ARTAUD - Linguagem e Vida PDF
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Direo: J. Guinsburg
Assessoria Editorial: Plnio Martins Filho
Traduo: J. Guinsburg, Silvia Fernandes, Regina
Corra Rocha e Maria Lcia Pereira
Reviso de Texto: J. Guinsburg e Srgio Slvia Coelho
Reviso de Provas: Afonso Nunes Lopes
Produo: Ricardo W. Neves
Ilustraes: caro Yamin
Projeto Grfico e Capa: Adriana Garcia
EDITORA PERSPECTIVA
LINGUAGEM E VIDA
antonin artaud
Organizao
J- Guinsburg, Slvia Fernandes Telesi e
Antnio Mercado Neto
o do original em francs
res Completes
Nota de Edio 9
Prefcio - Slvia Fernandes e /. Guinsburg 11
No TEATRO 23
A Evoluo do Cenrio 25
O Teatro Alfred Jarry 29
Teatro Alfredjariy (11) 33
Manifesto por um Teatro Abortado 37
O Sonho de Strindberg 41
O Teatro Alfred Jarry em 1930 43
Projeto de Encenao para A Sonata dos Espectros de Strindberg 59
Conferncia Apcrifa 67
O Teatro e a Psicologia - O Teatro e a Poesia 71
O Teatro, Antes de Tudo, Ritual e Mgico 75
Carta a UIntransigeant 77
O Teatro que Vou Fundar 79
Carta Comoedia (18-9-32) 81
A Mareei Dalio (27-6-32) 85
Ao Senhor Van Caulaert (6-7-32) 89
Ao Senhor Van Caulaert ou Sr. Fouilloux (Projex de Carta) (8-7-32) 91
LINGUAGEM E VIDA
No CINEMA 155
NA PINTURA 189
NA POESIA 205
NA VIDA 255
E assim que a sociedade fez estrangular em seus asilos todos aqueles de que quis se
livrar ou se defender, por terem se recusado a ser cmplices em certas imensas sujeiras.
Porque um alienado tambm um homem que a sociedade no quis ouvir e a
quem ela quis impedir de dizer verdades insuportveis ("Van Gogh. O Suicidado da So-
ciedade", p. 260).
[...] Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior, o que lhe permite, em
todas as circunstncias, enxergar mais longe, infinita e perigosamente mais longe que o
real imediato e aparente dos fatos (idem, p. 269).
o teatro parece uma exigncia absurda, pois o que falta arte teatral justamente
voltar vida, desprezando para isso os meios mais evidentemente teatrais. "E
isto, esta tralha, esta ostentao visual que queremos reduzir a seu mnimo im-
possvel e recobrir sob o aspecto de gravidade e o carter de inquietude da ao"
("Teatro Alfred Jarry II", p. 35).
Quando fala em ao, Artaud pensa em um acontecimento nico, to im-
previsvel quanto qualquer ato e cujo valor medido pelo grau de veracidade -
e no por verossimilhana.
Para conseguir reproduzir no palco esse ato irrepetvel o encenador precisa
rejeitar a mise en scne tradicional para explorar os deslocamentos interiores pre-
sentes na dramaturgia a ser encenada. Estes, em confronto com sua viso parti-
cular, sero rebatidos como duplos, gerando uma nova realidade. Graas a esse
mecanismo especular, o "vaivm das almas" que movimenta a dramaturgia de
um Esquilo, Shakespeare ou Racine servir ao encenador como instrumento de
viagem prospectiva para dentro de si mesmo. Dirigir teatro, afirma Artaud,
saber dedicar-se ilimitadamente a um texto, at conseguir extrair dele imagens
nuas, naturais, excessivas e inaugurais, estas sim capazes de estabelecer com o
espectador uma ponte corporal, espcie de relao fsica necessria sua efetiva
participao na ao cnica ("A Evoluo do Cenrio", p. 25).
/ A semelhana dessas propostas com o teatro de Grotowski ou com as
performances contemporneas estarrecedora. Especialmente por sua ligao com
um movimento maior, a Live Art, onde se procura uma aproximao direta com
a vida. Artaud um dos precursores dessa corrente, que trava uma longa batalha
para liberar a arte do ilusionismo e artificialismo.
J aparecem nos ensaios deste livro alguns apontamentos e sugestes sobre
o modo de estruturar a linguagem cnica.
interessante destacar o ncleo bsico em torno do qual gira essa reflexo:
a especificidade da linguagem do teatro. Esto ligadas a essa investigao as re-
ferncias, to freqentes nos projetos artaudianos, impossibilidade de descrever
o teatro, relacionada a seu carter prprio. "[...] Descrever uma encenao de
maneira verbal ou grfica o mesmo que tentar fazer um esboo, por exemplo,
de um certo tipo de dor", observa Artaud em "Carta a Louis Jouvet" (p. 144).
Essa afirmativa vem acompanhada pela descrena na possibilidade de orga-
nizar, por meio de texto, um projeto de encenao. Se a qualidade distintiva da
linguagem teatral a mise en scne, ela no pode estar contida em palavras. Um
deslocamento, gesto ou movimento contribuem mais efetivamente para esclare-
c-la que uma srie de discursos.
A conseqncia imediata desse modo de conceber o teatro a eleio do
espao como ponto de partida para a criao de sua linguagem, feita de gestos,
atitudes, expresses, mmica e som, "signos ativos" destinados a compor no palco
"discursos lricos". Para chegar potica da cena o diretor deve executar, em
torno de um tema qualquer, "ensaios de realizao dramtica", destinados a
expressar algo diretamente a partir da cena. (Veja-se, a esse respeito, especialmente
16 LINGUAGEM E VIDA
"O Teatro que Vou Fundar", "O Teatro e a Psicologia - O Teatro e a Poesia"
e "Carta Comoedia".)
A discriminao do espao como elemento essencial de constituio da
linguagem do teatro soa bastante radical se pensarmos no perodo em que os
textos foram escritos, quase todos nos anos 30. Radicalidade ainda mais efetiva
se considerarmos os "ensaios de realizao dramtica", sem dvida precursores
das criaes coletivas presentes no teatro sobretudo a partir dos anos 60.
O detalhamento mais preciso dos meios necessrios encenao no aparece
nestes textos. No entanto, no "Projeto de Encenao para A Sonata dos Espectros"
e "O Teatro Alfred Jarry em 1930", Artaud fornece algumas pistas para a criao
recorrendo especialmente a imagens que, longe de circunscreverem um campo
de definio de signos, servem rhis como indicador analgico de algo no muito
definido at o momento.
Alm de enfatizar, ainda uma vez, a realidade e concretude dos cenrios e
acessrios cnicos, Artaud menciona o jogo de movimentos do ator, descreven-
do-o como uma espcie de pantomima onde as personagens variariam da natu-
ralidade ao artifcio. Refere-se tambm recriao de ambientes, verdadeira res-
semantizao do espao feita por meio de vibraes luminosas e sonoras obtidas
com uso de dispositivos especiais ("Carta a Orane Demazis").
Todos os meios de ao fsica de que o teatro pode dispor esto a servio
da produo de verdadeira ao orgnica dirigida ao espectador. A inteno
recuperar, com meios cientficos, algo equivalente a um choque sensorial.
bastante evidente, na indicao da nova cena, a semelhana com as ope-
raes de construo do sonho. Sem fazer qualquer referncia aos mecanismos
da potica onrica discriminados por Freud, Artaud parece intuir essa relao
quando descreve "[...] Uma certa maneira de unir - em virtude de que misteriosas
analogias - uma sensao e um objeto, e de coloc-los no mesmo plano mental,
evitando a metfora [...]" ("Maurice Maeterlinck", p. 151). Ou quando admite
que nesta encenao, "[...] o real e o irreal se misturam como no crebro de um
homem em vias de adormecer" ("Projeto de Encenao para A Sonata dos Es-
pectros", p. 59).
Ainda em relao a mecanismos construtivos importante mencionar a
ponte que, de acordo com Teixeira Coelho, aproxima a encenao de Artaud da
montagem de Eisenstein2.
Para o diretor russo os vrios planos cinematogrficos no devem ser ar-
ticulados linearmente, seguindo uma intriga, mas combinados a partir de um
princpio organizador. E este princpio a contradio, o conflito entre dois
elementos opostos de onde surge um novo conceito. Montagem essa operao
que justape os elementos/fotogramas distintos para obter uma nova ima-
gem/conceito.
4. Susan Sontag, "Abordando Artaud", era Sob o Signo de Saturno, Porto Alegre, L&PM, 1986,
p.26.
20 . LINGUAGEM E VIDA
entre suas intuies poticas e a fixao dessas intuies em forma verbal. Depois de
considerar a dificuldade como sua, fruto de uma total incapacidade de expresso,
passa a duvidar da eficcia da linguagem enquanto transmissora das mais simples
, sensaes. Em carta a Louis Jouvet, includa neste livro, reclama da inutilidade da
palavra, que no consegue ser vnculo, mas ponto de sutura do pensamento (p. 141).
A luta com a linguagem na verdade a luta pela auto-expresso, travada
por Artaud contra a refratariedade de sua prpria vida interior. Vem acompa-
nhada pela busca de uma outra lngua, que sirva a esta necessidade exacerbada
de expresso.
nova construo pretende destruir a "palavra soprada", que originaria-
mente no lhe pertence, pois deve busc-la na lngua, campo histrico e cultural
que o precede e dele prescinde.
[...] o que se denomina sujeito falante j no aquele que fala. Descobre-se numa irredutvel
secundariedade, origem sempre j furtada a partir de um campo organizado da palavra
no qual procura em vo um lugar que sempre falta5.
E para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; do outro mundo
que ele chega quando desembarca. [...] E a terra qual aportar no conhecida, assim
!como no se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua nica verdade e sua ptria
so essa extenso estril entre duas terras que no lhe podem pertencer7.
Slvia Fernandes
J. Guinsburg
O teatro participa deste descrdito no qual caem uma aps outra todas as
formas de arte. Em meio confuso, ausncia, desnaturao de todos os
valores humanos, a esta angustiante incerteza na qual mergulham no tocante
necessidade ou ao valor desta ou daquela arte, desta ou daquela forma da atividade
do esprito, a idia de teatro provavelmente a mais atingida. Procurar-se-ia em
vo na massa dos espetculos apresentados diariamente alguma coisa que respon-
desse idia que se pode ter de um teatro absolutamente puro.
Se o teatro um jogo, um nmero demasiado de graves problemas nos
solicita para que possamos distrair, em proveito de algo to aleatrio quanto este
jogo, a menor parcela de nossa ateno. Se o teatro no um jogo, se uma
realidade verdadeira, por que meios lhe prestar esta classe de realidade, fazer de
cada espetculo uma espcie de acontecimento, tal o problema que devemos
resolver.
Nossa impotncia em crer, em nos iludir, imensa. As idias de teatro no
tm mais para ns o brilho, a mordacidade, este carter de coisa nica, inusitada,
inteira, que ainda conservam certas idias escritas ou pintadas. No momento de
lanar esta idia de um teatro puro e de tentar dar-lhe uma forma concreta, uma
1. Este primeiro manifesto do Teatro Alfred Jarry foi publicado, de forma fragmentada na
NouvelleRevueFranaise (n 158, Io de novembro de 1926) precedido do nariz de cera:
Jovens escritores fundam o teatro Alfred Jarry". Eles nos pedem publicar algumas passagens de seu
manifesto.
30 LINGUAGEM E VIDA
2. Comparao pela qual os fundadores do Teatro Jarry foram violentamente censurados por
Andr Breton no Segundo Manifesto do Surrealismo: E enfim o Sr. Vitrac, verdadeiro porcalho de idias
- abandonemoslhes a "poesia pura" a ele e a essa outra barata o Abade Bremond - pobre Joo Ningum
cuja ingenuidade a toda prova foi a ponto de confessar que seu ideal de homem de teatro, ideal que tam-
bm, naturalmente, o do Senhor Artaud, era organizar espetculos que pudessem rivalizar em beleza com as
batidas da polcia. (Andr Breton, Manifestes du Surralisme, Ides n.r.f., 1965, p. 89).
O TEATRO ALFREDJARRY 31
1. Brochura em oito pginas, n-8, com capa cinzenta, impresso pela S.G.I.. em 1926.
Na pgina da capa, embaixo, a seguinte meno:
Diretor: ROBERTARON.
A antepenltima pgina da brochura est reservada para o relatrio da Administrao do Teatro
Jarry:
MEMBROS BENFEITORES, MEMBROS FUNDADORES E AMIGOS DO TEATRO ALFRED JARRY
O Teatro Alfred Jarry uma empresa desinteressada e sem fins comerciais. Tem vontade, aps seus
primeiros espetculos, de viver por seus prprios meios e aplicando o mesmo esprito de integridade e de
independncia a sua gesto financeira que a. sua direo artstica.
Para assegurar completamente seus primeiros espetculos, ele precisa apelar queles que se interessam
por seu esforo.
Estes podero se inscrever entre seus Membros Benfeitores, Membros Fundadores ou seus Amigos.
A. - Membros Benfeitores do Teatro Alfred Jarry.
Cotizao mnima de 500 francos dando direito a dois lugares numerados fora de srie para a
primeira representao de cada espetculo da temporada 1926-1927.
B. - Membros Fundadores do Teatro Alfred Jarry.
Cotizao de 250 francos ou 150 francos a escolher.
A cotizao de 250 francos d direto a quatro lugares numerados fora de srie para o espetculo de
abertura da temporada de 1926-1927.
34 LINGUAGEM E VIDA
A cotizao de 150 francos d direito a dois lugares numerados fora de srie para espetculo de
abertura da temporada 1926-1927.
C. - Amigos do Teatro Alfred Jarry.
Cotizao de 50 francos dando direito a uma reduo de 5 francos vlida para dez cadeiras
adquiridas no curso da temporada de 1926-1927.
A ltima pgina, destacvel, e um talo de subscrio que nos indica o endereo do Teatro
Alfred Jarry em 1926: Rua Du Vieux-Colombier, 21.
2. Algumas frases desse pargrafo, retomadas textualmente do manifesto publicado na Nouvelle
Revue Franaise cf. p. 31, ltimo pargrafo), pareciam indicar que este texto o primeiro manifesto
modificado e recomposto.
TEATRO ALFRED JARRY (II) 35
ANTONIN ARTAUD
13 de novembro de 1926
certo que se eu tivesse feito um teatro, aquilo que eu teria feito estaria
to pouco aparentado com o que se tem o hbito de chamar teatro quanto a
representao de uma obscenidade qualquer se assemelha a um antigo mistrio
religioso.
A.A.
8 de janeiro de 19272
2. O Post-Scriptum, posterior em quase dois meses ao texto do manifesto, foi portanto acrescen
tado aps a excluso de Antonin Artaud do grupo surrealista que ocorreu em novembro de 1926
Cabe mesmo pensar que uma primeira resposta brochura Au grandjour assinada: Aragon, Breton
luard, Pret, Unik, a qual Antonin Artaud ops, em julho de 1927, A Ia grande nuit.
O SONHO DE STRINDBERG1
1. O texto includo no programa vendido por ocasio das representaes do Sonho ou Jogo de
Sonhos, de Strindberg, interpretado pela primeira vez em Paris, na traduo francesa do autor. A mise
en scne era de Antonin Artaud. No programa constava esta especificao: O Prlogo e os 6o, 12, 14
quadros no sero representados.
A pea foi representada por Tnia Balachova (Agns), Yvonne Save (a Me e a Zeladora),
Lannay (a Cantora e a Danarina), Gilles (Christine), Alexandra (Louise e Edith), Ghita Luchaire
(Ela e a Velha Coquette, depois a Mulher e Victoria); Srs. Raymond Rouleau (o Oficial), Straram
(o Vidraceiro e o Pai), Bontoux (o Corista e Ele, depois o Marido), Sarantidis (o Ponto e o Amigo),
Bruyez (o Pregador de Cartazes e o Escolar), Dall (o Policial), Maxime Fabert (o Advogado), Boverio
(o Poeta), Decroux (o Chefe da Quarentena), Zacharie (Don Juan), de Vos (o Cego); Antonin Artaud
s aparecia no 15 e ltimo quadro no papel de A Teologia.
No tocante distribuio dos papis em O Sonho, Sra. Colette Allendy nos comunicou esta nota
manuscrita de Antonin Artaud talvez destinada imprensa:
O Sr. Raymond Rouleau que possui uma rara inteligncia das necessidades e das leis do teatro de hoje
no papel do Oficial. O Sr. Boverio, de natureza generosa, de temperamento de fogo, que compor uma
fremente figura de Poeta ideal. O Sr. Fabert que soube outogar o seu temperamento cmico s necessidades
de um papel com toda a profundidade. Do lado das senhoras, Tnia Balachova presta sua sensibilidade ao
papel de Agns e a Sra. Yvonne Save, seu senso do palco ao duplo papel da Me e da Zeladora. Mais ainda,
entre as mulheres, Alexandra Pecker, Ghita Luchaire etc, e depois os Srs. Beauchamp, Decroux que
compuseram slidas silhuetas, os Srs. Straram, Bontoux, Zacharie etc.
LINGUAGEM E VIDA
DECLARAO
1. Brochura de quarenta e oito pginas, ilustrada com nove fotomontagens, sob capa em cores
de Gaston-Louis Roux. Nenhuma indicao do impressor.
As cartas descobertas por Henri Bhar nos informaram que sua redao fora confiada a Roger
Vitrac. Esta brochura no pode ser separada das outras publicaes do Teatro Alfred Jarry. Alm do
fato de ter sido Antonin Artaud quem teve a idia de utilizar as opinies da imprensa e ter ele se
encarregado pessoalmente de redigir, sob a forma de canas humorsticas, a crnica do segundo e
terceiro espetculos, ele deu a Vitrac instrues precisas sobre o essencial do que devia ser a! dito,
instrues que ele deve ter renovado, por certo, mais de uma vez de viva-voz, Artaud o levou a
modificar certas passagens e rejeitou algumas de suas proposies, nomeadamente naquilo que poderia
tender a dar ao planfleto o tom de um manifesto poltico. Alm disso, ele se encarregou pessoalmente
das ltimas correes e assinou a liberao de impresso.
Henri Bhar descobriu uma cpia datilografada do texto de introduo trazendo, em cima do
ttulo, pela mo de Roger Vitrac, a meno: Io artigo. Entre esta cpia e a verso que foi impressa
possvel notar algumas diferenas que indicamos aqui abaixo. Elas podem corresponder s correes
feitas nas provas por Antonin Artaud. Cumpre observar, alm do mais, que esta cpia n o
comporta quase palavras em itlico e que as indicaes tipogrficas devem ter sido dadas p o r
Antonin Artaud.
44 ^^ LINGUAGEM E VIDA
HISTRICO
2. O texto Ventre brl dela Mire folie ("Ventre Queimado ou A Me Louca") no foi encon-
trado; de se perguntar se Antonin Artaud na realidade escreveu o "texto" deste rabisco musical e se
no se tratava antes de um esquema sucinto a partir do qual ele teria indicado no curso de ensaios os
jogos de cena aos atores. Parece, de fato, em todo caso, que o msico, Maxime Jacob, trabalhou to-so-
mente segundo diretivas verbais porquanto, nossa pergunta relativamente a esse texto problemtico,
ele respondeu: Lembro-me com muita nitidez de Ventre brl ou Ia Mre folie, mas jamais tive texto al-
gum entre as mos e no conservei sequer minha msica de cena para bateria e contrabaixo. Ao sair da rep-
resentao, Benjamin Crmieux nota na Gazette du franc (4 de junho de 1927) que se trata de uma
breve alucinao sem texto ou quase.
Numa tese defendida em 1960, o Hors-Thtre, Robert Maguire tentou reconstituir o esquema de
Ventre de brl de Ia Mre folie, interrogando os atores. Ele tambm utilizou visivelmente as crticas da
poca: a de Benjamin Crmieux, j citada, e de Mareei Sauvage na Comcedia (3 de junho dde 1927) e de
Rgis Gignoux no Vlmpartial francais (7 de junho de 1927) das quais h extratos na montagem que da
conta da reao da imprensa ao primeiro espetculo do Teatro Alfred Jarry. No se deve ocultar o
lado contestvel e aleatrio de uma tal reconstituio feita com lembranas solicitadas a respeito de um
fato ocorrido trinta anos antes. (Assim, Arthur Adamov, envocando a representao do Sonho em V-
Homme et VEnfant (Gallimard, 1968) a partir de suas prprias lembranas, pde escrever: No palco, An-
tonin Artaud, no papel do Oficial, com um gigantesco buqu de flores na mo, bate a uma porta fechada,
insiste, chama: "Victoria! Victoria!" Ora, basta consultar o programa do Sonho (cf. nota 1, p. 41) para
perceber que o papel do Oficial era desempenhado por Raymond Rouleau e que Antonin Artaud s
aparecia no fim da pea no papel da Teologia.) Por isso, damos reconstituio de Maguire, a ttulo de
documentrio, mas fazendo as maiores reservas:
Uma personagem entra em cena envergando uma grande toga preta e com as mos enluvadas; masca-
ra-lhe o rosto a sua longa cabeleira que parece ser de couro umedecido e duro. Ela dana uma espcie de
charleston numa obscuridade quase completa, adiantando e recuando uma cadeira ao mesmo tempo que
pronuncia frases misteriosas. Um brilho de raio e ela se desmorona. E nesse momento que entra o Mistrio
de Hollywood, vestido de uma longa veste vermelha, com o olho prolongado na direo da boca, por uma
mscara que traz um risco no meio. Este torna entre os dedos os longos fios de sua cabeleira e, como que fas-
cinado, puxa-o para a luz violeta afim de estud-lo, como um qumico com seu frasco. Nesse momento, do
outro lado do palco, uma personagem, Corno de Abundncia, grita: "Acabou o macaroni. Mistrio de Hol-
lywood!" Ao que Mistrio de Hollywood responde: "Cuidado com o raio, Corno de Abundncia, cuidado
com o raio!" Uma rainha passa e morre (entre outras personagens que tambm morrem), mas seu cadver se
levanta passagem do rei para gritar suas costas: "Como!" antes de voltar e deitar-se definitivamente. A
segunda cena consagrada ao enterro, uma espcie de marcha fnebre semigrotesca e semipungente, em que
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930
o cortejo, vitriolado por um jato de luz violeta vindo dos bastidores, desfila ao rufor do tambor atrs
de uma cortina de jogo de luz.
Maguire cita em seguida uma carta endereada a ele por Maxime Jacob que d mostras de uma
prudncia mais justa: Quanto a mim sou infelizmente incapaz de reconstituir o tema e desenvolvimento
da pea. Posso somente vos dizer que ela se ligava ao esforo de negao e revolta do movimento surrealista.
Parece-me que as personagens - o Rei, sua mulher - encarnavam a angstia do autor e sua recusa desespera-
da ou blasfematria diante da vida: amor, casamento, sociedade etc, me parece, eram as mais particular-
mente visadas. Tenho a lembrana de uma espcie de marcha fnebre semigrotcsca e semipungentc. Por isso
concebi uma msica quase exclusivamente para percusso, com pulses montonas e frenticas, com ritmos
elementares, e suas combinaes me pareciam dever ilustrar bem os tormentos da alma do autor, que eu no
partilhava de modo algum.
3. Um pequeno cartaz anunciando o primeiro espetculo do Teatro Alfred Jarry nos informa
sobre a sua interpretao:
VENTRE QUEIMADO OU A ME LOUCA
pochade musical por ANTONIN ARTAUD
com a colaborao de MAXIME JACOB
GIGOGNE, por MAX ROBUR
LE MYSTRES DE UAMOUR
por ROGER VITRAC
mise en scne de ANTONIN ARTAUD
maquetes de JEAN DE BOSSCHRE
INTERPRETADO por
GNICA ATHANASIOU
JACQUELINE HOPSTEIN, JEAN MAMY
EDMOND BEAUCHAMP, RAYMOND ROULEAU
REN LEFVRE etc.
4. O texto de Gigogne, por Max Robur (pseudnimo de Robert Aron), no foi publicado. Eis o que
dizia dele Benjamin Crmieux: O Sr. Max Robur em Gigogne retomou um assunto muitas vezes tratado,
de um pai de Gigogne (figura de teatro de criana que se apresenta como me de grande nmero de filhos que lhe
saem debaixo da saia) rodeado por seus pequenos bastardos. No demora muito para ele lanar sobre o pblico
injrias do gnero Chat Noir que no provocaram outras reaes na platia exceto as de um estranho espanto:
"Mas ningum berra?" Ningum tinha, na verdade, vontade de se indignar. (La Gazettedufranc, 4.jun.l927).
5. Os convites davam as seguintes informaes:
NO PROGRAMA
46 LINGUAGEM E VIDA
A HOSTILIDADE PUBLICA
Procura de Capitais
I. Uma obra-prima do cinema russo moderno, A Me, de Pudovkin (segundo o romance de Gorki).
Verso integral
II. Um ato indito de um escritor "notrio" representado sem autorizao do autor*.
Com a participao da:
Senhora Cnica Atbanasiou, os senhores Andr Berley, Henri Crmieux etc.
Mise en scene dcAntonin Artaud.
* O nome do autor e o ttulo da pea sero anunciados na abertura da representao.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930
Escolha do Local
Dificuldade da Colaborao
A Censura
A Polcia
A Sabotagem Sistemtica
A Concorrncia
E natural que todos os especialistas da "vanguarda", gente j firmada na
posio ou em vias de s-lo, desconfiam de ns e nos sabotam delicadamente.
do bom combate e da boa camaradagem. O Teatro Alfred Jarry deve levar isto
em conta. Ele se contenta em assinalar aqui o fato.
O Pblico
No se trata aqui do pblico preconceituoso ou do pblico do tipo "che-
guei" ou "garoto exibido". Aquele que acha que uma vergonha ou aquele
surpreendeu com seu mnimo de acessrios e o seu mximo de luzes, e alguns espectadores no tive-
ram o bom senso de esperar o seguimento para julgar se o esforo real do encenador no era o que
convinha melhor ao carter irreal e de sonho da pea? verdade que houve interrupes. Ouvia-se:
-A ao se passa na Sucia do leste, isto , em parte alguma!
- Que saco! Mas viva Alfred Jarry! etc.
Uma personalidade sueca que nos escreve a esse respeito afirma que o sinal da manifestao foi dado
por um espectador que tido como chefe da escola surrealista.
Mas houve um outro golpe de teatro! O encenador, Sr. Artaud, abriu de repente uma passagem no
palco entre os atores embaraados, e disse mais ou menos o seguinte: "Strindberg um revoltado, assim
como Jarry, como Lautramont, como Breton, como eu. Ns representamos essa pea como vmito contra
sua ptria, contra todas as ptrias, contra a sociedade".
Alm de haver a uma interpretao falsa e arbitrria de O Sonho em que Strindberg exprime
somente uma grande compaixo pela sorte dos seres humanos, esta declarao ofendeu os suecos presentes, a
tal ponto que Isaac Grnewald disse aos seus compatriotas: "Se assim que se interpreta O Sonho, como um
'vmito' contra a Sucia, eu peo aos suecos que deixem a sala como protesto!" e os suecos saram s pressas.
Parece estranha a atitude do Sr. A rtaud que no ignorava que a pea fora montada, em parte, graas
a donativos de benfeitores suecos. Numa reunio particular, diante de literatos e jornalistas, o Sr. Artaud
havia mesmo tomado da palavra aps o Sr. Lagerberg, Conselheiro da Legao da Sucia, para explicar
como entendia a mise en scne dessa obra.
Algumas pessoas julgaram que o Sr. Artaud quisera desarmar seu adversrio, fingindo adotar suas
doutrinas para faz-lo calar-se e poder continuar a representao. O procedimento no foi feliz.
Acrescentamos que lamentvel que certas manifestaes assumam, em semelhante ocorrncia, uma
forma tal que elas possam fazer julgar descorts a hospitalidade que ns concedemos aqui s obras
estrangeiras de qualidade.
Havia-se anunciado que, a guisa de represlias, um grupo de suecos iriam manifestar-se ontem
noite, no Estdio 28, representao de um filme de vanguarda intitulado Ombre et Lumire ("Sombra e
Luz"). No aconteceu nada e a noite, que comportava vrios filmes, se desenrolou morna e sem incidentes.
O segundo documento um manifesto publicado por Robert Aron no dia seguinte da
representao de 9 de junho:
O TEATRO ALFRED JARRY E OS SURREALISTAS
Na quinta-feira, 7 de julho de 1928, os surrealistas, invocando razes das quais algumas defensveis e
outras no, mas que todas, comparadas importncia espiritual do Teatro Alfred Jarry no tinham seno
um valor anedtico, interditarem ao Teatro Alfred Jarry dar a segunda representao do Sonho de
Strindberg, que devia ocorrer no sbado, 9 de junho, em matin no Thtre de 1'Avenue. Quaisquer que
fossem as razes invocadas, os surrealistas no tinham o direito de formular uma tal interdio. O Teatro
Alfred Jarry, criado ao lado deles a despeito deles, no tinha nenhuma ordem a receber deles, apesar das
afinidades espirituais, que poderiam existir entre eles e ele.
50 LINGUAGEM E VIDA
das brincadeiras muito engraadas que imita, por exemplo, o rudo da torneira
que jorra, o canto do galo, ou aquele que, com uma voz tonitruante, afirma que
M. Alfred Jarry o convidou e que est em casa dele. Em suma, isto que se
convencionou chamar de pblico bem francs. E exatamente para este que repre-
sentamos a comdia e suas reaes bufas so um suplemento ao programa que
o outro pblico sabe apreciar.
A Crtica
Antonin Artaud e eu prprio decidimos, pois, passar por cima dessa interdio. Tendo examinado
sucessivamente os diversos meios de resistncia que se oferecem a dois indivduos isolados contra trinta
perturbadores, e tendo constatado de que no havia meios eficazes, mandamos a Andr Breton urna carta
pelo pneumtko, a 8 de junho a noite, para adverti-lo que no cederamos as suas ameaas e que para
impedi-lo de entrar na sala empregaramos, no importa o que nos devesse custar, todos os meios, "mesmos
aqueles que mais nos repugnavam ".
Esta perifrase se encontra tambm num planfeto que distribumos no sbado, 9 de junho, a entrada
do espetculo e que estava assim redigido:
Aps os incidentes que se produziram no ltimo sbado no curso da representao do Sonho,
posto por nova ameaa na necessidade de defender a todo preo a liberdade de sua ao, o Teatro
Alfred Jarry, no aceitando nenhuma coao, declara-se decidido a empregar todos os meios, mesmo
aqueles que mais lhe repugnam, para salvaguardar esta liberdade.
Os perturbadores possveis foram advertidos disto.
Antonin Artaud-Robert Aron, 9 de junho de 1928.
Assim a questo se achava clara e lealmente colocada! Ns sentimos to cruelmente quanto qualquer
outra pessoa que contradio constitua a ajuda mesmo limitada da polcia para um teatro do qual
queramos fazer uma empresa de esprito revolucionrio. Mas a vontade destrutiva de nossos adversrios
nos encerrava no dilema:
ou ceder s ordens surrealistas e renunciar a liberdade de nossa ao,
ou, apesar da repugnncia, resistir pelo nico meio eficaz, a polcia*.
Convm, a fim de assinalar o que h de inadmissvel na atitude surrealista, lembrar que, em seus
primeiros anos de existncia, o Teatro Alfred Jarry provocou, por sua prpria iniciativa, as nicas
manifestaes do esprito surrealista, corajosas e perigosas, que tiveram lugar desde ao menos dois anos.
A representao de Partage de Midi a 14 de janeiro de 1928 sem a autorizao do autor, seguida de um
anuncio de Antonin Artaud, denunciando a traio de Paul Claudel - a declarao pblica de revolta,
efetuada a 2 de junho de 1928, por Antonin Artaud, no curso da primeira apresentao do Sonho -
cotnpor-tavam riscos penais graves, em que nenhuma manifestao surrealista jamais incorreu de h
muitos.
Que houve, outrora, entre os surrealistas, um certo esprito, ou uma certa sentimentalidade
revolucionria, no se poderia negar. E certos trechos de sua declarao de 27 de janeiro de 1925**
anunciaram uma ao diante da qual certas badernas sem conseqncia e sem riscos nas salas de espetculos
ou banquetes literrios aparecem como derisrias.
No acatando correr nenhum perigo real, e incapazes de eficcia, carecendo pois de duas qualidades
propriamente revolucionrias, os surrealistas permanecem, no importa o que achem a respeito, no terreno
literrio ou artstico e no incorrem em outro risco, exceto aquele, desejado como a consagrao de sua
atividade pueril, de uma estada no comissariado de polida.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930 51
O Teatro Alfred Jarry, ainda que agisse apenas para acentuar e agravar de
algum modo o conflito denunciado entre as idias de liberdade e de independncia
que pretende defender, e os poderes hostis que se lhe opem, estaria de resto com
sua existncia justificada. Mas, afora as foras negativas que suscita pelo absurdo,
ele pretende, supondo por uma ltima vez possvel o jogo teatral, levar cena ma-
nifestaes positivas, objetivas e diretas capazes, pela utilizao racional de elemen-
tos conquistados e comprovados, de desqualificar, de um lado, as obras banais e os
falsos valores modernos e, de outro lado, pesquisar e pr em evidncia os aconteci-
mentos autnticos e probantes do estado atual dos franceses. Estando bem entendido
que ele engloba, nesta ltima denominao, o passado recente16 e o futuro prximo.
Para acabar com esta ditadura de nada, cuja atividade derisria compromete at as idias que ela
pretende defender, todos os meios me parecem provisoriamente bons, mesmos aqueles que mais me
repugnam. Da porque, no tendo outro meio prtico de resistir a uma autoridade vazia, sem me
dissimular a baixeza da ajuda pedida, decidi no perdoar a Andr Breton o fato de me haver ele reduzido ao
mais comprometedor equvoco, tive a coragem, maior do que a de invadir uma sala de espetculos, de
utilizar a polcia - no importa o que me deva custar, a qual mal-entendido eu me exponha, a qual nojo de
mim mesmo que eu me deva guardar.
Escrito em meu prprio nome e comprometendo apenas a mim.
Robert Aron
10 junho 1928
(* E preciso notar que a nica ajuda pedida por ns polcia tendia a impedir aos manifestantes
a entrada na sala. E toda a atitude policial na sala e na rua havia sido reclamada por outros e no por
ns, nossa revelia e anteriormente ao nosso pedido)
(** "Ns lanamos Sociedade esta advertncia solene.
Que ela preste ateno a seus desvios, a cada um dos passos falsos de seu esprito ns no lhe
falharemos.
- A cada uma das voltas de seu pensamento a sociedade nos encontrar.
- Ns somos especialistas da Revolta.
No h meio de ao que no sejamos capazes, sendo preciso, de empregar."
(Declarao de 27 de janeiro de 1925)
Pode-se estar seguro que Robert Aron escreveu este manifesto e publicou sem falar com
Antonin Artaud. Prova disto que ele pe na conta dos surrealistas a '"Declarao de 27 de janeiro de
1925". Ora, o autor desta Declarao foi Antonin Artaud (Cf. p. 251, e n. 1).
11. ... que ele engloba nessa denominao...
12. ... do mundo, so claros...
13. provavelmente nas duas divises subtituladas Necessidade do Teatro Alfred Jarry e Posio
do Teatro Alfred Jarry, que se sente mais a nuance de Vitrac: a destinao nacional do Teatro Jarry, por
exemplo, e tambm esta afirmao: A linguagem ser falada... As referncias a Feydeau e a Roussel (p.
53) tambm parecem imprprias a Vitrac.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930 53
ENCENAO
meio deste tom teatral novo que pretendemos sublinhar e mesmo revelar senti-
mentos suplementares e estranhos.
O jogo dos movimentos acordar-se- ou opor-se- ao texto segundo as in-
tenes a valorar. Esta pantomima nova poder realizar-se fora do movimento
geral da ao, o fugir, o aproximar-se, o alcanar, segundo a severa mecnica
imposta interpretao. Mtodo que nada tem de gratuitamente artstico, visto
que est destinado a pr em evidncia os atos falhos, os esquecimentos, as dis-
traes etc, em uma palavra, todas as traies da personalidade, tornando assim
inteis os coros, apartes, monlogos etc. (Eis aqui um exemplo das objetivaes
inconscientes que nos propnhamos realizar em um pargrafo anterior.)
Acessoriamente os meios, mesmo os mais grosseiros, sero acionados para
impressionar o espectador. Fanfarras, fogos de artifcio, detonaes, faris etc.
Pesquisaremos, no domnio isolvel dos sentidos, todas as alucinaes sus-
cetveis de ser objetivadas. Todos os meios cientficos utilizveis sobre um palco
sero postos em ao para dar o equivalente das vertigens do pensamento ou
dos sentidos. Ecos, reflexos, aparies, manequins, escorregaduras, cortes, dores,
surpresas etc. E por estes meios que contamos alcanar o medo e seus cmplices.
Alm disso, os dramas sero inteiramente sonorizados, inclusive os entrea-
tos em que alto-falantes sustentaro a atmosfera do drama at a obsesso.
A pea, assim regulada nos detalhes e no conjunto obedecendo a um ritmo
escolhido, desenrolar-se- maneira de um cilindro de msica perfurado em um
piano mecnico, sem jogo entre as rplicas, sem flutuao nos gestos e dar
sala a impresso de uma fatalidade e do determinismo mais preciso. Ademais, a
mquina assim montada funcionar sem se preocupar com as reaes do pblico.
APELO AO PUBLICO
15. Aqui se detm a cpia datilografada do texto que traz da mo de Vitrac a meno Io Artigo.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930
ILUSTRAES
16. Esta conferncia permaneceu muito provavelmente em projeto. De fato, a cada fim de ano,
era publicado o Bulletin du Groupe d'Etudes philosophiques et scientifiques pour VExincn des Ides nou-
velles (Sorbonne, 46, rue Saint-Jacques, Paris -Ve. Dir Dr Allendy), espcie de memorando das ativida-
des do grupo ao longo do ano. Porm, nenhuma conferncia de Vitrac mencionada no Bulletin
relativo 1930 (n 8, ano 8).
'A Histria sem Palavras, em Nove Quadros Vivos", 8 montagens fotogrficas idealizadas
por Antonin Artaud e Roger Vitrac, realizadas por Eli Lotar para ilustrar a brochura
O Teatro Alfred Jarry em 1930.
PROJETO DE ENCENAO PARATI SONATA DOS
ESPECTROS DE STRINDBERG1
ENCENAO
A encenao deve inspirar-se nessa espcie de duplo curso entre uma rea-
lidade imaginria e aquilo que se experienciou num dado momento na vida, para
abandon-lo em seguida, quase imediatamente.
1. A cpia datilografada deste texto nos foi comunicada ao mesmo tempo pela Sra. Colette
Allendy e por Louis Jouvet. Ns nos servimos, para o estabelecimento do texto, da cpia conservada
por Louis Jouvet que fora corrigida por Antonin Artaud. Esta cpia havia sido depositada no Teatro
Pigalle em abril de 1931. No alto da primeira pgina esquerda, o que segue, pela mo de Antonin
Artaud: Antonin Artaud / 45, me Pigalle /Hotel St-Charlcs / Paris. Este "Projeto" parece entretanto
ter sido escrito j em 1930 pois que nele se faz aluso a uma carta a Roger Vitrac que se pode datar do
incio de maro de 1930.
60 LINGUAGEM E VIDA
O ASSUNTO
Primeiro Ato
A casa descrita com seus costumes, seus habitantes e suas manias. Sentimos
que os destinos de todas as personagens se entrelaam, esto ligados, como os
de nufragos em um navio perdido. Toda a pea como um mundo fechado ao
redor do qual a vida circular interrompida por uma rachadura ntida.
As personagens falam s aparies, e estas lhes respondem. Mas cada uma
parece ter a sua. E s vezes uma personagem pressentindo o invisvel que est
ao redor dela parece ter o interesse em no permanecer menos invisvel que os
PROJETO DE ENCENAO... 61
Segundo Ato
Terceiro A t o
PRIMEIRO ATO
Cenrio
Rudos
Iluminao
SEGUNDO ATO
Cenrio
Rudos
Os passos das pessoas entrando sero ampliados, tero seus prprios ecos.
O vento de fora se confundir s vezes com as palavras, sob a forma de
um barulho bizarro, inexplicvel.
O barulho das muletas do velho batendo na mesa repercutir por toda a
parte.
Todos esses barulhos sero escolhidos de maneira a terem todos seu desta-
que, a separar o fantstico quando se faz necessrio, a deixar no plano banal e
cotidiano o que a deve permanecer, e a fazer valer o resto por contraste.
Certa rispidez de gestos, de atitudes, ser acompanhada por barulhos de
autmatos, rangidos que terminaro em melodias, notadamente no momento da
metamorfose, quando a mmia muda o velho e quando a leiteira, invisvel para
todos, menos para ele, lhe aparece. Desse momento em diante, se manifestaro
outros artifcios de encenao que sero indicados na parte das iluminaes e do
jogo geral.
Iluminao
Uniforme por toda a parte anterior, embora de uma cor um pouco mais
forada, um pouco mais pesada que a normal e sem que nenhuma lmpada de
cor a possa motivar.
A parte verde do fundo ser iluminada por uma luz vinda do alto como
em certas montagens de cenrio do Museu Grevin, mas que no iluminar igual-
mente todo o ambiente. Esta luz ser de um verde muito doce, quase branco.
Ela ornar a parte esquerda do biombo voltado para a direita, e deixar
em uma sombra relativa a esquerda e o fundo do ambiente.
A luz de fora ter um detalhe de torre, de telhado ou de campanrio,
muito longe.
LINGUAGEM E VIDA
TERCEIRO ATO
Cenrio
Todo o cenrio ser construdo sob uma iluminao que ser irreal sem
ter nada de muito convencionalmente ferico.
A frente do palco ser ocupada por uma espcie de quiosque hindu com
colunas transparentes, de vidro ou de outro material, translcido em toda a sua
largura.
Plantas verdadeiras ou artificiais, mas no pendentes, ocuparo todos os
recantos. Iluminaes perdidas sero disseminadas nas folhagens, a maioria par-
tindo de baixo para cima.
O cenrio ser orientado da direita para a esquerda, a partir da parte pos-
terior do palco at o fundo. A esquerda e ao fundo ser montado o pequeno
salo redondo que ser separado da parte posterior do palco por um grande vidro
semelhante queles das vitrines dos grandes magazines, de maneira que tudo o
que se passar ser achatado e como que deformado pela gua e sobretudo que
nenhum rudo vir dessa parte do palco. A direita e ao fundo o cenrio estar
livre. Assim, todo esse cenrio ocupar apenas a profundidade do palco.
Iluminao
um prisma e no centro haver uma abertura tal que a imagem do salo redondo
possa aparecer de lado a lado.
Este crculo ocupar toda extenso do palco de alto a baixo e da esquerda
para a direita.
Ao fim do ato todas estas iluminaes deSaparecero dando lugar ilumi-
nao do tablado do fundo por cima da qual se mani estaro os reflexos da Ilha
dos Mortos.
O aparecimento da Ilha dos Mortos far-se- da seguinte maneira:
Uma maquete em relevo, representando a Ilha dos Mortos, de Bcklin, sub-
metida a ao de uma luz intensa, ser colocada diante 'e um espelho situado
sobre o tablado do fundo. Este tablado ser mantido em nvel mais baixo do
que o do palco.
E, seguindo um processo outrora muito empregado no teatro, a imagem
virtual da maquete dever ser projetada no ar sob a forma d reflexos e alguns
metros acima da maquete real, de modo a ser vista da cera e nitidamente per-
cebida pelo pblico.
Depois o elevador subir de maneira a projetar com grande lentido, acima
dele, a apario da Ilha dos Mortos.
Poder-se- acrescentar a imagem mulher de cera estendida sobre um vasto
leito vermelho debaixo de uma espcie de campanula de vidro,
ou o manequim de um velho de muletas deslocando-se na obscuridade com
a condio que essa apario do manequim possa ser regulada com toda a preciso
e todo o tato desejado.
Haver neste momento como iluminao, parte dos reflexos virtuais da
Ilha no ar negro, apenas um ponto luminoso deslocando-se sobre uma parte do
manequim movente.
Rudos
O Jogo
^t
68 LINGUAGEM E VIDA
sem antes me preocupar em saber qual era o pblico com que eu iria tratar, tentei
considerar o teatro filosoficamente e na sua essncia. Atitude abstrata, da qual s
me dei conta ao perceber em que silncio mortal caam minhas palavras, ter-
rivelmente fora de hora e lugar. Sem dvida, eu nada tenho de um verdadeiro fil-
sofo e a linguagem que adotei era, na minha boca, ridcula em vista de minha
grande inabilidade em me servir dos termos filosficos. No entanto, no percebi
na sala nada que se assemelhasse a risos, que sem dvida eram dissimulados, o
que prova que as pessoas estavam seguras de si, menos ainda do que eu de mim,
porm prova tambm que a filosofia, quando se exprime, tratando-se da filosofia
aplicada ao teatro por um semi-ignorante, s pode causar espanto.
As pessoas que esperavam ser energicamente sacudidas puderam, com toda
razo, sentir-se decepcionadas. Decepo que, por outro lado, me serve de elogio.
E que deixei o palco com a impresso de ter falado no sei bem qual lngua
morta, impermevel ao esprito, e cujo manuseio reservado apenas aos eruditos.
Eis o discurso, no como o proferi, mas como, depois de proferido, me parece
que deveria t-lo feito a esse pblico de pessoas da sociedade, de artistas dos
teatros prximos, de autores dramticos representados quando jovens, e de jovens
ansiosos por serem representados antes de envelhecer!
Rebelem-se quanto queiram contra essa maneira ambiciosa, quase que ampla
demais, e ultrapassando sem dvida os meus meios de considerar a questo do
teatro, digo que, no momento e no ponto em que estamos, nenhuma questo
pode ser colocada de outro modo salvo no plano universal, isto , no da liqui-
dao de todos os valores sob os quais vivemos e que, ningum poder negar,
esto cedendo um aps outro, em todas as costuras; e que essa liquidao, que
cheira talvez a decadncia, cheira acima de tudo a um ajuste de contas, que no
seu desarranjo de mquina parece evocar a marcha contrria de alguma suja
doena humana, cujos gestos no so mais sequer humorsticos, fora de serem
repetidos demais. Voltarei a tudo isso em breve.
Na melhor das hipteses, esperamos ver, enfim, formulada essa questo
que nos interessa tanto: a questo do teatro.
Porm, ela no ser melhor formulada esta noite do que tem sido desde
h muito, pela simples razo de que no vejo nesta sala nenhum verdadeiro
homem de teatro, exceto eu mesmo, e vocs vo compreender por qu.
Vo compreender por que, em minha tola pretenso, sou eu quem tem
razo.
Digo que o teatro tal como o estamos vivendo, ou melhor, vendo-o morrer,
ou melhor, tal como poderamos v-lo morrer, se ele no participasse, tambm
ele, porm mais depressa que o resto, de uma espcie de decadncia geral que
domina nossas idias, nossos costumes e os valores de todas as espcies em que
nos apoiamos, mas sem ter passado, o teatro, por essa fase de movimento exces-
sivo, de desenvolvimento extremo, mas mesmo assim fascinante por suas rique-
zas, pela multiplicao de suas nuanas, que se apoderou simultaneamente de
todas as outras artes e meios de expresso paralelos a ele. Em suma, se no
conseguimos precisar, se nos achamos to incapazes de precisar a doena do
teatro, porque deixamos de ter pontos de referncia no meio dessa progresso
crescente, mas generalizada, que arrasta todo um mundo, todo nosso mundo
ocidental, em direo sua queda, sua desapario.
O TEATRO E A PSICOLOGIA
O TEATRO E A POESIA2
2. Os dois textos se seguem no manuscrito. Parece que so duas subdivises de um texto mais
importante que Antonin Artaud teria projetado.
3. Antonin Artaud desenvolveu esta idia no "Teatro Oriental e Teatro Ocidental".
O TEATRO E A PSICOLOGIA... 73
torna uma linguagem particular. No caso em que o texto conserva toda sua
importncia, certamente tudo o que dado encenao poder apenas terminar
em um desvio puramente artstico do texto, portanto intil e parasitrio. Pode-
mos assim concluir que o teatro s ser devolvido a ele mesmo no dia em que
toda a representao dramtica se desenvolver diretamente a partir do palco, e
no como uma segunda verso de um texto definitivamente escrito, suficiente a
si mesmo, e limitado s suas prprias possibilidades.
Isto nos leva a questionar a linguagem da palavra tal qual ela concebida
atualmente na Europa - como meio de expresso - e a questionar se esta responde
verdadeiramente a todas as necessidades orgnicas da vida. De onde provm a
questo acessria da destinao da palavra4, e de seu poder real e mgico de
evocao e de realizao.
Em todo caso, o que quer que possamos pensar acerca da importncia da
palavra dentro do real, o teatro, que oferece outras possibilidades alm daquelas
puramente verbais, no lhe est diretamente ligado.
O teatro se confunde com a prpria destinao do mundo formal. Ele
levanta a questo da expresso pelas formas e incita a uma no preocupao com
o real mediante o humor, criador da poesia.
Este tratamento (atravs do humor) do real incita, em seguida, a se per-
guntar aonde este ltimo conduz o esprito, a sensibilidade. Isto, se quisermos
da tirar conseqncias extremas. Por um lado, ele conduz metafsica intelectual,
por outro, metafsica orgnica, pelas possibilidades de dissociao mgica e
religiosa da linguagem empregada.
4. igualmente no "Teatro Oriental e Teatro Ocidental" que Antonin Artaud falar da desti-
nao da palavra.
O TEATRO, ANTES DE TUDO, RITUAL E MGICO...1
a tempestade, onde o teatro enfim se contenta com o lado fsico acessvel da alta
magia.
A poesia que ele utiliza negra; e, radiosa, ainda mais negra, ainda mais
fechada.
E o momento em que o teatro se tornou funo de uma substituio. A
vida ordinria o teatro ope um estado de vida potica resplandecente, porm
falsa. A vida psicolgica, uma outra vida psicolgica apenas mais avultada, apenas
mais monstruosa. As personagens manejam suas facas, mas o que comem, mesmo
no plano simblico, no tem mais sentido.
Ns estamos, agora, no estdio da vida aplicada, onde tudo desapareceu,
natureza, magia, imagens, foras; no estado de estagnao em que o homem vive
de seu dote, com uma reserva sentimental e moral h um sculo imutvel. Neste
estdio o teatro no cria mais mitos. Os mitos mecnicos da vida moderna, foi
o cinema que os assumiu. Ele podia assumi-los, pois no levam a nada. Eles do
as costas ao esprito. Quanto ao pseudoconhecimento da inconscincia, aos fan-
tasmas psicolgicos, s aparies poticas que ela pode fazer surgir, preciso
entender a si mesmo, ou por uma aproximao com a vida ardente, a vida em
estado puro, achar alguma coisa de essencial no ser, decidir separar novamente
os princpios psicolgicos, mas separ-los metafisicamente e por aquilo que eles
representam de transcendente. Assim, o inconsciente conduzir novamente aos
smbolos e s imagens tomados como um meio de reconhecimento e que ultra-
passa a psicologia.
Ora, o inconsciente registrado fotograficamente terminar apenas por es-
tender desmesuradamente o domnio do conhecido no mgico e no sairemos
mais do teatro moral e cirrgico.
Traduo de Regina Corra Rocha
CARTA A LVNTRANSIGEANT'
Senh or,
Permita-me desenvolver aqui alguns dos princpios que me guiaram no
empreendimento que busco.
Concebo o teatro como uma operao ou uma cerimnia mgica, e con-
centrarei todos os meus esforos para lhe devolver, por meios atuais e modernos,
e tambm compreensveis a todos, seu carter ritual primitivo.
Em todas as coisas existem dois lados, dois aspectos2.
ma a nossa impresso: que, mais abaixo, a propsito do primeiro desses aspectos, o aspecto fsico, An-
tonin Artaud diz: Ce ctphysique... ("Este lado fsico...").
3. "A Encenao e a Metafsica".
4. A redao do jornal julgou oportuno introduzir neste ponto a seguinte nota: O Sr. Artaud es-
quece alguns, e aqueles que, de h muito, aqui mesmo, a propsito de Edipo Rei, expuseram um sistema que
alis desde toda eternidade o fundo mesmo da grande arte teatral.
5. No alis a palavra cerimonial que empregada por Antonin Artaud, mas a expresso velha
magia cerimonial. Mas bem esta palavra que utiliza Jean Cassou em um artigo consagrado aJean-Coc-
teau: Morceaux choisis, Pomes (n.r.f.) - Essai de critique indirecte (Grassei), nmero de 17 de setembro de
1932 de Nouvelles Littraires. A propsito do teatro de Jean-Cocteau, ele escreve o seguinte: O teatro,
irmo da sesso de predigitao, quer pasmar. Ele quer produzir uma imitao do milagre, recuperar, por
seus feitios, sua funo antiga de cerimonial religioso e operatrio.
6. Aqui tambm, provavelmente, um erro de impresso. L-se na Comcedia:... epela sensibilida-
de um esprito... Pensamos que se deva entender:... sobre o esprito... Pois o teatro tal como o concebe
Antonin Artaud deve agir sobre o esprito. Ele o diz alis nesse mesmo texto na pgina anterior (3 o ):
//prepare Vespritpar les nerfs... ("Ele prepara o esprito pelos nervos...")
CARTA COMCEDIA 83
Por enquanto isso tudo. Quanto aos meios materiais de realizao, per-
mitam-me revel-los somente mais tarde.
ANTONIN ARTAUD
ta
A MARCEL DALIO
Caro Amigo,
Voc deve ter notado que, depois da entrevista e de minha carta a L'In-
transigeant, meus projetos esto tomando corpo2. Telefonei sbado para sua casa
para marcarmos um encontro. No devem ter lhe dado o recado, ou o fizeram
tarde demais. no entanto bastante urgente que eu o veja. Eu lhe perguntei no
outro, dia, olhos nos olhos, se voc acreditava nesse trabalho, pois ele de uma
natureza tal que devemos ou nos entregar totalmente ou no nos entregar de
maneira alguma. Trata-se, em suma, de comear do nada. Achei muito engraado
que voc me perguntasse se eu tinha inteno de fazer teatro de arte, pois me
parece que pela prpria definio este risco est afastado: um teatro de arte no
pode ser nada alm de um teatro marginal. J um teatro que tenciona demolir
1. Carta rasgada escrita sobre papei com cabealho: Le Dome, transmitido pela Sra. Anie Faure.
Inserida num envelope assim endereado:
M. Mareei Dalio
Hotel Livingstone
16, rue Livingstone
Paris
Ou esta cana no foi enviada, ou Antonin Artaud, a recopiou antes de envi-la.
2. Trata-se sempre da entrevista e da cana a LVntransigeant, p. 77.
86 __ LINGUAGEM E VIDA
Paris, quarta-feira
6 de julho de 19321
Caro Senhor,
Eu j lhe disse em que consistiam os meus projetos e os apoios que eu
havia obtido.
Eis aqui alguns detalhes suplementares.
Eu no sei onde nos-instalaremos, mas pode ser que eu me decida por um
hangar que mandarei arrumar e reconstruir seguindo os princpios que levaram
arquitetura de certas igrejas, ou melhor, de certos lugares sagrados e de certos
templos do Alto Tibete. Eu tenho do teatro uma idia religiosa e metafsica,
mas no sentido de uma ao mgica absolutamente efetiva.
Isto significa dizer-lhe at que ponto esse teatro quer romper com todas
as idias sob as quais se entende o teatro na Europa em 1932.
Eu creio na ao real do teatro, mas no plano da vida. intil dizer,
depois disso, que considero vs todas as tentativas feitas na Rssia para submeter
ANTONIN ARTAUD
Paris, sexta-feira
8 de julho de 19321
Caro Senhor,
Como o senhor sabe, eu tenho um projeto de teatro, conforme o meu
artigo2, mas praticamente, e no ponto do desenvolvimento cultural em que nos
encontramos, todo esforo para fazer um teatro como esse deve consistir em
concretizar e objetivar princpios semelhantes e lhes achar uma expresso anloga.
Toda a originalidade desse teatro tende procura de uma nova linguagem cnica
base de signos ou gestos ativos e dinmicos e no mais de palavras. O que
quer que ele seja, o teatro, se quiser viver, no poder continuar a se apresentar
como uma espcie de entretenimento digestivo, e ser no mximo, quando exce-
1. Cana rasgada, transmitida pela Sra. Anie Faure. No envelope, a seguinte meno de Antonin
Artaud:
Van Caulaert Teatro Alqumko ou Mgico
Fouilloux ou METAFSICO
Cabe supor que Antonin Artaud, desejando interessar o maior nmero de pessoas em seu proje-
to de teatro, tenha redigido um modelo de carta que, no caso presente, teria enviado s duas pessoas
nomeadas no envelope. Quanto aos diferentes qualificativos desse teatro, ver-se- nas cartas subseqen-
tes que hesita longamente antes de intitul-lo: Teatro da Crueldade.
Georges Fouilloux fora administrador e, depois, a panir de 1931-1932, diretor do Teatro Pigalle.
2. Sem dvida a carta ao L'Intransigeant, p. 77.
92 LINGUAGEM E VIDA
ARTAUD
3. Louis Jouvet, cuja colaborao Georges Fouilloux havia conseguido, havia montado vrios
espetculos no Teatro Pigalle, em particular em 1932, La Ptissire de Village, de Alfred Savoir.
4. Ns no sabemos ao que correspondem essas misteriosas iniciais.
A ANDR ROLLAND DE RENVILLE
Quarta-feira,
13 de julho de 19321
1. Ao contrrio de todas as cartas endereadas a Andr Rolland de Renville, que nos foram
transmitidas por seu destinatrio, essa carta nos foi comunicada pelo Sr. Jean-Marie Conty. Ser que
no foi enviada? T-la- Antonin Artaud pedido de volta a Andr Rolland de Renville, a fim de reto-
rnar algumas idias a contidas ou para public-la como publicou a "Terceira Cana sobre a Crueldade"
Em todo caso, trata-se efetivamente de uma carta acabada.
2. evidente que agora, e nas canas seguintes, o que est em pauta o "Primeiro Manifesto do
Teatro da Crueldade".
94 LINGUAGEM E VIDA
ANTONIN ARTAUD
Tera-feira,
26 de julho de 1932
11 de agosto de 19321
Caro Senhor,
Eu o fiz esperar por causa da redao de meu artigo2 que ainda no
est pronta. Explico-lhe aqui de uma maneira precisa e tcnica o que quero
fazer.
Nada poderei fazer sem seu apoio efetivo e se no for do conhecimento
de todos que o senhor patrocina diretamente o meu projeto e que o reco-
menda a todos aqueles sobre os quais tem influncia e, sem incluir o ttulo, dizer
por exemplo que a NRF depositou sua confiana em mim para que eu realizasse
um teatro conforme tudo aquilo que se pode atualmente esperar de essencial no
teatro.
O artigo saiu um pouco longo porque me obrigou a uma reviso de todas
as nossas idias sobre o teatro. Eu quis retomar a questo a fundo. Atravs de
sua influncia o senhor poderia contribuir muito para o xito deste projeto, em
torno do qual criou-se um movimento, principalmente no ambiente jovem e no
contaminado do teatro de hoje e que atualmente est sua espera.
No ponto em que estou no posso divulg-lo sem perigo para mim e para
as idias que esto em sua base.
Meus mais profundos sentimentos.
ARTAUD
A EFICCIA
OS ATORES
O PUBLICO
Quinta-feira,
20 de agosto de 19321
Caro Senhor,
Recebi sua carta e lhe agradeo. Minha declarao, agora terminada, deve
aparecer em outubro na NRF. Eu espero termin-la dizendo que um certo n-
mero de escritores, que j me autorizaram, e cujos nomes citarei, me permitiu
cit-los como adeptos dos princpios que formulo. No haver um comit de
patrocinadores e no porei seu nome encabeando os outros nomes. Mesmo que
at outubro o senhor no tenha tomado a deciso no que concerne a "Arden
of Feversham", eu lhe peo que me permita anunciar que o senhor tem a inteno
de fazer uma pea para esse teatro o qual chamarei
"TEATRO DA CRUELDADE",
1. Carta pertencente coleo Jacques Doucet. H ura erro quer a respeito do dia, quer da data:
20 de agosto de 1932 caa num sbado.
102 LINGUAGEM E VIDA
ANTONIN ARTAUD
Segunda-feira,
12 de setembro de 19321
Caro amigo,
Obrigado por sua carta, e desculpe-me de o ter assediado de telegramas.
Eu espero incessantemente receber as provas, porm caso acontea alguma coisa,
eis aqui a primeira frase tal qual a refiz. Creio, agora, que se reconhece a minha
maneira pessoal de escrever e que a crueldade no algo a acrescentado.
Ei-la:
Eu tenho pressa em v-lo tambm, ^ois tenho medo de que essa primeira
frase tenha me prejudicado muito, e me parece que principalmente na parte
terica e de doutrina eu tenha atin0ldo um ponto jamais atingido por mim at
agora.
Seu amigo,
A. ARTAUD
Caro amigo,
Eu me pergunto se minha carta de ontem no o chocou um pouco. Voc
sabe que minha amizade por voc integral e profunda. uma amizade de
esprito. Nada pode ter primazia sobre ela.
Eu modifiquei, novamente, todo o comeo do manifesto, que mesmo com
a frase modificada, a nica frase, me parecia um pouco fraco.
Responda-me com toda urgncia, ainda tempo, e diga-me o que pensa
desse novo incio e, se julgando-o com o mesmo rigor anterior, o considera
vlido.
Aqui est ele:
e csmico, onde o simples fato de existir, com a imensa soma de sofrimentos que isto
supe, aparece como uma crueldade.
Ora, o teatro, na medida em que pra de ser um jogo de arte gratuito, em que
volta a ser ativo e redescobre sua ligao com as foras, retoma seu carter perigoso e
mgico, e se identifica com essa espcie de crueldade vital, que a base da crueldade.
No podemos, por outro lado, continuar a prostituir a idia de teatro, que tem
apenas valor pela ligao mgica, atroz, que contrai com a realidade e com o perigo.
Formulada desta forma a questo do teatro etc.
ANTONIN ARTAUD
Carssimo amigo,
Eu no o vejo muito freqentemente, mas gosto muito de voc e no o
esqueo. Nunca esquecerei certas conversas e a amizade que voc me demonstrou
nos tempos difceis, em que era preciso uma certa intuio do esprito e do
corao para confiar em mim.
Voc encontrar anexada a esta carta a ltima verso do "teatro da cruel-
dade", que estou fundando, e que por vir depois do manifesto da NRF esclarece,
do ponto de vista tcnico, tudo o que o manifesto da NRF deixava obscuro.
Voc ver como minhas ambies so vastas, e que elas sejam realizveis, nem
todas as ideologias do mundo o provaro se eu no chegar realizao. Apesar
de tudo eu acredito que, ideologicamente, o manifesto formula questes que esta
verso parece querer, em parte, responder. - Acontece a esse respeito uma coisa
bem significativa no mundo literrio e da imprensa. que a importncia que a
maior parte dos escritores parece atribuir, no ntimo, s idias do manifesto, eles
ainda no acreditam ter chegado o momento de reconhec-la oficialmente. Eu
1. Carta transmitida pelo Sr. Jean-Marie Conty. No se sabe se ela foi enviada ou recopiada an-
tes de ser remetida. No consta nenhuma indicao sobre o destinatrio. Mas muito possvel que se
tratasse de Jean-Richard Bloch. O que leva pensar assim que Antonm Artaud insiste repetidas vezes so-
bre o contedo ideolgico de sua brochura e fala mesmo de sua/e revolucionria.
108 LINGUAGEM E VIDA
8 de abril de 1933
Caro amigo,
Voc realmente um juiz impressionante. Aproximadamente e com as
restries que aqui fao, e que voc no mostra, mas que podemos ler em seus
prprios elogios e sob suas apreciaes, voc me disse exatamente o que eu pen-
so sobre minha conferncia1; isto , que ela oscila perpetuamente entre o fra-
casso e a palhaada mais completa, e uma espcie de grandiosidade que no se
mantm, mas que aparece aqui e ali atravs de imagens de um xito concreto
e absoluto. Resta dela, para mim, uma descrio potico-clnica da peste que
merece ser conservada, duas ou trs observaes verdadeiramente inquietantes
- quero dizer inquietantes nos fatos -, uma posio extremamente sutil, ainda
que s vezes exprimida erradamente, do problema da peste tomado em si, e,
como voc diz, um sentimento bastante agudo das relaes poticas entre as
coisas. Existe ainda uma idia sobre as relaes entre o esprito e a matria em
virtude de certos fenmenos materiais, como por exemplo as doenas, que pela
maneira como apresentada vai muito longe. Mas, mesmo e sobretudo a, os
termos, ou melhor, a fora de esprito me faltaram. Pois existe uma verdade
qual eu gostaria que o pblico fosse sensvel, e ele o foi inconscientemente, e
foi isso que sem dvida o perturbou e causou essa hostilidade anormal nas con-
ferncias desse tipo. verdade que apenas minha presena em alguns lugares
causa um tumulto, faz nascer em alguns uma irritao anormal, como que dian-
te de uma monstruosidade, de um fenmeno abjeto da natureza. As pessoas,
seja por me verem, seja por certas idias que eu discuto, so levadas a se en-
colerizar. Essa verdade da qual eu lhe falo, e que irrita, que aquilo que voc
chama de metfora, e que no , das relaes entre o teatro e a peste, vale
igualmente para meu esprito, que eu considero organicamente alterado por um
mal que o impede de ser o que deveria ser. Existe dentro dessa luta terrvel
entre eu e as analogias que pressinto, e em minha impotncia de petrific-las
em termos, para me tornar fisicamente dono da totalidade do meu tema, um
espetculo perturbador que irrita as pessoas pouco preparadas para uma certa
limitao do pensamento.
Quando proponho considerar a peste unicamente como uma entidade ps-
quica, quero dizer que no temos o direito de nos deter nos fenmenos materiais,
de petrificar nosso esprito sob formas, unicamente sob formas, e qualquer que
seja a perverso orgnica, ela apenas a onda mais distante, a ltima ressaca de
uma situao vital da qual a conscincia, a vontade, a inteligncia, participaram
algum dia; assim sendo, seria vo considerar os corpos como organismos imper-
meveis e fixos. No existe matria, existem apenas estratificaes provisrias de
estados de vida, na transformao individual dos quais no de se surpreender
que o esprito, a conscincia, a vontade e a razo, cada um por sua vez, inter-
venham.
Considerando assim todos os fenmenos em sua universalidade, e se qui-
sermos notar na prpria peste todas as variaes que ela apresenta atravs dos
tempos e do espao, podemos admitir uma perverso maior da vida que, em
suma, sem tocar o corpo, produz organicamente as desordens mais excessivas -
e podemos nos pr de acordo para chamar de peste essa perverso, no momento
em que no mundo moral, social, psicolgico e psquico ela produz desordens
to absolutas, to fulminantes e quase abstratas. Se quisermos em seguida reco-
nhecer que o esprito no passa duas vezes pela mesma situao, que no existem
doenas, mas doentes, devemos evocar a figura virtual e arbitrria de um mal
que se assemelha ao teatro quando ele epidmico e profundamente desorgani-
zador, isto , quando ele rene um conjunto suficiente de traos extremos, e de
desordens reveladoras. Entretanto, mesmo nessa virtualidade e nessa arbitrarie-
dade existe s vezes alguma coisa de concreto. Ou melhor, essa virtualidade e
essa arbitrariedade influem periodicamente sobre os corpos, a matria, as cons-
cincias, o corpo social e os acontecimentos, de tal modo que uma figura fsica
e aprisionada da peste se liberta de tempos em tempos. No se pode recusar s
personagens interpretadas arbitrariamente por este ou aquele, que jamais havia
pensado em interpret-las, os sentimentos aborrecidos, extremos, gratuitos e hor-
rveis que ele manifesta, uma identidade natural com os sentimentos e as perso-
nagens de teatro. Com essa diferena, j observada em outro lugar, que as per-
sonagens e os sentimentos provocados pela peste representam o ltimo estado
A ANDR ROLLAND DE RENVILLE
ANTONIN ARTAUD
Cara amiga,
Eu lhe envio um convite para a leitura que devo fazer dia 6 de janeiro
prximo, em casa de amigos. E necessrio que voc esteja l.
1. Cana transmitida pela Sra. Anie Faure. Ela deve ter sido copiada antes de ser enviada, pois,
na margem, aparece a seguinte meno de Antonin Anaud:
Orane Demazis
Carta no respondida.
Id. M. Pagnol?
Anie Faure nos comunicou primeiramente, em um primeiro rascunho dessa, trazendo tambm
uma meno na margem, meno provavelmente leitura feita em 6 de janeiro de 1934 na Lise Deharme:
Sra. Orane Demazis,
no respondeu
no veio
Para no multiplicar as notas, de preferencia a indicar as variantes entre a carta e seus rascunhos,
que seriam muito numerosas, damos abaixo o texto inteiro dessa primeira verso:
Paris, 30 de dezembro de 1933
Querida grande amiga,
Carto. No na qualidade de ator a propsito do texto terminado.
Eu tenho um projeto.
Este teatro no ser um teatro de esteta, mas para a multido. No ser um objeto de luxo. A multi-
UNGUAGEM E VIDA
do no precisa de luxo mas de po e de ser tirada da inquietude, de crer na doura de viver. O objeti-
vo devolver ao teatro sua funo, captar e derivar conflitos, esvaziar questes pendentes, dar uma chicota-
da energtica na sensibilidade de quem participa na representao. Eu digo participa, pois creio no carter
sagrado do teatro. Eu o considero rito ativo, uma espcie de objeto mgico feito para agir sobre os rgos da
sensibilidade nervosa como pontos de sensibilizaro) (a) medicina chinesa a ser usada nos rgos sensveis e
nas funes diretrizes do corpo humano. A luz vermelha cria ambiencia batalhante, predispe ao combate.
Isto tambm to seguro quanto tiro, bofetada. Bofetada no mata seu homem. Tiro s vezes. Ambiencia
luz rudos muda disposies nervosas. Uma palavra soprada no minuto oportuno pode endoidar homem,
quero dizer, tornar louco.
Esta tcnica, pois de tcnica que se trata, faz parte do teatro. Meios que o teatro esqueceu, ele perdeu
o hbito de se servir c que ele precisar reaprender se quizer voltar a sua funo verdadeira, reencontrar sua
eficcia.
Conto colocar estes meios base espetculo, utilizando 300 figurantes) (ajatores e que ter para multi-
do atrativos visuais-plsticos. Albergue. Esses meios apoiaram intenes secretas, serviram para entorpecer
primeiras desistncias. Como povoaes centro frica, multides, os refinados frica superior permanecem
sensveis repeties, sonoridades, ritmos, encantaes onde a voz apoia o gesto, o gesto prolonga a voz.
Uma espcie de dever humano sem interesse por si mas que responde a um senso agudo do destino, a
uma noo de fatalidade que nos dirige, nos obriga a tomar conscincias malss que compem esprito do
tempo.
H alguma parte um desregramento que ns no somos senhores, neste desregramento crimes inexpli-
cveis, gratuidades participam como ensaio demasiado freqentes sismos, errupes vulcnicas, tornados
martimos, catstrofe estrada de ferro. E o que no se quer ver c que a arte que encanta lazeres, e da qual
toda a noo que nos resta que ela feita encantar lazeres e tambm pra-raio e que espetculo repre-
sentado est dispensado de sua realizao na vida.
E isto que fizeram compreender todas as grandes pocas que o teatro significou alguma coisa. poca
Teatro Elizabetano. Aqueles que fazem do teatro esta idia de divertimento fcil e que lhe recusam o direito
de ns reconduzir noo solene, insistncia da dificuldade de tudo o que existe so responsveis pelo estado
de coisas inquietantes em que estamos mergulhados como cegos de nascena.
Nossa incapacidade total de reagir e mesmo de viver como a conscincia super-aguda da crueldade da
existncia faz de ns um gado totalmente pronto para guerra e o massacre.
Se no tivssemos do teatro noo no artstica, mas mgica no sentido forte da palavra, e mesmo de-
mirgica, isto indicaria em ns a fora que no temos e que assim mesmo corresponderia a um aspecto dife-
rente das coisas, pois tudo est ligado magicamente, corresponde a essa idia enrgica e aguda.
Pessoas ho de querer tomar iniciativa semelhante criao. Ocasio oferecida tentar sair do maras-
mo, fazendo alguma coisa. Vocs esto em um meio que pode muito. Vocs tm a compreenso de certos so-
frimentos. Vocs podem muito. Ajudem-me e estejam l em primeiro lugar entre tantas outras coisas.
Eu lhes dirijo saudaes afetuosas.
()palavra escrita de maneira incompleta.
ANTONIN ARTAUD
2. Ricardo II.
A ORANE DEMAZIS H7
4. Reaparecem as idias contidas na primeira parte dessa cana, "Para Acabar com as Obras-Pri-
mas".
5. A Conquista do Mxico.
A ORANE DEMA21S
ANTONTN ARTAUD
Villa Seurat n" 18 (Rua da Tombe-Issoire n 101)
3. Anie Faure nos comunicou o primeiro projeto desta carta contida num envelope com a subs-
crio: Andr Gidc, que comea neste pargrafo: Ei-lo:
Caro amigo,
Ataco em bloco nesta pea um certo nmero de noes s quais o ltimo libertrio permanece
apegado em segredo. E aqui que sua humanidade se v e fala. Uma humanidade profunda, secreta, dis-
simulada, enraizada. Mas se ataco por exemplo nesta pea a superstio social da famlia, isto no
uma razo para que se pegue em armas contra tal ou qual individualidade.
Por encarnecido que algum seja contra a ordem atual, um velho respeito pela idia de ordem
em si impele as pessoas a confundir esta ordem com aqueles por quem ela representada e as leva na
pratica a respeitar tambm tal ou qual individualidade. Entretanto, eu, na posio ideolgica que to-
mei no posso absolutamente ter em conta tais nuanas, o que faz com que provisoriamente e para ir
depressa eu seja levado a atacar a ordem em si.
Eu bato forte para bater depressa e sobretudo completamente e sem recursos.
Todas as nuanas humanas s podem me estorvar e paralisar minha ao em qualquer domnio
que seja.
Eu quis pois acabar com todas estas inibies.
Eu no sou a favor disto e no preciso que me tomem por uma anarquista.
* *
Vocs tm medo das palavras porque vocs no so capazes de atos.
Respeitem quanto queiram seu pai, personagem-particular mas compreendam que o que eu ata-
co a ideologia representada pelo Pai.
porque vocs esto imbudos de uma ideologia onde a autoridade do Pai est acima de tudo
que vocs respeitam, o Agente de Polcia, o Coletor, o estado de coisa imposto por um regime que nos
oprime a todos.
A ANDR GIDE (II) 123
O local da leitura ser a casa do Sr. Jean-Marie Conty, rua Victor Con-
sidrant, n 12 (Praa Denfert-Rochereau).
Traduo de Regina Corra Rocha
A JEAN-LOUIS BARRAULT
1. Carta j publicada nas Lcttrcs d'Antonin Artaud a Jean-Louis Barrault (Bordas - 1952). Texto
revisto segundo o documento original, a edio Bordas, muito falha apresenta numerosos erros de
leitura.
LINGUAGEM E VIDA
uma coisa que considero acima de tudo - eu no acredito nas separaes estan-
ques, especificamente em matria de teatro. Isso est na base de tudo que venho
escrevendo h quatro anos ou mais.
EU NO QUERO que em um espetculo montado por mirn haja um piscar
de olhos sequer que no me pertena. Se em Os Cenci nada foj fixado definiti-
vamente foi porque Oi Cenci escapava, em parte, dos limites do teatro que quero
fazer e porque eu, no final das contas, fui desbarrancado pela imensido da tarefa
que havia me imposto.
Enfim, eu no acredito em associaes, sobretudo desde o surrealismo, pois
no acredito mais na pureza dos homens. E por mais que eu o estime, eu o
creio passvel de falha e no quero mais me expor, nem de perto, a um risco
dessa espcie.
Eu no sou homem de suportar quem quer que seja perto de mim em uma
obra, qualquer que ela seja, e mais do que nunca depois de Os Cenci. Se houver
animais para movimentar em minha pea, eu mesmo os farei se movimentarem,
sob o ritmo e com a atitude que imporei a eles. Encontrarei os exerccios ne-
cessrios para que eles encontrem essa atitude ou ser preciso que se demonstre
que eu no passo de um vulgar terico, o que no creio.
Alm disso lhe repito que no ponto em que voc se encontra necessrio
que voc realize a sua obra de acordo com sua maneira pessoal de compreender
certas idias. Quanto a mim, tenho a inteno de me recolher durante algum
tempo, e de tentar expulsar, enfim, os vcios que me paralisam. Isso pode durar
alguns meses2. Nesse nterim procure Conty. Ele bem capaz de conseguir o
pouco dinheiro que lhe ser necessrio, e pr em ordem seus negcios.
Ele me prometeu formalmente que meu artigo sobre voc ser publicado
em Io de julho na NRF 3 , e todos o consideram bastante elogioso.
Eu o cumprimento afetuosamente.
ANTONIN ARTAUD
Caro amigo,
Eu creio ter achado o ttulo conveniente para meu livro.
pois se o teatro duplica a vida, a vida duplica o verdadeiro teatro e isso no tem
nada a ver com as idias de Oscar Wilde sobre a arte. Esse ttulo corresponder
a todos os duplos do teatro que penso ter encontrado h tantos anos: a metafsica,
a peste, a crueldade,
o reservatrio de energias que constituem os mitos que no so mais en-
carnados pelos homens, so encarnados pelo teatro. Considero esse duplo o gran-
de agente mgico, do qual o teatro, por suas formas, apenas a figurao, espe-
rando se tornar a transfigurao.
no palco que se reconstitui a unio do pensamento, do gesto, do ato. O
Duplo do Teatro o real no utilizado pelos homens de hoje.
Eu peo desculpas, ainda uma vez, por no ter podido avis-los do horrio
de minha partida. Mas o ltimo dia foi demasiadamente agitado. Voc pode me
escrever para a Embaixada da Frana no Mxico. Eu irei l para pegar minha
correspondncia.
Meus cumprimentos a voc e senhora Paulhan.
ANTONIN ARTAUD
1. Transmitido pela Sra. Anie Faure, que nos comunicou igualmente dois projetos para o
convite, escritos por Antonin Artaud. Os dois projetos apresentam apenas nfimas diferenas entre si e
ns apresentamos o segundo:
No dia 21 de dezembro prximo, s he 1/2 *.
Leitura por Antonin Artaud
de A Vida e Morte de Ricardo II
de William Sbakespeare.
Esta leitura ser acompanhada de uma sonorizao original em disco
eseguida
da primeira audio de um argumento para teatro indito
A Conquista do Mxico,
escrito para uma realizao direta no palco.
Lise e Paul Deharme convidam o Sr. Fulano de Tal a dignar-se a assistir a essas primeiras audies
que tero lugar em seu domiclio, 6, quai Voltaire.
( Esta leitura deu-se em 6 de janeiro de 1934 e no em 21 de dezembro de 1933.)
30 ^^ LINGUAGEM E VIDA
no capta, mas cujos efeitos registra, mas que o homem, atravs de seu organismo,
pode captar. Por que? Porque o homem o nico organismo vivo (pelo menos
em aparncia e por nossa viso presente das coisas) que tem uma noo consciente
e dirigida das coisas e que pode, por sua vontade, modific-las a seu bel-prazer.
Resta apenas um lugar no mundo, um s, onde podemos alcanar esse orga-
nismo e dele nos servir de uma maneira ativa: o teatro, desde que renunciemos nos-
sa concepo europia e consideremos o teatro como o lugar onde se manifesta uma
vida consciente e excitada. Essa vida valer de qualquer modo, mesmo se no aceitar-
mos essa idia mais ou menos mgica de captao de foras, que tambm admissvel.
No preciso, alis, tomar essa leitura2 como uma demonstrao absoluta dos
princpios enunciados durante a conferncia, nem mesmo como um esboo de seus
princpios, pois tal demonstrao s pode ser feita no palco e nunca de outra forma.
E agora3 eu lhes peo que faam alguma coisa, que passem ao e que o
faam imediatamente.
Se as pessoas que me ouviram acham que eu estou errado, que no urgente
fazer alguma coisa, se elas no concordam comigo em pensar que o que deve ser feito
o ser atravs de um retorno energia daquilo que nos anima a todos, tomada no
sentido que ela tem de primitivo e de puro, que mo digam, caso contrrio peo que
se renam em associaes para permitir a realizao do roteiro que acabo de ler ou de
qualquer outro espetculo montado sobre os princpios que acabo de desenvolver.
Eu no me apego especialmente a esse roteiro4, mas, se for montado, fao
questo de observar que ele contm os mesmos elementos espetaculares que O
Albergue do Cavalo Branco, ou qualquer outro espetculo do music bali.
Eu peo que considerem essa realizao no como um mecenato, mas como
um trabalho.
Por mais fabulosa que se afigure essa realizao, foi feita uma estimativa
de preo e ela no custar mais que um milho.
Traduo de Regina Corra Rocha
2. Transmitido pelo Sr. Jean-Marie Conty sabe-se que foi em abril de 1933 que Antonin Artaud
fez a conferncia: "O Teatro e a Peste". Ele via portanto uma relao direta entre esta conferncia e a
leitura feita a 6 de janeiro de 1934.
3. Escrito no verso de uma pgina manuscrita de Heliogabalo. Comparar com a cana de 30 de
dezembro de 1933 para Orane Demazis (p. 115).
4. A Conquista do Mxico, provavelmente.
AO ADMINISTRADOR DA "COMDIE-FRANAISE'
Senhor Administrador,
Chega de infestar a imprensa dessa maneira. Seu bordel muito guloso.
preciso que os representantes de uma arte morta ofendam nossos ouvidos um
pouco menos. A tragdia no precisa de Rolls Royce nem a prostituta de bijuteria.
Chega de indas e vindas em sua casa de tolerncia oficial.
Ns podemos ver mais longe que a tragdia, pedra angular de sua venenosa
construo, e seu Molire no passa de um tolo.
Mas no se trata da tragdia. Recusamos sua instituio digestiva o direito
de representar o que quer que seja do teatro passado, futuro e presente.
Com Pirat, Sorel, Segond-Weber, Alexandre e os outros, a "Comdie-
Franaise" foi apenas casa de sexos - e que sexos! - sem que a idia de um teatro
qualquer, mesmo prepucial, tivesse alguma importncia a dentro.
Despejem Sylvain, despejam Fenoux, despejem Duflos, despejem todo mun-
do - sempre veremos retornar superfcie os mesmos imbecis, os mesmos bufes,
os mesmos Alexandre, os mesmos restos mortais, os mesmos trgico-pantalees.
1. Segundo uma cpia datilografada, conservada por Gnica Athanasiou. Carta publicada em
84, n 13, maro de 1950. A data e o tom da cana permitem pensar que se trata de um texto destinado
ao n 3 de Ia Rvolution Surraliste, como "A Cana ao Papa", "A Carta ao Dalai-Lama" etc, mas que
no foi includo nele sem dvida por se tratar de uma atividade muito particular.
132 LINGUAGEM E VIDA
Caro senhor,
1. O rascunho desta carta nos foi enviado pelo Sr. Jean-Marie Conty. A fira de no multiplicar
as notas, e para maior clareza, reproduzimo-lo integralmente.
O senhor havia me falado, quando de nossa ltima entrevista, do projeto que tencionava desenvolver
durante a prxima temporada. Ainda que no tenha tido exatamente a impresso de que o senhor pudesse
pensar em mim como colaborador, envio, cm todo caso, um segundo projeto de encenao; e desta vez para
uma pea moderna. Trata-se de uma pea do prprio Roger Vitrac, mas livre de toda grosseria excessiva, de
todo surrealismo intempestivo, sem nada de diretamente chocante ou provocante, e suportvel para todos
os pblicos.
Por que o senhor no monta essa pea? Seu prprio programa demonstra que o senhor se esfora por
conceder a uma certa escola moderna do teatro o lugar maior. Entretanto, at aqui o senhor no havia ul-
trapassado um certo ponto. E a pea de Vitrac no se encaixa nessa escola, quebra resolutamente todos os
moldes, faz estalar a grande moldura em cujo interior parece que se quer manter, apesar de tudo, o teatro.
Entretanto, impossvel no sentir que o pblico, o verdadeiro, quer sempre mais liberdade no tea-
tro, que ele espreita, pressente, espera uma espcie deforma nova a qual o teatro, um dia ou outro, vir mol-
dar-se; onde ser colocado.
O senhor sente, certamente como eu, como todos ns, que se poderia ir mais longe, que o verdadeiro
teatro que esperamos implica um desarranjo total de nvel, de plano, de orientao, que seu centro de gravi-
dade est em outro lugar. E me parece que ele deve entrar em seu programa, que ser ampliado para ofere-
cer, entre esses espetculos adequados, outros espetculos mais resolutamente e essencialmente
revolucionrios. E isto no quer dizer que esses espetculos revolucionrios, no sentido em que eu os enten-
do, no se tornem, cm breve prazo, espetculos inteiramente repousantes, porque surgiro, de repente, como
os nicos adequados a mudana do ngulo de viso de um pblico faminto de imprevisto. O teatro moder-
134 LINGUAGEM E VIDA
no est a espera de sua forma, que esteja de acordo com a ptica moral, intelectual e sentimental deste tem-
po. Porpouco que consigamos oferec-la, opblico, datem diante, no acatar outra e seria conveniente ser
revolucionrio para tomar-se comercial. Alis, para mim o teatro deve estar muito mais livre de peso mo-
ralmente, fisicamente e em todos os sentidos, do que a pea sobre a qual projeto minha encenao. No a ofe-
reo como um modelo do gnero. Ela nos oferece apenas um lado do teatro esperado, que deve ser muito
mais livre intelectualmente.
Cordialmente seu,
ANTONIN ARTAUD
2. O Teatro Louis Jouvet estava instalado, na poca, na Comdie des Champs-lyses. A dire-
o do Teatro Pigalle fora oferecida a Jouvet em 1930, por seus fundadores. Ele recusou a proposta,
mas aceitou montar alguns espetculos. O primeiro foi Donogoo-Tonka, de Jules Romains, a 25 de ou-
tubro de 1930; o ltimo iria ser A Pasteleira da Aldeia, de Alfred Savoir, espetculo para o qual contra-
tou Antonin Artaud como assistente.
3. o "Projeto de Encenao para o Golpe de Trafalgar, Drama Burgus em 4 atos de Roger Vi-
A LOUISJOUVET U5
esperamos. Para mim ele deve ser muito mais livre intelectualmente, mais liberto
de peso moral, fsico e em todos os sentidos.
Cordialmente seu.
ANTONIN ARTAUD
Rua Pigalle, 45.
DECLARAO
Caro amigo,
Ainda estou me perguntando a que dizia respeito a objeo que voc me
fez no tocante questo que eu havia formulado, de saber se no [ p era preciso
recorrer noo de dualidade.
No entanto, voc est de acordo comigo ao pensar que este tipo de decla-
rao pblica, que redigiremos de comum acordo para explicar os objetivos do
teatro que pretendo fazer, deve versar sobre assuntos absolutamente concretos,
partindo da situao atual do teatro na Frana e na Europa e dizendo, por exem-
plo, que: ao estado de degenerescncia orgnica em que se debate o teatro na
Frana desde a guerra, veio juntar-se, nos ltimos tempos, uma espcie de crise
1. Rascunho de carta enviado pelo Sr. Jean-Marie Conty. Interrogado sobre seu contedo, An-
dr Rolland de Reneville afirmou lembrar-se de uma conversa entre Ren Daumal e Antonin Artaud
que poderia ter gerado esta Declarao. Mas o projeto de uma declarao comum no ultrapassou o es-
tgio de conversas.
2. Uma lacuna no manuscrito.
138 LINGUAGEM E VIDA
industrial que acaba de forar uma boa parte dos teatros de Paris a fechar pre-
maturamente suas portas.
Todavia3, muito significativo para o futuro do teatro na Frana que, ao
mesmo tempo, um certo nmero de cinemas continue a render o mximo. No
acreditamos que o preo relativamente baixo de um espetculo cinematogrfico
seja suficiente para explicar essa queda vertical do interesse do pblico pelo teatro,
e sua repentina falta de gosto por uma forma de expresso4 que, at agora, e
especialmente em perodo de crise, era fundamental como os gneros de primeira
necessidade; mas parece que o gosto do pblico pelos espetculos, dessa5 parte
do pblico que ia procurar numa representao teatral apenas uma distrao de
carter estritamente digestivo, deve encontrar numa representao cinematogr-
fica um divertimento altura. Pois, se podemos ver muito bem por que o teatro
que se faz atualmente na Frana mostra-se inferior a qualquer filme, mesmo um
muito ordinrio, no vemos, nem no aspecto intelectual, nem sobretudo do
ponto de vista espetacular, em que ele poderia revelar sua superioridade. Alis,
esvaziando simultaneamente todas as salas de espetculo onde sobrevive um teatro
de texto com pretenses literrias e com anlise psicolgica duvidosa, o pblico
faz por si mesmo justia a um gnero h muito prescrito.
Se o teatro feito para condensar um sistema de vida6, se deve constituir
como que a sntese herica da poca em que foi concebido7, se podemos defini-los
como o resduo concreto e o reflexo dos costumes e dos hbitos de uma poca,
certo que o cinema nos oferece da vida moderna, em seus aspectos mais va-
riados, uma imagem dinmica e completa, da qual o teatro est longe de se
aproximar.
O teatro tal como se pratica, no somente na Frana mas em toda a Europa
h cerca de um sculo, est limitado pintura psicolgica e falada do homem
individual. Todos os meios de expresso especificamente teatrais pouco a pouco
cederam lugar ao texto, que absorveu em si a ao de tal modo que se pode ver,
afinal de contas, o espetculo teatral inteiro reduzido a uma s pessoa monolo-
gando diante de um biombo.
Esta concepo, por mais vlida que seja em si, consagra para os espritos
dos Ocidentais a supremacia da linguagem articulada, ao mesmo tempo mais
precisa e mais abstrata, sobre todas as outras; e, alis, seu resultado imprevisto
foi fazer do cinema, arte de imagens, um sucedneo do teatro falado!
Domingo, 2 de agosto1
Caro amigo,
Tomo a liberdade de lembrar a voc a entrevista que deveria acontecer por
ocasio de seu retorno de viagem, no final de julho.
Sou maante e obstinado porque tenho a impresso de ter alguma coisa a
dizer: aquilo que sempre considerei uma espcie de impermeabilidade do mundo
cnico a tudo que no pertence estritamente a ele, a quase inutilidade da palavra
que no mais o veculo, mas o ponto de sutura do pensamento, a futilidade
de nossas preocupaes sentimentais ou psicolgicas em matria de teatro, a ne-
cessidade, para o teatro, de procurar representar alguns dos lados estranhos das
construes do inconsciente, tudo isso em profundidade e em perspectiva sobre
o palco, em hierglifos de gestos que sejam construes desinteressadas e abso-
lutamente novas do esprito; tudo isso est preenchido, satisfeito, representado
e levado adiante pelas surpreendentes realizaes do Teatro Balins, que uma
bela afronta ao teatro como o concebemos. E sobre isso e muitas outras coisas
ainda que eu queria conversar com voc, desejando que nossa colaborao se
transforme em algo mais que algumas conversas sobre teatro a respeito da pea
que voc est montando e feita no intervalo de duas temporadas de filmagem.
1. Entre 1928 e 1933, somente o dia 2 de agosto de 1931 caiu num domingo.
142 LINGUAGEM E VIDA
Tarde de tera-feira,
20 de outubro de 1931
Caro amigo,
Por que voc ainda no me deixou, numa oportunidade qualquer, o ma-
nuscrito do "Rei das Crianas"? Minha opinio pessoal sobre o valor da pea
conta pouco, assim como os prognsticos de sucesso que eu possa fazer sobre ela.
Queria simplesmente saber se era verdade que essa pea seria representada e se
voc, Louis Jouvet, esperava fazer sucesso representando-a, e que tipo de sucesso
esperava dela. Queria, alm disso, saber se a data de sua estria est mais ou menos
definida. Tudo isso para no fazer um trabalho intil. Dito isso, e se voc acha,
sinceramente, que eu possa ser til em alguma coisa, s peo que, seja ou no re-
presentada essa pea, eu possa me dedicar ao trabalho e transmitir minhas sugestes
pessoais, que podem ser atribudas a voc. Redigirei uma espcie de relatrio to
completo quanto possvel e voc pode utiliz-lo em seguida como bem entender.
No existe pea - e acho que nesse ponto voc pensa como eu -, qualquer
que seja sua qualidade, que no possa ser melhorada e mesmo corrigida e refeita
por uma encenao competente. Mas no acredito que uma encenao seja pro-
blema de texto e possa ser feita sobre o papel. E qualidade distintiva das coisas
de teatro no poderem elas estar contidas nas palavras, ou mesmo em esboos.
Uma encenao se faz em cena. Ou somos homens de teatro ou no somos. A
144 ^ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA
dele. Estou sua disposio, sinceramente e com toda cordialidade para tudo o
que voc espere de mim em relao ao Rei das Crianas. Desejo apenas fazer um
: trabalho muito preciso a esse respeito. No estou realmente em situao de re-
!li cusar trabalho, pois no quero mais fazer cinema como ator, e at peo que voc
1| me d uma oportunidade de trabalhar.
% Cordialmente seu.
S ANTONIN ARTAUD
o
% Rua Labruyre, 58, 9 , Pari;.
Tarde de sbado
29 de janeiro de 19321
Caro amigo,
Estou estarrecido com a encenao dos Trapaceiros1. Essas personagens-fan-
toches me aturdiram.
Todas essas personagens no so humanas; no representam humanamente;
no se comportam exteriormente de acordo com suas reaes interiores, de acor-
do com o que as palavras, testemunhas de suas reaes interiores, podem sugerir
que esto sentindo e reagindo. Em uma palavra, representam teatro, e conven-
cionalmente, com paradas excessivas no mesmo lugar, segundo o velho estilo
convencional de uma certa representao ao vivo, de uma estilizao na imobi-
lidade que, quando proposital, pode causar efeitos felizes, mas quando invo-
1. Esta carta foi enviada pelo Sr. Ren Thomas. Em seguida, fez parte da coleo Tristan Tzara.
Estava dentro de um envelope, com a inscrio: J. P. / Os Trapaceiros. Carta e envelope estavam ras-
gados ao rneio. H um erro no dia da semana ou do ms, pois 29 de janeiro de 1932 caiu realmente
numa sexta-feira.
2. A primeira montagem dos Trapaceiros de Steve Passeur foi feita pelo Grupo do Atelier, nas
Galerias de Bruxelas, dia 21 de janeiro de 1932. A pea foi reprisada em Paris, no Teatro do Atelier,
dia 30 de janeiro de 1932. Foi interpretada por Dalio, Yolande Laffon e Vital. A direo foi de Charles
Dullin, com cenrio de Vakalo.
148 LINGUAGEM E VIDA
3. Encontramos no manuscrito: Estas personagens com quem temos relaes a manter. Antonin
Artaud, sem dvida, estava indeciso entre as duas ortografias: affaire, faire.
* Dlabyrinthent no original. Neologismo proveniente de labyrinthe (labirinto). (N. da T.)
A JEAN PAULHAN 149
Maeterlinck evocou para ns as figuras dos velhos msticos. Ele soube tor-
nar-nos sensveis s etapas de seus pensamentos. Com ele tem-se verdadeiramente
a sensao de se descer ao fundo do problema. "A pessoa de Deus incognoscvel,
diz a sabedoria do Talmud, mas seus caminhos se exprimem por nmeros e por
cifras." So estes nmeros, cuja natureza agora insensvel criatura comum,
que Maeterlinck fixou em frases lapidares.
La Mort (A Morte), VHte inconnu (O Hspede Desconhecido), Les Sentiers
dans Ia montagne (As Sendas na Montanha), escondem as ltimas etapas de sua
vasta curiosidade. O alto pensamento de Boehme, de Ruysbroek, no mais existe
nestas ltimas obras, exceto como lembrana de uma antiga disciplina. Le Grand
Secret (O Grande Segredo) como o brevirio rpido das conquistas do homem
no domnio do Desconhecido.
As Doze Canes (1896) realizam, no gnero romance, uma ampliao me-
ldica de sua viso simblica do mundo.
Maeterlinck estreou nas letras com um conto em prosa: Le Massacre des
Innocents (A Matana dos Inocentes), que foi publicado em La Pliade em 1886;
trs anos depois ele se torna famoso. Mirbeau, em um artigo generoso e entu-
siasta, exalta La Princesse Maleine. Estamos em 1889.
Maeterlinck traduziu Annabella, de John Ford (1895), e mais recentemente
Macbeth, de Shakespeare, que foi representado graas a seus cuidados na Abadia
de Saint-Wandrille com Sverin-Mars. Ele comps entre outras peas: UOiseau
bleu (O Pssaro Azul), Les Fianailles (Os Esponsais), Monna Vanna, Marie-Magde-
leine, Le Bourgmestre de Stilmonde etc.
*
*
CINEMA E REALIDADE
para projet-lo: sua escolha parece ter recado sobre a Sala Adyar, Praa Rapp. 4, Paris VII (cf. "Distin-
o entre Vanguarda de Contedo e de Forma", p. 175). Ela prepara releases para a imprensa e pensa
at em contratar homens-sanduche para a publicidade. Quanto a Germaine Dulac, parece no ter
pressa em mostrar o filme a seu roteirista. Para poder v-lo, Artaud obrigado a lhe escrever, dia 25 de
setembro. Portanto, apenas no ms de outubro que ele consegue, finalmente, ver A Concha e o Clri-
go na verso dirigida por Germaine Dulac. Ele no ficou satisfeito com o filme e achou que seu roteiro
tinha sido desfigurado pela diretora, que lhe deu uma interpretao banal, contentando-se em fazer
dele um sonho narrado. Para protestar contra essa interpretao contestvel do texto inicial, Artaud o
publica na Nouvelle Revue Franaise, precedido de uma nota intitulada "Cinema e Realidade", que ,
de certo modo, uma reprovao da maneira como A Concha e o Clrigo foi realizado. Germaine Dulac
responde dizendo que vai dar uma conferncia no Salo de Outono, na qual apresentar o filme. An-
tonin Artaud, que no tinha sido avisado, fica sabendo pela imprensa. Parece que ela desistiu dessa
apresentao graas interveno de Armand Tallier, diretor do Estdio das Ursulinas, que pediu a ex-
clusividade do filme. A situao se complica a tal ponto entre Antonin Artaud e sua diretora que, por
ocasio da primeira projeo pblica de A Concha e o Clrigo, no Estdio das Ursulinas, dia 9 de feve-
reiro de 1928, acompanhado de alguns amigos, entre os quais Robert Desnos, ele ofende Germaine
Dulac a ponto de serem todos expulsos da sala.
Essas informaes nos foram fornecidas, em grande parte, pelos rascunhos de um artigo de
Yvonne Allendy, posterior agitada sesso de 9 de fevereiro, de cuja redao Artaud no deve estar to-
talmente alheio. Alis, bem possvel que esse artigo tenha sido publicado em um jornal da poca e
que algum dia possamos encontrar sua verso definitiva. Apresentamos, a seguir, um excerto dos ras-
cunhos encontrados pela Sra. Colette Allendy nos papis de sua irm.
A cuso a Sra. G. Dulac de ter se apoderado de uma idia original, que pertencia ao rotrista e de ten-
tar, por vrios meios relatados abaixo, afast-lo e quase suprimi-lo de uma obra que, para ser bem realizada,
exigia sua assdua colaborao.
Por esse motivo acuso a Sra. G. Dulac de ter trado o esprito do roteiro e, por sua obstinao em de-
formar imagens poticas cujo sentido no compreendia epara a concretizao das quais recusava toda suges-
to, de ter ela mesma provocado uma reao violenta dos poetas desejosos de eximir o Sr. Antonin Artaud
dos erros do filme da Sra. Dulac.
Yvonne Allendy acusa ainda Germaine Dulac de ter mandado imprimir sobre o filme:
Sonho de Antonin Artaud.
Composio visual de Germaine Dulac.
A CONCHA E O CLRIGO
Como o autor respondeu atravs de notas na imprensa e pela publicao de seu roteiro na NRF, pro-
vando assim que a criao das imagens lhe pertencia, a Sra. Dulac cedeu, mandando imprimir a frmula
habitual:
Roteiro deAntonin Artaud.
Realizao de G. Dulac.
Germaine Dulac tambm acusada de ter tentado desde o ms de novembro de 1927, data na qual a
NRF publicava o roteiro do Sr. Antonin Artaud e, sentindo-se comprometida, por esse fato, impedir a proje-
o desse filme em Paris. Isso explica a data tardia da primeira exibio.
Em relao conferncia de Germaine Dulac, nos dias 3 e 17 de novembro de 1927, encontra-
mos o seguinte anncio em Comcedia:
O Cinema no Salo de Outono.
O primeiro dos espetculos de vanguarda nematogrfica apresentados por Robert dejarville no tea-
tro do Salo de Outono, no Grand Palais, acontecer na quarta-feira, 23 de novembro, s 15 horas.
Germaine Dulac falar de Dois filmes e apresentar O Convite Viagem e fragmentos de A Con-
cha e o Clrigo.
Os anncios foram impressos e trazem uma variante da frmula criticada por Yvonne Allendy,
pois anunciam que Germaine Dulac apresentar:
A Concha e o Clrigo
Sonho deAntonin Artaud
realizado cinegraficamentepor Germaine Dulac.
Ora, no mesmo dia da conferncia, o anncio publicado em Comcedia prova que Germaine Du-
lac desistiu de sua apresentao:
Conferncia de Germaine Dulac.
Hoje, quarta-feira, 23 de novembro, s 15 horas, Robert dejarville apresenta no teatro do Salo de
Outono, no Grand Falais, um espetculo de vanguarda cinematogrfica, durante o qual Germaine Dulac
falar de Dois filmes, com exibio de O Convite Viagem, sua ltima produo, ede Dura lex, filmado
por Goskine na Rssia sovitica.
Se acreditarmos na nota de Lucien Wahl em VOeuvre (11 de novembro de 1927) e nas notas de
160 LWGUAGEM E VIDA
Jean Moncla em La Volont (19 de novembro de 1927), o filme fora apresentado alguns dias antes, pelo
menos imprensa. O artigo de Lucien Wahl no deixa de ser ambguo. Efetivamente, comea por afir-
mar: O Cinedube ofereceu uma matin realmente interessante. Por causa de um erro ou de esquecimento,
que sei involuntrio, no fui informado a tempo de poder assisti-la. Por isso no pude ver o filme russo inti-
tulado Dura lex, sed lex, inspirado num romance dejack London, mas posso falar de A Concha e o Clri-
go, que foi exibido ao mesmo tempo, pois havia sido montado [a notcia diz, efetivamente, montado e no
mostrado] h duas ou trs semanas. Em seguida, depois de citar excertos de Cinema e Realidade, o jorna-
lista tenta contar o filme, afirmando entre parnteses: (No li o roteiro publicado. Falo de memria, da-
quilo que vi). O que bastante estranho, pois Cinema e Realidade e o roteiro foram publicados juntos
na Nouvelle Revue Franaise.
Enfim, para dar uma idia do que foi a exibio de 9 de fevereiro de 1928, vamos citar a nota que
apareceu no Charivari de 18 de fevereiro.
Quinta-feira ltima, o Estdio das Ursulinas apresentou o ensaio geral de seu novo espetculo. Foi
exibido um filme da Sra. Dulac, A Concha e o Clrigo, obra de alucinao, que a narrativa de um pesa-
delo. O pblico seguia com interesse essa curiosa produo, quando se ouviu na sala uma i/oz perguntar:
"Quem fez esse filmei"
Ao que uma outra voz respondeu: "Foi a Sra. Germaine Dulac".
Primeira voz: Quem a Sra. Dulac?
Segunda voz: E uma vaca.
Diante da grosseria do termo, Armand Tallier, o simptico diretor das Ursulinas, apareceu, mandou
acender a luz e identificou os dois agitadores...
EramAntonin Artaud, um surrealista um pouco louco e manaco, autor do roteiro do filme, que ma-
nifestava desse modo seu descontentamento com a Sra. Dulac, que acusava de ter deformado sua "idia"
(uma idia um pouco louca). E junto com ele, protestava outro surrealista bastante conhecido que parece, s
vezes, ter talento.
Intimados por Tallier a se desculparem, s encontraram para responder a palavra de Cambronnc e
outras imundcies e logo foram auxiliados nessa tarefa por outros surrealistas, os mesmos que haviam feito
baderna na vspera, na Tribuna Livre. Mas as personalidades do mundo cinematogrfico presentes no
consentiram e, Tallier a frente, dispersaram a socos e pontaps a turma Artaud e Cia., que, de raiva, que-
brou os vidros do hall, dando gritinhos bizarros: "Goulou... Goulou..."
Certamente preciso levar em conta a tendncia ao exagero de tais notas e Georges Sadoul, em
"Memrias de uma Testemunha" (Estudos Cinematogrficos, n 38-39, primavera de 1965), se por um
lado confirma o "concerto de gritos e vociferaes" e as injrias grosseiras dirigidas a Germaine Dulac,
A CONCHA E O CLRIGO 161
A pele humana das coisas, a derme da realidade, sobretudo com isso que
o cinema lida. Ele exalta a matria e a revela para ns em sua espiritualidade
profunda, em suas relaes com o esprito de onde ela se originou. As imagens
nascem, derivam umas das outras enquanto imagens, impem uma sntese obje-
tiva mais penetrante que qualquer abstrao, criam mundos que no pedem nada
a ningum nem a nada. Mas desse puro jogo de aparncias, desse tipo de tran-
substanciao de elementos, nasce uma linguagem inorgnica que mobiliza o
esprito por osmose e sem nenhuma espcie de transposio em palavras. E pelo
fato de lidar com a prpria matria, o cinema cria situaes que provm do
simples choque de objetos, formas, repulses, atraes. Ele no se separa da vida,
mas reencontra a situao primitiva das coisas. Os filmes melhor sucedidos nesse
sentido so aqueles onde reina um certo humor, como os primeiros Malec2 ou
os Carlitos menos humanos. O cinema constelado de sonhos e que d a vocs
a sensao fsica da vida pura obtm seu triunfo no humor mais excessivo. Uma
certa agitao de objetos, formas, expresses, s se traduz bem nas convulses e
sobressaltos de uma realidade que parece se destruir a si mesma com uma ironia
na qual ressoa o grito dos confins do esprito.
por outro, nega que os manifestantes tenham sido expulsos da sala, pois, segundo escreve, A rmand Tal-
lier no era desses homens que chamam a polida para "restabelecer a ordem". (0 artigo de Charivari no
fala, alis, de interveno policial). O que quer que tenha acontecido, A Concha e o Clrigo, projetado
com A Tragdia da Rua, filme dirigido por Bruno Rahn, foi retirado de cartaz. O filme entrou em cartaz
denovo.namesmasala.com Trs Horas de uma FaU... de James Flood, a partir de 14 de maio de 1928.
2. Malec, personagem criada por Buster Keaton, cujas aventuras prosseguem em uma srie de
filmes rodados entre 1920 e 1923.
LINGUAGEM E VIDA
decupagem dessa cena, que traz o nmero 126, est entre elas. Germaine Dulac devia pensar que "um
imenso caminho de noite" ( immense chemine de nuit) era um erro de impresso da cpia que lhe
havia sido entregue e que ela devia corrigi-lo, pois a datilografia da decupagem traz: "uma imensa ca-
misola" (une immense chemise de nuit). Mais abaixo, esta indicao anotada pela prpria Germaine Du-
lac ou por seu assistente:
Ao: Tomada feita por baixo; o clrigo arregaa as bordas do hbito (sob uma placa de vidro).
Ora, justamente esse um dos erros de interpretao pelos quais ela ser recriminada no artigo
de Yvonne Allendy:
Segundo fato: a Sra. Dulac, por ter trabalhado sozinha no estdio, sem nenhuma indicao do autor,
recusou-se sistematicamente e por diversas vezes a deix-lo assistir a montagem, trabalho de grande impor-
tncia e que se tivesse sido fato diante do roteirista teria evitado erros graves como: as bordas do hbito que
se transformaram em camisola, a lngua que se transformou em corda, a repetio da histria da chave nos cor-
redores etc, imagens cujo sentido est desfigurado e quem tm apenas um valor tcnico, sem interesse.
164 LINGUAGEM E VIDA
Io Gosto de cinema.
Gosto de qualquer tipo de filme.
Mas todos os tipos ainda esto por criar.
Acredito que o cinema pode admitir apenas um certo tipo de filme: s
aquele onde todos os meios de ao sensual do cinema tiverem sido utilizados.
O cinema implica uma subverso total de valores, uma desorganizao com-
pleta da viso, da perspectiva, da lgica. mais excitante que o fsforo, mais
cativante que o amor. No podemos nos dedicar indefinidamente a destruir seu
poder de galvanizao pelo uso de assuntos que neutralizam seus efeitos e per-
tencem ao teatro.
2o Exijo, portanto, filmes fantasmagricos, filmes poticos, no sentido den-
so, filosfico da palavra; filmes psquicos.
1. Segundo uma cpia datilografada fornecida pela Sra. Toulouse, na primeira pgina da qual foi
anotado, no alto, esquerda: A. Artaud. O aspecto dessa cpia (impresso, cor violeta da fita,
qualidade do papel) aproxima-a das cpias datilografadas entregues para Ia Rvolution Surraliste,
conservadas na Biblioteca Literria Jacques Doucet. Portanto, pode-se pensar que essa resposta foi3
escrita mais ou menos na poca em que Antonin Artaud aderiu ao movimento surrealista: portanto,
final de 1924, inicio de 1925. Alis, talvez tenha sido publicada na poca em alguma revista ou jornal
no localizados at agora por nossas pesquisas.
170 LINGUAGEM E VIDA
Por toda parte se repete que o cinema est na infncia e que assistimos
apenas a seus primeiros balbucios. Confesso que no compreendo esta maneira
de ver. O cinema atinge um estdio j avanado de desenvolvimento do pensa-
mento humano 2 e beneficia-se desse desenvolvimento. Sem dvida um meio
de expresso que materialmente no est no ponto exato. Pode-se conceber certos
progressos capazes de dar ao aparelho, por exemplo, uma estabilidade e uma
mobilidade que ele no possui. Teremos, provavelmente num futuro prximo,
o cinema em relevo, at mesmo o cinema a cores. Mas esses so meios acessrios
e que no podem acrescentar grande coisa quilo que o substrato do prprio
cinema e3 que faz dele uma linguagem com o mesmo valor que a msica, a
1. Segundo um manuscrito fornecido pela Sra. Colette Allendy (cinco folhas encimadas por:
"Caf Terminus/ Estao St. Lazare/ Paris", utilizadas apenas na pgina de rosto). Sobre a primeira
pgina est colocada uma tira de papel, trazendo essas linhas manuscritas por Yvonne Allendy: "A
Sra. Germaine Dulac dirige atualmente, no Estdio Gaumont, A Concha e o Clrigo, filme bastante
curioso, feito de um nico sonho que encerra o mistrio de um drama, e cujo roteiro a obra do poeta
Antonin Artaud".
Essas poucas linhas, destinadas certamente a servir de apresentao ao texto de Antonin Artaud,
mostram que ele tinha, efetivamente, inteno de public-lo. Talvez o tenha feito, mas o peridico em
que o texto pode ter aparecido at agora no foi localizado por nossas pesquisas. Elas tambm nos
fornecem a data de sua redao: o perodo em que A Concha e o Clrigo foi filmado, quer dizer, final
de julho-agosto de 1927.
2. O pensamento humano substitui o esprito humano, riscado.
3. E est escrito como emenda sobre o.
172 ^^ LINGUAGEM E VIDA
prosperar. O cinema vai aproximar-se cada vez mais do fantstico, esse fantstico
que, percebemos sempre mais6, na realidade todo o real, ou ento no viver.
Ou melhor, o fantstico ser o real do cinema, como o da pintura, da poesia.
O certo que a maior parte das formas de representao tiveram sua poca. J
faz muito tempo que toda boa pintura s serve para reproduzir o abstrato. Por-
tanto, isso no apenas uma questo de escolha. No existir de um lado o
cinema que represente a vida e de outro aquele que represente o funcionamento
do pensamento. Pois, cada vez mais, a vida, aquilo que chamamos de vida, vai
se tornar inseparvel do esprito. Um certo domnio profundo tende a aflorar
superfcie. O cinema, melhor que qualquer outra arte, capaz de traduzir as
representaes desse domnio, pois a ordem estpida e a clareza habitual so suas
inimigas.
A Concha e o Clrigo participa dessa busca de uma ordem sutil, de uma
vida escondida que eu quis tornar plausvel; plausvel e to real quanto a outra.
Para compreender este filme bastar olhar profundamente para si mesmo.
Entregar-se a esse tipo de exame plstico, objetivo, atento apenas ao Eu interior,
que at agora era domnio exclusivo dos "Iluminados".
Traduo de Slvia Fernandes
O pblico que se interessa pelo verdadeiro cinema, que est espera da obra
capaz de quebrar a rotina do cinema comercial e de lanar a cinematografia em um
novo caminho, no est sem [saber]2 da existncia do nico filme realizado at ago-
ra segundo uma concepo verdadeiramente nova, verdadeiramente profunda:
A Concha e o Clrigo
No se sabe que interesses de grupos ou pessoas impediram o pblico, at
hoje, de ver esse filme. Os diretores de duas ou trs salas que existem em Paris
com o nome de Estdio e que pareciam ter sido criadas com a finalidade exclusiva
de lanar obras novas e fortes, realmente originais, depois de tmidas tentativas
e de transaes mais ou menos equvocas, renunciaram a apresentar o filme,
cedendo a ameaas muito obscuras ou, talvez, bastante definidas3.
1. Segundo uma nota manuscrita comunicada pela Sra. Colette Allendy, com certeza escrita
para servir de apresentao a A Concha e o Clrigo na poca que Yvonne Allendy pensa alugar, ela
mesma, uma sala para projetar o filme em agosto de 1927 (cf. nota 1, p. 157).
2. Antonin Artaud deve ter tido primitivamente a inteno de escrever no ignora, o que o fez
cometer aqui um lapso e escrever: no est sem ignorar.
3. Uma variante para o fim desse pargrafo est anotada debaixo do ttulo no espao deixado en-
tre o ttulo e a primeira frase: retirando-se sob pretextos falaciosos que designam seu medo e escondem no
sei que cabala com qual o cinema nada tem a ver, porm o mais odiosos interesses de parquias e de pessoas.
Pargrafo depois do qual se encontra a seguinte frase riscada: No poderia acontecer entretanto
que o pblico no o veja e ele o ver a partir de tal data na sala Adyar.
176 LINGUAGEM E VIDA
Mas4 pela primeira vez a unio de todos os interesses, de todas as foras ms,
dever ceder e o pblico poder ver a partir de..., na sala Adyar, uma obra realmen-
te significativa, cujas inovaes no consistiro em mltiplos achados tcnicos, em
jogos de formas exteriores e superficiais, mas na profunda5 renovao da matria
plstica das imagens, numa verdadeira liberao, liberao de modo algum casual,
mas necessria e precisa, de todas as foras sombrias do pensamento6.
UM ESCNDALO
H ss meses a imprensa discute com paixo um filme verdadeiramente de vanguarda que traz ao ci-
nema uma concepo verdadeiramente nova: A Concha e o Clrigo.
ESTE FILME O PBLICO N O VIU AINDA e isto porque as salas ditas Estdios de vanguarda so na
realidade consagradas a estpida produo comercial que mata o cinema e insulta o pblico pretendendo co-
loc-lo em seu nvel.
Estas pequenas salas medrosas e cupidas jamais revelaram nada, nem os Carlitos,
nem Malec
nem Caligari
nem Nosferatu
nem os grandes filmes russos
nem nenhuma das obras que quebram o quadro estrato que encerra voluntariamente na Frana a ci-
nematografia.
Elas continuam "no ousando" dar o primeiro filme-sonho: A Concha e o Clrigo de Antonin Ar-
taud, realizao de Germaine Dulac.
Este filme "inquietante" ser apresentado em seis noites a partir de amanh... Na sala Adyar, acom-
panhado de...
endereo: 4 Square Rapp, Paris 7e,
preos dos lugares: 5 e 7 francos
O emprego da expresso filme-sonho tenderia a provar que Antonin Artaud no tenha visto ain-
da o filme quando esta nota foi redigida; do contrrio, ele no a teria deixado passar, pois ele censura
antes de tudo Germaine Dulac por ter feito de A Concha e o Clrigo o relato de um sonho. Em novem-
bro de 1927, ele tomar o cuidado de especificar que seu argumento no era a reproduo de um sonho
(cf. p. 160). No entanto, numa entrevista concedida Lydie Lacaze, Germaine Dulac continuar a afir-
mar o contrrio: Voc poder ver, em janeiro, nas Ursulinas, meu ltimo filme de vanguarda A Concha e
o Clrigo. No h histria, simplesmente um sonho (La Rumeur, 12 de janeiro de 1928).
O CINEMA E A ABSTRAO1
tro. A Concha e o Clrigo no conta uma histria, mas desenvolve uma seqncia
de estados de esprito que derivam uns dos outros, como o pensamento deriva
do pensamento, sem que esse pensamento reproduza a ordem racional dos fatos.
Do choque dos objetos e dos gestos derivam verdadeiras situaes psquicas, em
meio s quais o pensamento aprisionado procura uma sada sutil. Nada existe a
a no ser em funo das formas, dos volumes, da luz, do ar - mas sobretudo
em funo do sentido de um sentimento liberado e nu, que escorrega por entre
os caminhos pavimentados de imagens e atinge uma espcie de cu onde desa-
brocha inteiramente.
As personagens a so apenas crebros e coraes. A mulher ostenta seu
desejo animal em forma de desejo, a cintilao fantasmagrica do instinto que a
impele a ser uma e, sem cessar, diferente em suas repetidas metamorfoses.
A senhorita Athanasiou soube confundir-se muito bem com um papel todo
instinto e onde uma sexualidade muito curiosa adquire um aspecto de fatalidade
que ultrapassa a personagem enquanto ser humano e sintetiza o universal. Eu
tambm s tenho elogios para os senhores Alex Allin e Bataille. E, para terminar,
quero agradecer muito especialmente Sra. Germaine Dulac, que soube reco-
nhecer o interesse de um roteiro que busca introduzir-se na prpria essncia do
cinema e no se ocupa em fazer aluses, nem arte, nem vida.
A objetiva que perscruta o centro dos objetos cria seu mundo e possvel
que o cinema se coloque no lugar do olho humano, que pense por ele, que passe
o mundo por seu crivo e que, atravs desse trabalho de excluso ordenado e
mecnico, deixe sobreviver apenas o melhor. O melhor, quer dizer, o que vale
a pena ser retido, esses farrapos de aparncias que flutuam superfcie da memria
e dos quais, parece que automaticamente, a objetiva filtra o resduo. A objetiva
classifica e digere a vida, prope sensibilidade, alma, um alimento inteiramente
pronto e nos coloca diante de um mundo acabado e seco. Alis, no certo que
ela realmente s deixe passar o significativo e o melhor daquilo que vale a pena
ser registrado. Pois preciso notar que sua viso de mundo fragmentria, que
por mais vlida que seja a melodia que ela consegue criar entre os objetos, essa
melodia tem, se podemos diz-lo, dois gumes.
Por um lado obedece ao arbitrrio, s leis internas da mquina de olho
fixo - por outro, o resultado de uma vontade humana particular, vontade
precisa e que tambm tem seu lado arbitrrio.
O que se pode dizer, nessas condies, que medida que o cinema
deixado sozinho diante dos objetos, impe-lhes uma ordem, uma ordem que o
olho reconhece como vlida, e que responde a certos hbitos exteriores da me-
mria e do esprito. E a questo que se coloca aqui de saber se esta ordem
continuaria a ser vlida nos casos em que o cinema quisesse dar um impulso
mais profundo experincia e nos propusesse no apenas certos ritmos da vida
habitual que o olho e o ouvido reconhecessem, mas os conflitos obscuros e amor-
tecidos daquilo que se dissimula sob as coisas, ou as imagens esmagadas, pisotea-
das, distendidas ou densas daquilo que fervilha nas ltimas camadas do esprito.
O cinema, apesar de no ter necessidade de uma linguagem, de uma con-
veno qualquer para nos fazer juntar os objetos, no consegue substituir a vida;
so pedaos de objetos, recortes de aspectos, puzzles inacabados de coisas que ele
une para sempre entre si. Isto muito importante, sob qualquer ponto de vista,
pois preciso saber que o cinema nos mostra um mundo incompleto, e visto
de um s ngulo - e uma felicidade que este mundo esteja fixado para sempre
em seu inacabamento, pois se por milagre os objetos fotografados, dispostos
sobre a tela, pudessem mover-se, nem ousamos pensar na imagem de nada, na
quebra das aparncias que eles conseguiriam provocar. Quero dizer que a imagem
de um filme definitiva e sem retorno e, se ela permite uma seleo e uma
escolha antes da exibio das imagens, probe as imagens em ao de mudarem
ou se superarem. incontestvel. E ningum pode querer que um gesto humano
seja perfeito, que no tenha possibilidade de melhorar sua ao, seu movimento,
sua comunicao. O mundo cinematogrfico um mundo morto, ilusrio, des-
pedaado; alm de no abarcar as coisas, no penetrar no centro da vida, de reter
apenas a epiderme das formas e aquilo que um ngulo visual muito restrito pode
reunir delas, probe todo reexame e toda repetio, o que uma das condies
mais importantes da ao mgica, do dilaceramento da sensibilidade. No se refaz
a vida. As ondas vivas, inscritas para sempre em um certo nmero de vibraes
A VELHICE PRECOCE DO CINEMA 3
1. Segundo um manuscrito pertencente Sra. Anie Faure, que nos foi enviado pelo Sr. Ren
Thomas. Antonin Artaud utilizar o verso das cinco folhas que constituem esse manuscrito para as
pginas 6, 5,4 e 3 de A Anarquia. Portanto, podemos datar esse texto de 1933, aproximadamente.
2. Palavra faltante no manuscrito.
3. nem ao olho nem ao ouvido substitui nem ao esprito nem aos sentidos, riscado.
186 LINGUAGEM E VIDA
i
OS SOFRIMENTOS DO DUBBING
7. Esta ltima frase substitui outra, riscada: Ento essa personalidade, novo Moloch, absorve tudo.
NA PINTURA
1
UCCELLO O PLO1
para Cnica
Uccello, meu amigo, minha quimera, tu viveste com este mito de plos.
A sombra desta grande mo lunar, onde imprimes as quimeras de teu crebro,
no chegar nunca at a vegetao de tua orelha, que vira e formiga esquerda
com os ventos de teu corao. A esquerda os plos, Uccello, esquerda os sonhos,
esquerda as unhas, esquerda o corao. esquerda que todas as sombras
se abrem, naves, assim como orifcios humanos. A cabea deitada sobre esta mesa
onde a humanidade inteira soobra, que outra coisa ests vendo seno a sombra
imensa de um plo. De um plo como duas florestas, como trs unhas, como
um capinzal de clios, como de um ancinho nas relvas do cu. Estrangulado o
mundo, e suspenso, e eternamente vacilante sobre as planuras desta mesa plana
onde tu inclinas tua cabea pesada. E junto de ti quando interrogas as faces, o
que vs, alm de uma circulao de ramos, uma trelia de veias, o trao minsculo
de uma ruga, a ramagem de um mar de cabelos. Tudo est girando, tudo
vibrtil, e o que vale o olho despojado de seus clios? Lava, lava os clios, Uccello,
lava as linhas, lava o trao tremulante dos plos e das rugas sobre estes rostos
pendurados de mortos que te olham como ovos, e em tua palma monstruosa e
cheia de lua como uma iluminao de fel, eis ainda o trao augusto de teus plos3
que emergem com suas linhas finas como os sonhos em teu crebro de afogado.
Traduo de J. Cuinsburg
4. Assim podes dar... (Ainsi tu peux faire...) Cabe perguntar-se se a lio da edio Denol: aussi,
(por isso), no se deve a uma falha de impresso.
5. ...que fazes brotar da tua cabea...
A BIGORNA DAS FORAS1
Este fluxo, esta nusea2, estas correias, n'isto que comea o Fogo. O fogo
das lnguas. O fogo tecido em espirais de lnguas, no espelhamento da terra que
se abre como um ventre em parto, de entranhas de mel e acar. De toda a sua
ferida obscena ele boceja este ventre mole, mas o fogo boceja sobretudo em
lnguas torcidas e ardentes que carregam em sua ponta suspiros como de sede.
Este fogo torcido como nuvens na gua lmpida, tendo ao lado a luz que traa uma
rgua e clios. E a terra com todas as partes entreabertas e mostrando ridos se-
gredos. Segredos como superfcies. A terra e seus nervos e suas pr-histricas
solides; a terra de geologias primitivas, onde se descobrem os sops do mundo
numa sombra negra como carvo. - A terra me sob o gelo de fogo. Vejam o
fogo nos Trs Raios, com o coroamento de sua crina onde pululam olhos. O centro
ardente e convulso deste fogo como a ponta esquartejada do trovo no cimo
do firmamento. O centro branco das convulses3. Um absoluto de fulgor na bal-
brdia da fora. A ponta medonha da fora que se quebra na algazarra toda azul.
Os Trs Raios fazem um leque cujos ramos caem a pique e convergem
para o mesmo centro. Este centro um disco leitoso recoberto de uma espiral
de eclipses.
Ele diz que me v com uma grande preocupao de sexo. Mas de um sexo
estirado e soprado como um objeto. Um objeto de metal e lava fervente, cheia
de radicelas, de ramos que o ar prende.
A espantosa tranqilidade do sexo que tantas ferragens preenchem. Todos
estes ferros que renem o ar em todos os sentidos.
E em cima uma ardente crescena, uma ervagem nodosa e delgada que
toma raiz neste acre terrio. E ela cresce com uma gravidade de formiga, uma
ramagem de formigueiro que escava cada vez mais frente no solo. Ela cresce
1. Originalmente publicado no Cahicrs d'Art (ano 2, n 3, 1927) onde aparecia ilustrado pelo
quadro de Jean de Bosschre, O Autmato, que Artaud comentava, o texto foi profundamente
remanejado para a publicao em 1'Art et Ia Mort.
O texto primitivo foi publicado novamente na Hommage a Antonin Artaud pela revista France-
Asie (n 30, setembro 1948). A homemagem abria-se com pginas extradas do Journal d'un rebclle
solitairc, de Jean de Boschre (que entrementes subtrara um s de seu nome). Esta nova publicao foi
precedida de um nariz-de-cera onde se podia ler: Pouco tempo aps a morte de Antonin A rtaud cm Ivry,
em 4 de maro de 1948, Les Nouvelles Littraires lembravam a amizade que, desde o primeiro encontro,
se estabeleceu entre Artaud c Boschre. Eles haviam se visto muito pouco ainda, quando Artaud pediu a
Boschre, que s vezes pintor, que fizesse o seu retrato. Ora, este retrato, Boschre o havia pintado na
vspera e de memria. O que Artaud pensava sobre esta pintura foi publicado nos Cahiers d'Art sob o
titulo: O Autmato Pessoal, em um nmero que se tornou extremamente raro. Mais tarde, amputado por
um editor prudente, o artigo foi includo em l'Art et Ia Mort.
Esta alegao parece destituda de todo fundamento. As passagens do texto inicial que vieram a
ser suprimidas, no o foram certamente por Robert Denel, mas antes porque Antonin Artaud,
inserindo o texto em 1'Art et Ia Mort, quis, como se ver, lhe tirar todo o carter de personalizao.
LINGUAGEM E VIDA
e escava esta folhagem to atrozmente negra, e medida que escava, dir-se-ia que
o solo se distancia, que o centro ideal de tudo se concentra em torno de um
ponto mais e mais delgado.
Mas todo este tremor em um corpo exposto com todos os seus rgos, as
pernas, os braos movendo-se com seu ajustamento de autmato, e ao redor das
rotundidades da garupa que cinge o sexo bem fixado, rumo a estes rgos2 cuja
sexualidade aumenta, sobre os quais a sexualidade eterna cresce, se dirige uma
revoada de flechas lanadas de fora do quadro. Como nas ramagens de meu
esprito, h esta barreira de um corpo e de um sexo que est ali, como uma
pgina arrancada, como um farrapo desenraizado de carne3, como a abertura de
um relmpago e do raio sobre as paredes lisas do firmamento.
Mas alhures h esta mulher vista de costas que representa muito bem a
silhueta convencional da feiticeira.
Mas seu peso est fora das convenes e das frmulas. Ela se estende como
uma espcie de pssaro selvagem nas trevas que ela rene em torno de si, e das
quais ela faz uma espcie de espesso manto.
A ondulao do manto um signo to forte que sua simples palpitao
basta para significar a feiticeira e a noite em que ela se estende. Esta noite acha-se
em relevo e em profundidade, e sobre a perspectiva mesma4, que parte do olho,
se espalha um maravilhoso jogo de cartas que fica como em suspenso sobre
uma gua. A luz das profundezas engancha o canto das cartas. E paus em profuso
anormal flutuam como asas de insetos negros.
Os bas-fonds no so bastante fixos a ponto de interditarem5 toda idia de
queda. So como o primeiro patamar de uma queda ideal cujo quadro mesmo
dissimula o fundo.
H uma vertigem cujo rodopio tem dificuldade de se desprender das trevas,
uma descida voraz que se absorve em uma espcie de noite.
E como que para dar todo sentido a esta vertigem, a esta fome girante, eis
que uma boca se estende, e se entreabre, que parece6 ter por mira alcanar os
quatro horizontes. Uma boca como um carimbo de vida para apostilar as trevas
e a queda, dar uma sada radiante vertigem que drena tudo para baixo.
O avano da noite formigante com seu cortejo de esgotos. Eis em que
lugar essa pintura se coloca, no ponto de efuso dos esgotos7.
Um vento murmurante agita todas essas larvas perdidas e que a noite rene
em imagens espelhantes. Sente-se a um moer8 de eclusas, uma espcie de horrvel
choque vulcnico em que se dissociou a luz do dia. E desta coliso, e deste
dilaceramento de dois princpios, nascem todas as imagens em potncia, em9 uma
irrupo mais viva que uma lmina do fundo.
H10 tantas coisas nesta tela?
H a fora de um sonho fixado, to duro quanto uma carapaa de inseto
e cheio de patas dardejadas em todos os sentidos do cu.
E em relevo, sobre esta convulso dos bas-fonds, sobre esta aliana da luz
enrgica com todos os metais da noite, como a prpria imagem deste erotismo
das trevas, ergue-se a volumosa e obscena silhueta do Autmato Pessoal11,
Um grande monto e um grande peido.
Est suspenso em fios dos quais somente os laos esto prontos, e a
pulsao da atmosfera que anima o resto do corpo. Ele rene em torno dele a
noite como uma ervagem, como uma plantao de ramos negros.
Aqui a oposio secreta, ela como a seqncia de um escalpelo. Ela
est suspensa pelo fio da navalha12, no domnio inverso das almas.
Mas viremos a pgina.
Um andar mais alto est a cabea. E uma verde exploso de grisu, como
de um fsforo colossal, acutila e dilacera o ar naquele lugar onde a cabea no
est.
Eu me encontro a exatamente como eu me vejo nos espelhos do mundo,
e com uma semelhana de casa ou de mesa, j que toda semelhana est alhures.
Se se" pudesse passar atrs da parede, que dilaceramento se veria, que mas-
sacre de veias. Um amontoamento de cadveres esvaziados14.
E o todo, alto como um prato de camares.
Eis a que lineamento pde chegar tanto esprito.
Mau som de sino, alis, pois com que olho, enfim, eu considero o sexo,
do qual meu apetite no est morto.
Aps tantas dedues e malogros, aps todos estes cadveres esfolados, aps
as advertncias dos trevos negros, aps os estandartes das feiticeiras, aps este
8. No Cahiers d'Art, moer aparece como broyenient, grafia que nos parece mais conforme a
pronncia de Antonin Artaud. E bem possvel que broiement se deva a uma correo automtica do ti-
pgrafo. Aqui o complemento nominal estava alis no singular: moer de eclusa.
9. ...deste dilaceramento dos dois princpios, nascem todas as imagens cm...
10. Ilya-t-il... (erro de ortografia)
11. Disposio tipogrfica diferente:
...enrgica com todos os metais da noite,
como apropria imagem deste erotismo das trevas,
erguese a volumosa e obscena silhueta do Autmato Pessoal.
12. ...pelo fio de uma navalha,...
13. ...toda semelhana est alhures.
Mas se se...
14. ...de cadveres vazios.
200 LINGUAGEM E VIDA
grito de uma boca na queda sem fundo, aps me haver chocado com muralhas,
aps este turbilho de astros, este emaranhado15 de razes e cabelos, no estou
bastante enfastiado para que toda esta experincia me desmame.
A muralha a pique da experincia no me desvia de meu deleite essencial.
No fundo do grito das revolues e das tempestades, do fundo desta tri-
turao de meu crebro, neste abismo de desejos e de questes, apesar de tantos
problemas, tantos temores, eu conservo no canto mais precioso de minha cabea
esta preocupao do sexo que me petrifica e me arranca o sangue.
Que eu tenha o sangue em ferro e escorregadio, o sangue repleto de pn-
tanos, que eu seja cuspido de pestes, de renncias, contaminado, assediado de
desagregaes e de horrores, contanto que persista a doce armadura de um sexo
de ferro. Eu o construo em ferro, eu o preencho de mel, e sempre o mesmo
sexo no meio da acre escavao. o sexo em que convergem as torrentes, em
que se afundam as sedes.
Cheias de furor, e sem serenidade nem perdo, minhas torrentes se fazem
cada vez mais volumosas e se afundam, e eu acrescento mais ameaas, e durezas
de astros e de firmamentos.
unidade tremula, central, da minha vida e da minha inteligncia. Mas nesta unidade ainda ele soube dispor
nveis. Reservou o lugar do instinto, o cornpartinicnto da sexualidade. O corpo da mulher...
18. o futuro que se encontra nos Cahiersd'Art.
19. ...a situa.
20. ...como o lineamento indicado, a zebrura de um relmpago talhado na terra, e cartas valsam cm
torno de mim. No alto,...
21. Ela como uma muralha de noite, compacta,...
TEXTO SURREALISTA1
1. La Rvolution Surraliste (n 2, 15 de janeiro ck 1925). Fazia pane dos Textos surrealistas, isto
, obtido pela escritura automtica, publicados naquele ._ mero.
A cpia datilografada deste texto, corrigida e assinada por Antonin Artaud encontra-se na
Biblioteca Literria Jacques Doucet.
No verso da pgina de capa deste nmero, encontramos entre as obras a consultar:
Antonin Artaud
L'OPIUM PENDU
ou lafcalit de 1'csprit social
Depositrio: Livraria Gallimard
Como no mesmo lugar, no nmero 3, este anncio substitudo por:
Antonin Artaud
L'OMBILIC DES LIMBES
N. R. F.
h motivos para pensar que 1'Opium pendu ou Ia fcalit de 1'esprit social era o ttulo originalmente
previsto para VOmbilk des Limbes. (O Umbigo dos Limbos)
204 LINGUAGEM E VIDA
Mas o ar era como um vazio aspirante no qual este busto de mulher vinha
no tremor geral, no sacudimento deste mundo vidrado, que girava em estilhaos
de frontes, e sacudia sua vegetao de colunas, seus nichos de ovos, seus ns em
espirais, suas montanhas mentais, seus frontes espantados. E nos frontes, co-
lunas dos sis por acaso se agarraram, sis erguidos sobre jatos de ar como ovos,
e minha fronte afastava estas colunas, e o ar flocoso, e os espelhos de sis, e as
espirais nascentes, para a linha preciosa dos seios, e o oco do umbigo, e o ventre
que no existia.
Mas todas as colunas perdem seus ovos, e na ruptura da linha das colunas
nascem ovos em ovrios, ovos em sexos revirados.
A montanha est morta, o ar est eternamente morto. Nesta ruptura de-
cisiva de um mundo, todos os rudos so j.resos no gelo, o movimento preso
no gelo; e o esforo de minha fronte se gelou.
Mas sob o gelo um rudo aterrador atravessado de casulos de fogo cerca o
silncio do ventre nu e privado de gelo, e ele sobe dos sis revirados e que se
olham, das luas negras, dos fogos terrestres, das trombas de leites.
A fria agitao das colunas partilha em dois meu esprito, e eu toco o meu
sexo que meu, o sexo do baixo de minha alma, que sobe em tringulo infla-
mado*.
* Este texto foi escrito sob inspirao dos quadros de Andr Masson2.
Traduo de]. Guinsburg
2. A frase chamada pelo asterisco no se encontra na cpia datilografada, deve ter sido acrescen-
tada nas provas. Os quadros de Andr Masson, aos quais se faz aluso, pertencem srie do quadro:
Homrnc, descrito em 1'Ombilic dcs Limbes. (O Umbigo dos Limbos)
NA POESIA
O UMBIGO DOS LIMBOS
que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e que os levasse
l onde jamais consentiriam em ir, uma porta simplesmente aberta para a reali-
dade.
E isto no mais prefcio a um livro do que os poemas, por exemplo,
que o balizam ou a enumerao de todas as raivas do mal-estar.
Isto no mais que uma pedra de gelo, tambm mal engolida.
Traduo de]. Guinsburg
O PESA-NERVOS
1. ...todas as lnguas encorrear, as horas humanas... {horas talvez seria uma falha de impresso da
edio original).
QUEM, NO SEIO...
1. "Quem, no Seio..." o nico dos textos componentes de 1'Art et Ia Mort que no apareceu
anteriormente em revista.
214 _ _ _ ^ _ LINGUAGEM E VIDA
Estoura, osso miservel de co. A gente sabe muito bem que teu pensa-
mento no est concludo, terminado, e que em qualquer sentido que te voltares
ainda no comeaste a pensar.
Pouco importa. - O medo que se abate sobre ti te esquarteja medida
mesmo do impossvel, pois bem sabes que deves passar deste outro lado para o
qual nada em ti est pronto, nem mesmo este corpo, e sobretudo este corpo, que
deixars sem esquecer nem a matria, nem a espessura, nem a impossvel asfixia.
E ser de fato como num mau sonho onde tu ests fora da situao de teu
corpo, tendo-o arrastado at l apesar de tudo e ele te fazendo sofrer e te ilumi-
nando com suas ensurdecedoras impresses, onde a extenso sempre menor ou
maior que tu, onde nada no sentimento que trazes de uma antiga orientao
terrestre pode mais ser satisfeito.
E bem isso, e para sempre isso. O sentimento desta desolao e deste
mal-estar inominvel, qual grito, digno do ladrar de um co num sonho, te
arrepia a pele, te revira a garganta, no extravio de um afogamento insensato.
No, isto no verdade. No verdade.
Mas o pior que verdade. E ao mesmo tempo que este sentimento de
veracidade desesperadora onde te parece que vais morrer de novo, que vais mor-
rer pela segunda vez (Tu o dizes a ti mesmo, tu o pronncias, que tu vais morrer.
Tu vais morrer: Eu vou morrer pela segunda vez), eis que no se sabe qual umidade
de uma gua de ferro ou de pedra ou de vento te refrescou incrivelmente e te
alivia o pensamento, e tu mesmo corres, tu te fazes ao correr para a tua morte,
para o teu novo estado de morte. Esta gua que corre a morte, e a partir do
momento em que tu te contemplas com paz, que registras tuas novas sensaes,
que a grande identificao comea. Tu estavas morto e eis que de novo tu te
encontras vivo - S QUE DESTA VEZ TU ESTS S.
Acabo de descrever uma sensao de angstia e de sonho, a angstia escor-
regando no sonho, mais ou menos como eu imagino que a agonia deve escorregar
e acabar finalmente na morte.
Em todo caso, tais sonhos no podem mentir. Eles no mentem. E estas
sensaes de morte postas lado a lado, esta sufocao, este desespero, este silncio,
ser que os vemos na suspenso ampliada de um sonho, com o sentimento de
que uma das faces da nova realidade est perpetuamente atrs de ns?
Mas no fundo da morte ou do sonho, eis que a angstia recomea. Esta
angstia, como um elstico que se estica e salta subitamente garganta, no
nem desconhecida, nem nova. A morte para a qual a gente escorregou sem se
dar conta, o corpo virando feito bola, esta cabea - foi preciso que ela passasse,
ela que carregava a conscincia e a vida e por conseqncia a sufocao suprema,
e por conseqncia a dilacerao superior - que ela passasse, tambm ela, pela
menor abertura possvel. Mas ela angustia at o limite dos poros, e esta cabea
que, fora de se sacudir e se virar de pavor, tem como que a idia, como que
o sentimento de que ela se inchou e que seu terror tomou forma, que ela bor-
bulhou sob a pele.
QUEM, NO SEIO... 215
* Afirmo - e me apego idia2 de que a morte no est fora do domnio do esprito, que ela
est dentro de certos limites conhecveis e acessveis atravs de uma cena sensibilidade'.
Tudo o que na ordem das coisas escritas abandona o domnio da percepo ordenada e clara,
tudo o que visa a criar um desmoronamento das aparncias, a introduzir urna dvida sobre a posio
das imagens do esprito umas em relao s outras, tudo o que provoca a confuso sem destruir a fora
do pensamento jorrante, tudo o que derruba as relaes das coisas, dando ao pensamento subvertido
um aspecto maior ainda de verdade e de violncia, tudo isto oferece uma sada para a morte, nos pe
em relao com estados mais afinados do esprito no seio dos qua:s a morte se exprime.
Da por que todos aqueles que sonham sem lamentar seus sonhos, sem trazer, desses mergulhos
em uma inconscincia fecunda, um sentimento atroz de nostalgia, so uns porcos. O sonho verdadei-
ro. Todos os sonhos so verdadeiros. Eu tenho o sentimento de asperezas, de paisagens como que es-
culpidas, de pedaos de terra ondulantes recobertos de uma espcie de areia fresca, cujo sentido quer
dizer:
"pesar, decepo, abandono, ruptura, quando nos reveremos?"
Nada se assemelha ao amor como o apelo de certas paisagens vistas em sonhos, como o cerco de
certas colinas, de uma espcie de argila material cuja forma como que moldada sobre o pensamento.
216 LINGUAGEM E VIDA
Quando nos revereraos? Quando o gosto terroso de teus lbios vir de novo roar a ansiedade
de meu esprito? A terra como um turbilho de lbios mortais. A vida escava diante de ns o abis-
mo de todas as carcias que faltaram. Que temos ns a fazer junto de ns com este anjo que no soube
se mostrar? Todas as nossas sensaes sero para sempre intelectuais, e nossos sonhos chegaro a pegar
fogo numa alma cuja emoo nos ajudar a morrer. O que esta morte, onde estamos para sempre a
ss, onde o amor no nos mostra o caminho?
2. O Sr. Jean-Marie Conty nos havia comunicado um texto manuscrito de Antonin Artaud inti-
tulado:
UEperon malirieux, le Double-Cheval
(outra Bigoma das Foras)
Ora, este texto que ns reencontramos aqui, em nota. O primeiro pargrafo do original foi su-
primido:
Eu tenho, talvez, da morte uma idia excessivamente falsa.
Eu afirmo, eme apego a esta idia...
A primeira pgina do manuscrito, Antonin Artaud havia anotado o seguinte, sem dvida algo
que no apresenta relao com o prprio texto:
Roteiro Arto Criei.
Pea sobrenatural.
Como "A Bigoma das Foras" apareceu em 15 de junho de 1926 em Ia Rvolution Surraliste,
cabe supor, devido ao subttulo, que Vperon malicieux, le Doublc-Cheval lhe posterior, e em conse-
qncia possvel datar aproximadamente Quem, no seio... de 1927.
Uperon malicieux, le Double-Cheval foi publicado em sua forma original no Botteghe Oscure
(Caderno VIII, 1952).
3. ...atravs de uma certa sensibilidade mental. (Reza o manuscrito.)
4. No manuscrito teus substitui certos, riscado.
5. No manuscrito a ansiedade de meu esprito substitui os sobressaltos de nossos espritos, riscado.
QUEM, NO SEIO...
Nesse instante de seu devaneio mortal o homem vivo que chega diante da
muralha de uma identificao impossvel retira sua alma com brutalidade.
Ei-lo repelido para o plano nu dos sentidos, em uma luz sem profundidade.
Fora da musicalidade infinita das ondas nervosas, exposto fome sem li-
mites da atmosfera, ao frio absoluto.
Madame,
Vs habitais um quarto pobre, misturado vida. em vo que se desejaria
ouvir o cu murmurar em vossos vidros. Nada, nem vosso aspecto, nem o porte
vos separam de ns, mas no sei qual puerilidade mais profunda que a experincia
nos impele a golpear sem fim e a afastar vosso rosto, e at os laos de vossa
vida.
Com a alma dilacerada e suja, sabeis que no sinto diante de vs seno
uma sombra, mas no tenho medo deste terrvel saber. Sei que estais em todos
os ns de mim mesmo e muito mais prxima de mim do que minha me. E eu
estou nu diante de vs. Nu, impudico e nu, direito e tal como uma apario de
mim mesmo, mas sem nenhuma vergonha, pois para vosso olho, que corre ver-
tiginosamente em minhas fibras, o mal verdadeiramente destitudo de pecado.
Jamais eu me vi to determinado, to ntegro, to resoluto mesmo para
alm do escrpulo, para alm de toda malignidade que me vem dos outros ou
de mim, e tambm to perspicaz. Vs juntais a ponta de fogo, a ponta de estrela
ao fio trmulo de minha hesitao. Nem julgado, nem me julgando, inteiro sem
nada fazer, integral sem para isso me esforar; salvo a vida, era a felicidade. E
enfim, no mais com medo que minha lngua, minha grande lngua demasiado
3. A edio Denol escreve, este belo olho exposto (tal); ora em Ia Rvolution Surraliste consta
este belo olho parado (tale), forma que nos parece prefervel seguir, pois a impresso de Ia Rvolution
Surralistc , em geral, mais cuidadosa e mais segura do que a dos livros editados na poca pela Denol.
Por esta razo, tambm seguimos Ia Rvolution Surraliste quando elaindicava itlico.
4. Aqui tambm seguimos a lio de Ia Rvolution Surrcaliste. provvel, com efeito, que tenha
sido na impresso que uma vrgula foi acrescentada: cimos revirados e reentrados, embotados em mim.
Ora, parece realmente que seja preciso entender que os cimos reentraram nele, embotados, sentido
mais perceptvel sem a vrgula.
CARTA VIDENTE 221
Mas havia ainda outra coisa. que este sentido, indiferente quanto a seus
efeitos imediatos sobre minha pessoa, estava apesar de tudo colorido por alguma
coisa de bom. Eu vinha a vs com um otimismo integral. Um otimismo que
no era um declive do esprito, mas que provinha deste conhecimento profundo
do equilbrio em que toda a minha vida se banhava. Minha vida vindoura equi-
librada por meu passado terrvel, e que se introduzia sem embarao na morte.
Eu sabia de antemo que minha morte era como o remate de uma vida enfim
plana, e mais doce que minhas melhores lembranas. E a realidade crescia a olhos
vistos, amplificava-se at este soberano conhecimento onde o valor da vida pre-
sente se desmonta sob os golpes da eternidade. No era mais possvel que a
eternidade no me vingasse desse sacrifcio encarniado de mim mesmo, e do
qual eu no participava. E meu futuro imediato, meu futuro a partir desse minuto
em que eu penetrava pela primeira vez em vosso crculo, este futuro pertencia
tambm morte. E vs, vosso aspecto me foi desde o primeiro instante favorvel.
A emoo de saber era dominada pelo sentimento de mansuetude infinita
da existncia*. Nada de ruim podia vir para mim deste olho azul e fixo pelo
qual inspecionais meu destino.
Toda a vida se me tornava esta bem-aventurada paisagem onde os sonhos
que giram se apresentam a ns com a face de nosso eu. A idia do conhecimento
absoluto se confundia com a idia da similitude absoluta da vida e de minha
conscincia. E eu tirava desta dupla similitude o sentimento de um nascimento
* Nada posso fazer. Eu tinha este sentimento diante d'Ela. A vida era boa porque esta vidente
estava ali. A presena desta mulher era para mim como um pio, mais puro, mais ligeiro, embora me-
nos slido do que o outro. Porm muito mais profundo, mais vasto e abrindo outros arcos nas clulas
de meu esprito. Esse estado ativo de trocas espirituais, essa conflagrao de mundos imediatos e mi-
nsculos, essa iminncia de vidas infinitas cuja perspectiva esta mulher me abria, me indicavam enfim
uma sada para a vida, e uma razo de ser no mundo. Pois no se pode aceitar a Vida salvo sob a condi-
o de ser grande, de sentir-se na origem dos fenmenos, pelo menos de um certo nmero deles. Sem
poder de expanso, sem uma certa dominao sobre as coisas, a vida indefensvel. Uma s coisa
exaltante no mundo: o contato com as potncias do esprito. Entretanto, diante desta vidente, um fe-
nmeno bastante paradoxal se produz. Eu no sinto mais necessidade de ser possante, nem vasto, a se-
duo que ela exerce sobre mim mais violenta que meu orgulho, uma certa curiosidade me basta
momentaneamente. Estou pronto, diante dela, a abdicar de tudo: orgulho, vontade, inteligncia. Inte-
ligncia sobretudo. Esta inteligncia que todo o meu orgulho. Eu no falo, por certo, de uma certa
agilidade lgica do esprito, do poder de pensar depressa e criar rpidos esquemas sobre as margens da
memria. Falo de uma penetrao subterrnea no mundo e nas coisas, penetrao5 amide a iongo
prazo, que no tem necessidade de materializar-se para satisfazer-se e que indica pontos de vista pro-
fundos do esprito. E com base nesta penetrao claudicante e muitas vezes sem matria (e que eu mes-
mo no possuo) que sempre pedi que me dessem crdito, ainda que devessem me dar crdito cem anos
e se contentar o resto do tempo com o silncio. Eu sei em quais limbos reencontrar esta mulher. Eu
escavo um problema que me aproxima do ouro, de toda matria sutil, um problema abstrato como a
dor que no tem forma e que treme e se volatiliza ao contato dos ossos.
5. O membro da frase subterrnea no mundo e nas coisas, penetrao fora esquecido na edio
Denol. muito provalvemente que a repetio da palavra penetrao tenha causado este esquecimen-
to do tipgrafo.
222 ^ LINGUAGEM E VIDA
A vida diante dele se fazia pequena. Partes inteiras de seu crebro apodre-
ciam. O fenmeno era conhecido, mas enfim no era simples. Abelardo no
apresentava o seu estado como uma descoberta, mas enfim escrevia:
Caro amigo,
Eu sou gigante. Nada posso fazer, se sou um cume onde as mais altas
mastreaes adquirem seios guisa de velas, enquanto as mulheres sentem seus
sexos tornarem-se duros como seixos2. Eu no posso me impedir, de minha parte,
de sentir todos estes ovos rolarem e balanarem sob os vestidos, ao acaso da
hora e do esprito. A vida vai e vem e cresce aos poucos atravs da pavimentao
dos seios. De um minuto a outro a face do mundo mudada. Ao redor dos
dedos se enrolam as almas com suas trincas de mica, e entre as micas Abelardo
passa, pois acima de tudo est a eroso do esprito3.
Mas que Helosa tambm tem pernas. O mais bonito que ela tenha
pernas. Ela tem tambm esta coisa em forma de sextante de marinha, ao redor
da qual toda magia gira e pasta, esta coisa como um gldio deitado.
Mas acima de tudo, Helosa tem um corao. Um belo corao ereto e
todo em ramos, esticado, congelado, granulado, tranado por mim, gozo profuso,
catalepsia de minha alegria!
Ela tem mos que cingem os livros com suas cartilagens de mel. Ela tem
seios em carne crua, to pequena, cuja presso deixa louco; ela tem seios em
ddalos de fio. Ela tem um pensamento que me pertence todo, um pensamento
insinuante e retorcido que se desenrola como um casulo. Ela tem uma alma.
Em seu pensamento, eu sou a agulha que corre e sua alma que aceita a
agulha e a admite, e eu estou melhor, quanto a mim, em minha agulha, do que
todos os outros em suas camas, pois em minha cama eu enrolo o pensamento
e a agulha nas sinuosidades de seu casulo adormecido.
Pois sempre a ela que eu retorno atravs do fio desse amor sem limites,
desse amor universalmente espalhado. E ele produz em minhas mos crateras,
ele produz a ddalos de seios, ele produz a amores explosivos que minha vida
ganha sobre meu sono.
Mas por quais transes, por quais sobressaltos, por quais deslizamentos su-
cessivos chega ele a essa idia da fruio de seu esprito. O fato que ele frui
neste momento de seu esprito, Abelardo. Ele frui dele plenamente. Ele no
pensa mais em si mesmo nem direita nem esquerda. Ele est ali. Tudo o que
se passa nele dele. E nele, neste momento, se passam coisas. Coisas que o
dispensam de buscar-se. A que est o ponto importante. Ele no precisa mais
Helosa, por sua vez, tem um vestido, ela bela de face e de fundo.
Ento, ele sente a exaltao das razes, a exaltao macia, terrestre, e seu
p sobre o bloco da terra sente a massa do firmamento.
E ele grita, Abelardo, como que transformado em morto, e sentindo seu
esqueleto estalar e vitrificar-se, Abelardo, na ponta vibrante e no cimo de seu
esforo:
"E aqui que Deus vendido, pertence a mim agora a plancie dos sexos,
os seixos de carne. Nada de perdo, eu no peo perdo. Vosso Deus no mais
que um chumbo frio, estrume dos membros, lupanar dos olhos, virgem do ven-
tre, leiteria do cu!"5
Ento a leiteria celeste se exalta. A nusea lhe vem.
Sua carne dentro dele vira limo cheio de escamas, ele sente os plos duros,
o ventre bloqueado, ele sente o pnis que se torna lquido6. A noite se ergue
semeada de agulhas e eis que com um golpe de tesoura ELES lhe extirpam a
virilidade.
E l embaixo, Helosa tira o vestido e fica toda nua. Seu crnio branco
Ieitoso, seus seios flcidos, suas pernas bexigosas, seus dentes fazem um rudo de
papel. Ela estpida. E esta de fato a esposa de Abelardo, o castrado.
Traduo dej. Guinsburg
1. Publicado originalmente em les Fcuilles libres (n 47, dezembro de 1927 - janeiro de 1928).
Algumas variantes.
2. ...murmura, todo rumor...
3. ...arrastada nele,...
228 _ ^ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA
8. ...meparalisar nela.
9. Mas eis que Santa Helosa o chama.
A VIDRAA DO AMOR1
3. Era A Revue europenne, como no manuscrito, l-se aqui: Havia tambm uma arcatura de so-
brancelhas...
4. Mas miservel criadinha, criadinha crapulosa e mal-lavada.
5. ...quando nos decidimos cheir-los.
6. ...do Esprito humano, sobre esses limiares esgotados...
A VIDRAA DO AMOR 233
7. O manuscrito traz: Parei de olhar a janela... como mais acima est dito: Eu a via atravs do
cu, atravs das vidraas..., cabe perguntar se a preposio pela no foi acrescentada na grfica sem que
Antonin Artaud se tenha dado conta do fato, quando da reviso das primeiras provas.
8. ...se puseram a perseguir...
9. ...o remendo das botinas absurdas,...
10. ...considerados grandes autores.
Pois bem, me dizia Grard, tudo isto...
11. ...das palavras, dizia a mim mesmo.
234 ^ LINGUAGEM E VIDA
1. Segundo uma cpia datilografada enviada pela Sra. Toulouse. Este texto pde ter sido escrito
na poca em que Antonin Artaud lia as obras de Maeterlinck afim de prefaciar Douze Chansons (cf.
p. 151), isto , por volta de 1922-1923.
2. Esta cpia foi tambm foi corrigida pela Sra. Toulouse. H uma falta aqui entretanto. Ela foi
conjecturalmente preenchida a fim de facilitar a leitura.
238 LINGUAGEM E VIDA
3. A Sra. Toulouse nos havia transmitido uma segunda cpia datilografada deste texto que apre-
sentava um fim diferente:
Ora este meio de nos pormos a passar pela morte, ns o possumos desde logo devido a hipnose que en-
trega cm ns o subconsciente de rosto de vidro e o manda comprazer-se em liberdade nas fronteiras do aln.
E inimaginvel, bastante, que a natureza que juntou to miraeulosamente em ns o impondervel ao co-
nhccfvel at reduzi-lo a ser funo dele, no lhe tenha deixado do outro lado uma ponte com o Inconhecvel,
o Superior.
Como o sopro do alm que est em cada um de ns e que um dia despertar ao sopro do Esprito puro,
se reconheceria se no fosse de uma essncia idntica.
Mas quando h uns cincoenta anos a Cincia julgou ter encontrado o meio de comover o Emanuel
Imanente, de fazer conversar seus imponderveis, de trazer a face da conscincia os signos do alm por meio
de espelhos, bolas, passes, e todo o aparelho dos hipnotizadores, o que fez ela do ritual antigo das prticas m-
gicas do dito de outro modo, da Encantao?
S que, enquanto ns fatigamos os Espritos com nossas pueris baboseiras, com nossas preocupaes
malss e nos deixamos escravizar por eles, eles tinham encontrado os meios de comand-los. Os egpcios co-
nheciam as palavras e os passes capazes de reter uma alma nos limites da Vida. a que se revela o solene
poder da Encantao, a Gula do homem que pudera (crer que) a turbulncia dos fantasmas se apraz em
exercer-se sobre as foras da Natureza, sobre os Elementais que aventuram seus corpos de espectros nos escri-
tos da Idade Mdia crdula.
Mas a Grande Virtude a Magia reside na subjulgao da morte. E quase certo que a morte tornando
nossa alma mais sensvel s perspectivas espirituais do aln, comea por uma srie de entorpecimentos suces-
EXCURSO PSQUICA 239
sivos ela a separa do corpo e eu imagino que deve haver na morte esta inquietude do homem que dllorme e se
pergunta com angstia se se trata verdadeiramente de um sonho. Questo enlouquecedora.
RIMBAUD & OS MODERNOS
Rimbaud nos ensinou uma nova maneira de ser, de nos manter no meio
das coisas.
O primeiro, por seu cuidado em dar a cada palavra sua total capacidade
de sentido, classificou suas palavras como valores existentes fora do pensamento
que os condiciona, e operou estas estranhas inverses de sintaxe onde cada slaba
parece objetivar-se e tornar-se preponderante. Mas Mallarm era difcil em face
de seu pensamento, l onde Paul Fierens no difcil a no ser para os que o
lem, e com um tema do ser insignificante. Eu me apresso em dizer que Paul
Fierens compe pequenos poemas perfeitos, e que me parecem felizes elucidaes
do pensamento contemporneo. Eu s detesto suas resenhas crticas1.
Traduo dej. Guinsburg
1. No sumrio das revistas que publicavam os poemas Antonin Artaud, encontram-se tambm
poemas de Mareei Raval e de Paul Fierens. Em 1923, Paul Fierens fazia regularmente resenhas crticas
em les Nouvelles littraires. alias neste hebdomrio que ele assinar em dezembro de 1925 uma rese-
nha crtica de O Umbigo dos Limbos que Antonin Artaud julgava de uma imbecilidade atroz.
UM PINTOR MENTAL
1. Este texto abre o segundo nmero de Bilboquet, impresso no mesmo papel e de mesmo for-
mato. um opsculo de dezesseis pginas que se apresenta "em folhas" e no traz nem nmero nem
data, nem endereo, nem nome de quem o imprimiu. A correspondncia com Gmca Athanasiou nos
informa sobre a data aproximada da publicao. Por duas vezes, 12 de outubro e 8 de dezembro de
1923, Antonin Artaud anuncia-lhe o envio:... um pequeno livro de pensamento de um escritor que conhe-
ces e do qual quero fazer a ti surpresa. E: Eu te enviarei proximamente o livro de que te falei. Ele muito
curioso e muito atual. Tu conheces alis o autor (cf. Lettres a Gnica Athanasiou, pp. 109 e 126). Este se-
gundo nmero compreende os dois textos que precedem.
2. Le Pont tranversi, de Jean Paulhan, havia aparecido em 1921 nas edies Camille Bloch.
246 LINGUAGEM E VIDA
1. A pgina n 5 de A Vidraa do Amor ocupa uma s pgina de uma folha dupla. As notas que
comeam por Na Luz da Evidncia... esto escritas em tinta preta sobre as trs outras pginas desta fo-
lha (cf. nota 1, p. 231).
248 LINGUAGEM E VIDA
estar ao nvel dos objetos e das coisas, ter em si sua forma global e sua
definio ao mesmo tempo
e que as localizaes de tua substncia pensante entrem em movimento ao
mesmo tempo que seu sentimento e sua viso em ti.
2. O curto fragmento De uma vez por todas... est escrito a tinta vermelha na pgina de frente de
uma folha cujo verso traz a pgina n 3 de A Vidraa do Amor
3. No fim, escrito a lpis, na pgina de frente de uma folha cujo verso e ocupado pela pgina n
4 de A Vidraa do Amor, encontra-se o fragmento H montanhas....
SOBRE O SUICDIO1
1. Le Disque vert (3 o ano, n 1, 4a srie, janeiro de 1925). Este nmero se intitula Sur le suicide.
A resposta de Antonin Artaud enquete lanada por esta revista traz o mesmo ttulo.
250 LINGUAGEM E VIDA
o surrealismo existe
que se pode fixar a vida em sua fisionomia dita real, mas a realidade no se
encontra a. Da porque, a ns, que visamos a uma certa eternidade, surreal, a
ns que de h muito no nos consideramos mais no presente, e que somos para
ns mesmos como nossas sombras reais, no se deve vir nos chatear em esprito.
Quem nos julga, no nasceu no esprito, neste esprito que ns queremos
viver e que existe4 para ns fora daquilo que chamais o esprito. No se deve
atrair de mais nossa ateno para as cadeias que nos prendem petrificante im-
becilidade do esprito. Ns pusemos a mo sobre um animal novo. Os cus
respondem nossa atitude de absurdo insensato. Estes hbitos que tendes de
voltar as costas s questes no impediro, no dito dia, os cus de se abrirem,
e uma nova lngua de se instalar em meio a vossos tratados imbecis, queremos
dizer, dos tratados imbecis de vosso pensamento.
H signos no Pensamento. Nossa atitude de absurdo e de morte a da
melhor receptividade. Atravs das fendas de uma realidade doravante invivel,
fala um mundo voluntariamente sibilino.
Traduo de]. Guinsburg
INTRODUO
Pode-se falar1 da boa sade mental de Van Gogh que, em toda a sua vida, apenas
queimou uma mo e, fora disso, no fez mais que cortar uma vez a orelha esquerda,
num mundo em que se come todo dia vagina assada ao molho verde ou
sexo de recm-nascido flagelado e enraivecido,
tal como foi colhido sada do sexo materno.
E isto no uma imagem, mas um fato abundante e cotidianamente repe-
tido e cultivado por toda a terra.
E assim, por mais delirante que possa parecer essa afirmao, que a vida
presente se mantm em sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem,
de delrio, de desregramento, de loucura crnica, de inrcia burguesa, de anomalia
psquica (pois no o homem, mas o mundo que se tornou um anormal), de
proposital desonestidade e de insigne tartufice, de imundo desprezo por tudo
aquilo que tem raa,
de reivindicao de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de
uma injustia primitiva,
de crime organizado, enfim.
1. Ditado a partir de textos escritos entre 28 de fevereiro e 2 de maro de 1947. A cpia feita a
partir do ditado foi datilografada, e ser designada por (C). Um exemplar foi imediatamente enviado
ao editor, que estabeleceu a primeira edio (K).
58 ^ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA
Isso vai mal porque a conscincia doente tem um interesse capital, nesse
momento, em no sair de sua doena.
E assim que uma sociedade tarada inventou a psiquiatria, para se defender
das investigaes de certas lucidezes superiores cujas faculdades de adivinhao a
incomodavam.
Grard de Nerval no era louco, mas foi acusado de o ser para que lan-
assem o descrdito sobre certas revelaes capitais que ele se preparava para
fazer,
e alm de ser acusado, foi ainda golpeado na cabea, fisicamente golpeado
na cabea, certa noite, para que perdesse a memria dos fatos monstruosos que
ia revelar e que, sob a ao desse golpe, passaram nele para o plano sobrenatural,
porque toda a sociedade, ocultamente aliada contra sua conscincia, foi naquele
momento bastante forte para faz-lo esquecer sua realidade.
No, Van Gogh no era louco, mas suas pinturas eram fogos gregueses,
bombas atmicas cujo ngulo de viso, ao lado de todas as outras pinturas que
grassavam nesta poca, teria sido capaz de perturbar gravemente o conformismo
larvar da burguesia Segundo Imprio e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Flix
Faure, bem como os de Napoleo III.
Pois no um certo conformismo de costumes que a pintura de Van Gogh
aaca, mas o das prprias instituies. E mesmo a natureza exterior, com seus
climas, suas mars e suas tempestades de equincio, no pode mais, depois da
passagem de Van Gogh pela terra, manter a mesma gravitao.
Com mais forte razo, no plano social, as instituies se desagregam e a
medicina faz o papel de um cadver imprestvel e ranoso, que declarava Van
Gogh louco.
Diante da lucidez de Van Gogh que trabalha, a psiquiatria no passa de
um reduto de gorilas, eles prprios obcecados e perseguidos e que no tm, para
aliviar os mais apavorantes estados de angstia e de sufocao humanas2, seno
uma ridcula terminologia,
digno produto de seus crebros tarados.
No existe um psiquiatra, na verdade, que no seja um notrio erotmano.
E no creio que a regra da erotomania inveterada dos psiquiatras possa
sofrer alguma exceo.
2. Esta passagem uma daquelas que foram acrescentadas durante o ditado. O texto da edio K
falho em duas passagens:
... para aliviar os mais apavorantes estados ...
e o singular para o adjetivo humana. bastante provvel que esses dois erros provenham de uma pas-
sagem malfeita, de (C) para (K).
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 259
3. O Doutor Jacques Latrmolire, que era interno do hospital psiquitrico de Rodez durante a
permanncia de A. Artaud, acreditou reconhecer-se sob essa inicial. Em seu artigo: Falei de Deus com
Antonin Artaud (em La Tour de Feu, n 69, abril de 1961), depois de ter grifado essa passagem, efetiva-
mente declara: Eu sou o doutor L e esta censura constitui a ltima mensagem pessoal que recebi de Antonin
Artaud vivo: as precedentes, aquelas de Rodez, eram muito diferentes [...]. Reeditando seu artigo dez anos
mais tarde (La Tour de Feu, n 112, dezembro de 1971), acrescenta ao exergo que chama de Van Gogh-
Introduo (I a edio K) esta surpreendente nota: Meu amigo Gaston Ferdire insinua que bastante es-
tranho que tenham sido suprimidas, na edio posterior, as pginas iniciais do "Van Gogh" de onde tirei
este exergo, talvez para me privarem de insultos dos quais eu conheo a origem e pelos quais no guardo ne-
nhum rancor. Ora, as duas afirmaes do Doutor Latrmolire so inexatas. No houve segunda edi-
o K de Van Gogh, o Suicidado da Sociedade e, portanto, nem supresso da Introduo, alm de no
ter sido ele que Antonin Artaud quis designar por Doutor L. Ns lhe perguntamos em quem pensava
quando nos ditou essa passagem e ele nos deu o nome do mdico que havia tomado como modelo: no
era o doutor Latrmolire. Alis, se Antonin Artaud tivesse pensado neste ltimo, certamente teria
dado seu nome, como fez, nesse mesmo texto, com o doutor Ferdire e, alm disso, como sempre es-
creveu incorretamente La Trmolire em duas palavras, teria certamente empregado a inicial T ou as
duas iniciais, L. T.
260 LINGUAGEM E VIDA
casto como nem mesmo um serafim ou uma virgem podem ser, porque
so justamente eles
que fomentaram
e alimentaram na origem a grande mquina do pecado.
Talvez, alis, Doutor L., o senhor seja da raa dos serafins inquos, mas,
por favor, deixe os homens sossegados,
o corpo de Van Gogh, salvo de todo pecado, foi salvo tambm da loucura
que, alis, s o pecado traz4.
E no creio no pecado catlico,
mas creio no crime ertico de que
justamente todos os gnios da terra,
os alienados autnticos dos asilos se preservaram,
ou ento porque no foram (autenticamente) alienados.
E o que um alienado autntico?
E um homem que preferiu ficar louco, no sentido em que socialmente isto
entendido, do que trair uma certa idia superior de honra humana.
assim que a sociedade fez estrangular em seus asilos todos aqueles de que
quis se livrar ou se defender, por terem se recusado a ser seus cmplices em
certas imensas sujeiras.
Porque um alienado tambm um homem que a sociedade no quis ouvir
e a quem ela quis impedir de dizer verdades insuportveis.
Mas nesse caso o internamento no sua nica arma e o concurso con-
certado dos homens tem outros meios para atingir as vontades que quer al-
quebrar.
Alm dos pequenos feitios dos bruxos do campo, existem os grandes en-
feitiamentos globais de que toda a conscincia alertada participa periodicamente.
E assim que por ocasio de uma guerra, de uma revoluo, de uma agitao
social ainda embrionria, a conscincia unnime interrogada e se interroga e
ela tambm faz seu julgamento.
Tambm pode lhe acontecer de ser provocada e sair de si mesma a prop-
sito de certos casos individuais retumbantes.
E assim que houve feitios unnimes a respeito de Baudelaire, de Edgar
Poe, de Grard de Nerval, de Nietzsche, de Kierkegaard, de Hlderlin, de Co-
leridge,
e houve um a respeito de Van Gogh5.
4. Na lio da edio K consta: ...salvo tambm de loucura que, alis, somente o pecado traz. Ora,
a lio de (C) e de (), idntica quela do texto inicial (cf. p. 156, 10 ) : ...salvo tambm da loucura...
Parece evidente que a supresso do artigo resultado de um erro de impresso que Antonin Artaud
no percebeu quando da correo das provas, e parecia necessrio corrigi-lo.
5. A lio da edio K:
houve um a respeito de Van Gogh
, muito provalvemente, errada e reproduz aquela de (A), enquanto na de (Q, idntica do texto ini-
cial, consta:
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE
POST-SCRIPTUM*
9. A lio da edio K: E isto acontecia errada. Reproduz um transporte mal feito de (C) para
(A). Restabelecemos a lio de (Q: E isto aconteceu...
10. Ela introduziu-se, portanto, em seu corpo, apagou nele... (C) e (K). As cinco linhas intercaladas
no incio da frase foram acrescentadas por Antonin Artaud quando ele corrigiu as primeiras provas. O
papel anexado s provas, no qual ele colocou esse acrscimo, foi conservado. O prprio acrscimo
apresenta uma correo. Sua forma inicial era:
esta sociedade
absolvida
consagrada,
delirante
e possessa.
11. Tambm aqui a forma da edio K reproduz um transporte errado de (Q para (K): nem pen-
sado viver,... Ns restabelecemos a lio de (C): nem pensar viver,...
VAN GOGH. Q SUICIDADO DA SOCIEDADE 263
O SUICIDADO DA SOCIEDADE
12. O primeiro esboo dessa parte central, que serviu para Antonin Artaud nos ditar este texto,
foi escrito entre 8 e 15 de fevereiro de 1947, o que j um tempo bastante curto. Foi tudo isso que fez
com que Pierre Loeb dissesse que a obra havia sido escrita em duas tardes. A comparao deste primei-
ro esboo com o texto definitivo revela o considervel trabalho anterior feito a partir dele.
Uma parte do manuscrito foi oferecida por A. A. a Pierre Loeb, que em seguida deu-a a uma
amiga, que a cedeu, pouco depois, a um colecionador. Depois disso o documento passou de mo em
mo e ignoramos quem seu atual proprietrio. Felizmente ele nos foi enviado por Pierre Loeb em
1948, antes que ele se separasse dele, e ns pudemos ento obter uma cpia do mesmo.
13. Aqui restabelecemos o plural do manuscrito: E inertes. O singular que consta da lio da
edio K, reproduz um mau transporte em (C), do qual A. A. no deve ter se apercebido, corrigindo o
exemplar (K).
14. ...que a terra toda ea vida presente recomearam a falar. (Cj
15. O mau humor de suas pregas agitadas (Q e (K). Lio que igual do manuscrito. Ao corri-
gir as primeiras provas A. A. transformou agitadas em estripadas (aventes em ventres).
64 LINGUAGEM E VIDA
Esses corvos pintados dois dias antes de sua morte no lhe abriram, mais
que suas outras telas, a porta de uma certa glria pstuma, mas abrem pintura
pintada, ou melhor, natureza no-pintada, a porta oculta de um alm possvel,
de uma realidade permanente possvel atravs da porta aberta por Van Gogh de
um enigmtico e sinistro alm.
No comum ver um homem, com o tiro que o matou no ventre, cobrir
uma tela de corvos negros, tendo abaixo uma espcie de plancie lvida talvez,
vazia, de qualquer forma, onde a cor de borra de vinho da terra se confronta
violentamente com o amarelo sujo do trigo.
Mas nenhum outro pintor17, a no ser Van Gogh, saberia encontrar, para
pintar seus corvos, esse negro de trufas, esse negro de "rico festim" e, ao mesmo
tempo, como que excremencial das asas18 dos corvos surpreendidos pelo claro
descendente do crepsculo.
E, embaixo, de que se queixa a terra sob as asas dos corvos faustos, faustos
apenas para Van Gogh, sem dvida e, por outro lado, faustoso augrio de um
mal que j no o atingir?
Pois ningum, at ento, havia como ele transformado a terra19 nessa roupa
suja retorcida de vinho e empapada de sangue.
16. Quando ns acompanhamos A. A. a Orangerie, uma falsa recordao fez com que chams-
semos "O Pai Tanguy" (n 71 do catlogo, tela 0,92 x 0,73, Perodo de Paris, Museu Auguste Rodin,
Paris) de O Pai Tranqilo. Quando ele nos ditou essa passagem, ns assinalamos nosso erro. Ele nos
respondeu que ela no era desprovida de sentido e que a denominao Pai Tranqilo convinha, de
qualquer modo, ao personagem tal como foi pintado por Van Gogh e que queria mant-la.
17. Nenhum outro pintor... (Q e (A). Como a impresso das primeiras provas trazendo as corre-
es de A. A. foram conservadas, fcil deduzir que as outras modificaes em seu texto foram feitas
por ocasio das segundas provas, tais como esto aqui. Como a maioria das correes foi feita por oca-
sio das segundas provas, por necessidade de simplificao mencionaremos apenas quando elas estive-
rem presentes desde as primeiras provas.
A tela descrita aqui , evidentemente, a obra talvez mais clebre de Van Gogh: Campos de Trigo com
Corvos (n 172 do catlogo, tela 0,505 x 1,05, Auvers, julho 1890, coleo V. W. Van Gogh, Laren).
18. ...de trufas, este negro como que excremencial das asas... (C) e (A)
19. Ningum at a havia transformado a terra... (Q e (A)
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 265
Uma lamparina acesa sobre uma cadeira, uma poltrona de palha verde
tranada,
um livro sobre a poltrona,
e eis o drama revelado.
Quem vai entrar?
Ser Gauguin ou algum outro fantasma?
20. ...e que a pintura, sem recorrer jamais a. anedota,... (C) e (A)
266 LINGUAGEM E VIDA
gerie (n 122 do catlogo, tela 0,375 x 0,325, Aries, novembro de 1888, coleo V. W. Van Gogh,
Laren).
26. A lio do manuscrito d: Se Van Gogh no tivesse morrido aos 37 anos eu no recorreria
grande carpideira... O fato de A. A. ter ditado o presente - eu no recorro, mais afirmativo, indica que
ele quis empregar essa no-recorrncia como certeza. Portanto, a proposio introduzida por se no
condicional, mas sim uma interrogao absoluta. Parece provvel, portanto, que ele tenha ditado um
ponto de interrogao e no uma vrgula ao final desta proposio, pontuao que no foi transporta-
da corretamente em (Q porque mal compreendida pela copista.
27. ...que, h dois dias de sua morte, passou a chamar-se, humanamente falando, o doutor Gachet,
psiquiatra, e que foi a causa direta... (Q
28. ..a doena e que assim fomentou sua guarda sua para lutar contra este impulso de liberao
reivindicatria que est na origem do gnio. {)
268 LINGUAGEM E VIDA
O doutor Gachet no dizia a Van Gogh que estava ali para consertar sua
pintura (como me disse o doutor Gaston Ferdire, mdico chefe do manicmio
de Rodez, que estava ali para consertar minha poesia), mas o mandava pintar ao
vivo, enterrar-se numa paisagem para fugir ao mal de pensar.
No entanto, a partir do momento em que Van Gogh virava a cabea, o
doutor Gachet lhe fechava o interruptor do pensamento.
Como se no estivesse fazendo por mal, mas com um daqueles franzires
de nariz depreciativos de um algum andino, onde todo o inconsciente bur-
gus da terra inscreveu a velha fora mgica de um pensamento cem vezes re-
calcado.
Ao proceder assim, no era apenas o malefcio do problema que o doutor
Gachet lhe proibia,
mas a semeadura sulfurosa,
o terror do prego girando na garganta da nica passagem,
com que Van Gogh,
tetanizado,
Van Gogh, desestabilizado sobre o redemoinho da respirao,
pintava.
Pois Van Gogh era29 uma terrvel sensibilidade.
Para se convencer disso, basta olhar seu rosto, sempre como que ofegante
e tambm, sob certos ngulos, enfeitiante, de aougueiro.
Como o de um antigo aougueiro tranqilizado e agora aposentado dos
negcios, este rosto30 mal iluminado me persegue.
Van Gogh representou a si mesmo numa grande quantidade de telas e, por
mais bem iluminadas que fossem, sempre tive a penosa impresso de que as
haviam obrigado a mentir sobre a luz, que se havia roubado a Van Gogh uma
luz indispensvel para que ele cavasse e traasse em si seu caminho.
E este caminho, no era o doutor Gachet, sem dvida, o mais capaz de
indic-lo.
Mas, como disse, h em todo psiquiatra vivo um repugnante e srdido
atavismo que faz com que ele enxergue em cada artista, em todo gnio sua
frente, um inimigo.
E eu sei que o doutor Gachet deixou na histria, diante de Van Gogh,
de quem ele tratava e que acabou por suicidar-se em sua casa, a lembrana
de seu ltimo amigo na face da terra, de uma espcie de consolador provi-
dencial.
29. ...para fugir ao mal de pensar. At aqui est perfeito e no h nada a reprovar, trata-se mesmo de
uma teraputica altamente concebida e admiravelmente aplicada. Mas Van Gogh era... (Q
30. ..aposentado dos negcios, resguardado, por assim dizer, arrancando enfim a circulao, este
rosto... (C)
VAN GOGH. O SUICID A D o DA SOCIEDADE 269
Penso, entretanto, mais que nunca, que foi ao doutor Gachet, de Auvers-
sur-Oise, que Van Gogh deveu, naquele dia, o dia em que se suicidou em Au-
vers-sur-Oise,
deveu, digo, deixar a vida -
pois Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior, o que lhe
permite, em todas as circunstncias, enxergar mais longe, infinita e perigosamente
mais longe que o real imediato e aparente dos fatos.
Quero dizer, da conscincia que a conscincia tem por hbito guardar deles.
No fundo de seus olhos", como que depilados de aougueiro, Van Gogh
se entregava ininterruptamente a uma dessas operaes de alquimia sombria que
tomaram a natureza por objeto e o corpo humano32 por vasilhame ou crisol.
E sei que o doutor Gachet sempre achou que isto o fatigava.
O que no era nele resultado de um simples cuidado mdico,
mas a confisso de uma inveja to consciente quanto inconfessada.
Pois Van Gogh tinha chegado a esse estgio do iluminismo onde o pensa-
mento em desordem reflui diante das descargas invasoras
e onde pensar j no consumir-se,
e j no ,
e onde nada mais resta seno juntar corpos, quero dizer,
AMONTOAR CORPOS.
Mas quem poderia sonh-las mais duras sob o golpe do cepo em carne viva
que arrancou deles o impenetrvel estremecimento?35
No, doutor Gachet, uma tela nunca cansou ningum. So foras de fu-
rioso, que repousam sem suscitar o movimento.
Eu tambm sou como o pobre Van Gogh: no penso mais, mas dirijo cada
dia mais de perto enormes ebulies internas e gostaria de ver um terapeuta
qualquer vir me repreender por eu me cansar.
35. Mas quem poderia sonh-las mais duras sob o golpe do sepo em carne viva que arrancou deles o
movimento?
36. ...uma m vontade inteligente e combinada (C)
37. O Retrato do Dr. Gachet exposto na Orangerie (n 141 do catlogo) era uma gua-forte
(0,175 x 0,145, Auvers, maio 1890, Cabinet des Estampes, Amsterd). A. A. alude aqui ao Retrato do
Dr. Gachet (tela 0,66 x 0,57), junho 1890, Frankfurt-sur-le-Mein, Stadelsches Kunstinstitut), cuja repro-
duo em cores figura em Viccnt Van Gogh (Edies do Phaidon, Viena, 1937.), rplica ligeiramente di-
ferente daquele que est exposto no Museu do Louvre (tela, 0,68 x 0,57, princpio de junho de 1890).
38. ...sem ao mesmo tempo exigir socialmente a ordem das coisas indispensvel a expanso... (Q
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE
41. A. A. ditou assim: ...que a terra tem necessidade dele para pegar fogo da cabea aos ps. Expres-
so que vem reforar nossa convico de que mesmo o mundo que devia ser recomposto no super-aque-
cimente do crisol (cf. nota 40). Alm disso, esta lio est muito prxima da lio inicial (cf. p. 181, 4o
pargrafo): ...que a terra teria, um belo dia, pegado fogo da cabea aos quatro ps. Ora, um erro de trans-
crio havia dado em (C): ...para pegar voto da cabea e dos p. Erro corrigido em (K) pela simples su-
presso do termo falho: ...para fazer da cabea aos ps. Lio ainda mantida por ocasio da correo das
primeiras provas (prova impressa dessa passagem foi conservada) e que ser modificada na poca das se-
gundas provas para ...para dar coices com a cabea e os ps.
42. ...da precesso dos equincios atravs deste acolchoado. (C) e (A)
43. ...de seu leito, pela pequena insurreio... (C)
44. ..jtps o trabalho, tambm por causa deste sol fixado... (C) e (K)
45. A lio da edio K d aqui: ...l embaixo, ao fundo dessa enorme massa de terra... Lio que
no corresponde quela que foi ditada, mas que o copista transcreveu esquecendo de colocar certas
pontuaes: l embaixo, ao fundo, diante dessa enorme massa de terra... (Q e (/). O exame da prova im-
pressa conservada desta passagem mostra-nos que foi o impressor que, em razo deste esquecimento de
pontuao, deve ter acreditado em um erro de impresso da copista e tomado a iniciativa de substituir
diante por de.
Ora, se olharmos atentamente os trs quadros de Van Gogh descritos aqui por A. A., percebe-
mos que diante realmente a lio correta. Esses trs quadros so: Quarto de Dormir de Van Gogh em
Aries (n 152 do catlogo da exposio, tela 0,72 x 0,90, Saint-Rmy, setembro de 1889, coleo de V.
W. Van Gogh, Laren); A Ponte do Ingls em Aries (situada erroneamente em Auvers-sur-Oise), sendo
que A. A. utilizou para descrever o quadro exposto na Orangene (n 109 do catlogo, tela, 0,525 x
0,65, Aries, maro-abril 1888, Ryksmuseum Krller-Mller) a reproduo em cores de uma aquarela
da qual ele a rplica e que ele olhava enquanto ditava esta passagem (0,30 x 0,30, maro de 1988, Ber-
lim, Baron von Simolin), que em Vicent Van Gogh (Ed. do Phaidon, op. cit) est em frente a uma re-
produo em negro e branco do terceiro quadro descrito: Ia Roubine du Roi (tela 0,73 x 0,60, junho de
1888, Hamburgo, Kunsthalle), quadro que no figurava na exposio. E neste ltimo quadro que se
VANGOGH, O SUICIDADO DA SOCIEDADE 273
o vio profe
o vio proto
o vio loto
o thth
pode ver ao fundo aponta de um campanrio, com um sol atrs que pode, com efeito, parecer parafusa-
do; e na frente uma massa avana em direo ao olho que olha, uma massa de gua, aquela da roubine
que, por efeito do negro e branco, pode tambm ser vista como uma massa enorme de terra, uma esp-
cie de terra lamacenta, lquida, qual A. A. devolve sua liquidez no final da frase: ...que, no primeiro
plano da msica, procura a vaga onde se congelar.
O que desenhar? Como que se chega a isso? E a ao de abrir uma passagem
atravs de um muro de ferro invisvel, que parece se encontrar entre o que se sente
e o que se pode. Como se deve atravessar esse muro, pois de nada serve golpe-lo
fortemente; deve-se minar esse muro e atravess-lo com o auxilio de uma lima, len-
tamente e com pacincia, a meu ver46.
8 de setembro de 1888
No meu quadro Caf Noite, procurei expressar que o caf um lugar onde
possvel arruinar-se, ficar louco, cometer crimes. Enfim, procurei, atravs de con-
46. Ao ditar este texto A. A. tinha feito uma indicao para que se reservasse aqui uma ou vria
pginas nas quais ele queria inserir excertos da correspondncia de Van Gogh. Dentre as cartas que le-
mos para ele na obra citada - Cartas de Vinccnt Van Gogh a seu irmo Tho -, escolheu:
Io um excerto da cana de n 237, no datada, mas escrita de La Haye em 1882-1883. 2o um ex-
certo da carta de n 534, escrita de Aries em 8 de setembro de 1888; 3o a carta de n 651 escrita de Au-
vers-sur-Oise em 23 de julho de 1890. A seu pedido, ns copiamos novamente esses dois excertos e essa
carta em duas folhas separadas, que remetemos em seguida ao editor K. Este, providenciando a datilo-
grafia da carta para imprimi-la, infelizmente inverteu a ordem das cartas e disps sua cpia de tal
modo que o excerto no datado da carta 237 foi impresso em seguida ao excerto da carta 651, de modo
que o leitor tinha a impresso que esses dois excertos eram uma nica carta datada de 8 de setembro de
1888. Alm disso, a indicao colocada por A. A. nas primeiras provas, pedindo o itlico para as cartas
de Van Gogh, no foi respeitada.
VAN GOGH, O SUICIDADO DA SOCIEDADE _275
trastes de rosa esmaecido e vermelho sangue e borra de vinho, de suave verde Lus
XV, e veronese, contrastando com os verde-amarelos e os verde-azuis duros, tudo
isso numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre plido, exprimir como que o
poder das trevas de uma tabema. E no entanto, sob uma aparncia de graa japonesa
e a bonomia do Tartarin...
23 de julho de 1890
Talvez voc veja este croqui do jardim de Daubigny - uma de minhas telas
mais queridas -, junto a ele um croqui de velhas palhas e os croquis de duas telas de
trinta representando imensos trigais depois da chuva...
O jardim de Daubigny - primeiro plano de grama verde e rosa. A esquerda
um arbusto verde e lils e um tronco com folhagens esbranquiadas. No meio um
canteiro de rosas, direita uma cerca, um muro e, acima do muro, uma aveleira
de folhagem violeta. Depois uma moita de lilases, uma fileira de tlias amarelas
arredondadas, a prpria casa ao fundo, rosa, com um telhado de telhas azuladas. Um
banco e trs cadeiras, uma figura negra com chapu amarelo e em primeiro plano
um gato preto. Cu verde-plido.
Como parece fcil escrever assim.
Pois bem, tentem ento e me digam se, no sendo o autor de uma tela de
Van Gogh, vocs poderiam descrev-la to simplesmente, secamente, objetiva-
mente, duradouramente, validamente, solidamente, opacamente, maciamente,
autenticamente e milagrosamente quanto nesta pequena carta47 dele.
(Pois o critrio, prego separativo, no uma questo de amplitude ou de
contrao, mas de simples fora48 pessoal do punho.)
Portanto no descreverei um quadro de Van Gogh depois de Van Gogh,
mas direi que Van Gogh pintor porque recoletou a natureza, porque como
que a retranspirou e fez suar, porque a aspergiu em feixes sobre suas telas, em
conjuntos monumentais de cores, a secular triturao de elementos, a pavorosa
presso elementar de apstrofes, de estrias, de vrgulas, de barras, das quais, depois
dele, no se pode mais acreditar que os aspectos naturais no sejam feitos.
47. A expresso pequena carta remete cora muita preciso breve cana de 23 de julho de 1890,
o que a disposio da edio K no permite compreender.
48. ...de amplitude ou de penetrao, mas de simples fora... (C)
49. Quantas cotoveladas reprimidas... (Q
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 277
50. Preferimos aqui voltar lio do manuscrito. Com efeito, o copista transcreveu por engano
em (Q correntes luminosas onde a lio inicial d as correntes luminosas. O editor acreditou que corren-
tes luminosas tinha a mesma funo que cotoveladas, choques e pestanejos e, em conseqncia, acrescen-
tou uma vrgula depois de realidade. A frase tornou-se ento incompreensvel; as correntes luminosas
na lio da edio K perdiam sua funo de sujeito de tiveram que derrubar.
51. ...da baste de um trigal que est l, prestes a ser extrado. (C)
Assinalamos aqui, como tambm algumas linhas a seguir, que a lio do manuscrito haste
(plant). A copista havia transcrito por engano plano em (Q. Ao corrigir seu exemplar, A. A. restabele-
ceu o final, correo que o editor j tinha transportado para (A), pensando provavelmente, de forma
incorreta, que a ortografia correta era plano, e que Artaud havia suprimido posteriormente o t que ele
acabara de acrescentar. O que faz com que a edio K traga por duas vezes a lio incorreta plano
(plan).
52. A. A. faz aluso aqui ao quadro intitulado Campos de Trigo (n 57 do catlogo, tela 0,54 x
0,645, Perodo de Paris, Coleo V. W. Van Gogh, Laren).
53. ...como no sei que motetes de uma inenarrvel msica antiga... (C) e (A)
278 ^ LINGUAGEM E VIDA
54. A. A. faz aluso aqui, muito provavelmente, a uma obra de Van Gogh que havia gravado es-
pecialmente em razo de seu enorme sol irradiante ao infinito em Vincent Van Gogh (Edies do Phai-
don, op. cit): As Santas Marias ([roseau] 0,43 x 0,60, Berlim, Coleo Sra. Margarete Mauthner).
55. A lio do manuscrito, que preferimos seguir, : esta sensao de oculto estrangulada. Por cau-
sa de um acordo incorreto, encontra-se tanto em (C) como em (K): esta sensao de oculto estrangulado.
E provvel que aqui o impressor tenha acreditado que se tratava de um erro de impresso, que ele cor-
rigiu de maneira interpretativa, o que o levou a esta lio errnea da edio K: esta sensao de oculta es-
tranheza.
56. Cf nota 16, p. 262.
57. Na realidade, no quadro de Van Gogh Os Aliscamps (n 120 do catlogo, tela, 0,71 x 0,91,
Aries, novembro de 1888, Ryksmuseum Krller-Mller), o homem de costas no est especialmente
curvado e usa seu guarda-chuva como uma bengala.
58. A lio da edio K reproduz aqui o demonstrativo [ces], certamente incorreto, de (Q; ns
restabelecemos o possessivo [ses] da lio manuscrita.
59. Campo sob um Cu Tempestuoso (n 170 do catlogo, tela, 0,50 x 1,00, Auvers, julho de
1890, Coleo V. W. Van Gogh, Laren).
60. Aqui um possessivo incorreto [ses] que (C) apresenta: a lio manuscrita d um demonstra-
tivo [ces], mas o erro foi corrigido em (K), que transforma esse possessivo em [des].
61. ...inclina esquerda mais que a direita...(Q
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 279
62. E no foi talvez culpa de Van Gogh que a cor do acolchoado de sua cama era na realidade to
perfeita, mas no creio, e no vejo que tecelo teria podido transplantar, da tela de Van Gogh para a reali-
dade, sua inenarrvel tempera... (C) e (K)
63. A. A. ditou assim: puta maria (maric) que , alm disso, a lio do manuscrito, precisando
que no era necessrio maiscula para maria, que se tornava assim uma espcie de adjetivo ambguo.
Foi isto que a copista transcreveu em (Q, mas confusa, acreditando sem dvida que se tratava de um
erro de ortografia, corrigiu em seguida sua datilografia acrescentando um r suplementar: arrependida
(marrie). O editor, retornando a (K) antes de pass-lo ao impressor, percebeu que arrependida (marric)
devia ser um erro, pois ele havia cercado essa palavra com um trao de lpis e marcado a linha na mar-
gem a fim de pedir esclarecimentos a A. A., que deve ter-lhe dito ento que a lio correta era o nome
da virgem. Foi nesse momento, sem dvida, que a palavra foi colocada entre colchetes e que, reescre-
vendo- sobre a palavra datilografada, o editor a dotou de uma maiscula, que no podemos saber se
foi ou no indicada por A. A.
64. Este pargrafo no existe nem em (Q nem em (K). Foi certamente acrescentado por A. A.
quando ele corrigia as segundas provas, mas parece que o lugar onde ele devia ter intercalado no foi
bem compreendido pelo impressor. A ordem inicial dos pargrafos nesta passagem se apresenta assim
em (C) e (K):
Uma vez, isto resulta...
Este quarto...
H aqueles brancos...
Ora, na edio K, depois do acrscimo desse pargrafo, encontra-se a seguinte ordem:
Uma vez, isto resulta
Este quarto...
Uma outra vez...
H aqueles brancos
Esta ordem levou a uma total desarticulao do texto, da qual o impressor parece ter se dado
conta, pois sentiu necessidade de colocar entre parnteses o pargrafo: Este quarto... Alm disso, o pa-
rgrafo: H aqueles brancos... foi impresso de modo bizarro, em caracteres muito pequenos, no alto de
uma pgina. A ordem que seguimos nos parece mais lgica. No quebra a ordem inicial do texto nem
280 LINGUAGEM E VIDA
Este quarto, com sua parede branca de prolas claras, da qual pende uma
spera toalha de rosto, como um velho amuleto campons, inacessvel e recon-
fortante, fazia pensar na Grande Obra.
H aqueles brancos de cal leves que so piores que antigos suplcios, e
jamais, em nenhuma outra tela, o velho escrpulo operatrio do pobre e grande
Van Gogh aparece como nesta.
Porque tudo em Van Gogh mesmo isso, o nico escrpulo65 do toque
surda e pateticamente aplicado. A cor plebia das coisas, mas to exata, to
amorosamente exata que no existe pedra preciosa que possa atingir sua ra-
ridade66.
Porque Van Gogh ter sido mesmo o mais verdadeiramente pintor de todos
os pintores, o nico a no querer ultrapassar a pintura67 como meio estrito de
sua obra, e mbito estrito de seus meios.
E o nico que, por outro lado, absolutamente o nico que ultrapassou
absolutamente a pintura, o ato inerte de representar a natureza para, nesta repre-
sentao exclusiva da natureza, fazer jorrar uma fora giratria, um elemento
arrancado em pleno corao.
Ele fez, sob a representao, brotar um ar, e nele encerrou um nervo68,
que no esto na natureza, que so de uma natureza e de um ar mais verdadeiros
que o ar e o nervo da verdadeira natureza.
interrompe a descrio do quadro Quarto de Dormir de Van Cogh em Aries (cf. nota 45, p. 270). Com
efeito, no pargrafo Este quarto... trata-se de um branco de prolas claras que lembra H aqueles brancos
de cal leve... Alm disso, est bem precisado neste pargrafo que se trata da mesma obra: como nesta
tela.
Articulao que prossegue no pargrafo seguinte: o velho escrpulo operatrio/ Porque tudo em
Van Gogh mesmo isso, o nico escrpulo...
O pargrafo que foi acrescentado durante as provas remete ao quadro Os Moinhos de Provena
(n 105 do catlogo, tela 0,73 x 0,92, Aries, junho de 1888, Ryksmuseum Krller-Mller).
65. Em (C) a copista repetiu por distrao tudo: Porque tudo em Van Gogh mesmo isso tudo, o
nico escrpulo..., erro no corrigido em (A), mas que o foi por ocasio da reviso dos originais. Ora, a
supresso do tudo no deve ter sido feita de modo correto na impresso, pois a lio da edio (K) d:
Porque Van Gogh mesmo isso tudo, o nico escrpulo... e ns preferimos voltar lio do manuscrito:
tudo em Van Gogh..., pois parece evidente que o nico escrpulo que tudo em Van Gogh. Assinala-
mos que a lio manuscrita o insigne escrpulo e que encaramos a possibilidade de uma m transcri-
o em (C) ou aquela de A. A. relendo mal seu prprio texto. Mas bem possvel que A. A. tenha
mudado o adjetivo por ocasio do ditado, nico reforando raridade, da prxima frase.
66. A lio da edio K reproduz aquela de (C) e (K) ...que no existem pedras preciosas que pos-
sam atingir sua raridade. Como o plural pode ser um erro de transcrio, preferimos restabelecer o sin-
gular da lio manuscrita.
67. ...o nico que no ultrapassou a pintura... (C) e (K):
68. Aqui h erros de impresso na edio K.
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 2iU
69. Van Gogh pintou girassis vrias vezes. Na Orangerie esto expostas: Flores de Girassis (n
78 do catlogo, tela, 0,50 x 0,97, Perodo de Paris, Ryksmuseum Krller-Mller); O Jardim com Giras-
sis (n 91 do catlogo, [encre de chine, rosea], 0,61 x 0,49, Aries, agosto de 1888, coleo V. W. Van
Gogh, Laren). Alm disso, nas duas obras citadas que A. A. consultava freqentemente, estavam re-
produzidas as seguintes obras: Os Girassis (tela, 0,93 x 0,73, Aries, agosto de 1888, National Gallery,
Londres); Girassis (tela, 0,91 x 0,72, Aries, agosto de 1888, Neue Staatsgalerie, Munique).
A lio da edio K reproduz o demonstrativo certamente incorreto de (C): esses girassis...; nos
restabelecemos o possessivo da lio manuscrita.
70. Aluso a Crau, vista de Montmajour (n 86 do catlogo, bico de pena, 0,48 x 0,60, Aries,
maio de 1988, coleo V. W. Van Gogh, Laren).
O plural da edio K: brancas, reproduz um erro da transcrio em (C), no corrigido. Ns res-
tabelecemos o singular da lio manuscrita.
282 LINGUAGEM E VIDA
Pintor, nada alm de pintor, Van Gogh pegou os recursos da pura pintura
e no os ultrapassou.
O que quero dizer que, para pintar, ele serviu-se apenas dos recursos que
a pintura lhe oferecia.
Um cu tempestuoso,
uma plancie branca como cal,
telas, pincis, seus cabelos vermelhos, tubos, sua mo amarela, seu cavalete71,
ainda que todos os lamas do Tibete, reunidos, sacudam sob suas saias o
apocalipse que tiverem preparado,
Van Gogh nos ter feito pressentir por antecipao seu perxido de azoto
numa tela que contm dose suficiente de sinistro para obrigar-nos a nos orientar.
Isto fez com que um dia ele decidisse no ultrapassar o tema,
porm, quando se v um Van Gogh, no se pode mais acreditar que haja
algo menos supervel que o tema.
O simples tema de uma lamparina acesa sobre uma poltrona de palha de
estrutura violcea72, nas mos de Van Gogh, diz muito mais que toda a srie de
tragdias gregas ou de dramas de Cyril Tourneur, de Webster ou de Ford que,
alis, at hoje no foram encenados.
kohan
taver
tensur
purtan73
num incndio,
num bombardeio,
numa exploso,
vingadores daquela pedra de amolar que o pobre Van Gogh, o louco, car-
regou no pescoo a vida inteira.
A amolao de pintar sem saber para qu74 nem para onde.
71. Aluso ao Retrato de si mesmo, no cavalete (n 77 do catlogo, tela, 0,65 x 0,505, Paris, 1888,
Coleo V. W. Van Gogh, Laren).
72. A Poltrona de Gauguin (cf. nota 25, p. 266).
73. A lio da edio K: Entretanto (pourtant), incorreta. Era relao aos elementos glossolli-
cos que A. A. introduz em seus textos, indicamos a maneira como ele os pronunciava. O era pro-
nunciado como ou, o que explica que no ditado a ltima linha tinha sido transcrita pourtan, transcrio
que se repete em (Q e (K). Foi certamente durante a impresso que um final foi indevidamente acres-
centado. Preferimos, como em todos os outros casos duvidosos, retornar lio manuscrita.
74. Restabelecemos tambm aqui a lio do manuscrito que d claramente para que ipourquo) e
no, como na edio K, porque (pourquoi).
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 283
75. O mesmo acontece aqui, onde o copista transcreveu erroneamente em (Cj: ... bramimos o
horror de fome,... erro no corrigido em (A) e que repercutiu na edio K.
284 LINGUAGEM E VIDA
78. ...a pralina natural... (Q e (A). Colocao entre parnteses do adjetivo, realizada durante as provas.
79. A edio K reproduz aqui o plural da transcrio da copista em (C): ...macacos covardes e ca-
chorros molhados.... Pareceu-nos prefervel restabelecer o singular da lio manuscrita, sobretudo por-
que A. A. usa freqentemente o termo macaco para designar aquilo que alguns dizem ser deus.
286 LINGUAGEM E VIDA
Um dia a pintura de Van Gogh armada e com febre e com boa sade
voltar para lanar no ar a poeira de um mundo enjaulado que seu corao
no podia mais suportar.
POST-SCRIPTUM
As oliveiras de Saint-Rmy
80. O Post-Scriptum foi ditado a partir de diversos textos escritos entre 15 e 28 de fevereiro de 1947.
Para Campos de Trigo com Corvos, cf. nota 17, p. 264.
81. ...aquele que nos espiona, mas como... (C) e (K).
82. ...como uma srie de golpes de raspador (expresso: invectivas)... (Q e (K).
83. ...intando-os a mais decncia, e que quis dizer... (Q e (K)
84. Pargrafo acrescentado por ocasio da correo da segunda prova.
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 287
O cipreste solar85.
O quarto de dormir.
A colheita de azeitonas.
Os Aliscamps.
O caf de Aries.
85. Nem todas as telas enumeradas nesta passagem figuravam na exposio da Orangerie. Alm
daquelas que j assinalamos - Quarto de Dormir de Van Gogh em Aries, Os Aliscamps - as outras so:
Campos de Oliveira: duas verses estavam expostas (n 148 do catlogo, tela 0,71 x 0,90, Saint-Rmy,
setembro/outubro de 1889, Ryksmuseum Krller-Mller, e n 151, tela, 0,71 x 0,90, Saint-Rmy, se-
tembro/outubro de 1889, Ryksmuseum Krller-Mller); numa dessas telas esto, alis, um homem e
uma mulher colhendo azeitonas;
Caf a Tarde (n 110 do catlogo, tela, 0,79 x 0,63, Aries, setembro de 1888, Ryksmuseum Krl-
er-Mller).
A Colheita de Azeitonas (tela 0,73 x 0,92), Saint-Rmy, dezembro de 1889, coleo Chester-Dale,
Nova York), que no estava exposta, mas cuja reproduo se encontra em Van Gogh (Ed. Pierre Tisn,
op. cit.)
No que diz respeito obra que A. A. chama aqui de cipreste solar, e qual ele deu sua exata de-
signao no texto manuscrito a partir do qual ditou esta passagem, trata-se de uma obra no exposta na
Orangerie, mas cuja reproduo se encontra em Vicent Van Gogh (Ed. Phaidon, op. cit), obra da qual
ele gostava especialmente: Cipreste sob a Lua (encre de Chine, 0,47 x 0,625, junho de 1889, Kunsthalle,
Brme), cuja verso sobre tela chamada de Noite Estrelada. E verdade que as estrelas que rolam em
turbilhes no cu podem parecer uns tantos sis. E preciso, entretanto, indicar que na Orangerie esta-
va exposto O Caminho de Ciprestes (n 162 do catlogo, tela, 0,91 x 0,71, Saint-Rmy, maio de 1890,
Ryksmuseum Krller-Mller), onde um enorme cipreste numa posio intermediria separa o sol de-
scendente da lua ascendente.
86. Retrato do Artista (n 70 do catlogo da exposio, tela, 0,44 x 0,375, Paris, por volta de
1887, Coleo V. W. Van Gogh, Laren). O chapu mole , na realidade, um chapu de palha.
LINGUAGEM E VIDA
Pintada por Van Gogh extralcido, aquela cara de aougueiro ruivo, que nos
inspeciona e espia, que nos escruta tambm com um olho de soslaio. No conheo
um nico psiquiatra que saiba escrutar um rosto de homem com uma fora to
esmagadora e dissecar como que no trinchante sua irrefragvel psicologia.
O olho de Van Gogh de um grande gnio, mas maneira pela qual eu
o vejo dissecar-me a mim mesmo do fundo da tela de onde surgiu, no mais
o gnio de um pintor que sinto naquele momento viver nele, mas aquele de um
certo filsofo que jamais encontrei na vida.
No, Scrates no tinha esse olho, talvez antes dele, apenas o infeliz Nietzs-
che tivesse esse olhar que despe a alma, livra o corpo da alma, pe a nu o corpo
do homem, fora dos subterfgios do esprito.
O olhar de Van Gogh est suspenso, fixo, vidrado por trs de suas plpebras
raras, suas sobrancelhas magras e sem uma ruga sequer.
um olhar que penetra diretamente, ele traspassa naquela cara talhada a
foice como uma rvore bem esquadriada.
Porm Van Gogh captou o momento em que a pupila vai deitar no vazio,
onde este olhar, dirigido contra ns como a bomba de um meteoro87, toma
a cor tona do vazio e do inerte que o preenche.
Melhor que qualquer psiquiatra deste mundo, foi assim que Van Gogh
situou sua doena.
Perfuro, retomo88, inspeciono, engancho, desprego, minha vida morta nada
contm, e o nada, alm do mais, nunca fez mal a ningum, o que me fora a
voltar para dentro esta ausncia desoladora que passa e me submerge por alguns
instantes, mas vejo claro nela, muito claro, at mesmo o nada eu sei o que , e
poderei dizer o que tem dentro.
E ele, Van Gogh, tinha razo, pode-se viver para o infinito, s se satisfazer
com o infinito, h sobre a terra e nas esferas infinito suficiente para saciar mil
grandes gnios, e se Van Gogh no pde satisfazer seu desejo de com ele irradiar
sua vida inteira, porque a sociedade proibiu-lhe isto.
Proibiu terminante e conscientemente.
Houve um dia os executores de Van Gogh, como houve aqueles de Grard
de Nerval, de Baudelaire, de Edgar Poe e de Lautramont.
87. um dos pontos onde lamentvel que no possamos consultar o exemplar datilografado
corrigido por A. A. e retido pela senhora Kiesler. A lio de (C) d: onde esse olhar dirigido contra ns
estoura a bomba de um meteoro... O editor, voltando a correo de A. A. feita no exemplar destinado
impresso, riscou estoura e escreveu por cima como. Pode-se perguntar se essa correo foi bem com-
preendida e se no se tratava simplesmente de um esquecimento do advrbio pelo copista, advrbio re-
colocado sem que o verbo fosse suprimido: estoura como a bomba de um meteoro,...
88. (C) traz aqui torno a perder (je reperds), e temos o direito de perguntar se no se trata de uma
transcrio errnea, e se A. A. no havia ditado: eu determino (je repre). De todo modo, foi por ocasio
das primeiras provas que ele prprio corrigiu esta m transcrio por eu retomo (forma conservada).
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 289
Agora chega, Van Gogh, j para o tmulo, estamos cheios do seu gnio;
quanto ao infinito, para ns o infinito.
Pois no foi de tanto buscar o infinito que Van Gogh morreu,
que se viu obrigado a sufocar de misria e de asfixia,
foi de tanto ver-se recusado pela turba de todos aqueles que, quando ele
ainda estava vivo, acreditavam deter o infinito contra ele;
e Van Gogh poderia ter encontrado infinito suficiente para viver a vida
toda se a conscincia bestial da massa no tivesse querido apropriar-se dele para
alimentar suas prprias bacanais, que jamais tiveram alguma coisa a ver com a
pintura e a poesia.
POST-SCRIPTUM