotidianos comuns e s
mantm o uso de sua lngua nativa ao preo de considervel embarao.
Na Birmnia do Norte, grupos lingsticos localizados, como o hpon, o
maingtha, o gauri e o duleng (e, no caso, muitos outros que escaparam observao
dos lingistas), tm esse tipo de solidariedade poltica. Tais grupos costumam ter
uma tradio de origem e de descendncia comum e compartilham uma ampla
gama de costumes comuns. A unidade lingstica aqui apenas um distintivo
cultural dentre muitos que servem para distinguir entre ns e eles.
Em terceiro lugar, a unidade lingstica pode ser um remanescente da histria.
fato objetivo que a maioria dos irlandeses continuam falando ingls. As razes
disso so histricas. No me parece que nesse caso se possa dizer que essa unidade
lingstica denota algum profundo sentimento subjetivo de solidariedade social!
Mas tambm no posso concordar em que a lngua comum dos irlandeses e dos
ingleses seja um acidente histrico que , sociologicamente, de todo irrelevante.
Os fatos histricos que explicam a circunstncia de os irlandeses falarem ingls
explicam tambm, em grande parte, a atual organizao social irlandesa.
Na Birmnia do Norte, a presente distribuio de lnguas deve ser vista como
um remanescente histrico. Hoje as comunidades de lngua jinghpaw, maru, nung,
lisu e tai encontram-se misturadas. Deve ter havido uma poca no passado em que
esses grupos lingsticos estavam territorialmente separados. Se pudssemos des
cobrir como veio a ocorrer a atual distribuio, isso sem dvida seria muito
relevante para a nossa compreenso da atual situao social. Infelizmente, a
reconstituio histrica em tais casos muito difcil. A maior parte das suposies
que se costumavam fazer no passado so totalmente absurdas.
tio
A S CATEGORIAS CHAH E KA C H IS E SUAS SUBDIVISES
Como indiquei, foi geralmente aceito como dogma que aqueles que falam
uma lngua particular formam uma unidade nica e definvel, e que o grupo de
pessoas que constituem essa unidade sempre teve uma cultura particular e uma
histria particular. por isso que, quando descrevemos a histria de uma lngua,
estamos descrevendo a histria do grupo de pessoas que hoje falam essa lngua.
a grupos desse tipo que se alude quando encontramos referncia s raas e s
tribos da Birmnia.
Essa doutrina acadmica, sem embargo de sua convenincia, no se relaciona
com os fatos empricos. Pode-se estabelecer facilmente que a maioria dos membros
dessas raas e tribos supostamente distintas casam-se entre si. Ademais,
evidente que corpos substanciais de populao se transferiram ainda no sculo
passado de um grupo lingstico para outro40. Os grupos lingsticos no so
portanto estabelecidos hereditariamente, nem so estveis atravs do tempo. Isso
reduz ao absurdo toda a tese lingstico-histrica. Por exemplo, pelos critrios
lingsticos o palaung uma forma de linguagem austro-asitica. Assim, segundo
a tese dos lingistas, os palaungs deviam ser a raa mais antiga encontrada na
Regio das Colinas de.Kachin, Nessa mesma base, os chans de fala tai deveriam
ser a raa mais recente a entrar na regio. Por isso, suposto que raa, cultura e
lngua coincidam, de esperar que os palaungs sejam culturalmente muito diversos
de seus vizinhos chans. Em verdade, porm, chans e palaungs casam-se entre si e
na cultura geral os palaungs cultivadores de ch esto muito mais prximos dos
chans do que qualquer um dos demais povos das colinas da regio. Alm disso,
palaungs e chans so membros de um sistema poltico comum.
Meu interesse pessoal no mapa de distribuio lingstica das Colinas de
Kachin no reside basicamente em seu valor como testemunho histrico, mas no
aparente paradoxo de que, embora em certos casos os kachins paream ser exces
sivamente conservadores quanto lngua - de modo que pequenos grupos que
vivem como vizinhos prximos e freqentam o mesmo mercado chan ainda
continuam a falar lnguas totalmente diversas em outros parecem quase to
dispostos a mudar sua lngua quanto um homem se dispe a trocar de roupa41.
Os dois lados desse paradoxo exemplificam o mesmo fato social, a saber, o
de que, em minha terminologia, a circunstncia de um homem falar uma lngua em
vez de outra um ato ritual, uma afirmao sobre seu status pessoal; falar a mesma
lngua que os vizinhos expressa solidariedade para com esses vizinhos, falar uma
lngua diferente da dos vizinhos expressa distncia social ou mesmo hostilidade.
111
jtS CA TEG O R tAS CH AN K A C H IN E S U A S SU BD IVIS ES
freqente, cada pequena unidade local uma entidade poltica autnoma. Em tais
condies, quer-me parecer, onde cada chefe subalterno de aldeia est pronto a
afirmar que to bom quanto o seu vizinho, podemos esperar encontrar um
faccionarismo lingstico obstinadamente persistente mesmo em face da autorida
de poltica nominalmente centralizada.
Devo admitir que essa teoria, a ser vlida, implicaria uma distribuio de
lnguas e dialetos diferente daquela que de fato ocorre, mas tentarei explicar isso
mais adiante.
Por ora, suficiente que esses fatos fiquem claros. A distribuio dos sistemas
polticos gumsa e gumlao em relao aos grupos territoriais e lingsticos
aproximadamente a seguinte (ver mapas 2 e 3):
A Zona A, no que respeita aos kachins, quase que inteiramente de lngua jinghpaw. H
um ou dois bolses de populao de origem mam e lisu e existem grupos substanciais na regio
do vale do Hukawng que reclamam origem assamesa. A tendncia, contudo, que tais grupos
adotem alfngua jinghpaw. A zona inclui regies gumsa e gumlao, mas noexiste uma correlao
bvia entre dialeto e forma poltica. Assim, uma das formas mais claramente distintas de
jinghpaw a falada pelos tsasens (singphos) do norte do vale do Hukawng e de Assam, mas os
que falam o dialeto tsasen so parte gumsa e parte gumlao.
A Zona B , em termos lingsticos, altamente poliglota. Pode-se subdividir essa zona em
trs setores:
i. A regio dos Estados Chans da Birmnia do Norte. Aqui as comunidades de lngua
jinghpaw, atsi, maru, lachi, lisu, palaungechan esto misturadas de um modo deveras fantstico.
A totalidade do setor politicamente gumsa. At que os britnicos criassem uma separao
administrativa arbitrria, as aldeias das colinas eram todas, teoricamente, dependncias de um
ou de outro saohpa chan local (mapa 2, Zona B. Ao sul da latitude 24' N).
ii. A regio dos Estados Chan Chineses. Prevalece uma mistura lingstica similar. Os
kachins, em sua maioria, falam o atsi. Todos so gumsa e teoricamente dependem do saohpa
chan local. A administrao chinesa dos kachins" parece em geral ter sido mais indireta do que
sucedia com a inglesa, de modo que um saohpa chan-chins, embora impiedosamente onerado
de impostos por seus superiores chineses, tinha mais influncia poltica em seu domnio do que
seu congnere na Birmnia britnica (mapa 2. Zona B da lat. 24 N lat. 26* N).
iii. A Regio de NamTamai. Aqui h uma mistura de lisu e nung e dialetos intermedi
rios, como o tangser e o kwinhpang. Os nungs aqui so gumlao, a exemplo de algumas
comunidades mistas lisu-nungs. A maioria das aldeias lisus parece estar organizada num sistema
estratificado de classes totalmente diverso do sistema kachin gumsa. Por essa razo, a meu ver,
a principal regio lisu no vale do Salween situa-se fora da Regio das Colinas de Kachin.
Zona C. A parte meridional dessa zona compreende principalmente a regio fronteiria
entre Sadon e Namhkam. A mistura lingstica aqui semelhante encontrada na Zona B (i),
mas existem pouqussimos palaungs. Penso que em 1940 todas as aldeias da regio eram
nominalmente gumsa, mas isso p od e ter resultado da preferncia da Administrao britnica por
113
SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA
112
A S C ATEG O RIAS C H AN E K A C H IN E SU A S SU BD IVIS ES
freqente, cada pequena unidade local uma entidade poltica autnoma. Em tais
condies, quer-me parecer, onde cada chefe subalterno de aldeia est pronto a
afirmar que to bom quanto o seu vizinho, podemos esperar encontrar um
faccionarismo lingstico obstinadamente persistente mesmo em face da autorida
de poltica nominalmente centralizada.
Devo admitir que essa teoria, a ser vlida, implicaria uma distribuio de
lnguas e dialetos diferente daquela que de fato ocorre, mas tentarei explicar isso
mais adiante.
Por ora, suficiente que esses fatos fiquem claros. A distribuio dos sistemas
polticos gumsa e gumlao em relao aos grupos territoriais e lingsticos
aproximadamente a seguinte (ver mapas 2 e 3):
A Zona A, no que respeita aos kachins, quase que inteiramente de lngua jinghpaw. H
um ou dois bolses de populao d e origem maru e lisu e existem grupos substanciais na regio
do vale do Hukawng que reclamam origem assamesa. A tendncia, contudo, que tais grupos
adotem a lngua jinghpaw, Azona inclui regies gumsa e gumlao, mas no existe uma correlao
bvia entre dialeto e forma poltica. Assim, uma d as formas mais claramente distintas de
jinghpaw a falada pelos tsasens (singphos) do noite do vale do Hukawng e de Assam, mas os
que falam o dialeto tsasen so parte gumsa e parle gumlao.
A Zona B , em termos lingsticos, altamente poliglota. Pode-se subdividir essa zona em
trs setores:
i. A regio dos Estados Chans da Birmnia do Norte. Aqui as comunidades de lngua
jinghpaw, atsi, maru, lachi, lisu, palaunge chan esto misturadas de um modo deveras fantstico.
A totalidade do setor politicamente gumsa. At que os britnicos criassem uma separao
administrativa arbitrria, as aldeias das colinas eram todas, teoricamente, dependncias de um
ou de outro saohpa chan local (mapa 2. Zona B. Ao sul da latitude 24 N).
ii. A regio dos Estados Chan Chineses. Prevalece uma mistura lingstica similar. Os
kachins, em sua maioria, falam o atsi. Todos so gumsa e teoricamente dependem do saokpa
chan local. A administrao chinesa dos kachins parece em geral ter sido mais indireta d o que
sucedia com a inglesa, de modo que um saohpa chan-chins, embora impiedosamente onerado
de impostos por seus superiores chineses, tinha mais influncia poltica em seu domnio d o que
seu congnere na Birmnia britnica (mapa 2. Zona B da lat. 24 N la t 26* N).
iii. A Regio de Nam Tamai. Aqui h uma mistura de lisu e nung e dialetos intermedi
rios, como o tangser e o kwinhpang. Os nungs aqui so gumlao, a exemplo de algumas
comunidades mistas lisu-nungs. A maioria das aldeias lisus parece estar organizada num sistema
estratificado de classes totalmente diverso do sistema kachin gumsa. Por essa razo, a meu ver,
a principal regio lisu no vale do Salween situa-se fora da Regio das Colinas de Kachin.
Zona C. A parte meridional dessa zona compreende principalmente a regio fronteiria
entre Sadon e Namhkam. A mistura lingstica aqui semelhante encontrada na Zona B (i),
mas existem pouqussimos palaungs. Penso que em 1940 todas as aldeias da regio eram
nominalmente gumsa, mas isso pode ter resultado da preferncia da Administrao britnica por
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
chefes hereditrios. Muitos dos chefes no eram plenamente reconhecidos pelos prprios
kachins.
A parte setentrional da zona compreende o vale do NPmai Hka e as colinas a leste, A
populao aqui fala vrios dialetos marus e lachis. Existe tambm um nmero considervel de
lisus e alguns chineses. O jinghpaw e o atsi quase no so falados. A maioria das comunidades
marus e lachis parecem estar organizadas sobre princpios gumlao. A etnografia da regi5o
atualmente muito inadequada.
Apenas trs princpios gerais ressaltam de tudo isso. Primeiro, todos os que
falam o atsi so gumsa, e nenhum atsi encontrado ao norte da confluncia
N mai-Mali Hka. Segundo, a presena dos falantes de jinghpaw implica geralmente
que pelo menos uma parte da populao est organizada sobre princpios gumsa.
Terceiro, o sistema gumsa, conforme descrito neste livro, no ocorre onde quer
que no existam falantes do jinghpaw nem do atsi.
Voltarei a esse tema em meu ltimo captulo, onde discutirei at que ponto
os fatos que examinamos se ajustam minha tese de que a adoo de uma nova
lngua ou a manuteno de uma lngua antiga pode ser vista como um tipo de ao
ritual.
Nem todos os subgrupos kachins tm uma base lingstica; alguns so
categorias territoriais, outros so categorias tanto territoriais quanto lingsticas.
Dos dialetos arrolados nas pginas 107 e s., o gauri, o tsasen, o duleng, o maingtha,
o hpon e vrios dialetos nungs so todos mais ou menos localizados. Por conse
qncia, referir-se a um gauri, a um tsasen ou a um duleng mais ou menos como
referir-se a um natural de Yorkshire. A essncia da questo que ele vem de um
lugar particular; ainda um natural de Yorkshire, mesmo que se venha a encontr-
lo em Londres e no fale o dialeto de Yorkshire. O que complica o problema que
os prprios kachins tendem sempre a conceituar a sua sociedade em termos de
grupos consangneos. Assim, categorias como tsasen ou duleng tendem a ser
descritas como amiyu - ou seja, como cls - com um ancestral epnimo.
Nesses casos em que o grupo dialetal est confinado a uma localidade
particular e creditado por algum tipo de solidariedade de parentesco, pode parecer
a princpio que temos uma entidade correspondente tribo de uso comum na
etnografia. Por que, ento, no me contentar em fazer um estudo, digamos, dos
gauris como unidade etnogrfica distinta e deix-la nisso? Por que tomar as coisas
to complicadas, abordando fastidiosamente todos os outros dialetos e lnguas
kachins? Essa questo mais bem respondida pela observao do grupo atsi.
Considere-Se o seguinte conjunto de fatos.
O atsi, como vimos, um dialeto distinto. LingUisticamente falando, parece
ser um hibridismo entre o maru e o jinghpaw41, Todas as aldeias atsis tm
114
A S CA TECO RIAS C H AN B KACH IN E SU AS SU BD IVIS ES
termo tribo, nesse caso, usado para denotar os cls reais jinghpaws de Marip,
Lahtaw, Lahpai, NhKum e Maran44. A explicao aqui apenas que, no sistema
kachin gumsa, o territrio de um cbefe considerado propriedade da linhagem
desse chefe e, portanto, de seu cl. Hpalang, por exemplo, tem um chefe da
linhagem Maran-Nmwe; por isso tende a ser descrito como terra maran ou terra
nmwe. Isso no quer dizer que uma proporo especialmente grande da populao
de Hpalang seja de descendncia nmwe ou maran. Nenhum dos principais grupos
de descendncia na sociedade kachin (afora os tsasens e os dulengs) de algum
modo localizado. Existem lahpais, lahtaws e nhkums em Assam, assim como
existem lahpais, lahtaws e nhkums no Kengtung do Norte. A principal estrutura do
sistema de parentesco se estende por toda a Regio das Colinas de Kachin e
ultrapassa todas as fronteiras polticas e lingsticas, salvo a existente entre kachins
e chans. Esse fato, mais que qualquer outro, que justifica o uso do conceito kachin
numa anlise antropolgica sria de to vasta regio poliglota.
Alm da lngua, a mais bvia varivel cultural nas diferentes partes das
Colinas de Kachin o vesturio. Excetuados os lisus, em toda a parte os kachins
vivem no mesmo tipo de casas, cultivam a terra praticamente da mesma maneira,
so adeptos praticamente das mesmas prticas religiosas, compartilham num grau
substancial um corpo comum de mito e tradio, mas o vesturio e os pormenores
da cultura material apresentam ampla variao. Essas variaes so mais ou menos
regionais e tm apenas uma pequena correlao com as diferenas lingsticas. O
vesturio pode sem dvida servir prontamente de smbolo da diferena de status,
mas no tenho a pretenso de compreender os porqus das variaes da moda
kachin. Por que os nungs usam o branco onde outros kachins usariam o preto? Por
que alguns kachins decoram sua roupa com brocados e outros usam simples tecidos
listrados? Por que os kachins do Norte (hkahkus) usam saias tubifonnes e os
kachins do Sul, saias retangulares? Simplesmente no tenho a menor idia a
respeito. H aqui, por certo, muita matria para um estudioso da cultura material.
As zonas que mostrei no mapa 2 so zonas climticas. Os prprios kachins
tm nomes para vrios distritos. Assim, Sinpraw Ga (a terra do leste) - mais ou
menos os distritos de Bhamo e de Sadon; Sinli Ga - Estado Hsenwi do Norte;
Htingnai Ga (as terras baixas) - a regio entre Mogaung e Katha; Hkahku Ga (o
campo rio acima) - a regio ao norte da confluncia N mai-Mali Hka e assim por
diante. Diferenas de vesturio como as que referi na pgina 83 correspondem mais
ou menos a esses diferentes distritos nomeados; no sei por que isso deva ser assim.
44. Shakcspear (1914) ainda escreve com o se estes cls dispersos fossem uma tribo separada e localizada
num territrio distinto.
116
A S CATEGORIAS CHAN E KACHIN B SUAS SUBDIVISES
Chans
Palaungs
Este livro no se ocupa dos palaungs, mas deve ser ressaltada sua similaridade com os
chans e os kachins. Tipicamente, os palaungs constituem uma populao das colinas do Estado
de Tawngpeng (Estados Chans da Birmnia do Norte). Cultivam o arroz pelos mtodos da
taungya (cultura itinerante), mas dependem basicamente do cultivo do ch, que trocado em
outros lugares por arroz e dinheiro. Os palaungs falam vrios dialetos de um idioma comum -
o palaung- que difere totalmente da lngua de qualquer dos outros grupos aqui examinados.
Politicamente, a organizao do Estado Tawngpeng a mesma de um estado chan, mas a
organizao no nvel das aldeias difere da dos chan em importantes aspectos. 1
Os palaungs so budistas.
Fora de Tawngpeng existem numerosos povoados palaungs que formam elementos em
diferentes estados chans. Geograficamente, essas aldeias palaungs se acham freqentemente
lt 7
SIST E M A S PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
misturadas com aldeias kachins, mas o nmero de casamentos entre kachins e palaungs
insignificante. Lowis (1903) sustenta que os palaungs ocupavam outrora grande parte do territrio
hoje habitado pelos kachins. No existe nenhum testemunho autntico em apoio dessa tese.
Kachins
Emprego essa designao para denotar uma categoria geral para todos os povos da Regio
das Colinas de Kachin que no sio budistas (nem mesmo teoricamente). Essa categoria kachin
inclui falantes de vrios dialetos diferentes, os mais importantes dos quais foram relacionados
mais acima (pp. 107 e s.).
A sociedade kachin inclui numerosas formas de organizao poltica, mas estas podem
ser enfeixadas em dois tipos polarizados, gumlao e gumsa:
i. Kachin gumlao - espcie de organizao democrtica em que a entidade poltica
uma aldeia nica e no existe diferena de classes entre aristocratas e plebeus;
ii. Kachin gumsa - espcie de organizao aristocrtica. A entidade poltica aqui um
territrio chamado mung (cf. o mng chan) que tem a govem-lo um prncipe de sangue
aristocrtico denominado duwa, que assume o ttulo de Zan (cf. o termo chan sao).
Todos os kachins reconhecem a existncia de um sistema complexo de cls extremamente
segmentados. As linhagens desse sistema de cls se ramificam por toda a Regio das Colinas
de Kachin e ultrapassam todas as fronteiras de lngua e de costumes locais.
Jingkpaws
Dulengs
Kachins de fala jinghpaw que habitam uma regio a leste do Mali Hka (Irrawaddy) e ao
no rte do Chang Hka (Nam Tisang). Trata-se pois dos kachins que so os v izinhos mais prximos
dos chans do Hkamti Long. Tm uma reputao muito difundida de ferreiros. So de organizao
gumlao (mapa 4).
Tsasens '
Kachins de lngua jinghpaw que habitam as pores norte e oeste do vale do Hukawng,
ocorrendo tambm no Assam Orienta], onde so conhecidos como singhpos. Os tsasens incluem
tanto grupos gumsa como grupos gumlao (mapa 4).
118
/ts c a t e g o r i a s c h a n e k a c h i n e s u a s s u b d i v i s e s
G a u ris
Kachins de lngua jinghpaw que habitam um pequetto mas importante setor das Colinas
de Kachin, a leste de Bhamo. Aldeias gauris isoladas ocorrem tambm em outras partes, So de
organizao gumsa (mapa 5, p. 126).
Atsis
Importante subcategoria dos kachins, a maioria dos quais fala uma lngua atsi mais ou
menos intermediria entre o maru e o jinghpaw. As comunidades atsis acham-se largamente
espalhadas, mas no ocorrem ao norte da confluncia Nmai-Mali Hka, Os atsis so de
organizao gumsa. Muitaslinhagens atsis, inclusive as dos chefes, so idnticas s dos gauris.
M aru s
L acltis
Dialeto maru falado por algumas aldeias na principal regio maru a oeste do Nmai Hka
e tambm por alguns povoados de outras regies. A diferena entre um lachi e um maru
semelhante que se observa entre um gauri e um atsi - isto , o mesmo sistema de parentesco
nclui ambos. A maioria dos lachis parece estar organizada como gumlao.
Nungs
Populao que habita a zona montanhosa em ambos os lados do alto Nmai Hka (Nam
Tamai), ao norte da confluncia do Nmai com o Mehk. As comunicaes nessa regio so muito,
difceis e a variao lingstica considervel. Ao sul os nungs misturam-se gradualmente com
os marus; ao norte, com vrias tribos pouco conhecidas do alto Salween e da fronteira tibetona.
Os nungs, na Regio das Colinas de Kachin, esto acostumados a pagar tributo aos seus vizinhos
mais poderosos, lisus e lolos, do alto Salween, aos chans do Hkamti Long e aos kachins
SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA
Lisus (Yawyin)
A lngua falada pela populao das colinas do vale do Salween a leste da principal regio
maru. Esse corpo principal de falantes do lisu, e tambm uma populao com ele relacionada
conhecida pelo nome de lisaw e que ocorre no extremo sul, est fora da Regio das Colinas de
Kachin. Seu modo de organizao poltica segue princpios de estratificao de classes, mas
difere radicalmente do modelo kachin gumsa.
Ao longo de toda a fronteira leste da Regio das Colinas de Kachin existem pequenos
bolses de populao de lngua lisu. Essas comunidades usualmente mantm relao poltica
com os grupos kachins vizinhos, com cujos membros se casam. Para efeitos de tais casamentos
os cls lisus so, por um processo fictcio, identificados com os cls e as linhagens kachins, de
sorte que a rede de parentesco kachin se estende de maneira a abarcar essa populao de lngua
lisu.
Neste livro discutirei a populao de lngua lisu apenas na medida em que ela entra na
rbita da organizao kachin de parentesco.
Chineses
Os chineses mencionados neste livro descendem em sua maioria dos yun-naneses das
terras altas a leste do Shweli, Alguns so nominalmente muulmanos. Etnicamente no diferem
muito do resto da populao e bem poderiam ser chamados de min chia ou chineses-lisus. A
maioria das aldeias chinesas nas Colinas de Kachin tm sua origem no comrcio de caravanas
entre a Birmnia e o Yun-nan, o qual, antes da chegada dos caminhes de carga, era feito em
mulas chinesas com arreeiros igualmente chineses. As aldeias chinesas em questo so postos
de pouso para as caravanas de mulas. Os casamentos entre chineses e seus vizinhos kachins no
comum, mas tambm no raro.
120
S CATEGORIAS CHAN KACHIN E SUA S SUB Oi VISES
social; a populao envolvida nesse sistema social de uma cultura nica; o sistema
social uniforme. Por isso os antroplogos podem escolhei uma localidade de
qualquer tamanho conveniente e examinar detalhadamente o que se passa nessa
localidade; a partir desse exame, espera chegar a concluses sobre os princpios de
organizao que atuam nessa localidade particular. Em seguida, generaliza com
base nessas concluses e escreve um livro a respeito da organizao da sociedade
considerada como um todo.
perfeitamente claro que, no caso kachin, uma generalizao desse tipo no
seria vlida. O sistema social no uniforme. As concluses do antroplogo
variariam largamente de acordo com o tipo - dos vrios tipos possveis - de
localidade que ele viesse a examinar em detalhe. 0 mtodo de exposio que me
proponho seguir , portanto, o seguinte.
Presumo que dentro de uma rea definida de forma um tanto arbitrria - isto
, a Regio das Colinas de Kachin - existe um sistema social. Os vales entre as
colinas esto includos nessa regio, de modo que os chans e os kachins so, nesse
nvel, parte de um sistema social nico. Dentro desse sistema social maior existem,
num perodo dado, um nmero de subsistemas significativamente distintos que so
interdependentes. Trs desses subsistemas poderiam ser classificados como chan,
kachin gumlao e kachin gumsa. Considerados simplesmente como modelos de
organizao, podemos pensar esses subsistemas como variaes sobre um tema. A
organizao kachin gumsa modificada numa direo seria indistinguvel da dos
chans; modificada noutra direo, seria indistinguvel da kachin gumlao. Conside
radas historicamente, tais modificaes realmente ocorrem, e lcito falar de
kachins que se tomaram chans ou de chans que se tornaram kachins. Quando, pois,
eu, na qualidade de antroplogo, examino uma dada localidade kachin ou chan,
devo reconhecer que qualquer equilbrio do tipo que parece existir pode ser, na
verdade, um equilbrio muito transitrio e instvel. Alm disso, devo estar cons
tantemente ciente da interdependncia dos subsistemas sociais. Em particular, se
examino uma comunidade kachin gumsa, devo esperar que grande parte do que
constatar pode ser ininteligvel, a no ser por referncia a outros modelos de
organizao correlatos, por exemplo, chan ou kachin gumlao.
C a p tu lo 6
G U M L A O E G U M SA
1. Stevenson (1943).
SISTEM AS PO L TIC O S DA ALTA BIRM NIA
4. V/alker (1892), p. 164. Esta foi a primeira declarao inteligvel publicada no tocante oposio
gvmsa/gumlao, embora no relata de Alaga, de 1879, seja reconhecida uma verso delurpada. Cf.
Sandeman (1882), p. 257.
5. Carrapietl, pp. 81-82. Essa citao foi extrada de um manual oficial do governo publicada em 1929,
de um capitulo intitulado especificamente Conselhos aos Oficiais Subalternos. Dificilmente sur
preende que os oficiais que eslavam prontos a examinar o sistema gumlao em relao a seus mritos
fossem taros e InfreqUentes!
6. Kawlu Ma Nawng (1942), p. 30.
7. Ver Kawlu Ma Nawg (1942), pp. 11-13, 20.
249
SIST E M A S PO LTIC O S D A A LTA BIRM NIA
Uma jovem gumsa, Tangai ma Ja In, tem um filho ilegtimo de NBawn La Ja, embora
seja noiva de Chatan Wa. N Bawn La Ja e Chatan Wa so ambos de linhagem inferior em
hierarquia da jovem (1). Chatan Wa (lit., o caluniador) e seu agente de matrimnio, Loileng
Wa (2), so parcialmente culpados desse lapso, pois adiaram indevidamente o casamento (3).
O filho roubado peto aligtor de Hkilmung Ningdawn, que se esconde numa caverna da
montanha (4). Tangai ma Ja In promete ao nat celeste Mucheng o sacrifcio de um bfalo se o
menino lhe for devolvido. Mucheng fende a montanha, expe o aligtor e restitui a criana (5).
O mdium-sacerdote Dumsa La Lawn (6) solicitado a fazer o sacrifcio. Mucheng pede ao
sacerdote que faa o sacrifcio a um nat celeste superior chamado Sinlap (7). Por seus poderes
medinicos o sacerdote transportado ao cu para fazer a oferenda em pessoa.
"Enquanto estava no cu, Dumsa La Lawn viu grande nmero de aldeias com nuvens de
fumaa sobre elas (8). Perguntou que aldeias eram aquelas. O esprito celeste disse-lhe que eram
a terra gumlao. Viu tambm aldeias em outro lugar com numerosas casas muito prximas umas
das outras; tomou a perguntar e foi informado de que aquelas aldeias eram a terra gumsa (9).
Dumsa La Lawn perguntou o que significavam gumlao e gumsa e foi-lhe respondido que os
gumlao eram pessoas que diziam que todos os homens eram de posio igual; no se tomavam
as costumeiras coxas de animais sacrificados e no se exigia nenhum corte forado dos campos.
Os gumsa, foi-lhe dito, eram pessoas que tinham chefes; esses chefes exigiam uma coxa de cada
animal abatido e trabalho gratuito para o cultivo de seus campos; consideravam plebeus mesmo
seus prprios parentes que no tinham o direito de cobrar dvidas, e insistiam no pagamento das
dvidas, do trabalho e outras coisas, tanto dos parentes como dos outros plebeus (10).
Dumsa La Lawn perguntou ento ao nat do cu como os seres humanos podem tomar-se
gumlao. Foi instrudo a levar de volta para a terra uma parte da carne e da bebida do sacrifcio.
Quem quer que se recuse a participar do sacrifcio deve ser destrudo. Ele leva de volta a oferenda
e exorta todos a compartilh-la, mas o chefe se recusa a faz-lo (11). O chefe e Dumsa La Lawn
ento trocam insultos de vrios modos estereotipados. O chefe golpeia o Dumsa na cabea e
chama-o de adltero, escravo e filho ilegtimo de uma macaca. O Dumsa assa o crebro de
um macaco no tubo de bebida do chefe e depois insolentemente derruba os bambus do chefe
enquanto atua como hpunglum na cerimnia de sepultamento de um dos parentes do chefe (12).
Finalmente o chefe mata uma jovem parenta do Dumsa que est transportando gua em tubos
feitos dos ditos bambus, e o Dumsa mata o chefe e tem incio a rebelio gumlao.
Nessa guerra as partes descontentes do cl Tsasen recebem a adeso de membros da
linhagem Pyen Dingsa NDng do cl Marip que tm motivos semelhantes de queixa contra os
chefes Marips (13). -
250
G U M LAO GUMSA
2. Loileng W a representado como o primo mais velho de Chatan. Por seu nome parece
ser um chan.
3. Segundo a lei consuetudinria kachin, isso mitiga a ofensa feita jovem. A penalidade
que os descendentes ilegtimos da jovem se tornem servos de seus descendentes legtimos.
Uma histria muito semelhante usada para explicar o status teoricamente inferior de uma parte
do cl Marip (ver Kawlu Ma Nawng, pp. 4-5, e tambm a nota 13, abaixo).
4. Ver a discusso do smbolo baren (aligtor) nas pp. 169 e s.
5. Mucheng aprova, pais, a destruio do aligtor (chefe) em proveito do filho ilegtimo
e da libertao deste ltimo da tirania do primeiro. 0 tema geral muito difundido. Os seres
humanos plebeus descendem de drages-aligatores (ver p. 311). Compare-se lambm a histria
nung fornecida por Bamard (1934), p. 114: "Depois do Dilvio uma mulher deu luz uma pedra
na casa de um drago com asas e uma cauda. [...] Essa pedra foi trabalhada numa grande laje de
rocha, os cacos se espalharam e deles surgiram todas as raas de homens. A forma desse conto
deriva do fato de a palavra que designa pedra em jinghpaw e nung ser lung, que o termo chins
para drago.
6. O ponto a notar aqui que Dumsa La Lawn, o lder revolucionrio, i um sacerdote-
mdium. Esse indivduo parece ser identificado por Kawlu Ma Nawng a N Dup Nawng Dai
Gawng, um dos fundadores da linhagem N'Dup-Dumsa {sacerdote-ferreiro), os iniciadores
do movimento gumlao (ver Kawlu Ma Nawng, pp. 10,20).
7. O importante aqui que, como Tangai ma Ia In de estirpe de chefe, a oferenda
normalmente teria de ser feita a Madai, o nat celeste dos chefes. Ao fazer a oferenda a Sinlap,
a autoridade de Madai repud iada.
S. A fumaa a fumaa dos contnuos festejos sacrifidas - isto , as aldeias so muito
prsperas.
9. As casas das aldeias gumsa so construdas bem prximas umas s outras para fins de
defesa - ou seja, os chefes gumsa esto sempre em guerra uns com os outros.
10. Considera-se que o ponto fundamental do contraste gumsa-gumtao reside assim na
questo de saber se, quando uma linhagem se segmenta, os dois segmentos so de status igual
ou um subordinado ao outro.
11. Porque faz-lo seria reconhecer a superioridade de Sinlap sobre Madai.
12. Hpunglum o cargo ritual de categoria mais baixa. Seria insultuoso atribuir seme
lhante larefa a um respeitado sacerdote-mdium.
13. (Ver nota 3, acima.) Hoje apenas uma ou duas sees menores dos NDings so
gumlao. As restantes so gumsa e incluem um grande nmero de chefes muito influentes. Os
ltimos presumivelmente no admitiriam o status inferior da linhagem NDing.
primeiro casamento*, sob o pretexto de serem apenas filhos nascidos de uma viva
recolhida. Eram classificados como plebeus; tinham de cortar taungya para os
outros; tinham de entregar uma coxa de cada animal morto; eram geralmente
maltratados51. Os descendentes do ferreiro e do sacerdote formam uma linha
gem conjunta N Dup-Dumsa (sacerdotes-ferreiros) que, significativamente, no se
dividem em sees superior e inferior. So os lfderes de uma revolta gumlao contra
seus tirnicos parentes.
Ambos esses mitos enfatizam o que vem a ser uma incoerncia bsica na
ideologia gumsa. A ordem gumsa ideal consiste numa rede de linhagens aparenta
das, mas tambm uma rede de linhagens hierarquizadas. medida que se
desenvolve o processo de ciso de linhagem, chega-se a um ponto em que se impe
uma escolha entre o primado do princpio da hierarquia ou o princpio do paren
tesco. A hierarquia implica uma relao assimtrica. O suserano extorque servios
de seu subordinado sem obrigaes de reciprocidade. O parentesco implica uma
relao simtrica; uma relaomayu-dama (de parentesco afim) ou hpu-nau (irmo
de linhagem) entre um chefe e seu partidrio pode implicar obrigaes unilaterais
do subordinado para com o seu chefe. A fraqueza do sistema gumsa est em que o
chefe bem-sucedido tentado a repudiar os vnculos de parentesco com seus
partidrios e trat-los como se fossem escravos (mayam). essa situao que, de
um ponto de vista gumlao, invocada para justificar a revolta.
No entanto, o sistema gumlao igualmente cheio de incoerncias. Na teoria
gumlao, no existem chefes. Todas as linhagens so da mesma categoria; nenhum
irmo ritualmente superior a qualquer outro. Assim, teoricamente, as categorias
mayu e dama gumlao se eqivalem, e no pode haver nenhum interdito sobre o
casamento patrilateral entre primos (casamento com a filha da irm do pai). Os
gumlao de lngua jinghpaw se vem assim confrontados com o paradoxo de que sua
lngua separa as categorias de parentes mayu e dama, embora nada haja em seu
sistema poltico que imponha essa separao10. No tenho prova de que os gumlao
de lngua jinghpaw estariam prontos a tolerar um casamento com uma filha da irm
do pai. A tendncia parece ser antes a de desenvolver arranjos para casar num
crculo dentro de grupos de linhagens gumlao localizadas. Tal arranjo pode,
teoricamente, manter a igualdade de status entre as linhagens em questo. Na prtica
no parece funcionar muito bem. Empiricamente, os grupos gumlao nas regies de
S. No est claio qual seja esse primeiro casamento - o de NLa La Grawng ou o de sua esposa.
9. Kwlu Ma Nawng (1942), pp. 10 e 20.
10. Isso no se aplica aas falantes dos dialetos marus, e pode set que para os marus gumlao no houvesse
nenhuma proibio do casamento recproco de primos cruzados. Analogamente, nas regies nagas e
chins, grupos com um sistema poltico de tipo gumlao no tm uma regra de casamento tipo kachin".
252
G U M LA O E Q UM SA
Gumsa Gumlao
DOMlNIO POLTICO
CLASSE
DVIDAS (HKA)
Todos aqueles que no tm um status Nenhum tipo de dvida tributria devido
privilegiado e no so reconhecidos como pelos aldees aos lideres de aldeia.
parentes de linhagem do chefe devem entregar
ao chefe uma coxa ( magyi) de cada quadrpede
abatido e devem contribuir com trabalho gratuito
para a preparao do campo de cultivo do chefe
e para a construo da casa do chefe.
253
SISTEM AS PO LTICO S DA ALTA BIRMNIA
CASAMENTO
AUTORIDADE
A autoridade judicial repousa nas mos do A autoridade judicia] est nas mos de um
salang hprnvng - o conselho dos cabeas de Conselho de Ancios, os quais em geral so
linhagem, sendo o chefe um deles, embora no representativos das linhagens. Normalmente
necessariamente o mais influente. O papel do as aldeias gumlao <m um lder (agy) cuja
chefe, como tal, mais ritual que poltico, posio no estritamente hereditria.
porm as prerrogativas do cargo implicam s Qual quer que seja o seu status terico, no raro
vezes um controle sobre os verdadeiros um agyi tem as mesmas oportunidades de
recursos econmicos e o chefe pode ento adquirir poder que um bawmung gumsa. Na
tornar-se um homem de real poder. Por outro prtica, um lder gumlao dificilmente pode
lado, um dos lderes subordinados ao chefe ser distinguvel de um chefe gumsa.
pode ser o foco da autoridade real (bawmung).
RITUAL
b. o mung nat, que o uma nat da linha b. o mung nat - esprito ligado de certo
gem do chefe modo ao fundador da comunidade e consi
c. o nat celeste Madai e sua filha Hpraw derado atnide um antepassado de todas as
Nga linhagens originais
d. o nat terrestre Chadip c. algum nat celeste - frequentemente
Sinlap nunca Madai
d. um nat terrestre - ga nat - considerado
distinto de Chadip
13. Assim Walker (1892), citando Elliol; assim tambm Scott e Hardiman (1901), vol. I, Parte I, p. 370.
14. Scotl e Hardiman, op. cit., p. 414.
15. R.N.E.F. (1915 e 1916), p. 15. A data importante por mostrar que a tendncia a reverter forma
gumsa no era produto de presso exercida pela Administrao britnica.
257
SIST E M A S P O L TIC O S D A ALTA BIRM NIA
sociedade tipo gumlao no seria uma fico mitolgica usada como pretexto para
justificar uma mudana de dinastia naquela que foi todo o tempo coerentemente
uma comunidade de tipo gumsa.
O ceticismo nessa forma extrema no se justifica. Na maioria das atuais
comunidades gumlao de lngua jinghpaw, o republicanismo parece ser genuno.
Assim, a totalidade do territrio Duleng hoje gumlao. No existem chefes
dulengs. Cada aldeola Duleng uma entidade estritamente independente. As
linhagens Duleng so pequenas e muito numerosas e no esto claramente vincu
ladas a um sistema segmentado. No entanto, h uma tradio segundo a qual os
dulengs so todos descendentes de um antepassado comum, e que outrora havia
tuna linhagem de grandes chefes dulengs que eram a linha hierrquica (uma) snior
entre todas as linhagens de chefes kachins. Ento, "cerca de seis geraes atrs, os
povos de Kinduyang16 revoltaram-se contra os seus chefes e desde ento todos os
mung dulengs passaram a ser gumlao.
Na verdade, existem provas histricas de que os dulengs tiveram chefes muito
mais recentemente do que isso. Ainda em 1893, Errol Gray, que chegara a Hkamti
Long procedente de Assam, viu seu intento de prosseguir mais a leste frustrado
pelas supostas objees de um poderoso chefe kachin chamado Alang Chow Tong
(Alang Zau Tawng), que vivia em Alang Ga, no centro da regio Duleng. possvel
que Gray tenha recebido referncias exageradas sobre a influncia do chefe Alang,
mas muito pouco provvel que ele no tenha existido17. Todavia eu prprio
acampei em Alang Ga em 1943, e hoje a regio certamente gumlao.
E o mesmo sucede com muitos outros exemplos; os testemunhos so tnues,
mas coerentes. Parece que tudo se resume no seguinte. Onde hoje encontramos
comunidade de tipo gumlao - isto , sem chefes, constituindo cada aldeia uma
unidade politicamente independente, tendo um mung nat que no exclusivo de
nenhuma linhagem particular, constatamos uma tradio segundo a qual, "outro
ra, x geraes atrs, tnhamos chefes, e depois houve uma rebelio na qual os
chefes ou foram mortos ou expulsos. Por outro lado, se examinarmos hoje aquelas
localidades que so, por tradio, os pontos focais do sistema gumlao, em geral
encontraremos comunidades do tipo gumsa, ou algo extremamente prximo desse
tipo.
16. Kinduyang - a plancie Kindu - o foco de grande parte da mitologia do Kachin do Norte. O nat
Kindu mung nat para boa parte da regio de Duleng. interessante notar que o chefe Pyisa em Assam
(Beesa Gam) tenha contado a Neufville, em 1828, que sua linhagem migrara, vinte e uma geraes
antes, de Kunduyung para um brao do Sri Lohit (Irrawaddy) (Neufville, 1828, p. 340). O nico
Kindu Ga que sei que existe hoje fica a sudoeste da regio de Duleng e est em territrio gumsa.
17. Gray (1694).
258
G U M LA O G U M SA
No estou afirmando que essas provas sejam suficientes para dizer que
durante um dado perodo h sempre uma oscilao constante entre os extremos
polares de gumsa e gumlao, mas creio haver fortes indcios de que por vezes, na
verdade freqentemente, o que acontece.
Penso ainda que esse tipo de oscilao aplca-se especialmente s comunida
des de lngua jinghpaw na medida em que se opem a outros grupos kachins, em
grande parte porque as idias sobre incesto contidas em categorias lingsticas
jinghpaws obrigam mesmo os jinghpaws gumlao a adequar-se s regras de casa
mento mayu-dama. A assimetria da relao mayu-ama , por assim dizer, incom
patvel com o dogma de igualdade de status entre linhagens que domina a teoria
gumlao; conseqentemente, uma comunidade gumlao que adota as regras de
casamento mayu-dama resvala com muita facilidade para prticas de tipo gumsa.
Fora da regio de lngua jinghpaw, o esquema mayu-dama no se aplica com
a mesma fora, e em grupos fora da Tegio de Kachin no se aplica de modo algum.
Assim, com os lisus a regra de casamento preferida com a filha da irm do pai,
conquanto seja permitido o casamento entre primos cruzados11. S quando um lisu
se casa com um kachin gumsa que as regras gumsa so observadas.
Para a maioria das regies limtrofes, o material etnogrfico ambguo. At
agora no houve estudos satisfatrios da terminologia de parentesco maru ou lachi,
mas as categorias de parentesco no parecem adequar-se perfeitamente s do
sistema jinghpaw1*. Isso seria incompreensvel se o esquema mayu-dama fosse
adotado na principal regio maru-lachi, a leste do N mai Hka, cuja maior parte ,
politicamente falando, gumlao. Os rawang-nungs, conforme foram descritos por
Bamard, adotam as regras jinghpaws de casamento, mas duvido que o faam
sempre, pois esses nungs so subordinados tanto aos lisus como aos jinghpaws e
se unem por casamento a uns e a outros. 0 sistema de parentesco no idntico ao
jinghpaw10. Diz-se que alguns grupos de Palaung adotam as regras mayu-dama,
mas no todos21. Os dados sobre a regio a oeste so igualmente vagos. Com relao
maioria dos grupos nagas e chins h registros de que h preferncia pelo
casamento com a filha do irmo da me, mas a proibio de unio com a filha da
irm do pai - que decisiva para o sistema mayu-dama - relativamente rara.
relatado entre os lahkers (chins do sudoeste) e tambm entre alguns grupos de
velhos kukis em Manipur22.
259
SISTEM AS P O T IC O S DA ALTA BIRM ANiA
Minha hiptese que uma regra de casamento de tipo m ayu-dam a nunca ser
encontrada associada a tipos estveis de organizao gum lao. Quando as regras
m ayu-dam a so encontradas em associao com a organizao g u m la o , ento a
ltima pode ser vista como uma fase transitria.
No estou querendo dizer que esse processo de fluxo seja um automatismo
social que se desenvolve automaticamente sem a interveno de influncias exter
nas, As causas ltimas da mudana social, a meu ver, quase sempre devem ser
encontradas em mudanas no ambiente poltico e econmico externo; mas a forma
que qualquer mudana assume largamente determinada pela estrutura interna
existente de um sistema dado. Nesse caso, a ordem g um lao e a ordem gum sa so
ambas instveis; em situaes de perturbao externa, a tendncia que sistemas
g u m la o se convertam em gum sa e que sistemas g um sa se convertam em gum lao.
No entanto, isso no passa de uma tendncia; a possibilidade mais plausvel. No
afirmo ser capaz de predizer o que acontecer a alguma comunidade particular em
alguma circunstncia especfica.
Assevero, ento, que mudanas da organizao de tipo gum sa para a gum lao
e vice-versa so reaes a fatores externos situao kachin imediata. Que espcie
de fatores? Essa questo ser discutida mais adiante, no captulo 8. Entrementes,
tendo explicado a disfuno entre gum sa &gum lao, devo fazer uma anlise bastante
similar da relao entre a teoria poltica gum sa e a chan.
C a p tu lo 7
GU M SA H CHAN
Este livro trata dos kachins, mas a tese que desenvolvi em captulos anteriores
que a sociedade kachin gumsa assume a forma que tem porque os chefes kachins,
quando tm a oportunidade, tomam por modelo o comportamento dos prncipes
chans (saohpa).
Neste captulo, tenciono explicar exatamente o que essa imitao envolve e
por que, no conjunto, ela malsucedida.
Em primeiro lugar, esclareamos as principais diferenas entre o modo de
vida dos kachins comuns e o dos chans comuns. Os assentamentos chans esto
quase sempre associados rea de terra irrigada para o cultivo do arroz de vrzea.
As casas variam bastante no tipo de construo e no padro de agrupamento, mas
os assentamentos so permanentes. O agricultor chan est preso sua terra; no
pode rapidamente mudar sua lealdade de um chefe territorial para outro, como o
pode um kachin. Via de regra, um chan espera desposar uma jovem de sua prpria
aldeia e ali passar toda a sua vida. Identifica-se com essa aldeia, o seu lar; mesmo
que as circunstncias o obriguem a morar em outra parte, sempre se descrever
como pertencente sua aldeia natal. Quando a escassez de terras compele um grupo
de aldeias a segmentar-se, tudo indica que a nova aldeia receber o mesmo nome
da antiga. Portanto, a primeira lealdade de um chan para com um lugar, e no
para com o grupo de parentesco. De fato, dentro da comunidade, no existem
grupos de parentesco claros. Os chans plebeus no possuem patronmicos de
linhagem como os kachins. No h restrio ao casamento entre primos; conse-
SISTEMAS POLTICOS DA ALTA BIRMNIA
1. Em teoria, a herana chan regida pelo cdigo budisla birmans estabelecido no damaihat. Sobre as
normas de sucesso, ver Richardson (1912), pp. 227 e s, e 265 e s ,,c tambm Lahiri (1915), passim.
2. Cf. a exposio dos direitos de posse na Birmnia pr-britnica em Scott e Hardiman (1901), vol. I,
Parle II, pp. 434 e s.
3. Harvey e Baflon (1930), p. 29.
4. Ver Ten (1949) sobre a discusso da relao entre idade e status numa comunidade chinesa-chan.
G UM SA C H AN
5. Hnrvey e Bnrlon (op. cit., p. 6S) citam um chan chamado Paw Lun que dizia: Venho de uma famlia
patrcia muito boa agora estou velho e pobre [.] tenho direito ao prefixo Hkun, mas ningum me
chama assim.
SISTEMAS POLTICOS DA ALTA BIRMNIA
vida lucrativa com as prerrogativas de seu cargo. O bom governante aquele que
consegue m anter uma corte extravagante e pom posa ao m esm o tempo que contm
dentro de certos lim ites a rapacidade dos cortesos. A exagerada poliginia praticada
pelo m onarca6 constitui parte importante do sistema. Entre as esposas do prncipe
contam -se filhas de outros prncipes, de nobres e de plebeus. A presena dessas
mulheres na corte ajuda a m anter a coeso poltica do domnio e a estabelecer um
equilbrio de poder entre faces adversrias no seio da prpria corte.
A s dim enses do palcio e o nmero de esposas do prncipe eram (e so) mais
ou menos proporcionais influncia poltica do monarca. O rei M indon da
Birmnia, falecido em 1878, tinha, segundo se diz, cinqenta e trs esposas7. O
saohpa de Hsenwi do Sul, falecido em 1913, tinha dezesseis; seu sucessor, ainda
vivo, tem nove. O saohpa do Estado de Hsipaw, falecido em 1928, tinha vinte e
quatro esposas*. Todos esses Estados so vastos. Parece que os prncipes de Estados
pequenos com o M ng M ao e Kang Ai raramente m antm mais de duas ou trs
esposas ao m esm o tempo'.
A sucesso ao trono , em todos os casos, determinada pela descendncia
patrilinear, de sorte que para a realeza, e som ente para ela, a linhagem agntica se
torna importante. A s casas reais dos diferentes Estados recebem o nom e de
patrilinhagens com ttulos totmicos. Assim, as casas reais de M ng Mao, Chanta
(Santa) e Lu Chiang Pa constituem trs linhagens separadas do cl do Tigre (Hso),
sendo a de M ng M ao os Tigres D ourados (Hkam H so)1"; as de Chefang e de
Lungchw an so ambas Vespes N egros (Taw), enquanto os K ang Ai so V es
pes V erm elhos (Tao)11. Segundo uma fonte, espera-se que o saohpa inclua uma
m eia-irm entre suas esposas12. Essa era certam ente a moda na corte birm anesa1*,
m as as genealogias divulgadas no corroboram a tese de que se trata de um a prtica
chan14. A o contrrio, um membro da casa real de M ng M ao asseverou que as
patrilinhagens reais so estritam ente exgamas e que a realeza de M ng M ao no
pode sequer casar-se com a realeza Chanta porque so am bas membros do cl do
T igre15. Esse ponto tem cerla importncia para m inha tese geral. pelo fato de a
6. Tanlo na Birmnia quanto nos Estados Chans a poliginia era rara fora do palcio.
7. Sluarl (1910), pp. 157 c s.
S. Shatt States and Karenni (1943), p, 58.
9. Ver Harvey e Barlon (1930)pasri.
10. Isso explica a observao pgina 66 de que o&saohpa de Mng Mao eram "membros do cl Hkam.
11. Harvey e Barton, op. c. p. 98 n.
12. Milne (1910), p. 78.
13. Scott e Hardiman (1901), voj. I, Parte Jl, p. 98. Essa esposa era a rainha principal, mas no
necessariamente a me do herdeiro,
14. Shan States and Karenni (1943).
15. Harvey e Barlont op. cit., p. 98.
G UM SA CHAN
16. Sluart (1910), pp. 157 e s., fornece um excelenle relato desse falo.
17. Harvey e Barton (1930), passim.
18. Idem, p 97,
SIST E M A S PO LTIC O S DA ALTA B IS M f
incluam o filho mais velho deste, e (6) dos descendentes da esposa principal, a
mahadevin.
A realeza chan no pratica um sistema regulaT de casamentos unilaterais entre
primos cruzados que, de alguma forma, corresponda ao sistema mayu-dama dos
kachins; entretanto, a diviso entre faces pode levar a repetidos casamentos entre
casas reais vizinhas. No caso de Mng Mao, houve muitos casamentos entre a
faco de Hkam Yu Yung e a casa real de Kang Ai; em 1930, essa faco conseguiu
ascender ao poder porque Kang A a apoiava. O ramo Hseng era estreitamente
ligado, de modo anlogo, casa real de Chefang.
Em suma, as esposas da realeza chan podem ser classificadas em trs tipos;
(a) mulheres que tm status real idntico ao do marido e que se casaram para
consolidar uma aliana poltica com uma casa real vizinha; (b) mulheres que tm
status plebeu (isto , status inferior ao do marido) e que so recebidas como uma
forma de tributo da parte de subordinados polticos; (c) mulheres plebias que so
compradas como concubinas. A categoria (b) exige comentrios especiais.
Recorde-se que, no caso dos kachins gumsa, uma mulher costuma desposar
um homem de sua prpria classe social ou mesmo de classe social inferior; ela
normalmente no se casa numa classe superior. Na relao entre proprietrio de
terra e arrendatrio, o primeiro mayu e o segundo, dama. No esquema chan, o
padro se inverte e a mulher constitui um objeto apropriado de tributo de um
inferior para um superior. Reza uma crnica chan: "Algumas pessoas perguntaram:
Quando um novo chefe entra num novo palcio, qual o costume? O Ta Kin
Mng respondeu: O povo deve trazer [...] um tambor, uma espada, uma lana e
uma formosa donzela para ser sua esposa. Deve trazer tambm ouro puro, prata e
pedras preciosas, tapetes, esteiras, chapus e casacos vermelhos 2<J.
Em consonncia com essa doutrina, vemos que nas genealogias chans publi
cadas os homens de estirpe real freqentemente aparecem casados com mulheres
plebias; mas casamentos de mulheres de linhagem real com homens plebeus so
encobertos ou ignorados. Segue-se que casamentos mistos entre kachins e chans
tm significado diferente conforme o status de classe das partes envolvidas e
segundo informante seja kachin ou chan.
Quando um saohpa chan concorda em dar uma mulher a um chefe kachin,
isso representa, para ele, um sinal de aliana: est, com efeito, tratando o kachin
como um igual e honrando-o. Isso pode at eqivaler admisso de que o chefe
266
OUMSA CHAN
C a s a m e n t o d e C h e f e K a c h in c o m P r in c e s a C h a n e m S in a l
de S u s e r a n ia P o l t ic a d o C h a n <o u d o B ir m a n s j
Daitapa Gam, o chefe kachin que se tornou senhor do vale do Hukawng nos anos 1830 e
que era, para citar Kawlu Ma Nawng, "o nico jinghpaw que aspirava a construir um palcio e
a tomar-se rei de seu povo21, precisou, em 1837, de dar provas de sua submisso ao trono
birmans. Casou-se, portanto, com a viva do governador (myowun) hirmans de Mogaung ,
No se sabe ao certo se a mulher em questo era birmanesa ou chan.
No comeo desse sculo, Hkam Yu Yung, saohpa de Mng Mao, buscando aliana com
os kachins, casou sua me viva com o chefe kachin de Hkawng Hsung (que fica dentro do
territrio de Mng Mao), dando-lhe ao mesmo tempo um campo de arroz como dote. Em
conseqUncia, o chefe kachin fez o grande juram ento de que socorreria a ela e aos filhos de
seus filhos por todas as geraes13. Na terminologia kachin, essa transao no tomaria os
kachins dama em relao aos chans, mas os colocaria no status elevado de "irmos de clS
adotivos (hpu-nau lawu lahta).
Os chefes kansis, que so suseranos dos kachins na regio de produo de jade, a oeste
de Kamaing, desposaram por vrias geraes mulheres chans ou kachins. As mulheres chans
so membros da famlia do antigo saohpa de Mng Hkawm (Maingkwan, vaie do Hukawng).
Essas mulheres so, portanto, chans de Haw Hseng; seus ancestrais governavam Mogaung e
eram suseranos de todos os Estados Chans Hkamli do Noroeste2*, Hoje, o chefe kansi kachin
bem mais rico e influente do que o saohpa de Mng Hkawm, que no passa de um lder
subalterno. Nesse caso, os casamentos chans parecem ter sido mantidos como prova de lealdade
ao antigo (ora extinto) trono Mogaung, do qual os chefes kansis derivavam seu direito de
propriedade da terra. O ttulo kansi a verso j inghpaw de Hkamti.
C a s a m e n t o d e A r i s t o c r a t a C h a n c o m M o a K a c h i n d e S tatus A r i s t o c r t i c o
O chefe kachin de Mng Hko (mencionado na p. 66) explicava sua conexo com a casa
real de M&ng Mao dizendo que um membro dessa casa real Nga Hkam se estabelecera em Mng
Hko e tornara-se irmo de sangue dos chefes kachins; depois, casara-se com uma moa kachin,
e outros de sua linhagem fizeram o mesmo. Assim, Mng Mao e Mng Hko tornaram-se
territrios aliados, mas no eram politicamente interdependentes2*.
grupo, entrem para o servio dos chans como trabalhadores e recebam mulheres
em retribuio. Ao estabelecer-se assim num vale chan, o kachin desvincula-se de
sua prpria parentela. Adota os nats de sua esposa chan - ou seja, toma-se budista
- e, do ponto de vista kachin, transforma-se num chan (sarn ta)', mas ingressa no
sistema chan no ponto mais baixo da escala como pessoa da casta inferior: ,
virtualmente, um escravo. Os termos chans utilizados para denotar os kachins como
um todo - Kha-pok, Kha-nung, Kha-ng etc. - tm todos o prefixo kha, que significa
servo ou escravo27. Na Regio das Colinas de Kachin, quase todos os chans de
classe baixa so originrios provavelmente de escravos ou plebeus kachins.
O tipo inverso de assimilao - de plebeu chan a plebeu kachin implau-
svel, pois a vida nas colinas no oferece atrativos para os homens da plancie.
Chans ou birmaneses instalados nas colinas a servio do governo podem s vezes
estabelecer-se ali, casar-se com uma kachin e criar uma famlia kachin, mas tais
casos so raros.
Uma garota kachin pode, sem dvida, fugir eventualmente com um chan que
ela conheceu na feira, mas, se o fizer, cortar em definitivo os laos com a sua
prpria parentela. No h procedimento reconhecido graas ao qual um homem
chan pode pagar o hpaga do preo da noiva por uma moa kachin. De fato, no
pode existir uma relao mayu-dama entre kachin e chan em nvel plebeu.
Devemos, portanto, distinguir claramente entre a adaptao do kachin ao
chan em nvel aristocrtico e em nvel plebeu. Aristocratas kachins podem tornar-
se chans no sentido de se tornarem mais sofisticados e contrarem uma relao
mayu-dama de casamento com uma linhagem chan aristocrtica, mas nem por isso
renunciam a seu status de chefes kachins. Ao contrrio, o seu status de chefe kachin
robustecido: o pice dos ideais gumsa que o duwa kachin seja tratado como
saohpa por sua contraparte chan. Os plebeus kachins, por outro lado, s se tomam
chans se deixarem de ser kachins. Em nvel plebeu, o sistema chan e o kachin,
embora vinculados economicamente, so totalmente separados por barreiras de
parentesco e de religio.
Parece-me que aqui chegamos a uma explicao do fato de quase sempre
terminarem em desastre as tentativas dos chefes kachins gumsa de se tornarem
prncipes chans. H uma multido de exemplos bem documentados: o chefe Pyisa,
em Assam, por volta de 1825; o chefe Daihpa, em Hukawng, dez anos mais tarde;
os chefes Gauris de Mahtang (Mng Hka), no perodo 1855-70; o chefe Mng Si,
27. Os kachins, reconhecendo a implicao derrogalria de Khang, aplicam o teimo aos nagas das legies
do alto Chindwin e de Patkoi que eles (os kachins) dominaram amplamente. Khang tambm se escreve
hkang e kang.
SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA
cerca de 1885; os chefes Kansis nos ltimos setenta anos. Para cada um desses
casos existem descries de chefes individuais como a que se segue, referente ao
chefe Mahtang, tal como era em 1868:
e, durante o regime birmans em Assam, adquirira, juntamente com outros chefes, vasto nmero
de escravos assameses. Em sua maioria, esses chefes eram, como ele prprio, membros da
linhagem Tangai do cl Tsasen, mas pertenciam a diferentes sublinhagens, como Wahkyet,
Sharaw, Hpungin, Ningkrawp, Latao, Numbrawng, NGaw, Ningru, Hkawtsu, Gasheng, Daihpa
etc. Logo que os birmaneses se retiraram de Assam, eclodiu um conflito entre esses chefes
tangais aliados. O rancor aumentou quando os britnicos os privaram de seus escravos e, mais
tarde, subtraram suas melhores terras para o cultivo do ch. O Pyisa Gam era tratado como
chefe supremo pelos britnicos e, por isso, conquistou a lealdade de seus iguais kachins. Em
1840, todavia, os britnicos haviam concludo ser desnecessrio continuar patrocinando os
kachins por mais tempo e retiraram seu apoio ao chefe Pyisa como chefe supremo. Finalmente,
ele morreu num presidio de Assam, onde cumpria pena perptua por tentativa de rebelio.
b, Daihpa. Daihpa Gam era um distante irmo de linhagem do Pyisa Gam acima. Os dois
eram inimigos. Quando os britnicos deTam a Pyisa Gam a posio de chefe supremo em Assam,
o restante da linhagem Tangai transferiu seu apoio para Daihpa. Ele era extremamente bem-su
cedido. Em 1837 havia visitado Ava, fora cumulado pelo rei birmans de presentes e ttulos,
negociara questes fronteirias com os emissrios britnicos. Mas em sua terra, no vale do
Hukawng, teve de combater seus prprios parentes numa revolta gumlao. Manteve o poder
duTante algum tempo com a ajuda de tropas birmanesas, mas, to logo estas se retiraram, por
volta de 1842, ele perdeu toda a importncia31.
c. Mahtang. No incio do sculo XIX, grande parte do comrcio entre a Birmnia e a
China chegava de barco a Bhamo e dali, em lombo de mula, cruzava as Colinas Kachins at o
Estado de Hohsa e da at Mng Myen (Tengyueh). Os chefes dos territrios atravessados pelas
caravanas lucravam bastante com as taxas de pedgio. A rota que desde tempos imemoriais
representava a grande estrada entre a China e a Birmnia11 passava pelo centro kachin de
Loilung (E. 97 40: N. 24 20), situado no domnio dos chefes gauris lahpais da linhagem Aura.
Esses chefes se tornaram extremamente prestigiosos e deram a seu domnio o ttulo chan de
Mng Hka, adotando o nome da linhagem familiar de Mungga (isto , Mng Hka). Em 1868, o
chefe snior estava vivendo em Mahtang a cerca de seis quilmetros a leste. Loilung era
governada pelo irmo mais velho do chefe de Mahtang. Mahtang e Loilung so descritas por
Anderson como as duas aldeias mais florescentes que ele vira. Em Mahtang, a casa do chefe,
embora construda segundo a planta que prevalece nessas colinas, rodeada por slido muro
de tijolos e pedras, com um poito no estilo chins, e chega-se at ela por um caminho
pavimentado que atravessa o ptio33. A aparncia sofisticada do chefe de Mahtangj foi referida
acima (p. 270). Os tmulos dos chefes de Mahtang harmonizavam-se com tudo isso. Eram
construdosde lajes macias de granitoe belamente ornamentados e entalhados no estilo chins.
A fachada como o prtico de uma casa, com portas de imitao,..*4Mas o sucesso dos chefes
de Mng Hka valeu-lhes a hostilidade de seus irmos de linhagem, os chefes gauris da regio
de Sinlum, que se diziam, um tanto dubiamente, o ramo uma da linhagem Aura . Ao tomar 0
poder, os britnicos no s<5 privaram os chefes de Mng Hka de suas laxas de pedgio, como
tambm construram o quartel distrital no territrio de seus rivais, em Sinlum. Em 1920, porm,
estes tiraram vingana. Numa causa ajuizada perante os ancios gauris, o tribunal do superin-
lendente-asststente, em Sinlum, concedeu ao chefe de Mahtang a ridcula indenizao de 30 Rs.
e 6 hpaga contra um de seus prprios plebeus que engravidara sua filhaJ\ Uma gerao antes,
a multa teria sido astronmica37; estava completo o eclipse do prestgio de Mng Hka.
d. Mng Si. Nas lutas pelo controle do vasto Estado Chan de Hsenwi, lutas que se
destacam na 1)istri a bi rmanesa de 1846 a 1887, todas as faces chans rivais tinham seu s adeptos
kachins. O s chefes kachins de Mng Si eram aliados firmes do saohpa legtimo, Hseng Naw
Hpa, e, embora o prprio Naw Hpa raramente lograsse xito, Mng Si prosperava. Quando os
britnicos chegaram, o chefe kachin de Mng Si possua o status de myosa e governava uma
populao de cerca de 12 mil pessoas que abrangiam cem aldeias kachins, vinte chans, quinze
palaungs e doze chinesas. O domnio estava dividido em vrios subterritrios, cada um dos
quais governado por um duwa kachin, um parente do myosa"3*. Por deciso britnica, foi um
inimigo de Naw Hpa que ascendeu ao trono do Hsenwi do Norte, e em nenhum momento os
britnicos Tecusaram-se a aprovar a idia de chefes kachins governarem chans. Em 1940,o antigo
domnio de Mng Si foi fragmentado em perto de uma dzia de chefias separadas. Vrios dos
chefes envolvidos ainda tentaram macaquear as maneiras de um saohpa chan.
e. Kansi. A linhagem dos chefes kansis chegou ao poder graas ao fato de ler a posse
reconhecida da terra de onde se extrai o jade, a oeste de Kamaing. Ao longo de todas as
vicissitudes da histria birmanesa dos ltimos cento e cinqenta anos, nada parece ter prejudi
cado seriamente o comrcio do jade, e o chefe kansi ainda aufere seus direitos de explorao.
Por volta de 1940, o governo britnico comprou os direitos do chefe kansi, mas garantiu-lhe
uma renda anual. Esse ato custou aos britnicos a lealdade do chefe kansi durante a guerra, pois
ele se julgava fraudado. Depois da guerra, esteve preso por algum tempo, sob suspeita de
colaborao com os japoneses. Hoje, quase to influente quanto outiora e continua a perceber
seu subsdio anual do governo birmans. Os chefes kansis e os chans casaram-se entre si, mas
tiveram o bom senso de preservar lambm suas relaes de mayu-dama com os principais chefes
kachins.
A moral parece clara: com sorte nos negcios e grande nmero de parentes,
um chefe kachin tem chance de tornar-se algo muito prxim o de um saohpa chan.
M as, se alcanar esse status, a desvantagem que seus parentes se mostraro hostis.
Por isso, o status usualm ente depende do capricho de algum poder superior.
1. Malinowski (1926),
308
O M ITO COMO JU STIFICAO DA FA C kO E DA MUDANA SOCIAL
2. Gilhodes, pp. 52-54; Hanson, pp. 126,128. A histria completa longa. Todas os incidentes na verso
de Hanson ocorrem (invertidos) na verso de Gilhodes, porm esta ltima tem alguns aspectos que
faltam na primeira. Ver tambm p. 220, acima. '
SISTEM AS PO L TIC O S DA ALTA BiRM N IA
Existe um equvoco comum entre os europeus que dizem respeito existncia das tribos
kachins. Na verdade, dificilmente existe um sentimento tribal entre os kachins, salvo em conexo
com a propriedade e as fronteiras, e a razo disso que se consideram divididos mais em famlias
que em tribos. As chamadas cinco tribos principais (Marip, Lahtaw, Lahpai, N Hkum e Maran)
so na realidade cinco famlias aristocrticas que descendem dos cinco filhos mais velhos de
Wahkye Wa, o pai reputado da raa kachin. Sua ordem de precedncia a apresentada acima,
sendo os Marips a famlia snior. Qualquer homem com um ou outro desses nomes pode ser
considerado bem-nascido; e os duwas ou chefes sempre pertencem a essas famlias. Outros
cls so subsees dos cinco principais, ou so de algum modo parentes deles. Um homem no
pode casar-se numa famlia que use o mesmo sobrenome.
Cada famlia kachin sabe exatamente em que famlias pode casar-se. Entre as cinco
famlias aristocrticas, os Marips vo buscar suas noivas entre os Marans, os Marans entre os
N Hkums, os NHkums entre os Lahpais, os Lahpas entre os Lahtaws e os Lahtaws entre os
Marips. Isso, contudo, no apenas uma afirmao muito genrica. As subsees de quase todo
cl apresentam modificaes das regras de casamento peculiares a si mesmas. Nenhum europeu,
pelo que sei, jamais as compreendeu, e certamente nenhum kachin as compreende. Qualquer
discusso sobre as leis do casamento torna-se geralmente acirrada. No caso dos duwas, a regra
ainda mais modificada, porque no j no existem duwas Marips3; e com relao aos plebeus
existem muitas excees menores entre as famlias individuais. Contudo, as regras no so
impostas agora to rigidamente como costumavam s-lo outrora".
3. Isso n o verdade, embora geralmente se acredite ser esse o caso entre os kachins da regi3o de Btiamo,
4. Enriquez (1923), pp. 26-27.
O M IT O CO M O JU STIFIC A O DA FAC O B DA M UDANA SO CIAL
No princpio havia um esprito criador macho-fmea que deu origem aos vrios elementos
do universo. Esse ser, Woichun-Chyanun, uma espcie de personificao da terra e do cu, 6
agora adorado na forma de Chadip (Ga Nat) - o Esprito Terrestre dos chefes.
D e Woichun-Chyanun descendem:
a. Ninggawn Wa, um criador meio humano meio divino que forja a Terra. Mais tarde
assume uma forma mais humana e conhecido pelo nome de Ka-ang Duwa, chefe da terra do
meio, ttulo de sabor fortemente chins.
O Ka-ang Duwa casa-se com um aligtor (bareii)e tem seis filhos, que so os progenitores
dos nungs, dos chineses, dos marus, dos nagas (Kang) e dos jinghpaws.
O mais novo desses filhos Chapawng Yawng, que o primeiro genilor dos jinghpaws.
b . Os Mu Nat - os nats celestes que controlam a prosperidade e a riqueza geral. Os
principais Mu Nat so uma srie de sete, oito ou nove irmos. Embora haja concordncia quanto
aos nomes da maioria deles, existe uma significativa controvrsia acerca da sua ordem de
nascimento, O chefe dos Mu Nat La N Roi Madai, e a esse Madai Nat somente os chefes podem
abordar. O Madai Nat o filho caula do Mu Nat.
c. Os Maraw - esses seres foram descritos na p. 22S.
311
O MITO COMO JUSTIFICAiO DA FACO E DA MUDANA SOCIAL
Num relato, Hkrai Mai, o rfo, casa-se com Qunghpoi, a filha de Mucheng;
noutro, casa-se com uma filha do Ka-ang Duwa. Assim, os plebeus so dama em
relao ao nat celeste Mucheng, mas no em relao a Madai; so tambm dama
em relao linha de chefes que descendem do Ka-ang Duwa.
Ressaltei em captulo anterior que o siatus de parentesco por afinidade dos
plebeus em relao aos chefes uma espcie de paradoxo na estrutura gumsa.
Sintomtico disso que, ao lado de estrias que fazem os plebeus dama em relao
aos chefes e/ou aos nats celestes menores, encontramos outras que fazem os
plebeus descenderem de um par de rfos que so os nicos sobreviventes do
Dilvio e que no tm nenhuma conexo com os chefes ou os natss.
A histria entra agora em sua segunda parte. Aqui as discrepncias entre
verses diferentes tornam-se mais srias. O arcabouo da histria dado acima na
citao tirada de Enriquez. Chapawng Yawng tem um descendente, Wahkyet Wa,
cujos filhos so os fundadores de importantes cls. A ordem de nascimento desses
filhos, como Enriquez bem percebe, deve afetar a ordem hierrquica dos cls, mas
os diferentes cls tm idias muito diferentes sobre o que seja essa ordem. Sem
alterar seriamente a estrutura da estria mitolgica, cada um dos cinco cls citados
- assim como vrios outros - pode reivindicar ser o grupo snior. Primeiro quanto
parte aceita da estria. Isso est representado em forma de diagrama na figura 7.
H um consenso de que a linha masculina de descendncia de Chingra Kumja
e Madai Jan Hpraw Nga acaba por levar a Wahkyet Wa Ma Gam, que pai de uma
srie de filhos. Concorda-se tambm em que os primeiros trs filhos so respecti
vamente os antepassados de Marip, Lahtaw e Lahpai. Outros cls so considerados
descendentes ou dos irmos caulas desses trs ou de um antepassado de Wahkyet
Wa por uma linha colateral. Wahkyet Wa geralmente a linha de descendncia do
filho caula. A verso de Kawlu Ma Nawng, que o converte em membro de um
ramo do filho mais velho, torna sua esposa principal, Magawn Kabang Jan, um
membro da linhagem do filho caula.
Passemos agora s variaes apresentadas por diferentes cls.
5. Minha explicao baseada principalmente nas seguintes fontes: Carrapiett (1929), pp. 12,75,76 e 79;
Gilhodes (1922), pp. 9,10, 13, 44, 51, 70-75, 79-83 e 126; George (1891); Hanson (1913), pp. 110,
121 e 165; Hertz (1943), pp. 135 e 156; Anderson (1876), apgndice; Kawlu Ma Nawng (1942), pp. 1
e s.; Bayfteld (1S73), p. 223.
H maior coerncia entre as vrias versAes do que poderia parecera primeira vista. Por exemplo, embora
osalij!a(ores(fc<ire'i) estejam ausentes em alguns, sSo substitudos por mulheres da linhagem Numrang
ou Numrawng. Mas os aiigatores so muitas vezes descritos como baren numraw(ng) aligtor
monstruoso , de modo que as histrias slo realmente as mesmas. Como ficou ressaltado na p. 228
li., os conceitos mitolgicos de baren numraw e muratv esto estreitamente associados. Alm disso,
como se observou antes, a noco de baren assemelha-se idia chinesa de drago (lung).
SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA
ClMarip: Walikvet Wa leve sele filhos. O mais velho era Marip Wa Kumja, antepassado
do Marip rgio. O caula e uma era La N Hka Hkachu Hkacha, Mas, parte alguns elementos
que foram absorvidos pelos Marips, os Hkachus Hkaehas se extinguiram. Assim, os Marips so
o cia snior (Kawlu Ma Nawng, 1942, pp. 2, 3,7).
Cl Lahtaw: Wahkyet Wa teve sete filhos. O segundo filho era antepassado dos Lahtaw.
O filho caula e uma era La N Hka Hkachu Hkacha. Os ltimos extinguiram-se em grande parte,
mas assimilaram-se ao ramo principal dos Lahtaw. Afora isso, um descendente de Lahtaw Wa
(segundo filho de Wahkyet Wa), chamado Ngaw Wa, casou-se com uma filha do nat celeste
Mucheng. Alm do mais, as pretenses dos chefes Marips so falsas, pois todos os Marips
verdadeiros extinguiram-se h muito tempo e os chefes Marips aluais so meros pretendentes
(Enriquez (1923), p. 27; Carrapieit(1929), p. 80; Gilhodes (1922), p. 84; Hanson (1913), p. 14).
Cl Lakpai: Wahkyet Wa teve inmeros filhos, dos quais o terceiro foi o antepassado dos
Lahpais. Wakyet Wa teve numerosas esposas, mas apenas os primeiros trs filhos nasceram de
sua esposa principal Magawng Kabang. Portanto, o terceiro filho era o uma verdadeiro e os
Lahpais so o cl snior. (No existe nenhuma verso impressa disso; a primeira verso foi a
que eu prprio registrei.)
Cl Maran: Wahkyet Wa teve oito ou nove Filhos, e no sete. O caula era La N Kying
Maran Wa Kying N ange o uma. Os Marans so, pois, o cl snior. Alternativamente, em regies
onde os Lahpais afirmam que apenas alguns dos filhos de Wahkyet Wa eram filhos de sua
primeira esposa, o argumento fica assim: Wahkyet Wa teve cinco filhos de sua primeira esposa,
destes o caula, como uma, era La N Tang Maran Wa Ning Chawng (Kawlu Ma Nawng (1942),
pp. 2-3; Hanson (1913), p. 14; Gilhodes (1922), p. 84).
A
Ja Rum Os nomes c os detalhes menores
(O antepassado variam cm diferentes verscs
comum)
Sana Hpung
Ninghkawng
(Gloriosa iabedoria)
O
Numrawng Jan
(Aligtor)
(O eontador de sagas)
Sana Wa
Tingsa
(O velho sbio)
A A A iii
IV
VI
Antepassados de cls menores
Os detalhes e o nascimento controversos
J Ia Rum
JO antepassado
WaHyfcet
a Hyk
K O Magawng Kabang
Majan
comum)
WA MACAM
(Wahkyet Singgawng)
A A 2
5
3
A4 S
A 6
A 7
A *
A A9
LAHTAW LAHPAI (HHKUM) (Pyen-Tir.gsl) (Nhkum) (Hktchu- (Marip) (MARAN)
(TSASEN) (Marip) (Tinimaicbi) Hkacha) (Maran)
(Maran) (Duleng) (Marip)
(Lahtaw)
Fig- 7. A ordem hierrquica dos antepassados dos cls. Os nove filhos de Wahkyet Wa Ma Gam
na linba inferior da genealogia so os antepassados dos cls principais. Somente a a filiao
de cl dos tTs pri meiros fi lhos geralmente aceita. Para o restante, tanto o nmero de fiihos
como a ordem de nascimento controversa. Hkachu-Hkacha (7) ( os descendentes )
um c ll fictcio, mas mitologicamente importante, j que costuma ser considerado como
a linha do caula, portanto uma.
Ramo Aura da linhagem Chadan do cl Lahpai. Todos os chefes Lahpai dos gauris e dos
atsis consideram-se Lahpai-Chadan-Aura. Os Auras so ainda divididos em vrios segmentos
menores.
J foi mencionado (capftulo 7) o conflito no sculo XIX entre os chefes Gauris da regio
de Mahtang e seus vizinhos do grupo de aldeias Sinlum-Lawdan. O ltimo grupo est agora em
.ascendncia; compe-se sobretudo de batistas, enquanto a maior parte de seus rivais catlica.
a verso de Sinlum que o missionrio batista Hanson assim relata:
315
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
A diviso do territrio gauri era duas partes ocorreu depois de uma festa de um certo
Jauhpa Hkun Wa*, que executou uma dupla dana (hting htang manau) para seus filhos gmeos,
o mais novo dos quais era um uma; o mais velho dos dois procurou um pas prprio, isto , foi
para 'outro pas (mung kaga) e por isso chamou seu territrio de Mung Ga, enquanto o pas do
gmeo mais novo foi chamado Uma GaT. Esse relato deve ser comparado com os testemunhos
histricos que citei p. 271.
O sexto filho de Wahkyet Wa (o antepassado dos Dulengs) foi Tingmaicha Dawng Yawng
(N Dawng Wa). Dele descende o cl dos Tingmaichas ou N Dawngs, que abrange os Dulengs.
6. Jauhpa Hkun Wa (Saohpa Hkun) t um ttulo chan particularmente espalhafatoso. Para a localizao
dos gauris, ver mapa S, p. 126.
7. Ver Hanson (1906), p. 46. Cf. tambm o mito que associa os chefes gauris (Lahpai-Auras) aos chefes
atsis e hpunggans (Scott e Hardiman (1901), Parle 1, vol. I, p. 378). Isso lambm exisle em vrias
verses anlagnicas.
316
O M ITO COMO JUSTIFICAO DA FA CAO E DA MUDANA SOCIAL
No grande manau onde se decidia a precedncia dos cls e onde os Hkachus Hkachas
eram reconhecidos como a linhagem principal, os NDawngs chegaram tarde, depois que a festa
tinha terminado. Viram que tinham chegado tarde demais para comer a carne e por isso
decidiram recolher os bambus espalhados nos quais tinha sido cozida a carne e lamberam-lhes
as partes de dentro. Assim, os gumsa classificam os NDawngs no status de cJes prias. At
hoje as pessoas que se desavm com os Ndawngs podem insult-los e molest-los dizendo:
Vocs, Ndaung, que lamberam bambus nas cabeceiras do fhunghkang
Pyen Tingsa Marip - A maioria das verses dizem que os descendentes do quinto filho
de Wahkyet Wa eram ou Marip ou Pyen Tingsa. A verso gumsa que o filho mais velho de
Wahkyet Wa, Marip Wa Gumja, se casou com Woigawng Sumpyi. Marip Wa Gumja partiu para
S. Kawlu Ma Nawng (1942), pp. 2 e 7. Os nomes Maju Kinji e Hpyi significam "varinha mgica do
sacerdote aziago e feiticeira, respectivamente.
SIST E M A S PO LTIC O S DA A LTA BIRM NIA
uma longa viagem, deixando sua mulher em casa. Enquanto ele estava fora, Woigawng Sumpyi
teve quatro filhos de Pyen Tingsa Tang, quinto filho de Wahkyet Wa e irmo caula de Marip
Wa Gumja. Como castigo por essa ofensa, os descendentes de Woigawng Sumpyi e Pyen Tingsa
Tang, embora classificados como Marip, so para sempre plebeus e servos hereditrios dos
descendentes de Woigawng Sumpyi, e Marip Wa Gumja o verdadeiro Marip aristocrtico.
Os gumlao acei tam a maior parte da histria acima, mas dizem que foi po r culpa do prprio
Marip Wa Gumja que sua mulher o traiu, pois ele no devia l-la deixado sozinha por tanto
tempo. Em todo caso, muitos kachins sustentam que, se um marido fica fora durante muito
tempo, perfei tamente natural que a esposa durma com o irmo do marido. Por isso, os ancestrais
do subcl Pyen Tingsa recusaram-se com razo a aceitar o status de inferioridade e aderiram ao
movimento gumlao.
Essa histria particular parece servir de bandeira para muitos tipos de faco.
Admite-se comumente que os modernos representantes do subcl Pyen Tingsa so
membros da linhagem maior dos N*Ding, da qual existe um grande nmero de
ramos. Alguns deles so gumlao, outros compreendem chefes de grande influncia.
A histria citada acima pode, pois, ser usada no s para realar a oposio entre
Marips gumsa e gumlao mas tambm para justificar cises entre setores gumsa
rivais do cl Marip - os N Dings, de um lado, e os Ums, Ningrangs e Rurengs, de
outro10.
Penso que todos devem concordar em que os exemplos de tradio que citei
neste captulo so, sem dvida, mito num sentido clssico ortodoxo. Mas em cada
caso as impl icaes estruturais do mito so totalmente ambguas e variam de acordo
com os direitos adquiridos do indivduo que est citando a histria.
No captulo 4, ao descrever os conflitos e as faces de Hpalang, mostrei
como as tradies sobre o passado razoavelmente recente so usadas para fazer
afirmaes controvertidas sobre o status relativo de indivduos vivos. Chamei essas
estrias de Hpalang de mito, embora ressaltasse ao mesmo tempo que no se
ajustam definio usual de mito, j que os eventos parecem recentes e as
personagens so seres humanos comuns. As estrias que apresentei agora so mitos
num sentido clssico; tratam de deuses, semideuses e ancestrais de status semidi-
vino, e-a maioria deles so comuns, em grande medida, a todos os povos de lngua
jinghpaw, No creio que seja ir longe demais afirmar que, devidamente questiona
do, qualquer contador de sagas jinghpaw ( jaiwa) nas Colinas de Kachin daria uma
verso da criao e do comeo da humanidade que seria prontamente considerada
como a mesma estria esquematizadanas figuras 6 e 7 (pp. 312 e 315). Mas seria
a mesma estria apenas na estrutura geral, pois os detalhes menores variariam a
318
O M IT O COMO JU STIFIC A O DA FACO E DA MUDANA SOCIAL
1. H nnay (1B37) e Hannay (1847) contm relatos que so substancialmente idnticos, mas num existem
cerlo s p o im en o res que faltam no ouiro.
SIST E M A S PO LTIC O S D ALTA BIRM NIA
ou dois depois Daihpa Gam foi uma espcie de subgovernador de toda a regio de
Hukawng e que nos cinco anos seguintes os gumsa NDing (chefes Marips)
juntaram suas foras com os gumlao e expulsaram Daihpa Gam de sua aldeia natal.
Isso no parece indicar um grau acentuado de solidariedade social contnua. Se,
pois, aceitarmos a tese durkheimiana de que os rituais religiosos so representaes
da solidariedade do grupo participante, devemos compreender obviamente que a
solidariedade s precisa existir no momento da celebrao do ritual; no podemos
inferir uma solidariedade latente continuada depois do encerramento das celebra
es rituais.
Tudo o que meu exemplo realmente mostra que os birmaneses, os chans e
os kachins do vale do Hukawng, em 1837, tinham em comum uma linguagem de
expresso ritual; todos eles sabiam fazer-se entender nessa lngua" comum. Isso
no significa que o que se dizia nessa lngua fosse verdadeiro na realidade
poltica. As afirmaes do ritual em questo eram feitas em funo da hiptese de
que ali existia um Estado chan estvel ideal, tendo testa o saohpa de Mogaung e
sendo todos os chefes kachins e chans do vale do Hukawng seus leais servos
feudais. No dispomos de provas de que um verdadeiro saohpa de Mogaung tenha
gozado de tal autoridade, e sabemos com certeza que, quando se celebrava esse
ritual particular, no havia um autntico saohpa de Mogaung durante quase oitenta
anos. Por trs do ritual havia no a estrutura poltica de um verdadeiro Estado, mas
a estrutura como se de um Estado ideal. Esse sistema como se deve ser
distinguido das categorias de fato poltico que, primeira vista, parecem ser
manifestas em diferenas culturais bvias.
Parte de meu objetivo ao escrever este livro foi demonstrar que em contextos
como o que encontramos na Birmnia do Norte as convenes etnogrficas comuns
sobre aquilo que constitui uma cultura ou uma tribo so irremediavelmente inade
quadas, No estou sugerindo que isso seja uma idia totalmente nova, mas consi
dero-a um tema de importncia terica geral que requer uma enfatizao.
Grande parte do atual trabalho de campo antropolgico foi realizada em
regies onde existe uma palpvel falta de coincidncia entre as fronteiras dos
fenmenos culturais e as dos estruturais. Minha tese simplesmente que o uso
convencional do conceito de unidade cultural apenas obscurece a importncia de
tais fatos. Seja-me permitido citar um exemplo de bem longe do campo kachin. Os
tswanas de Bechuanalndia dividem-se politicamente em dez tribos; mais da
metade da populao total pertencem s tribos Ngwato e Tawana. Sobre ests
somos informados:
SISTEM AS PO LTICO S DA ALTA BIRM NIA
Cerca de quatro quintos da tribo Ngwato [...] so formados pelo que eram originariamente
povos estrangeiros, e entre os tawanas a proporo ainda maior. Alm disso, os membros de
uma tribo diferem s vezes nos costumes e na lngua. Entre os ngwatos, por exemplo, existem
sarwas, que pela lngua e pelos costumes sobosqumanos e no bantus; kalakas, kobas, hereros,
rotses e outros, que, embora bantus, no pertencem ao grupo Sotho (do qual os tswanas so uma
diviso), mas falam suas prprias lnguas e tm muitos costumes diferentes dos de seus
governantes; e kwenas, kaas, kgatlas, khurutches e muitos outros, que so da estirpe tswatta mas
diferem em vrios pormenores de lei e costumes dos ngwatos propriamente ditos4.
4. Schaper (1952), p. v,
5. Murdock (1949), pp. x, 353, 374.
6. Evans-Prilchard (1951), pasim.
CONCLUSO
325
SISTEM AS PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA
9. Wilson (1945), p. 133. Cf. a categrica assero do mesmo autor: Toda anlise objetiva das relaes
sociais repousa no pressuposto de que formam sistemas coerentes, de que dentro de todo e qualquer
campo p a T tic u laT el?s $e sustenlam e $e determinam uma outra inexoravelmente", op. cti., p. 23.
10. Ver Herskovlts (1948), Parle 6; Tax (1952).
11. Popper (1945).
12. Vaihinget (1924).
326
CONCLUSO
mente determinvel no domnio dos fatos empricos; uma questo, pelo menos
era parte, das atitudes e idias de indivduos particulares num dado tempo. Existe,
como vimos, um grande nmero de atos rituais dos quais se pode dizer que tm
o mesmo significado quer o ator seja um chan, um kachin gumsa ou um kachin
gumlao, mas as inferncias que se podem tirar de tais atos sero inteiramente
distintas em cada caso.
O fato de tal ambigidade no levar a equvocos intolerveis se deve
impreciso essencial de todas as afirmaes rituais. Ritual e mitologia repre
sentam uma verso ideal da estrutura social. um modelo do modo como as
pessoas supem a organizao da sua sociedade, mas no necessariamente a meta
que buscam alcanar. uma descrio simplificada do que , e no uma fantasia
do que poderia ser. Mas as afirmaes feitas nos atos rituais so afirmaes vagas;
no tm a qualidade de descries cientficas, e por isso o mesmo ato ritual pode
ter significao num contexto chan e tambm num contexto kachin.
Do ponto de vista do observador externo, um domnio poltico kachin (mung)
que tenha uma localizao favorvel em termos econmicos pode fundir-se com
um mng chan e tomar-se parte dele. Ainda do ponto de vista do observador
externo, o processo pode ter como resultado alguns dos kachins tomarem-se
chans, mas para o ator essa mudana pode ser quase imperceptvel. Ao tomar-se
sofisticado, o indivduo apenas comea a atribuir valores chans a atos rituais que
antes tinham somente uma significao kachin.
Comecei este livro com o testemunho de um kachin que se tomara chan. Aqui
est outra declarao proveniente da mesma fonte:
a. Uma estrutura de tipo feudal persistiu em todas as plancies chans de arroz. A Kngua
mais ou menos coerentemente tai, salvo uma mudana recente para o birmans perto das
regies urbanas da Birmnia.
b. Uma organizao do lipo gumlao parece ter persistido na maior parte da poro
setentrional das Zonas B e C (mapa 2, regies de Htawgaw e Nam Tamai). Aqui os dialetos
(mani e nung) mudam a cada poucas milhas, quase de aldeia para aldeia.
Finalmente, seja-me permitido dizer que o tipo geral de anlise que empreen
di neste livro pode ter valor em outros contextos alm da Regio das Colinas de
Kachin. A situao cultural nas Colinas de Kachin, como a descrevi, confusa e
desconcertante, mas no excepcional. Ao contrrio, eu diria que largamente
uma fico acadmica supor que numa situao etnogrfica normal se encontrem
comumente tribos diferentes, distribudas no mapa de maneira ordenada, com
ntidas fronteiras entre elas. Concordo, est claro, em que as monografias etnogr
ficas sugerem freqentemente que esse o caso, mas os fatos esto provados?
Minha opinio pessoal que no raro o etngrafo logrou discernir a existncia de
331
SISTEM AS PO LTICO S DA AL TA BIRMNIA
uma tribo porque partiu do axioma de que esse tipo de entidade cultural deve
existir. Muitas dessas tribos so, em certo sentido, fices etnogrficas.
Uma ilustrao disso fornecida pela literatura da Regio das Colinas Nagas
e da Regio das Colinas Chins, situadas a oeste da Regio das Colinas de Kachin
(ver mapa 1). A etnografia dessa regio foi amplamente registrada num grande
nmero de monografias altamente competentes feitas por vrios autores, com
destaque para as obras de Hutton, de Mills e de Parry. Em todos esses livros,
parte-se do axioma de que o grupo que fala uma lngua ou um dialeto distinto ,
por definio, uma tribo ou seo tribal autnoma. Em seguida, cada seo tratada
como uma entidade cultural e etnogrfica autnoma, com uma histria distinta e
uma continuidade no tempo prpria. Algumas tribos, os nagas semas, por exem
plo15, tm uma organizao que difere muito pouco daquilo que descrito neste
livro sob o ttulo de gumsa. Outras tribos, como os nagas angamis1, aproximam-se
do meu modelo gumlao. Mas parte-se do pressuposto de que essas categorias tribais
so independentes. Os semas e os angams so geograficamente contguos, mas
no so descritos como se interagissem de alguma forma institucional. Esse
enfoque parece-me repousar sobre falsas premissas.
No nego, claro, que na regio Chin-Naga existe grande diversidade de
cultura, mas que tal diversidade deva ser estvel parece-me inconcebvel. Deve
ocorrer seguramente que durante um dado perodo h uma mudana de poder
econmico e poltico de um centro geogrfico para outro, juntamente com os
correspondentes reajustes na rede total de relaes intergrupais, em cada nvel de
escala, atravs de toda a regio?
Em tal situao, parece-me que ftil tentar registrar todas as variaes
etnogrficas estereotipadas, porque elas so quase inumerveis. O etngrafo ass
duo pode encontrar tantas tribos diferentes quantas se der ao trabalho de procurar.
O relato de Mills sobre os nagas Aos fornece um exemplo disso. A categoria
trbal Ao aqui representada como constituda de trs categorias ou sees
subtribais - Chongli, Mongsen e Changki. Essas sees, de acordo com Mills,
representam indubitavelmente ondas diferentes de imigrantes que falam dialetos
diferentes17. As comunidades locais usualmente contm vrios distritos (khel)
distintos que correspondem s aldeias (kahtawng) de minha anlise de Kachin.
Todos os distritos de uma comunidade Ao local so usualmente de uma seo tribal
(Chongli, Mongsen ou Changki), mas nem sempre esse o caso. Algumas comu