ARTAUD - Linguagem e Vida PDF

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Coleo: Perspectivas

Direo: J. Guinsburg
Assessoria Editorial: Plnio Martins Filho
Traduo: J. Guinsburg, Silvia Fernandes, Regina
Corra Rocha e Maria Lcia Pereira
Reviso de Texto: J. Guinsburg e Srgio Slvia Coelho
Reviso de Provas: Afonso Nunes Lopes
Produo: Ricardo W. Neves
Ilustraes: caro Yamin
Projeto Grfico e Capa: Adriana Garcia
EDITORA PERSPECTIVA

LINGUAGEM E VIDA
antonin artaud

Organizao
J- Guinsburg, Slvia Fernandes Telesi e
Antnio Mercado Neto
o do original em francs
res Completes

'right 1970 by Editions Gallimard

:os em lngua portuguesa reservados


ORA PERSPECTIVA S.A.
irigadeiro Lus Antnio, 3025
-000 - So Paulo - SP - Brasil
(011) 885-8388
pi!) 885-6878
SUMRIO

Nota de Edio 9
Prefcio - Slvia Fernandes e /. Guinsburg 11

No TEATRO 23

A Evoluo do Cenrio 25
O Teatro Alfred Jarry 29
Teatro Alfredjariy (11) 33
Manifesto por um Teatro Abortado 37
O Sonho de Strindberg 41
O Teatro Alfred Jarry em 1930 43
Projeto de Encenao para A Sonata dos Espectros de Strindberg 59
Conferncia Apcrifa 67
O Teatro e a Psicologia - O Teatro e a Poesia 71
O Teatro, Antes de Tudo, Ritual e Mgico 75
Carta a UIntransigeant 77
O Teatro que Vou Fundar 79
Carta Comoedia (18-9-32) 81
A Mareei Dalio (27-6-32) 85
Ao Senhor Van Caulaert (6-7-32) 89
Ao Senhor Van Caulaert ou Sr. Fouilloux (Projex de Carta) (8-7-32) 91
LINGUAGEM E VIDA

A Andr Rolland de Renville (13-7-32) 93


A Andr Rolland de Renville (26-7-32) 97
A Gaston Gallimard (Projeto de Carta) (11-8-32) 99
A Andr Gide (20-8-32) 101
A Jean Paulhan (12-9-32) 103
A Andr Rolland de Renville (13-9-32) 105
Correspondncia (4-3-33) 107
A Andr Rolland de Renville (8-4-33) 111
A Orane Demazis (30-12-33) 115
A Andr Gide II (10-2-35) 121
A Jean-Louis Barrault (14-6-35) 125
A Jean Paulhan (25-1-36) 127
Teatro Sarau Deharme 129
Ao Administrador da "Comdie-Franaise" (21-2-25) 131
ALouisJouvet (27-4-31) 133
A RenDaumal (Rascunho de Carta) (14-7-31) 137
ALouisJouvet(2-8-[28e33]) 141
ALouisJouvet (20-10-31) 143
A Jean Paulhan (Rascunho de Carta) (29-1-32) 147
Maurice Maeterlinck 151

No CINEMA 155

A Concha e o Clrigo (Roteiro de um Filme) 157


Resposta a uma Pesquisa 169
Feitiaria e Cinema 171
Distino entre Vanguarda de Contedo e de Forma 175
O Cinema e a Abstrao 177
A Concha e o Clrigo (II) 179
A Velhice Precoce do Cinema 181
Os Sofrimentos do Duhbing 185

NA PINTURA 189

Uccello o Plo 191


A Bigorna das Foras 193
O Autmato Pessoal 197
Texto Surrealista 203

NA POESIA 205

O Umbigo dos Limbos 207


O Pesa-Nervos 209
SUMRIO

Quem, no Seio 213


Carta Vidente 219
Helosa e Abelardo 223
O Claro Abelardo 227
A Vidraa do Amor 231
Excurso Psquica 237
Rimbaud & os Modernos 241
Um Pintor Mental 243
A Arte Suprema 245
Na Luz da Evidncia 247
Sobre o Suicdio 249
Declarao de 27 de Janeiro de 1925 251
Est na Mesa 253

NA VIDA 255

Van Gogh. O Suicidado da Sociedade 257


NOTA DE EDIO

Os textos reunidos nesta coletnea provm da publicao revista e aumen-


tada das Obras Completas de Antonin Artaud pela Editora Gallimard, acompa-
nhando seus critrios, correes e notas.
Foi considerada, na ocasio da escolha dos textos, a importncia de se
publicar a totalidade dos escritos de Artaud referentes ao teatro, alm dos que
compe o conhecido O Teatro e seu Duplo, j editado no Brasil; assim como a
totalidade de seus textos surrealistas, mais raramente encontrados. Em alguns
excertos (de O Pesa-Nervos e O Umbigo dos Limbos, por exemplo) o material
selecionado pretendeu apenas apresentar o esprito que presidiu estas obras e
alguns de seus aspectos marcantes. Por outro lado, a publicao de vrias cartas,
assim como notas indicando variantes entre edies, visa explicitar ao leitor bra-
sileiro a formao do pensamento de um autor constantemente insatisfeito com
a expresso de suas idias e que se propunha a no fazer diferena entre a vida
e a arte.
PREFCIO

No belo e inteligente ensaio "Abordando Artaud", Susan Sontag aproxima-se


do poeta por meio de duas imagens. Antonin Artaud seria o heri da auto-exacer-
bao na literatura moderna e o xam a fazer uma viagem espiritual por todos ns.
Sem dvida o trao mais aparente do que se convencionou chamar de obra
de Artaud - na verdade um fluxo incandescente de energia, inteligncia e sensi-
bilidade atualizado em formas literrias mistas - a necessidade de "sair do
inferno". Mais do que a inteno de comunicar, o movimento incessante de seus
textos indica uma tentativa exasperada de auto-expresso.
Ficando apenas nas utopias mais e/identes esboadas nesta compilao - a
do teatro e da linguagem - pode-se obse/var um movimento de refluxo que as
dirige de volta para seu criador.
No por acaso a idia artaudiana de teatro a partir de certo perodo passa
a ser exercitada no prprio Artaud, em evidente tentativa de substituio da arte
pela vida.
Tambm sua concepo de linguagem evolui para chegar at mesmo con-
testao da finalidade conativa dos textos. Ao fim e ao cabo a negao por Artaud
da "palavra soprada", como a batizou Derrida, alheia ao criador porque originada
em pr-constitudo campo lingstico, termina levando ao impasse dos textos-
finais, jorros criativos estilhaados definidos por glossolalias ou pelos gritos inar-
ticulados de "Para Acabar com o Juzo de Deus".
O que subjaz a todas essas tentativas a viagem espiritual referida por
Sontag. Longe de se constituir em mergulho numa psicologia individual, a auto-
LINGUAGEM E VIDA

expresso artaudiana liga-se busca dos "princpios", espcie de prospeco da


experincia originria do ser humano sufocada pela cultura do Ocidente.
Por esse motivo escolhemos "Van Gogh. O Suicidado da Sociedade" para
fechar esta compilao. O movimento que anima "O Suicidado" est presente
na maioria dos textos deste livro: o impulso de insurreio contra a cultura
ocidental e a tentativa, incansavelmente repetida, de retorno s origens sagradas
da vida e do teatro.
Escrito em Rodez, 1947, no ltimo de doze anos consecutivos de internao
em asilos de alienados, "Van Gogh" um grito de rebelio contra a cultura
estabelecida. Artaud, tambm ele um artista enclausurado por seus comporta-
mentos anti-sociais, enxerga no pintor de Auvers-sur-Oise um duplo em genia-
lidade e loucura.
Na biografia ficcional de Van Gogh, A_taud investe em primeiro lugar
contra o discurso psiquitrico nascido, segundo acredita, para arrancar na base
o impulso de rebelio presente em todo o gnio. Tanto o gnio quanto o louco,
definidores de um alm e um aqum do humano, seriam mal aceitos por repre-
sentarem um desafio normalidade convencional. Por isso a cultura dominante,
estiolada na autoridade mdica e no discurso que a consolida, encarrega-se de
exilar em hospitais psiquitricos aqueles de quem deseja livrar-se.

E assim que a sociedade fez estrangular em seus asilos todos aqueles de que quis se
livrar ou se defender, por terem se recusado a ser cmplices em certas imensas sujeiras.
Porque um alienado tambm um homem que a sociedade no quis ouvir e a
quem ela quis impedir de dizer verdades insuportveis ("Van Gogh. O Suicidado da So-
ciedade", p. 260).

Em todo o ensaio Artaud tenta negar a loucura de Van Gogh, deslocando-a


para a sociedade responsvel por sua internao.
J nos primeiros pargrafos do texto comea por questionar o sentido da
loucura numa sociedade onde a vida se mantm "em sua velha atmosfera de
estupro, de anarquia, de desordem, de delrio, de desregramento, de loucura cr-
nica, de inrcia burguesa, de anomalia psquica [...]" (idem, p. 257).
Para Artaud o comportamento estranho de Van Gogh, em lugar de loucura,
era fruto de suprema lucidez e lhe permitia enxergar mais e melhor que seus
contemporneos. O problema que sua viso aguada no era exercitada apenas
na pintura. Contaminava sua vida. E isso os cidados de Aries no podiam to-
lerar, exigindo a internao do pintor. O impulso de rebelio, to visvel em sua
pintura, no podia inundar seu cotidiano, manifestando-se como comportamento
"inadequado" ao convvio social.
Ora, argumenta Artaud, uma personalidade de iluminado no consegue
expressar-se apenas atravs da arte. Ela precisa de certa expanso corporal e fsica,
geralmente marcada pelo excesso e pela alteridade em relao norma vigente.
Da o perigo. E a solido.
PREFACIO 13

Lendo o texto impossvel deixar de pensar na imagem de Artaud morto


aos ps da cama de seu quarto em Ivry, apertando nas mos um prosaico sapato.
A solido presente nesta morte, contra a qual ele investe durante toda a vida,
o ncleo principal de "Van Gogh", amargo retrato de um duplo exlio.

[...] Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior, o que lhe permite, em
todas as circunstncias, enxergar mais longe, infinita e perigosamente mais longe que o
real imediato e aparente dos fatos (idem, p. 269).

Essa viso prospectiva e aguada responsvel pelo desterro que os grandes


artistas costumam sofrer em vida, isolados na projeo de utopias distantes de
possibilidades imediatas de realizao.
Sobre a questo do exlio do artista interessante lembrar uma observao
de um crtico brasileiro, para quem a sociedade costuma assumir uma postura
francamente esquizofrnica ao exigir normalidade do criador ao mesmo tempo
que aceita a radicalidade da obra. "Como podem as pessoas gostar de uma obra
por uma certa coisa visvel nela e odiar essa mesma coisa quando ela se apresenta
na pessoa?"1, pergunta o autor no captulo dedicado relao entre arte e vida.
Compartilhamos dessa perplexidade. E quase impossvel no perceber
como, tanto em Artaud quanto em Van Gogh, o fermento criativo da obra o
mesmo que nutre o inconforxnismo da vida.
Mas tambm impossvel deixar de notar como a exigncia de sanidade
pode dirigir-se no apenas vida, mas tambm obra do artista. E a sade da
obra costuma ser medida pela possibilidade de viabilizar o projeto esttico, do
contrrio considerado delirante. No foi sempre este o mais forte argumento
contra o teatro da crueldade?
Se era impossvel negar existncia ao projeto desse teatro, j que ele pon-
tuava inmeras cartas, manifestos, ensaios e roteiros escritos entre 1924 e 1947,
procurou-se caracterizar sua fragilidade pelo fracasso das poucas experincias pr-
ticas conduzidas por Artaud, especialmente a malsucedida encenao de Os Cena,
no Teatro Folies-Wagram em 1935.
Hoje parece evidente que a potncia revolucionria desta idia de teatro
inclua a quase impossibilidade de ser colocada em prtica. Em parte pela inade-
quao ao momento histrico e teatral dos anos 30/40, sem condies estruturais
de absorv-la e execut-la.
A posterior realizao de algumas das propostas sugeridas por Artaud
prova disto. Para ficar apenas nos casos mais famosos, podemos citar o teatro labo-
ratrio de Jerzy Grotowski, o Living-Theatre, o Bread and Puppet Theatre,
alm dos trabalhos includos sob o rtulo genrico de happening e performance.
No entanto, a fora de Artaud ultrapassa essa prova concreta de exeqibi-
lidade. Sua obra resiste principalmente enquanto tentativa exasperada de trans-

1. Teixeira Coelho, Artaud, So Paulo, Brasiliense, 1982, p. 14.


14 LINGUAGEM E VIDA

formar mentalidades, comeando pelo criador para atingir o pblico ou leitor.


Por isso seu projeto teatral no se contenta com um estatuto artstico. Tambm
por isso to difcil realiz-lo. Pois no se trata de um programa esttico, mas
principalmente de uma potica de reconstruo espiritual do homem.
Para faz-la, Artaud reclama o uso da violncia em seu teatro. De que
outro modo poderia conseguir uma reeducao total do pblico e do artista?
Violncia fsica, adverte, exercida especialmente atravs de um choque sensorial.
Para indic-lo Artaud recorre bem conhecida imagem da peste. Ou mesmo
a analogias mais bvias, comparando a atividade teatral a uma blitz de polcia
ou s operaes realizadas por um cirurgio ou dentista ("Carta a Andr Rolland
de Renville", p. 111-"teatro Alfred Jarry", p."3)T
importante discriminar nessas imagens o critrio bsico proposto por
Artaud para constituir a violncia sensorial. Ela deve realizar-se pela concretiza-
o em cena de um mundo verdadeiro, que tangencie o real.
A exigncia de realidade para a cena no tem, como pode parecer primeira
vista, qualquer vnculo cqjn' realismo. Nesse caso o smbolo cnico tenta re-
produzir a realidade vital buscando, em ltima instncia, a produo de uma
iluso de realidade. A tranche de vie naturalista, longe de sediar no palco uma
ao real, preocupa-se em transportar para a cena signos que indiquem, secun-
dariamente, a realidade visada. O carter da representao est, portanto, no
centro dessa proposta.
Artaud, ao contrrio, sustenta a realidade da prpria cena. No palco da
crueldade os acessrios, objetos e cenrios devem ser utilizados em seu-sentido
imediato e tomados pelo que realmente so, em lugar de simbolizarem outra
coisa.

Os objetos, os acessrios, os prprios cenrios que figuraro no palco devero ser


entendidos em sentido imediato, sem transposio; devero ser tomados no pelo que repre-
sentam mas pelo que so na realidade ("Manifesto por um Teatro Abortado", p. 38).

De que tipo de signo se trata, ento? Parece tratar-se de um signo com


funo determinantemente icnica, que tem sua operao indiciai enfraquecida
para favorecer a apario de uma qualidade, um estado ou uma ao.
Para entender essa proposta basta rever outras afirmaes de Artaud pre-
sentes na maioria dos textos deste volume, especialmente aquelas relacionadas
encenao ou organizao da escritura teatral.
J que a representao, no caso do teatro, condio inescapvel, neces-
srio diminu-la pelo recurso a uma operao verdadeira, que esquea ou mesmo
suprima o lado espetacular do espetculo. "Nada h de menos capaz de iludir
do que a iluso de acessrios falsos", adverte Artaud em seu projeto de encenao
para "O Sonho de Strindberg" (p. 41).
No caminho desta negao bastante compreensvel a crtica aos teatralistas
russos, que aparece com nitidez na "Evoluo do Cenrio" (p. 25). Reteatralizar
PREFCIO 15

o teatro parece uma exigncia absurda, pois o que falta arte teatral justamente
voltar vida, desprezando para isso os meios mais evidentemente teatrais. "E
isto, esta tralha, esta ostentao visual que queremos reduzir a seu mnimo im-
possvel e recobrir sob o aspecto de gravidade e o carter de inquietude da ao"
("Teatro Alfred Jarry II", p. 35).
Quando fala em ao, Artaud pensa em um acontecimento nico, to im-
previsvel quanto qualquer ato e cujo valor medido pelo grau de veracidade -
e no por verossimilhana.
Para conseguir reproduzir no palco esse ato irrepetvel o encenador precisa
rejeitar a mise en scne tradicional para explorar os deslocamentos interiores pre-
sentes na dramaturgia a ser encenada. Estes, em confronto com sua viso parti-
cular, sero rebatidos como duplos, gerando uma nova realidade. Graas a esse
mecanismo especular, o "vaivm das almas" que movimenta a dramaturgia de
um Esquilo, Shakespeare ou Racine servir ao encenador como instrumento de
viagem prospectiva para dentro de si mesmo. Dirigir teatro, afirma Artaud,
saber dedicar-se ilimitadamente a um texto, at conseguir extrair dele imagens
nuas, naturais, excessivas e inaugurais, estas sim capazes de estabelecer com o
espectador uma ponte corporal, espcie de relao fsica necessria sua efetiva
participao na ao cnica ("A Evoluo do Cenrio", p. 25).
/ A semelhana dessas propostas com o teatro de Grotowski ou com as
performances contemporneas estarrecedora. Especialmente por sua ligao com
um movimento maior, a Live Art, onde se procura uma aproximao direta com
a vida. Artaud um dos precursores dessa corrente, que trava uma longa batalha
para liberar a arte do ilusionismo e artificialismo.
J aparecem nos ensaios deste livro alguns apontamentos e sugestes sobre
o modo de estruturar a linguagem cnica.
interessante destacar o ncleo bsico em torno do qual gira essa reflexo:
a especificidade da linguagem do teatro. Esto ligadas a essa investigao as re-
ferncias, to freqentes nos projetos artaudianos, impossibilidade de descrever
o teatro, relacionada a seu carter prprio. "[...] Descrever uma encenao de
maneira verbal ou grfica o mesmo que tentar fazer um esboo, por exemplo,
de um certo tipo de dor", observa Artaud em "Carta a Louis Jouvet" (p. 144).
Essa afirmativa vem acompanhada pela descrena na possibilidade de orga-
nizar, por meio de texto, um projeto de encenao. Se a qualidade distintiva da
linguagem teatral a mise en scne, ela no pode estar contida em palavras. Um
deslocamento, gesto ou movimento contribuem mais efetivamente para esclare-
c-la que uma srie de discursos.
A conseqncia imediata desse modo de conceber o teatro a eleio do
espao como ponto de partida para a criao de sua linguagem, feita de gestos,
atitudes, expresses, mmica e som, "signos ativos" destinados a compor no palco
"discursos lricos". Para chegar potica da cena o diretor deve executar, em
torno de um tema qualquer, "ensaios de realizao dramtica", destinados a
expressar algo diretamente a partir da cena. (Veja-se, a esse respeito, especialmente
16 LINGUAGEM E VIDA

"O Teatro que Vou Fundar", "O Teatro e a Psicologia - O Teatro e a Poesia"
e "Carta Comoedia".)
A discriminao do espao como elemento essencial de constituio da
linguagem do teatro soa bastante radical se pensarmos no perodo em que os
textos foram escritos, quase todos nos anos 30. Radicalidade ainda mais efetiva
se considerarmos os "ensaios de realizao dramtica", sem dvida precursores
das criaes coletivas presentes no teatro sobretudo a partir dos anos 60.
O detalhamento mais preciso dos meios necessrios encenao no aparece
nestes textos. No entanto, no "Projeto de Encenao para A Sonata dos Espectros"
e "O Teatro Alfred Jarry em 1930", Artaud fornece algumas pistas para a criao
recorrendo especialmente a imagens que, longe de circunscreverem um campo
de definio de signos, servem rhis como indicador analgico de algo no muito
definido at o momento.
Alm de enfatizar, ainda uma vez, a realidade e concretude dos cenrios e
acessrios cnicos, Artaud menciona o jogo de movimentos do ator, descreven-
do-o como uma espcie de pantomima onde as personagens variariam da natu-
ralidade ao artifcio. Refere-se tambm recriao de ambientes, verdadeira res-
semantizao do espao feita por meio de vibraes luminosas e sonoras obtidas
com uso de dispositivos especiais ("Carta a Orane Demazis").
Todos os meios de ao fsica de que o teatro pode dispor esto a servio
da produo de verdadeira ao orgnica dirigida ao espectador. A inteno
recuperar, com meios cientficos, algo equivalente a um choque sensorial.
bastante evidente, na indicao da nova cena, a semelhana com as ope-
raes de construo do sonho. Sem fazer qualquer referncia aos mecanismos
da potica onrica discriminados por Freud, Artaud parece intuir essa relao
quando descreve "[...] Uma certa maneira de unir - em virtude de que misteriosas
analogias - uma sensao e um objeto, e de coloc-los no mesmo plano mental,
evitando a metfora [...]" ("Maurice Maeterlinck", p. 151). Ou quando admite
que nesta encenao, "[...] o real e o irreal se misturam como no crebro de um
homem em vias de adormecer" ("Projeto de Encenao para A Sonata dos Es-
pectros", p. 59).
Ainda em relao a mecanismos construtivos importante mencionar a
ponte que, de acordo com Teixeira Coelho, aproxima a encenao de Artaud da
montagem de Eisenstein2.
Para o diretor russo os vrios planos cinematogrficos no devem ser ar-
ticulados linearmente, seguindo uma intriga, mas combinados a partir de um
princpio organizador. E este princpio a contradio, o conflito entre dois
elementos opostos de onde surge um novo conceito. Montagem essa operao
que justape os elementos/fotogramas distintos para obter uma nova ima-
gem/conceito.

2. Teixeira Coelho, "A Imaginao Estupefata", em O Teatro e seu Duplo, "Post-fcio".


PREFCIO y ^,-t ,- 17

w O princpio comum que norteia a escolha de um e outro criador corro-


y boraria essa hiptese de proximidade. Eisenstein descobre o princpio da mon-
M I tagem no ideograma enquanto Artaud vai buscar inspirao para seu teatro no
T | hierglifo.
,j\ ! O princpio de composio do ideograma o mesmo da montagem. Tra-
r
ta-se de uma combinao de signos capaz de produzir um terceiro elemento de
-4 dimenso e grau diferentes dos iniciais. Cada um dos signos formadores corres-
i ponde separadamente a um objeto ou fato, mas sua articulao conjunta gera
| um conceito.
O que interessou a Eisenstein foi justamente esse pensamento imagstico
primitivo, com possibilidades de ser transformado em raciocnio conceituai.
| Tambm Artaud, quando prope uma escritura cnica composta no espao
| atravs de som, luz, movimento, corpo e objetos, chega a referir-se a certas leis
1
de correspondncia presentes tanto na poesia quanto nos ideogramas chineses ou
nos hierglifos egpcios.
No entanto, existe uma diferena fundamental. Artaud no pretende estru-
turar as imagens soltas em cadeia intencional, mas sim atravs de um liame pu-
ramente local: a co-presena no espao cnico. Projeta uma maneira indita de
\ combinar signos no espao para abrir um horizonte de novos significados no
i previsto nem mesmo para quem os articulou.
Alm de carecer de intencionalidade conceituai, essa articulao cnica no
pretende ser elujdjda. O carter conotativo dessas imagens no se presta a in-
dagaes que tendam a esclarecer seu sentido. Idias claras so idias mortas,
afirma Artaud em O Teatro e seu Duplo.
A montagem, ao contrrio, construda para ser decifrada. E esta, alis,
sua principal finalidade.

Ao combinarmos essas incongruncias monstruosas, ns voltamos a organizar o


acontecimento desintegrado para formar de novo um todo, mas segundo nosso ponto de
vista. D acordo com o tratamento que damos nossa relao com o acontecimento'.

Este ponto de vista est ausente do projeto artaudiano, a menos que se


considere sua viso trgica como um parti pris conceituai.
A partir dessa diferena pode-se compreender melhor a importncia atri-
buda ao acaso na composio teatral de Artaud. E tambm a busca de um
mtodo de encenao que pusesse em evidncia atos falhos e esquecimentos ("O
Teatro Alfred Jarry em 1930", p. 54) ou o desejo-de-eserever atravs de uma
linguagem cifrada ("O Teatro que Vou Fundar", p. 80).
Pelos exemplos pode-se enxergar na articulao de signos imaginada por
Artaud um processo mais aleatrio e anrquico que a montagem. Justaposio

3. Siergui Eisenstein, "O Princpio Cinematogrfico e o Ideograma", em Haroldo de Campos


(org.), Ideograma: Lgica, Poesia, Linguagem, So Paulo, Edusp, p. 172.
18 LINGUAGEM E VIDA

de imagens, sem dvida. Mais prxima entretanto das construes poticas e


enigmticas do teatro de Robert Wilson que da escritura pica de Bertolt Brecht,
esta sim eaudatria direta da tcnica de Eisenstein.
No desenvolvimento da questo da mise en scne inevitvel a especulao
sobre o papel do ator. Como se colocaria o intrprete em um espetculo cujo
critrio ltimo a violncia sensorial e onde se procura excluir qualquer elemento
que simbolize outro?
Artaud investiga essa questo de forma detalhada no "Atletismo Afetivo",
captulo de O Teatro e seu Duplo dedicado exclusivamente definio do trabalho
do intrprete. O importante a salientar na concepo artaudiana a necessidade
que se coloca para o ator de procurar a imanncia do gesto, posto no nvel
elementar de sua produo. O comportamento e o gesto que correspondem a
uma conveno comum - pode-se dizer realista - devem ser transgredidos pela
composio de uma linguagem no imitativa ou convencional. O gesto do ator
no pode submeter-se a nenhuma ordem discursiva preestabelecida mas, ao con-
trrio, compor uma linguagem inaugural, espcie de _hierglifo_ yjvo_para ser
decifrado pelo espectador.
Por isso a exigncia de um gesto extremamente preciso, que Artaud chama
de "mmica no corrompida", com qualidade musical e poder rtmico. No de-
senho desse gesto podem contar-se inclusive jogos fisionmicos de "matemtica
mincia", bastante distantes do realismo.
Para conseguir elaborar essa linguagem o ator deve ser treinado como um
atleta do corao, capaz de mostrar, atravs do corpo, a base orgnica das emoes
e a materialidade das idias.
A total entrega - fsica e espiritual - ao instante de criao condio
imprescindvel para que o ator realize no teatro essa ao orgnica e essencial,
formando seu desempenho como um ato verdadeiro, dominado pelo "gesto ab-
soluto" que est na origem de toda linguagem humana.
Por isso Artaud acredita que o ator deva ser escolhido em funo de "sin-
ceridade vital" e no de talento ("Carta a Gaston Gallimard", p. 100).
Tambm por esse motivo compreensvel a crtica a Diderot e seu Paradoxo
do Comediante, que aparece em carta a Louis Jouvet de 1931. De fato, no seria
possvel conciliar a concepo artaudiana do desempenho como ao verdadeira
e essencial, resultado da entrega absoluta do ator ao momento de criao e esta
"[...] idia verdadeiramente paradoxal, tomada a Diderot, de que no palco o ator
no sente realmente o que diz, conserva o controle absoluto de seus atos e pode
representar e pensar ao mesmo tempo em outra coisa: em suas galinhas e em
seu cozido" (p. 144).
Nos escritos sobre cinema compilados nesta edio Artaud pretende,
como no teatro, investigar e divulgar a essncia dessa linguagem. Para ele o
cinema, enquanto linguagem especfica, extrai sua qualidade caracterstica do
movimento e da matria das imagens. Um filme deve existir em funo de
PREFCIO 1^

situaes puramente visuais, cujo sentido decorra do movimento, organizao e


ao delas.
O cinema falado recebe duras crticas, especialmente no texto "A Velhice
Precoce do Cinema" onde se considera a palavra uma tentativa de^ elucidar a
poesia inconsciente e espontnea que brota do choque das imagens. exclusiva-
mente da poesia de imagens que o cinema deve viver.
Colocando suas idias em prtica Artaud escreve o roteiro A Concha e o
Clrigo, includo nesta antologia. O texto foi considerado precursor do cinema
surrealista, movimento do qual ele participou entre 1924 e 1926, chegando in-
clusive a editar o terceiro nmero da Rvolution Surraliste, de onde saram os
manifestos aqui reproduzidos.
Rompe com os surrealistas quando da adeso do movimento ao Partido
Comunista, ato considerado apenas o estopim de uma ciso mais profunda de
concepes. Basta lembrar a declarao de 27 de janeiro, onde Artaud chama os
surrealistas de "especialistas da revolta" e defende o movimento no como forma
potica, mas como "grito do esprito". Entre essa posio radical e niilista de
Artaud e a tendncia positiva do movimento, que chega a assumir um programa
esttico, Susan Sontag percebe um antagonismo de base. "Os surrealistas so
connaisseurs da alegria, da liberdade, do prazer. Artaud um connaisseur do de-
sespero e da batalha moral"4.
Quanto ao roteiro A Concha e o Clrigo, foi filmado por Germaine Dulac
em 1927. O filme recebeu severas crticas de Artaud, especialmente pela detur-
pao do sentido de certas imagens poticas, cujo significado a diretora tentou
esclarecer por meio de interpretaes prosaicas que banalizaram seu carter on-
rico, reduzindo o desejado parentesco com a mecnica do sonho.
Testemunhas do trabalho do razo a Artaud, afirmando que belssimas
passagens do roteiro foram desfiguradas pela leitura de Dulac, que trabalhou
sozinha no estdio, recusando-se sistematicamente a permitir a participao do
roteirista. Um dos piores erros de interpretao diz respeito a uma passagem
interessante do texto, onde Artaud transforma as bordas escuras do hbito do
clrigo em caminho noturno (p. 162). Germaine Dulac julgou que um imenso
caminho de noite (un immense chemin de nuit) era um erro de impresso do
roteiro e apressou-se em transform-lo em camisola {une immense chemisede nuit).
Veja-se, a esse respeito, a polmica transcrita nesta edio, detalhada nas notas
que acompanham o roteiro.
Todos os textos reunidos neste livro acabam tocando, de um modo ou de
outro, na questo da linguagem.
Desde seus escritos iniciais Artaud reclamava das impossibilidades dela e do
paradoxo de, mesmo assim, ter que utiliz-la. Nas primeiras cartas a Jacques Ri-
vire, editor na Nouvelle Revue Franaise, menciona o hiato que parecia abrir-se

4. Susan Sontag, "Abordando Artaud", era Sob o Signo de Saturno, Porto Alegre, L&PM, 1986,
p.26.
20 . LINGUAGEM E VIDA

entre suas intuies poticas e a fixao dessas intuies em forma verbal. Depois de
considerar a dificuldade como sua, fruto de uma total incapacidade de expresso,
passa a duvidar da eficcia da linguagem enquanto transmissora das mais simples
, sensaes. Em carta a Louis Jouvet, includa neste livro, reclama da inutilidade da
palavra, que no consegue ser vnculo, mas ponto de sutura do pensamento (p. 141).
A luta com a linguagem na verdade a luta pela auto-expresso, travada
por Artaud contra a refratariedade de sua prpria vida interior. Vem acompa-
nhada pela busca de uma outra lngua, que sirva a esta necessidade exacerbada
de expresso.
nova construo pretende destruir a "palavra soprada", que originaria-
mente no lhe pertence, pois deve busc-la na lngua, campo histrico e cultural
que o precede e dele prescinde.

[...] o que se denomina sujeito falante j no aquele que fala. Descobre-se numa irredutvel
secundariedade, origem sempre j furtada a partir de um campo organizado da palavra
no qual procura em vo um lugar que sempre falta5.

Artaud lastima que essa palavra pr-constitudajiojhe pertena. "Eu no


tenho mais a minha lngua", desabafa em ''O Pesa:nervos'V recordando "esses es-
tados que nunca so nomeados, essas situaes iminentes da alma, ah, esses in-
tervalos de esprito" (p. 209).
O movimento de revolta contra a "lngua soprada" transparente nos
textos deste livro. Na tentativa de incorporar o pensamento vivo, de capturar
os "intervalos de esprito", Artaud produz um discurso descontnuo, composto
por fragmentos recidiyos e entrecortado de exploses emocionais.
A emoo que brota dessa escritura deve-se tambm crueza de alguns
relatos e desobedincia a normas de pontuao ou seqncia lgica do pen-
samento.
Os freqentes saltos de um tema a outro so acompanhados pela mudana
formal dos textos que oscilam, repentinamente, de um tom descritivo e didtico
para exploses emocionais de carnalidade visceral, sucedidas, sem soluo de con-
tinuidade, por delirantes construes de imagem.
interessante observar como essas figuraes visuais so especialmente ade-
quadas e propcias descrio de pinturas, quando as imagens poticas do texto
artaudiano projetam uma curva analgica que tangencia em alguns pontos o
quadro enfocado, sem no entanto oferecer dele uma viso objetiva. Nesse sentido
pode-se afirmar que os textos sobre pintura includos neste livro foram inspirados
por algumas obras, sem, no entanto, pretenderem realizar uma crtica de arte
mais convencional. Artaud chega a defender essa abordagem no "Texto Surrea-
lista", "escrito sob inspirao dos quadros de Andr Masson" (p. 203).

5. Jacques Derrida, "A Palavra Soprada", em A Escritura e a Diferena, So Paulo, Perspectiva,


1971, p. 120.
PREFACIO 21

Os outros escritos sobre pintura coletados neste volume tm o mesmo


carter. Veja-se especialmente "Ucctt~" lJelo^, "A Bigorrra das Foras'1 "O
Autmato Pessoal" e as impressosTsEre quadros ~d"Van Gogh includas no
"Suicidado da Sociedade".
Se a linguagem merece esse tratamento nos textos inevitvel mencionar
o lugar da palavra no palco da crueldade.
Apesar de no aparecer com evidncia nos ensaios aqui reunidos, essa ques-
to sempre tangenciada, ainda que por via negativa.
Evitar que o teatro seja um auxiliar decorativo do texto ou impedir que a
encenao aparea como uma segunda verso da dramaturgia so recomendaes
que freqentam vrias passagens desta coletnea, especialmente "O Teatro e a
Psicologia - O Teatro e a Poesia".
Artaud no prope a supresso da palavra no teatro* ma planeja subordi-
n-la cena, modificando sua funo (|'Carta a Ren DaumaP\)p. 137). Trata-se
de tnmsformar_a pajavra em imagem, atribuindo-lhe "lmportncia que tem nos
sonhos.
~" A palavra estar, portanto, presente na cena, ainda que deixe de dirigi-la.
Lembrando Derrida, as palavras sero apagadas do palco da crueldade apenas na
medida em que pretendam ser ordens. o silncio da palavra/definio aliado
tentativa de despertar, por meio do teatro, o gesto que dorme em cada palavra.
Para isso a inteno lgica e discursiva da linguagem deve ser reduzida ao m-
ximo, pois ela que assegura palavra sua transparncia racional, encobrindo
seu corpo pela remisso ao sentido. Ora, o sentido oculta o que constitui a carne
da palavra, o grito que a lgica do sentido ainda no calou totalmente. Aquilo
que, em toda palavra, ainda resta de gesto oprimido.
Com independncia do sentido as palavras podem ser usadas de modo con-
creto, se possvel como objetos slidos que causem comoes fsicas. Esse uso
concreto transforma a palavra em espao: explora sua entonao, sonoridade e
intensidade, ensaia as possibilidades musicais de pronunci-la, recupera sua fisi-
calidade atravs do "deslocamento de ar que sua enunciao provoca" ("Teatro
Alfred Jarry II", p. 35).
Para concluir a apresentao dos textos deste volume, no podemos deixar
de falar em traio. Tentar organizar alguns escritos artaudianos tomando como
fio seu pensamento sobre loucura, encenao, cinema e linguagem , sem dvida,
tra-lo. Artaud no pode ser tratado apenas como ensasta. infinitamente maior
que isso.
Lendo seus textos possvel esboar uma teoria. Mas como no sentir
desconforto ao desentranhar conceitos da escrita de um poeta que define o teatro
como "terra do fogo, lagunas do cu, batalha dos sonhos"? Como duvidar do
profeta, quando ele grita em "O Pesa-nervos"; "Aqueles que crem em classifi-
caes, termos, ideologias, s~porcos"?
Talvez a loucura seja a chave de resistncia dessa obra que se furta sempre
s investidas classificatrias.
22 LINGUAGEM E VIDA

Pois a impresso que se tem ao ler Artaud a de um percurso jamais


encerrado. Sensao muito prxima da metfora que Michel Foucault usa para
figurar a loucura trgica. A Stultifera Navis a imagem essencial desta loucura,
pois aprisiona o louco no fluido espao da gua, transformando-o em prisioneiro
da passagem.
Antonin Artaud tambm nos mantm prisioneiros de sua obra. Como o
louco fechado no navio, somos entregues "ao rio de mil braos, ao mar de mil
caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo" 6 .
Navegando no espao imaginrio projetado por seus escritos somos, como
o louco, passageiros por excelncia. Prisioneiros da passagem.

E para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; do outro mundo
que ele chega quando desembarca. [...] E a terra qual aportar no conhecida, assim
!como no se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua nica verdade e sua ptria
so essa extenso estril entre duas terras que no lhe podem pertencer7.

Slvia Fernandes
J. Guinsburg

6. Michel Foucault, Histria da Loucura, So Paulo, Perspectiva- 1978, p. 12.


7. Idem, ibidem.
NO TEATRO
A EVOLUO DO CENRIO 1

preciso ignorar a mise en scne, o teatro.


Todos os grandes dramaturgos, os dramaturgos-modelo, pensaram fora do
teatro.
Vejam Esquilo, Sfocles, Shakespeare.
Vejam, em outra ordem de idias, Racine, Corneille, Molire. Eles suprimem
ou quase suprimem a mise en scne exterior, mas exploram ao infinito os desloca-
mentos interiores, esta espcie de perptuo vaivm das almas de seus heris.
A escravizao ao autor, a submisso ao texto, que barco fnebre! Mas
cada texto tem possibilidades infinitas. O esprito e no a letra do texto! Mas
um texto exige mais do que anlise e penetrao.
H que restabelecer um tipo de intercomunicao magntica entre o esp-
rito do autor e o esprito do encenador. O encenador deve prescindir at de sua
prpria lgica e de sua prpria compreenso. Aqueles que pretenderam at agora
em suas encenaes ater-se unicamente a textos chegaram talvez a se livrar do
mimetismo beato de certas tradies, mas no souberam, antes de tudo, prescindir

1. UEvolution du dcor (A Evoluo do Cenrio) apareceu era Comccdia de 19 de abril de 1924.


Dois esboos ilustravam o trabalho; o primeiro, acompanhado da seguinte legenda: Esquema
Arquitetnico, de Antonin Artaud, para "A Praa do Amor", drama mental segundo Mareei Sehwob, a
segunda dizia: Esquema Arquitetnico de Antonin Artaud.
Vvolution du dcor pode ser considerada como o primeiro dos manifestos que Antonin Artaud
escreveu a propsito do teatro; a este ttulo, seu lugar testa do volume, ao modo de prembulo aos
manifestos do Teatro Alfred Jarry, parece justificado.

ESCOLA Vr- BF.i.A- ARTES \


26 LINGUAGEM E VIDA

do teatro e de sua compreenso. Substituram certas tradies de Molire e do


Odeon por determinadas tradies novas, vindas da Rssia e de outras partes. E
embora procurassem livrar-se do teatro, pensavam ainda e sempre no teatro.
Compunham com o palco, com os cenrios, com os atores.
Conceber cada obra, com vistas ao teatro. Reteatralizar o teatro. Tal o
novo grito monstruoso. Mas o teatro precisa ser relanado na vida.
Isto no quer dizer que se deva fazer vida no teatro. Como se pudssemos
simplesmente imitar a vida. O que se faz necessrio reencontrar a vida do
teatro, em toda a sua liberdade.
Tal vida acha-se toda ela, por inteiro, includa no texto dos grandes trgicos,
quando o ouvimos com sua cor, quando o vemos com suas dimenses e seu
nvel, seu volume, suas perspectivas, sua densidade particular.
Mas nos falta misticidade. Que pois um encenador que no est habituado
a olhar antes de tudo dentro de si mesmo e que no saberia, em caso de neces-
sidade, abstrair-se e livrar-se de si? Este rigor indispensvel. No seno fora
de purificao e esquecimento que poderemos redescobrir a pureza de nossas
reaes iniciais e aprender a dar de novo a cada gesto do teatro seu indispensvel
sentido humano.
Por ora, procuremos, acima de tudo, peas que sejam como uma transubstan-
ciao da vida. Vai-se ao teatro para fugir de si mesmo ou, se quiserem, para reen-
contrar-se naquilo que se tem, no tanto de melhor, mas de mais raro e mais penei-
rado. Tudo lcito no teatro, salvo a secura e a "cotidianidade". Lancemos os olhos
sobre a pintura. H, nos tempos que correm, jovens pintores que redescobriram o
sentido da verdadeira pintura. Pintam jogadores de xadrez e de cartas que so se-
melhantes a deuses.
O que provoca esta atrao que o circo e o music bali exercem sobre nosso
mundo moderno? Empregaria de fato a palavra fantasia, se no me parecesse to
prostituda, ao menos no sentido que a compreendemos atualmente, e se ela no
levasse unicamente a esta reteatralizao do teatro que o dernier cri, a ltima
moda do ideal contemporneo. No, eu diria antes que preciso intelectualizar
o teatro, pr os sentimentos e os gestos das personagens no plano onde elas tm
seu sentido mais raro e mais essencial. Cumpre tornar mais sutil a atmosfera do
teatro. O que no exige nenhuma operao metafsica muito elevada. Testemunha
disto o circo. Mas simplesmente o sentido dos valores do esprito. Isto suprime
e coloca fora do teatro no mnimo trs quartos das produes que tm curso
nele, mas, ao mesmo tempo, faz o teatro remontar sua origem e o salva. Para
salvar o teatro, eu suprimiria at Ibsen, por causa de certas discusses sobre
pontos de filosofia ou de moral que no empenham suficientemente, em relao
a ns, a alma de seus heris.
Sfocles, Esquilo, Shakespeare, preservavam certas crispaes da alma um
pouco demasiadamente ao nvel da vida normal, por esta espcie de terror divino
que pesava sobre os gestos de seus heris, e ao qual o povo era mais sensvel
no menos do que hoje em dia.
A EVOLUO DO CENRIO ^ 27

O que perdemos do lado estritamente mstico, podemos reconquist-lo do


lado intelectual.
Mas cumpre, para isso, reaprender a ser mstico, ao menos de uma certa
maneira; e dedicando-nos a um texto, esquecendo a ns mesmos, esquecendo o
teatro, esperar e fixar as imagens que nascero em ns nuas, naturais, excessivas
e ir at o extremo destas imagens.
Desembaraar-se no somente de toda realidade, de toda verossimilhana,
mas at mesmo de toda lgica, se ao cabo do ilogicismo percebemos ainda a vida.
Praticamente, e uma vez que preciso apesar de tudo princpios, eis algu-
mas idias palpveis:
certo que tudo quanto no teatro visivelmente falso contribui para criar
o erro de que sofremos. Vejam os palhaos. Eles constrem a cena com a direo
de um olhar. Portanto, sobre a cena, nada alm do real. Mas tudo isso foi dito.
No se suportar que atores a trs dimenses se movam sobre perspectivas planas
e com mscaras pintadas. A iluso no existe para a primeira fileira da platia.
preciso ou distanciar a cena, ou suprimir todo o lado visual do espetculo.
Ademais, para que a gradao mental seja mais sensvel, cumpre estabelecer
entre Shakespeare e ns uma espcie de ponte corporal. Um ator qualquer que,
fantasiado de algum modo, o coloque fora da vida normal, mas sem projet-lo no
passado, ser tido como algum que assiste ao espetculo, mas sem tomar parte
nele. Uma espcie de personagem de chapu-claque e sem maquilagem que, por seu
ar, seria extrada da assemblia. Seria preciso mudar a conformao da sala e que o
palco fosse deslocvel segundo as necessidades da ao. Seria preciso igualmente que
o lado estritamente espetculo do espetculo fosse suprimido. Ir-se-ia l no tanto
para ver, mas para participar.
O pblico deve ter a sensao de que poderia, sem uma operao muito
engenhosa, fazer o que os atores fazem.
Entendidos estes poucos princpios, o resto questo de gnio do encena-
dor, que deve encontrar os elementos de sugesto e de estilo, a arquitetura ou
a linha essencial mais prprias para evocar uma obra em sua atmosfera e em sua
especificidade.
Traduo de]. Guinsburg
Esboos arquitetnicos feitos por Antonin Artaud para La Place de l'Amuur, drama men-
tal baseado na obra de Mareei Schwob.
O TEATRO ALFRED JARRY1

O teatro participa deste descrdito no qual caem uma aps outra todas as
formas de arte. Em meio confuso, ausncia, desnaturao de todos os
valores humanos, a esta angustiante incerteza na qual mergulham no tocante
necessidade ou ao valor desta ou daquela arte, desta ou daquela forma da atividade
do esprito, a idia de teatro provavelmente a mais atingida. Procurar-se-ia em
vo na massa dos espetculos apresentados diariamente alguma coisa que respon-
desse idia que se pode ter de um teatro absolutamente puro.
Se o teatro um jogo, um nmero demasiado de graves problemas nos
solicita para que possamos distrair, em proveito de algo to aleatrio quanto este
jogo, a menor parcela de nossa ateno. Se o teatro no um jogo, se uma
realidade verdadeira, por que meios lhe prestar esta classe de realidade, fazer de
cada espetculo uma espcie de acontecimento, tal o problema que devemos
resolver.
Nossa impotncia em crer, em nos iludir, imensa. As idias de teatro no
tm mais para ns o brilho, a mordacidade, este carter de coisa nica, inusitada,
inteira, que ainda conservam certas idias escritas ou pintadas. No momento de
lanar esta idia de um teatro puro e de tentar dar-lhe uma forma concreta, uma

1. Este primeiro manifesto do Teatro Alfred Jarry foi publicado, de forma fragmentada na
NouvelleRevueFranaise (n 158, Io de novembro de 1926) precedido do nariz de cera:
Jovens escritores fundam o teatro Alfred Jarry". Eles nos pedem publicar algumas passagens de seu
manifesto.
30 LINGUAGEM E VIDA

das primeiras questes que devemos colocar a de saber se podemos encontrar


um pblico capaz de nos conceder o mnimo de confiana e de crdito necessrio,
em uma palavra, de tomar partido conosco. Pois ao contrrio dos literatos ou
dos pintores nos impossvel dispensar o pblico, que se torna alis parte inte-
grante de nossa experincia.
O teatro a coisa mais impossvel de salvar no mundo. Uma arte baseada
inteiramente em um poder de iluso que incapaz de proporcionar no tem
outra coisa a fazer seno desaparecer.
[...] As palavras tm ou no seu poder de iluso. Elas tm seu valor prprio.
Mas cenrios, figurinos, gestos e gritos falsos no substituiro jamais a realidade
que esperamos. isto que grave: a formao de uma realidade, a irrupo
indita de um mundo. O teatro deve nos dar este mundo efmero, mas verda-
deiro, este mundo tangente ao real. Ele ser ele prprio este mundo ou ns
dispensaremos o teatro.
O que h de mais abjeto e ao mesmo tempo de mais sinistramente terrvel
do que o espetculo de um aparato de polcia? A sociedade se conhece em suas
encenaes, baseadas na tranqilidade com a qual dispe da vida e da liberdade
das pessoas. Quando a polcia prepara uma blitz, dir-se-ia ver evolues de um
bale. Os agentes vo e vm. Apitos lgubres dilaceram o ar. Uma espcie de
solenidade dolorosa se desprende de todos os movimentos. Pouco a pouco o
crculo se fecha. Estes movimentos, que pareciam primeira vista gratuitos, pou-
co a pouco seu alvo se desenha, aparece - e tambm este ponto do espao que
lhes serviu at agora de piv. uma casa de qualquer aparncia cujas portas de
repente se abrem, e do interior desta casa eis que sai um rebanho de mulheres,
em cortejo, e que vo como para o matadouro. A questo toma corpo, a puxada
de rede era destinada no a uma certa populao contrabandista, mas apenas a
um amontoado de mulheres. Nossa emoo e nosso espanto encontram-se no
auge. Jamais encenao mais bela foi seguida de semelhante desenlace. Culpados,
certo, ns o somos tanto quanto estas mulheres, e to cruis quanto estes
policiais. verdadeiramente um espetculo completo. Pois bem, este espetculo
o teatro ideal2. Esta angstia, este sentimento de culpabilidade, esta vitria, esta
saciedade, do o tom e o sentido do estado mental no qual o espectador dever
sair de nosso teatro. Ele ser sacudido e ficar arrepiado com o dinamismo in-
terior do espetculo e este dinamismo estar em relao direta com as angstias
e as preocupaes de toda a sua vida.

2. Comparao pela qual os fundadores do Teatro Jarry foram violentamente censurados por
Andr Breton no Segundo Manifesto do Surrealismo: E enfim o Sr. Vitrac, verdadeiro porcalho de idias
- abandonemoslhes a "poesia pura" a ele e a essa outra barata o Abade Bremond - pobre Joo Ningum
cuja ingenuidade a toda prova foi a ponto de confessar que seu ideal de homem de teatro, ideal que tam-
bm, naturalmente, o do Senhor Artaud, era organizar espetculos que pudessem rivalizar em beleza com as
batidas da polcia. (Andr Breton, Manifestes du Surralisme, Ides n.r.f., 1965, p. 89).
O TEATRO ALFREDJARRY 31

A iluso no versar mais sobre a verossimilhana ou a inverossimilhana


da ao, mas sobre a fora comunicativa e a realidade desta ao.
Vem agora ao que ns queremos chegar? Queremos chegar a isto: que em
cada espetculo montado desempenhemos uma parte grave, que todo o interesse
de nosso esforo resida neste carter de gravidade. No ao esprito ou aos
sentidos dos espectadores que nos dirigimos, mas a toda sua existncia. A deles
e nossa. Jogamos nossa vida no espetculo que se desenrola sobre o palco. Se
no tivssemos o sentimento muito ntido e muito profundo de que uma parcela
de nossa vida profunda est engajada a dentro, no julgaramos necessrio levar
mais longe a experincia. O espectador que vem ver-nos sabe que vem oferecer-se
a uma operao verdadeira, onde no somente seu esprito mas tambm seus
sentidos e sua carne esto em jogo. Ele ir doravante ao teatro como vai ao
cirurgio ou ao dentista. No mesmo estado de esprito, pensando, evidentemente,
que no morrer, mas que grave e que no sair l de dentro intato. Se no
estivssemos persuadidos de poder atingi-lo o mais gravemente possvel, ns nos
julgaramos inferiores nossa tarefa mais absoluta. Ele deve estar bem persuadido
de que somos capazes de faz-lo gritar.

Traduo de]. Guinsburg


TEATRO ALFRED JARRY (II)

PRIMEIRO A N O - TEMPORADA DE 1926-19271

As convenes teatrais venceram. Tais como somos, somos incapazes de


aceitar um teatro que continuasse a trapacear conosco. Temos necessidade de
crer naquilo que vemos. Um espetculo que se repete todas as noites segundo

1. Brochura em oito pginas, n-8, com capa cinzenta, impresso pela S.G.I.. em 1926.
Na pgina da capa, embaixo, a seguinte meno:
Diretor: ROBERTARON.
A antepenltima pgina da brochura est reservada para o relatrio da Administrao do Teatro
Jarry:
MEMBROS BENFEITORES, MEMBROS FUNDADORES E AMIGOS DO TEATRO ALFRED JARRY
O Teatro Alfred Jarry uma empresa desinteressada e sem fins comerciais. Tem vontade, aps seus
primeiros espetculos, de viver por seus prprios meios e aplicando o mesmo esprito de integridade e de
independncia a sua gesto financeira que a. sua direo artstica.
Para assegurar completamente seus primeiros espetculos, ele precisa apelar queles que se interessam
por seu esforo.
Estes podero se inscrever entre seus Membros Benfeitores, Membros Fundadores ou seus Amigos.
A. - Membros Benfeitores do Teatro Alfred Jarry.
Cotizao mnima de 500 francos dando direito a dois lugares numerados fora de srie para a
primeira representao de cada espetculo da temporada 1926-1927.
B. - Membros Fundadores do Teatro Alfred Jarry.
Cotizao de 250 francos ou 150 francos a escolher.
A cotizao de 250 francos d direto a quatro lugares numerados fora de srie para o espetculo de
abertura da temporada de 1926-1927.
34 LINGUAGEM E VIDA

os mesmos ritos, sempre idnticos a si prprios, no pode conquistar nossa ade-


so. Temos necessidade de que o espetculo ao qual assistimos seja nico, que
ele nos d a impresso de ser to imprevisto e to incapaz de se repetir quanto
qualquer ato da vida, qualquer acontecimento trazido pelas circunstncias.
Em uma palavra, com este teatro ns reatamos com a vida em vez de nos
separarmos dela. O espectador e ns mesmos no poderemos nos levar a srio
se no tivermos a impresso muito ntida de que uma parcela de nossa vida
profunda est empenhada nesta ao que tem por quadro o palco. Cmico ou
trgico, nosso jogo ser um desses jogos em que em um dado momento a gente
ri amarelo. E nisto que ns nos empenhamos.
nesta angstia humana que o espectador deve sair de nosso teatro. Ele
ser sacudido e ficar arrepiado com o dinamismo interior do espetculo que se
desenrolar diante de seus olhos. E este dinamismo estar em relao direta com
as angstias e as preocupaes de toda sua vida.
Tal a fatalidade que evocamos, e o espetculo ser esta fatalidade ela
mesma. A iluso que procuramos criar no versar sobre a maior ou menor
verossimilhana da ao, mas sobre a fora comunicativa e a realidade desta ao.
Cada espetculo se tornar, por este fato mesmo, uma espcie de acontecimento.
Ser preciso que o espectador tenha o sentimento de que se desempenha diante
dele uma cena de sua prpria existncia, e uma cena verdadeiramente capital.
Ns pedimos, em uma palavra, ao nosso pblico, uma adeso ntima, pro-
funda. A discrio no coisa nossa. A cada espetculo montado, jogamos uma
partida grave. Se no estivermos decididos a tirar at o extremo a conseqncia
de nossos princpios, estimaremos que a partida, justamente, no valer a pena
ser jogada. O espectador que vem nossa casa saber que ele vem se oferecer a
uma operao verdadeira onde no somente seu esprito mas seus sentidos e sua
carne esto em jogo. Se no estivssemos persuadidos de atingi-lo o mais grave-
mente possvel, ns nos consideraramos inferiores nossa tarefa mais absoluta.
Ele deve estar de fato persuadido de que somos capazes de faz-lo gritar2.
Esta necessidade na qual nos encontramos de ser o mais verdadeiro e o
mais vivo possvel indica suficientemente o desprezo que temos por todos os
meios de teatro propriamente ditos, tudo o que constitui o que se convencionou
chamar encenao, assim como iluminao, cenrios, figurinos etc. H a todo

A cotizao de 150 francos d direito a dois lugares numerados fora de srie para espetculo de
abertura da temporada 1926-1927.
C. - Amigos do Teatro Alfred Jarry.
Cotizao de 50 francos dando direito a uma reduo de 5 francos vlida para dez cadeiras
adquiridas no curso da temporada de 1926-1927.
A ltima pgina, destacvel, e um talo de subscrio que nos indica o endereo do Teatro
Alfred Jarry em 1926: Rua Du Vieux-Colombier, 21.
2. Algumas frases desse pargrafo, retomadas textualmente do manifesto publicado na Nouvelle
Revue Franaise cf. p. 31, ltimo pargrafo), pareciam indicar que este texto o primeiro manifesto
modificado e recomposto.
TEATRO ALFRED JARRY (II) 35

um pitoresco de encomenda e que no aquilo a que dirigimos todas as nossas


preocupaes. Por um pouco, ns voltaramos s velas. O teatro reside, para
ns, em alguma coisa de impondervel e que no se acomoda de maneira ne-
nhuma ao progresso.
O que dar aos espetculos montados por ns seu valor de realidade e
evidncia depender, a maior parte do tempo, de um achado insensvel, mas
capaz de criar no esprito do espectador o mximo de iluso. E bastante dizer
que em matria de mise en scne e de princpios ns nos fiamos bravamente no
acaso. No teatro que queremos fazer, o acaso ser nosso deus. No temos medo
de nenhum malogro, de nenhuma catstrofe. Se no tivssemos f em um milagre
possvel, no nos empenharamos nesta via cheia de imprevistos. Mas um milagre
s capaz de nos recompensar por nossos esforos e por nossa pacincia. com
este milagre que contamos.
O encenador, que no obedece a nenhum princpio, mas que segue sua
inspirao, far ou no a descoberta que necessria para ns. Em funo da
pea que tiver de montar, ele far ou no uma descoberta, efetuar ou no uma
surpreendente inveno engenhosa, encontrar ou no o elemento de inquietude
prprio para lanar o espectador na dvida procurada. Todo o nosso acerto
funo desta alternativa.
evidente, todavia, que ns trabalhamos base de textos determinados; as
obras que representaremos pertencem literatura, no importa o que se ache dela.
Como chegar a conciliar nosso desejo de liberdade e independncia com a necessi-
dade de nos conformar com um certo nmero de diretivas impostas pelos textos?
Por esta definio que tentamos dar ao teatro, uma s coisa nos parece
invulnervel, uma s coisa nos parece verdadeira: o texto. Mas o texto enquanto
realidade distinta, existente por si mesma, bastando-se a si mesma, e no no
tocante a seu esprito, que estamos to pouco quanto possvel dispostos a res-
peitar, mas simplesmente no tocante ao deslocamento de ar que sua enunciao
provoca. E ponto final.
Pois o que nos parece essencialmente penoso no teatro, e sobretudo essencial-
mente destrutvel, que o que distingue a arte teatral da arte pictrica e da literatura
e toda esta tralha detestvel e atravancadora que faz de uma pea escrita um espe-
tculo em lugar de permanecer nos limites da palavra, das imagens e das abstraes.
E isto, esta tralha, esta ostentao visual que queremos reduzir a seu m-
nimo impossvel e recobrir sob o aspecto de gravidade e o carter de inquietude
da ao.
O TEATRO ALFRED JARRY

Traduo de]. Guinsburg


MANIFESTO POR UM TEATRO ABORTADO1

Na poca de confuso em que vivemos, poca toda carregada de blasfmias e


das fosforescncias de uma renegao infinita, onde todos os valores tanto artsticos
quanto morais parecem dissolver-se em um abismo do qual nada em nenhuma das
pocas do esprito pode dar uma idia, tive a fraqueza de pensar que eu poderia fazer
um teatro, que eu poderia pelo menos encetar esta tentativa de dar de novo vida ao
valor universal do teatro, mas a estupidez de uns, a m-f e a ignbil canalhice de
outros me dissuadiram para todo o sempre.
Desta tentativa permanece ante meus olhos o seguinte manifesto:

Aos... de janeiro de 1927 o teatro A... dar sua primeira representao.


Seus fundadores tm a conscincia mais viva da espcie de desespero que o lan-
amento de semelhante teatro supe. E no sem um tipo de remorso que eles
resolvem faz-lo. No preciso que algum se engane a esse respeito. O teatro
A... no um negcio, ningum duvida. Mas ele , ademais, uma tentativa pela
qual certo nmero de espritos jovens arriscam tudo. Ns no cremos, ns no
cremos mais que haja alguma coisa no mundo que se possa chamar o teatro, nos
no vemos a qual realidade semelhante denominao se dirige. Ns estamos,
ningum sonharia neg-lo, do ponto de vista espiritual, nur.*a poca crtica. Ns
cremos em todas as ameaas do invisvel. E contra o invisvel mesmo que ns
lutamos. Ns estamos inteiramente dedicados a desenterrar um certo nmero de

1. Les Cahiers du Sud (13 ano, n 87, fevereiro de 1927).


38 LINGUAGEM E VIDA

segredos. E ns queremos justamente trazer luz este monto de desejos, de


sonhos, de iluses, de crenas que levaram a esta mentira na qual ningum mais
acredita, e que chamam por zombaria, parece: o teatro. Ns queremos chegar a
vivificar um certo nmero de imagens, mas de imagens evidentes, palpveis, que
no estejam manchadas de uma eterna desiluso. Se ns fazemos um teatro no
para representar peas, mas para conseguir que tudo quanto h de obscuro no
esprito, de enfurnado, de irrevelado, se manifeste em uma espcie de projeo
material, real. Ns no procuramos denunciar como isto se produziu at aqui,
como isto sempre foi o fato do teatro, a iluso daquilo que no existe, mas ao
contrrio fazer aparecer ante os olhares um certo nmero de quadros, e imagens
indestrutveis, inegveis, que falaro ao esprito diretamente. Os objetos, os aces-
srios, os prprios cenrios que figuraro no palco, devero ser entendidos em
um sentido imediato, sem transposio; devero ser tomados no pelo que rep-
resentam, mas pelo que so na realidade. A encenao propriamente dita, as
evolues dos atores, no devero ser consideradas seno como os signos visveis
de uma linguagem invisvel ou secreta. No haver um s gesto de teatro que
no carregar atrs de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos
sonhos. Tudo o que na vida tem um sentido augural, divinatrio, corresponde
a um pressentimento, provm de um erro fecundo do esprito, tudo isto ser
encontrado em um dado momento sobre o nosso palco.
Compreende-se que nossa tentativa tanto mais perigosa quanto mais ela
enxameia de ambies. Mas preciso efetivamente que as pessoas se compenetrem
desta idia, de que ns no temos medo do nada. No h vazio na natureza que
no julguemos o esprito humano capaz de preencher em um dado momento.
V-se a que terrvel tarefa ns nos atiramos; ns no visamos a nada menos que
remontar s fontes humanas ou inumanas do teatro e a ressuscit-lo totalmente.
Tudo o que pertence ilegibilidade, fascinao magntica dos sonhos, tudo
isto, estas camadas sombrias da conscincia que so tudo o que nos preocupa no
esprito, ns queremos v-lo radiar e triunfar em um palco, prontos a nos perder a
ns mesmos e a nos expor ao ridculo de um colossal fracasso. Ns no temos medo
tampouco desta espcie de parti pris que nossa tentativa representa.
Ns concebemos o teatro como uma verdadeira operao de magia. Ns
no nos dirigimos aos olhos, nem emoo direta da alma; o que ns procuramos
criar uma certa emoo psicolgica onde as molas mais secretas do corao
sero postas a nu.
Ns no pensamos que a vida seja representvel em si mesma ou que valha
a pena arriscar a sorte neste sentido.
Rumo a este teatro ideal, ns avanamos ns mesmos como cegos. Ns
sabemos parcialmente o que queremos fazer e como poderamos realiz-lo ma-
terialmente, mas temos f em um acaso, em um milagre que se produzir para
nos revelar tudo o que ignoramos ainda e que dar toda a sua vida superior
profunda a esta pobre matria que ns nos encarniamos em amassar.
MANIFESTO POR UM TEATRO ABORTADO 39

Fora portanto da maior ou menor consecuo de nossos espetculos, os


que vierem a ns compreendero que participam de uma tentativa mstica pela
qual uma parte importante do domnio do esprito e da conscincia pode ser
definitivamente salva ou perdida.

ANTONIN ARTAUD

13 de novembro de 1926

P.S.: Estes revolucionrios de papel de bosta que gostariam de nos levar a


crer que fazer atualmente um teatro (como se isto valesse a pena, como se isto
pudesse ter importncia, as letras, como se no fosse alhures que ns desde sempre
fixamos nossas vidas), esses velhacos sujos gostariam de nos levar a crer que fazer
atualmente teatro uma tentativa contra-revolucionria, como se a Revoluo
fosse uma idia-tabu e na qual fosse desde sempre proibido tocar.
Pois bem, eu, eu no aceito idia-tabu.
Para mim h muitas maneiras de entender a Revoluo e dentre estas ma-
neiras a Comunista me parece de longe a pior, a mais reduzida. Uma revoluo
de preguiosos. No me importa absolutamente, eu o proclamo bem alto, que
o poder passe das mos da burguesia para as do proletariado. Para mim a Re-
voluo no est a. Ela no est em uma simples transmisso de poderes. Uma
Revoluo que ps na primeira fileira de suas preocupaes as necessidades da
produo e que devido a este fato se obstina em apoiar-se no maquinismo como
um meio de facilitar a condio dos operrios para mim uma revoluo de
castrados. E eu no me alimento desta erva a. Eu acho, ao contrrio, que uma
das razes principais do mal de que soremos reside na exteriorizao desenfreada
e na multiplicao prolongada ao infinito da fora; ela reside tambm em uma
facilidade anormal introduzida nas trocas de homem para homem e que no
deixa mais ao pensamento o tempo de retomar raiz nele mesmo. Estamos todos
desesperados de tanto maquinismo em todos os nveis de nossa meditao. Mas
as verdadeiras razes do mal so mais profundas, seria preciso um volume para
analis-las. Por ora, limitar-me-ei a dizer que a Revoluo mais urgente a realizar
est em uma espcie de regresso no tempo. Que ns voltemos mentalidade
ou simplesmente aos hbitos de vida da Idade Mdia, mas realmente e por uma
via de metamorfose nas essncias, e julgarei ento que teremos efetuado a nica
revoluo de que vale a pena que se fale.
H bombas a pr em alguma parte, mas na base da maioria dos hbitos
do pensamento presente, europeu ou no. Por estes hbitos, os Senhores Surrea-
listas esto atingidos muito mais do que eu lhes asseguro, e o respeito deles por
certos fetiches feitos homens e o ajoelhamento deles diante do Comunismo a
melhor prova.
40 LINGUAGEM E VIDA

certo que se eu tivesse feito um teatro, aquilo que eu teria feito estaria
to pouco aparentado com o que se tem o hbito de chamar teatro quanto a
representao de uma obscenidade qualquer se assemelha a um antigo mistrio
religioso.

A.A.

8 de janeiro de 19272

Traduo de Regina Corra Rocha

2. O Post-Scriptum, posterior em quase dois meses ao texto do manifesto, foi portanto acrescen
tado aps a excluso de Antonin Artaud do grupo surrealista que ocorreu em novembro de 1926
Cabe mesmo pensar que uma primeira resposta brochura Au grandjour assinada: Aragon, Breton
luard, Pret, Unik, a qual Antonin Artaud ops, em julho de 1927, A Ia grande nuit.
O SONHO DE STRINDBERG1

O Sonho de Strindberg faz parte deste repertrio de um teatro ideal, cons-


titui uma destas peas-padro cuja realizao para um encenador como que o
coroamento de uma carreira. O registro dos sentimentos que a se acham tradu-
zidos, reunidos, infinito. Encontramos a ao mesmo tempo o lado de dentro

1. O texto includo no programa vendido por ocasio das representaes do Sonho ou Jogo de
Sonhos, de Strindberg, interpretado pela primeira vez em Paris, na traduo francesa do autor. A mise
en scne era de Antonin Artaud. No programa constava esta especificao: O Prlogo e os 6o, 12, 14
quadros no sero representados.
A pea foi representada por Tnia Balachova (Agns), Yvonne Save (a Me e a Zeladora),
Lannay (a Cantora e a Danarina), Gilles (Christine), Alexandra (Louise e Edith), Ghita Luchaire
(Ela e a Velha Coquette, depois a Mulher e Victoria); Srs. Raymond Rouleau (o Oficial), Straram
(o Vidraceiro e o Pai), Bontoux (o Corista e Ele, depois o Marido), Sarantidis (o Ponto e o Amigo),
Bruyez (o Pregador de Cartazes e o Escolar), Dall (o Policial), Maxime Fabert (o Advogado), Boverio
(o Poeta), Decroux (o Chefe da Quarentena), Zacharie (Don Juan), de Vos (o Cego); Antonin Artaud
s aparecia no 15 e ltimo quadro no papel de A Teologia.
No tocante distribuio dos papis em O Sonho, Sra. Colette Allendy nos comunicou esta nota
manuscrita de Antonin Artaud talvez destinada imprensa:
O Sr. Raymond Rouleau que possui uma rara inteligncia das necessidades e das leis do teatro de hoje
no papel do Oficial. O Sr. Boverio, de natureza generosa, de temperamento de fogo, que compor uma
fremente figura de Poeta ideal. O Sr. Fabert que soube outogar o seu temperamento cmico s necessidades
de um papel com toda a profundidade. Do lado das senhoras, Tnia Balachova presta sua sensibilidade ao
papel de Agns e a Sra. Yvonne Save, seu senso do palco ao duplo papel da Me e da Zeladora. Mais ainda,
entre as mulheres, Alexandra Pecker, Ghita Luchaire etc, e depois os Srs. Beauchamp, Decroux que
compuseram slidas silhuetas, os Srs. Straram, Bontoux, Zacharie etc.
LINGUAGEM E VIDA

e o de fora de um pensamento mltiplo e fremente. Os mais altos problemas


esto a representados, evocados em uma forma concreta e misteriosa ao mesmo
tempo. verdadeiramente a universalidade do esprito e da vida cujo frmito
nos oferecido e que nos empolga no sentido de nossa humanidade mais precisa
e mais fecunda. A consecuo de semelhante representao sagra necessariamente
um encenador, um diretor. O Teatro Jarry tinha a obrigao de montar uma
tal pea. conhecida a razo de ser e o princpio desta nova companhia. O
Teatro Jarry gostaria de reintroduzir no teatro o sentido, no da vida, mas de
uma certa verdade captada no ntimo do esprito. Entre a vida real e a vida do
sonho existe um certo jogo de combinaes mentais, de relaes de gestos, de
acontecimentos traduzveis em atos e que constitui exatamente esta realidade
teatral que o Teatro Jarry ps na cabea que iria ressuscitar. O sentido da ver-
dadeira realidade do teatro se perdeu. A noo de teatro se apagou dos crebros
humanos. Ela existe, no entanto, a meio caminho entre a realidade e o sonho.
Mas enquanto ela no tiver sido reencontrada em sua integridade mais absoluta
e mais fecunda, o teatro no cessar de periclitar. O teatro atual representa a
vida, procura, por cenrios e iluminaes mais ou menos realistas, nos restituir
a verdade comum da vida, ou ento cultiva a iluso - e ento pior que tudo.
Nada h de menos capaz de nos iludir do que a iluso de acessrios falsos, de
papelo e tecidos pintados que a cena moderna nos apresenta. Cumpre tomar o
partido dela e no procurar lutar com a vida. H na simples exposio dos
objetos do real, em suas combinaes, em sua ordem, nas relaes da voz humana
com a luz, toda uma realidade que se basta a si mesma e no tem necessidade
de outra para viver. esta falsa realidade que o teatro, ela que preciso
cultivar.
A mise en scene de O Sonho obedece, portanto, a esta necessidade de nada
propor aos olhos do pblico que no possa ser utilizado imediatamente e tal
qual pelos atores. Personagens a trs dimenses que ver-se- moverem-se em meio
de acessrios, de objetos, em meio de toda uma realidade igualmente a trs di-
menses. O falso no meio do verdadeiro, eis a definio ideal desta encenao.
Um sentido, uma utilizao de uma nova ordem espiritual dada aos objetos e s
coisas ordinrias da vida.

Traduo de Regina Corra Rocha


O TEATRO ALFRED JARRY EM 19301

DECLARAO

O Teatro Alfred Jarry, consciente da derrota do teatro diante do desen-


volvimento invasor da tcnica internacional do cinema, se prope por meios
especificamente teatrais contribuir para a runa do teatro tal como ele existe atual-
mente na Frana, arrastando nessa destruio todas as idias literrias ou artsticas,
todas as convenes psicolgicas, todos os artifcios plsticos etc, sobre os quais

1. Brochura de quarenta e oito pginas, ilustrada com nove fotomontagens, sob capa em cores
de Gaston-Louis Roux. Nenhuma indicao do impressor.
As cartas descobertas por Henri Bhar nos informaram que sua redao fora confiada a Roger
Vitrac. Esta brochura no pode ser separada das outras publicaes do Teatro Alfred Jarry. Alm do
fato de ter sido Antonin Artaud quem teve a idia de utilizar as opinies da imprensa e ter ele se
encarregado pessoalmente de redigir, sob a forma de canas humorsticas, a crnica do segundo e
terceiro espetculos, ele deu a Vitrac instrues precisas sobre o essencial do que devia ser a! dito,
instrues que ele deve ter renovado, por certo, mais de uma vez de viva-voz, Artaud o levou a
modificar certas passagens e rejeitou algumas de suas proposies, nomeadamente naquilo que poderia
tender a dar ao planfleto o tom de um manifesto poltico. Alm disso, ele se encarregou pessoalmente
das ltimas correes e assinou a liberao de impresso.
Henri Bhar descobriu uma cpia datilografada do texto de introduo trazendo, em cima do
ttulo, pela mo de Roger Vitrac, a meno: Io artigo. Entre esta cpia e a verso que foi impressa
possvel notar algumas diferenas que indicamos aqui abaixo. Elas podem corresponder s correes
feitas nas provas por Antonin Artaud. Cumpre observar, alm do mais, que esta cpia n o
comporta quase palavras em itlico e que as indicaes tipogrficas devem ter sido dadas p o r
Antonin Artaud.
44 ^^ LINGUAGEM E VIDA

o teatro se edifica e reconciliando, ao menos provisoriamente, a idia do teatro


com as partes mais ardentes da atualidade.

HISTRICO

O Teatro Alfred Jarry, de 1927 a 1930, deu quatro espetculos, a despeito


das piores dificuldades.
I. O primeiro espetculo foi representado no Teatro de Grenelle nos dias
Io e 2 de junho de 1927, em soire. Comportava:
1. Ventre bril ou Ia Mre folie {Ventre Queimado ou a Me Louca), pochade
musical de Antonin Artaud2. Obra lrica que denunciava humoristicamente
conflito entre o cinema e o teatro;

2. O texto Ventre brl dela Mire folie ("Ventre Queimado ou A Me Louca") no foi encon-
trado; de se perguntar se Antonin Artaud na realidade escreveu o "texto" deste rabisco musical e se
no se tratava antes de um esquema sucinto a partir do qual ele teria indicado no curso de ensaios os
jogos de cena aos atores. Parece, de fato, em todo caso, que o msico, Maxime Jacob, trabalhou to-so-
mente segundo diretivas verbais porquanto, nossa pergunta relativamente a esse texto problemtico,
ele respondeu: Lembro-me com muita nitidez de Ventre brl ou Ia Mre folie, mas jamais tive texto al-
gum entre as mos e no conservei sequer minha msica de cena para bateria e contrabaixo. Ao sair da rep-
resentao, Benjamin Crmieux nota na Gazette du franc (4 de junho de 1927) que se trata de uma
breve alucinao sem texto ou quase.
Numa tese defendida em 1960, o Hors-Thtre, Robert Maguire tentou reconstituir o esquema de
Ventre de brl de Ia Mre folie, interrogando os atores. Ele tambm utilizou visivelmente as crticas da
poca: a de Benjamin Crmieux, j citada, e de Mareei Sauvage na Comcedia (3 de junho dde 1927) e de
Rgis Gignoux no Vlmpartial francais (7 de junho de 1927) das quais h extratos na montagem que da
conta da reao da imprensa ao primeiro espetculo do Teatro Alfred Jarry. No se deve ocultar o
lado contestvel e aleatrio de uma tal reconstituio feita com lembranas solicitadas a respeito de um
fato ocorrido trinta anos antes. (Assim, Arthur Adamov, envocando a representao do Sonho em V-
Homme et VEnfant (Gallimard, 1968) a partir de suas prprias lembranas, pde escrever: No palco, An-
tonin Artaud, no papel do Oficial, com um gigantesco buqu de flores na mo, bate a uma porta fechada,
insiste, chama: "Victoria! Victoria!" Ora, basta consultar o programa do Sonho (cf. nota 1, p. 41) para
perceber que o papel do Oficial era desempenhado por Raymond Rouleau e que Antonin Artaud s
aparecia no fim da pea no papel da Teologia.) Por isso, damos reconstituio de Maguire, a ttulo de
documentrio, mas fazendo as maiores reservas:
Uma personagem entra em cena envergando uma grande toga preta e com as mos enluvadas; masca-
ra-lhe o rosto a sua longa cabeleira que parece ser de couro umedecido e duro. Ela dana uma espcie de
charleston numa obscuridade quase completa, adiantando e recuando uma cadeira ao mesmo tempo que
pronuncia frases misteriosas. Um brilho de raio e ela se desmorona. E nesse momento que entra o Mistrio
de Hollywood, vestido de uma longa veste vermelha, com o olho prolongado na direo da boca, por uma
mscara que traz um risco no meio. Este torna entre os dedos os longos fios de sua cabeleira e, como que fas-
cinado, puxa-o para a luz violeta afim de estud-lo, como um qumico com seu frasco. Nesse momento, do
outro lado do palco, uma personagem, Corno de Abundncia, grita: "Acabou o macaroni. Mistrio de Hol-
lywood!" Ao que Mistrio de Hollywood responde: "Cuidado com o raio, Corno de Abundncia, cuidado
com o raio!" Uma rainha passa e morre (entre outras personagens que tambm morrem), mas seu cadver se
levanta passagem do rei para gritar suas costas: "Como!" antes de voltar e deitar-se definitivamente. A
segunda cena consagrada ao enterro, uma espcie de marcha fnebre semigrotesca e semipungente, em que
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930

2. Les Mystres de 1'Amour (Os Mistrios do Amor,trs quadros), de Roger


Vitrac3. Obra irnica que concretizava na cena a inquietao, a dupla solido,
as segundas intenes criminosas e o erotismo dos amantes. Pela primeira vez
um sonho real foi realizado no teatro;
3. Gigogne, um quadro de Max Robur4. Escrito e representado com um
objetivo sistemtico de provocao.

II. O segundo espetculo foi representado na Comdie des Champs-Elyses


a 14 de janeiro de 1928, em matin. Comportava:
1. Partage de Midi (um ato), de Paul Claudel, encenado contra a vontade
do autor5. Este ato foi apresentado em virtude do axioma de que uma obra
impressa pertence a todo o mundo;

o cortejo, vitriolado por um jato de luz violeta vindo dos bastidores, desfila ao rufor do tambor atrs
de uma cortina de jogo de luz.
Maguire cita em seguida uma carta endereada a ele por Maxime Jacob que d mostras de uma
prudncia mais justa: Quanto a mim sou infelizmente incapaz de reconstituir o tema e desenvolvimento
da pea. Posso somente vos dizer que ela se ligava ao esforo de negao e revolta do movimento surrealista.
Parece-me que as personagens - o Rei, sua mulher - encarnavam a angstia do autor e sua recusa desespera-
da ou blasfematria diante da vida: amor, casamento, sociedade etc, me parece, eram as mais particular-
mente visadas. Tenho a lembrana de uma espcie de marcha fnebre semigrotcsca e semipungentc. Por isso
concebi uma msica quase exclusivamente para percusso, com pulses montonas e frenticas, com ritmos
elementares, e suas combinaes me pareciam dever ilustrar bem os tormentos da alma do autor, que eu no
partilhava de modo algum.
3. Um pequeno cartaz anunciando o primeiro espetculo do Teatro Alfred Jarry nos informa
sobre a sua interpretao:
VENTRE QUEIMADO OU A ME LOUCA
pochade musical por ANTONIN ARTAUD
com a colaborao de MAXIME JACOB
GIGOGNE, por MAX ROBUR

LE MYSTRES DE UAMOUR
por ROGER VITRAC
mise en scne de ANTONIN ARTAUD
maquetes de JEAN DE BOSSCHRE
INTERPRETADO por
GNICA ATHANASIOU
JACQUELINE HOPSTEIN, JEAN MAMY
EDMOND BEAUCHAMP, RAYMOND ROULEAU
REN LEFVRE etc.
4. O texto de Gigogne, por Max Robur (pseudnimo de Robert Aron), no foi publicado. Eis o que
dizia dele Benjamin Crmieux: O Sr. Max Robur em Gigogne retomou um assunto muitas vezes tratado,
de um pai de Gigogne (figura de teatro de criana que se apresenta como me de grande nmero de filhos que lhe
saem debaixo da saia) rodeado por seus pequenos bastardos. No demora muito para ele lanar sobre o pblico
injrias do gnero Chat Noir que no provocaram outras reaes na platia exceto as de um estranho espanto:
"Mas ningum berra?" Ningum tinha, na verdade, vontade de se indignar. (La Gazettedufranc, 4.jun.l927).
5. Os convites davam as seguintes informaes:
NO PROGRAMA
46 LINGUAGEM E VIDA

2. La Mere (A Me), segundo Gorki, filme revolucionrio de Pudovkin,


proibido pela censura e que foi projetado em primeiro lugar pelas idias que
contm, depois por suas prprias qualidades e, enfim, para protestar justamente
contra a censura.

III. O terceiro espetculo foi representado no Thtre de 1'Avenue, nos


dias 2 e 9 de junho de 1928, em matin. Comportava:
O Sonho ou Jogo de Sonhos, de August Strindberg. Este drama foi montado
por causa de seu carter excepcional, porque o onirismo desempenha a o papel
mximo, porque ningum ousava mont-lo em Paris, porque foi traduzido em
francs por Strindberg mesmo, por causa da dificuldade que uma tal empresa
comportava e, enfim, para aplicar e desenvolver em grande escala os mtodos
de encenao que so prprios do Teatro Alfred Jarry.

IV. O quarto espetculo foi representado na Comdie des Champs-lyses


nos dias 24 e 29 de dezembro de 1928 e 5 de janeiro de 1929, em matin.
Comportava:
Victor ou les Enfants au pouvoir (Vitor ou as Crianas no Poder), drama
burgus em trs atos de Roger Vitrac. Este drama ora lrico, ora irnico, ora
direto, era dirigido contra a famlia burguesa, tendo como discriminantes: o adul-
trio, o incesto, a escatologia, a clera, a poesia surrealista, o patriotismo, a
loucura, a vergonha e a morte.

A HOSTILIDADE PUBLICA

Ns classificamos sob esta denominao todas as dificuldades com as quais


se chocam as empresas livres e desinteressadas do gnero Teatro Alfred Jarry.
So: a procura de capitais, a escolha do lugar, as dificuldades de colaborao, a
censura, a polcia, a sabotagem sistemtica, a concorrncia, o pblico, a crtica.

Procura de Capitais

O dinheiro se esconde. Acontece, todavia, que s vezes encontrado para


um espetculo, o que insuficiente, pois os empreendimentos peridicos no
constituem propriamente um negcio, no se beneficiam das vantagens de que

I. Uma obra-prima do cinema russo moderno, A Me, de Pudovkin (segundo o romance de Gorki).
Verso integral
II. Um ato indito de um escritor "notrio" representado sem autorizao do autor*.
Com a participao da:
Senhora Cnica Atbanasiou, os senhores Andr Berley, Henri Crmieux etc.
Mise en scene dcAntonin Artaud.
* O nome do autor e o ttulo da pea sero anunciados na abertura da representao.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930

gozam exploraes regulares. Ao contrrio, so sangrados ao vivo pelos forne-


cedores de todos os tipos que, no contentes de fazer pagar o preo maior,
majoram-no tanto quanto podem, estimando ser de justia que percebam uma
taxa sobre esses divertimentos de esnobes.
Da resulta que todas as assinaturas, subvenes ou outras formas se vem
rapidamente engolidas e que, malgrado o gesto e a repercusso do espetculo,
este deve ser interrompido na segunda ou terceira representao, isto , no mo-
mento em que poderia provar sua eficcia.
O Teatro Alfred Jarry far doravante o impossvel para dar em soire es-
petculos regulares.

Escolha do Local

E, vale dizer, impossvel representar em soire com meios minguados. Ou


ento preciso contentar-se com uma cena rudimentar (sala de conferncias, de
banquetes etc.) desprovida de maquinaria, ou resignar-se a representar em matin6
e somente nos dias livres, ou ainda em fim de temporada. De toda maneira as
condies so lamentveis e agravam-se pelo fato de que os diretores de teatro
recusam-se, pelas razes que vo a seguir e categoricamente, a alug-los, ou s
consentem7 em faz-lo a preos exorbitantes.
O Teatro Alfred Jarry v-se, portanto, obrigado8, este ano ainda, a dar seus
espetculos em fim de temporada.

Dificuldade da Colaborao

Os atores so inencontrveis porque a maioria est contratada regularmen-


te, o que evidentemente os impede de representar em outros lugares, em soire.
Ademais, os diretores de teatro, por razes diversas, abusam de sua autoridade
para proibi-los de colaborar com o Teatro Alfred Jarry. Ou melhor, concedem
amide autorizao que retiram em seguida, interrompendo assim os ensaios e
nos obrigam a procurar uma nova distribuio. No falaremos do mau clima
que reina, s vezes, entre o pessoal mido de certos teatros, sobre o qual, no
preciso dizer, outros tm toda a autoridade.
Mas devemos render homenagem aos intrpretes que se associaram s nossas
tentativas. Todos deram provas, apesar das armadilhas e das provocaes, do
mximo devotamento e do desinteresse mais perfeito. A tal ponto que sempre
conseguimos, a despeito dos ensaios feitos em condies ridculas, compor ver-
dadeiros elencos cuja homogeneidade foi reconhecida por todo o mundo.

6. ... maquinaria, ou ento em matin...


7. ... seguir categoricamente a alug-los, ou ento s consentem...
8. O Teatro Alfred Jarry se ver portanto...
48 LINGUAGEM E VIDA

A Censura

Contornamos esta dificuldade apresentando A Me de Gorki em sesso


privada e para convidados. No h ainda, a bem dizer, censura no teatro. Mas
depois de escndalos repetidos, sabe-se que o chefe de polcia pode exigir modi-
ficaes no espetculo, sua supresso pura e simples ou o fechamento do teatro.
Infelizmente ns jamais nos mantivemos tempo suficiente em cartaz para pro-
vocar semelhante interveno. Viva a liberdade, assim mesmo.

A Polcia

Quanto polcia, ela intervm sempre automaticamente neste gnero d


manifestaes. Todo mundo o sabe, mesmo os surrealistas de direita. No dia da
conferncia de S. M. Eisenstein, na Sorbonne, por exemplo, havia, alm do chefe
de polcia, uma centena de agentes distribudos um pouco por toda a parte9.
Nada h a fazer quanto a isto. preciso queixar-se do regime.

A Sabotagem Sistemtica

Ela geralmente obra de pessoas malevolentes, ou de engraadinhos que


sistematicamente, por suas provocaes, atraem sobre eles, e por contragolpe
sobre o pblico e sobre o espetculo, as foras policiais que sem eles permane-
ceriam tranqilamente porta. Dado o golpe, nada mais resta a esses agentes
provocadores que acusar o Teatro Alfred Jarry de ter parte com a polcia e a
partida est pregada. Com uma pedra do dois golpes. Impedem o espetculo e
desacreditam seus organizadores. Felizmente acontece que, se a manobra deu
certo algumas vezes, o truque est descoberto e no engana mais ningum10.

9. A 11 de fevereiro de 1930, no quadro do Grupo de Estudos Filosficos e Cientficos para o


Exame das Idias Novas, animado pelo Dr. Allendy, Eisenstein havia de apresentar Sorbonne seu fil-
me Linha Geral. Duas horas antes da prevista para o incio da sesso, a Prefeitura de Polcia notificou a
proibio de projetar o filme. O Dr. Allendy protestou publicamente e Eisenstein improvisou uma
conferncia. O texto foi, a seguir, publicado na Revue du Cinema (2 o ano, n 8, Io de abril de 1930)
sob o ttulo: "Os Princpios do Novo Cinema Russo".
10. Os dois ltimos pargrafos fazem aluso ao escndalo provocado pela atitude do grupo sur-
realista quando da primeira representao de O Sonho (2 de junho de 1928), e ao fato de que Robert
Aron decidiu chamar a polcia para garantir a segunda representao, a 9 de junho, representao que
o grupo surrealista queria proibir que o Teatro Alfred Jarry apresentasse. Eis dois documentos da po-
ca sobre essa questo. O primeiro, relativo representao de 2 de junho, um artigo de Paul Achard
publicado no Paris-Midi, a 5 de junho de 1928.
Os "SURREALISTAS"MANIFESTAM-SE
Mas o Sonho
No o que eles fizeram
Incidentes marcaram a representao feita sbado ltimo no Teatro Alfred Jarry, de O Sonho de
Strindberg, com encenao do Sr. Artaud. A tempestade flutuava no ar? Havia cabala? A encenao no
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930

A Concorrncia
E natural que todos os especialistas da "vanguarda", gente j firmada na
posio ou em vias de s-lo, desconfiam de ns e nos sabotam delicadamente.
do bom combate e da boa camaradagem. O Teatro Alfred Jarry deve levar isto
em conta. Ele se contenta em assinalar aqui o fato.

O Pblico
No se trata aqui do pblico preconceituoso ou do pblico do tipo "che-
guei" ou "garoto exibido". Aquele que acha que uma vergonha ou aquele

surpreendeu com seu mnimo de acessrios e o seu mximo de luzes, e alguns espectadores no tive-
ram o bom senso de esperar o seguimento para julgar se o esforo real do encenador no era o que
convinha melhor ao carter irreal e de sonho da pea? verdade que houve interrupes. Ouvia-se:
-A ao se passa na Sucia do leste, isto , em parte alguma!
- Que saco! Mas viva Alfred Jarry! etc.
Uma personalidade sueca que nos escreve a esse respeito afirma que o sinal da manifestao foi dado
por um espectador que tido como chefe da escola surrealista.
Mas houve um outro golpe de teatro! O encenador, Sr. Artaud, abriu de repente uma passagem no
palco entre os atores embaraados, e disse mais ou menos o seguinte: "Strindberg um revoltado, assim
como Jarry, como Lautramont, como Breton, como eu. Ns representamos essa pea como vmito contra
sua ptria, contra todas as ptrias, contra a sociedade".
Alm de haver a uma interpretao falsa e arbitrria de O Sonho em que Strindberg exprime
somente uma grande compaixo pela sorte dos seres humanos, esta declarao ofendeu os suecos presentes, a
tal ponto que Isaac Grnewald disse aos seus compatriotas: "Se assim que se interpreta O Sonho, como um
'vmito' contra a Sucia, eu peo aos suecos que deixem a sala como protesto!" e os suecos saram s pressas.
Parece estranha a atitude do Sr. A rtaud que no ignorava que a pea fora montada, em parte, graas
a donativos de benfeitores suecos. Numa reunio particular, diante de literatos e jornalistas, o Sr. Artaud
havia mesmo tomado da palavra aps o Sr. Lagerberg, Conselheiro da Legao da Sucia, para explicar
como entendia a mise en scne dessa obra.
Algumas pessoas julgaram que o Sr. Artaud quisera desarmar seu adversrio, fingindo adotar suas
doutrinas para faz-lo calar-se e poder continuar a representao. O procedimento no foi feliz.
Acrescentamos que lamentvel que certas manifestaes assumam, em semelhante ocorrncia, uma
forma tal que elas possam fazer julgar descorts a hospitalidade que ns concedemos aqui s obras
estrangeiras de qualidade.
Havia-se anunciado que, a guisa de represlias, um grupo de suecos iriam manifestar-se ontem
noite, no Estdio 28, representao de um filme de vanguarda intitulado Ombre et Lumire ("Sombra e
Luz"). No aconteceu nada e a noite, que comportava vrios filmes, se desenrolou morna e sem incidentes.
O segundo documento um manifesto publicado por Robert Aron no dia seguinte da
representao de 9 de junho:
O TEATRO ALFRED JARRY E OS SURREALISTAS
Na quinta-feira, 7 de julho de 1928, os surrealistas, invocando razes das quais algumas defensveis e
outras no, mas que todas, comparadas importncia espiritual do Teatro Alfred Jarry no tinham seno
um valor anedtico, interditarem ao Teatro Alfred Jarry dar a segunda representao do Sonho de
Strindberg, que devia ocorrer no sbado, 9 de junho, em matin no Thtre de 1'Avenue. Quaisquer que
fossem as razes invocadas, os surrealistas no tinham o direito de formular uma tal interdio. O Teatro
Alfred Jarry, criado ao lado deles a despeito deles, no tinha nenhuma ordem a receber deles, apesar das
afinidades espirituais, que poderiam existir entre eles e ele.
50 LINGUAGEM E VIDA

das brincadeiras muito engraadas que imita, por exemplo, o rudo da torneira
que jorra, o canto do galo, ou aquele que, com uma voz tonitruante, afirma que
M. Alfred Jarry o convidou e que est em casa dele. Em suma, isto que se
convencionou chamar de pblico bem francs. E exatamente para este que repre-
sentamos a comdia e suas reaes bufas so um suplemento ao programa que
o outro pblico sabe apreciar.

A Crtica

Ah!, a crtica! Agradeamo-lha e no falemos mais disso.

Antonin Artaud e eu prprio decidimos, pois, passar por cima dessa interdio. Tendo examinado
sucessivamente os diversos meios de resistncia que se oferecem a dois indivduos isolados contra trinta
perturbadores, e tendo constatado de que no havia meios eficazes, mandamos a Andr Breton urna carta
pelo pneumtko, a 8 de junho a noite, para adverti-lo que no cederamos as suas ameaas e que para
impedi-lo de entrar na sala empregaramos, no importa o que nos devesse custar, todos os meios, "mesmos
aqueles que mais nos repugnavam ".
Esta perifrase se encontra tambm num planfeto que distribumos no sbado, 9 de junho, a entrada
do espetculo e que estava assim redigido:
Aps os incidentes que se produziram no ltimo sbado no curso da representao do Sonho,
posto por nova ameaa na necessidade de defender a todo preo a liberdade de sua ao, o Teatro
Alfred Jarry, no aceitando nenhuma coao, declara-se decidido a empregar todos os meios, mesmo
aqueles que mais lhe repugnam, para salvaguardar esta liberdade.
Os perturbadores possveis foram advertidos disto.
Antonin Artaud-Robert Aron, 9 de junho de 1928.

Assim a questo se achava clara e lealmente colocada! Ns sentimos to cruelmente quanto qualquer
outra pessoa que contradio constitua a ajuda mesmo limitada da polcia para um teatro do qual
queramos fazer uma empresa de esprito revolucionrio. Mas a vontade destrutiva de nossos adversrios
nos encerrava no dilema:
ou ceder s ordens surrealistas e renunciar a liberdade de nossa ao,
ou, apesar da repugnncia, resistir pelo nico meio eficaz, a polcia*.

Convm, a fim de assinalar o que h de inadmissvel na atitude surrealista, lembrar que, em seus
primeiros anos de existncia, o Teatro Alfred Jarry provocou, por sua prpria iniciativa, as nicas
manifestaes do esprito surrealista, corajosas e perigosas, que tiveram lugar desde ao menos dois anos.
A representao de Partage de Midi a 14 de janeiro de 1928 sem a autorizao do autor, seguida de um
anuncio de Antonin Artaud, denunciando a traio de Paul Claudel - a declarao pblica de revolta,
efetuada a 2 de junho de 1928, por Antonin Artaud, no curso da primeira apresentao do Sonho -
cotnpor-tavam riscos penais graves, em que nenhuma manifestao surrealista jamais incorreu de h
muitos.
Que houve, outrora, entre os surrealistas, um certo esprito, ou uma certa sentimentalidade
revolucionria, no se poderia negar. E certos trechos de sua declarao de 27 de janeiro de 1925**
anunciaram uma ao diante da qual certas badernas sem conseqncia e sem riscos nas salas de espetculos
ou banquetes literrios aparecem como derisrias.
No acatando correr nenhum perigo real, e incapazes de eficcia, carecendo pois de duas qualidades
propriamente revolucionrias, os surrealistas permanecem, no importa o que achem a respeito, no terreno
literrio ou artstico e no incorrem em outro risco, exceto aquele, desejado como a consagrao de sua
atividade pueril, de uma estada no comissariado de polida.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930 51

NECESSIDADE DO TEATRO ALFRED JARRY

O Teatro Alfred Jarry, ainda que agisse apenas para acentuar e agravar de
algum modo o conflito denunciado entre as idias de liberdade e de independncia
que pretende defender, e os poderes hostis que se lhe opem, estaria de resto com
sua existncia justificada. Mas, afora as foras negativas que suscita pelo absurdo,
ele pretende, supondo por uma ltima vez possvel o jogo teatral, levar cena ma-
nifestaes positivas, objetivas e diretas capazes, pela utilizao racional de elemen-
tos conquistados e comprovados, de desqualificar, de um lado, as obras banais e os
falsos valores modernos e, de outro lado, pesquisar e pr em evidncia os aconteci-
mentos autnticos e probantes do estado atual dos franceses. Estando bem entendido
que ele engloba, nesta ltima denominao, o passado recente16 e o futuro prximo.

POSIO DO TEATRO ALFRED JARRY

Os espetculos destinados unicamente a um pblico francs, e a tudo aquilo


que a Frana conta de amizades atravs do mundo, sero claros e medidos. A

Para acabar com esta ditadura de nada, cuja atividade derisria compromete at as idias que ela
pretende defender, todos os meios me parecem provisoriamente bons, mesmos aqueles que mais me
repugnam. Da porque, no tendo outro meio prtico de resistir a uma autoridade vazia, sem me
dissimular a baixeza da ajuda pedida, decidi no perdoar a Andr Breton o fato de me haver ele reduzido ao
mais comprometedor equvoco, tive a coragem, maior do que a de invadir uma sala de espetculos, de
utilizar a polcia - no importa o que me deva custar, a qual mal-entendido eu me exponha, a qual nojo de
mim mesmo que eu me deva guardar.
Escrito em meu prprio nome e comprometendo apenas a mim.
Robert Aron
10 junho 1928

(* E preciso notar que a nica ajuda pedida por ns polcia tendia a impedir aos manifestantes
a entrada na sala. E toda a atitude policial na sala e na rua havia sido reclamada por outros e no por
ns, nossa revelia e anteriormente ao nosso pedido)
(** "Ns lanamos Sociedade esta advertncia solene.
Que ela preste ateno a seus desvios, a cada um dos passos falsos de seu esprito ns no lhe
falharemos.
- A cada uma das voltas de seu pensamento a sociedade nos encontrar.
- Ns somos especialistas da Revolta.
No h meio de ao que no sejamos capazes, sendo preciso, de empregar."
(Declarao de 27 de janeiro de 1925)

Reproduo e aluso proibidas aos jornais e revistas, excetuada a Rvolution Surraliste.

Pode-se estar seguro que Robert Aron escreveu este manifesto e publicou sem falar com
Antonin Artaud. Prova disto que ele pe na conta dos surrealistas a '"Declarao de 27 de janeiro de
1925". Ora, o autor desta Declarao foi Antonin Artaud (Cf. p. 251, e n. 1).
11. ... que ele engloba nessa denominao...
12. ... do mundo, so claros...

ESCOLA DE >;ZLA~ ARTES / UFMG


52 LINGUAGEM E VIDA

linguagem ser falada e nada do que constitui os elementos comuns do sucesso


ser negligenciado13. O lirismo cheio de imagens, as tiradas filosficas, as obscu-
ridades, os subentendidos sbios etc, sero cuidadosamente evitados. Ao contr-
rio: dilogos breves, as personagens tpicas, os movimentos rpidos, as atitudes
estereotipadas, as locues proverbiais, as canonetas, a grande pera etc, encon-
traro a, proporcionalmente s dimenses da pea, o lugar que ocupam na Frana.
O humor ser a nica lanterna verde ou vermelha que iluminar os dramas
e assinalar ao espectador se o caminho est livre ou fechado, se conveniente
gritar ou calar-se, rir muito alto ou muito baixo. O Teatro Alfred Jarry conta
tornar-se o teatro de todos os risos.
Em resumo, ns nos propomos como tema: a atualidade entendida em
todos os sentidos; como meio: o humor sob todas as suas formas; e como fim:
o riso absoluto, o riso que vai da imobilidade babosa grande agitao das lgri-
mas.
Apressemo-nos em dizer que entendemos por humor o desenvolvimento
desta noo irnica (ironia alem) que caracteriza uma certa evoluo do esprito
moderno. E ainda difcil dar dele uma definio precisa. O Teatro Alfred Jarry,
confrontando os valores cmicos, trgicos etc, considerados por si mesmos ou
em suas reaes recprocas, visa exatamente a precisar experimentalmente esta
noo de humor. E dizer bastante que as declaraes que seguiro relativamente
ao humorstico participam tambm deste esprito e que seria errado julg-las
logicamente.

ALGUNS OBJETIVOS DO TEATRO ALFRED JARRY

Todo teatro que se respeita sabe tirar partido do erotismo. Conhecem-se


as sbias dosagens dos estabelecimentos do boulevard, do music hall e do cinema.
O Teatro Alfred Jarry ir, neste sentido, to longe quanto se queira lhe permitir.
Ele promete atingir mais alto por meios que julga prefervel manter secretos.
Alm disso, e fora as emoes que provocar, diretamente ou s avessas, tais
como a alegria, o medo, o amor, o patriotismo, o gosto pelo crime etc. etc, ele
ter a especialidade de um sentimento sobre o qual nenhuma polcia do mundo
tem poder: a vergonha, o derradeiro, o mais temvel obstculo liberdade.
O Teatro Alfred Jarry renunciar a todos os meios que tocam de perto
ou de longe s supersties, tais como: sentimentos religiosos, patriticos, ocul-
tos, poticos etc, exceto para denunci-los ou combat-los. No admitir seno
a poesia de fato, o maravilhoso humano, isto , desembaraada de todo lao reli-

13. provavelmente nas duas divises subtituladas Necessidade do Teatro Alfred Jarry e Posio
do Teatro Alfred Jarry, que se sente mais a nuance de Vitrac: a destinao nacional do Teatro Jarry, por
exemplo, e tambm esta afirmao: A linguagem ser falada... As referncias a Feydeau e a Roussel (p.
53) tambm parecem imprprias a Vitrac.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930 53

gioso, mitolgico ou fabuloso, e o humorstico, nica atitude compatvel com a


dignidade do homem para quem o trgico e o cmico se tornaram uma piada.
No palco o inconsciente no desempenhar nenhum papel prprio. J
suficiente a confuso que ele engendra desde o autor, passando pelo encenador
e os atores, at os espectadores. Tanto pior para os analistas, os amadores da
alma e os surrealistas. Tanto melhor para todo o mundo. Os dramas que repre-
sentaremos se colocam resolutamente ao abrigo de todo comentador secreto. O
que no impedir nada - acrescentar o outro. O que nos dispensar de respon-
der, replicaremos ns.
Acrescentemos, para ser mais claros, que ns no pretendemos explorar o
inconsciente por si mesmo, que em nenhum caso ele poderia ser a meta exclusiva
de nossas pesquisas e que levando em conta aquisies positivas realizadas neste
domnio que ns lhe preservaremos um carter nitidamente objetivo, mas 50-
mente na escala, do papel que ele desempenha na vida cotidiana.

TRADIO CONFESSA DO TEATRO ALFRED JARRY

O Teatro Alfred Jarry renuncia a enumerar todas as influncias fragmen-


trias que tenha podido sofrer (gnero: teatro elisabetano, Tchekhov, Strindberg,
Feydeau etc), para reter, do ponto de vista da eficcia procurada no pas, apenas
os exemplos indiscutveis fornecidos pelos teatros chins, negro-americano e sovi-
tico.
Quanto ao esprito que o dirige, ele participa do ensinamento humorstico
desigual de Ubu Rei e do mtodo rigorosamente positivo de Raymond Roussel.
bom ainda acrescentar que esta confisso deve ser considerada antes como
uma homenagem.

ENCENAO

Como no passado, os cenrios e os acessrios sero reais e concretos. Sero


compostos de objetos e de elementos tomados de emprstimo a tudo o que nos
cerca e visaro, por seus arranjos, criar14 figuras novas. As iluminaes contri-
buiro por vida prpria para conservar nesta exposio original de objetos seu
carter essencialmente teatral.
As personagens sero sistematicamente levadas ao tipo. Ns daremos uma
nova idia da personagem de teatro. Os atores sero caricaturais. Podero assumir
a aparncia de personalidades em projeo. Cada um deles ter sua voz prpria
variando de intensidade entre o tom natural e o artifcio mais irritante. E por

14. ... e visaro criar...


54 LINGUAGEM E VIDA

meio deste tom teatral novo que pretendemos sublinhar e mesmo revelar senti-
mentos suplementares e estranhos.
O jogo dos movimentos acordar-se- ou opor-se- ao texto segundo as in-
tenes a valorar. Esta pantomima nova poder realizar-se fora do movimento
geral da ao, o fugir, o aproximar-se, o alcanar, segundo a severa mecnica
imposta interpretao. Mtodo que nada tem de gratuitamente artstico, visto
que est destinado a pr em evidncia os atos falhos, os esquecimentos, as dis-
traes etc, em uma palavra, todas as traies da personalidade, tornando assim
inteis os coros, apartes, monlogos etc. (Eis aqui um exemplo das objetivaes
inconscientes que nos propnhamos realizar em um pargrafo anterior.)
Acessoriamente os meios, mesmo os mais grosseiros, sero acionados para
impressionar o espectador. Fanfarras, fogos de artifcio, detonaes, faris etc.
Pesquisaremos, no domnio isolvel dos sentidos, todas as alucinaes sus-
cetveis de ser objetivadas. Todos os meios cientficos utilizveis sobre um palco
sero postos em ao para dar o equivalente das vertigens do pensamento ou
dos sentidos. Ecos, reflexos, aparies, manequins, escorregaduras, cortes, dores,
surpresas etc. E por estes meios que contamos alcanar o medo e seus cmplices.
Alm disso, os dramas sero inteiramente sonorizados, inclusive os entrea-
tos em que alto-falantes sustentaro a atmosfera do drama at a obsesso.
A pea, assim regulada nos detalhes e no conjunto obedecendo a um ritmo
escolhido, desenrolar-se- maneira de um cilindro de msica perfurado em um
piano mecnico, sem jogo entre as rplicas, sem flutuao nos gestos e dar
sala a impresso de uma fatalidade e do determinismo mais preciso. Ademais, a
mquina assim montada funcionar sem se preocupar com as reaes do pblico.

APELO AO PUBLICO

O Teatro Alfred Jarry, ao levar ao pblico as declaraes precedentes,


permite-se pedir-lhe sua ajuda, de qualquer natureza que seja. Ele se por dire-
tamente em contato com todos aqueles aos quais aprouver se interessar pela ao
que ele est empreendendo. Responder a todas as sugestes que forem feitas.
Examinar todas as obras que lhe forem submetidas e se compromete, desde
agora, na medida de seus meios, a representar aquelas que corresponderem ao
programa que estabeleceu.
Ns nos propomos, alm do mais, a manter uma lista onde inscreveremos
todos os filiados de princpio, pedindo-lhes que, ao nos escrever, nos participem
sua qualificao e seu endereo para que possamos, se o permitirem, ter em conta
sua personalidade ou mais simplesmente mant-los a par de nossa empreitada15.

15. Aqui se detm a cpia datilografada do texto que traz da mo de Vitrac a meno Io Artigo.
O TEATRO ALFRED JARRY EM 1930

ILUSTRAES

No so, a bem dizer, fotografias de encenao que ilustram esta brochura.


Poder-se- efetivamente consider-las como a histria sem palavras, em nove quadros
vivos, do esprito ao qual ns nos esforamos por manter. Tratava-se de ornar uma
brochura; preferimos fabricar inteiramente fotografias que respondem a esta destina-
o, de preferncia a reproduzir encenaes verdadeiras. Estas foram j vistas e sero
vistas no teatro.
O esprito destas ilustraes comum a Antonin Artaud e a Roger Vitrac que
as compuseram em estreita colaborao e que as interpretaram eles mesmos com a
Srta. Josette Lusson. As atitudes e os conjuntos foram regulados por Antonin Artaud
e foi o Sr. Eli Lotar que os fotografou e que realizou as montagens.
A cobertura do pintor Gaston-Louis Roux.

UMA CONFERNCIA E UMA LEITURA

No dia 15 de maio de 1930, o Sr. Roger Vitrac far na Sorbonne, no Groupe


d'Etudes Philosophiques et Scientifiques pour VExamen des Tendances Nouvelles, uma
conferncia sobre o Teatro, seguida da leitura por Antonin Artaud do primeiro ato
do drama: O Golpe de Trafalgar16.
Traduo de Regina Corra Rocha

16. Esta conferncia permaneceu muito provavelmente em projeto. De fato, a cada fim de ano,
era publicado o Bulletin du Groupe d'Etudes philosophiques et scientifiques pour VExincn des Ides nou-
velles (Sorbonne, 46, rue Saint-Jacques, Paris -Ve. Dir Dr Allendy), espcie de memorando das ativida-
des do grupo ao longo do ano. Porm, nenhuma conferncia de Vitrac mencionada no Bulletin
relativo 1930 (n 8, ano 8).
'A Histria sem Palavras, em Nove Quadros Vivos", 8 montagens fotogrficas idealizadas
por Antonin Artaud e Roger Vitrac, realizadas por Eli Lotar para ilustrar a brochura
O Teatro Alfred Jarry em 1930.
PROJETO DE ENCENAO PARATI SONATA DOS
ESPECTROS DE STRINDBERG1

Ao contrrio de Golpe de Trafalgar, esta pea convida a todas as posies


preconcebidas. Ela traz o sentimento de alguma coisa que, sem estar no pla-
no sobrenatural, no humano, participa de uma certa realidade interior.
o que constitui o seu atrativo. Ela apenas manifesta algo conhecido, conquanto
enterrado e afastado. O real e o irreal se misturam como no crebro de um
homen em vias de adormecer, ou que desperta de repente, tendo se enganado
de lado.
Tudo o que ele revela ns j o vivemos, sonhamos, mas esquecemos.

ENCENAO

A encenao deve inspirar-se nessa espcie de duplo curso entre uma rea-
lidade imaginria e aquilo que se experienciou num dado momento na vida, para
abandon-lo em seguida, quase imediatamente.

1. A cpia datilografada deste texto nos foi comunicada ao mesmo tempo pela Sra. Colette
Allendy e por Louis Jouvet. Ns nos servimos, para o estabelecimento do texto, da cpia conservada
por Louis Jouvet que fora corrigida por Antonin Artaud. Esta cpia havia sido depositada no Teatro
Pigalle em abril de 1931. No alto da primeira pgina esquerda, o que segue, pela mo de Antonin
Artaud: Antonin Artaud / 45, me Pigalle /Hotel St-Charlcs / Paris. Este "Projeto" parece entretanto
ter sido escrito j em 1930 pois que nele se faz aluso a uma carta a Roger Vitrac que se pode datar do
incio de maro de 1930.
60 LINGUAGEM E VIDA

Esse deslizamento do real, essa desnaturao perptua das aparncias, impe-


lem mais completa liberdade:
arbitrariedade das vozes que mudam de tom, se encavalando, rigor brusco
das atitudes, dos gestos, mudana e decomposio da luz, importncia anormal
concedida repentinamente a um detalhe mnimo, personagens que moralmente
se apagam, deixando predominar rudos, msicas, sendo substitudas por seus
duplos inertes, sob a forma, por exemplo, de manequins que vm tomar subita-
mente seus lugares.

O ASSUNTO

Primeiro Ato

Uma figura obsessiva de velho domina essa fantasmagoria. Poucas peas


tanto quanto esta impem a idia das comunicaes de linguagem com a realidade
invisvel que se supe exprimir. Esse velho se apresenta como um smbolo de
todas as espcies de idias inconscientes ou conscientes de vingana, de dio, de
desespero, de amor, de pesar; e ele vive ao mesmo tempo uma realidade bastante
concreta. Esse velho posto ali por no se sabe qual misteriosa necessidade de
vingana envolve coisas e pessoas em todo tipo de maquinaes precisas, mas no
final ele prprio acaba sendo envolvido pela fatalidade. A pea toda da em
diante regrada por esta fatalidade visvel em tudo. As personagens parecem sem-
pre prontas a desaparecer para dar lugar aos seus prprios smbolos.
Uma casa transparente serve de atrativo pea. Esta casa se deixa ver at
em seus segredos. Uma espcie de salo redondo situado no primeiro andar as-
sume assim um sentido mgico. Vrias personagens rodeiam essa casa como mor-
tos atrados por seus restos. Esse sentimento de invencvel atrao, de enfeitia-
mento, de magia, opressivo, esmagador.
Figuras acessrias passam
a leiteira
o homem de classe,
a mulher de classe,
concretizando a atmosfera de nostalgia e de pesar, fixando tal sentimento
desordenado, precisando uma idia como as notas baixas, suspensas de um acorde.

A casa descrita com seus costumes, seus habitantes e suas manias. Sentimos
que os destinos de todas as personagens se entrelaam, esto ligados, como os
de nufragos em um navio perdido. Toda a pea como um mundo fechado ao
redor do qual a vida circular interrompida por uma rachadura ntida.
As personagens falam s aparies, e estas lhes respondem. Mas cada uma
parece ter a sua. E s vezes uma personagem pressentindo o invisvel que est
ao redor dela parece ter o interesse em no permanecer menos invisvel que os
PROJETO DE ENCENAO... 61

outros. E apenas nomeados seus prprios espectros acorrem, aparecem, pronun-


ciando palavras da carne (corpo) estranhamente ligadas a todas as partes concretas
do drama.
O primeiro ato termina em uma brusca reunio de pavores (espantos),
deixando prever o drama que atingir seu ponto culminante no ato seguinte.

Segundo Ato

No segundo ato estamos ei.i um misterioso salo redondo. a que a dona


da casa guarda seus m /eis sob a forma de uma mmia que passa seu tempo em
um armrio.
Ela fora, em algum tempo, a amante do velho, mas isso no tem nenhuma
importncia.
Ela evoca esses contos antigos em que a mais louca e a mais inconsciente
personagem tambm na realidade a mais lcida, e a que, como a prpria fata-
lidade, tem o poder de tudo desfazer.
Pela ao da mmia, o horripilante velho se dissolve e murcha at se tornar
uma forma rangente, uma espcie de autmato sem miolos. Ns assistimos no
decorrer desse ato a uma metamorfose mgica pela qual tudo muda: coisas, almas
e pessoas.
O estudante que queria entrar na casa, a moa que o esperava sem o dizer,
e mesmo repelindo-o, estaro reunidos.

Terceiro A t o

O estudante e a moa esto frente a frente. Mas todas as perturbaes da vida,


todas as pequenas servides domsticas, e sobretudo o beber e o comer, e, em re-
sumo, a carcaa corporal, os pesos das coisas, o choque da dureza, a atrao do peso,
a gravitao geral da matria, os separam ainda. H apenas libertao na morte.
A pea acaba neste pensamento budista, que , alis, uma de suas taras.
Mas tambm isso que a torna clara quela parte do pblico a quem o puro
inconsciente amedrontaria.
Assim, a encenao pode dissimular o sentido religioso de sua concluso
insistindo na densidade e no relevo do resto.

PRIMEIRO ATO

Cenrio

A esquerda, em diagonal, a fachada aberta de uma casa cuja altura se perde


nas abbadas.
62 _ _ _ _ _ _ LINGUAGEM E VIDA

Todos os detalhes indicados por Strindberg sero representados em relevo


com uma importncia especial concedida a alguns dentre eles, notadamente ao
"espio", que desde o comeo despertar a ateno por um intenso halo lumi-
noso.
A maior parte ser maior que o natural.
A direita, um esboo de fonte em relevo, talvez com gua verdadeira es-
correndo. Os pavimentos da rua se elevaro ao fundo, igualmente em relevo,
como em um cenrio de cinema at serem cortados por uma aresta brusca. Po-
deremos ver algumas fachadas de casas no alto da rua que sobe. Sob a aresta
teremos a sensao que corre gua. O cu se abrir sobre o fundo do cenrio.
Ele ser glauco, dando a impresso de mar e de infinito.

Rudos

Ouviremos, se avolumando por momentos, at se tornar obsessivo, um


perptuo rudo de gua. Aquele do mar cujas ondas se quebram. Aquele da fonte
que corre.
Os rudos de rgo e de sino, indicados por Strindberg, sublinharo as entra-
das de certas aparies, preenchero os silncios.
Haver, ainda, o barulho de vento zunindo de maneira irregular, muito
alto no ar, introduzindo uma impresso particular de solenidade, mas sem mugir,
como se a atmosfera fosse largamente esbofeteada.
O retorno do velho com seus mendigos se far com grande alarido.
O velho comear suas invocaes de muito longe, e os mendigos lhe res-
pondero de diversos planos. A cada chamada ouviremos as muletas batendo
ritmicamente ora no cho, ora nas paredes, numa cadncia bem marcada. Seus
apelos de voz e seus barulhos de muletas sero pontuados at o final das palavras
por som bizarro, como o de uma lngua enorme batendo violentamente o orifcio
dos dentes.
O barulho no ser nem gratuito nem por acaso, ele ser buscado at que
o som desejado seja encontrado.
Ao final, quando tomba o silncio, dois mendigos, segurando violentamente
o pequeno veculo do velho, o levam abruptamente frente do palco.

(Ato l,p. 45, ed. Stock, 1926.)

Iluminao

Iluminao violenta, ofuscante, centrada em um canto da fachada, uma


parte da fonte e o meio da cena, nos pavimentos. Falsos dias iluminam os apar-
tamentos que parecem ter sua luz prpria. A luz no fundo cinza verde, leve
e transparente.
PROJETO DE ENCENAO... 63

SEGUNDO ATO

Cenrio

O cenrio descrito por Strindberg a casa do comeo retomada do interior.


As paredes so abertas, recortadas, transparentes. Elas deixam ver o cu, o
ar, a luz de fora, mas que no se misturar com a de dentro.
Certos objetos indicados pelo autor, a cortina, o biombo, assumem uma
importncia desmedida. Eles so bem maiores que o natural. As paredes interiores
so apenas indicadas por suas arestas, por planos incompletos.

Rudos
Os passos das pessoas entrando sero ampliados, tero seus prprios ecos.
O vento de fora se confundir s vezes com as palavras, sob a forma de
um barulho bizarro, inexplicvel.
O barulho das muletas do velho batendo na mesa repercutir por toda a
parte.
Todos esses barulhos sero escolhidos de maneira a terem todos seu desta-
que, a separar o fantstico quando se faz necessrio, a deixar no plano banal e
cotidiano o que a deve permanecer, e a fazer valer o resto por contraste.
Certa rispidez de gestos, de atitudes, ser acompanhada por barulhos de
autmatos, rangidos que terminaro em melodias, notadamente no momento da
metamorfose, quando a mmia muda o velho e quando a leiteira, invisvel para
todos, menos para ele, lhe aparece. Desse momento em diante, se manifestaro
outros artifcios de encenao que sero indicados na parte das iluminaes e do
jogo geral.

Iluminao

Uniforme por toda a parte anterior, embora de uma cor um pouco mais
forada, um pouco mais pesada que a normal e sem que nenhuma lmpada de
cor a possa motivar.
A parte verde do fundo ser iluminada por uma luz vinda do alto como
em certas montagens de cenrio do Museu Grevin, mas que no iluminar igual-
mente todo o ambiente. Esta luz ser de um verde muito doce, quase branco.
Ela ornar a parte esquerda do biombo voltado para a direita, e deixar
em uma sombra relativa a esquerda e o fundo do ambiente.
A luz de fora ter um detalhe de torre, de telhado ou de campanrio,
muito longe.
LINGUAGEM E VIDA

No momento da metamorfose a luz de fora, se intensificando at o ofus-


camento, penetrar pelas janelas, pelas paredes transparentes, parecendo expulsar
a iluminao prpria dos dois cmodos.
Essa luz entrar com um rudo de vibrao atroz amplificado at se tornar
insuportvel, dilacerante. Este rudo durar apenas alguns segundos e ser perse-
guido atravs de todos os meios possveis at se ter exatamente a amplitude e o
diapaso desejados.
Desde o incio do ato, o "espio" liberar um halo um pouco mais extenso
do que no ato precedente e tomando todas as partes sombrias do espectro solar.
O barulho e a luz, se extinguindo de repente, deixaro ver, ao lado de
cada personagem, uma espcie de duplo vestido como eles. Todos estes duplos
plenos de uma imobilidade inquietante e figurados, ao menos alguns dentre eles,
por manequins, desaparecero lentamente, mancando, enquanto todas as perso-
nagens se sacudiro como que despertadas de um sono profundo. Isto ter durado
mais ou menos um minuto.

TERCEIRO ATO

Cenrio

Todo o cenrio ser construdo sob uma iluminao que ser irreal sem
ter nada de muito convencionalmente ferico.
A frente do palco ser ocupada por uma espcie de quiosque hindu com
colunas transparentes, de vidro ou de outro material, translcido em toda a sua
largura.
Plantas verdadeiras ou artificiais, mas no pendentes, ocuparo todos os
recantos. Iluminaes perdidas sero disseminadas nas folhagens, a maioria par-
tindo de baixo para cima.
O cenrio ser orientado da direita para a esquerda, a partir da parte pos-
terior do palco at o fundo. A esquerda e ao fundo ser montado o pequeno
salo redondo que ser separado da parte posterior do palco por um grande vidro
semelhante queles das vitrines dos grandes magazines, de maneira que tudo o
que se passar ser achatado e como que deformado pela gua e sobretudo que
nenhum rudo vir dessa parte do palco. A direita e ao fundo o cenrio estar
livre. Assim, todo esse cenrio ocupar apenas a profundidade do palco.

Iluminao

A iluminao do salo redondo ser igual, amarelada, difundida por toda


parte. No primeiro plano e desde o incio do ato a luz ser distribuda de modo
a formar um crculo sobre cuja as bordas tudo ser deformado como atravs de
PROJETO DE ENCENAO...

um prisma e no centro haver uma abertura tal que a imagem do salo redondo
possa aparecer de lado a lado.
Este crculo ocupar toda extenso do palco de alto a baixo e da esquerda
para a direita.
Ao fim do ato todas estas iluminaes deSaparecero dando lugar ilumi-
nao do tablado do fundo por cima da qual se mani estaro os reflexos da Ilha
dos Mortos.
O aparecimento da Ilha dos Mortos far-se- da seguinte maneira:
Uma maquete em relevo, representando a Ilha dos Mortos, de Bcklin, sub-
metida a ao de uma luz intensa, ser colocada diante 'e um espelho situado
sobre o tablado do fundo. Este tablado ser mantido em nvel mais baixo do
que o do palco.
E, seguindo um processo outrora muito empregado no teatro, a imagem
virtual da maquete dever ser projetada no ar sob a forma d reflexos e alguns
metros acima da maquete real, de modo a ser vista da cera e nitidamente per-
cebida pelo pblico.
Depois o elevador subir de maneira a projetar com grande lentido, acima
dele, a apario da Ilha dos Mortos.
Poder-se- acrescentar a imagem mulher de cera estendida sobre um vasto
leito vermelho debaixo de uma espcie de campanula de vidro,
ou o manequim de um velho de muletas deslocando-se na obscuridade com
a condio que essa apario do manequim possa ser regulada com toda a preciso
e todo o tato desejado.
Haver neste momento como iluminao, parte dos reflexos virtuais da
Ilha no ar negro, apenas um ponto luminoso deslocando-se sobre uma parte do
manequim movente.

Rudos

No se ouvir nenhum rudo.


Os passos sero feltrados. s vezes devero soar como se se elevassem da
nvoa.
No haver outro rudo exceto o da msica do fim que dever ser procurada
em instrumentos especiais: viola etc.

O Jogo

O jogo dos atores seguir as oscilaes da pea, a dico sempre ntida e


precisa no cair jamais na salmodia; o que no quer dizer que se proibir todo
o lirismo longe disto.
Os deslocamentos do real para o irreal sero movidos quer por lentos
deslizamentos, quer por saltos inesperados. As personagens mudaram bruscamen-
te de tom, de diapaso, s vezes de voz.
66 _ _ _ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA

O estudante representar de uma ponta a outra da pea como um homem


mal desperto e que, ao tocar a matria slida de uma impresso, de um senti-
mento, deve toc-la como um homem que o fizesse por procurao.
O Velho evitar a atual composio do velho de teatro, tremilicando, ba-
lindo e que fala com uma vozinha esganiada, da garganta.
Ele ter ao contrrio um tom muito ntido, embora um pouco mais elevado
do que o normal, sinal de grande segurana, de que ele tem conscincia de falar
em-nome-daquilo-que-o inspira.
Na mmia, as defasagens de tom sero extremamente bruscas. Mas sua voz
alguns instantes antes da metamorfose tomar estranhos toques de doura e ju-
ventude.
A moa falar sempre com imensa doura, uma espcie de resignao. Sua
voz, que no salmodiar jamais e h de precisar de tudo, ser por instante apenas
colocada. Ela ouvir a si mesma mais ainda que a outros personagens.
O jogo do desempenho ser no conjunto bastante lento como sentido,
muito embora travado e movimentado a fim de evitar a monotonia. A mono-
tonia ser evitada pelo relevo geral, pela ausncia de jogo entre as rplicas, salvo
quando este for absolutamente necessrio, pois ento o intervalo ser marcado
com insistncia. O jogo dever dar por momentos a impresso do ralentado de
cinema, sobretudo para certas personagens, que se deslocaro com pequenos pas-
sos de maneira quase sempre imperceptvel e, no entanto, chegaro a seus lugares
sem que ningum se aperceba do fato. Procurar-se- uma grande harmonia no
gesto, na relao dos movimentos, que mais ainda do que no Golpe de Trafalgar,
sero fixados e ajustados como mecanismo bem remontado.
A personagem da cozinheira ser figurada por um manequim e suas rplicas
sero lanadas em voz enorme e monocordia por vrios alto-falantes, de maneira
que no se possa discenir exatamente a fonte.
No momento da metamorfose todas as personagens se congelaro por al-
guns instantes numa imobilidade absoluta.
No ltimo ato, os atores quase no se mexero. Parecero procurar seus
gestos, suas palavras tero o ar de contar os passos, como pessoas que perderam
a memria.
No fim somente, para lanar sua invocao morte, o ator recuperar sua
fora, sua consistncia, uma voz bem corprea.
Traduo de Regina Corra Rocha
CONFERNCIA APCRIFA1

Convidado, 8 de dezembro ltimo, pelo grupo Effort, a tomar parte em um


debate sobre o teatro2, condensei em algumas pginas e de uma maneira extrema-
mente breve, esquemtica mesmo, minhas idias sobre o assunto. Sendo, creio, o
assunto proposto: o Destino do Teatro3, respondi direta e ingenuamente. Isto ,

1. O texto dessa conferncia, visivelmente inacabado e redigido provavelmente aps o debate ao


qual assistiu Antonin Artaud, da seu ttulo, nos foi comunicado pelo Sr. Jean-Marie Conty, que
nos transmitiu tambm esse fragmento, que sem dvida foi escrito a propsito da mesma confe-
rncia:
Todo mundo fala hoje em dia "crise" do teatro. Esta expresso est longe de significar a mesma coisa
para todo mundo. E mesmo entre aqueles que no confundem a arte do teatro com seu rendimento
material e industrial, que no falam da crise do teatro como falariam de uma crise na alimentao ou na
venda de borrachas [...]
2. muito provavelmente a esse debate que Antonin Artaud faz aluso em "A Encenao e a
Metafsica".
3. UEffort (O Esforo), agrupamento intelectual e artstico, fora fundado em 1929. Numerosos es-
critores, homens de teatro, msicas e cineastas lhe subministraram seu apoio. Esse agrupamento organiza-
va reunies, debates, conferncias, concertos, representaes teatrais, visitas a exposies. Oferecia a
seus membros um servio de informaes sobre os livros, os espetculos e os discos etc, e lhes proporcio-
nava entradas a preos reduzidos para certos espetculos. O objetivo era adquirir conhecimentos em
todos os domnios atravs da investigao coletiva, embora permitindo a cada membro uma pesquisa in-
dividual.
UEffort havia organizado na sala de Ina, para tera-feira 8 de dezembro 1931, um debate sobre
O Destino do Teatro, do qual participaram: Antonin Artaud, Ren Bruyez, Ren Fauchois, H.-R. Le-
normand, Andr Ransan, Jean Variot e Paul Vialar.

^t
68 LINGUAGEM E VIDA

sem antes me preocupar em saber qual era o pblico com que eu iria tratar, tentei
considerar o teatro filosoficamente e na sua essncia. Atitude abstrata, da qual s
me dei conta ao perceber em que silncio mortal caam minhas palavras, ter-
rivelmente fora de hora e lugar. Sem dvida, eu nada tenho de um verdadeiro fil-
sofo e a linguagem que adotei era, na minha boca, ridcula em vista de minha
grande inabilidade em me servir dos termos filosficos. No entanto, no percebi
na sala nada que se assemelhasse a risos, que sem dvida eram dissimulados, o
que prova que as pessoas estavam seguras de si, menos ainda do que eu de mim,
porm prova tambm que a filosofia, quando se exprime, tratando-se da filosofia
aplicada ao teatro por um semi-ignorante, s pode causar espanto.
As pessoas que esperavam ser energicamente sacudidas puderam, com toda
razo, sentir-se decepcionadas. Decepo que, por outro lado, me serve de elogio.
E que deixei o palco com a impresso de ter falado no sei bem qual lngua
morta, impermevel ao esprito, e cujo manuseio reservado apenas aos eruditos.
Eis o discurso, no como o proferi, mas como, depois de proferido, me parece
que deveria t-lo feito a esse pblico de pessoas da sociedade, de artistas dos
teatros prximos, de autores dramticos representados quando jovens, e de jovens
ansiosos por serem representados antes de envelhecer!

Rebelem-se quanto queiram contra essa maneira ambiciosa, quase que ampla
demais, e ultrapassando sem dvida os meus meios de considerar a questo do
teatro, digo que, no momento e no ponto em que estamos, nenhuma questo
pode ser colocada de outro modo salvo no plano universal, isto , no da liqui-
dao de todos os valores sob os quais vivemos e que, ningum poder negar,
esto cedendo um aps outro, em todas as costuras; e que essa liquidao, que
cheira talvez a decadncia, cheira acima de tudo a um ajuste de contas, que no
seu desarranjo de mquina parece evocar a marcha contrria de alguma suja
doena humana, cujos gestos no so mais sequer humorsticos, fora de serem
repetidos demais. Voltarei a tudo isso em breve.
Na melhor das hipteses, esperamos ver, enfim, formulada essa questo
que nos interessa tanto: a questo do teatro.

No nmero de 12 de dezembro de 1931, da Comcedia, encontra-se o relato desta sesso intitula-


do: Um Grande Debate sobre o Destino do Teatro ou "O Bom Rapaz Vive Ainda". A interveno de An-
tonin Artaud a comentada nos seguintes termos:
Um outro jovem, mais jovem ainda o sucede (a Hanry-Jaunet, antigo administrador e secretrio
geral do Studio des Champs-Elyses): Antonin Artaud. Um frmito percorre a sala: O criador do Teatro
Ubu vai certamente derrubar tudo. Infelizmente! Apesar de sua mscara a Ia Marat, apesar de sua voz sibi-
lante, apesar de seus recursos de peito e de seus cabelos em posio de batalha, Artaud se contentou em fazer
uma pequena exposio sobre a encenao e uma apologia do teatro metafsico que em nada resolveu o pro-
blema. Decepcionou. No seria para menos, pois esperava-se no mnimo v-lo pegar o teatro, o velho teatro,
pelos ombros para tentar rep-lo em p.
CONFERNCIA APCRIFA 69

Porm, ela no ser melhor formulada esta noite do que tem sido desde
h muito, pela simples razo de que no vejo nesta sala nenhum verdadeiro
homem de teatro, exceto eu mesmo, e vocs vo compreender por qu.
Vo compreender por que, em minha tola pretenso, sou eu quem tem
razo.

Digo que o teatro tal como o estamos vivendo, ou melhor, vendo-o morrer,
ou melhor, tal como poderamos v-lo morrer, se ele no participasse, tambm
ele, porm mais depressa que o resto, de uma espcie de decadncia geral que
domina nossas idias, nossos costumes e os valores de todas as espcies em que
nos apoiamos, mas sem ter passado, o teatro, por essa fase de movimento exces-
sivo, de desenvolvimento extremo, mas mesmo assim fascinante por suas rique-
zas, pela multiplicao de suas nuanas, que se apoderou simultaneamente de
todas as outras artes e meios de expresso paralelos a ele. Em suma, se no
conseguimos precisar, se nos achamos to incapazes de precisar a doena do
teatro, porque deixamos de ter pontos de referncia no meio dessa progresso
crescente, mas generalizada, que arrasta todo um mundo, todo nosso mundo
ocidental, em direo sua queda, sua desapario.

Traduo de Regina Corra Rocha


O TEATRO E A PSICOLOGIA - O TEATRO E A POESIA1

O TEATRO E A PSICOLOGIA

Essa concepo encantatria da Palavra faz parte de toda uma concepo


oriental. Ns, no entanto, limitamo-nos experincia e no nos arriscamos a ir
to longe. Entretanto, no demasiado temerrio afirmar que essa sujeio ao
j conhecido, pelas limitaes que impe em todos os domnios, a causa abso-
luta, direta, e no h, em suma, nenhuma outra, da queda quase orgnica do
teatro ocidental atual. Se todas as artes e todos os teatros, e os prprios Mundos,
precisam de uma f para viver, podemos dizer que a religio do real e da expe-
rincia no razo suficiente para existir.
Se o teatro no ultrapassa o domnio daquilo que as palavras, tomadas em
seu sentido mais corrente, em sua acepo mais normal e ordinria, podem atin-
gir, isto se deve s idias do Ocidente sobre a Palavra, idias que fazem de todo
teatro uma espcie de imenso auto de ocorrncia psicolgica, um trabalho de
bedel e de agrimensor dos sentimentos e do pensamento.
E isso sem nenhum recurso possvel exaltao atravs das imagens, isto
, sem apelo imaginao.
Porm, no suficiente acusar o teatro moderno de falta de imaginao.
uma censura gratuita na medida em que no forem determinadas, no teatro

1. Transmitido por Jean-Marie Conty.


72 LINGUAGEM E VIDA

moderno, as relaes de concordncia entre a imaginao e a linguagem como


conseqncia das possibilidades extremas da linguagem, o Humor e a Poesia.

O TEATRO E A POESIA2

Colocar nestas condies a questo do teatro colocar a questo de uma


linguagem que pertenceria apenas ao teatro, que seria independente, portanto,
da Palavra, com o destino da qual foi ligada3.
Parece-me que a noo de uma linguagem que pertenceria apenas ao teatro
poderia confundir-se com a noo de uma linguagem no espao, tal qual se pode
produzir no palco e oposta linguagem das palavras. A linguagem do teatro
em suma a linguagem do palco, que dinmica e objetiva. Ela participa de tudo
aquilo que pode ser posto sobre um palco em matria de objetos, de formas, de
atitudes, de significaes. Mas isto medida que todos esses elementos se orga-
nizam e, ao se organizarem, se separam de seu sentido direto, visando criar assim
uma verdadeira linguagem baseada no signo em vez de na palavra. E a que
aparece a noo de simbolismo baseado na troca de significaes. tirado das
coisas seu sentido direto e lhes dado um outro.

Na atual decadncia do teatro incrimina-se sobretudo o pblico. E isto


com base nos textos de teatro que ele rejeitou, sem se perguntar o que a repre-
sentao fez desses textos. E parece realmente que sob este ponto de vista no
houve, pelo menos na Frana, h muito tempo, em torno de um texto de qua-
lidade, nenhuma representao teatral vlida. Parece ter sido completamente per-
dida a noo das necessidades do teatro e de suas possibilidades. Uma concepo
europia do teatro quer que o teatro seja confundido com o texto, que tudo seja
centrado em torno do dilogo considerado como ponto de partida e de chegada.
Em face disso parece-nos que, sem fazer apelo noo filosfica e talvez dema-
siadamente especializada do teatro puro, possvel extrair a noo de um teatro
baseado nas possibilidades de uma expresso puramente cnica, onde todos os
meios de ao utilizveis no palco entrariam, por sua vez, em jogo. Isto no
quer dizer que necessrio que se faa prevalecer a encenao sobre o texto. E
a respeito disso preciso ainda opor uma certa concepo europia de encenao,
onde tudo, luz, cenrio e movimento, apenas um auxiliar, pode-se dizer, de-
corativo do texto, a uma concepo orgnica e profunda, onde a encenao se

2. Os dois textos se seguem no manuscrito. Parece que so duas subdivises de um texto mais
importante que Antonin Artaud teria projetado.
3. Antonin Artaud desenvolveu esta idia no "Teatro Oriental e Teatro Ocidental".
O TEATRO E A PSICOLOGIA... 73

torna uma linguagem particular. No caso em que o texto conserva toda sua
importncia, certamente tudo o que dado encenao poder apenas terminar
em um desvio puramente artstico do texto, portanto intil e parasitrio. Pode-
mos assim concluir que o teatro s ser devolvido a ele mesmo no dia em que
toda a representao dramtica se desenvolver diretamente a partir do palco, e
no como uma segunda verso de um texto definitivamente escrito, suficiente a
si mesmo, e limitado s suas prprias possibilidades.
Isto nos leva a questionar a linguagem da palavra tal qual ela concebida
atualmente na Europa - como meio de expresso - e a questionar se esta responde
verdadeiramente a todas as necessidades orgnicas da vida. De onde provm a
questo acessria da destinao da palavra4, e de seu poder real e mgico de
evocao e de realizao.
Em todo caso, o que quer que possamos pensar acerca da importncia da
palavra dentro do real, o teatro, que oferece outras possibilidades alm daquelas
puramente verbais, no lhe est diretamente ligado.
O teatro se confunde com a prpria destinao do mundo formal. Ele
levanta a questo da expresso pelas formas e incita a uma no preocupao com
o real mediante o humor, criador da poesia.
Este tratamento (atravs do humor) do real incita, em seguida, a se per-
guntar aonde este ltimo conduz o esprito, a sensibilidade. Isto, se quisermos
da tirar conseqncias extremas. Por um lado, ele conduz metafsica intelectual,
por outro, metafsica orgnica, pelas possibilidades de dissociao mgica e
religiosa da linguagem empregada.

Novos objetos, algumas vezes at esplendidamente evoludos, porm aca-


bados, alguma idia elevada deles prprios que sejam capazes de dar, por vezes,
inteligncia humana.
Traduo de Regina Corra Rocha

4. igualmente no "Teatro Oriental e Teatro Ocidental" que Antonin Artaud falar da desti-
nao da palavra.
O TEATRO, ANTES DE TUDO, RITUAL E MGICO...1

O teatro antes de tudo ritual e mgico, isto , ligado a foras, baseado


em uma religio, crenas efetivas, e cuja eficcia se traduz em gestos, est ligada
diretamente aos ritos do teatro que so o prprio exerccio e a expresso de uma
necessidade mgica espiritual.
As crenas se extinguem, o gesto exterior do teatro permanece vazio de
sua substncia interna, mas ainda transcendente no plano da imaginao e do
esprito. No existem mais poderes ou idias ocultas atrs desse gesto, mas um
substrato potico real continua a se agitar por trs como uma rejeio. As idias
morrem mas seu reflexo permanece no estado potico que o gesto evoca. E a
qualidade segunda, o segundo estdio do gesto representado pela poesia no estado
puro, que tem ainda o direito de chamar-se poesia, mas sem uma eficcia mgica
real. A arte est muito prxima de sua decadncia.
Neste estado, no entanto, o esprito continua a criar mitos e o teatro a
represent-los. O teatro continua a viver acima do real, a propor ao espectador
um estado de vida potica que, se impelido ao extremo, s conduziria a preci-
pcios, mas assim mesmo prefervel vida psicolgica simples, sob a qual sufoca
o teatro de hoje em dia.
Este o grau em que o teatro usa da magia da natureza, permanece marcada
por uma colorao de tremor de terra e de eclipse, onde os poetas fazem falar

1. Transmitido por Jean-Marie Conty.


76 LINGUAGEM E VIDA

a tempestade, onde o teatro enfim se contenta com o lado fsico acessvel da alta
magia.
A poesia que ele utiliza negra; e, radiosa, ainda mais negra, ainda mais
fechada.
E o momento em que o teatro se tornou funo de uma substituio. A
vida ordinria o teatro ope um estado de vida potica resplandecente, porm
falsa. A vida psicolgica, uma outra vida psicolgica apenas mais avultada, apenas
mais monstruosa. As personagens manejam suas facas, mas o que comem, mesmo
no plano simblico, no tem mais sentido.
Ns estamos, agora, no estdio da vida aplicada, onde tudo desapareceu,
natureza, magia, imagens, foras; no estado de estagnao em que o homem vive
de seu dote, com uma reserva sentimental e moral h um sculo imutvel. Neste
estdio o teatro no cria mais mitos. Os mitos mecnicos da vida moderna, foi
o cinema que os assumiu. Ele podia assumi-los, pois no levam a nada. Eles do
as costas ao esprito. Quanto ao pseudoconhecimento da inconscincia, aos fan-
tasmas psicolgicos, s aparies poticas que ela pode fazer surgir, preciso
entender a si mesmo, ou por uma aproximao com a vida ardente, a vida em
estado puro, achar alguma coisa de essencial no ser, decidir separar novamente
os princpios psicolgicos, mas separ-los metafisicamente e por aquilo que eles
representam de transcendente. Assim, o inconsciente conduzir novamente aos
smbolos e s imagens tomados como um meio de reconhecimento e que ultra-
passa a psicologia.
Ora, o inconsciente registrado fotograficamente terminar apenas por es-
tender desmesuradamente o domnio do conhecido no mgico e no sairemos
mais do teatro moral e cirrgico.
Traduo de Regina Corra Rocha
CARTA A LVNTRANSIGEANT'

Poderiam os senhores me permitir retificar alguns termos da entrevista por


mim dada, em L'Intransigeant de hoje, sobre o teatro da NRF.
Na realidade a NRF no criou um teatro confiando a mim a direo, mas
aceita, no entanto, patrocinar o empreendimento que eu planejo. Ela me d seu
apoio e o direito de me servir de seu nome.
A primeira pea que vou montar o Woyzeck de Bchner.
Permitam-me ainda os senhores insistir na significao profunda que pre-
tendo dar ao espetculo que vou montar e em alguns dos signos caractersticos
das encenaes que farei.
O teatro contemporneo est em decadncia porque perdeu o sentimento,
por um lado, da seriedade, por outro, do riso, pois rompeu com a gravidade,
com a eficcia imoral e perniciosa, e, para dizer tudo, com o perigo. Perdeu
ainda o sentido do humor verdadeiro e o poder de dissociao fsica e anrquica
do riso. Enfim ele rompeu com o esprito de anarquia profunda que a base de
toda a poesia2.
Eu lhe seria muito grato se insistir nesses poucos pontos e se disser que,
objetivamente, por meio de uma espcie de nova pantomima, onde os gestos

1. Carta publicada em flntransigeant de 17 de junho de 1932, precedida da seguinte


introduo:
Aps o nosso artigo estampado ontem sobre o teatro da N.R.F., Antonin Artaud, a quem caber a
direo deste na prxima temporada, nos deu hoje algumas especificaes complementares.
2. Esse pargrafo foi inteiramente retomado em "A Encenao e a Metafsica".
LINGUAGEM E VIDA
78

e atitudes figuram no sentido de hierglifos vivos, que conto torn-los concretos


e sensveis no palco.
Desculpando-me, peo aos senhores crerem em todos os meus agradeci-
mentos.
ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


O TEATRO QUE VOU FUNDAR1

Eu tenho um projeto de teatro que conto realizar com o apoio da NRF;


ela me oferece suas pginas para que eu possa definir a orientao desse teatro,
objetivamente e do ponto de vista ideolgico. O artigo, no qual vou expor meu
programa e definir minhas diretrizes, ser constitudo por uma espcie de mani-
festo que vrios escritores da NRF devero assinar. Alm disso, Andr Gide,
Julien Benda, Albert Thibaudet e Jean Paulhan constituem o comit que patro-
cinar esse empreendimento. Como membros desse comit eles tomaro parte
em todas as discusses concernentes aos espetculos que sero montados nesse
teatro.
Ainda no examinei a questo do local e pode ser que eu me decida por
um galpo, o qual mandarei arrumar e reconstruir segundo princpios que tendem
a se aproximar da arquitetura de certas igrejas, ou melhor, de certos lugares
sagrados e de certos templos do Alto Tibete. Eu tenho do teatro uma idia
religiosa e metafsica, porm no sentido de uma ao mgica, real, absolutamente
efetiva. E preciso entender que tomo as palavras "religioso" e "metafsico"
em um sentido que no tem nada a ver com a religio ou com a metafsica, da
maneira que so entendidas habitualmente. Demonstrando, assim, at que ponto
esse teatro tem inteno de romper com todas as idias que alimentam o teatro
na Europa em 1932.

1. Paris-Soir, 14 de julho de 1932.


80 LINGUAGEM E VIDA

Eu creio na ao real do teatro, mas no exercida no plano da vida. Depois


disso, intil dizer que considero vs todas as tentativas feitas na Alemanha, na
Rssia ou na Amrica, nesses ltimos tempos, para submeter o teatro s finali-
dades sociais e revolucionrias imediatas. Esses procedimentos de encenao em-
pregados, pelo fato de se deixarem submeter aos dados mais rigorosos do mate-
rialismo dialtico, pelo fato de voltarem as costas metafsica que menosprezam,
persistem, por mais modernos que sejam, numa encenao segundo a acepo a
mais grosseira dessa palavra. Eu no tenho tempo, nem aqui o lugar, para
aprofundar essa discusso. Existem aqui, como os senhores podem notar, duas
concepes de vida e poesia que se opem. Concepes com as quais o teatro
solidrio em sua orientao.
Em todo caso e do ponto ae vista objetivo, eis o que posso dizer: Est em
meu projeto encenar o Woyzeck de Bchner e vrias outras obras tiradas de
dramaturgos elisabetanos: A Tragdia do Vingador, de Cyril Tourneur; A Duquesa
de Amalfi e O Demnio Branco, de Webster, algumas obras de Ford etc, porm
apresentar um programa no na realidade meu objetivo, como tampouco repre-
sentar peas escritas. Eu creio que o teatro s poder voltar a ser ele prprio no
dia em que os autores dramticos mudarem completamente sua inspirao e so-
bretudo seus meios de escritura.
Para mim, a questo que se impe de se permitir ao teatro reencontrar
sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes,
de expresses e de mmica, linguagem de gritos e onomatopias, linguagem so-
nora, mas que ter a mesma importncia intelectual e significao sensvel que
a linguagem das palavras. As palavras sero apenas empregadas em momentos
determinados e discursivos da vida como uma luz mais precisa e objetiva apare-
cendo na extremidade de uma idia.
Eu me proponho tentar fazer em torno de um tema conhecido, popular
ou sagrado, um ou mais ensaios de realizao dramtica, onde os gestos, as ati-
tudes, os signos, sero inventados medida que forem pensados, e diretamente
no palco, onde as palavras nascero para rematar e concluir esses discursos lricos
feitos de msica, de gestos e de signos ativos. Ser necessrio encontrar um meio
de escrever, como nas pautas musicais, com uma linguagem cifrada de um novo
gnero, tudo aquilo que foi composto.

Traduo de Regina Corra Rocha


CARTA COMCEDIA1

Paris, 18 de setembro de 1932

Senh or,
Permita-me desenvolver aqui alguns dos princpios que me guiaram no
empreendimento que busco.
Concebo o teatro como uma operao ou uma cerimnia mgica, e con-
centrarei todos os meus esforos para lhe devolver, por meios atuais e modernos,
e tambm compreensveis a todos, seu carter ritual primitivo.
Em todas as coisas existem dois lados, dois aspectos2.

1. Carta publicada na Comcedia de 21 de setembro de 1932, sob a rubrica VAvant-Garde, com a


seguinte introduo:
Porque o Sr. Antonin Artaudfunda
"O Teatro da Crueldade"
O teatro, disse ele, uma "cerimnia mgica"
e ns no representaremos peas escritas
Ns havamos anunciado que o jovem escritor de arte e encenador, senhor Antonin Artaud, se disps
afundar, sob a gide da Nouvelle Revue Franaise, um novo palco de vanguarda que se abrir logo e se
intitular "Teatro da Crueldade". No perodo difcil que atravessa o teatro, no momento em que todo
mundo se preocupa com o seu destino, era particularmente interessante saber do prprio senhor Antonin
Artaud suas metas e suas idias. Eis a sua resposta que constitui verdadeiro manifesto.
2. L-se na Comaedia: II y a dans tout ct deux choses, deux aspects ("H em todo lado, duas coi-
sas, dois aspectos"). O que nos parece um erro de impresso evidente. Cremos mais lgico entender: //
y a dans toute chose deux cts, deux aspects. ("H em toda coisa, dois lados, dois aspectos"). Isto confir-
82 LINGUAGEM E VIDA

Io Aspecto fsico, ativo, exterior, que se traduz por gestos, sonoridades,


imagens, harmonias preciosas. Este lado fsico endereado diretamente sensi-
bilidade do espectador, isto , a seus nervos. Ele possui faculdades hipnticas.
Ele prepara o esprito atravs dos nervos para receber as idias msticas ou me-
tafsicas que constituem o aspecto interior de um rito, do qual estas harmonias
ou estes gestos so apenas o invlucro.
2o O aspecto interior, filosfico ou religioso, entendendo-se este ltimo
em seu sentido mais amplo, no sentido de comunicao com o universal.
Que se tranqilizem, porm, os espectadores, pois todo rito tem trs graus.
Junto com o lado fsico destinado a envolver e a encantar, a exemplo de qualquer
dana e de qualquer msica, aparece o lado ferico e potico do rito, sobre o
qual o esprito pode se deter sem ir mais longe. Neste estgio, o rito conta
estrias, fornece imagens maravilhosas e muito conhecidas, da mesma maneira
que, ao lermos a lltada, podemos nos deter nos avatares matrimoniais de Menelau
sem nos preocuparmos com as idias profundas e terrveis que eles encerram e
so obrigados a dissimular.
Alis, eu j insisti neste lado mgico e operatrio em um artigo publicado
no nmero de fevereiro de 1932 na NRF 3 , quando tive a grande satisfao de
constatar que excelentes crticos me davam razo4. Foi assim que Jean Cassou,
no nmero de 17 de setembro da Nouvelles Littraires, falou da maneira potica
de utilizar os objetos no palco usando o prprio nome de "cerimonial" que eu
havia empregado em uma nota anexada a esse mesmo artigo5. Parece, assim,
haver uma concordncia, em certos meios, em considerar o teatro no como um
jogo de arte gratuito ou como um meio de se distrair dos aborrecimentos de
uma difcil digesto.
Mas ao mesmo tempo que ele reencontra os poderes de ao direta sobre
os nervos e a sensibilidade e atravs da sensibilidade sobre o esprito6, o teatro
abandona o hbito do teatro falado, onde a clareza e a lgica constrangem a

ma a nossa impresso: que, mais abaixo, a propsito do primeiro desses aspectos, o aspecto fsico, An-
tonin Artaud diz: Ce ctphysique... ("Este lado fsico...").
3. "A Encenao e a Metafsica".
4. A redao do jornal julgou oportuno introduzir neste ponto a seguinte nota: O Sr. Artaud es-
quece alguns, e aqueles que, de h muito, aqui mesmo, a propsito de Edipo Rei, expuseram um sistema que
alis desde toda eternidade o fundo mesmo da grande arte teatral.
5. No alis a palavra cerimonial que empregada por Antonin Artaud, mas a expresso velha
magia cerimonial. Mas bem esta palavra que utiliza Jean Cassou em um artigo consagrado aJean-Coc-
teau: Morceaux choisis, Pomes (n.r.f.) - Essai de critique indirecte (Grassei), nmero de 17 de setembro de
1932 de Nouvelles Littraires. A propsito do teatro de Jean-Cocteau, ele escreve o seguinte: O teatro,
irmo da sesso de predigitao, quer pasmar. Ele quer produzir uma imitao do milagre, recuperar, por
seus feitios, sua funo antiga de cerimonial religioso e operatrio.
6. Aqui tambm, provavelmente, um erro de impresso. L-se na Comcedia:... epela sensibilida-
de um esprito... Pensamos que se deva entender:... sobre o esprito... Pois o teatro tal como o concebe
Antonin Artaud deve agir sobre o esprito. Ele o diz alis nesse mesmo texto na pgina anterior (3 o ):
//prepare Vespritpar les nerfs... ("Ele prepara o esprito pelos nervos...")
CARTA COMCEDIA 83

sensibilidade. No se trata, no entanto, de suprimir a palavra, mas de reduzir


consideravelmente seu emprego, ou dela se servir em um sentido mgico esque-
cido ou desconhecido. Trata-se, sobretudo, de suprimir um certo lado puramente
psicolgico e naturalista do teatro e de permitir poesia e imaginao retomar
seus direitos.
Existe, entretanto, e eis aqui a novidade, um lado virulento e diria mesmo
perigoso da poesia e da imaginao a reencontrar. A poesia uma fora disso-
ciadora e anrquica, que, por analogias, associaes, imagens, vive apenas de uma
subverso de relaes conhecidas. A novidade est em subverter estas relaes
no apenas no domnio exterior, no domnio da natureza, mas no domnio in-
terior, isto , no da psicologia.
Se agora me perguntarem como, responderei que este o meu segredo.
Em todo caso, o que posso dizer que nesse novo teatro o lado objetivo exterior,
isto , a parte cnica, a arte cnica, ter uma importncia primordial, onde tudo
ser baseado no no texto, mas na representao, onde o texto volta a ser escravo
do espetculo. Uma nova linguagem que ter suas leis e seus prprios meios de
escrita se desenvolver paralelamente linguagem falada e, por mais fsica e con-
creta que ela seja, ter tanta importncia intelectual e faculdades sugestivas quanto
a outra.
Pois creio que urgente para o teatro tomar conscincia de uma vez por
todas daquilo que o distingue da literatura escrita. A arte teatral, por mais fugaz
que possa parecer, baseada na utilizao do espao, na expresso dentro do
espao. E no est escrito em nenhum lugar que as artes fixas, inscritas na pedra,
na tela ou no papel, sejam mais vlidas ou eficazes magicamente.
Nesta nova linguagem, os gestos tm o valor das palavras, as atitudes tm
um sentido simblico profundo, so capturadas em estado de hierglifos, e o
espetculo todo, em vez de ter em vista o efeito e o charme, ser para o esprito
um meio de reconhecimento, de vertigem e de revelao.
Ora, isto dizer que a poesia se instala nos objetos exteriores, retirando
de suas junes e alternativas imagens e consonncias estranhas, e fazendo com
que tudo no espetculo vise expresso por meios fsicos que engajam to bem
o esprito quanto a sensibilidade.
E assim que aparece uma certa idia alqumica do teatro onde, ao contrrio
do teatro habitual, a descentralizao analtica dos sentimentos corresponde ao
estado grosseiro da alquimia cientfica (a qual apenas um ramo degenerado da
Alquimia), onde as formas, os sentimentos, as palavras, compem a imagem de
uma espcie de turbilho vivo e sinttico, no meio do qual o espetculo toma
o aspecto de uma verdadeira transmutao.
Quanto s obras, ns no encenaremos peas escritas. Os espetculos sero
feitos diretamente em cena e com todos os meios que a cena oferece, mas tomada
como uma linguagem do mesmo nvel dos dilogos do teatro escrito e das pa-
lavras. O que no quer dizer que estes espetculos no sero rigorosamente ela-
borados e preestabelecidos definitivamente antes de serem encenados.
84 ^^ LINGUAGEM E VIDA

Por enquanto isso tudo. Quanto aos meios materiais de realizao, per-
mitam-me revel-los somente mais tarde.
ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha

ta
A MARCEL DALIO

Paris, 27 de junho de 19321


Segunda-feira

Caro Amigo,
Voc deve ter notado que, depois da entrevista e de minha carta a L'In-
transigeant, meus projetos esto tomando corpo2. Telefonei sbado para sua casa
para marcarmos um encontro. No devem ter lhe dado o recado, ou o fizeram
tarde demais. no entanto bastante urgente que eu o veja. Eu lhe perguntei no
outro, dia, olhos nos olhos, se voc acreditava nesse trabalho, pois ele de uma
natureza tal que devemos ou nos entregar totalmente ou no nos entregar de
maneira alguma. Trata-se, em suma, de comear do nada. Achei muito engraado
que voc me perguntasse se eu tinha inteno de fazer teatro de arte, pois me
parece que pela prpria definio este risco est afastado: um teatro de arte no
pode ser nada alm de um teatro marginal. J um teatro que tenciona demolir

1. Carta rasgada escrita sobre papei com cabealho: Le Dome, transmitido pela Sra. Anie Faure.
Inserida num envelope assim endereado:
M. Mareei Dalio
Hotel Livingstone
16, rue Livingstone
Paris
Ou esta cana no foi enviada, ou Antonin Artaud, a recopiou antes de envi-la.
2. Trata-se sempre da entrevista e da cana a LVntransigeant, p. 77.
86 __ LINGUAGEM E VIDA

tudo para voltar ao essencial, para procurar, atravs de meios especificamente


teatrais, realcanar o essencial, no poderia ser um teatro de arte, e isto por
definio. Fazer arte, fazer esteticismo, ter em vista a aprovao, o efeito furtivo,
exterior, passageiro, mas tambm procurar exteriorizar sentimentos graves, pro-
curar atitudes essenciais do esprito, querer dar aos espectadores a impresso de
que eles arriscam alguma coisa, vindo ver nossas peas, e tornando-os sensveis
ao esprito de uma nova idia do Perigo, creio que isto no fazer arte.
Demorei muito para lhe telefonar, pois queria estar absolutamente pronto.
Agora, creio que j estou.
Eu sei sobre o que quero falar com voc e estou apto a lhe dizer de uma
maneira objetiva o que quero fazer.
E esperando que autores novos nos tragam peas que se enquadrem na
linha do essencial, e que sejam capazes de exprimi-lo com os meios cnicos,
vocais e plsticos que preconizo, eu tenho um programa.
O ponto no qual quero insistir que as peas que escolhi no so para
mim um fim, mas um meio: "so peas que no podem atrapalhar o emprego
dos procedimentos cnicos que tenho em vista".
E por seu turno, preciso que esteja bem entendido que, por mais espe-
taculares que sejam, esses procedimentos cnicos que visam realizar uma certa
idia do espetculo integral no querem fazer do espetculo a finalidade e o fim
do teatro.
Resumindo, eu no quero que possam me acusar de fazer um teatro de
arte, ou um teatro arqueolgico, e aqueles que me fizerem essa acusao no
tero compreendido o que procuro. No existe nisso nenhum segredo e eu no
temo que tomem de mim minhas idias, pois pretendo desenvolv-las a fundo
em um manifesto preciso e que tornarei pblico.
Praticamente a questo que se coloca para mim a seguinte: "estando os
espetculos escolhidos, preciso ainda de um elenco que possa se prestar a todos
esses procedimentos cnicos, que traduzam minuciosamente as indicaes que lhes
darei, pois, bem entendido, s ser possvel chegar a uma encenao de tal ma-
neira matemtica como a que almejamos se os atores estiverem dispostos a seguir
escrupulosamente as indicaes que lhes darei".
Em outros termos, vivendo esses espetculos a partir de certos procedi-
mentos cnicos, ser sob minha direo que os atores sero levados realiz-los.
Portanto, necessrio um homem, mas um homem maravilhoso que possa
no plano prtico e financeiro tomar iniciativas verdadeiramente revolucionrias,
to revolucionrias quanto aquelas que voc e eu admitimos serem possveis e
mesmo necessrias no domnio artstico, plstico e no das idias. Eu digo que
essas iniciativas devero ser revolucionrias, no por gosto, ou por um desejo
doentio de pr tudo em desordem, mas sim porque creio que nas circunstncias
atuais apenas concepes novas em matria de finanas podem ter chance de
criar um negcio slido e que tenha possibilidade de durar. Nada impede que
esse homem seja voc, e chego mesmo a lhe perguntar se, com os elementos
A MARCEL DALIO 87

apresentados, o apoio da NRF, seu nome, e os nomes dos escritores que me


prometeram apoiar, voc se encarregaria de criar um negcio slido, isto , obter
todas as espcies de crdito que nos permitam ter um teatro, cenrios, publicidade
e um pouco de dinheiro lquido que nos permita comear.
E preciso que tornemos a nos falar pessoalmente sobre tudo isso e nessa
espera sou seu amigo,
ANTONIN ARTAUD

Rua do Comrcio n" 4, XVe, E. V.

Traduo de Regina Corra Rocha


AO SENHOR VAN CAULAERT

Paris, quarta-feira
6 de julho de 19321

Caro Senhor,
Eu j lhe disse em que consistiam os meus projetos e os apoios que eu
havia obtido.
Eis aqui alguns detalhes suplementares.
Eu no sei onde nos-instalaremos, mas pode ser que eu me decida por um
hangar que mandarei arrumar e reconstruir seguindo os princpios que levaram
arquitetura de certas igrejas, ou melhor, de certos lugares sagrados e de certos
templos do Alto Tibete. Eu tenho do teatro uma idia religiosa e metafsica,
mas no sentido de uma ao mgica absolutamente efetiva.
Isto significa dizer-lhe at que ponto esse teatro quer romper com todas
as idias sob as quais se entende o teatro na Europa em 1932.
Eu creio na ao real do teatro, mas no plano da vida. intil dizer,
depois disso, que considero vs todas as tentativas feitas na Rssia para submeter

1. Carta rasgada, transmitida pela Sra. Anie Faure.


J. D. Van Caulaert, cartazista especializado em cartazes de teatro, desenhava os croquis que
acompanharam as crticas teatrais de Paris-Soir. Na crtica relativa aos Cencis, encontram-se dois dese-
nhos de J. D. Van Caulaert: um retrato de Antonin Artaud e um retrato de d'Iya Abdy (Paris-Soir, 9
de maio 1935).
90 LINGUAGEM E VIDA

o teatro a finalidades sociais e revolucionrias imediatas, por mais novos que


sejam os procedimentos de encenao empregados. Esses procedimentos, na me-
dida em que se submetem aos dados mais estritos do materialismo dialtico,
voltam as costas metafsica que menosprezam e persistem em uma encenao
segundo a acepo mais grosseira dessa palavra. Seria preciso aqui entender a
discusso, pois duas concepes de vida e de poesia se afrontam, concepes com
as quais o teatro solidrio em sua orientao.
Eu pensei em elaborar um programa, mas isso no importante e no
tenho como meta encenar peas escritas. O teatro s voltar a ser ele prprio
no dia em que os autores dramticos, se impondo novas disciplinas, mudarem
suas inspiraes e sobretudo seus meios de escrita.
A questo que se impe de se permitir ao teatro tornar a encontrar sua
verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de
expresses e de mmicas, linguagem de gritos e de onomatopias, linguagem so-
nora, onde todos os elementos objetivos conduziro a signos, sejam eles visuais,
sejam sonoros, mas que tero a mesma importncia intelectual e significao
sensvel que a linguagem das palavras. As palavras sero empregadas apenas nas
partes j determinadas e discursivas da vida, como uma claridade mais precisa e
objetiva surgindo na extremidade de uma idia.
Eu me proponho tentar fazer em torno de um tema conhecido, popular
ou sagrado, uma ou mais tentativas de realizao teatral, onde os gestos, as ati-
tudes, os signos, sero inventados medida que forem pensados, e diretamente
no palco, onde as palavras nascero para fechar, e fazer chegar a um domnio
reconhecido, esses discursos lricos feitos de msica, de gestos e de signos ativos.
E ser necessrio encontrar um meio de anotar como sobre pautas musicais, com
uma linguagem numrica diferente, tudo o que foi composto.
Agradecimentos e saudaes.

ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


Ao SENHOR VAN CAULAERT OU SR. FOUILLOUX
(PROJETO DE CARTA)

Paris, sexta-feira
8 de julho de 19321

Caro Senhor,
Como o senhor sabe, eu tenho um projeto de teatro, conforme o meu
artigo2, mas praticamente, e no ponto do desenvolvimento cultural em que nos
encontramos, todo esforo para fazer um teatro como esse deve consistir em
concretizar e objetivar princpios semelhantes e lhes achar uma expresso anloga.
Toda a originalidade desse teatro tende procura de uma nova linguagem cnica
base de signos ou gestos ativos e dinmicos e no mais de palavras. O que
quer que ele seja, o teatro, se quiser viver, no poder continuar a se apresentar
como uma espcie de entretenimento digestivo, e ser no mximo, quando exce-

1. Cana rasgada, transmitida pela Sra. Anie Faure. No envelope, a seguinte meno de Antonin
Artaud:
Van Caulaert Teatro Alqumko ou Mgico
Fouilloux ou METAFSICO
Cabe supor que Antonin Artaud, desejando interessar o maior nmero de pessoas em seu proje-
to de teatro, tenha redigido um modelo de carta que, no caso presente, teria enviado s duas pessoas
nomeadas no envelope. Quanto aos diferentes qualificativos desse teatro, ver-se- nas cartas subseqen-
tes que hesita longamente antes de intitul-lo: Teatro da Crueldade.
Georges Fouilloux fora administrador e, depois, a panir de 1931-1932, diretor do Teatro Pigalle.
2. Sem dvida a carta ao L'Intransigeant, p. 77.
92 LINGUAGEM E VIDA

lente, um divertimento de letrados inteligentes e cultos. Creio que a finalidade


do verdadeiro teatro nos reconciliar com uma certa idia da ao, da eficcia
imediata que, pensam alguns, deva se desenvolver no plano utilitrio quer da
vida, quer da atualidade, e que me parece, no que s posso esposar algumas idias
de certos eminentes pensadores do sculo, deve procurar alcanar as regies mais
profundas do indivduo e criar nele prprio uma espcie de alterao real, ainda
que escondida, e da qual s sero percebidas as conseqncias mais tarde, Isto
significa colocar o teatro no plano da magia; o que nos aproxima de certos ritos,
de certas operaes da Grcia Antiga e da ndia em todos os tempos. Contudo
precisamos nos entender e no preciso acreditar que o teatro, segundo essa
concepo, seja reservado a uma elite de espritos religiosos, msticos e iniciados.
Existem graus. Eu tentei lhe descrever a meta profunda dessa tentativa,
mas praticamente preciso procurar os meios elementares, simples, visveis e
exteriores de produzir semelhantes efeitos e, objetivamente, trata-se apenas de
alargar os meios de expresso do teatro, o que poder parecer primeira vista
uma espcie de music hall borbulhante de expresses, de imagens slidas, uma
pantomima sonora e falada, uma srie de quadros e imagens com msica - pois
a msica concebida com um novo esprito ter grande importncia nesse teatro,
e esses jogos de expresso, de entonaes e de palavras sero centrados em torno
de temas simples, claros e conhecidos, quando no o forem em torno de obras
dramticas de peso: Woyzeck, Webster e melodramas da melhor veia romntica,
que sero o seu pretexto e objeto.
Eu tentei desenvolver em grandes linhas minha idia. E no importa a
confiana que estejam dispostos a depositar em mim. Pois tenho, atrs de mim,
realizaes teatrais, e um movimento se cria e existe em torno dessas idias, no
meio da NRF e alguns outros. Se no houver impossibilidade radical, primeira
vista, e lhe interessar a tentativa, queira marcar um encontro, contanto que L.
Jouvet3, com quem tudo isso feito de pleno acordo, no queira realizar qualquer
coisa ele prprio fora da CDCE 4 .
Cordialmente,

ARTAUD

Rua do Comrcio n" 4.

Traduo de Regina Corra Rocha

3. Louis Jouvet, cuja colaborao Georges Fouilloux havia conseguido, havia montado vrios
espetculos no Teatro Pigalle, em particular em 1932, La Ptissire de Village, de Alfred Savoir.
4. Ns no sabemos ao que correspondem essas misteriosas iniciais.
A ANDR ROLLAND DE RENVILLE

Quarta-feira,
13 de julho de 19321

Meu caro amigo,


Creio que voc no compreendeu muito bem o gnero de dificuldades com
que me defronto na redao de meu manifesto2. Eu no o censuro, de modo
geral, por ter um esprito voltado para o essencial; eu o censuro por voltar seu
esprito em vo para o nada, de uma maneira gratuita e insensvel, e por desen-
volver suas concluses e difundir o resultado de suas pesquisas em um domnio
no real e ineficaz, onde elas tm apenas valor literrio, verbal, sem ligao de
nenhuma espcie com o mundo em que vivemos. A sua ascese enfim inumana,
e me parece indispensvel afirmar que nenhuma conquista, que tenda a e tenha
como objetivo a realidade metafsica a mais rara e a mais densa, tem valor a no
ser em funo do plano fsico, terrestre, material e humano no qual vivemos.
Alm disso, como aquilo que podemos esperar da verdade - na medida em que

1. Ao contrrio de todas as cartas endereadas a Andr Rolland de Renville, que nos foram
transmitidas por seu destinatrio, essa carta nos foi comunicada pelo Sr. Jean-Marie Conty. Ser que
no foi enviada? T-la- Antonin Artaud pedido de volta a Andr Rolland de Renville, a fim de reto-
rnar algumas idias a contidas ou para public-la como publicou a "Terceira Cana sobre a Crueldade"
Em todo caso, trata-se efetivamente de uma carta acabada.
2. evidente que agora, e nas canas seguintes, o que est em pauta o "Primeiro Manifesto do
Teatro da Crueldade".
94 LINGUAGEM E VIDA

o fazemos com os meios humanos, portanto limitados por essncia - s pode


ter valor em relao a certas possibilidades bastante atuais e imediatas do
esprito, me parece evidente que ns s a procuremos, que tendamos a ela
porque estamos separados dela. Eu quero dizer que a verdade no uma ques-
to de definio. Fazer a pergunta como se propusssemos um problema
de escola, nos perguntando qual a idia que fazemos da verdade, quais so os
meios de alcan-la, qual seu discriminante, qual sua pedra de toque, de
que maneira nos parece possvel determinar que a possumos, fazer a pergunta
de uma maneira falsa, fazer uma falsa idia da natureza da verdade, do valor
das idias, e do funcionamento do esprito. Eu no tenho a inteno, hoje, de
retomar o problema da verdade e de o discutir. Um problema mais restrito, porm
no menos difcil, apresentou-se a mim - o problema do teatro, que tenho, a
inteno de tentar resolver em seu sentido integral, e em seu plano mais elevado,
se ouso dizer, e chegar a encontrar e a fixar a verdade limitada do teatro, o que
ser um progresso precioso em direo conquista da verdade total que hu-
manamente pode apenas consistir em uma atitude de esprito, a melhor e a
mais profunda possvel, a mais capaz justamente de nos distanciar das contin-
gncias humanas, atitude filosoficamente paralela quela de certos xtases ou da
morte.
Colocar seu esprito filosoficamente em estado de morte para, por meio
dessa conquista intelectual, conquistar materialmente e na ordem sensvel a
equivalncia desse estado filosfico , me parece, a operao maior, a operao
radical qual ns devemos tender, sendo ela a nica a permitir que nos situemos
dentro da verdade, que obtenhamos a verdade, assim como a conquista de uma
certa verdade contingente e orgnica responde, no plano da matria, unifi-
cao dos slidos pela expulso de sua face inerte e apario alqumica do
ouro. Trata-se agora, atravs da expulso orgnica de todos os valores inertes
do mundo contemporneo, de chegar apario teatral de uma maneira que
no seja, como em toda esta carta, um jogo de esprito nas palavras e jogos
de palavras em torno de uma crtica, de uma essencial verdade de esprito.
Portanto, a afirmao da verdade teatral no pode fazer-se em si mesma,
mas atravs de todos os obstculos concretos e orgnicos que opem a situao
exata e real do teatro nesse instante preciso, na vida e nos espritos,
concorrncia real e filosfica do cinema,
uma certa concepo da arte e da vida, concepo comum grande maioria
das pessoas,
o destino reservado no mundo moderno a todos os valores morais ou
espirituais, o destino reservado s idias etc.
partindo desse fundo rochoso, bem situado e localizado, cercando fisi-
camente todos esses obstculos, que podemos de uma maneira eficaz, ativa, de-
cisiva, impor s pessoas o sentido da verdade teatral que se procura.
So estas, grosso modo, minhas censuras, minhas sugestes.
A ANDR ROLLAND DERENKVn r p
95

Acredite que todas elas vm de um amigo definitivamente sincero e fiel, e


que e seu.

ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


A ANDR ROLLAND DE RENVILLE

Tera-feira,
26 de julho de 1932

Meu caro amigo,


preciso que voc esteja verdadeiramente louco para me escrever uma car-
ta como essa. Essa carta me mostrou um lado obcecado e doentio seu, do qual
eu no imaginava a importncia. Considere pois que a sua ltima carta de dez dias
atrs. Dez dias para um homem no campo, sempre diante do mesmo ponto do
horizonte rapidamente reduzido a algumas linhas essenciais, mais rapidamente
ainda mobiliadas pelo esprito com uma eficcia aborrecida e idntica, dez dias nes-
sa condio muita coisa; para um homem da cidade isto no nada. Voc me
escreveu uma carta maravilhosa; e eu estava me perguntando, ainda estou a me
perguntar, se responderia diretamente ou se enviaria o manifesto. Eu no tinha
ainda tomado conscincia de minha demora. Eu no encontrei G. C, ela no procu-
rou influenciar ningum e eu me inclino mesmo a crer que ela bem menos cul-
pada do que voc possa pensar. Estou persuadido de que, se eu lesse a carta que voc
lhe escreveu, encontraria nela o que a levou a responder da maneira que ela o fez.
Estando isso acertado, a outra razo pela qual no lhe escrevi que estou
absolutamente aborrecido com a redao desse manifesto que no consigo pr de
p. Explique isso como puder. Eu no podia, pois, responder-lhe falando dele
porque o mesmo fenmeno de inibio se manifesta cada vez que ponho empe-
nho, por pouco que seja, nele.
98 LINGUAGEM E VIDA

Por outro lado, errado falar de manifesto; existem muitos manifestos e


poucas obras. Muita teoria e nenhuma ao. As idias sobre o teatro que quero
fazer esto contidas no "Teatro Alqumico" e em "A Encenao e a Metafsica".
Eu devo fazer simplesmente um papel tcnico e explicativo para dizer aquilo
que quero realizar e como espero realiz-lo.
No h por que lanar uma condenao sobre o teatro atual, que se condena
por si mesmo, e cujas circunstncias, alis, esto em vias de fazer justia elas
mesmas. Um teatro contra o qual o cinema pode lutar um teatro especifica-
mente morto. suficiente, me parece, perguntar qual a finalidade profunda
do teatro, sua razo de estar vivo para se conscientizar de que a essa finalidade
(ns somos alguns daqueles que a consideraram transcendente no mais alto grau)
o cinema no pode responder. O teatro s poder voltar a ser ele prprio no
dia em que tiver achado sua razo de ser, no dia em que tiver encontrado, de
forma material, imediatamente eficaz, o sentido de uma certa ao ritual e reli-
giosa, ao de dissociao psicolgica, de dilacerao orgnica, de sublimao
espiritual decisiva qual ele estava primitivamente destinado.
Em breve, espero, o artigo que devo escrever.
Seu fiel amigo,
ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


A GASTON GALLIMARD
(PROJETO DE CARTA)

11 de agosto de 19321

Caro Senhor,
Eu o fiz esperar por causa da redao de meu artigo2 que ainda no
est pronta. Explico-lhe aqui de uma maneira precisa e tcnica o que quero
fazer.
Nada poderei fazer sem seu apoio efetivo e se no for do conhecimento
de todos que o senhor patrocina diretamente o meu projeto e que o reco-
menda a todos aqueles sobre os quais tem influncia e, sem incluir o ttulo, dizer
por exemplo que a NRF depositou sua confiana em mim para que eu realizasse
um teatro conforme tudo aquilo que se pode atualmente esperar de essencial no
teatro.
O artigo saiu um pouco longo porque me obrigou a uma reviso de todas
as nossas idias sobre o teatro. Eu quis retomar a questo a fundo. Atravs de
sua influncia o senhor poderia contribuir muito para o xito deste projeto, em
torno do qual criou-se um movimento, principalmente no ambiente jovem e no
contaminado do teatro de hoje e que atualmente est sua espera.

1. Carta rasgada transmitida pela Sra. Anie Faure.


2. O "Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade" cujo o esboo de uma parte est escrito em
seqncia a este projeto de carta.
100 LINGUAGEM E VIDA

No ponto em que estou no posso divulg-lo sem perigo para mim e para
as idias que esto em sua base.
Meus mais profundos sentimentos.

ARTAUD

A EFICCIA

Teatro digestivo, de divertimento, oposto ao teatro srio, grave. Tudo isso


ligado decadncia de nossas idias.

OS ATORES

Qual o papel do ator em semelhante teatro. Ao mesmo tempo extrema-


mente importante, e extremamente limitado. Aquilo que chamamos personali-
dade do ator deve desaparecer completamente. Nesse teatro no h lugar para o
ator que impe seu ritmo ao conjunto, e a cuja personalidade tudo deve se
sujeitar. Nem conservar semelhante concepo. No teatro, o ator enquanto ator
no pode mais ter direito a nenhuma espcie de iniciativa. A personalidade pre-
ponderante do ator se explica diante de peas vazias, e de uma encenao nula,
e porque toda representao necessita de um elemento forte. Mas, de outro lado,
e porque nenhuma expresso atua, a no ser graas a uma fora no fundo intra-
duzvel e na qual todo signo, gesto ou imagem existe apenas em estado de con-
vocao, de imantao ideolgica dessa fora, e feita apenas para invocar o seu
sentido. A prpria orientao dos nossos espetculos exige atores fortes, que
sero escolhidos no em funo de seu talento, mas em funo de uma espcie
de sinceridade vital, mais forte do que suas convices. No se trata de dons,
mas de uma orientao particular de certos dons, o sentido de uma certa emulao
sagrada.

O PUBLICO

A questo no se existe ou no um pblico para esse teatro, mas sim a


criao desse pblico. da prpria natureza de semelhante espetculo ter sempre
algo a oferecer a no importa qual pblico, a quem as coisas representadas sero
sensveis pelo menos em uma de suas acepes3.

Traduo de Regina Corra Rocha

3. Cf. O Teatro da Crueldade ("Primeiro Manifesto")-


A ANDR GlDE

Quinta-feira,
20 de agosto de 19321

Caro Senhor,
Recebi sua carta e lhe agradeo. Minha declarao, agora terminada, deve
aparecer em outubro na NRF. Eu espero termin-la dizendo que um certo n-
mero de escritores, que j me autorizaram, e cujos nomes citarei, me permitiu
cit-los como adeptos dos princpios que formulo. No haver um comit de
patrocinadores e no porei seu nome encabeando os outros nomes. Mesmo que
at outubro o senhor no tenha tomado a deciso no que concerne a "Arden
of Feversham", eu lhe peo que me permita anunciar que o senhor tem a inteno
de fazer uma pea para esse teatro o qual chamarei

"TEATRO DA CRUELDADE",

que ser feito a partir da cena e em ligao com a encenao. Eu a anunciarei


encabeando a minha enumerao dos espetculos, entre os quais projeto encenar:
Io Um trecho do Zohar, a histria do Rabi ben Simeon, que queima como
fogo e que penso ser atual como o fogo.

1. Carta pertencente coleo Jacques Doucet. H ura erro quer a respeito do dia, quer da data:
20 de agosto de 1932 caa num sbado.
102 LINGUAGEM E VIDA

2o A tomada de Jerusalm, com a colorao vermelho sangue do qual pro-


vm, e fazendo vir, antes, todos os detalhes precisos e evocadores, seja de paixes,
seja de lutas filosficas profundas, entre os profetas, o rei, os padres e a plebe.
3o A histria do Barba Azul, segundo os arquivos e com uma idia nova
de erotismo e de crueldade.
4o Um conto do Marqus de Sade, onde o erotismo ser transposto, figu-
rado alegoricamente e vestido no sentido de uma exteriorizao violenta da cruel-
dade.
5 o Um ou mais melodramas romnticos, onde o inverossmil se tornar
um elemento ativo e ardente de poesia.
6o O Woyzeck de Bchner, por esprito de reao contra meus prprios
princpios e a ttulo de exemplo daquilo que se pode tirar cenicamente de um
texto preciso.
7a Obras do teatro elisabetano despojadas de seu texto, do qual s guardarei
as personagens, os trajes ridculos da poca, as situaes e naturalmente a ao2.
Parece-me que, mesmo para um scio capitalista e na condio de se saber
ler um texto, meu texto, existe um programa suficientemente sedutor, sobretudo
quando for lida minha declarao, que em [sua]3 parte tcnica indica a utilizao
teatral que eu posso fazer seja do que for.
Fielmente seu,

ANTONIN ARTAUD

Rua do Comrcio n" 4.

Traduo de Regina Corra Rocha

2. Esta numerao aparece no "Manifesto".


3. Palavra faltante no texto autografado.
A JEAN PAULHAN

Segunda-feira,
12 de setembro de 19321

Caro amigo,
Obrigado por sua carta, e desculpe-me de o ter assediado de telegramas.
Eu espero incessantemente receber as provas, porm caso acontea alguma coisa,
eis aqui a primeira frase tal qual a refiz. Creio, agora, que se reconhece a minha
maneira pessoal de escrever e que a crueldade no algo a acrescentado.
Ei-la:

No se trata de brandir em cena, a todo momento, a faca do aougueiro, mas de


reintroduzir em cada gesto de teatro* a noo de uma espcie de crueldade csmica, sem
a qual no haveria nem vida, nem realidade.
* Pode-se substituir "gesto de teatro" por "ato teatral". O senhor tem muito mais
do que eu o senso da lngua, veja o que ir melhor.

A crueldade no acrescentada a meu pensamento. Ela sempre viveu nele,


mas me faltava tomar conscincia. Eu emprego o nome de crueldade no sentido
csmico de rigor, de necessidade implacvel, no sentido gnstico de turbilho
de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor de necessidade implacvel fora

1. Desta carta foi extrada a segunda carta sobre a Crueldade.


104 LINGUAGEM E VIDA

da qual a vida no saberia se exercitar. O bem desejado, ele resultado de um


ato, o mal permanente. O deus escondido quando cria obedece necessidade
cruel da criao que se impe a si mesma, e assim ele no pode deixar de criar,
admitindo no centro do turbilho voluntrio do bem um ncleo de mal, cada
vez mais reduzido, cada vez mais consumido. E o teatro no sentido de criao
contnua, a ao mgica inteira obedece a essa necessidade. Uma pea na qual
no existe essa vontade, esse apetite de viver cegamente e capaz de passar por
cima de tudo, visvel em cada gesto e em cada ato, e no lado transcendente da
ao, ser uma pea intil e defeituosa.

Eu tenho pressa em v-lo tambm, ^ois tenho medo de que essa primeira
frase tenha me prejudicado muito, e me parece que principalmente na parte
terica e de doutrina eu tenha atin0ldo um ponto jamais atingido por mim at
agora.
Seu amigo,
A. ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


A ANDR ROLLAND DE RENVILLE

Paris, 13 de setembro de 19321

Caro amigo,
Eu me pergunto se minha carta de ontem no o chocou um pouco. Voc
sabe que minha amizade por voc integral e profunda. uma amizade de
esprito. Nada pode ter primazia sobre ela.
Eu modifiquei, novamente, todo o comeo do manifesto, que mesmo com
a frase modificada, a nica frase, me parecia um pouco fraco.
Responda-me com toda urgncia, ainda tempo, e diga-me o que pensa
desse novo incio e, se julgando-o com o mesmo rigor anterior, o considera
vlido.
Aqui est ele:

O processo do teatro atual no est mais por fazer. Ns temos necessidade de um


teatro que aja, e que aja com energia. No se trata, bem entendido, de brandir em cena,
a todo momento, a faca do aougueiro, mas de redescobrir teatralmente a noo de um
princpio que seja a base de toda a realidade. No se pode negar que a vida, naquilo que
ela tem de devoradora, de implacvel, se identifica com a crueldade. E isto no somente
no plano fsico e visvel, onde a crueldade est por todo lado, e adquire em todos os
lugares o comportamento de uma fora, mas tambm e principalmente no plano invisvel

1. Envelope e papel com o cabealho: LeDmc.


106 LINGUAGEM E VIDA

e csmico, onde o simples fato de existir, com a imensa soma de sofrimentos que isto
supe, aparece como uma crueldade.
Ora, o teatro, na medida em que pra de ser um jogo de arte gratuito, em que
volta a ser ativo e redescobre sua ligao com as foras, retoma seu carter perigoso e
mgico, e se identifica com essa espcie de crueldade vital, que a base da crueldade.
No podemos, por outro lado, continuar a prostituir a idia de teatro, que tem
apenas valor pela ligao mgica, atroz, que contrai com a realidade e com o perigo.
Formulada desta forma a questo do teatro etc.

Creio que dessa maneira o comeo se ajusta admiravelmente com a frase


seguinte, a qual conservei. Se voc tiver objees a detalhes, faa-as a mim com
urgncia e proponha-me palavras ou a parte principal da frase que se coadune
com o conjunto.
Mas faa-o rpido. Pois h urgncia, j que as provas esto chegando.
Paulhan admirvel em sua maneira de fazer a apresentao do manifesto.
Voc ver como e por qu. Alm do mais ele me paga adiantado (o manifesto),
e sabendo que estou aborrecido me envia uma boa soma em dinheiro.
No se pode ser injusto com ele. Se por amizade ele gosta de coisas de que
ns no gostamos, ele tambm gosta do que bom. E ns no somos to severos
com todas as nossas relaes.
Escreva-me contando o que tem feito. Por mim, espero chegar a escrever,
agora, as coisas importantes e decisivas com as quais sonho h anos.
Por que escrevo? Para me libertar, para me alcanar e alcanar a Verdade
sensvel e mgica por todos os meios que conheo.
Seu fiel amigo,

ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


CORRESPONDNCIA

Paris, 4 de maro de 19331

Carssimo amigo,
Eu no o vejo muito freqentemente, mas gosto muito de voc e no o
esqueo. Nunca esquecerei certas conversas e a amizade que voc me demonstrou
nos tempos difceis, em que era preciso uma certa intuio do esprito e do
corao para confiar em mim.
Voc encontrar anexada a esta carta a ltima verso do "teatro da cruel-
dade", que estou fundando, e que por vir depois do manifesto da NRF esclarece,
do ponto de vista tcnico, tudo o que o manifesto da NRF deixava obscuro.
Voc ver como minhas ambies so vastas, e que elas sejam realizveis, nem
todas as ideologias do mundo o provaro se eu no chegar realizao. Apesar
de tudo eu acredito que, ideologicamente, o manifesto formula questes que esta
verso parece querer, em parte, responder. - Acontece a esse respeito uma coisa
bem significativa no mundo literrio e da imprensa. que a importncia que a
maior parte dos escritores parece atribuir, no ntimo, s idias do manifesto, eles
ainda no acreditam ter chegado o momento de reconhec-la oficialmente. Eu

1. Carta transmitida pelo Sr. Jean-Marie Conty. No se sabe se ela foi enviada ou recopiada an-
tes de ser remetida. No consta nenhuma indicao sobre o destinatrio. Mas muito possvel que se
tratasse de Jean-Richard Bloch. O que leva pensar assim que Antonm Artaud insiste repetidas vezes so-
bre o contedo ideolgico de sua brochura e fala mesmo de sua/e revolucionria.
108 LINGUAGEM E VIDA

creio que eles se enganam e que os acontecimentos esto incrivelmente maduros.


A grande mudana que se prepara no domnio social deve vir de cima. So as
bases espirituais sobre as quais ns vivemos e que devemos retomar completa-
mente.
Ns temos necessidade de magia no domnio potico como nos outros. O
teatro, que poesia em ao, poesia realizada, te.n de ser metafsico ou ento
no ser. Eis em poucas palavras o que penso e acredito que ideologicamente meu
primeiro manifesto, acrescido desta ltima verso, remeta o teatro a seu verda-
deiro plano, de onde ele jamais deveria ter desc'io, e que este plano aquele
dos ritos religiosos^ de base metafsica, quer dizer, o plano do Universal. Todas
as crticas referentes a procedimentos acessrios de encenao, voltando-se contra
o mercantilismo, a industrializao do teatro, a cabotinagem das vedetes, a farta
grosseria de um pblico de ruminantes que vai ao teatro para ruminar vontade,
so crticas perdidas e inteis, no sendo o princpio proposto refazer o teatro
de arte, de uma arte alienada, desinteressada, mas ao contrrio, interessar o espec-
tador atravs de seus rgos, todos os seus rgos, em profundidade e em tota-
lidade. Aqueles que visam dar, que visam devolver ao pblico a religio do teatro,
e especialmente, de um certo teatro literrio de obras consagradas: Esquilo, Eu-
rpedes, Shakespeare, Molire, Corneille, Racine, para mim cospem fora da es-
carradeira. Todas essas obras escritas so uma linguagem morta que, com exceo
de Esquilo, e mesmo assim revivificado e entendido como deveria ser, no sabe-
riam mais inspirar nenhum interesse. Essa famosa poesia, que o pblico menos-
preza no sabendo o que ela , e que ela ainda a nica coisa que o toca sem
que ele possa dizer como isso acontece, j tempo de reconhecer que ela est
na base de toda verdadeira criao dramtica, e que ela s pode agir efetivamente
em seu sentido pleno. Em seu sentido de deflagrao e de emoo plena, de
comunicao religiosa, espasmodica, com a metafsica ativa, isto , com o esprito
universal. Toda a ao que no leve a isso, que [no]2 venha disso, que no
retorne a isso, uma ao trancada e embrionria, uma ao de eunuco e de
fraco, de impotente, de castrado admitido. O fato de uma conscincia humana
no querer ir at a, no admitir as conseqncias revolucionrias, perigosas -
por mais perigosas, por mais cruelmente ms que elas sejam -, de um princpio;
eis para mim o que me ultrapassa. por isso que eu quis que meu manifesto e
essa verso afirmassem minha f revolucionria no plano mais elevado e mais
decisivo possvel, e no possvel que no se vejam e que no se reconheam,
mesmo nos meios oficiais do teatro, ambientes mais ameaados pelos aconteci-
mentos - e at que ponto essa verso e as idias que ela encerra so antagnicas
a tudo o que admitido em matria de teatro, e o quanto essa reao contra
um estado de coisas, em plena runa, se apoia em bases intelectualmente slidas
que, se olharmos de perto, so as nicas nas quais o teatro sempre pde se apoiar.

2. Palavra faltante no texto autografado.


CORRESPONDNCIA 109

No em vo que todas as pessoas jovens de 20 25 anos, e que pensam,


sentiram que o Teatro da Crueldade estava no caminho do velho teatro primi-
tivo, e escrevem isso. Quer eles o contestem, quer o neguem, ser preciso que
as pessoas bem estabelecidas reconheam que o Teatro da Crueldade tem o futuro
com ele.
Note bem, caro amigo, que essa crtica violenta est endereada a quem
quisermos, exceto a voc. Eu o tomei por confidente de minha clera porque
voc , entre os meus amigos mais antigos, um dos raros diante de quem falo
me sentindo amado e compreendido.
O que quer que voc queira e possa fazer pelo Teatro da Crueldade, saiba
que considerarei como um gesto de um amigo muito caro, de um verdadeiro
irmo.
Eu lhe aperto as mos de todo o corao.
ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


A ANDR ROLLAND DE RENVILLE

8 de abril de 1933

Caro amigo,
Voc realmente um juiz impressionante. Aproximadamente e com as
restries que aqui fao, e que voc no mostra, mas que podemos ler em seus
prprios elogios e sob suas apreciaes, voc me disse exatamente o que eu pen-
so sobre minha conferncia1; isto , que ela oscila perpetuamente entre o fra-
casso e a palhaada mais completa, e uma espcie de grandiosidade que no se
mantm, mas que aparece aqui e ali atravs de imagens de um xito concreto
e absoluto. Resta dela, para mim, uma descrio potico-clnica da peste que
merece ser conservada, duas ou trs observaes verdadeiramente inquietantes
- quero dizer inquietantes nos fatos -, uma posio extremamente sutil, ainda
que s vezes exprimida erradamente, do problema da peste tomado em si, e,
como voc diz, um sentimento bastante agudo das relaes poticas entre as
coisas. Existe ainda uma idia sobre as relaes entre o esprito e a matria em
virtude de certos fenmenos materiais, como por exemplo as doenas, que pela
maneira como apresentada vai muito longe. Mas, mesmo e sobretudo a, os
termos, ou melhor, a fora de esprito me faltaram. Pois existe uma verdade
qual eu gostaria que o pblico fosse sensvel, e ele o foi inconscientemente, e
foi isso que sem dvida o perturbou e causou essa hostilidade anormal nas con-

1. "O Teatro e a Peste", conferncia feita na Sorbonne era 6 de abril de 1933.


112 LINGUAGEM E VIDA

ferncias desse tipo. verdade que apenas minha presena em alguns lugares
causa um tumulto, faz nascer em alguns uma irritao anormal, como que dian-
te de uma monstruosidade, de um fenmeno abjeto da natureza. As pessoas,
seja por me verem, seja por certas idias que eu discuto, so levadas a se en-
colerizar. Essa verdade da qual eu lhe falo, e que irrita, que aquilo que voc
chama de metfora, e que no , das relaes entre o teatro e a peste, vale
igualmente para meu esprito, que eu considero organicamente alterado por um
mal que o impede de ser o que deveria ser. Existe dentro dessa luta terrvel
entre eu e as analogias que pressinto, e em minha impotncia de petrific-las
em termos, para me tornar fisicamente dono da totalidade do meu tema, um
espetculo perturbador que irrita as pessoas pouco preparadas para uma certa
limitao do pensamento.
Quando proponho considerar a peste unicamente como uma entidade ps-
quica, quero dizer que no temos o direito de nos deter nos fenmenos materiais,
de petrificar nosso esprito sob formas, unicamente sob formas, e qualquer que
seja a perverso orgnica, ela apenas a onda mais distante, a ltima ressaca de
uma situao vital da qual a conscincia, a vontade, a inteligncia, participaram
algum dia; assim sendo, seria vo considerar os corpos como organismos imper-
meveis e fixos. No existe matria, existem apenas estratificaes provisrias de
estados de vida, na transformao individual dos quais no de se surpreender
que o esprito, a conscincia, a vontade e a razo, cada um por sua vez, inter-
venham.
Considerando assim todos os fenmenos em sua universalidade, e se qui-
sermos notar na prpria peste todas as variaes que ela apresenta atravs dos
tempos e do espao, podemos admitir uma perverso maior da vida que, em
suma, sem tocar o corpo, produz organicamente as desordens mais excessivas -
e podemos nos pr de acordo para chamar de peste essa perverso, no momento
em que no mundo moral, social, psicolgico e psquico ela produz desordens
to absolutas, to fulminantes e quase abstratas. Se quisermos em seguida reco-
nhecer que o esprito no passa duas vezes pela mesma situao, que no existem
doenas, mas doentes, devemos evocar a figura virtual e arbitrria de um mal
que se assemelha ao teatro quando ele epidmico e profundamente desorgani-
zador, isto , quando ele rene um conjunto suficiente de traos extremos, e de
desordens reveladoras. Entretanto, mesmo nessa virtualidade e nessa arbitrarie-
dade existe s vezes alguma coisa de concreto. Ou melhor, essa virtualidade e
essa arbitrariedade influem periodicamente sobre os corpos, a matria, as cons-
cincias, o corpo social e os acontecimentos, de tal modo que uma figura fsica
e aprisionada da peste se liberta de tempos em tempos. No se pode recusar s
personagens interpretadas arbitrariamente por este ou aquele, que jamais havia
pensado em interpret-las, os sentimentos aborrecidos, extremos, gratuitos e hor-
rveis que ele manifesta, uma identidade natural com os sentimentos e as perso-
nagens de teatro. Com essa diferena, j observada em outro lugar, que as per-
sonagens e os sentimentos provocados pela peste representam o ltimo estado
A ANDR ROLLAND DE RENVILLE

de uma fora espiritual que se extingue, ao passo que2 as personagens e os sen-


timentos de teatro so, ao contrrio, a ressurreio de u n a fora espiritual que
cresce em intensidade, e em densidade, e se afirma medida que se propaga. O
mal da peste toca o corpo e o transtorna ao extremo, e o corpo finalmente
remanesce intacto; e ao ser tocado parece que o foi no em sua matria, mas em
sua conscincia e em sua vontade. Porm, tocado ou no, a peste igualmente
perfeita, com ou sem leso real do organismo.
Assim tambm o sentimento de teatro deixa o ator intacto, e no se con-
verte em realidade por um ato. E no entanto no se pode dizer que a esse
sentimento falta ao, densidade ou eficcia. aqui que se situa a questo da
eficcia fsica interna das imagens da poesia, no que falhei completamente em
minha conferncia, por falta de um pouco mais de pacincia e de um pouco de
aplicao de esprito. Acredito assim mesmo ter dito uma coisa bastante impor-
tante no momento em que sublinhei que era preciso mais virtude ao ator furioso
para no efetuar realmente um crime do que coragem ao assassino para chegar
a realizar o seu. Pois existe o lado comunicativo de todo sentimento vlido e de
toda imagem que se impe ao esprito, e do esprito ou da conscincia a todo
organismo, atitudes essas inversamente semelhantes quelas que uma epidemia
impe globalmente ao organismo e do organismo ao esprito.
Eis aqui sumariamente o que eu queria dizer, e voc foi um juiz bastante
bom para enxergar minha vontade espiritual de dizer tal ou tal coisa nas dobras
de minha vontade estratificada.
Eu estarei quarta-feira s nove horas no bar do Dome. E se voc puder
perder um pouquinho de seu tempo em cima de pontos sem importncia, terei
sempre uma alegria absoluta e perfeita em reencontr-lo.
Fielmente seu amigo,

ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha

2. A palavra que se encontra, por erro, duas vezes no texto autografado.


A ORANE DEMAZIS

Paris, 30 de dezembro de 19331

Cara amiga,
Eu lhe envio um convite para a leitura que devo fazer dia 6 de janeiro
prximo, em casa de amigos. E necessrio que voc esteja l.

1. Cana transmitida pela Sra. Anie Faure. Ela deve ter sido copiada antes de ser enviada, pois,
na margem, aparece a seguinte meno de Antonin Anaud:
Orane Demazis
Carta no respondida.
Id. M. Pagnol?
Anie Faure nos comunicou primeiramente, em um primeiro rascunho dessa, trazendo tambm
uma meno na margem, meno provavelmente leitura feita em 6 de janeiro de 1934 na Lise Deharme:
Sra. Orane Demazis,
no respondeu
no veio
Para no multiplicar as notas, de preferencia a indicar as variantes entre a carta e seus rascunhos,
que seriam muito numerosas, damos abaixo o texto inteiro dessa primeira verso:
Paris, 30 de dezembro de 1933
Querida grande amiga,
Carto. No na qualidade de ator a propsito do texto terminado.
Eu tenho um projeto.
Este teatro no ser um teatro de esteta, mas para a multido. No ser um objeto de luxo. A multi-
UNGUAGEM E VIDA

Eu no lhe peo para apoiar com aplausos a leitura do drama de Shakes-


2
peare , mesmo se ela for boa. Trata-se, para mim, de algo diverso de uma simples
demonstrao de minhas qualidades de ator em uma obra-prima que pertence a
uma poca finda. Peo-lhe, isto sim, para provar a nossa inrcia, a nossa negli-
gncia, a nossa inconscincia e a nossa fraqueza frente a tudo. Todas as virtudes
ao contrrio que fazem de ns gado pronto para a guerra e o massacre. Eu tenho
do teatro uma idia enrgica, ativa. Creio que o teatro pode muito, o nico
meio de expresso diretamente ativo e que contm todos os outros, no por

do no precisa de luxo mas de po e de ser tirada da inquietude, de crer na doura de viver. O objeti-
vo devolver ao teatro sua funo, captar e derivar conflitos, esvaziar questes pendentes, dar uma chicota-
da energtica na sensibilidade de quem participa na representao. Eu digo participa, pois creio no carter
sagrado do teatro. Eu o considero rito ativo, uma espcie de objeto mgico feito para agir sobre os rgos da
sensibilidade nervosa como pontos de sensibilizaro) (a) medicina chinesa a ser usada nos rgos sensveis e
nas funes diretrizes do corpo humano. A luz vermelha cria ambiencia batalhante, predispe ao combate.
Isto tambm to seguro quanto tiro, bofetada. Bofetada no mata seu homem. Tiro s vezes. Ambiencia
luz rudos muda disposies nervosas. Uma palavra soprada no minuto oportuno pode endoidar homem,
quero dizer, tornar louco.
Esta tcnica, pois de tcnica que se trata, faz parte do teatro. Meios que o teatro esqueceu, ele perdeu
o hbito de se servir c que ele precisar reaprender se quizer voltar a sua funo verdadeira, reencontrar sua
eficcia.
Conto colocar estes meios base espetculo, utilizando 300 figurantes) (ajatores e que ter para multi-
do atrativos visuais-plsticos. Albergue. Esses meios apoiaram intenes secretas, serviram para entorpecer
primeiras desistncias. Como povoaes centro frica, multides, os refinados frica superior permanecem
sensveis repeties, sonoridades, ritmos, encantaes onde a voz apoia o gesto, o gesto prolonga a voz.
Uma espcie de dever humano sem interesse por si mas que responde a um senso agudo do destino, a
uma noo de fatalidade que nos dirige, nos obriga a tomar conscincias malss que compem esprito do
tempo.
H alguma parte um desregramento que ns no somos senhores, neste desregramento crimes inexpli-
cveis, gratuidades participam como ensaio demasiado freqentes sismos, errupes vulcnicas, tornados
martimos, catstrofe estrada de ferro. E o que no se quer ver c que a arte que encanta lazeres, e da qual
toda a noo que nos resta que ela feita encantar lazeres e tambm pra-raio e que espetculo repre-
sentado est dispensado de sua realizao na vida.
E isto que fizeram compreender todas as grandes pocas que o teatro significou alguma coisa. poca
Teatro Elizabetano. Aqueles que fazem do teatro esta idia de divertimento fcil e que lhe recusam o direito
de ns reconduzir noo solene, insistncia da dificuldade de tudo o que existe so responsveis pelo estado
de coisas inquietantes em que estamos mergulhados como cegos de nascena.
Nossa incapacidade total de reagir e mesmo de viver como a conscincia super-aguda da crueldade da
existncia faz de ns um gado totalmente pronto para guerra e o massacre.
Se no tivssemos do teatro noo no artstica, mas mgica no sentido forte da palavra, e mesmo de-
mirgica, isto indicaria em ns a fora que no temos e que assim mesmo corresponderia a um aspecto dife-
rente das coisas, pois tudo est ligado magicamente, corresponde a essa idia enrgica e aguda.
Pessoas ho de querer tomar iniciativa semelhante criao. Ocasio oferecida tentar sair do maras-
mo, fazendo alguma coisa. Vocs esto em um meio que pode muito. Vocs tm a compreenso de certos so-
frimentos. Vocs podem muito. Ajudem-me e estejam l em primeiro lugar entre tantas outras coisas.
Eu lhes dirijo saudaes afetuosas.
()palavra escrita de maneira incompleta.
ANTONIN ARTAUD
2. Ricardo II.
A ORANE DEMAZIS H7

reduo, mas em termos absolutos. Eu queria devolv-lo sua funo, que


captar e derivar os conflitos, canalizar as foras ms, esclarecer os problemas,
resolver e esgotar as questes pendentes e ao mesmo tempo dar uma chicotada
na sensibilidade de quem dele participar. Eu digo dele participar, pois o teatro,
naquilo que ele tem de sagrado, como um sacrifcio, como um rito que age,
quer queira quer no, por mais distanciado que se esteja da idia dos ritos, e do
esprito sagrado. Pois essa ao, da qual falo, orgnica, ela to verdadeira
quanto as vibraes de uma msica capaz de entorpecer as serpentes. Ela se dirige
diretamente aos rgos da sensibilidade nervosa, assim como os pontos de sensi-
bilizao da medicina chinesa comandam os rgos sensveis e as funes dire-
trizes do corpo humano. A luz vermelha nos d um ambiente de batalha, ela
predispe ao combate: isto to verdadeiro quanto um tiro ou uma bofetada.
Uma bofetada no mata um homem, o tiro pode, s vezes, mat-lo. Um ambiente
de luzes e de rudos criado por dispositivos especiais, uma palavra que escapa
no momento preciso, pode enlouquecer um homem, quero dizer, deix-lo louco.
Tudo isso para voltar a essa idia de que o teatro age e que suficiente saber
manej-lo. Que esse meio precioso deve servir a coisas srias, e ignbil que
apenas sirva como simples objeto de divertimento. Eu gostaria de fazer um teatro
que sirva, que se dedique a captar as foras que o teatro pode captar. Parece-me
que, no momento em que vivemos, uma espcie de dever humano - com o qual
pouco nos importamos, mas que corresponde tambm a um sentido do destino,
noo que podemos ter da fatalidade que nos dirige - nos obriga, esse dever
humano, a tomar conscincia de todas as foras ruins que compem o esprito
do tempo. Existe em algum lugar um desregramento do qual no somos senhores,
qualquer que seja o nome com que se queira cham-lo. Desse desregramento
participa toda a sorte de crimes inexplicveis em si, de crimes gratuitos. E tambm
repeties, muito freqentes, de sismos, erupes vulcnicas, tornados marinhos
ou catstrofes em ferrovias. E o que no podemos ver que a arte, que encanta
os lazeres, e cuja atual noo que ela feita para encantar os lazeres, tambm
um pra-raios; aquilo que representado no palco pode acontecer que seja rea-
lizado na vida etc. etc.
Foi isso que se compreendeu em todas as pocas onde o teatro significou
alguma coisa, como por exemplo na poca do teatro elisabetano. O teatro des-
critivo e anedtico, o teatro satrico, mesmo quando no se mistura nele muito
fel so uma das taras da poca atual; ele3 demonstra a nossa total incapacidade
de reagir, e mesmo de viver, a pouca conscincia que possumos e a necessidade
e mesmo crueldade da vida. Aqueles que tm do teatro e da arte em geral essa
idia simplista de que a arte feita para distrair, no sentido mesquinho de distrair,
e que acham a vida um tanto maante, penosa demais para que a arte ainda os
obrigue a pensar e lhes fale de coisas srias, ou os conduza a uma noo sria,
solene, insistente da gravidade e dificuldade de tudo o que existe, so os respon-

3. O singular indicando sobretudo o teatro descritivo e anedtico, que incriminado.


118 LINGUAGEM E VIDA

sveis pelo estado de coisas inquietantes no qual estamos mergulhados4 hoje em


dia.
Estando tudo isso dito, apenas uma pergunta se impe: somos capazes de
suportar essa idia eficaz, ativa, do teatro, e somos capazes de realizar um teatro
que corresponda a essa idia? Eu tenho um projeto e o proponho. Ser que
depositaro em mim a confiana para realiz-lo? Acreditaro em mim com a
fora necessria para isso? Semelhante teatro dirigido necessariamente ao povo.
necessrio que se dirija apenas ao povo. Ele s tem razo de ser se agir sobre
as massas, massas considerveis. No um teatro de estetas. Os meios de ao
fsica e tcnica de que dispe, dirigidos sobretudo aos nervos e no razo, so
fatais. Tais golpes no podem falhar. Pois se deve contar com a beleza visual e
plstica, e com a amplitude do espetculo que esse teatro apresentar. Ele mo-
vimentar as massas importantes de figurantes e atores. Uma msica, uma sono-
rizao constantes. O dinamismo da representao. A luz. Cores que se movi-
mentam estaro l como um comentrio fsico do tema e da ao.

Paris, 31 de dezembro de 1933

As multides no resistem a certos mtodos. Tudo aquilo que constitui o


atrativo de uma revista espetacular, do gnero de o Albergue do Cavalo Branco,
encobriria intenes mais secretas, entorpeceria as primeiras resistncias, para
com tudo isso sustentar uma idia mgica desses mtodos, uma espcie de inten-
o de feitiaria. As tribos selvagens da frica Central, os povos refinados da
frica superior, continuam sensveis a certos ritmos, a certas encantaes, a voz
apoiada pelo gesto, o gesto sendo o prolongamento plstico da voz.
Se tudo isso admitido, se me acreditam com condies de realizar seme-
lhantes intenes atravs das imagens cnicas desejadas, contidas inteiramente em
um roteiro que compus5 e que lerei dia 6 de janeiro, depois da pea de Shakes-
peare, resta saber se teremos os recursos para essa experincia, se, ao tomar
conscincia deste dever, queremos ser promotores de uma realizao dessa ordem,
se teremos coragem de tomar a iniciativa, ou se deixaremos essa iniciativa a
outros que jamais se apresentaro.
Voc, Orane Demazis, pertence a um crculo que pode muito nesse sentido,
que teria de fazer apenas um pequeno gesto - e para esse crculo os riscos seriam
mnimos - para que tudo isso se tornasse realidade.
Est sendo oferecida s pessoas uma oportunidade de fazer alguma coisa,
de tomar parte em uma experincia que ajudar a sair do marasmo, que reunir
iniciativas esparsas, que dar o que comer a duzentos ou trezentos artistas, que

4. Reaparecem as idias contidas na primeira parte dessa cana, "Para Acabar com as Obras-Pri-
mas".
5. A Conquista do Mxico.
A ORANE DEMA21S

criara, por outro lado, um intenso movimento de opinies. Eu no procuro nada


para mim mesmo, pois tenho a inteno de manter o anonimato no que farei,
e de receber pela minha parte apenas um simples salrio de operrio especializado!
Eu acredito em sua sensibilidade, em sua compreenso, em seu sentimento
do sofrimento de muitos. Voc pode muito. No me parece possvel que voc
nao faa alguma coisa. No dia 6 de janeiro eu exporei meu projeto com detalhes.
Eu lhe peo que me ajude. E voc certamente o far ao comparecer nesse dia.
Eu lhe rogo, eu lhe peo, entre tantas coisas, para vir.
Eu a sado afetuosamente.

ANTONTN ARTAUD
Villa Seurat n" 18 (Rua da Tombe-Issoire n 101)

Traduo de Regina Corra Rocha


A ANDR GIDE (II)

Paris, 10 de fevereiro de 19351

Caro senhor e amigo,


Eu acabo de terminar uma tragdia2 - com texto; os dilogos, por mais
condensados que sejam, j esto inteiramente escritos.
Essa tragdia ser encenada na "Comdie des Champs-lyses", no comeo
de abril prximo; antes, me proponho a fazer uma leitura para alguns amigos.
Todos os atores estaro presentes a essa leitura.
Eu queria lhe pedir que me desse a honra e a amizade de assistir a essa
leitura. A sua presena para mim muito importante, assim como a de alguns
amigos como Jean Paulhan, e explico por qu.
O dilogo dessa tragdia , ouso dizer, de uma violncia extrema. No
existe nada, dentre as noes de sociedade, de ordem, de justia, de religio, de
famlia e de ptria que no seja atacado.
Espero, inclusive, reaes bastante violentas por parte dos espectadores. Eis
a razo pela qual eu gostaria de preparar antecipadamente a opinio pblica.
necessrio que no haja mal-entendidos. Tudo aquilo que atacado
mais no plano metafsico do que no social. No anarquia pura. - Eis o que
deve ser compreendido.

1. Carta pertencente coleo Jacques Doucet.


2. Os Cena.
122 LINGUAGEM E VIDA

Mesmo aqueles que se acreditam ideologicamente os mais livres, os mais


destacados, os mais evoludos, continuam amarrados, em segredo, a um certo
nmero de noes que nessa pea eu ataco em bloco5.
No necessrio que esse espetculo seja um grito de protesto contnuo.
No existe nenhum anarquista ideologicamente decidido a jogar por terra
a noo de famlia que no conserve uma ligao profunda, enraizada, humana,
com seu pai, sua me, suas irms, seus irmos etc.
No existe nada nessa pea que seja poupado. E o que eu quero que todos
compreendam que eu ataco a superstio social da famlia, sem, no entanto, pedir
que levantem as armas contra tal ou tal individualidade. Dando-se da mesma forma
com a ordem e com a justia. Por mais enfurecidos que estejamos com a ordem
atual, um antigo respeito pela idia de ordem "em si" leva as pessoas a nem sempre
distinguirem entre ordem e aquilo atravs do qual ela representada, e as leva na
prtica a respeitar as individualidades sob pretexto de respeitar a ordem "em si".
Porm, quanto a mim, na posio ideolgica em que me encontro, no
posso ter em conta de maneira alguma todas essas nuanas, o que faz com que,
provisoriamente e para ir rpido, eu seja levado a atacar a ordem em si.
Eis aqui, portanto, os pontos sobre os quais, me parece, a opinio pblica
deve ser preparada.
Eu bato forte para bater rpido e sobretudo para bater completamente e
sem apelao.

3. Anie Faure nos comunicou o primeiro projeto desta carta contida num envelope com a subs-
crio: Andr Gidc, que comea neste pargrafo: Ei-lo:
Caro amigo,
Ataco em bloco nesta pea um certo nmero de noes s quais o ltimo libertrio permanece
apegado em segredo. E aqui que sua humanidade se v e fala. Uma humanidade profunda, secreta, dis-
simulada, enraizada. Mas se ataco por exemplo nesta pea a superstio social da famlia, isto no
uma razo para que se pegue em armas contra tal ou qual individualidade.
Por encarnecido que algum seja contra a ordem atual, um velho respeito pela idia de ordem
em si impele as pessoas a confundir esta ordem com aqueles por quem ela representada e as leva na
pratica a respeitar tambm tal ou qual individualidade. Entretanto, eu, na posio ideolgica que to-
mei no posso absolutamente ter em conta tais nuanas, o que faz com que provisoriamente e para ir
depressa eu seja levado a atacar a ordem em si.
Eu bato forte para bater depressa e sobretudo completamente e sem recursos.
Todas as nuanas humanas s podem me estorvar e paralisar minha ao em qualquer domnio
que seja.
Eu quis pois acabar com todas estas inibies.
Eu no sou a favor disto e no preciso que me tomem por uma anarquista.

* *
Vocs tm medo das palavras porque vocs no so capazes de atos.
Respeitem quanto queiram seu pai, personagem-particular mas compreendam que o que eu ata-
co a ideologia representada pelo Pai.
porque vocs esto imbudos de uma ideologia onde a autoridade do Pai est acima de tudo
que vocs respeitam, o Agente de Polcia, o Coletor, o estado de coisa imposto por um regime que nos
oprime a todos.
A ANDR GIDE (II) 123

Mantendo-me no domnio das idias puras no posso levar em considerao


todo um conjunto de nuanas humanas que s me atrapalharia e que paralisaria
toda ao. E o que nos recusamos a perceber que so as nuanas humanas que
em geral paralisam a ao e impedem as pessoas de fazer alguma coisa e mesmo
de tentar alguma coisa.
Eu quis, pois, de uma vez por todas acabar com todas essas inibies. Mas
essa no uma razo para que me considerem um anarquista absoluto e definitivo.
nesse sentido que a opinio pblica deve ser preparada. preciso, pri-
meiro, que se assista pea para pressentir onde eu quero chegar. Aqueles que
tm medo das palavras^ so os mesmos que tm medo dos atos: por isso que
nunca se fez nada. - por esta razo que importante para mim que o Sr.
assista a essa leitura; EU INSISTO em sua presena.
Depois disso o senhor poder dizer as palavras que devem ser ditas; e eu
no tenho necessidade de lhe repetir que sua palavra sempre escutada.
Ningum, por mais ligado que esteja sua ideologia pessoal, ou melhor,
sua prpria mitologia, estando as coisas como esto, quer passar por imbecil.
Ora, preciso que aqueles que protestam, se os houver, se persuadam de que
assim fazendo parecero imbecis. E a isso que eu quero chegar.
No h homem inteligente e fino que tenha o direito, sem pr em risco
sua reputao, de se revoltar contra as palavras de uma personagem de teatro -
estando bem entendido que essa personagem que diz o que pensa representa ao
mesmo tempo o meu prprio pensamento, mas o representa dramaticamente,
isto , dinamicamente, dialeticamente - e sob a garantia de uma outra palavra
que venha provisoriamente a destru-la, sob a garantia sobretudo de uma atmos-
fera ideal que a deforme e que ao mesmo tempo a situe.
Portanto, para evitar que o pblico confunda as idias com os homens
e, mais que isso, que as confunda com as formas,
que eu destruo a idia, de medo que o respeito idia no possa levar a
poupar uma forma, a qual, por sua vez, favorece a durao de ms idias.
Eis porque eu necessito de sua presena e porque lhe peo at mesmo para
me reservar um dia ou uma noite aps o jantar.
Eu esperarei sua resposta para convocar meus amigos e minha companhia.
Enquanto aguardo sua resposta, peo-lhe que me considere seu muito fiel
e sinceramente devotado amigo.
ANTONIN ARTAUD

Hotel dos Estados Unidos, Bd Montparnasse, n 135, Paris

O local da leitura ser a casa do Sr. Jean-Marie Conty, rua Victor Con-
sidrant, n 12 (Praa Denfert-Rochereau).
Traduo de Regina Corra Rocha
A JEAN-LOUIS BARRAULT

Paris, 14 de junho de 19351

Meu caro Barrault,


Voc sabe muito bem a considerao que tenho por voc e por sua obra.
Por isso voc poder entender com que esprito eu lhe falo e lhe escrevo.
No importa que voc possa me censurar, por pouco que seja, pelo que
vou lhe dizer, mas no quero que voc conserve nem sequer a sombra de um
pensamento dissimulado.
Eu no acredito em uma possvel colaborao entre ns, pois se sei o que
nos une, vejo ainda melhor o que nos separa, e que consiste em um mtodo de
trabalho que partindo de dois pontos de vista diametralmente opostos chega a
um resultado que no o mesmo, apesar das aparncias. Eu j o vi trabalhar
em Os Cenci, e quando eu lhe pedia para ensaiar os atores, voc os triturava de
tal maneira, pondo tanto de si, que no fim das contas as coisas acabavam saindo
dos limites. Enfim, muitas vezes na minha frente voc reprovou minha maneira
pessoal de trabalhar, referindo-se ao fato de que, sendo eu antes de tudo autor,
no levava adiante as coisas, e que ia de encontro, no espetculo, a obstculos
que eu no podia vencer, por falta de trabalho e de aplicao. Ora - e isto

1. Carta j publicada nas Lcttrcs d'Antonin Artaud a Jean-Louis Barrault (Bordas - 1952). Texto
revisto segundo o documento original, a edio Bordas, muito falha apresenta numerosos erros de
leitura.
LINGUAGEM E VIDA

uma coisa que considero acima de tudo - eu no acredito nas separaes estan-
ques, especificamente em matria de teatro. Isso est na base de tudo que venho
escrevendo h quatro anos ou mais.
EU NO QUERO que em um espetculo montado por mirn haja um piscar
de olhos sequer que no me pertena. Se em Os Cenci nada foj fixado definiti-
vamente foi porque Oi Cenci escapava, em parte, dos limites do teatro que quero
fazer e porque eu, no final das contas, fui desbarrancado pela imensido da tarefa
que havia me imposto.
Enfim, eu no acredito em associaes, sobretudo desde o surrealismo, pois
no acredito mais na pureza dos homens. E por mais que eu o estime, eu o
creio passvel de falha e no quero mais me expor, nem de perto, a um risco
dessa espcie.
Eu no sou homem de suportar quem quer que seja perto de mim em uma
obra, qualquer que ela seja, e mais do que nunca depois de Os Cenci. Se houver
animais para movimentar em minha pea, eu mesmo os farei se movimentarem,
sob o ritmo e com a atitude que imporei a eles. Encontrarei os exerccios ne-
cessrios para que eles encontrem essa atitude ou ser preciso que se demonstre
que eu no passo de um vulgar terico, o que no creio.
Alm disso lhe repito que no ponto em que voc se encontra necessrio
que voc realize a sua obra de acordo com sua maneira pessoal de compreender
certas idias. Quanto a mim, tenho a inteno de me recolher durante algum
tempo, e de tentar expulsar, enfim, os vcios que me paralisam. Isso pode durar
alguns meses2. Nesse nterim procure Conty. Ele bem capaz de conseguir o
pouco dinheiro que lhe ser necessrio, e pr em ordem seus negcios.
Ele me prometeu formalmente que meu artigo sobre voc ser publicado
em Io de julho na NRF 3 , e todos o consideram bastante elogioso.
Eu o cumprimento afetuosamente.
ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha

2. Sem dvida uma nova cura de desintoxicao.


3. Autour d'une mre, action dramatupie de J.L. Barraultau Thtre de l'Atelicr apareceu efetiva-
mente em Io de julho de 1935 na NouvclleRevue Franaise.
AJEANPAULHAN

(A bordo) 25 de janeiro de 19361

Caro amigo,
Eu creio ter achado o ttulo conveniente para meu livro.

O Teatro e seu Duplo

pois se o teatro duplica a vida, a vida duplica o verdadeiro teatro e isso no tem
nada a ver com as idias de Oscar Wilde sobre a arte. Esse ttulo corresponder
a todos os duplos do teatro que penso ter encontrado h tantos anos: a metafsica,
a peste, a crueldade,
o reservatrio de energias que constituem os mitos que no so mais en-
carnados pelos homens, so encarnados pelo teatro. Considero esse duplo o gran-
de agente mgico, do qual o teatro, por suas formas, apenas a figurao, espe-
rando se tornar a transfigurao.
no palco que se reconstitui a unio do pensamento, do gesto, do ato. O
Duplo do Teatro o real no utilizado pelos homens de hoje.

1. Escrito sobre papel com o cabealho:


Cie Gle TransatUntique
French Line
128 LINGUAGEM E VIDA

Eu peo desculpas, ainda uma vez, por no ter podido avis-los do horrio
de minha partida. Mas o ltimo dia foi demasiadamente agitado. Voc pode me
escrever para a Embaixada da Frana no Mxico. Eu irei l para pegar minha
correspondncia.
Meus cumprimentos a voc e senhora Paulhan.
ANTONIN ARTAUD

Traduo de Regina Corra Rocha


TEATRO SARAU DEHARME1

... o teatro em si, o teatro destacado do resto, no me interessa, trata-se sempre


daquilo que , e de saber se podemos modificar alguma coisa naquilo que ,
naquilo que essa desordem, esse desespero, essa inquietude em todos os planos,
esse tdio, indicando um desperdcio e uma desordem nas estaes, nas foras,
naquilo que faz com que a vida dure e que no morramos imediatamente; a
eletricidade uma fora e mesmo o rematado materialista deve reconhecer e
admitir fenmenos, fenmenos de matria sutil. Cabe retomar esse desespero,
essa anarquia, recorrendo-se diretamente s foras, s foras puras que a cincia

1. Transmitido pela Sra. Anie Faure, que nos comunicou igualmente dois projetos para o
convite, escritos por Antonin Artaud. Os dois projetos apresentam apenas nfimas diferenas entre si e
ns apresentamos o segundo:
No dia 21 de dezembro prximo, s he 1/2 *.
Leitura por Antonin Artaud
de A Vida e Morte de Ricardo II
de William Sbakespeare.
Esta leitura ser acompanhada de uma sonorizao original em disco
eseguida
da primeira audio de um argumento para teatro indito
A Conquista do Mxico,
escrito para uma realizao direta no palco.
Lise e Paul Deharme convidam o Sr. Fulano de Tal a dignar-se a assistir a essas primeiras audies
que tero lugar em seu domiclio, 6, quai Voltaire.
( Esta leitura deu-se em 6 de janeiro de 1934 e no em 21 de dezembro de 1933.)
30 ^^ LINGUAGEM E VIDA

no capta, mas cujos efeitos registra, mas que o homem, atravs de seu organismo,
pode captar. Por que? Porque o homem o nico organismo vivo (pelo menos
em aparncia e por nossa viso presente das coisas) que tem uma noo consciente
e dirigida das coisas e que pode, por sua vontade, modific-las a seu bel-prazer.
Resta apenas um lugar no mundo, um s, onde podemos alcanar esse orga-
nismo e dele nos servir de uma maneira ativa: o teatro, desde que renunciemos nos-
sa concepo europia e consideremos o teatro como o lugar onde se manifesta uma
vida consciente e excitada. Essa vida valer de qualquer modo, mesmo se no aceitar-
mos essa idia mais ou menos mgica de captao de foras, que tambm admissvel.

No preciso, alis, tomar essa leitura2 como uma demonstrao absoluta dos
princpios enunciados durante a conferncia, nem mesmo como um esboo de seus
princpios, pois tal demonstrao s pode ser feita no palco e nunca de outra forma.

E agora3 eu lhes peo que faam alguma coisa, que passem ao e que o
faam imediatamente.
Se as pessoas que me ouviram acham que eu estou errado, que no urgente
fazer alguma coisa, se elas no concordam comigo em pensar que o que deve ser feito
o ser atravs de um retorno energia daquilo que nos anima a todos, tomada no
sentido que ela tem de primitivo e de puro, que mo digam, caso contrrio peo que
se renam em associaes para permitir a realizao do roteiro que acabo de ler ou de
qualquer outro espetculo montado sobre os princpios que acabo de desenvolver.
Eu no me apego especialmente a esse roteiro4, mas, se for montado, fao
questo de observar que ele contm os mesmos elementos espetaculares que O
Albergue do Cavalo Branco, ou qualquer outro espetculo do music bali.
Eu peo que considerem essa realizao no como um mecenato, mas como
um trabalho.
Por mais fabulosa que se afigure essa realizao, foi feita uma estimativa
de preo e ela no custar mais que um milho.
Traduo de Regina Corra Rocha

2. Transmitido pelo Sr. Jean-Marie Conty sabe-se que foi em abril de 1933 que Antonin Artaud
fez a conferncia: "O Teatro e a Peste". Ele via portanto uma relao direta entre esta conferncia e a
leitura feita a 6 de janeiro de 1934.
3. Escrito no verso de uma pgina manuscrita de Heliogabalo. Comparar com a cana de 30 de
dezembro de 1933 para Orane Demazis (p. 115).
4. A Conquista do Mxico, provavelmente.
AO ADMINISTRADOR DA "COMDIE-FRANAISE'

Paris, 21 de fevereiro de 19251

Senhor Administrador,
Chega de infestar a imprensa dessa maneira. Seu bordel muito guloso.
preciso que os representantes de uma arte morta ofendam nossos ouvidos um
pouco menos. A tragdia no precisa de Rolls Royce nem a prostituta de bijuteria.
Chega de indas e vindas em sua casa de tolerncia oficial.
Ns podemos ver mais longe que a tragdia, pedra angular de sua venenosa
construo, e seu Molire no passa de um tolo.
Mas no se trata da tragdia. Recusamos sua instituio digestiva o direito
de representar o que quer que seja do teatro passado, futuro e presente.
Com Pirat, Sorel, Segond-Weber, Alexandre e os outros, a "Comdie-
Franaise" foi apenas casa de sexos - e que sexos! - sem que a idia de um teatro
qualquer, mesmo prepucial, tivesse alguma importncia a dentro.
Despejem Sylvain, despejam Fenoux, despejem Duflos, despejem todo mun-
do - sempre veremos retornar superfcie os mesmos imbecis, os mesmos bufes,
os mesmos Alexandre, os mesmos restos mortais, os mesmos trgico-pantalees.

1. Segundo uma cpia datilografada, conservada por Gnica Athanasiou. Carta publicada em
84, n 13, maro de 1950. A data e o tom da cana permitem pensar que se trata de um texto destinado
ao n 3 de Ia Rvolution Surraliste, como "A Cana ao Papa", "A Carta ao Dalai-Lama" etc, mas que
no foi includo nele sem dvida por se tratar de uma atividade muito particular.
132 LINGUAGEM E VIDA

No se renove, "Comdie-Franaise"! Nem seu Porqueiro de Simouns,


nem seu Poizat das estradas de ferro2, das pequenas e tortuosas vias frreas da
tragdia defeituosa, nem Jean Coco, o ltimo convocado, podem mudar nada
em sua marcha, daqui para frente regressiva.
Agora no falta mais nada ao seu cozido infernal, Societrios cozinheiros
de meia-pataca a no ser um indigno Farigoule3 de polcia, para mostrar a vocs
at onde seu Molire pode levar.
Recusamo-nos a continuar incentivando o culto de seu sanguinrio Cor-
neille, que sacrifica os filhos aos pais e d primazia a quaisquer mitos patriticos
em detrimento das soberanas exigncias do corao.
E quanto a Racine, mesmo que o coloquem no molho Granval, no molho
Sylvain, no molho Lambert, ou i.o molho de alcaparras, jamais conseguiro
represent-lo.
Vocs so chamados de tolos. Sua mera existncia j um desafio ao esp-
rito. No h trabalho indigno, manifestaes, mobilizaes em massa da cretinice
nacional que no encontrem em vocs um exutrio ou um trampolim. O poder
dos sentimentos forte o suficiente para no permitir que o prostituamos toa.
O teatro prescinde de vocs. Sua matria diferente da matria de seus
tecidos miserveis. Teatro Francs, vocs dizem. Vocs no pertencem Frana
mais do que terra dos Cafres; so, quando muito, do 14 de Julho.
O teatro Terra do Fogo, lagunas do Cu, batalha dos Sonhos. Teatro
Solenidade.
Aos ps da Solenidade vocs depositam seus excrementos, como o rabe
aos ps das Pirmides. Dem lugar para o teatro, senhores, lugar para o teatro
daqueles a quem basta o campo ilimitado do esprito.
Traduo de Slvia Fernandes

2. A "Comdie-Franaise" havia includo em seu repertrio O Cavaleiro de Colombo, pea em


trs atos e em versos de Franois Porch (26 de outubro de 1922), Electra, tragdia baseada em Sfo-
cles, em trs atos e em versos de Alfred Poizat (4 de fevereiro de 1907, reprisada em 25 de janeiro de
1923) e Circe, pea em dois atos e em versos de Alfred Poizat (27 de setembro de 1921).
3. Antonin Artaud fazia pouco caso do teatro de Jules Romains (pseudnimo de Louis Farigou-
le). Cf. sua opinio respeito da criao de Knock ou o Triunfo da Medicina em Cartas a Gnica Atha-
ALOUISJOUVET

Paris, 27 de abril de 19311

Caro senhor,

1. O rascunho desta carta nos foi enviado pelo Sr. Jean-Marie Conty. A fira de no multiplicar
as notas, e para maior clareza, reproduzimo-lo integralmente.
O senhor havia me falado, quando de nossa ltima entrevista, do projeto que tencionava desenvolver
durante a prxima temporada. Ainda que no tenha tido exatamente a impresso de que o senhor pudesse
pensar em mim como colaborador, envio, cm todo caso, um segundo projeto de encenao; e desta vez para
uma pea moderna. Trata-se de uma pea do prprio Roger Vitrac, mas livre de toda grosseria excessiva, de
todo surrealismo intempestivo, sem nada de diretamente chocante ou provocante, e suportvel para todos
os pblicos.
Por que o senhor no monta essa pea? Seu prprio programa demonstra que o senhor se esfora por
conceder a uma certa escola moderna do teatro o lugar maior. Entretanto, at aqui o senhor no havia ul-
trapassado um certo ponto. E a pea de Vitrac no se encaixa nessa escola, quebra resolutamente todos os
moldes, faz estalar a grande moldura em cujo interior parece que se quer manter, apesar de tudo, o teatro.
Entretanto, impossvel no sentir que o pblico, o verdadeiro, quer sempre mais liberdade no tea-
tro, que ele espreita, pressente, espera uma espcie deforma nova a qual o teatro, um dia ou outro, vir mol-
dar-se; onde ser colocado.
O senhor sente, certamente como eu, como todos ns, que se poderia ir mais longe, que o verdadeiro
teatro que esperamos implica um desarranjo total de nvel, de plano, de orientao, que seu centro de gravi-
dade est em outro lugar. E me parece que ele deve entrar em seu programa, que ser ampliado para ofere-
cer, entre esses espetculos adequados, outros espetculos mais resolutamente e essencialmente
revolucionrios. E isto no quer dizer que esses espetculos revolucionrios, no sentido em que eu os enten-
do, no se tornem, cm breve prazo, espetculos inteiramente repousantes, porque surgiro, de repente, como
os nicos adequados a mudana do ngulo de viso de um pblico faminto de imprevisto. O teatro moder-
134 LINGUAGEM E VIDA

O senhor me falou, por ocasio de nossa ltima entrevista, do projeto que


pretende desenvolver durante a prxima temporada2. Ainda que no tenha tido
a impresso de que o senhor pudesse pensar em mim como colaborador, envio,
por via das dvidas, um segundo projeto de encenao; e desta vez para uma
pea moderna3.
Seu prprio programa demonstra que o senhor se esfora por dar um
espao maior para certa escola moderna de teatro. Entretanto, todas as peas
que o senhor apresentou at agora no ultrapassam certos limites, permane-
cem conformes com uma certa viso, uma certa tradio. O senhor sente,
certamente, como eu, como todo mundo hoje, que se pode ir mais longe,
que o verdadeiro teatro que todos esperamos implica uma inverso total de
nvel, de plano, de orientao, que seu centro de gravidade est em outro
lugar. E me parece que ele deve entrar de qualquer modo em seu programa,
mesmo que o senhor aumente pouco o alcance de suas realizaes, para ofe-
recer entre esses espetculos conformes outros espetculos mais decidida-
mente, mais essencialmente revolucionrios. Isto no pode ser feito a no ser
que se tenha, para sustentar esses espetculos, montagens mais comerciais. Alis,
isso no significa que, muito em breve, esses espetculos revolucionrios, no
sentido em que os entendo, no se tornem espetculos comerciais, porque de
repente parecero os nicos adequados mudana de perspectiva de um p-
blico faminto de novidade, de imprevisto. O teatro moderno est espera de
uma forma que seja adequada viso moral, intelectual, sentimental desta poca.
Por pouco que consigamos oferec-la, ser suficiente para que o povo no
aceite outra. Minha opinio, para dizer tudo, que para os dias que correm
ser revolucionrio bastante conveniente: o nico meio de se tornar comercial!
Alis, no envio ao senhor a pea sobre a qual desenvolvo meu projeto
como um modelo do gnero. Ela nos devolve apenas um aspecto do teatro que

no est a espera de sua forma, que esteja de acordo com a ptica moral, intelectual e sentimental deste tem-
po. Porpouco que consigamos oferec-la, opblico, datem diante, no acatar outra e seria conveniente ser
revolucionrio para tomar-se comercial. Alis, para mim o teatro deve estar muito mais livre de peso mo-
ralmente, fisicamente e em todos os sentidos, do que a pea sobre a qual projeto minha encenao. No a ofe-
reo como um modelo do gnero. Ela nos oferece apenas um lado do teatro esperado, que deve ser muito
mais livre intelectualmente.
Cordialmente seu,
ANTONIN ARTAUD

2. O Teatro Louis Jouvet estava instalado, na poca, na Comdie des Champs-lyses. A dire-
o do Teatro Pigalle fora oferecida a Jouvet em 1930, por seus fundadores. Ele recusou a proposta,
mas aceitou montar alguns espetculos. O primeiro foi Donogoo-Tonka, de Jules Romains, a 25 de ou-
tubro de 1930; o ltimo iria ser A Pasteleira da Aldeia, de Alfred Savoir, espetculo para o qual contra-
tou Antonin Artaud como assistente.
3. o "Projeto de Encenao para o Golpe de Trafalgar, Drama Burgus em 4 atos de Roger Vi-
A LOUISJOUVET U5

esperamos. Para mim ele deve ser muito mais livre intelectualmente, mais liberto
de peso moral, fsico e em todos os sentidos.
Cordialmente seu.

ANTONIN ARTAUD
Rua Pigalle, 45.

Traduo de Slvia Fernandes


A REN DAUMAL
(RASCUNHO DE CARTA)

Paris, 14 de julho de 19311

DECLARAO

Caro amigo,
Ainda estou me perguntando a que dizia respeito a objeo que voc me
fez no tocante questo que eu havia formulado, de saber se no [ p era preciso
recorrer noo de dualidade.
No entanto, voc est de acordo comigo ao pensar que este tipo de decla-
rao pblica, que redigiremos de comum acordo para explicar os objetivos do
teatro que pretendo fazer, deve versar sobre assuntos absolutamente concretos,
partindo da situao atual do teatro na Frana e na Europa e dizendo, por exem-
plo, que: ao estado de degenerescncia orgnica em que se debate o teatro na
Frana desde a guerra, veio juntar-se, nos ltimos tempos, uma espcie de crise

1. Rascunho de carta enviado pelo Sr. Jean-Marie Conty. Interrogado sobre seu contedo, An-
dr Rolland de Reneville afirmou lembrar-se de uma conversa entre Ren Daumal e Antonin Artaud
que poderia ter gerado esta Declarao. Mas o projeto de uma declarao comum no ultrapassou o es-
tgio de conversas.
2. Uma lacuna no manuscrito.
138 LINGUAGEM E VIDA

industrial que acaba de forar uma boa parte dos teatros de Paris a fechar pre-
maturamente suas portas.
Todavia3, muito significativo para o futuro do teatro na Frana que, ao
mesmo tempo, um certo nmero de cinemas continue a render o mximo. No
acreditamos que o preo relativamente baixo de um espetculo cinematogrfico
seja suficiente para explicar essa queda vertical do interesse do pblico pelo teatro,
e sua repentina falta de gosto por uma forma de expresso4 que, at agora, e
especialmente em perodo de crise, era fundamental como os gneros de primeira
necessidade; mas parece que o gosto do pblico pelos espetculos, dessa5 parte
do pblico que ia procurar numa representao teatral apenas uma distrao de
carter estritamente digestivo, deve encontrar numa representao cinematogr-
fica um divertimento altura. Pois, se podemos ver muito bem por que o teatro
que se faz atualmente na Frana mostra-se inferior a qualquer filme, mesmo um
muito ordinrio, no vemos, nem no aspecto intelectual, nem sobretudo do
ponto de vista espetacular, em que ele poderia revelar sua superioridade. Alis,
esvaziando simultaneamente todas as salas de espetculo onde sobrevive um teatro
de texto com pretenses literrias e com anlise psicolgica duvidosa, o pblico
faz por si mesmo justia a um gnero h muito prescrito.
Se o teatro feito para condensar um sistema de vida6, se deve constituir
como que a sntese herica da poca em que foi concebido7, se podemos defini-los
como o resduo concreto e o reflexo dos costumes e dos hbitos de uma poca,
certo que o cinema nos oferece da vida moderna, em seus aspectos mais va-
riados, uma imagem dinmica e completa, da qual o teatro est longe de se
aproximar.
O teatro tal como se pratica, no somente na Frana mas em toda a Europa
h cerca de um sculo, est limitado pintura psicolgica e falada do homem
individual. Todos os meios de expresso especificamente teatrais pouco a pouco
cederam lugar ao texto, que absorveu em si a ao de tal modo que se pode ver,
afinal de contas, o espetculo teatral inteiro reduzido a uma s pessoa monolo-
gando diante de um biombo.
Esta concepo, por mais vlida que seja em si, consagra para os espritos
dos Ocidentais a supremacia da linguagem articulada, ao mesmo tempo mais
precisa e mais abstrata, sobre todas as outras; e, alis, seu resultado imprevisto
foi fazer do cinema, arte de imagens, um sucedneo do teatro falado!

3. Todavia substitui entretanto, riscado.


4. O incio desta frase foi refeito por Antonin Artaud. A forma inicial era: "Os preos relativa-
mente baixos de um espetculo cinematogrfico no so suficientes, segundo [ns], para explicar esta
queda vertical do interesse do pblico e essa desafeio repentina pelo teatro".
5. Dessa substitui da maior, riscado.
6. Condensar um sistema de vida substitui reunir para ns uma concepo de vida, riscado.
7. Em que foi concebido substitui a qual corresponde, riscado.
A REN DAUMAL 139

Se na concorrncia com o teatro o cinema ganhou a primeira partida,


realmente parece ter perdido a segunda. O que, alis, no tem o poder de restituir
ao teatro, tornado irremediavelmente passivo, uma vida que realmente perdeu.
Entretanto, enquanto o teatro na Frana parece no conseguir se libertar
de uma atmosfera de casa de prostituio e no superar o interesse de uma sesso
de tribunal correcional, em certos pases da Europa desde antes da guerra e na
Alemanha desde a guerra, e depois da guerra na Rssia, tem sido feito um esforo
para restituir arte da encenao e ao espetculo o brilho que haviam perdido.
Os Bales Russos restituem cena o sentido da cor. E, de hoje em diante, ser
preciso levar em conta, para a montagem de um espetculo, as necessidades de
harmonia visual, da mesma forma que depois de Piscator ser preciso levar em
conta as necessidades dinmicas e plsticas do movimento e depois de Meyerhold
e Appia ser preciso levar em conta uma concepo arquitetural do cenrio,
utilizado no somente em profundidade, mas em altura, e representando em
perspectiva atravs de massas e volumes e no mais atravs de superfcies planas
e em trompe-Voeil.
Enfim, concepo psicolgica, velha concepo clssica do teatro de
costumes e do teatro de caracteres, onde o homem estudado com uma sensi-
bilidade que se poderia chamar de fotogrfica - de qualquer forma, inerte, morta
por antecipao, anti-herica por essncia - de suas paixes, em uma moldura
cotidiana e habitual, se bem que qualquer pea de teatro seja assimilvel a um
jogo de xadrez ou a um jogo de construo psicolgica e chegue a nos dar apenas
uma imagem desoladora e plana do real; e quando surge uma inovao nesse
sentido, ela faz suceder concepo habitual do homem inflexvel, que age por
blocos e luta atravs de invectivas, uma concepo dispersa e multiforme do
homem dividido em um quarto cheio de espelhos, como se v nas obras-primas
de Pirandello; e abandonamos aqui a sala do tribunal correcional ou quando
muito o pretrio do supremo tribunal de justia pelo gabinete do psicanalista,
o que nos faz descer novamente um ponto em nossa experincia psicolgica e
desmoralizante do homem que, quaisquer que sejam os monstros que conceba
e tenha por companhia habitual, no deixar de ser o homem cotidiano; portanto,
frente a esta concepo do homem arrebatado pelo xtase diante de seus monstros
pessoais, uma experincia foi feita - e a nica verdadeiramente teatral - na
Rssia, na poca da revoluo, para criar um teatro de ao e de massas8.
Uma era do teatro est encerrada e [no]9 acreditamos que seja necessrio
dedicarmo-nos a condenar um gnero que os acontecimentos condenam10.
Na medida em que o teatro [ ]", o cinema tomou seu lugar.

8. As notas que seguem esto escritas nas margens da carta.


9. Falta uma palavra no manuscrito.
10. Que os acontecimentos condenam substitui que traz em si mesmo a prpria condenao, ris-
cado.
11. Uma lacuna no manuscrito.
140 LINGUAGEM E VIDA

Agora, h lugar para um teatro que [...]


E possvel que exista uma poesia do cinema, mas:
Io as necessidades industriais foraro o cinema a rejeit-la a maior parte
do tempo;
2o quando ela existisse, no saberiam de modo algum coloc-la no nvel
do teatro, enquanto ordem fisiolgica, animal, mecnica;
3o grosseira, sem magnetismo; abusivamente que se fala do magnetismo
das imagens.

Traduo de Slvia Fernandes


ALOUISJOUVET

Domingo, 2 de agosto1

Caro amigo,
Tomo a liberdade de lembrar a voc a entrevista que deveria acontecer por
ocasio de seu retorno de viagem, no final de julho.
Sou maante e obstinado porque tenho a impresso de ter alguma coisa a
dizer: aquilo que sempre considerei uma espcie de impermeabilidade do mundo
cnico a tudo que no pertence estritamente a ele, a quase inutilidade da palavra
que no mais o veculo, mas o ponto de sutura do pensamento, a futilidade
de nossas preocupaes sentimentais ou psicolgicas em matria de teatro, a ne-
cessidade, para o teatro, de procurar representar alguns dos lados estranhos das
construes do inconsciente, tudo isso em profundidade e em perspectiva sobre
o palco, em hierglifos de gestos que sejam construes desinteressadas e abso-
lutamente novas do esprito; tudo isso est preenchido, satisfeito, representado
e levado adiante pelas surpreendentes realizaes do Teatro Balins, que uma
bela afronta ao teatro como o concebemos. E sobre isso e muitas outras coisas
ainda que eu queria conversar com voc, desejando que nossa colaborao se
transforme em algo mais que algumas conversas sobre teatro a respeito da pea
que voc est montando e feita no intervalo de duas temporadas de filmagem.

1. Entre 1928 e 1933, somente o dia 2 de agosto de 1931 caiu num domingo.
142 LINGUAGEM E VIDA

No sou rico e ter uma vida estvel, de resto, me indiferente.


Cordialmente seu.
ANTONIN ARTAUD

Rua Labruyre, 58, 9o, Paris.


Traduo de Slvia Fernandes
A LOUIS JOUVET

Tarde de tera-feira,
20 de outubro de 1931

Caro amigo,
Por que voc ainda no me deixou, numa oportunidade qualquer, o ma-
nuscrito do "Rei das Crianas"? Minha opinio pessoal sobre o valor da pea
conta pouco, assim como os prognsticos de sucesso que eu possa fazer sobre ela.
Queria simplesmente saber se era verdade que essa pea seria representada e se
voc, Louis Jouvet, esperava fazer sucesso representando-a, e que tipo de sucesso
esperava dela. Queria, alm disso, saber se a data de sua estria est mais ou menos
definida. Tudo isso para no fazer um trabalho intil. Dito isso, e se voc acha,
sinceramente, que eu possa ser til em alguma coisa, s peo que, seja ou no re-
presentada essa pea, eu possa me dedicar ao trabalho e transmitir minhas sugestes
pessoais, que podem ser atribudas a voc. Redigirei uma espcie de relatrio to
completo quanto possvel e voc pode utiliz-lo em seguida como bem entender.
No existe pea - e acho que nesse ponto voc pensa como eu -, qualquer
que seja sua qualidade, que no possa ser melhorada e mesmo corrigida e refeita
por uma encenao competente. Mas no acredito que uma encenao seja pro-
blema de texto e possa ser feita sobre o papel. E qualidade distintiva das coisas
de teatro no poderem elas estar contidas nas palavras, ou mesmo em esboos.
Uma encenao se faz em cena. Ou somos homens de teatro ou no somos. A
144 ^ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA

mim parece absolutamente impossvel descrever um movimento, um gesto ou


sobretudo uma entonao cnica se no os fazemos. Descrever uma encenao
de maneira verbal ou grfica o mesmo que tentar fazer um esboo, por exemplo,
de um certo tipo de dor, Os projetos de encenao relativos Sonata dos Espectros
ou ao Golpe de Trafalgar, que lhe pareceram um pouco literrios, me parecem,
entretanto, efetivamente o mximo do que pode ser escrito e descrito, se nos
limitarmos linguagem das palavras. As mesmas palavras, visando descrever um
gesto, um som de voz, ^ odem ser vistas e ouvidas em cena de dez mil maneiras
diferentes. Tudo isso incomunicvel e deve ser demonstrado no espao. A idia
do dispositivo cnico que poderei transmitir a voc no ter valor a no ser pelo
modo como ele for preenchido de deslocamentos, gestos, cochichos e gritos.
Tenho idia de toda uma tcnica sonora e visual que no poder emergir se
tentarmos descrev-la em volumes recheados de raciocnios verbais, girando todos
em torno do mesmo ponto cem vezes retomado. E tudo isso seria intil quando
uma s entonao real alcanasse, instantaneamente, o mesmo fim. O que quer
dizer que as sugestes que eu pudesse fazer a voc s teriam valor se eu mesmo
pudesse dirigir a encenao materialmente e rplica por rplica, com os movi-
mentos correspondentes. Com efeito, materialmente, objetivamente, vejo a en-
cenao restrita a alguns objetos e acessrios indispensveis e significativos, sem-
pre com um certo nmero de nveis e planos cujas dimenses e perspectiva
interferem na arquitetura do cenrio. Quero esses planos e nveis interferindo
numa qualidade de luz que , para mim, o elemento primordial do mundo cnico.
Mas quero, alm disso, o diapaso das vozes e o grau das entonaes constituindo,
tambm eles, espcies de nveis, um elemento concreto com a mesma importncia
do cenrio ou do diapaso luminoso. Tudo isso com movimentos, gestos, atitu-
des, regrados com o mesmo rigor que os movimentos de um bale. Para mim
este rigor, relacionado a todas as ordens de expresso possveis sobre uma cena,
que constitui o teatro, enquanto em nosso teatro europeu ainda nos ligamos
apenas ao texto. E com essa idia verdadeiramente paradoxal, tomada a Diderot,
de que no palco o ator no sente realmente o que diz, conserva o controle abso-
luto de seus atos e pode representar e pensar ao mesmo tempo em outra coisa:
em suas galinhas e em seu cozido.
Eu teria ainda muito a dizer a esse respeito. Fico por aqui. Tudo isso ser
objeto de uma conferncia sobre teatro que farei proximamente na Sorbonne
com uma leitura dramtica1. Gostaria bastante que voc tivesse lido, na Nouvelle
Revue Franaise de outubro, meu artigo sobre Teatro Balins2 e que me falasse

1. "A Encenao e a Metafsica", conferncia ministrada na Sorbonne, dia 10 de dezembro de


1931, na cadeira do Grupo de Estudos Filosficos e Cientficos para o Exame das Novas Tendncias,
dirigida pelo Dr. Allendy. O texto ser publicado em seguida na Nouvelle Revue Franaise (n 221, Io
de fevereiro de 1932).
2. "O Teatro Balins na Exposio Colonial" na Nouvelle Revue Franaise (n 217, Io de outu-
bro de 1931), retomado e completado em seguida em O Teatro e seu Duplo.
A LOUISJOUVET 145

dele. Estou sua disposio, sinceramente e com toda cordialidade para tudo o
que voc espere de mim em relao ao Rei das Crianas. Desejo apenas fazer um
: trabalho muito preciso a esse respeito. No estou realmente em situao de re-
!li cusar trabalho, pois no quero mais fazer cinema como ator, e at peo que voc
1| me d uma oportunidade de trabalhar.
% Cordialmente seu.

S ANTONIN ARTAUD
o
% Rua Labruyre, 58, 9 , Pari;.

Traduo de Slvia Fernandes


AJEANPAULHAN
(RASCUNHO DE CARTA)

Tarde de sbado
29 de janeiro de 19321

Caro amigo,
Estou estarrecido com a encenao dos Trapaceiros1. Essas personagens-fan-
toches me aturdiram.
Todas essas personagens no so humanas; no representam humanamente;
no se comportam exteriormente de acordo com suas reaes interiores, de acor-
do com o que as palavras, testemunhas de suas reaes interiores, podem sugerir
que esto sentindo e reagindo. Em uma palavra, representam teatro, e conven-
cionalmente, com paradas excessivas no mesmo lugar, segundo o velho estilo
convencional de uma certa representao ao vivo, de uma estilizao na imobi-
lidade que, quando proposital, pode causar efeitos felizes, mas quando invo-

1. Esta carta foi enviada pelo Sr. Ren Thomas. Em seguida, fez parte da coleo Tristan Tzara.
Estava dentro de um envelope, com a inscrio: J. P. / Os Trapaceiros. Carta e envelope estavam ras-
gados ao rneio. H um erro no dia da semana ou do ms, pois 29 de janeiro de 1932 caiu realmente
numa sexta-feira.
2. A primeira montagem dos Trapaceiros de Steve Passeur foi feita pelo Grupo do Atelier, nas
Galerias de Bruxelas, dia 21 de janeiro de 1932. A pea foi reprisada em Paris, no Teatro do Atelier,
dia 30 de janeiro de 1932. Foi interpretada por Dalio, Yolande Laffon e Vital. A direo foi de Charles
Dullin, com cenrio de Vakalo.
148 LINGUAGEM E VIDA

luntria como aqui, produz efeitos desastrosos e mostra que as tendncias e os


planos psicolgicos da obra no foram suficientemente esclarecidos.
Essas personagens com quem temos relao3 e que nos deslabirintam* os
sentimentos, quanto mais se apoiem intelectualmente sobre suas reaes, mais
devem concretiz-las e torn-las plsticas atravs de movimentos, idas e vindas,
delimitaes grosseiras que por meios fsicos indicam flutuaes interiores do
pensamento. Ao ver uma tal encenao, realmente poderamos dizer que a cena
com seus espaos, seus planos, sua perspectiva e suas possibilidades de movimento
no existe. Ou existe apenas para isso: para permitir materializar grosseiramente
tudo o que de ordem sensvel, psquica e intelectual. Um deslocamento, um
gesto, um movimento, s vezes contribuem mais para esclarecer um pensamento
difcil do que todos os tesouros da linguagem e da expresso falada reunidos.
o que penso.
Ao lado do ritmo e da instituio da palavra, h no teatro um ritmo e
uma instituio do movimento, dos movimentos, que deve deixar no esprito a
lembrana de um todo completo, de uma espcie de suporte perfeitamente are-
jado, banhado de ar e de espao, e que por suas linhas, suas propores, seu
esprito geral, clarifique plasticamente e ordene toda uma psicologia. Essa insti-
tuio tripla. Contm o texto e sua plstica (entonaes etc), a seguir a plstica
dos movimentos, tudo isso ordenado e disposto no lugar. Disposio que faltava
essencialmente encenao dos Trapaceiros.
Foi essa ausncia de disposio que, sem dvida, impediu a pea de con-
quistar o xito que, sem dvida, merecia, apesar de tudo o que possa ter de
artificial e forado.
Essas personagens centradas em torno de um problema essencial, colocadas
face a face, no dizem tudo o que temos direito de esperar delas.
O problema que colocam brilhante. essencial e quase se poderia dizer
que para um homem e uma mulher, para dois homens e uma mulher colocados
frente a frente, no h, na realidade, outro problema. Em suma, o jogo, uma
espcie de jogo moderno do amor e do acaso, e apaixonante quando se descobre
que o acaso, na pea, chama-se Luckmann e que ele organizou tudo com vistas
a fins absolutos e abstratos que ele o nico a conhecer e alimentar. Ele penetrou,
um dia, nas realidades tristes do amor, nas miserveis, indecisas e hipcritas
satisfaes que o amor oferece e tira em seguida traioeiramente, e repeliu-as.
Quanto mais as questes (coisas - sentimentos) examinadas so de uma sutil
natureza intelectual, mais os meios pelos quais as exprimimos devem ser gros-
seiros e grosseiramente delimitados.
Eu tive a impresso de algo extremamente pensado e de um nvel intelectual
bastante elevado. Nunca mais tive essa impresso de extrema intelectualidade.

3. Encontramos no manuscrito: Estas personagens com quem temos relaes a manter. Antonin
Artaud, sem dvida, estava indeciso entre as duas ortografias: affaire, faire.
* Dlabyrinthent no original. Neologismo proveniente de labyrinthe (labirinto). (N. da T.)
A JEAN PAULHAN 149

Os atores a devoraram a tal ponto que me pus a duvidar do sentido do texto,


esse sentido espiritual que tanto me havia impressionado. Poucas pessoas vivem
apenas para seu esprito, com seu esprito. Esses atores nos mostraram que tinham
sentidos, mas muito pouco intelecto. O que torna falso seu carter, sua posio,
eu quase diria sua postura, uns diante dos outros.

Traduo de Slvia Fernandes


MAURICE MAETERLINCK1

O nome de Maurice Maeterlinck evoca, antes de tudo, uma atmosfera. ,


alis, nisso que se poderia resumir sua contribuio ao domnio das letras assim
como ao do pensamento. Ns no estabeleceremos nenhuma relao entre o fato
de ter nascido em Gand, a 28 de agosto de 1862, e a natureza ntima de seu
pensamento. Que Maeterlinck tem uma alma nrdica, um fato e nada mais.
Ns consideraremos antes seu talento como o resultado da conflagrao de sua
alma com a ambincia particular da poca em que ele apareceu e que seus poemas
fixam melhor.
Neste pequeno livro das Serres chaudes {Estufas Aquecidas, 1889), o esprito
profundo do simbolismo existe realmente. Os outros simbolistas encerram e
agitam um certo bricabraque concreto de sensaes e de objetos amados por sua
poca, mas Maeterlinck dele emana a prpria alma. Nele o simbolismo no
somente um cenrio, mas um modo profundo de sentir.
Com um esprito anlogo ao deste adorvel Max Elskamp de Le Louange
de Ia vie (O Louvor da Vida), por demais negligenciado hoje, mas de um misti-
cismo menos ortodoxo, mais pessoal, Maeterlinck utiliza certos processos de pen-
samento cuja atualidade a gente no observa bastante. Uma certa maneira de
unir - em virtude de que misteriosas analogias - uma sensao e um objeto, e

1. Prefcio a Douze Chansons, de Maurice Maeterlinck. Fora de texto um retrato de Maeterlinck


gravado por Gorvel. Coleo Les Contemporains, obras e retratos no sculo XX. Traz o nmero 24 da
coleo. Stock, 1923.
152 LINGUAGEM E VIDA

de coloc-los no mesmo plano mental, evitando a metfora, reaparece no fundo


do princpio da poesia arquiatual.
Quanto resta disso, dizia impudentemente Jean Schlumberger, de seus dra-
mas de marionetes? Devemos ns cit-los uns aps outros? Em todo caso alguns
como Pellas et Mlisande, La Mort de Tintagiles, fornecem, em nosso mundo
espiritual, um equivalente dos pupazzi da comdia italiana no mundo plstico,
eles trazem uma nota desconhecida. Maeterlinck amplia sua galeria de pupazzi
msticos. Acrescenta novas figuras a suas encantadoras criaes. Seu teatro , bem
cedo, todo um mundo onde as personagens tradicionais do teatro reaparecem,
evocadas por dentro. A fatalidade inconsciente do drama antigo torna-se, em
Maeterlinck, a razo de ser da ao. As personagens so marionetes agitadas pelo
destino.
Mas o pendor ntimo de sua natureza o induz a procurar nos msticos um
alimento para seu pensamento. Ele traduz O Ornamento das Npcias Espirituais,
de Ruysbroek o Admirvel (1891); Os Discpulos de Sais, de Novalis (1895). Mae-
terlinck falou em termos esplndidos de Novalis, de Ruysbroek, de Boehme;
nele as imagens tm um sentido, elas aprofundam o tema.
em Le Trsor des humbles (O Tesouro dos Humildes, 1896) que nos encon-
tramos com as pginas consagradas aos pensadores a quem ele dedica a teoria
central do trgico cotidiano. No se pode analisar seu pensamento. Sua filosofia
est toda nesse dom que ele tem de revelar com imagens sensaes obscuras,
relaes desconhecidas do pensamento.
Ele d em 1898 La Sagesse et Ia destine {A Sabedoria e o Destino); em 1902,
Le Temple enseveli (O Templo Enterrado); em 1903, Le Double Jardin (O Duplo
Jardim). Maeterlinck alargou o domnio dos sentimentos, ele soube tornar sen-
sveis para ns os movimentos da vida obscura das plantas, as leis ocultas dos
fenmenos da vida.
La Vie des abeilles (A Vida das Abelhas) de 1901. As angstias, os desejos,
as repulses, os delrios dos gloriosos insetos, so exaltados por uma lrica, es-
cavados por uma filosofia.
Ns diremos, como alguns o repetem, que Maeterlinck, o filsofo, fez
obra, sobretudo, de divulgador? No. Maeterlinck esclareceu muitas trevas, mas
alm disso ele as vivificou.
Nele os problemas passam sem esforo do estado de idia ao estado de
realidade. Ele os desnuda e no-los mostra vivos. Ele lhes d primeiro seu aspecto
de problemas, isola seus dados, e nos d a impresso de viv-los, porque os evoca
com este tomo de sensualidade concreta que se apega indefectivelmente a nossos
pensamentos. No se deveria fazer figurar toda a filosofia de Maeterlinck na
teoria central do trgico cotidiano. Ningum um grande filsofo por haver
reparado que toda a vida este drama imvel onde se tramam os encontros
ocultos das foras do destino. Onde Maeterlinck verdadeiramente grande
quando analisa tais encontros, quando determina seus estados.
MAURICE MAETERLINCK

Maeterlinck evocou para ns as figuras dos velhos msticos. Ele soube tor-
nar-nos sensveis s etapas de seus pensamentos. Com ele tem-se verdadeiramente
a sensao de se descer ao fundo do problema. "A pessoa de Deus incognoscvel,
diz a sabedoria do Talmud, mas seus caminhos se exprimem por nmeros e por
cifras." So estes nmeros, cuja natureza agora insensvel criatura comum,
que Maeterlinck fixou em frases lapidares.
La Mort (A Morte), VHte inconnu (O Hspede Desconhecido), Les Sentiers
dans Ia montagne (As Sendas na Montanha), escondem as ltimas etapas de sua
vasta curiosidade. O alto pensamento de Boehme, de Ruysbroek, no mais existe
nestas ltimas obras, exceto como lembrana de uma antiga disciplina. Le Grand
Secret (O Grande Segredo) como o brevirio rpido das conquistas do homem
no domnio do Desconhecido.
As Doze Canes (1896) realizam, no gnero romance, uma ampliao me-
ldica de sua viso simblica do mundo.
Maeterlinck estreou nas letras com um conto em prosa: Le Massacre des
Innocents (A Matana dos Inocentes), que foi publicado em La Pliade em 1886;
trs anos depois ele se torna famoso. Mirbeau, em um artigo generoso e entu-
siasta, exalta La Princesse Maleine. Estamos em 1889.
Maeterlinck traduziu Annabella, de John Ford (1895), e mais recentemente
Macbeth, de Shakespeare, que foi representado graas a seus cuidados na Abadia
de Saint-Wandrille com Sverin-Mars. Ele comps entre outras peas: UOiseau
bleu (O Pssaro Azul), Les Fianailles (Os Esponsais), Monna Vanna, Marie-Magde-
leine, Le Bourgmestre de Stilmonde etc.

*
*

A filosofia de Maeterlinck como um templo em ao, cada pedra libera uma


imagem, cada imagem uma lio. Ela no constitui, a nenhum ttulo, um sistema.
Ela no tem arquitetura, forma; ela tem um volume, uma altura, uma densidade.
As altas regies do esprito possuem planaltos to repousantes quanto as mais vastas
clareiras. E para a que Maeterlinck nos arrasta com ele: o que digo eu? Ele as res-
tabelece para seu uso e para nosso uso com as imagens, os tomos, os mais sensveis
a nossos rgos humanos. Determinada pgina sobre Ruysbroek, sobre Boehme,
nos restitui a geografia profunda do pensamento deles.
Maeterlinck conheceu bem as abelhas. Cada uma das fases de sua vida se
inscreve como o minuto vivo de um drama, intenso, vasto, crepitante, com as
escapadas gloriosas das festas, o rudo das batalhas, os funerais estridentes dos
que caram.
O drama a forma mais alta do esprito. Est na natureza das coisas pro-
fundas chocar-se, combinar-se, deduzir-se. A ao o princpio mesmo da vida.
Maeterlinck foi tentado a dar vida a formas, a estados do pensamento puro.
Pellas, Tintagiles, Mlisande, so como as figuras visveis de tais sentimentos
154 LINGUAGEM E VIDA

especiais. Uma filosofia se desprende destes encontros, qual Maeterlinck tentar


mais tarde dar um verbo, uma forma na teoria central do trgico cotidiano. Aqui
o destino desencadeia seus caprichos; aqui o ritmo rarefeito, espiritual, ns
estamos na prpria fonte da tempestade, nos crculos imveis como a vida.
Maeterlinck foi o primeiro a introduzir na literatura a riqueza mltipla da
subconscincia. As imagens de seus poemas se organizam segundo um princpio
que no o da conscincia normal. Mas na poesia de Maeterlinck o objeto no
se reintegrou ainda em seu estado puro de objeto, de objeto manejado por mos
verdadeiras, a sensao permaneceu literria. o preo de doze sculos de poesia
francesa. Mas os modernos puseram as coisas nos eixos.
Maeterlinck apareceu na literatura no momento em que precisava vir. Sim-
bolista ele era por natureza, por definio. Seus poemas, seus ensaios, seu teatro,
so como os estados, imagens diversas de um idntico pensamento. O intenso
sentimento qve ele tinha da significao simblica das coisas, de suas trocas se-
cretas, de suas interferncias, lhe deu em conseqncia o gosto de faz-las reviver
sistematizando-as. assim que Maeterlinck comenta-se com as prprias imagens
que lhe servem de alimento.
Divulgador? No. Poeta, ou melhor pensador. Vivificador de aparncias.
Exegeta admirvel, criador. Seu pensamento, que vai de um pantesmo indefinido
(forma, se se pode dizer fsica de seu misticismo natural) a um espiritismo mi-
tigado, acaba, aps alguns desvios, por se fixar sobre si mesmo. Multiplica-se,
orna-se com sua prpria penetrao. O templo se descobre vivendo. Que luzes
nos traz Pascal, seno luzes, se se pode dizer, interiores, luzes que deixam em
sua noite, em seu silncio, o desconhecido, mas escavam o interior do conhecido,
o interior do possvel, descobrem possveis novos. Assim Maeterlinck estreitou
a membrana. Tais verdades muito profundas no esto separadas das verdades
superiores seno por uma membrana sem substncia que o esprito do homem
penetrar profundamente algum dia.

Traduo de]. Guinsburg


NO CINEMA
A CONCHA E o CLRIGO
(ROTEIRO DE UM FILME)1

CINEMA E REALIDADE

Dois caminhos parecem abrir-se atualmente ao cinema, nenhum dos quais,


certamente, o verdadeiro.
De um lado, o cinema puro ou absoluto e de outro essa espcie de arte
venial hbrida, obstinada em traduzir por imagens mais ou menos felizes situaes
psicolgicas que estariam perfeitamente colocadas em um palco ou nas pginas

1. Roteiro que Antonin Artaud entregou Associao de Autores de Filmes em 16 de abril


de 1927, sob o n 149. Publicado a seguir na Nouvelle Revue Franaise, n 170, Io de novembro de
1927.
A Concha e o Clrigo foi o nico dos roteiros de Antonin Artaud a ser filmado. A direo foi
entregue a Germaine Dulac, considerada na poca uma cineasta de vanguarda (tinha realizado, entre
outros filmes, A Festa Espanhola, A Morte do Sol, A Sorridente Sra. Beudet). Foi Yyonne Allendy que lhe
entregou o roteiro de Antonin Artaud; Artaud pensava em interpretar o papel do clrigo e pretendia
acompanhar as filmagens. Por esse motivo havia pedido uma licena de duas semanas a Dreyer, que
arabara de contrat-lo para A Paixo de Joana D'Arc. Parece que essas no eram as intenes de
Germaine Dulac, que no queria a presena de Antonin Artaud no local da filmagem (o Estdio
Gaumont). Por m vontade ou por acaso o incio da filmagem foi to atrasado que Artaud no
pde acompanh-la. Alm disso, ele tambm foi afastado da montagem do filme, a que dava especial
importncia. Desde o final do ms de agosto de 1927, ele manifesta srias preocupaes quanto
filmagem de seu roteiro. Depois de terminado o filme, Yyonne Allendy trata de encontrar uma sala
158 LINGUAGEM E VIDA

de um livro, mas no na tela, s existindo enquanto reflexo de um mundo que


tira de outro lugar sua matria e seu significado.
Est claro que tudo o que vimos at agora sob a aparncia de cinema abstrato
ou puro est longe de responder quilo que parece ser uma das exigncias essenciais
do cinema. Pois, por mais que o esprito humano seja capaz de conceber e endossar
a abstrao, s se pode ficar insensvel a linhas puramente geomtricas, sem valor
significativo em si mesmas, e que no fazem parte de uma sensao que o olho da
tela possa reconhecer e catalogar. Por mais que nos aprofundemos no esprito, en-
contramos, na origem de toda emoo, mesmo a intelectual, uma sensao de or-
dem nervosa que implica o reconhecimento, talvez em grau elementar, mas de
qualquer modo sensvel, de algo substancial, de uma certa vibrao que sempre
recorda estados, conhecidos ou imaginados, revestidos de uma das mltiplas formas
da natureza real ou sonhada. O significado do cinema puro estaria, portanto, na
recuperao de um certo nmero de formas desta ordem, num movimento e se-
guindo um ritmo que seja a contribuio especfica desta arte.

para projet-lo: sua escolha parece ter recado sobre a Sala Adyar, Praa Rapp. 4, Paris VII (cf. "Distin-
o entre Vanguarda de Contedo e de Forma", p. 175). Ela prepara releases para a imprensa e pensa
at em contratar homens-sanduche para a publicidade. Quanto a Germaine Dulac, parece no ter
pressa em mostrar o filme a seu roteirista. Para poder v-lo, Artaud obrigado a lhe escrever, dia 25 de
setembro. Portanto, apenas no ms de outubro que ele consegue, finalmente, ver A Concha e o Clri-
go na verso dirigida por Germaine Dulac. Ele no ficou satisfeito com o filme e achou que seu roteiro
tinha sido desfigurado pela diretora, que lhe deu uma interpretao banal, contentando-se em fazer
dele um sonho narrado. Para protestar contra essa interpretao contestvel do texto inicial, Artaud o
publica na Nouvelle Revue Franaise, precedido de uma nota intitulada "Cinema e Realidade", que ,
de certo modo, uma reprovao da maneira como A Concha e o Clrigo foi realizado. Germaine Dulac
responde dizendo que vai dar uma conferncia no Salo de Outono, na qual apresentar o filme. An-
tonin Artaud, que no tinha sido avisado, fica sabendo pela imprensa. Parece que ela desistiu dessa
apresentao graas interveno de Armand Tallier, diretor do Estdio das Ursulinas, que pediu a ex-
clusividade do filme. A situao se complica a tal ponto entre Antonin Artaud e sua diretora que, por
ocasio da primeira projeo pblica de A Concha e o Clrigo, no Estdio das Ursulinas, dia 9 de feve-
reiro de 1928, acompanhado de alguns amigos, entre os quais Robert Desnos, ele ofende Germaine
Dulac a ponto de serem todos expulsos da sala.
Essas informaes nos foram fornecidas, em grande parte, pelos rascunhos de um artigo de
Yvonne Allendy, posterior agitada sesso de 9 de fevereiro, de cuja redao Artaud no deve estar to-
talmente alheio. Alis, bem possvel que esse artigo tenha sido publicado em um jornal da poca e
que algum dia possamos encontrar sua verso definitiva. Apresentamos, a seguir, um excerto dos ras-
cunhos encontrados pela Sra. Colette Allendy nos papis de sua irm.
A cuso a Sra. G. Dulac de ter se apoderado de uma idia original, que pertencia ao rotrista e de ten-
tar, por vrios meios relatados abaixo, afast-lo e quase suprimi-lo de uma obra que, para ser bem realizada,
exigia sua assdua colaborao.
Por esse motivo acuso a Sra. G. Dulac de ter trado o esprito do roteiro e, por sua obstinao em de-
formar imagens poticas cujo sentido no compreendia epara a concretizao das quais recusava toda suges-
to, de ter ela mesma provocado uma reao violenta dos poetas desejosos de eximir o Sr. Antonin Artaud
dos erros do filme da Sra. Dulac.
Yvonne Allendy acusa ainda Germaine Dulac de ter mandado imprimir sobre o filme:
Sonho de Antonin Artaud.
Composio visual de Germaine Dulac.
A CONCHA E O CLRIGO

Entre a abstrao visual puramente linear (e um jogo de sombras e reflexos


como um jogo de linhas) e o filme de fundamento psicolgico que relata o
desenvolvimento de uma histria, dramtica ou no, h lugar para um esforo
em direo ao cinema verdadeiro, cuja matria e sentido no podem ser vislum-
brados nos filmes at agora apresentados.
Nos filmes de peripcia toda emoo e humor repousam unicamente sobre
o texto, excluindo-se as imagens; com raras excees, todo o pensamento de um
filme est nos letreiros, mesmo nos filmes sem letreiro; a emoo verbal, exige
esclarecimento ou apoio de palavras, pois as situaes, as imagens, os atos, giram
todos em torno de um significado claro. Estamos procurando um filme com
situaes puramente visuais, cujo drama decorreria de um choque infligido aos
olhos, tirado, se ousamos diz-lo, da prpria substncia do olhar, no proveniente
de circunstncias psicolgicas de essncia discursiva, que no passam de texto
traduzido visualmente. No se trata de encontrar na linguagem visual um equi-
valente da linguagem escrita, da qual aquela s seria uma m traduo, mas sim
de divulgar a prpria essncia da linguagem e transportar a ao para um plano
em que qualquer traduo se tornasse intil e a ao agisse quase intuitivamente
sobre o crebro.

Como o autor respondeu atravs de notas na imprensa e pela publicao de seu roteiro na NRF, pro-
vando assim que a criao das imagens lhe pertencia, a Sra. Dulac cedeu, mandando imprimir a frmula
habitual:
Roteiro deAntonin Artaud.
Realizao de G. Dulac.
Germaine Dulac tambm acusada de ter tentado desde o ms de novembro de 1927, data na qual a
NRF publicava o roteiro do Sr. Antonin Artaud e, sentindo-se comprometida, por esse fato, impedir a proje-
o desse filme em Paris. Isso explica a data tardia da primeira exibio.
Em relao conferncia de Germaine Dulac, nos dias 3 e 17 de novembro de 1927, encontra-
mos o seguinte anncio em Comcedia:
O Cinema no Salo de Outono.
O primeiro dos espetculos de vanguarda nematogrfica apresentados por Robert dejarville no tea-
tro do Salo de Outono, no Grand Palais, acontecer na quarta-feira, 23 de novembro, s 15 horas.
Germaine Dulac falar de Dois filmes e apresentar O Convite Viagem e fragmentos de A Con-
cha e o Clrigo.
Os anncios foram impressos e trazem uma variante da frmula criticada por Yvonne Allendy,
pois anunciam que Germaine Dulac apresentar:
A Concha e o Clrigo
Sonho deAntonin Artaud
realizado cinegraficamentepor Germaine Dulac.
Ora, no mesmo dia da conferncia, o anncio publicado em Comcedia prova que Germaine Du-
lac desistiu de sua apresentao:
Conferncia de Germaine Dulac.
Hoje, quarta-feira, 23 de novembro, s 15 horas, Robert dejarville apresenta no teatro do Salo de
Outono, no Grand Falais, um espetculo de vanguarda cinematogrfica, durante o qual Germaine Dulac
falar de Dois filmes, com exibio de O Convite Viagem, sua ltima produo, ede Dura lex, filmado
por Goskine na Rssia sovitica.
Se acreditarmos na nota de Lucien Wahl em VOeuvre (11 de novembro de 1927) e nas notas de
160 LWGUAGEM E VIDA

No roteiro que vem a seguir procurei concretizar esta idia de cinema


visual, onde a prpria psicologia devorada pelos atos. Sem dvida, este roteiro
no constitui a imagem absoluta de tudo o que pode ser feito nesse sentido; mas
pelo menos a anuncia. No que o cinema deva renunciar a toda psicologia: muito
pelo contrrio, seu princpio dar a essa psicologia uma forma mais viva e ativa,
sem estes vnculos que tentam mostrar as motivaes de nossos atos sob uma luz
totalmente estpida, ao invs de exibi-los em sua barbrie original e profunda.
Este roteiro no a reproduo de um sonho e no deve ser considerado
como tal. No procurarei desculpar sua aparente incoerncia pela escapatria
fcil dos sonhos. Os sonhos tm mais que sua lgica. Tm sua vida, onde s
aparece uma verdade inteligente e sombria. Este roteiro busca a verdade sombria
do esprito atravs de imagens originadas exclusivamente delas prprias, que no
extraem seu sentido da situao em que se desenvolvem, mas de um tipo de neces-
sidade interior e poderosa, que as projeta luz de uma evidncia sem apelao.

Jean Moncla em La Volont (19 de novembro de 1927), o filme fora apresentado alguns dias antes, pelo
menos imprensa. O artigo de Lucien Wahl no deixa de ser ambguo. Efetivamente, comea por afir-
mar: O Cinedube ofereceu uma matin realmente interessante. Por causa de um erro ou de esquecimento,
que sei involuntrio, no fui informado a tempo de poder assisti-la. Por isso no pude ver o filme russo inti-
tulado Dura lex, sed lex, inspirado num romance dejack London, mas posso falar de A Concha e o Clri-
go, que foi exibido ao mesmo tempo, pois havia sido montado [a notcia diz, efetivamente, montado e no
mostrado] h duas ou trs semanas. Em seguida, depois de citar excertos de Cinema e Realidade, o jorna-
lista tenta contar o filme, afirmando entre parnteses: (No li o roteiro publicado. Falo de memria, da-
quilo que vi). O que bastante estranho, pois Cinema e Realidade e o roteiro foram publicados juntos
na Nouvelle Revue Franaise.
Enfim, para dar uma idia do que foi a exibio de 9 de fevereiro de 1928, vamos citar a nota que
apareceu no Charivari de 18 de fevereiro.
Quinta-feira ltima, o Estdio das Ursulinas apresentou o ensaio geral de seu novo espetculo. Foi
exibido um filme da Sra. Dulac, A Concha e o Clrigo, obra de alucinao, que a narrativa de um pesa-
delo. O pblico seguia com interesse essa curiosa produo, quando se ouviu na sala uma i/oz perguntar:
"Quem fez esse filmei"
Ao que uma outra voz respondeu: "Foi a Sra. Germaine Dulac".
Primeira voz: Quem a Sra. Dulac?
Segunda voz: E uma vaca.
Diante da grosseria do termo, Armand Tallier, o simptico diretor das Ursulinas, apareceu, mandou
acender a luz e identificou os dois agitadores...
EramAntonin Artaud, um surrealista um pouco louco e manaco, autor do roteiro do filme, que ma-
nifestava desse modo seu descontentamento com a Sra. Dulac, que acusava de ter deformado sua "idia"
(uma idia um pouco louca). E junto com ele, protestava outro surrealista bastante conhecido que parece, s
vezes, ter talento.
Intimados por Tallier a se desculparem, s encontraram para responder a palavra de Cambronnc e
outras imundcies e logo foram auxiliados nessa tarefa por outros surrealistas, os mesmos que haviam feito
baderna na vspera, na Tribuna Livre. Mas as personalidades do mundo cinematogrfico presentes no
consentiram e, Tallier a frente, dispersaram a socos e pontaps a turma Artaud e Cia., que, de raiva, que-
brou os vidros do hall, dando gritinhos bizarros: "Goulou... Goulou..."
Certamente preciso levar em conta a tendncia ao exagero de tais notas e Georges Sadoul, em
"Memrias de uma Testemunha" (Estudos Cinematogrficos, n 38-39, primavera de 1965), se por um
lado confirma o "concerto de gritos e vociferaes" e as injrias grosseiras dirigidas a Germaine Dulac,
A CONCHA E O CLRIGO 161

A pele humana das coisas, a derme da realidade, sobretudo com isso que
o cinema lida. Ele exalta a matria e a revela para ns em sua espiritualidade
profunda, em suas relaes com o esprito de onde ela se originou. As imagens
nascem, derivam umas das outras enquanto imagens, impem uma sntese obje-
tiva mais penetrante que qualquer abstrao, criam mundos que no pedem nada
a ningum nem a nada. Mas desse puro jogo de aparncias, desse tipo de tran-
substanciao de elementos, nasce uma linguagem inorgnica que mobiliza o
esprito por osmose e sem nenhuma espcie de transposio em palavras. E pelo
fato de lidar com a prpria matria, o cinema cria situaes que provm do
simples choque de objetos, formas, repulses, atraes. Ele no se separa da vida,
mas reencontra a situao primitiva das coisas. Os filmes melhor sucedidos nesse
sentido so aqueles onde reina um certo humor, como os primeiros Malec2 ou
os Carlitos menos humanos. O cinema constelado de sonhos e que d a vocs
a sensao fsica da vida pura obtm seu triunfo no humor mais excessivo. Uma
certa agitao de objetos, formas, expresses, s se traduz bem nas convulses e
sobressaltos de uma realidade que parece se destruir a si mesma com uma ironia
na qual ressoa o grito dos confins do esprito.

A objetiva descobre um homem vestido de negro e ocupado em dosar um


lquido em vidros de altura e volume diferentes. Utiliza para esse transvasamento
um tipo de concha e quebra os vidros depois de servir-se deles. E inacreditvel o
acmulo de frascos que se encontra perto dele. Num dado momento v-se abrir
uma porta e aparecer um oficial de ar bonacho, beato, pomposo e sobrecarregado
de condecoraes. Arrasta atrs de si um sabre enorme. Fica ali como uma espcie
de aranha, ora nos cantos sombrios, ora no teto. A cada novo frasco quebrado
corresponde um salto do oficial. De repente o oficial est atrs do homem vestido
de negro. Toma-lhe a concha das mos. O homem deixa que isso acontea com um
espanto singular. O oficial d algumas voltas na sala com a concha e depois, repen-
tinamente, tirando a espada da bainha, quebra a concha com um golpe gigantesco.
A sala toda treme. As lmpadas vacilam e sobre cada imagem do tremor v-se refle-
tir a ponta de um sabre. O oficial retira-se com passos pesados e o homem vestido de
negro, cujo aspecto muito prximo ao de um clrigo, sai depois dele, engatinhando.
No meio da rua v-se o clrigo passar engatinhando. ngulos de ruas deslo-
cam-se diante da tela. Repentinamente aparece uma carruagem puxada por quatro
cavalos. Nesta carruagem aparece o oficial de agora h pouco, com uma linda mu-

por outro, nega que os manifestantes tenham sido expulsos da sala, pois, segundo escreve, A rmand Tal-
lier no era desses homens que chamam a polida para "restabelecer a ordem". (0 artigo de Charivari no
fala, alis, de interveno policial). O que quer que tenha acontecido, A Concha e o Clrigo, projetado
com A Tragdia da Rua, filme dirigido por Bruno Rahn, foi retirado de cartaz. O filme entrou em cartaz
denovo.namesmasala.com Trs Horas de uma FaU... de James Flood, a partir de 14 de maio de 1928.
2. Malec, personagem criada por Buster Keaton, cujas aventuras prosseguem em uma srie de
filmes rodados entre 1920 e 1923.
LINGUAGEM E VIDA

lher de cabelos brancos. Escondido na esquina de uma rua, o clrigo v a carruagem


passar e a segue, correndo rapidamente. A carruagem chega diante de uma igreja.
O oficial e a mulher, descendo, entram na igreja, dirigem-se ao confessionrio. Am-
bos entram no confessionrio. Mas, nesse momento, o clrigo salta, atira-se sobre
o oficial. O rosto do oficial racha, abre, desabrocha; o clrigo j no tem mais nos
braos um oficial, mas um padre. Parece que a mulher de cabelos brancos tambm
percebe o padre, mas numa outra postura e vai se ver, numa sucesso de doses, a
cabea do padre melosa, acolhedora, quando ela aparece aos olhos da mulher, e
rude, amarga, terrvel, quando ela observa o clrigo. A noite cai com uma violncia
espantosa. O clrigo levanta o padre nos braos e o atira; e ao seu redor, a atmosfera
torna-se absoluta. Ele d por si no cume de uma montanha; em superposio, a seus
ps, entrelaamentos de rios e plancies. O padre se desvencilha do clrigo como se
fosse uma bala, como uma rolha que explode e cai vertiginosamente no espao.
A mulher e o clrigo rezam no confessionrio. A cabea do clrigo balana
como uma folha e de repente parece que alguma coisa comea a falar dentro
dele. Ele arregaa as mangas docemente, ironicamente, e d trs batidas leves na
parede do confessionrio. A mulher levanta-se. Ento o clrigo d um soco e abre
a porta exaltado. A mulher est diante dele e olha-o. Ele se atira sobre ela e arranca
sua blusa, como se quisesse dilacerar seus seios. Mas em lugar deles h uma couraa
de conchas. Ele arranca a couraa e a agita no ar, onde ela cintila. Sacode-a
freneticamente no ar e a cena muda e mostra um salo de baile. Casais entram;
uns misteriosamente e na ponta dos ps; outros extremamente apressados. Os
lustres parecem seguir os movimentos dos casais. Todas as mulheres esto vestidas
sumariamente, mostram as pernas, empinam o seio e tm os cabelos curtos.
Um casal real entra: o oficial e a mulher de agora h pouco. Acomodam-se
sobre um estrado. Os casais esto corajosamente abraados. Num canto, um
homem sozinho no meio de um grande espao vazio. Ele tem na mo uma
concha, cuja viso o absorve estranhamente. Percebe-se nele, pouco a pouco, o
clrigo. Mas, derrubando tudo sua passagem, eis o mesmo clrigo que entra
levando na mo a couraa com a qual brincava h pouco de modo to frentico.
Levanta a couraa no ar como se quisesse esbofetear com ela um casal. Mas nesse
instante todos os casais imobilizam-se, a mulher de cabelos brancos e o oficial
desfazem-se no ar e esta mesma mulher reaparece no outro extremo da sala, na
arcada de uma porta que acaba de se abrir.
Esta apario parece aterrorizar o clrigo. Ele deixa cair a couraa que
expele, ao se despedaar, uma chama gigantesca. Depois, como se estivesse pos-
sudo por um sentimento de imprevisto pudor, faz meno de se cobrir com
suas roupas. Mas, medida que segura as bordas do hbito para coloc-las sobre
as coxas, parece que essas bordas alongam-se e formam um imenso caminho de
noite3. O clrigo e a mulher correm loucamente na noite.

3. Algumas pginas da decupagem do roteiro de A Concha e o Clrigo foram fornecidas a ns


pelo Sr. Alain Virmaux, que conseguiu recuper-las durante pesquisas ligadas ao cinema surrealista. A
A CONCHA E O CLRIGO

Essa corrida intercalada de aparies sucessivas da mulher em diversas


atitudes: ora com a bochecha inchada, enorme, ora mostrando a lngua, que se
alonga at o infinito e na qual o clrigo se agarra como se fosse uma corda. Ora
ela aparece com o seio terrivelmente inchado.
No final da corrida, v-se o clrigo aparecer repentinamente num corredor
e a mulher atrs dele, nadando numa espcie de cu.
Repentinamente, uma grande porta blindada. A porta abre-se sob um impul-
so invisvel e v-se o clrigo andando de costas e chamando, diante de si, algum que
no vem. Ele entra em uma grande sala. Nesta sala est uma imensa bola de vidro.
Ele se aproxima dela recuando, sempre chamando com o dedo a pessoa invisvel.
Percebe-se que a pessoa est perto dele. Suas mos sobem no ar como se
ele envolvesse um corpo de mulher. Depois, quando est seguro de ter aprisio-
nado esta sombra, esta espcie de duplo que no se v, atira-se sobre ela e a
estrangula com expresses de espantoso sadismo. Percebe-se que ele introduz sua
cabea cortada no bocal.
Vamos reencontr-lo nos corredores, com jeito desembaraado e girando
nas mos uma grande chave. Avana por um corredor, no fim do qual h uma
porta; abre a porta com a chave. Depois dessa porta, um outro corredor. No
fim desse corredor est um casal, em que ele reconhece, novamente, a mesma
mulher com o oficial carregado de condecoraes.
Comea uma perseguio. Mas punhos de todos os lados sacodem uma
porta. O clrigo est na cabine de um navio. Levanta-se da cama, sobe coberta
do navio. O oficial est l, acorrentado. Ento o clrigo parece recolher-se e
rezar. Mas quando levanta a cabea, na altura de seus olhos duas bocas se unem
e lhe revelam, ao lado do oficial, a presena de uma mulher que agora h pouco
no estava ali. O corpo da mulher repousa horizontalmente no ar.
Nesse momento um paroxismo o agita. Parece que os dedos de cada uma
de suas mos procuram um pescoo. Mas, entre os dedos de suas mos, cus,
paisagens fosforescentes - e ele, todo branco, com a aparncia de um fantasma,
passa com seu navio sob abbadas de estalactites.
O navio visto de muito longe, num mar de prata.

decupagem dessa cena, que traz o nmero 126, est entre elas. Germaine Dulac devia pensar que "um
imenso caminho de noite" ( immense chemine de nuit) era um erro de impresso da cpia que lhe
havia sido entregue e que ela devia corrigi-lo, pois a datilografia da decupagem traz: "uma imensa ca-
misola" (une immense chemise de nuit). Mais abaixo, esta indicao anotada pela prpria Germaine Du-
lac ou por seu assistente:
Ao: Tomada feita por baixo; o clrigo arregaa as bordas do hbito (sob uma placa de vidro).
Ora, justamente esse um dos erros de interpretao pelos quais ela ser recriminada no artigo
de Yvonne Allendy:
Segundo fato: a Sra. Dulac, por ter trabalhado sozinha no estdio, sem nenhuma indicao do autor,
recusou-se sistematicamente e por diversas vezes a deix-lo assistir a montagem, trabalho de grande impor-
tncia e que se tivesse sido fato diante do roteirista teria evitado erros graves como: as bordas do hbito que
se transformaram em camisola, a lngua que se transformou em corda, a repetio da histria da chave nos cor-
redores etc, imagens cujo sentido est desfigurado e quem tm apenas um valor tcnico, sem interesse.
164 LINGUAGEM E VIDA

Em dose aparece a cabea do clrigo, deitado e respirando.


Das profundezas de sua boca entreaberta, do espao entre seus clios, des-
prendem-se vapores resplandescentes que se renem em um canto da tela, for-
mando um cenrio de cidade ou paisagens extremamente luminosas. A cabea
termina por desaparecer completamente e casas, paisagens, cidades, perseguem-se,
enlaando-se e se desenlaando, formando uma espcie de inesperado cu de la-
gunas celestes, grutas com estalactites incandescentes e sob essas grutas, entre
essas nuvens, em meio a essas lagunas, aparece a silhueta de um navio que passa
e torna a passar, negro sob o fundo branco das cidades, branco sob os cenrios
de vises que, subitamente, se tornam negras.
Mas, de todos os lados, portas e janelas se abrem. A luz penetra no quarto
aos borbotes. Que quarto? O quarto da bola de vidro. Serventes, criadas; in-
vadem a sala com vassouras e baldes e se precipitam para as janelas. Por todos
os lados esfrega-se com intensidade, frenesi, paixo. Uma espcie de governanta
rgida, toda vestida de negro, entra com uma bblia na mo e vai se instalar
numa janela. Quando se consegue distinguir seu rosto, percebe-se que se trata,
sempre, da mesma mulher bela. Num caminho, do lado de fora, v-se um padre
que se apressa e, mais adiante, uma mocinha em trajes leves, com uma raquete
de tnis. Ela joga com um jovem desconhecido.
O padre penetra na casa. Criados saem de todos os lados e terminam por
fazer uma fila imponente. Mas, por causa da limpeza, necessrio deslocar a
bola de vidro, que nada mais seno uma espcie de vaso cheio de gua. Ela
passa de mo em mo. E, por alguns instantes, tem-se a impresso de ver dentro
dela uma cabea se movendo. A governanta manda chamar os jovens que esto
no jardim; o padre est l. Reconhecemos neles, mais uma vez, a mulher e o
clrigo. Parece que vo cas-los. Mas nesse momento v-se, em todos os cantos
da tela, se amontoarem e aparecerem as vises que se passavam no crebro do
clrigo adormecido. A tela cortada em dois pela apario de um imenso navio.
O navio desaparece, mas, de uma escada que parece subir ao cu, desce o clrigo
sem cabea e carregando um pacote embrulhado em papel. Chegando sala onde
todos esto reunidos, ele retira o papel e tira dali a bola de vidro. A ateno de
todos est no auge. Ento ele se inclina para o cho e quebra a bola de vidro:
dela sai uma cabea, que no outra seno a sua.
Essa cabea faz uma careta horrenda.
Ele a segura nas mos como um chapu. A cabea repousa sobre uma
concha. Conforme ele aproxima a concha de seus lbios, a cabea dissolve-se e
se transforma numa espcie de lquido turvo que ele sorve, fechando os olhos.
Traduo de Slvia Fernandes
A mulher est diante dele e olha-o.
Oi lustres parecem seguir os movimentos dos casais.

O padre penetra na casa.


E, por alguns instantes, tem-se a impresso de ver dentro dela uma cabea se movendo.
RESPOSTA A UMA PESQUISA1

1. Que Tipo de Filme Voc Gosta?


2. Que Tipo de Filme Voc Gostaria que Fosse Criado?

Io Gosto de cinema.
Gosto de qualquer tipo de filme.
Mas todos os tipos ainda esto por criar.
Acredito que o cinema pode admitir apenas um certo tipo de filme: s
aquele onde todos os meios de ao sensual do cinema tiverem sido utilizados.
O cinema implica uma subverso total de valores, uma desorganizao com-
pleta da viso, da perspectiva, da lgica. mais excitante que o fsforo, mais
cativante que o amor. No podemos nos dedicar indefinidamente a destruir seu
poder de galvanizao pelo uso de assuntos que neutralizam seus efeitos e per-
tencem ao teatro.
2o Exijo, portanto, filmes fantasmagricos, filmes poticos, no sentido den-
so, filosfico da palavra; filmes psquicos.

1. Segundo uma cpia datilografada fornecida pela Sra. Toulouse, na primeira pgina da qual foi
anotado, no alto, esquerda: A. Artaud. O aspecto dessa cpia (impresso, cor violeta da fita,
qualidade do papel) aproxima-a das cpias datilografadas entregues para Ia Rvolution Surraliste,
conservadas na Biblioteca Literria Jacques Doucet. Portanto, pode-se pensar que essa resposta foi3
escrita mais ou menos na poca em que Antonin Artaud aderiu ao movimento surrealista: portanto,
final de 1924, inicio de 1925. Alis, talvez tenha sido publicada na poca em alguma revista ou jornal
no localizados at agora por nossas pesquisas.
170 LINGUAGEM E VIDA

O que no exclui nem a psicologia, nem o amor, nem o desnudamento de


nenhum dos sentimentos do homem.
Mas filmes onde se opere uma triturao, um remanejamento das coisas
do corao e do esprito, a fim de lhes conferir a virtude cinematogrfica que
se est buscando.
O cinema exige temas excessivos e uma psicologia minuciosa. Exige a ra-
pidez, mas sobretudo a repetio, a insistncia, a reiterao. A alma humana em
todos os seus aspectos. No cinema, somos todos [ ]2 - e cruis. A supe-
rioridade e a lei poderosa dessa arte vm do fato de seu ritmo, sua velocidade,
seu carter de distanciamento da vida, seu aspecto ilusrio, exigirem um crivo
cerrado e a essencializao de todos os seus elementos. Por isso ele exige de ns
assuntos extraordinrios, estados culminantes da alma e uma atmosfera visionria.
O cinema um notvel excitante. Age diretamente sobre a massa cinzenta do
crebro. Quando o sabor da arte for aliado, em proporo suficiente, ao ingre-
diente psquico que ele contm, ele deixar para trs o teatro, que relegaremos
ao ba de recordaes. Pois o teatro j uma traio. Vamos ver a muito mais
os atores que as obras, pois so eles sobretudo que agem sobre ns. No cinema
o ator no passa de um signo vivo. Ele , sozinho, toda a cena, o pensamento
do autor e a seqncia dos acontecimentos. E por isso que ns no pensamos
nessas coisas. Carlitos interpreta Carlitos, Pickford interpreta Pickford, Fairbanks
interpreta Fairbanks. Eles so o filme. No poderamos imaginar o filme sem
eles. Esto em primeiro plano, onde no incomodam ningum. por isso que
no existem. Nada se interpe entre ns e a obra. O cinema tem, sobretudo, a
virtude de um veneno inofensivo e direto, uma injeo subcutnea de morfina.
por isso que o objeto do filme no pode ser inferior ao poder de ao do filme
- deve conter o maravilhoso.

Traduo de Slvia Fernandes

2. Uma lacuna no documento.


FEITIARIA E CINEMA1

Por toda parte se repete que o cinema est na infncia e que assistimos
apenas a seus primeiros balbucios. Confesso que no compreendo esta maneira
de ver. O cinema atinge um estdio j avanado de desenvolvimento do pensa-
mento humano 2 e beneficia-se desse desenvolvimento. Sem dvida um meio
de expresso que materialmente no est no ponto exato. Pode-se conceber certos
progressos capazes de dar ao aparelho, por exemplo, uma estabilidade e uma
mobilidade que ele no possui. Teremos, provavelmente num futuro prximo,
o cinema em relevo, at mesmo o cinema a cores. Mas esses so meios acessrios
e que no podem acrescentar grande coisa quilo que o substrato do prprio
cinema e3 que faz dele uma linguagem com o mesmo valor que a msica, a

1. Segundo um manuscrito fornecido pela Sra. Colette Allendy (cinco folhas encimadas por:
"Caf Terminus/ Estao St. Lazare/ Paris", utilizadas apenas na pgina de rosto). Sobre a primeira
pgina est colocada uma tira de papel, trazendo essas linhas manuscritas por Yvonne Allendy: "A
Sra. Germaine Dulac dirige atualmente, no Estdio Gaumont, A Concha e o Clrigo, filme bastante
curioso, feito de um nico sonho que encerra o mistrio de um drama, e cujo roteiro a obra do poeta
Antonin Artaud".
Essas poucas linhas, destinadas certamente a servir de apresentao ao texto de Antonin Artaud,
mostram que ele tinha, efetivamente, inteno de public-lo. Talvez o tenha feito, mas o peridico em
que o texto pode ter aparecido at agora no foi localizado por nossas pesquisas. Elas tambm nos
fornecem a data de sua redao: o perodo em que A Concha e o Clrigo foi filmado, quer dizer, final
de julho-agosto de 1927.
2. O pensamento humano substitui o esprito humano, riscado.
3. E est escrito como emenda sobre o.
172 ^^ LINGUAGEM E VIDA

pintura ou a poesia. Sempre distingui no cinema uma virtude prpria ao movi-


mento secreto e matria das imagens4. H no cinema toda uma parcela de
imprevisto e de mistrio que no se encontra nas outras artes. E certo que toda
imagem, a mais seca, a mais banal, chega transparente tela. O menor detalhe,
o objeto mais insignificante, adquirem um sentido e uma vida que lhes pertencem
intrinsecamente5. E isso excetuando-se o valor de significao das prprias ima-
gens, os pensamentos que elas traduzem, o smbolo que constituem. Pelo fato
de isolar os objetos ele lhes d uma vida parte, que ende mais e mais a tornar-se
independente e a destacar-se do sentido comum desses objetos. Uma folhagem,
uma garrafa, uma mo etc, vivem uma vida quase animal, e que pede apenas
para ser utilizada. H tambm as deformaes de aparelho, o uso imprevisto
que faz das coisas que registra. No momento em que a imagem acontece, um
detalhe no qual no se havia pensado inflama-se com um vigor singular e vai
contra a impresso buscada. H tambm este tipo de embriaguez fsica que a
rotao das imagens comunica diretamente ao crebro. O esprito insurge-se con-
tra toda representao. Essa espcie de poder virtual das imagens vai buscar no
fundo do esprito possibilidades at .agora no utilizadas. O cinema essencial-
mente revelador de toda uma vida oculta, com a qual nos coloca diretamente
em contato. Mas essa vida oculta, preciso saber adivinh-la. Existe algo muito
melhor que um jogo de superposies para fazer adivinhar os segredos que se
agitam no fundo de uma conscincia. O cinema em estado bruto, tomado tal
qual , no abstrato, libera um pouco dessa atmosfera de transe muito favorvel
a certas revelaes. Faz-lo servir para contar histrias, uma ao exterior,
privar-se do melhor de seus recursos, ir contra sua finalidade mais profunda. Por
isso o cinema me parece feito, sobretudo, para exprimir as coisas do pensamento,
o interior da conscincia e no somente pelo jogo das imagens, mas por alguma
coisa de mais impondervel que nos devolve as coisas em sua matria direta, sem
interposies, sem representaes. O cinema acontece numa guinada do pensa-
mento humano, neste momento preciso onde a linguagem gasta perde seu poder
de smbolo, onde o esprito est enfastiado do jogo das representaes. O pen-
samento claro no suficiente para ns. Situa um mundo gasto at o fastio. O
que claro o imediatamente acessvel: mas o imediatamente acessvel aquilo
que serve de casca vida. Comea-se a perceber que essa vida demasiado conhe-
cida, que perdeu todos os seus smbolos, no toda a vida. E a poca atual
bela pelos feiticeiros e pelos santos, mais bela que nunca. Toda uma substncia
insensvel toma corpo, procura alcanar a luz. O cinema nos aproxima dessa
substncia. Se o cinema no for feito para traduzir os sonhos ou tudo aquilo
que na vida desperta assemelha-se ao domnio dos sonhos, o cinema no existe.
Nada o diferencia do teatro. Mas o cinema, justamente por ser linguagem direta
e rpida, no tem necessidade de uma certa lgica lenta e pesada para viver e

4. Seguia isto, riscado: em si.


5. Intrinsicamente substitui pessoalmente, riscado.
FEITIARIA E CINEMA 173

prosperar. O cinema vai aproximar-se cada vez mais do fantstico, esse fantstico
que, percebemos sempre mais6, na realidade todo o real, ou ento no viver.
Ou melhor, o fantstico ser o real do cinema, como o da pintura, da poesia.
O certo que a maior parte das formas de representao tiveram sua poca. J
faz muito tempo que toda boa pintura s serve para reproduzir o abstrato. Por-
tanto, isso no apenas uma questo de escolha. No existir de um lado o
cinema que represente a vida e de outro aquele que represente o funcionamento
do pensamento. Pois, cada vez mais, a vida, aquilo que chamamos de vida, vai
se tornar inseparvel do esprito. Um certo domnio profundo tende a aflorar
superfcie. O cinema, melhor que qualquer outra arte, capaz de traduzir as
representaes desse domnio, pois a ordem estpida e a clareza habitual so suas
inimigas.
A Concha e o Clrigo participa dessa busca de uma ordem sutil, de uma
vida escondida que eu quis tornar plausvel; plausvel e to real quanto a outra.
Para compreender este filme bastar olhar profundamente para si mesmo.
Entregar-se a esse tipo de exame plstico, objetivo, atento apenas ao Eu interior,
que at agora era domnio exclusivo dos "Iluminados".
Traduo de Slvia Fernandes

6. Sempre mais substitui cada vez mais, riscado.


DISTINO ENTRE VANGUARDA DE
CONTEDO E DE FORMA1

O pblico que se interessa pelo verdadeiro cinema, que est espera da obra
capaz de quebrar a rotina do cinema comercial e de lanar a cinematografia em um
novo caminho, no est sem [saber]2 da existncia do nico filme realizado at ago-
ra segundo uma concepo verdadeiramente nova, verdadeiramente profunda:
A Concha e o Clrigo
No se sabe que interesses de grupos ou pessoas impediram o pblico, at
hoje, de ver esse filme. Os diretores de duas ou trs salas que existem em Paris
com o nome de Estdio e que pareciam ter sido criadas com a finalidade exclusiva
de lanar obras novas e fortes, realmente originais, depois de tmidas tentativas
e de transaes mais ou menos equvocas, renunciaram a apresentar o filme,
cedendo a ameaas muito obscuras ou, talvez, bastante definidas3.

1. Segundo uma nota manuscrita comunicada pela Sra. Colette Allendy, com certeza escrita
para servir de apresentao a A Concha e o Clrigo na poca que Yvonne Allendy pensa alugar, ela
mesma, uma sala para projetar o filme em agosto de 1927 (cf. nota 1, p. 157).
2. Antonin Artaud deve ter tido primitivamente a inteno de escrever no ignora, o que o fez
cometer aqui um lapso e escrever: no est sem ignorar.
3. Uma variante para o fim desse pargrafo est anotada debaixo do ttulo no espao deixado en-
tre o ttulo e a primeira frase: retirando-se sob pretextos falaciosos que designam seu medo e escondem no
sei que cabala com qual o cinema nada tem a ver, porm o mais odiosos interesses de parquias e de pessoas.
Pargrafo depois do qual se encontra a seguinte frase riscada: No poderia acontecer entretanto
que o pblico no o veja e ele o ver a partir de tal data na sala Adyar.
176 LINGUAGEM E VIDA

Mas4 pela primeira vez a unio de todos os interesses, de todas as foras ms,
dever ceder e o pblico poder ver a partir de..., na sala Adyar, uma obra realmen-
te significativa, cujas inovaes no consistiro em mltiplos achados tcnicos, em
jogos de formas exteriores e superficiais, mas na profunda5 renovao da matria
plstica das imagens, numa verdadeira liberao, liberao de modo algum casual,
mas necessria e precisa, de todas as foras sombrias do pensamento6.

Traduo de Slvia Fernandes

4. Mas substitui assim, riscado.


5. Na profunda substitui em uma, riscado.
6. Nos papis de Yvonne Allendy encontravam-se os rascunhos de um artigo, escrito por sua
mo. No que parece ser a primeira forma pode-se realar o seguinte pargrafo:
ESTE FILME O PBLICO N O VIU AINDA porque os diretores das duas salas ditas Estdios de van-
guarda que pareciam ter sido fundadas apenas para apresentar obras novas e fortes, verdadeiramente origi-
nais, continuam a mostrar filmes que estariam realmente em seu lugar nos palcios de boulevard.
que no deixa de lembrar o segundo pargrafo de Distino entre Vanguarda de Contedo e de Forma.
Parece pois quase certo tratar-se de um artigo ditado a Yvonne Allendy por Antonin Artaud. Cabe su-
por que se tratava de notas destinadas imprensa para lanar A Concha e o Clrigo e que a partir de seu
manuscrito, Antonin Artaud ditou uma verso um pouco diferente a fim de no publicar inteiramente
o mesmo texto em diversos jornais. Eis o que parece ser a ltima forma desse artigo.

UM ESCNDALO

H ss meses a imprensa discute com paixo um filme verdadeiramente de vanguarda que traz ao ci-
nema uma concepo verdadeiramente nova: A Concha e o Clrigo.
ESTE FILME O PBLICO N O VIU AINDA e isto porque as salas ditas Estdios de vanguarda so na
realidade consagradas a estpida produo comercial que mata o cinema e insulta o pblico pretendendo co-
loc-lo em seu nvel.
Estas pequenas salas medrosas e cupidas jamais revelaram nada, nem os Carlitos,
nem Malec
nem Caligari
nem Nosferatu
nem os grandes filmes russos
nem nenhuma das obras que quebram o quadro estrato que encerra voluntariamente na Frana a ci-
nematografia.
Elas continuam "no ousando" dar o primeiro filme-sonho: A Concha e o Clrigo de Antonin Ar-
taud, realizao de Germaine Dulac.
Este filme "inquietante" ser apresentado em seis noites a partir de amanh... Na sala Adyar, acom-
panhado de...
endereo: 4 Square Rapp, Paris 7e,
preos dos lugares: 5 e 7 francos

O emprego da expresso filme-sonho tenderia a provar que Antonin Artaud no tenha visto ain-
da o filme quando esta nota foi redigida; do contrrio, ele no a teria deixado passar, pois ele censura
antes de tudo Germaine Dulac por ter feito de A Concha e o Clrigo o relato de um sonho. Em novem-
bro de 1927, ele tomar o cuidado de especificar que seu argumento no era a reproduo de um sonho
(cf. p. 160). No entanto, numa entrevista concedida Lydie Lacaze, Germaine Dulac continuar a afir-
mar o contrrio: Voc poder ver, em janeiro, nas Ursulinas, meu ltimo filme de vanguarda A Concha e
o Clrigo. No h histria, simplesmente um sonho (La Rumeur, 12 de janeiro de 1928).
O CINEMA E A ABSTRAO1

O cinema puro um erro, assim como um erro, em qualquer arte, todo


esforo para alcanar o princpio desta arte em detrimento de seus meios objetivos
de representao. E um princpio essencialmente terreno que as coisas s possam
agir sobre o esprito atravs de um certo estado de matria, um mnimo de foras
substanciais suficientemente concretizadas. Talvez exista uma pintura abstrata,
que prescinde de objetos, mas o prazer que se obtm dela tem certa aparncia
hipottica, com que o esprito, bem verdade, pode satisfazer-se. O primeiro
grau do pensamento cinematogrfico parece estar na utilizao de objetos e for-
mas existentes aos quais se pode fazer dizer tudo, pois as disposies da natureza
so profundas e verdadeiramente infinitas.
A Concha e o Clrigo lida com a natureza criada e exercita-se em faz-la
restituir um pouco do mistrio de suas combinaes mais secretas. Portanto, no
se deve procurar a uma lgica ou uma ordem que no existem nas coisas, mas,
ao contrrio, interpretar as imagens que se desenvolvem no sentido da sua sig-
nificao essencial, ntima, uma significao interior, e que vai de fora para den-

1. O Mundo Ilustrado, n 3.645, de 29 de outubro de 1927. Precedido desta apresentao, que


pode ter sido escrita por Yvonne Allendy:
Alguns pensam que o cinema vai encontrar seu verdadeiro caminho na expresso das imagens
subjetivas. Esta a ousada proposta do poeta Antonin Artaud, com um roteiro feito de um nico sonho, A
Concha e o Clrigo, que ser brevemente apresentado ao pblico. A Sra. Germaine Dulac teve o mrito de
aceitar dirigi-lo e era preciso todo seu talento para tentar restituir a tais imagens a luz, o movimento e a
atmosfera que lhe so prprios. O autor do roteiro expe aqui sua concepo de uma semelhante busca.
178 LINGUAGEM E VIDA

tro. A Concha e o Clrigo no conta uma histria, mas desenvolve uma seqncia
de estados de esprito que derivam uns dos outros, como o pensamento deriva
do pensamento, sem que esse pensamento reproduza a ordem racional dos fatos.
Do choque dos objetos e dos gestos derivam verdadeiras situaes psquicas, em
meio s quais o pensamento aprisionado procura uma sada sutil. Nada existe a
a no ser em funo das formas, dos volumes, da luz, do ar - mas sobretudo
em funo do sentido de um sentimento liberado e nu, que escorrega por entre
os caminhos pavimentados de imagens e atinge uma espcie de cu onde desa-
brocha inteiramente.
As personagens a so apenas crebros e coraes. A mulher ostenta seu
desejo animal em forma de desejo, a cintilao fantasmagrica do instinto que a
impele a ser uma e, sem cessar, diferente em suas repetidas metamorfoses.
A senhorita Athanasiou soube confundir-se muito bem com um papel todo
instinto e onde uma sexualidade muito curiosa adquire um aspecto de fatalidade
que ultrapassa a personagem enquanto ser humano e sintetiza o universal. Eu
tambm s tenho elogios para os senhores Alex Allin e Bataille. E, para terminar,
quero agradecer muito especialmente Sra. Germaine Dulac, que soube reco-
nhecer o interesse de um roteiro que busca introduzir-se na prpria essncia do
cinema e no se ocupa em fazer aluses, nem arte, nem vida.

Traduo de Slvia Fernandes


A CONCHA E O CLRIGO (II)1

A Concha e o Clrigo, antes de ser um filme, um esforo ou uma idia.


Escrevendo o roteiro de A Concha e o Clrigo julguei que o cinema possua
uma substncia prpria, verdadeiramente mgica, verdadeiramente cinematogr-
fica, que ningum ainda havia pensado em separar. Essa substncia, distinta de
toda espcie de representao ligada s imagens, participa da prpria vibrao e
do nascimento inconsciente, profundo do pensamento.
Ele se liberta subterraneamente das imagens e deriva, no de seu sentido
lgico e necessrio, mas de sua mistura, sua vibrao e seu choque. Pensei que
se podia escrever um roteiro que no levasse em conta apenas o conhecimento
e a ligao lgica dos fatos, mas que, alm disso, fosse procurar no nascimento
oculto e nas divagaes do sentimento e do pensamento as razes profundas, os
impulsos ativos e obscuros de nossos atos chamados lcidos, mantendo seus mo-
vimentos no domnio dos nascimentos e aparies. Chegou o momento de dizer
at que ponto esse roteiro pode assemelhar-se e aparentar-se mecnica do sonho
sem ser, realmente, um sonho, por exemplo. Chegou o momento de dizer at
que ponto ele recupera a pura elaborao do pensamento. Assim o esprito,
entregue a si mesmo e s imagens, infinitamente sensibilizado, dedicado em no
perder nada das inspiraes do pensamento sutil, est totalmente pronto a reen-
contrar suas funes primeiras, antenas voltadas para o invisvel, para recomear
uma ressurreio da morte.

1. Cahicrs de Belgique, n 8, outubro de 1928.


180 LINGUAGEM E VIDA

este, pelo menos, o pensamento ambicioso que inspirou esse roteiro,


que, de qualquer maneira, supera os limites de uma simples narrao ou das
questes, habituais no cinema, de msica, ritmo ou esttica, para colocar a ques-
to da expresso em todos os seus domnios e toda sua extenso.
Traduo de Slvia Fernandes
A VELHICE PRECOCE DO CINEMA1

Quiseram estabelecer uma distino de contedo, uma espcie de partilha


de essncias entre dois ou trs tipos de cinema.
De um lado surge o cinema dramtico, onde o acaso, quer dizer, o impre-
visto, quer dizer, a poesia, em princpio suprimido. No h nenhum detalhe
que no provenha de uma escolha absolutamente consciente do esprito, que no
seja estabelecido com vistas a um resultado determinado e seguro. A poesia, se
que existe poesia, de ordem intelectual; apia-se sobre a ressonncia particular
dos objetos do sensvel somente depois, no momento em que eles entram em
contato com o cinema.
De outro lado - e este o ltimo refgio dos partidrios do cinema a
qualquer preo - h o cinema documentrio. Aqui uma parte preponderante
deixada mquina e ao desenvolvimento espontneo e direto dos aspectos da
realidade. A poesia das coisas tomadas em seu aspecto mais inocente, e pelo lado
em que se ligam ao exterior, totalmente empregada.
Quero, ao menos uma vez, falar do cinema em si, estud-lo em seu funciona-
mento orgnico e ver como ele se comporta quando entra em contato com o real.

1. Lts Cabiers jauna, n especial Cinema 33 (n 4, 1933).


182 LINGUAGEM E VIDA

A objetiva que perscruta o centro dos objetos cria seu mundo e possvel
que o cinema se coloque no lugar do olho humano, que pense por ele, que passe
o mundo por seu crivo e que, atravs desse trabalho de excluso ordenado e
mecnico, deixe sobreviver apenas o melhor. O melhor, quer dizer, o que vale
a pena ser retido, esses farrapos de aparncias que flutuam superfcie da memria
e dos quais, parece que automaticamente, a objetiva filtra o resduo. A objetiva
classifica e digere a vida, prope sensibilidade, alma, um alimento inteiramente
pronto e nos coloca diante de um mundo acabado e seco. Alis, no certo que
ela realmente s deixe passar o significativo e o melhor daquilo que vale a pena
ser registrado. Pois preciso notar que sua viso de mundo fragmentria, que
por mais vlida que seja a melodia que ela consegue criar entre os objetos, essa
melodia tem, se podemos diz-lo, dois gumes.
Por um lado obedece ao arbitrrio, s leis internas da mquina de olho
fixo - por outro, o resultado de uma vontade humana particular, vontade
precisa e que tambm tem seu lado arbitrrio.
O que se pode dizer, nessas condies, que medida que o cinema
deixado sozinho diante dos objetos, impe-lhes uma ordem, uma ordem que o
olho reconhece como vlida, e que responde a certos hbitos exteriores da me-
mria e do esprito. E a questo que se coloca aqui de saber se esta ordem
continuaria a ser vlida nos casos em que o cinema quisesse dar um impulso
mais profundo experincia e nos propusesse no apenas certos ritmos da vida
habitual que o olho e o ouvido reconhecessem, mas os conflitos obscuros e amor-
tecidos daquilo que se dissimula sob as coisas, ou as imagens esmagadas, pisotea-
das, distendidas ou densas daquilo que fervilha nas ltimas camadas do esprito.
O cinema, apesar de no ter necessidade de uma linguagem, de uma con-
veno qualquer para nos fazer juntar os objetos, no consegue substituir a vida;
so pedaos de objetos, recortes de aspectos, puzzles inacabados de coisas que ele
une para sempre entre si. Isto muito importante, sob qualquer ponto de vista,
pois preciso saber que o cinema nos mostra um mundo incompleto, e visto
de um s ngulo - e uma felicidade que este mundo esteja fixado para sempre
em seu inacabamento, pois se por milagre os objetos fotografados, dispostos
sobre a tela, pudessem mover-se, nem ousamos pensar na imagem de nada, na
quebra das aparncias que eles conseguiriam provocar. Quero dizer que a imagem
de um filme definitiva e sem retorno e, se ela permite uma seleo e uma
escolha antes da exibio das imagens, probe as imagens em ao de mudarem
ou se superarem. incontestvel. E ningum pode querer que um gesto humano
seja perfeito, que no tenha possibilidade de melhorar sua ao, seu movimento,
sua comunicao. O mundo cinematogrfico um mundo morto, ilusrio, des-
pedaado; alm de no abarcar as coisas, no penetrar no centro da vida, de reter
apenas a epiderme das formas e aquilo que um ngulo visual muito restrito pode
reunir delas, probe todo reexame e toda repetio, o que uma das condies
mais importantes da ao mgica, do dilaceramento da sensibilidade. No se refaz
a vida. As ondas vivas, inscritas para sempre em um certo nmero de vibraes
A VELHICE PRECOCE DO CINEMA 3

fixas, so ondas mortas. O mundo do cinema um mundo fechado, sem relao


com a existncia. Sua poesia no est alm, mas aqum das imagens. Quando
atinge o esprito, sua fora desagregadora se despedaou. Certamente existiu a
poesia em torno da objetiva, mas antes da filmagem pela objetiva, antes da ins-
crio sobre a pelcula.
Alm disso, a partir do cinema falado, as elucidaes da palavra detm a
poesia inconsciente e espontnea das imagens; a ilustrao e a concluso do sen-
tido de uma imagem pela palavra mostram os limites do cinema. A suposta magia
mecnica de um ronronar visual constante no resistiu ao choque da palavra,
que fez com que essa magia mecnica aparecesse para ns como a conseqncia
de uma surpresa puramente fisiolgica dos sentidos. Cansamo-nos rapidamente
das perigosas belezas do cinema. Ter os nervos massageados, de modo mais ou
menos feliz, pelas cavalgadas abruptas e inesperadas de imagens, cujo desenrolar
e cuja apario mecnica escapam s leis e prpria estrutura do pensamento,
poderia agradar a alguns estetas do obscuro e do inexprimvel, que procuram
sistematicamente essas emoes, sem jamais estarem certos de que elas pudessem
aparecer. Esse acaso e esse inexprimvel faziam parte do encantamento delicado
e sombrio que o cinema exercia sobre o esprito. Tudo isso unido a algumas
outras qualidades mais especficas que todos ns amos procurar nele.
Sabamos que as virtudes, as mais caractersticas e as mais marcantes do
cinema, eram sempre, ou quase, efeito do acaso, quer dizer, de um tipo de mis-
trio cuja fatalidade no conseguamos explicar.
Nessa fatalidade havia uma espcie de emoo orgnica, onde o crepitar
objetivo e seguro da mquina misturava-se e se opunha divertida apario dos
objetos da realidade; mas, passando a vida a seu ritmo prprio, creio que o
humor do cinema nasce em parte dessa segurana relacionada ao ritmo de fundo,
sobre o qual se bordam (nos filmes cmicos) todas as fantasias de um movimento
mais ou menos irregular e veemente. Apesar disso, com exceo desse tipo de
racionalizao da vida, cujas ondas e cujas ramagens, quaisquer que sejam elas,
so esvaziadas de sua plenitude, de sua densidade, de sua extenso, de sua fre-
qncia interior pelo arbitrrio da mquina, o cinema continua sendo uma forma
fragmentria e, como j disse, estratificada e congelada, de tomar posse do real.
Todas as fantasias relacionadas ao emprego da cmera lenta ou da acelerao
aplicam-se apenas a um mundo fechado de vibraes, que no tem a faculdade
de se enriquecer ou se alimentar de si prprio; o mundo imbecil das imagens,
agarrado como visco s mirades de retinas, no completar jamais a imagem que
se pode fazer dele.
Portanto, a poesia que no pode desvencilhar-se de tudo isso no passa de
poesia eventual, poesia do que poderia ser; e no do cinema que devemos
esperar a restituio dos mitos do homem e da vida atual.
Traduo de Slvia Fernandes
OS SOFRIMENTOS DO DUBBING1

O cinema falado viu nascer profisses estranhas, empregos estranhos e ati-


vidades estranhas. O que se chama de dubbing em linguagem de cinema, e que
corresponde palavra francesa dublagem, contm a idia implcita de algo mais
perfeito e mais sbio que a simples dublagem - o dubbing, portanto, uma dessas
atividades e [um]2 desses procedimentos hbridos que o bom gosto repele, que
no satisfazem nem ao olho nem ao ouvido3 e que, no entanto, a Amrica impe
em seus filmes e a maioria do pblico francs recebe.
Cronologicamente o dubbing sucede sincronizao simples. O cinema
falado, que acredita ter descoberto a sincronizao absoluta do som e da imagem
e, com muita freqncia, no momento de apresent-lo juntos, v um separar-se
do outro e constata que no se ajustam mais, apela com muito mais freqncia
do que se acredita para a dublagem comum; aplica, em seguida, sons sobre as
imagens, e pede aos atores para repetirem sem ver a imagem, diante do microfone
simplesmente, cenas que exigiriam uma absoluta simultaneidade. Usou-se e abu-
sou-se da dublagem simples, da sincronizao comum.
Nos filmes falados em todas as lnguas, e lnguas onde o acento tnico
impe aos atores que as falam uma surpreendente ginstica dos msculos faciais,

1. Segundo um manuscrito pertencente Sra. Anie Faure, que nos foi enviado pelo Sr. Ren
Thomas. Antonin Artaud utilizar o verso das cinco folhas que constituem esse manuscrito para as
pginas 6, 5,4 e 3 de A Anarquia. Portanto, podemos datar esse texto de 1933, aproximadamente.
2. Palavra faltante no manuscrito.
3. nem ao olho nem ao ouvido substitui nem ao esprito nem aos sentidos, riscado.
186 LINGUAGEM E VIDA

tentou-se aplicar a dico, a uniforme dico francesa, essa dico monocrdia


onde nada se destaca; e isso dava mais ou menos a impresso de uma enorme
tempestade que fosse reduzida, para o ouvido, ao rudo de um simples "tu tu".
Era a poca em que produtoras francesas de vida curta, antigos saltimbancos
que se improvisam comerciantes de filmes, e que circulam ainda hoje com seu
camel cinematogrfico nas feiras e mercados de gado, compravam por atacado
o filme, mudo ou no, e mandavam-no dublar por [qualquer]4 vedete dos teatros
de periferia - que jamais saiu da periferia.
Onde na tela a vedete alem ou americana se surpreendia, fechando a boca,
ouvia-se no amplificador uma imprecao; onde a vedete, contraindo os lbios,
emitia como que um silvo, ouvia-se um baixo cavernoso, um murmrio ou
qualquer coisa assim. Se por acaso um filme dublado nessas condies passava
em uma sala voltada para os Boulevards ou arredores, a sala urrava, e era justo.
Quebraram o pau muitas vezes nas salas de projeo no incio do cinema falado.
Mas, custa de fazer tolices, o cinema acabou por se sentir esperto. Fazer
bons filmes franceses na Frana - com algumas raras excees recentes - ningum
jamais sonhou. E depois, no se encontrou a maneira. Quer dizer, a tradio. A
Amrica possua a tradio e a tcnica. Apesar disso, no iramos recusar a pro-
duo falada americana, sob o pretexto de ser em uma lngua que a Frana no
compreendia5. Por outro lado, no se podia mais mostrar ao pblico essas du-
blagens baratas, que se contentam em passar um texto de uma lngua para outra.
Foi ento que a Amrica teve uma idia engenhosa, uma idia nova: inventou
o dubbing. O dubbing, quer dizer, a dublagem, mas por equivalncia de dico.
Era simples! e ns todos havamos pensado nisso. Mas era preciso faz-lo e a
Amrica o fez.
Da em diante comeavam a ter importncia, nos estdios de filmagem
sonora, os msculos faciais dos atores. A uma certa abertura de boca, na lngua
original em que o filme foi rodado, devia corresponder uma abertura de boca
idntica, um igual estremecimento da face, na lngua do sincronizador. E foi
aqui que a comdia comeou. A Comdia, mas no a da tela, a da Vida. A
comdia da corrida dos atores de todas as classes, que querem todos sincronizar,
j que [ ] 6 , e a comdia da impotncia, dos sofrimentos e dos ridculos dos
dubbing.
H sobretudo a comdia-tragdia da Metro Goldwyn, da Universal, ou da
Fox, que empregam atores e atrizes franceses por salrios de fome de 125 a 150
dlares por semana e que os despedem depois de trs meses. Quem so esses
atores? Fracassados? No. Azarados? Talvez! Aventureiros? Alguns. Atrizes re-
conhecidas, mas que o tempo ou as peas no favorecem, cujo temperamento

4. Palavra fakante no texto.


5. Este inicio era seguido da frase riscada: Pensar em dublar pura c simplesmente o ator americano
na tela por um ator francs [...]
6. Faltam algumas palavras no manuscrito.

i
OS SOFRIMENTOS DO DUBBING

agitado no se acomoda mais ao nosso teatro para espectador provinciano ou


para sdico aposentado sem imaginao, vo para a Amrica, de segunda classe,
com colees de vestidos que as luzes de nenhum projetor se arriscar a iluminar.
Elas colocaro suas vozes francesas na densa boca de Marlene Dietrich, na boca
polpuda e dura de Joan Crawford, ou na boca cavalar de Greta Garbo. Para
uma mulher habituada a representar com seu corpo, para uma atriz que pensa
e sente com todo seu fsico do mesmo modo que com sua cabea ou sua voz,
para quem o fsico, o encanto ou o famoso sex appeal so quase tudo, o sacrifcio
duro. Menos duro que algo ainda mais terrvel e, em minha opinio, comple-
tamente diablico, que o dubbing reserva aos verdadeiros atores e que os diretores
das produtoras de cinema americanas e especialmente o Sr. Alan Beer, da Metro
Goldwyn Mayer de Paris, que fui entrevistar sobre esse assunto, no tiveram o
cuidado de reconhecer ou confessar. Mas este ponto de vista o da personalidade
e, ousaria dizer, o ponto de vista da alma, que a civilizao to evoluda das
"Amricas" acha mais conveniente negar. Ou melhor, nega-o quando isso des-
favorece seus negcios, mas quando se trata da personalidade mais ou menos
fabricada de uma vedete carregada pelas multides, ento sacrificar qualquer
considerao sobre o altar dessa personalidade. Acha bom e plenamente justifi-
cvel que essa personalidade, novo Moloch, absorva tudo7.

Traduo de Slvia Fernandes

7. Esta ltima frase substitui outra, riscada: Ento essa personalidade, novo Moloch, absorve tudo.
NA PINTURA

1
UCCELLO O PLO1

para Cnica

Uccello, meu amigo, minha quimera, tu viveste com este mito de plos.
A sombra desta grande mo lunar, onde imprimes as quimeras de teu crebro,
no chegar nunca at a vegetao de tua orelha, que vira e formiga esquerda
com os ventos de teu corao. A esquerda os plos, Uccello, esquerda os sonhos,
esquerda as unhas, esquerda o corao. esquerda que todas as sombras
se abrem, naves, assim como orifcios humanos. A cabea deitada sobre esta mesa
onde a humanidade inteira soobra, que outra coisa ests vendo seno a sombra
imensa de um plo. De um plo como duas florestas, como trs unhas, como
um capinzal de clios, como de um ancinho nas relvas do cu. Estrangulado o
mundo, e suspenso, e eternamente vacilante sobre as planuras desta mesa plana
onde tu inclinas tua cabea pesada. E junto de ti quando interrogas as faces, o
que vs, alm de uma circulao de ramos, uma trelia de veias, o trao minsculo
de uma ruga, a ramagem de um mar de cabelos. Tudo est girando, tudo
vibrtil, e o que vale o olho despojado de seus clios? Lava, lava os clios, Uccello,
lava as linhas, lava o trao tremulante dos plos e das rugas sobre estes rostos
pendurados de mortos que te olham como ovos, e em tua palma monstruosa e
cheia de lua como uma iluminao de fel, eis ainda o trao augusto de teus plos3
que emergem com suas linhas finas como os sonhos em teu crebro de afogado.

1. Publicado originalmente em Ia Rvolution Surraliste, no mesmo nmero em que aparece


"Carta Vidente" (n 8, Io de dezembro de 1926). Algumas variantes.
2. Devido ruptura com Gnica Athanasiou a dedicatria foi suprimida na edio Denol.
3. ... os traos augustos de teus plos...
192 LINGUAGEM E VIDA

De um plo a outro, quantos segredos e quantas superfcies. Mas dois plos um


ao lado do outro, Uccello. A linha ideal dos petos intraduzivelmente fina e duas
vezes repetida. H rugas que do a volta nos rostos e se prolongam at o pescoo,
mas sob os cabelos tambm h rugas, Uccello. Por isso podes dar4 toda a volta
deste ovo que pende entre as pedras e os astros, e que sozinho possui a animao
dupla dos olhos.
Quando tu pintaste teus dois amigos e a ti mesmo em um tela bem adap-
tada, deixaste sobre a tela como que a sombra de um estranho algodo, em que
discirno teus pesares e tua pena, Paolo Uccello, mal iluminado. As rugas, Paolo
Uccello, so laos, mas os cabelos so lnguas. Em um de teus quadros, Paolo
Uccello, eu vi a luz de uma lngua na sombra fosforescente dos dentes. pela
lngua que alcanas a expresso viva nas telas inanimadas. E por a que eu vi,
Uccello todo enfaixado em tua barba, que tu me havias de antemo compreen-
dido e definido. Bendito sejas, tu que tiveste a preocupao rochosa e terrena
da profundeza. Tu viveste nesta idia como num veneno animado. E nos crculos
desta idia giras eternamente e eu te persigo s cegas tendo como fio a luz desta
lngua que me chama do fundo de uma boca miraculada. A preocupao terrena
e rochosa da profundeza, eu que careo de terra em todos os graus. Presumiste
verdadeiramente minha descida neste baixo mundo com a boca aberta e o esprito
perpetuamente espantado? Presumiste estes gritos em todos os sentidos do mundo
e da lngua, como de um fio perdidamente desemaranhado. A longa pacincia
das rugas o que te salvou de uma morte prematura. Pois, eu sei, tu nasceste
com o esprito to oco quanto eu mesmo, mas este esprito, tu pudeste fix-lo
em menos coisas ainda que o trao e o nascimento de um clio. Com a distncia
de um plo, tu te balanas sobre um abismo terrvel e do qual ests, no entanto,
para sempre separado.
Mas abeno tambm, Uccello, pequeno garoto, pequeno pssaro, pequena
luz dilacerada, eu abeno teu silncio to bem plantado. A exceo destas linhas
que fazes brotar da cabea5 como uma folhagem de mensagens, no resta de ti
seno o silncio e o segredo de tua tnica fechada. Dois ou trs signos no ar,
qual o homem que pretende viver mais que estes trs signos, e ao qual, ao
longo das horas que o cobrem, se pensaria pedir mais que o silncio que os
precede ou que os segue. Eu sinto todas as pedras do mundo e o fsforo do
espao, que minha passagem arrasta, abrir seu caminho atravs de mim. Eles
formam as palavras de uma slaba negra nas pastagens de meu crebro. Tu, Uc-
cello, tu ests aprendendo a no ser mais que uma linha e o pavimento elevado
de um segredo.

Traduo de J. Cuinsburg

4. Assim podes dar... (Ainsi tu peux faire...) Cabe perguntar-se se a lio da edio Denol: aussi,
(por isso), no se deve a uma falha de impresso.
5. ...que fazes brotar da tua cabea...
A BIGORNA DAS FORAS1

Este fluxo, esta nusea2, estas correias, n'isto que comea o Fogo. O fogo
das lnguas. O fogo tecido em espirais de lnguas, no espelhamento da terra que
se abre como um ventre em parto, de entranhas de mel e acar. De toda a sua
ferida obscena ele boceja este ventre mole, mas o fogo boceja sobretudo em
lnguas torcidas e ardentes que carregam em sua ponta suspiros como de sede.
Este fogo torcido como nuvens na gua lmpida, tendo ao lado a luz que traa uma
rgua e clios. E a terra com todas as partes entreabertas e mostrando ridos se-
gredos. Segredos como superfcies. A terra e seus nervos e suas pr-histricas
solides; a terra de geologias primitivas, onde se descobrem os sops do mundo
numa sombra negra como carvo. - A terra me sob o gelo de fogo. Vejam o
fogo nos Trs Raios, com o coroamento de sua crina onde pululam olhos. O centro
ardente e convulso deste fogo como a ponta esquartejada do trovo no cimo
do firmamento. O centro branco das convulses3. Um absoluto de fulgor na bal-
brdia da fora. A ponta medonha da fora que se quebra na algazarra toda azul.
Os Trs Raios fazem um leque cujos ramos caem a pique e convergem
para o mesmo centro. Este centro um disco leitoso recoberto de uma espiral
de eclipses.

1. Publicado originalmente em Ia Rvolution Surraliste (n 7, 5 de junho de 1926). Algumas


variantes.
2. Este rio, esta nusea,...
3. O centro branco do firmamento.
LINGUAGEM E VIDA

A sombra do eclipse faz um muro sobre os ziguezagues da alta alvenaria


celeste.
Mas acima do cu est o Duplo-Cavalo. A evocao do Cavalo banha-se
na luz da fora, sobre um fundo de parede pudo e premido at o limite. O
limite de seu duplo peitoral. E nele o primeiro dos dois muito mais estranho
que o outro. ele quem rene o fulgor do qual o segundo no seno a sombra
pesada.
Mais baixo ainda que a sombra da parede, a cabea e o peitoral do cavalo
fazem uma sombra, como se toda a gua do mundo elevasse o orifcio de um
poo.
O leque aberto domina uma pirmide de cimos, um imenso concerto de
cumes. Uma idia de deserto plana sobre estes cumes, acima dos quais um astro
descabelado flutua, horrivelmente, inexplicavelmente suspenso. Suspenso como
o bem no homem, ou o mal no comrcio do homem com o homem, ou a morte
na vida. Fora giratria dos astros.
Mas atrs desta viso de absoluto, deste sistema de plantas, de estrelas, de
terrenos talhados at o osso, atrs desta ardente floculao de germes, desta geo-
metria de pesquisas, deste sistema giratrio de cumes, atrs desta relha plantada
no esprito e deste esprito que desprende suas fibras, descobre seus sedimentos,
atrs desta mo de homem, enfim, que imprime seu polegar duro e desenha suas
apalpadelas, atrs desta mescla de manipulaes e crebro, e destes poos em
todos os sentidos da alma, e destas cavernas da realidade,
ergue-se a Cidade de muralhas bardadas, a Cidade imensamente alta, e que
no tem de modo algum em demasia o cu para lhe dar um teto onde plantas
crescem em sentido inverso e com uma velocidade de astros lanados.
Esta cidade de cavernas e muros que projeta sobre o abismo absoluto arcos
cheios e pores como pontes.
Quanto se desejaria, no vo destes arcos, na arcada destas pontes, inserir
a cava de um ombro desmesuradamente grande, de um ombro onde se espalha
o sangue. E colocar o corpo em repouso, e a cabea onde formigam os sonhos,
sobre o rebordo destas cornijas gigantes onde se dispe o firmamento.
Pois um cu de Bblia est em cima de onde correm nuvens brancas. Mas
as doces ameaas destas nuvens. Mas as tormentas. E este Sinai cujas fascas elas
deixam varar. Mas a sombra trazida da terra, e a iluminao ensurdecida e gre-
dosa. Mas esta sombra em forma de cabra, enfim, e este bode! E o Sab das
Constelaes.
Um grito para reunir tudo isto e uma lngua para me pendurar a.

Todos estes refluxos comeam em mim.


Mostrem-me a insero da terra, a dobradia de meu esprito, o comeo
terrvel de minhas unhas. Um bloco, um imenso bloco falso me separa de minha
mentira. E este bloco da cor que se quiser.
A BIGORNA DAS FORAS 195

O mundo baba nele como o mar rochoso, e eu com os refluxos do amor.


Cachorros, quando vo parar de rolar seus seixos sobre minha alma. Eu.
Eu. Virem a pgina das calias. Eu tambm espero a areia celeste e a praia que
no tem mais limites. E preciso que este fogo comece em mim. Este fogo e estas
lnguas, e as cavernas de minha gestao. Que os blocos de gelo voltem a encalhar
sob meus dentes. Eu tenho o crnio espesso, mas a alma lisa, um corao de
matria encalhada. Tenho ausncia de meteoros4, ausncia de sopros inflamados.
Eu procuro em minha garganta nomes, e como que o clio vibrtil das coisas.
O odor do nada, um bafo de absurdo, o estrume da morte inteira... O humorismo
ligeiro e rarefeito5. Eu tambm no espero seno o vento. Que ele se chame
amor ou misria, no poder me encalhar a no ser numa praia de ossadas.
Traduo de J. Guinsburg

4. Tenho uma ausncia de meteoros...


5. O humor ligeiro e rarefeito.
O AUTMATO PESSOAL1

para Jean de Bosschre

Ele diz que me v com uma grande preocupao de sexo. Mas de um sexo
estirado e soprado como um objeto. Um objeto de metal e lava fervente, cheia
de radicelas, de ramos que o ar prende.
A espantosa tranqilidade do sexo que tantas ferragens preenchem. Todos
estes ferros que renem o ar em todos os sentidos.
E em cima uma ardente crescena, uma ervagem nodosa e delgada que
toma raiz neste acre terrio. E ela cresce com uma gravidade de formiga, uma
ramagem de formigueiro que escava cada vez mais frente no solo. Ela cresce

1. Originalmente publicado no Cahicrs d'Art (ano 2, n 3, 1927) onde aparecia ilustrado pelo
quadro de Jean de Bosschre, O Autmato, que Artaud comentava, o texto foi profundamente
remanejado para a publicao em 1'Art et Ia Mort.
O texto primitivo foi publicado novamente na Hommage a Antonin Artaud pela revista France-
Asie (n 30, setembro 1948). A homemagem abria-se com pginas extradas do Journal d'un rebclle
solitairc, de Jean de Boschre (que entrementes subtrara um s de seu nome). Esta nova publicao foi
precedida de um nariz-de-cera onde se podia ler: Pouco tempo aps a morte de Antonin A rtaud cm Ivry,
em 4 de maro de 1948, Les Nouvelles Littraires lembravam a amizade que, desde o primeiro encontro,
se estabeleceu entre Artaud c Boschre. Eles haviam se visto muito pouco ainda, quando Artaud pediu a
Boschre, que s vezes pintor, que fizesse o seu retrato. Ora, este retrato, Boschre o havia pintado na
vspera e de memria. O que Artaud pensava sobre esta pintura foi publicado nos Cahiers d'Art sob o
titulo: O Autmato Pessoal, em um nmero que se tornou extremamente raro. Mais tarde, amputado por
um editor prudente, o artigo foi includo em l'Art et Ia Mort.
Esta alegao parece destituda de todo fundamento. As passagens do texto inicial que vieram a
ser suprimidas, no o foram certamente por Robert Denel, mas antes porque Antonin Artaud,
inserindo o texto em 1'Art et Ia Mort, quis, como se ver, lhe tirar todo o carter de personalizao.
LINGUAGEM E VIDA

e escava esta folhagem to atrozmente negra, e medida que escava, dir-se-ia que
o solo se distancia, que o centro ideal de tudo se concentra em torno de um
ponto mais e mais delgado.
Mas todo este tremor em um corpo exposto com todos os seus rgos, as
pernas, os braos movendo-se com seu ajustamento de autmato, e ao redor das
rotundidades da garupa que cinge o sexo bem fixado, rumo a estes rgos2 cuja
sexualidade aumenta, sobre os quais a sexualidade eterna cresce, se dirige uma
revoada de flechas lanadas de fora do quadro. Como nas ramagens de meu
esprito, h esta barreira de um corpo e de um sexo que est ali, como uma
pgina arrancada, como um farrapo desenraizado de carne3, como a abertura de
um relmpago e do raio sobre as paredes lisas do firmamento.
Mas alhures h esta mulher vista de costas que representa muito bem a
silhueta convencional da feiticeira.
Mas seu peso est fora das convenes e das frmulas. Ela se estende como
uma espcie de pssaro selvagem nas trevas que ela rene em torno de si, e das
quais ela faz uma espcie de espesso manto.
A ondulao do manto um signo to forte que sua simples palpitao
basta para significar a feiticeira e a noite em que ela se estende. Esta noite acha-se
em relevo e em profundidade, e sobre a perspectiva mesma4, que parte do olho,
se espalha um maravilhoso jogo de cartas que fica como em suspenso sobre
uma gua. A luz das profundezas engancha o canto das cartas. E paus em profuso
anormal flutuam como asas de insetos negros.
Os bas-fonds no so bastante fixos a ponto de interditarem5 toda idia de
queda. So como o primeiro patamar de uma queda ideal cujo quadro mesmo
dissimula o fundo.
H uma vertigem cujo rodopio tem dificuldade de se desprender das trevas,
uma descida voraz que se absorve em uma espcie de noite.
E como que para dar todo sentido a esta vertigem, a esta fome girante, eis
que uma boca se estende, e se entreabre, que parece6 ter por mira alcanar os
quatro horizontes. Uma boca como um carimbo de vida para apostilar as trevas
e a queda, dar uma sada radiante vertigem que drena tudo para baixo.
O avano da noite formigante com seu cortejo de esgotos. Eis em que
lugar essa pintura se coloca, no ponto de efuso dos esgotos7.

2. ...com todos os seus rgos.


As pernas, os braos movendo-se com seu ajustamento de autnomo.
Rumo a estes rgos...
3. ...de carnes,...
4. ...a silhueta convencional da feiticeira.
E sobre a perspectiva mesma...
5. ...que no interditem...
6. ...eis uma boca que se estende e que se entreabre, eparece...
7. A segunda frase do pargrafo foi acrescentada quando da publicao em l'Art et Ia Mort.
O AUTMATO PESSOAL

Um vento murmurante agita todas essas larvas perdidas e que a noite rene
em imagens espelhantes. Sente-se a um moer8 de eclusas, uma espcie de horrvel
choque vulcnico em que se dissociou a luz do dia. E desta coliso, e deste
dilaceramento de dois princpios, nascem todas as imagens em potncia, em9 uma
irrupo mais viva que uma lmina do fundo.
H10 tantas coisas nesta tela?
H a fora de um sonho fixado, to duro quanto uma carapaa de inseto
e cheio de patas dardejadas em todos os sentidos do cu.
E em relevo, sobre esta convulso dos bas-fonds, sobre esta aliana da luz
enrgica com todos os metais da noite, como a prpria imagem deste erotismo
das trevas, ergue-se a volumosa e obscena silhueta do Autmato Pessoal11,
Um grande monto e um grande peido.
Est suspenso em fios dos quais somente os laos esto prontos, e a
pulsao da atmosfera que anima o resto do corpo. Ele rene em torno dele a
noite como uma ervagem, como uma plantao de ramos negros.
Aqui a oposio secreta, ela como a seqncia de um escalpelo. Ela
est suspensa pelo fio da navalha12, no domnio inverso das almas.
Mas viremos a pgina.
Um andar mais alto est a cabea. E uma verde exploso de grisu, como
de um fsforo colossal, acutila e dilacera o ar naquele lugar onde a cabea no
est.
Eu me encontro a exatamente como eu me vejo nos espelhos do mundo,
e com uma semelhana de casa ou de mesa, j que toda semelhana est alhures.
Se se" pudesse passar atrs da parede, que dilaceramento se veria, que mas-
sacre de veias. Um amontoamento de cadveres esvaziados14.
E o todo, alto como um prato de camares.
Eis a que lineamento pde chegar tanto esprito.
Mau som de sino, alis, pois com que olho, enfim, eu considero o sexo,
do qual meu apetite no est morto.
Aps tantas dedues e malogros, aps todos estes cadveres esfolados, aps
as advertncias dos trevos negros, aps os estandartes das feiticeiras, aps este

8. No Cahiers d'Art, moer aparece como broyenient, grafia que nos parece mais conforme a
pronncia de Antonin Artaud. E bem possvel que broiement se deva a uma correo automtica do ti-
pgrafo. Aqui o complemento nominal estava alis no singular: moer de eclusa.
9. ...deste dilaceramento dos dois princpios, nascem todas as imagens cm...
10. Ilya-t-il... (erro de ortografia)
11. Disposio tipogrfica diferente:
...enrgica com todos os metais da noite,
como apropria imagem deste erotismo das trevas,
erguese a volumosa e obscena silhueta do Autmato Pessoal.
12. ...pelo fio de uma navalha,...
13. ...toda semelhana est alhures.
Mas se se...
14. ...de cadveres vazios.
200 LINGUAGEM E VIDA

grito de uma boca na queda sem fundo, aps me haver chocado com muralhas,
aps este turbilho de astros, este emaranhado15 de razes e cabelos, no estou
bastante enfastiado para que toda esta experincia me desmame.
A muralha a pique da experincia no me desvia de meu deleite essencial.
No fundo do grito das revolues e das tempestades, do fundo desta tri-
turao de meu crebro, neste abismo de desejos e de questes, apesar de tantos
problemas, tantos temores, eu conservo no canto mais precioso de minha cabea
esta preocupao do sexo que me petrifica e me arranca o sangue.
Que eu tenha o sangue em ferro e escorregadio, o sangue repleto de pn-
tanos, que eu seja cuspido de pestes, de renncias, contaminado, assediado de
desagregaes e de horrores, contanto que persista a doce armadura de um sexo
de ferro. Eu o construo em ferro, eu o preencho de mel, e sempre o mesmo
sexo no meio da acre escavao. o sexo em que convergem as torrentes, em
que se afundam as sedes.
Cheias de furor, e sem serenidade nem perdo, minhas torrentes se fazem
cada vez mais volumosas e se afundam, e eu acrescento mais ameaas, e durezas
de astros e de firmamentos.

Esta pintura como um mundo ao vivo, um mundo nu, cheio de filamentos


e correias, onde a fora irritante de um fogo lacera o firmamento interior, o
dilaceramento da inteligncia, onde a expanso das foras originais16, onde os
estados que no se pode nomear aparecem em sua expresso mais pura, menos
suspeita de ligas reais.
a vida sulfurada da conscincia que remonta ao dia com seus morres e
suas estrelas, seus covis, seu firmamento,
com a vivacidade de um puro desejo,
com seu apelo a uma morte constante avizinhando a membrana da ressur-
reio.
O corpo da mulher17 est ali, em sua exposio obscena; em sua ossatura
de mata. Mata imutvel e fechada. Mata de um desejo irritado e que sua exas-

15. ...aps este turbilho de rvore, este emaranhado...


16. A primeira frase do pargrafo inicial foi suprimida e a segunda modificada a fim de desper-
sonaliz-la:
Jean de Bosschre est entre os primeiros a ter escavado sob este verniz, esta casca fechada, compacta,
da cor da linguagan para fazer brotar dali a idia, a sensao, a imagem na sua musculatura carnal, no seu
sangue ao vivo, an sua essncia invisvel. A pintura de Jean de Bosschre um mundo ao vivo, um mundo
nu, cheio de filamentos c correias, onde a fora irritante de um ferro lacera o filamento interno, o dilacera-
mento da inteligncia, onde a expresso das foras originais...
17. Nesta passagem foram introduzidas profundas modificaes:
...seus covis, seu firmamento.
Com a vivacidade de um puro desejo, com seu apelo, uma morte constante avizinhando a membrana
da ressurreio. Jean de Bosschre me fez. Quero dizer que ele me mostrou o quanto ele e eu ramos pareci-
dos c prximos, c esta prova no momento an que estou me mais preciosa que todo o resto. Ele estabeleceu a
O AUTMATO PESSOAL 201

perao mesmo congela em sua cirrgica e seca nudez. As ndegas primeiro, e


para trs todo o grande e macio traseiro que est a como a parte de trs de
um animal, onde a cabea no tem mais que a importncia de um fio. A cabea
est ali como uma idia de cabea, como a expresso de um elemento negligen-
civel e esquecido.
E direita e embaixo, nos fundos, nas reservas, como a ponta extrema do
sinal da cruz.
Descreveria eu18 o resto da tela?
Parece que a simples apario deste corpo o situa". Neste plano seco,
flor da superfcie, h toda a profundeza de uma perspectiva ideal e que no existe
no pensamento. Reencontra-se a, como um lineamento, o zebrado de um re-
lmpago talhado na terra, e cartas valsam ao redor dali.
No alto, embaixo, a Pitonisa, a Feiticeira, como uma espcie de anjo20, de
doce drago, com sua figura contornada. Todos os caracis do esprito comem
sua face abstrata e se reviram como uma corda tranada.
Em cima, embaixo. Em cima com sua figura de mmia oca. Embaixo com
sua massa, seu talhe macio e bem traado. Ela est ali como uma muralha de
noite compacta21, atraindo, mostrando a chama das cartas sulfuradas.
Uma multido de copas, uma multido de paus, como outros tantos signos,
como outros tantos apelos.
Tenho eu um manto, tenho eu uma veste?
Uma noite de masmorra, uma obscuridade cheia de tinta mostra suas mu-
ralhas mal cimentadas.
Traduo de]. Guinsburg

unidade tremula, central, da minha vida e da minha inteligncia. Mas nesta unidade ainda ele soube dispor
nveis. Reservou o lugar do instinto, o cornpartinicnto da sexualidade. O corpo da mulher...
18. o futuro que se encontra nos Cahiersd'Art.
19. ...a situa.
20. ...como o lineamento indicado, a zebrura de um relmpago talhado na terra, e cartas valsam cm
torno de mim. No alto,...
21. Ela como uma muralha de noite, compacta,...
TEXTO SURREALISTA1

O mundo fsico ainda est a. o parapeito do eu que olha, sobre o qual


um peixe de ocre vermelho restou, um peixe feito de ar seco, de uma coagulao
de gua refluda.
Mas alguma coisa se produziu de repente.
Nasceu uma arborescncia cortante, com reflexos de frontes, limadas, e
algo como um umbigo perfeito, mas vago, e que tinha a cor de um sangue
embebido de gua, e na frente era uma granada que espargia tambm um sangue
mesclado com gua, que espargia um sangue cujas linhas pendiam; e nestas linhas,
crculos de seios traados no sangue do crebro.

1. La Rvolution Surraliste (n 2, 15 de janeiro ck 1925). Fazia pane dos Textos surrealistas, isto
, obtido pela escritura automtica, publicados naquele ._ mero.
A cpia datilografada deste texto, corrigida e assinada por Antonin Artaud encontra-se na
Biblioteca Literria Jacques Doucet.
No verso da pgina de capa deste nmero, encontramos entre as obras a consultar:
Antonin Artaud
L'OPIUM PENDU
ou lafcalit de 1'csprit social
Depositrio: Livraria Gallimard
Como no mesmo lugar, no nmero 3, este anncio substitudo por:
Antonin Artaud
L'OMBILIC DES LIMBES
N. R. F.
h motivos para pensar que 1'Opium pendu ou Ia fcalit de 1'esprit social era o ttulo originalmente
previsto para VOmbilk des Limbes. (O Umbigo dos Limbos)
204 LINGUAGEM E VIDA

Mas o ar era como um vazio aspirante no qual este busto de mulher vinha
no tremor geral, no sacudimento deste mundo vidrado, que girava em estilhaos
de frontes, e sacudia sua vegetao de colunas, seus nichos de ovos, seus ns em
espirais, suas montanhas mentais, seus frontes espantados. E nos frontes, co-
lunas dos sis por acaso se agarraram, sis erguidos sobre jatos de ar como ovos,
e minha fronte afastava estas colunas, e o ar flocoso, e os espelhos de sis, e as
espirais nascentes, para a linha preciosa dos seios, e o oco do umbigo, e o ventre
que no existia.
Mas todas as colunas perdem seus ovos, e na ruptura da linha das colunas
nascem ovos em ovrios, ovos em sexos revirados.
A montanha est morta, o ar est eternamente morto. Nesta ruptura de-
cisiva de um mundo, todos os rudos so j.resos no gelo, o movimento preso
no gelo; e o esforo de minha fronte se gelou.
Mas sob o gelo um rudo aterrador atravessado de casulos de fogo cerca o
silncio do ventre nu e privado de gelo, e ele sobe dos sis revirados e que se
olham, das luas negras, dos fogos terrestres, das trombas de leites.
A fria agitao das colunas partilha em dois meu esprito, e eu toco o meu
sexo que meu, o sexo do baixo de minha alma, que sobe em tringulo infla-
mado*.

* Este texto foi escrito sob inspirao dos quadros de Andr Masson2.
Traduo de]. Guinsburg

2. A frase chamada pelo asterisco no se encontra na cpia datilografada, deve ter sido acrescen-
tada nas provas. Os quadros de Andr Masson, aos quais se faz aluso, pertencem srie do quadro:
Homrnc, descrito em 1'Ombilic dcs Limbes. (O Umbigo dos Limbos)
NA POESIA
O UMBIGO DOS LIMBOS

L onde outros propem suas obras, eu no pretendo fazer outra coisa


seno mostrar meu esprito.
A vida de queimar as questes.
Eu no concebo nenhuma obra separada da vida.
Eu no gosto da criao separada. Eu no concebo tampouco o esprito como
separado de si prprio. Cada uma de minhas obras, cada um dos planos de mim
mesmo, cada uma das floraes glaciais de minha alma interior baba sobre mim.
Eu me reencontro tanto em uma carta escrita para explicar a contrao
ntima de meu ser e a castrao insensata de minha vida, quanto em um ensaio
que exterior a mim mesmo, e que se me aparece como uma gravidez indiferente
de meu esprito.
Eu sofro porque o Esprito no est na vida e porque a vida no seja o
Esprito, eu sofro por causa do Esprito-rgo, do Esprito-traduo, ou do Es-
prito-intimidao-das-coisas para faz-las entrar no Esprito.
Este livro, eu o ponho em suspenso na vida, eu quero que ele seja mordido
pelas coisas exteriores e, em primeiro lugar, por todos os sobressaltos em cisalhas,
todas as cintilaes de meu eu por vir.
Todas estas pginas se espalham como pedras de gelo no esprito. Que me
desculpem minha liberdade absoluta. Eu me recuso a fazer diferenas entre qual-
quer dos minutos de mim mesmo. Eu no reconheo plano em meu esprito.
preciso acabar com o Esprito assim como com a literatura. Eu digo que
o Esprito e a vida comunicam em todos os graus. Eu gostaria de fazer um Livro
208 LINGUAGEM E VIDA

que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e que os levasse
l onde jamais consentiriam em ir, uma porta simplesmente aberta para a reali-
dade.
E isto no mais prefcio a um livro do que os poemas, por exemplo,
que o balizam ou a enumerao de todas as raivas do mal-estar.
Isto no mais que uma pedra de gelo, tambm mal engolida.
Traduo de]. Guinsburg
O PESA-NERVOS

O difcil encontrar de fato o seu lugar e restabelecer a comunicao


consigo mesmo. O todo est em certa floculao das coisas, no agrupamento
de toda essa pedraria mental em torno de um ponto que falta justamente
encontrar.
E eu, eis o que eu penso do pensamento:
A INSPIRAO CERTAMENTE EXISTE.
E h um ponto fosforescente onde toda a realidade se reencontra, porm
mudada, metamorfoseada - e pelo qu? - um ponto de mgica utilizao das
coisas. E eu creio nos aerlitos mentais, em cosmogonias individuais.

Toda a escritura uma porcaria.


As pessoas que saem do vago para tentar precisar seja o que for do que se
passa em seu pensamento so porcos.
Todo o mundo literrio porco, e especialmente o deste tempo.
Todos aqueles que tm pontos de referncia no esprito, quero dizer, de
um certo lado da cabea, em bem localizados embasamentos de seus crebros,
todos aqueles que so mestres de sua lngua, todos aqueles para quem as palavras
tm um sentido, todos aqueles para quem existem altitudes na alma, e correntes
no pensamento, aqueles que so esprito da poca, e que nomearam essas cor-
210 LINGUAGEM E VIDA

rentes de pensamento, eu penso em suas tarefas precisas, e nesse rangido de


autmato que espalha aos quatro ventos seu esprito,
- so porcos.
Aqueles para quem certas palavras tm um sentido, e certas maneiras de
ser, aqueles que mantm to bem os modos afetados, aqueles para quem os sen-
timentos tm classes e que discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes
classificaes, aqueles que crem ainda em "termos", aqueles que remoem ideo-
logias que ganham espao na poca, aqueles cujas mulheres falam to bem e
tambm estas mulheres que falam to bem e que falam das correntes da poca,
aqueles que crem ainda numa orientao do esprito, aqueles que seguem cami-
nhos, que agitam nomes, que fazem bradar as pginas dos livros,
- so os piores porcos.
Voc bem gratuito, moo!
No, eu penso em crticos barbudos.
E eu j lhes disse: nada de obras, nada de lngua, nada de palavra, nada de
esprito, nada.
Nada, exceto um belo Pesa-nervos.
Uma espcie de estao incompreensvel e bem no meio de tudo no esp-
rito.
E no esperem que eu lhes nomeie esse tudo, que eu lhes diga em quantas
partes ele se divide, que eu lhes diga seu peso, que eu ande, que eu me ponha
a discutir sobre esse tudo, e que, discutindo, eu me perca e me ponha assim,
sem perceber, a PENSAR - e que ele se ilumine, que ele viva, que ele se enfeite
de uma multido de palavras, todas bem cobertas de sentido, todas diversas, e
capazes de expor muito bem todas as atitudes, todas as nuanas de um pensa-
mento muito sensvel e penetrante.
Ah, esses estados que nunca so nomeados, essas situaes eminentes da
alma, ah, esses intervalos de esprito, ah, esses minsculos malogros que so o
po de cada dia de minhas horas, ah, esse povo formigante de dados - so sempre
as mesmas palavras que me servem e na verdade eu no pareo mexer muito em
meu pensamento, mas eu mexo nele muito mais do que vocs na realidade,
barbas de asnos, porcos pertinentes, mestres do falso verbo, arranjadores de
retratos, folhetinistas, rasteiros, ervateiros, entomologistas, praga de minha
lngua.
Eu lhes disse que no tenho mais a minha lngua, mas isto no razo
para que vocs persistam, para que vocs se obstinem na lngua.
Vamos, eu serei compreendido dentro de dez anos pelas pessoas que faro
o que vocs fazem hoje. Ento meus giseres sero conhecidos, meus gelos sero
vistos, o modo de desnaturar meus venenos estar aprendido, meus jogos d'alma
estaro descobertos.
Ento meus cabelos estaro sepultos na cal, todas minhas veias mentais,
ento se perceber meu bestirio e minha mstica ter se tornado um chapu.
Ento ver-se- fumegar as junturas das pedras, e arborescentes buqus de olhos
O PESA-NERVOS 211

mentais se cristalizaro em glossrios, ento ver-se-o cair aerlitos de pedra,


ento ver-se-o cordas, ento se compreender a geometria sem espaos, e se
aprender o que a configurao do esprito, e se compreender como eu perdi
o esprito.
Ento se compreender por que meu esprito no est a, ento ver-se-o
todas as inguas estancar, todos os espritos secar, todas as lnguas encorrear, as
figuras humanas1 se achataro, se desinflaro, como que aspiradas por ventosas
secantes, e essa lubrificante membrana continuar a flutuar no ar, esta membrana
lubrificante e custica, esta membrana de duas espessuras, de mltiplos graus, de
um infinito de lagartos, esta melanclica e vtrea membrana, mas to sensvel,
to pertinente tambm, to capaz de se multiplicar, de se desdobrar, de se voltar
com seu espelhamento de lagartos, de sentidos, de estupefacientes, de irrigaes
penetrantes e virosas,
ento tudo isto ser considerado certo,
e eu no terei mais necessidade de faiar.
Traduo de]. Guimburg

1. ...todas as lnguas encorrear, as horas humanas... {horas talvez seria uma falha de impresso da
edio original).
QUEM, NO SEIO...

Quem, no seio1 de certas angstias, no fundo de alguns sonhos, no co-


nheceu a morte como uma sensao destroante e maravilhosa com a qual nada
pode confundir-se no reino do esprito? preciso ter conhecido esse aspirante
montar da angstia cujas ondas se lanam sobre ns e nos inflam como se mo-
vidas por um insuportvel fole. A angstia que se aproxima e se distancia cada
vez mais densa, cada vez mais pesada e mais ingurgitada. o prprio corpo que
chegou ao limite de sua distenso e de suas foras e que precisa, apesar de tudo,
ir mais longe. E uma espcie de ventosa aplicada sobre a alma, cuja acridez corre
como um vitrolo at as fronteiras ltimas do sensvel. E a alma no possui
sequer o recurso de quebrar-se. Pois essa distenso, ela mesma, falsa. A morte
no se satisfaz a um preo to barato. Esta distenso na ordem fsica como a
imagem invertida de um estreitamento que deve ocupar o esprito em toda a
extenso do corpo vivo.
Este sopro que se ergue o derradeiro, verdadeiramente o derradeiro. E
tempo de fazer as contas. O minuto to receado, to temido, to sonhado, est
a. E verdade que a gente vai morrer. Espia-se e mede-se o sopro. E o tempo
imenso rebenta, todo ele, at o limite, numa resoluo em que no pode deixar
de dissolver-se sem vestgios.

1. "Quem, no Seio..." o nico dos textos componentes de 1'Art et Ia Mort que no apareceu
anteriormente em revista.
214 _ _ _ ^ _ LINGUAGEM E VIDA

Estoura, osso miservel de co. A gente sabe muito bem que teu pensa-
mento no est concludo, terminado, e que em qualquer sentido que te voltares
ainda no comeaste a pensar.
Pouco importa. - O medo que se abate sobre ti te esquarteja medida
mesmo do impossvel, pois bem sabes que deves passar deste outro lado para o
qual nada em ti est pronto, nem mesmo este corpo, e sobretudo este corpo, que
deixars sem esquecer nem a matria, nem a espessura, nem a impossvel asfixia.
E ser de fato como num mau sonho onde tu ests fora da situao de teu
corpo, tendo-o arrastado at l apesar de tudo e ele te fazendo sofrer e te ilumi-
nando com suas ensurdecedoras impresses, onde a extenso sempre menor ou
maior que tu, onde nada no sentimento que trazes de uma antiga orientao
terrestre pode mais ser satisfeito.
E bem isso, e para sempre isso. O sentimento desta desolao e deste
mal-estar inominvel, qual grito, digno do ladrar de um co num sonho, te
arrepia a pele, te revira a garganta, no extravio de um afogamento insensato.
No, isto no verdade. No verdade.
Mas o pior que verdade. E ao mesmo tempo que este sentimento de
veracidade desesperadora onde te parece que vais morrer de novo, que vais mor-
rer pela segunda vez (Tu o dizes a ti mesmo, tu o pronncias, que tu vais morrer.
Tu vais morrer: Eu vou morrer pela segunda vez), eis que no se sabe qual umidade
de uma gua de ferro ou de pedra ou de vento te refrescou incrivelmente e te
alivia o pensamento, e tu mesmo corres, tu te fazes ao correr para a tua morte,
para o teu novo estado de morte. Esta gua que corre a morte, e a partir do
momento em que tu te contemplas com paz, que registras tuas novas sensaes,
que a grande identificao comea. Tu estavas morto e eis que de novo tu te
encontras vivo - S QUE DESTA VEZ TU ESTS S.
Acabo de descrever uma sensao de angstia e de sonho, a angstia escor-
regando no sonho, mais ou menos como eu imagino que a agonia deve escorregar
e acabar finalmente na morte.
Em todo caso, tais sonhos no podem mentir. Eles no mentem. E estas
sensaes de morte postas lado a lado, esta sufocao, este desespero, este silncio,
ser que os vemos na suspenso ampliada de um sonho, com o sentimento de
que uma das faces da nova realidade est perpetuamente atrs de ns?
Mas no fundo da morte ou do sonho, eis que a angstia recomea. Esta
angstia, como um elstico que se estica e salta subitamente garganta, no
nem desconhecida, nem nova. A morte para a qual a gente escorregou sem se
dar conta, o corpo virando feito bola, esta cabea - foi preciso que ela passasse,
ela que carregava a conscincia e a vida e por conseqncia a sufocao suprema,
e por conseqncia a dilacerao superior - que ela passasse, tambm ela, pela
menor abertura possvel. Mas ela angustia at o limite dos poros, e esta cabea
que, fora de se sacudir e se virar de pavor, tem como que a idia, como que
o sentimento de que ela se inchou e que seu terror tomou forma, que ela bor-
bulhou sob a pele.
QUEM, NO SEIO... 215

E como, depois de tudo, a morte no coisa nova, mas ao contrrio,


demasiado conhecida, pois, ao fim dessa destilao de vsceras, no se percebe a
imagem de um pnico j experimentado? A fora mesma do desespero restitui,
parece, certas situaes da infncia onde a morte aparecia to clara e como uma
derrota em jato contnuo. A infncia conhece bruscos despertares do esprito,
intensos prolongamentos do pensamento que uma idade mais avanada torna a
perder. Em certos temores pnicos da infncia, certos terrores grandiosos e il-
gicos onde o sentimento de uma ameaa extra-humana incubado, incontestvel
que a morte aparece como a dilacerao de uma membrana prxima, como o
soerguimento de um vu que o mundo, ainda informe e mal assegurado.
Quem no tem a lembrana de engrandecimentos inauditos, da ordem de
uma realidade toda mental, e que ento no o espantavam quase, que eram dados,
entregues verdadeiramente floresta de seus sentidos de criana? Prolongamentos
impregnados de um conhecimento perfeito, impregnando tudo, cristalizado, eterno.
Mas que estranhos pensamentos ela sublinha, de que meteoro esboroado
ela reconstitui os tomos humanos.
A criana v teorias reconhecveis de antepassados, nos quais ela nota a
origem de todas as semelhanas conhecidas de homem para homem. O mundo
das aparncias ganha e transborda no insensvel, no desconhecido. Mas o escu-
recimento da vida chega e doravante estados similares no se encontram mais a
no ser graas a uma lucidez absolutamente anormal devida, por exemplo, aos
entorpecentes.
Da a imensa utilidade dos txicos para liberar, para sobrelevar o esprito.
Mentiras ou no do ponto de vista de um real de que se viu o pouco caso que se
podia fazer dele, no sendo o real seno uma das faces mais transitrias e menos
reconhecveis da infinita realidade, igualando-se o real matria e apodrecendo
com ela, os txicos reconquistam, do ponto de vista do esprito, sua dignidade su-
perior que os converte nos auxiliares mais prximos e mais teis da morte*.

* Afirmo - e me apego idia2 de que a morte no est fora do domnio do esprito, que ela
est dentro de certos limites conhecveis e acessveis atravs de uma cena sensibilidade'.
Tudo o que na ordem das coisas escritas abandona o domnio da percepo ordenada e clara,
tudo o que visa a criar um desmoronamento das aparncias, a introduzir urna dvida sobre a posio
das imagens do esprito umas em relao s outras, tudo o que provoca a confuso sem destruir a fora
do pensamento jorrante, tudo o que derruba as relaes das coisas, dando ao pensamento subvertido
um aspecto maior ainda de verdade e de violncia, tudo isto oferece uma sada para a morte, nos pe
em relao com estados mais afinados do esprito no seio dos qua:s a morte se exprime.
Da por que todos aqueles que sonham sem lamentar seus sonhos, sem trazer, desses mergulhos
em uma inconscincia fecunda, um sentimento atroz de nostalgia, so uns porcos. O sonho verdadei-
ro. Todos os sonhos so verdadeiros. Eu tenho o sentimento de asperezas, de paisagens como que es-
culpidas, de pedaos de terra ondulantes recobertos de uma espcie de areia fresca, cujo sentido quer
dizer:
"pesar, decepo, abandono, ruptura, quando nos reveremos?"
Nada se assemelha ao amor como o apelo de certas paisagens vistas em sonhos, como o cerco de
certas colinas, de uma espcie de argila material cuja forma como que moldada sobre o pensamento.
216 LINGUAGEM E VIDA

Esta morte amarrada em que a alma se sacode com vistas a reconquistar


um estado enfim completo e permevel,
onde tudo no seja choque, acuidade de uma confuso delirante e que
raciocina sem fim sobre ela mesma, emaranhando-se nos fios de uma mistura ao
mesmo tempo insuportvel e melodiosa,
onde tudo no seja indisposio,
onde o menor lugar no seja reservado incessantemente maior fome de
um espao absoluto e desta vez definitivo,
onde, sob esta presso de paroxismos, rebenta sbito o sentimento de um
plano novo,
onde, do fundo de uma mistura sem nome, esta alma que se sacode e se
assusta sente a possibilidade, como nos sonhos, de despertar em um mundo mais
claro, depois de ter perfurado ela no sabe mais qual barreira - e ela se v em
uma luminosidade em que finalmente seus membros se detm, l onde as paredes
do mundo parecem quebrveis ao infinito.
Ela poderia renascer, esta alma; entretanto ela no renasce; pois, embora
alijada, ela sente que sonha ainda, que no se acostumou ainda a esse estado de
sonho ao qual no consegue identificar-se.

Quando nos revereraos? Quando o gosto terroso de teus lbios vir de novo roar a ansiedade
de meu esprito? A terra como um turbilho de lbios mortais. A vida escava diante de ns o abis-
mo de todas as carcias que faltaram. Que temos ns a fazer junto de ns com este anjo que no soube
se mostrar? Todas as nossas sensaes sero para sempre intelectuais, e nossos sonhos chegaro a pegar
fogo numa alma cuja emoo nos ajudar a morrer. O que esta morte, onde estamos para sempre a
ss, onde o amor no nos mostra o caminho?

2. O Sr. Jean-Marie Conty nos havia comunicado um texto manuscrito de Antonin Artaud inti-
tulado:
UEperon malirieux, le Double-Cheval
(outra Bigoma das Foras)
Ora, este texto que ns reencontramos aqui, em nota. O primeiro pargrafo do original foi su-
primido:
Eu tenho, talvez, da morte uma idia excessivamente falsa.
Eu afirmo, eme apego a esta idia...
A primeira pgina do manuscrito, Antonin Artaud havia anotado o seguinte, sem dvida algo
que no apresenta relao com o prprio texto:
Roteiro Arto Criei.
Pea sobrenatural.
Como "A Bigoma das Foras" apareceu em 15 de junho de 1926 em Ia Rvolution Surraliste,
cabe supor, devido ao subttulo, que Vperon malicieux, le Doublc-Cheval lhe posterior, e em conse-
qncia possvel datar aproximadamente Quem, no seio... de 1927.
Uperon malicieux, le Double-Cheval foi publicado em sua forma original no Botteghe Oscure
(Caderno VIII, 1952).
3. ...atravs de uma certa sensibilidade mental. (Reza o manuscrito.)
4. No manuscrito teus substitui certos, riscado.
5. No manuscrito a ansiedade de meu esprito substitui os sobressaltos de nossos espritos, riscado.
QUEM, NO SEIO...

Nesse instante de seu devaneio mortal o homem vivo que chega diante da
muralha de uma identificao impossvel retira sua alma com brutalidade.
Ei-lo repelido para o plano nu dos sentidos, em uma luz sem profundidade.
Fora da musicalidade infinita das ondas nervosas, exposto fome sem li-
mites da atmosfera, ao frio absoluto.

Traduo de]. Guinsburg


CARTA VIDENTE1

para Andr Breton

Madame,
Vs habitais um quarto pobre, misturado vida. em vo que se desejaria
ouvir o cu murmurar em vossos vidros. Nada, nem vosso aspecto, nem o porte
vos separam de ns, mas no sei qual puerilidade mais profunda que a experincia
nos impele a golpear sem fim e a afastar vosso rosto, e at os laos de vossa
vida.
Com a alma dilacerada e suja, sabeis que no sinto diante de vs seno
uma sombra, mas no tenho medo deste terrvel saber. Sei que estais em todos
os ns de mim mesmo e muito mais prxima de mim do que minha me. E eu
estou nu diante de vs. Nu, impudico e nu, direito e tal como uma apario de
mim mesmo, mas sem nenhuma vergonha, pois para vosso olho, que corre ver-
tiginosamente em minhas fibras, o mal verdadeiramente destitudo de pecado.
Jamais eu me vi to determinado, to ntegro, to resoluto mesmo para
alm do escrpulo, para alm de toda malignidade que me vem dos outros ou
de mim, e tambm to perspicaz. Vs juntais a ponta de fogo, a ponta de estrela
ao fio trmulo de minha hesitao. Nem julgado, nem me julgando, inteiro sem
nada fazer, integral sem para isso me esforar; salvo a vida, era a felicidade. E
enfim, no mais com medo que minha lngua, minha grande lngua demasiado

1. Publicado originalmente em Ia Rcvolution Surrcalistc (n 8, Io de dezembro de 1926).


2. Como Antonin Artaud foi excludo do grupo surrealista em novembro de 1926, a dedicat-
ria havia sido suprimida na edio Denol.
220 LINGUAGEM E VIDA

grossa, minha lngua minscula se equivoque, eu mal tinha necessidade de reme-


xer meu pensamento.
Entretanto, penetrei em vossa casa sem temor, sem a sombra da mais or-
dinria curiosidade. E, no entanto, vs reis a senhora e o orculo, vs podereis
ter me aparecido como a alma mesma e o Deus de meu espantoso destino. Poder
ver e me dizer! Que nada de sujo ou de secreto seja negro, que o enterrado se
descubra, que o recalcado se exponha enfim a este belo olho parado' de um juiz
absolutamente puro. Daquele que discerne e dispe mas que ignora mesmo que
vos possa abater.
A luz perfeita e suave em que a gente no sofre mais da alma, no entanto,
infestada de mal. A luz sem crueldade nem paixo em que no se revela mais
do que uma s atmosfera, a atmosfera de uma piedosa e serena, de uma preciosa
fatalidade. Sim, vindo vossa casa, Madame, eu no tinha mais medo de minha
morte. Morte ou vida, eu no via mais que um grande espao plcido onde se
dissolviam as trevas de meu destino. Eu estava verdadeiramente salvo, liberto de
toda misria, pois mesmo minha misria por vir me era doce, se por impossvel
que fosse eu tinha misria a temer em meu futuro.
Meu destino j no era mais esta estrada coberta e que j no pode quase
ocultar mais que o mal. Eu tinha vivido em eterna apreenso face a ele e, a
distncia, eu o sentia muito prximo, e depois sempre acaapado em mim. Ne-
nhum redemoinho violento revolvia de antemo minhas fibras, eu j tinha sido
demasiado atingido e transtornado pela desgraa. Minhas fibras no registravam
mais que um imenso bloco uniforme e suave. E pouco me importava que se
abrissem diante de mim as mais terrveis portas, o terrvel j se achava atrs de
mim. E, mesmo mal, meu futuro prximo no me tocava a no ser como uma
harmoniosa discrdia, uma srie de cimos revirados e reentrados embotados4 em
mim. Vs no podeis me anunciar, Madame, seno o aplanamento de minha
vida.
Mas o que, acima de tudo, me tranqilizava, no era esta certeza profunda,
presa minha carne, mas antes o sentimento da uniformidade de todas as coisas.
Um magnfico absoluto. Eu havia aprendido sem dvida a me aproximar da
morte, e por isso que todas as coisas, at as mais cruis, no me apareciam
mais de outro modo salvo sob o seu aspecto de equilbrio, em uma perfeita
indiferena de sentido.

3. A edio Denol escreve, este belo olho exposto (tal); ora em Ia Rvolution Surraliste consta
este belo olho parado (tale), forma que nos parece prefervel seguir, pois a impresso de Ia Rvolution
Surralistc , em geral, mais cuidadosa e mais segura do que a dos livros editados na poca pela Denol.
Por esta razo, tambm seguimos Ia Rvolution Surraliste quando elaindicava itlico.
4. Aqui tambm seguimos a lio de Ia Rvolution Surrcaliste. provvel, com efeito, que tenha
sido na impresso que uma vrgula foi acrescentada: cimos revirados e reentrados, embotados em mim.
Ora, parece realmente que seja preciso entender que os cimos reentraram nele, embotados, sentido
mais perceptvel sem a vrgula.
CARTA VIDENTE 221

Mas havia ainda outra coisa. que este sentido, indiferente quanto a seus
efeitos imediatos sobre minha pessoa, estava apesar de tudo colorido por alguma
coisa de bom. Eu vinha a vs com um otimismo integral. Um otimismo que
no era um declive do esprito, mas que provinha deste conhecimento profundo
do equilbrio em que toda a minha vida se banhava. Minha vida vindoura equi-
librada por meu passado terrvel, e que se introduzia sem embarao na morte.
Eu sabia de antemo que minha morte era como o remate de uma vida enfim
plana, e mais doce que minhas melhores lembranas. E a realidade crescia a olhos
vistos, amplificava-se at este soberano conhecimento onde o valor da vida pre-
sente se desmonta sob os golpes da eternidade. No era mais possvel que a
eternidade no me vingasse desse sacrifcio encarniado de mim mesmo, e do
qual eu no participava. E meu futuro imediato, meu futuro a partir desse minuto
em que eu penetrava pela primeira vez em vosso crculo, este futuro pertencia
tambm morte. E vs, vosso aspecto me foi desde o primeiro instante favorvel.
A emoo de saber era dominada pelo sentimento de mansuetude infinita
da existncia*. Nada de ruim podia vir para mim deste olho azul e fixo pelo
qual inspecionais meu destino.
Toda a vida se me tornava esta bem-aventurada paisagem onde os sonhos
que giram se apresentam a ns com a face de nosso eu. A idia do conhecimento
absoluto se confundia com a idia da similitude absoluta da vida e de minha
conscincia. E eu tirava desta dupla similitude o sentimento de um nascimento

* Nada posso fazer. Eu tinha este sentimento diante d'Ela. A vida era boa porque esta vidente
estava ali. A presena desta mulher era para mim como um pio, mais puro, mais ligeiro, embora me-
nos slido do que o outro. Porm muito mais profundo, mais vasto e abrindo outros arcos nas clulas
de meu esprito. Esse estado ativo de trocas espirituais, essa conflagrao de mundos imediatos e mi-
nsculos, essa iminncia de vidas infinitas cuja perspectiva esta mulher me abria, me indicavam enfim
uma sada para a vida, e uma razo de ser no mundo. Pois no se pode aceitar a Vida salvo sob a condi-
o de ser grande, de sentir-se na origem dos fenmenos, pelo menos de um certo nmero deles. Sem
poder de expanso, sem uma certa dominao sobre as coisas, a vida indefensvel. Uma s coisa
exaltante no mundo: o contato com as potncias do esprito. Entretanto, diante desta vidente, um fe-
nmeno bastante paradoxal se produz. Eu no sinto mais necessidade de ser possante, nem vasto, a se-
duo que ela exerce sobre mim mais violenta que meu orgulho, uma certa curiosidade me basta
momentaneamente. Estou pronto, diante dela, a abdicar de tudo: orgulho, vontade, inteligncia. Inte-
ligncia sobretudo. Esta inteligncia que todo o meu orgulho. Eu no falo, por certo, de uma certa
agilidade lgica do esprito, do poder de pensar depressa e criar rpidos esquemas sobre as margens da
memria. Falo de uma penetrao subterrnea no mundo e nas coisas, penetrao5 amide a iongo
prazo, que no tem necessidade de materializar-se para satisfazer-se e que indica pontos de vista pro-
fundos do esprito. E com base nesta penetrao claudicante e muitas vezes sem matria (e que eu mes-
mo no possuo) que sempre pedi que me dessem crdito, ainda que devessem me dar crdito cem anos
e se contentar o resto do tempo com o silncio. Eu sei em quais limbos reencontrar esta mulher. Eu
escavo um problema que me aproxima do ouro, de toda matria sutil, um problema abstrato como a
dor que no tem forma e que treme e se volatiliza ao contato dos ossos.
5. O membro da frase subterrnea no mundo e nas coisas, penetrao fora esquecido na edio
Denol. muito provalvemente que a repetio da palavra penetrao tenha causado este esquecimen-
to do tipgrafo.
222 ^ LINGUAGEM E VIDA

muito prximo, onde vs reis a me indulgente e boa, embora divergente de


meu destino. Nada me parecia mais misterioso, nesta vidncia anormal, onde os
gestos de minha existncia passada e futura se penteavam para vs com seus
sentidos prenhes de advertncias e relaes. Eu sentia que meu esprito havia
entrado em comunicao com o vosso quanto figura dessas advertncias.
Mas vs, enfim, Madame, o que pois esta vermina de fogo que se insinua
de repente em vs, e por artifcio de que inimaginvel atmosfera? Pois enfim
vs vedes e, no entanto, o mesmo espao estendido nos rodeia.
O horrvel, Madame, est na imobilidade destas paredes, destas coisas, na
familiaridade dos mveis que vos rodeiam, dos acessrios de vossa adivinhao,
na indiferena tranqila da vida na qual vs participais como eu.
E vossas vestes, Madame, essas vestes que tocam uma pessoa que v. Vossa
carne, todas as vossas funes, enfim. No posso me acomodar a esta idia de
que estejais submetida s condies do Espao, do Tempo, que as necessidades
corporais vos pesem. Deveis ser demasiada ligeira para o espao.
E, de outra parte, vs me pareceis to bonita, e de uma graa to humana,
to de todos os dias. Bonita como no importa qual destas mulheres de que
espero o po e o espasmo, e que me alcem a um umbral corporal.
Aos olhos de meu esprito, no tendes limites nem bordas, sois absoluta-
mente, profundamente incompreensvel. Pois como vos arranjais com a vida, vs
que tendes o dom da vista muito aguda? E esta longa estrada toda unida por
onde vossa alma como um pndulo passeia, e onde eu leria to bem o futuro
de minha morte.
Sim, ainda existem homens que conhecem a distncia de um sentimento a
outro, que sabem criar andares e paradas a seus desejos, que sabem se afastar de
seus desejos e de sua alma, para logo voltar a falsamente como vencedores. E h
pensadores que cercam penosamente seus pensamentos, que introduzem falsas apa-
rncias em seus sonhos, estes sbios que desenterram leis com sinistras piruetas.
Mas vs, infamada, desprezada, planante, vs pondes fogo vida. E eis que
a roda do Tempo de um s golpe se inflama fora de fazer chiar os cus.
Vs me recolheis pequenino, varrido, rejeitado e to desesperado quanto
vs mesma, e vs me elevais, vs me retirais deste lugar, deste espao falso onde
vs no vos dignais mais sequer a fazer o gesto de viver, visto que alcanastes a
membrana de vosso repouso. E este olho, esta mirada sobre mim, este nico
olhar desolado que toda minha existncia, vs o magnificais e o fazeis voltar-se
sobre si mesmo, e eis que uma germinao luminosa feita de delcias sem sombras
me reaviva como um vinho misterioso.
Traduo de J. Guinsburg
HELOSA E ABELARDO1

A vida diante dele se fazia pequena. Partes inteiras de seu crebro apodre-
ciam. O fenmeno era conhecido, mas enfim no era simples. Abelardo no
apresentava o seu estado como uma descoberta, mas enfim escrevia:

Caro amigo,
Eu sou gigante. Nada posso fazer, se sou um cume onde as mais altas
mastreaes adquirem seios guisa de velas, enquanto as mulheres sentem seus
sexos tornarem-se duros como seixos2. Eu no posso me impedir, de minha parte,
de sentir todos estes ovos rolarem e balanarem sob os vestidos, ao acaso da
hora e do esprito. A vida vai e vem e cresce aos poucos atravs da pavimentao
dos seios. De um minuto a outro a face do mundo mudada. Ao redor dos
dedos se enrolam as almas com suas trincas de mica, e entre as micas Abelardo
passa, pois acima de tudo est a eroso do esprito3.

1. Publicado originalmente em Ia Nouvelle Revue Franaise (n 147, Io de dezembro de 1925)


em seguimento Position de Ia chair e Manifeste en langage clair. Na capa da revista s consta Helosa e
Abelardo. H algumas variantes em relao a esta primeira publicao.
2. ...seus sexos tornarem-se duros como rochas.
3. Seguimos aqui a lio de Ia Novellc Revue Franaise, a edio Denoel, falha, consta ...acima de
tudo a eroso do esprito.
224 _ ^ _ LINGUAGEM E VIDA

Todas as bocas de macho morto riem ao acaso de seus dentes, na arcadura


de sua dentio virgem e coberto de fome e laminado de imundcie como a
armao do esprito de Abelardo4.
Mas aqui Abelardo se cala. Somente o esfago agora funciona nele. No,
por certo, o apetite do canal vertical, com sua presso de fome, mas a bela rvore
de prata ereta com suas ramificaes de vnulas feitas pelo ar, com em-torno de
folhagens de pssaros. Em suma, a vida estritamente vegetal e comprimida onde
as pernas vo com seu passo mecnico, e os pensamentos como altos veleiros
recolhidos. A passagem dos corpos.
O esprito mumificado se desencadeia. A vida fortemente atada levanta a
cabea. Ser este por fim o grande degelo? O pssaro rebentar a embocadura
das lnguas, os seios iro se ramificar e a pequena boca retomar seu lugar? A
rvore de gros furar o granito ossificado das mos? Sim, em minha mo h
uma rosa, eis que minha lngua gira sem nada. Oh, oh, oh!, como ligeiro meu
pensamento. Tenho o esprito delgado como uma mo.

Mas que Helosa tambm tem pernas. O mais bonito que ela tenha
pernas. Ela tem tambm esta coisa em forma de sextante de marinha, ao redor
da qual toda magia gira e pasta, esta coisa como um gldio deitado.
Mas acima de tudo, Helosa tem um corao. Um belo corao ereto e
todo em ramos, esticado, congelado, granulado, tranado por mim, gozo profuso,
catalepsia de minha alegria!
Ela tem mos que cingem os livros com suas cartilagens de mel. Ela tem
seios em carne crua, to pequena, cuja presso deixa louco; ela tem seios em
ddalos de fio. Ela tem um pensamento que me pertence todo, um pensamento
insinuante e retorcido que se desenrola como um casulo. Ela tem uma alma.
Em seu pensamento, eu sou a agulha que corre e sua alma que aceita a
agulha e a admite, e eu estou melhor, quanto a mim, em minha agulha, do que
todos os outros em suas camas, pois em minha cama eu enrolo o pensamento
e a agulha nas sinuosidades de seu casulo adormecido.
Pois sempre a ela que eu retorno atravs do fio desse amor sem limites,
desse amor universalmente espalhado. E ele produz em minhas mos crateras,
ele produz a ddalos de seios, ele produz a amores explosivos que minha vida
ganha sobre meu sono.

Mas por quais transes, por quais sobressaltos, por quais deslizamentos su-
cessivos chega ele a essa idia da fruio de seu esprito. O fato que ele frui
neste momento de seu esprito, Abelardo. Ele frui dele plenamente. Ele no
pensa mais em si mesmo nem direita nem esquerda. Ele est ali. Tudo o que
se passa nele dele. E nele, neste momento, se passam coisas. Coisas que o
dispensam de buscar-se. A que est o ponto importante. Ele no precisa mais

4. ...como a armadura do esprito de Abelardo.


HELOSA E ABELARDO 225

estabilizar seu tomos. Eles se renem por si mesmos, eles se estratificam em


um ponto. Todo o seu esprito se reduz a uma srie de subidas e descidas, mas
de uma descida sempre at o meio. H coisas.
Seus pensamentos so belas folhas, planas superfcies, sucesses de ns, aglo-
meraes de contatos entre os quais sua inteligncia desliza sem esforo: ela vai.
Pois isso a inteligncia: contornar-se. A questo no mais a de ser fino ou
delgado e de realcanar-se de longe, de abraar, de rejeitar, de desjuntar.
Ele desliza entre seus estados.
Ele vive. E as coisas nele giram como gros no joeiro.
A questo do amor se torna simples.
Que importa que ele seja mais ou menos, uma vez que pode agitar-se,
deslizar, evoluir, reencontrar-se e sobrenadar.
Ele reencontrou o jogo do amor.
Mas quantos livros entre seu pensamento e o sonho!
Quantas perdas. E durante este tempo, que fazia ele de seu corao?
espantoso que lhe reste ainda corao. Ele est de fato ali. Ele est ali como uma
medalha viva, como um arbusto ossificado de metal.
Ei-lo efetivamente, o n principal.

Helosa, por sua vez, tem um vestido, ela bela de face e de fundo.
Ento, ele sente a exaltao das razes, a exaltao macia, terrestre, e seu
p sobre o bloco da terra sente a massa do firmamento.
E ele grita, Abelardo, como que transformado em morto, e sentindo seu
esqueleto estalar e vitrificar-se, Abelardo, na ponta vibrante e no cimo de seu
esforo:
"E aqui que Deus vendido, pertence a mim agora a plancie dos sexos,
os seixos de carne. Nada de perdo, eu no peo perdo. Vosso Deus no mais
que um chumbo frio, estrume dos membros, lupanar dos olhos, virgem do ven-
tre, leiteria do cu!"5
Ento a leiteria celeste se exalta. A nusea lhe vem.
Sua carne dentro dele vira limo cheio de escamas, ele sente os plos duros,
o ventre bloqueado, ele sente o pnis que se torna lquido6. A noite se ergue
semeada de agulhas e eis que com um golpe de tesoura ELES lhe extirpam a
virilidade.
E l embaixo, Helosa tira o vestido e fica toda nua. Seu crnio branco
Ieitoso, seus seios flcidos, suas pernas bexigosas, seus dentes fazem um rudo de
papel. Ela estpida. E esta de fato a esposa de Abelardo, o castrado.
Traduo dej. Guinsburg

5. ...lupanar dos olhos, leiteria do cu.


6. ...ele sente sua vida que se torna lquida.
O CLARO ABELARDO1

A armao murmurante do cu traa sobre a vidraa de seu esprito sempre


os mesmos signos amorosos, as mesmas cordiais correspondncias que poderiam
talvez salv-lo de ser homem se ele consentisse em salvar-se do amor.
preciso que ele ceda. Ele no se agentar mais. Ele cede. Esta ebulio
meldica o aperta. Seu sexo bate: um vento atormentante murmura, cujo rumor2
mais alto que o cu. O rio rola cadveres de mulheres. So elas Oflia, Beatriz,
Laura? No, tinta, no, vento, no, canios, ribanceiras, margens, espuma, flocos.
No h mais eclusa. De seu desejo Abelardo fez para si uma eclusa. No confluente
do atroz e meldico impulso. E Helosa rolada, arrastada, at ele3 - E QUE O
QUER REALMENTE.
Eis sobre o cu a mo de Erasmo que semeia uma mostardeira de loucura.
Ah! a curiosa germinao. O movimento da Ursa fixa o tempo no cu, fixa o
cu no Tempo, deste lado invertido do mundo onde o cu prope sua face.
Imenso renivelamento.
E porque o cu tem uma face que Abelardo tem um corao onde tantos
astros soberanamente germinam e impelem sua cauda. Ao fim da metafsica est

1. Publicado originalmente em les Fcuilles libres (n 47, dezembro de 1927 - janeiro de 1928).
Algumas variantes.
2. ...murmura, todo rumor...
3. ...arrastada nele,...
228 _ ^ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA

este amor todo pavimentado de carne, todo ardente de pedras, nascido no cu


aps tantas e tantas voltas de uma mostardeira de alegria.
Mas Abelardo caa o cu como moscas azuis. Estranha rota. Por onde
desaparecer? Deus! depressa, um buraco de agulha. O mais fino buraco de agulha
pelo qual Abelardo no poder mais vir nos procurar.
O tempo estranhamente agradvel. Pois s pode ser agradvel. A partir
de hoje, Abelardo no mais casto. A estreita cadeia dos livros rompeu-se. Ele
renuncia ao coito casto e permitido de Deus.
Que coisa doce o coito! Mesmo humano, mesmo aproveitando o corpo
da mulher, que voluptuosidade serfica e prxima! O cu ao alcance da terra,
menos belo que a terra. Um paraso incrustado em suas unhas.
Mas o chamado das iluminaes siderais, mesmo elevado ao ponto mais
alto da torre, no vale o espao de uma coxa de mulher4. No Abelardo o
padre para quem o amor to claro?
Como o coito claro, como o pecado claro. To claro. Tal qual germes,
como estas flores so doces ao sexo pasmado, como as cabeas do prazer so
vorazes, como5 ao extremo fim do gozo o prazer espalha suas papoulas. Suas
papoulas de sons, suas papoulas de dia e de msica6, rpido como uma arrancada
magntica de pssaros. O prazer faz uma cortante e mstica msica sobre o fio
cortante de um sonho esfiado. Oh! este sonho no qual o amor consente em
reabrir seus olhos! Sim, Helosa, em ti que eu ando com toda a minha filosofia,
em ti eu abandono os ornamentos, e eu te dou em seu lugar os homens cujo
esprito treme e cintila em ti. - Como o Esprito se admira, pois a Mulher por
fim admira Abelardo. Deixa jorrar esta espuma contra profundas e radiosas pa-
redes. As rvores. A vegetao de tila.
Ele a tem. Ele a possui. Ela o sufoca. E cada pgina abre seu arco e avan-
a. Este livro, onde se vira a pgina dos crebros.
Abelardo cortou-se as mos. A este atroz beijo de papel, que sinfonia pode,
doravante, igualar-se? Helosa come fogo. Abre uma porta7. Sobe uma escada.
Uma campainha soa. Os seios esmagados e doces se erguem. Sua pele muito
mais clara nos seios. O corpo branco, mas embaciado, pois nenhum ventre de
mulher puro. Os plos tm a cor do bolor. O ventre cheira bem, mas como
pobre. E tantas geraes sonham com este a. Est a. Abelardo enquanto
homem o segura. Ventre ilustre. e no este. Come palha, fogo. O beijo abre
suas cavernas onde vem morrer o mar. E eis este espasmo em que o cu concorre,
para o qual uma coligao espiritual se lana, E ELE VEM DE MIM. Ah!, como
eu no me sinto mais do que vsceras, sem ter por cima de mim a ponte do
esprito. Sem tantos sentidos mgicos, tantos segredos sobrepostos. Ela e eu. Ns

4. ...o espao privado igualmente de mulher.


5. ...como as cabeas do prazer so ardentes, como...
6. ... suas papoulas de alegria e de msica,...
7. Abre a porta deles.
O CLARO ABELARDO 229

estamos de fato aqui. Eu a tenho. Eu a abrao. Uma ltima presso me retm,


me congela. Eu sinto entre minhas coxas a Igreja me deter, se queixar, ela me
paralisar?8 Vou me retirar? No, no, afasto a ltima muralha. So Francisco
de Assis, que me guardava o sexo, se afasta. Santa Brgida me abre os dentes.
Santo Agostinho me desata a cintura. Santa Catarina de Siena adormece Deus.
Acabou-se, acabou-se realmente, no sou mais virgem. A muralha celeste virou-se.
A loucura universal me conquista. Escalo meu gozo no pico mais alto do ter.
Mas eis que Santa Helosa o ouve'. Mais tarde, infinitamente mais tarde,
ela o ouve e lhe fala. Uma espcie de noite lhe enche os dentes. Entra mugindo
nas cavernas de seu crnio. Ela entreabre a tampa de sua sepultura com sua mo
de ossinhos de formiga. Crer-se-ia ouvir uma cabra num sonho. Ela treme, mas
ele treme tambm mais que ela. Pobre homem! Pobre Antonin Artaud! Pois
realmente ele este impotente que escala os astros, que tenta confrontar sua fra-
queza com os pontos cardeais dos elementos, que, de cada uma das faces sutis
ou solidificadas da natureza, se esfora por compor um pensamento que se man-
tenha, uma imagem que fique em p. Se ele pudesse criar tantos elementos,
fornecer ao menos uma metafsica de desastres, o comeo seria o desmorona-
mento!
Helosa lamenta no ter tido em lugar de seu ventre uma muralha como
aquela sobre a qual se apoiava quando Abelardo a acossava com um dardo obs-
ceno. Para Artaud, a privao o comeo desta morte que ele deseja. Mas que
bela imagem de um castrado!
Traduo de]. Guinsburg

8. ...meparalisar nela.
9. Mas eis que Santa Helosa o chama.
A VIDRAA DO AMOR1

Eu a queria resplendente de flores, com pequenos vulces enganchados nas


axilas, e especialmente esta lava em amndoa amarga e que estava no centro de
seu corpo erguido2.

1. Publicado originalmente em Revue europenne (n 29, Io de julho de 1925).


O manuscrito deste texto se encontra na Biblioteca Literria Jacques Doucet.
Este manuscrito se apresenta assim da seguinte forma:
/" Uma folha dupla de papel branco quadriculao retangular, de formato 21 x 27 cm., do qual
so utilizadas as pginas 1 e 3; as pginas no so numeradas;
2o Uma folha simples do mesmo papel; no alto desta pgina Antonin Artaud inscreveu o ttulo:
Le Sexe cn verre
ou Ia Vitre d'Amour (O Sexo de vidro ou a Vidraa do Amor)
ttulo que era inicialmente: le Sexe frit ou Ia Vitre d'Amour (O Sexo Frito, ou...); acima do ttulo, o
nmero 3;
o rosto desta folha j havia sido utilizado por Antonin Artaud; encontra-se a o fragmento: Une
fois pour toutes...
S" Uma folha simples de pape! em letras brancas, mesmo formato, papel muito fino, pgina nu-
merada em baixo a direita 4;
rosto j utilizado: aparece a o fragmento: Ilyadcs montagnes...
4o Uma folha dupla de papel em quadriculao retangular; A pgina com nmero 5 no alto, es-
querda de Ia Vitre d'Amour, est escrito na quarta pgina desta folha, pgina virada, as trs outras tra-
zem o fragmento: Na luz da Evidncia (d. p. 245).
}" Uma folha dupla do mesmo papel em que somente a primeira pgina, com nmero 6, no
alto, no meio, est escrita: ao p da pgina, esta data: 22janvier25.
Salvo especificao, as variantes que ns indicamos abaixo so as que levantamos do manuscrito.
2. ...de seu ser erguido.
LINGUAGEM E VIDA

Havia tambm uma arcada de sobrancelhas3 sob a qual todo o cu passava,


um verdadeiro cu de violao, de rapto, de lava, de tempestade, de furor, em
suma, um cu absolutamente teologal. Um cu como um arco erigido, como a
trombeta dos abismos, como a cicuta bebida em sonho, um cu contido em
todos os frascos da morte, o cu de Helosa acima de Abelardo, um cu de
apaixonado suicida, um cu que possua todas as frias do amor.
Era um cu de pecado protestante, um pecado retido no confessionrio,
destes pecados que carregam a conscincia dos padres, um verdadeiro pecado
teologal.
E eu a amava.
Ela era criada em uma taverna de Hoffmann, mas uma miservel crapulosa
criadinha, uma criadinha crapulosa e mal lavada4. Ela passava os pratos, limpava
os lugares, fazia as camas, varria os quartos, sacudia os dossis dos leitos e se des-
pia diante de sua lucarna, como todas as criadas de todos os contos de Hoffmann.
Eu dormia naquela poca em uma cama lastimvel cujo colcho se erguia
todas as noites, se enrugava diante desse avano de ratos que os reluxos dos
maus sonhos vomitam, e que se aplanava ao sol nascente. Meus lenis cheiravam
a fumo e a necrotrio, e este odor nauseante e delicioso que nossos corpos as-
sumem quando nos pomos a cheir-los5. Em suma, eram verdadeiros lenis de
estudante apaixonado.
Eu labutava numa tese espessa, emasculante, sobre os abortos do esprito
humano nesses limiares esgotados6 da alma que o esprito do homem no atinge.
Mas a idia da criadinha me atormentava muito mais que todos os fantasmas
do nominalismo excessivo das coisas.
Eu a via atravs do cu, atravs das vidraas partidas de meu quarto, atravs
de suas prprias sobrancelhas, atravs dos olhos de todas minhas antigas amantes,
e atravs dos cabelos amarelos de minha me.
Ora, estvamos na noite de So Silvestre. O trovo troava, os relmpagos
marchavam, a chuva abria seu caminho, os casulos dos sonhos baliam, as rs de
todas as lagoas coaxavam, em suma, a noite fazia o seu trabalho.
Cumpria-me agora encontrar um meio de me pr em contato com a rea-
lidade... No era bastante estar em contato com a ressonncia obscura das coisas,
ouvir por exemplo os vulces falarem, e revestir o objeto de meus amores de
todos os encantos de um adultrio antecipado, por exemplo, ou de todos os
horrores, imundcies, escatologias, crimes, intrujices que se prendem idia do
amor; cumpria-me encontrar simplesmente o meio de atingi-la diretamente, isto
, e antes de tudo de falar-lhe.

3. Era A Revue europenne, como no manuscrito, l-se aqui: Havia tambm uma arcatura de so-
brancelhas...
4. Mas miservel criadinha, criadinha crapulosa e mal-lavada.
5. ...quando nos decidimos cheir-los.
6. ...do Esprito humano, sobre esses limiares esgotados...
A VIDRAA DO AMOR 233

De repente a janela se abriu. Eu vi em um canto de meu quarto um imenso


jogo de damas sobre o qual caam os reflexos de uma multido de lmpadas
invisveis. Cabeas sem corpos faziam rondas, chocavam-se, caam como quilhas.
Havia um imenso cavalo de pau, uma rainha em morfina, uma torre de amor,
um sculo vindouro. As mos de Hoffmann empurravam os pees, e cada peo
dizia: NO A PROCURE L. E no cu viam-se anjos com asas de ps niquelados.
Parei, pois, de olhar pela janela7 e de esperar ver minha criadinha querida.
Ento senti uns ps que acabam de esmagar os cristais dos planetas, justo
no quarto de cima. Suspiros ardentes varavam o assoalho, e ouvi a triturao de
uma coisa suave.
Neste momento todos os pratos da terra comearam a rodar e os fregueses
de todos os restaurantes do mundo saram em perseguio8 da criadinha de Hoff-
mann; e viu-se a criada que corria como uma danada, depois Pierre Mac Orlan,
o remendo de botinas absurdas9, passou, empurrando um carrinho de mo pelo
caminho. Atrs dele vinha Hoffmann com um guarda-chuva, depois Achim de
Arnim, depois Lewis que andava transversalmente. Enfim a terra se abriu, e
Grard de Nerval apareceu.
Era maior do que tudo. Havia tambm um homenzinho que era eu.
- Mas note bem que voc no est sonhando, me dizia Grard de Nerval,
alis aqui est o cnego Lewis que entende do assunto: Lewis, voc se atreveria
a sustentar o contrrio?
- No, por todos os sexos barbudos.
So estpidos, pensei, no vale a pena serem considerados grandes autores.
- Pois bem, me dizia Grard de Nerval, tudo isto10, veja voc, tem uma
ligao. Voc a pe na salada, voc a come com azeite, voc a descansa sem
hesitar, a criadinha minha mulher.
Ele no sabe sequer o peso das palavras, pensei11.
- Perdo, o preo, o preo das palavras, me soprou meu crebro que tam-
bm as conhecia.
- Cale-se, meu crebro, eu lhe disse, voc ainda no est suficientemente
vitrificado.
Hoffmann me disse:
- VAMOS AO FATO.
E eu:
- Eu no sei como entrar em contato com ela, no me atrevo.

7. O manuscrito traz: Parei de olhar a janela... como mais acima est dito: Eu a via atravs do
cu, atravs das vidraas..., cabe perguntar se a preposio pela no foi acrescentada na grfica sem que
Antonin Artaud se tenha dado conta do fato, quando da reviso das primeiras provas.
8. ...se puseram a perseguir...
9. ...o remendo das botinas absurdas,...
10. ...considerados grandes autores.
Pois bem, me dizia Grard, tudo isto...
11. ...das palavras, dizia a mim mesmo.
234 ^ LINGUAGEM E VIDA

- Mas voc no precisa nem mesmo se atrever, retorquiu Lewis. Voc a


obter TRANSVERSALMENTE.
- Transversalmente, mas ao qu?, repliquei eu. Pois no momento ela que
me atravessa.
Mas, j que te dizem que o amor oblquo, que a vida oblqua, que o
pensamento oblquo, e que tudo oblquo. VOC A TER QUANDO NO
PENSAR NISSO.
Escuta a em cima. No ouves o conluio destas pontes de indolncia, o
encontro deste amontoado de inefvel plasticidade?
Eu sentia minha testa estourar.
No fim compreendi que se tratava de seus seios, e compreendi que todos esses
suspiros se exalavam do prprio seio de minha criadinha. Compreendi tambm que
ela estava deitada sobre o assoalho de cima para estar mais perto de mim.
Houve na rua cantos de uma estupidez terrvel12:

Cbez ma belle qu'il fait bon


Avaler du mouron (bis)
Car nous sommes oiseaux
Car nous sommes oiselles
Chez ma belle qu'il fait bon
Colombelle a son balcon
Toute l'eau de ses aisselles
Ne vaut pas Ia mirabelle
De ses amoureux frissons*.

Porcos estpidos, urrava eu me levantando, vocs sujam o prprio esprito


do amor.
A rua estava vazia. Havia apenas a lua que continuava seus murmrios
d'gua.
Qual o melhor berloque, qual a jia mais bela, qual a amndoa mais
sumarenta?
A esta viso eu sorri.
Este no o diabo, como voc v muito bem, me disse ela.
Oh nao, no era o diabo, minha pequena criadinha estava em meus braos.
- H tanto tempo, h tanto tempo, me disse ela, eu te desejava13.
E esta foi a ponte da grande noite. A lua subiu no cu. Hoffmann se
enterrou em sua cave, todos os restauradores recuperaram seus lugares, houve

12. ...cantos de uma estupidez desavergonhada.


* Em casa de minha bela como bom/ alpiste comermos (bis)/ Pois passarinhos ns somos/
Pois passarinhos ns somos/ Junto de minha bela como bom/ Pombinha em seu balco/ Toda gua
de suas axilas/ No vale a mirabela/ De seus apaixonados arrepios.
13. ...me disse ela. Como eu te desejava.
A VIDRAA DO AMOR 235

apenas o amor: Helosa de manto, Abelardo de tiara, Clepatra de spide, todas


as lnguas da sombra, todas as estrelas da loucura.
Foi o amor como um mar, como o pecado, como a vida, como a morte.
O amor sob as arcadas, o amor na bacia, o amor em um leito, o amor
como a hera, o amor como um macaru.
O amor to grande quanto os contos, o amor como a pintura, o amor
como tudo o que existe.
E tudo isto em uma mulher to pequena, em um corao to mumificado,
em um pensamento to restrito, mas o meu pensava por dois.
Do fundo de uma embriaguez insondavel, um pintor tomado de vertigem
de repente se desesperava. Mas a noite14 era mais bela que tudo. Todos os estu-
dantes retornaram a seus quartos, o pintor recobriu seus ciprestes. Uma luz de
fim do mundo encheu pouco a pouco15 meu pensamento.
Logo, no houve mais que uma imensa montanha de gelo sobre a qual
uma cabeleira loira pendia16.
Traduo de]. Gumsburg

14. ...um pintor sem vertigem chorava, mas a noite...


15. ...de fim de mundo enchia pouco a pouco...
O final deste pargrafo foi notavelmente transformado; possvel ler sob o texto inicial: ... cho-
rava, chorava sobre a vacuidade de sua alma frente a sua incapacidade de atnar, mas aqui nada havia alm
da noite, e uma luz de fim de mundo que trepava na imensido.
16. ...sobre o qual sua cabeleira pendia.
EXCURSO PSQUICA1

O ponto de partida da magia reside na encantao. A palavra magia desperta


confusamente, no entendimento da maioria, a idia de prticas ocultas capazes
de despertar as foras sombrias da natureza e de avassalar at os fantasmas da
morte. E isto em parte verdade.
No o desejo sozinho que desperta na inteligncia do homem a nebulosa
dos fantasmas e que lhe inspira a idia de reencontrar, por meio do verbo, ao
menos a evocao deste poder maravilhoso que pareceria reservado a alguns. Ele
nos deu, em todo caso, estas jias da literatura do mundo que slo As Mil e Uma
Noites, os Contos de Perrault, os Contos de Hoffmann e entre outros O Vaso de
Ouro, as Histrias de Poe.
No se tratava apenas do fato de [revelar2] as relaes das coisas criadas,
de lidar com o tempo e a distncia, e os antagonismos dos elementos. Trata-se
antes deste conjunto de prticas quase histricas, as atribuies muito precisas
de tais personagens maravilhosas, esta galeria de fantasmas humanos, que se cha-
mam mgicos, feiticeiros, dervixes, faquires, este vestirio heterclito, esta flora
misteriosa, e para comeo de tudo isso: o Sab.

1. Segundo uma cpia datilografada enviada pela Sra. Toulouse. Este texto pde ter sido escrito
na poca em que Antonin Artaud lia as obras de Maeterlinck afim de prefaciar Douze Chansons (cf.
p. 151), isto , por volta de 1922-1923.
2. Esta cpia foi tambm foi corrigida pela Sra. Toulouse. H uma falta aqui entretanto. Ela foi
conjecturalmente preenchida a fim de facilitar a leitura.
238 LINGUAGEM E VIDA

Ora, se a grande maioria dos homens gostaria de se dar ao trabalho de


fazer descontos em seus comentrios a este respeito, quantos outros haveria que
chegariam a desembaraar sua idia verdadeiramente geral, verdadeiramente hu-
mana, de toda esta mixrdia, ou a formular claramente a idia que fazem desta
fantasmagoria. Para a maioria, todo heri mgico da humanidade est contido
em Os Segredos do Grande Alberto, este festim das cozinheiras histricas, e os
outros, que se do ao trabalho de refletir e que dizem a si mesmos que: se
houvesse mgicos, o que que poderiam eles realmente fabricar? Chegam a con-
fundi-los com honestos qumicos, at mesmo vulgares prestidigitadores. Ns no
sabemos se algum dia existiram na sucesso dos dias mgicos tais como brotam
a cada passo na terra bendita das Mil e Uma Noites.
Hoje em dia, com exceo de algumas crianas, ningum mais cr nos
mgicos. Uma coisa, todavia, notvel: que todos esses contos maravilhosos
tratam apenas raramente dos fantasmas dos mortos e de uma maneira to fraca
que ela no nos pode ser de nenhuma utilidade.
, no entanto, na investigao da morte que reencontraramos o segredo
da ao divina e da configurao espiritual do mundo, pense o que pensar disso
Maeterlinck em seu triste e cruel Grande Segredo. com efeito pouco provvel
que inteligncias depuradas pelo grande despojamento de suas cascas corporais,
reentrando no grande todo espiritual, voltando a este grande todo original e mais
sutil, no sejam capazes de penetrar o arcano da origem das coisas e de seus
destinos.
Ora, este meio1 de nos levar a passear pela morte ns o possumos desde
j, devido hipnose que liberta em ns o subconsciente de rosto de vidro e o

3. A Sra. Toulouse nos havia transmitido uma segunda cpia datilografada deste texto que apre-
sentava um fim diferente:
Ora este meio de nos pormos a passar pela morte, ns o possumos desde logo devido a hipnose que en-
trega cm ns o subconsciente de rosto de vidro e o manda comprazer-se em liberdade nas fronteiras do aln.
E inimaginvel, bastante, que a natureza que juntou to miraeulosamente em ns o impondervel ao co-
nhccfvel at reduzi-lo a ser funo dele, no lhe tenha deixado do outro lado uma ponte com o Inconhecvel,
o Superior.
Como o sopro do alm que est em cada um de ns e que um dia despertar ao sopro do Esprito puro,
se reconheceria se no fosse de uma essncia idntica.
Mas quando h uns cincoenta anos a Cincia julgou ter encontrado o meio de comover o Emanuel
Imanente, de fazer conversar seus imponderveis, de trazer a face da conscincia os signos do alm por meio
de espelhos, bolas, passes, e todo o aparelho dos hipnotizadores, o que fez ela do ritual antigo das prticas m-
gicas do dito de outro modo, da Encantao?
S que, enquanto ns fatigamos os Espritos com nossas pueris baboseiras, com nossas preocupaes
malss e nos deixamos escravizar por eles, eles tinham encontrado os meios de comand-los. Os egpcios co-
nheciam as palavras e os passes capazes de reter uma alma nos limites da Vida. a que se revela o solene
poder da Encantao, a Gula do homem que pudera (crer que) a turbulncia dos fantasmas se apraz em
exercer-se sobre as foras da Natureza, sobre os Elementais que aventuram seus corpos de espectros nos escri-
tos da Idade Mdia crdula.
Mas a Grande Virtude a Magia reside na subjulgao da morte. E quase certo que a morte tornando
nossa alma mais sensvel s perspectivas espirituais do aln, comea por uma srie de entorpecimentos suces-
EXCURSO PSQUICA 239

manda divertir-se em liberdade sobre as orlas do outro mundo. No certo que


a morte, tornando nossa alma mais sensvel s percepes espirituais do alm,
comece por uma sinistra momice do sono, e que, por uma srie de entorpeci-
mentos sucessivos, a destaque do corpo. E eu imagino que deve haver na morte
esta inquietao do homem que dorme e se pergunta com angstia se verda-
deiramente um sonho. Enlouquecedora questo!
E bastante evidente que importaria muito pouco ao homem poder derrubar
a ordem dos elementos se ele no tivesse influncia sobre o vertiginoso desen-
cadeamento dos fantasmas da morte. Os egpcios conheciam as palavras e as
foras que retinham a alma na margem da Vida. A incrvel fascinao da magia
sobre o homem lhe vem deste maravilhoso poder. A encantao pde servir,
por conseqncia, para captar as foras brutas da natureza, mas a grande virtude
da Magia reside na subjugao da Morte.

Traduo de]. Guinsburg

sivos ela a separa do corpo e eu imagino que deve haver na morte esta inquietude do homem que dllorme e se
pergunta com angstia se se trata verdadeiramente de um sonho. Questo enlouquecedora.
RIMBAUD & OS MODERNOS

Fatos novos de pensamentos, abalo, animao de relaes - relaes no


de sentimentos, do interior de um sentimento ao interior de um outro senti-
mento, mas do exterior de um sentimento, do lugar, do grau, da importncia de
um sentimento com a importncia de um outro sentimento, do valor exterior,
figurativo de um pensamento com relao a um outro pensamento - e de suas
reaes com relao a elas, de sua admisso nele, de suas dobras, de seus declives
- eis a contribuio de Rimbaud.

Rimbaud nos ensinou uma nova maneira de ser, de nos manter no meio
das coisas.

Pilhado pelos modernos unicamente em suas dobras, em seus declives, no


jogo das relaes inventadas por ele e no na natureza das coisas agitadas - que
ele prprio, alis, no agita seno de fora (sentindo exteriormente este exterior),
e se ele escava para retirar ainda outros exteriores; o suco interior dos fen-
menos lhe permanecer sempre desconhecido - e os modernos nem sequer reti-
veram estes fenmenos, mas sim maneiras de agit-los. No , Raval, Fierens e
os outros seguidores. Um outro esprito est na origem de certos tiques do estilo
contemporneo, em breve to fora de moda quanto todas as afetaes do deca-
dentismo, o Mallarm de Divagations (Divagaes).
242 LINGUAGEM E VIDA

O primeiro, por seu cuidado em dar a cada palavra sua total capacidade
de sentido, classificou suas palavras como valores existentes fora do pensamento
que os condiciona, e operou estas estranhas inverses de sintaxe onde cada slaba
parece objetivar-se e tornar-se preponderante. Mas Mallarm era difcil em face
de seu pensamento, l onde Paul Fierens no difcil a no ser para os que o
lem, e com um tema do ser insignificante. Eu me apresso em dizer que Paul
Fierens compe pequenos poemas perfeitos, e que me parecem felizes elucidaes
do pensamento contemporneo. Eu s detesto suas resenhas crticas1.
Traduo dej. Guinsburg

1. No sumrio das revistas que publicavam os poemas Antonin Artaud, encontram-se tambm
poemas de Mareei Raval e de Paul Fierens. Em 1923, Paul Fierens fazia regularmente resenhas crticas
em les Nouvelles littraires. alias neste hebdomrio que ele assinar em dezembro de 1925 uma rese-
nha crtica de O Umbigo dos Limbos que Antonin Artaud julgava de uma imbecilidade atroz.
UM PINTOR MENTAL

No gnero feto, Paul Klee (alemo) organiza algumas vises interessantes.

Eu gosto muito de alguns de seus pesadelos, suas snteses mentais conce-


bidas como arquiteturas (ou suas arquiteturas de carter mental), e algumas sn-
teses csmicas onde toda a objetividade secreta das coisas se torna sensvel, mais
do que as snteses de Georges Grosz. Considerada ao mesmo tempo, a diferena
profunda de inspirao de um e de outro aparece. Georges Grosz criva o mun-
do e o reduz sua viso; em Paul Klee as coisas do mundo se organizam - e
ele tem a aparncia de escrever sob inspirao delas. Organizao de vises, de
formas, e tambm fixao, estabilizao de pensamentos, indues e dedues
de imagens, com a concluso que da decorre, e tambm organizao de ima-
gens, busca do sentido subjacente de certas imagens, clarificaes de vises do
esprito, assim me aparece esta arte. A secura, a nitidez de Grosz, explodem
diante destas vises organizadas, que mantm seu aspecto de vises, seu carter
de coisa mental.

Traduo de]. Guinsburg


A ARTE SUPREMA

Escrevemos raramente no plano do automatismo1 que preside realizao


de nossos pensamentos.

A arte suprema dar, por intermdio de uma retrica bem aplicada,


expresso de nosso pensamento, a rijeza e a verdade de suas estratificaes iniciais,
assim como na linguagem falada. E a arte de conduzir esta retrica ao ponto
de cristalizao necessrio para no fazer mais do que uma s coisa com certas
maneiras de ser, reais, do sentimento e do pensamento. - Em uma palavra, o
nico escritor duradouro aquele que souber fazer com que esta retrica se
comporte como se ela j fosse pensamento, e no o gesto do pensamento. E Jean
Paulhan, que em Le Pont travers2 fixou certas maneiras de nosso pensamento
se comportar com relao aos sonhos, revelou tais estratificaes do pensamento
humano com infinitamente mais tato, felicidade e certeza do que Maeterlinck

1. Este texto abre o segundo nmero de Bilboquet, impresso no mesmo papel e de mesmo for-
mato. um opsculo de dezesseis pginas que se apresenta "em folhas" e no traz nem nmero nem
data, nem endereo, nem nome de quem o imprimiu. A correspondncia com Gmca Athanasiou nos
informa sobre a data aproximada da publicao. Por duas vezes, 12 de outubro e 8 de dezembro de
1923, Antonin Artaud anuncia-lhe o envio:... um pequeno livro de pensamento de um escritor que conhe-
ces e do qual quero fazer a ti surpresa. E: Eu te enviarei proximamente o livro de que te falei. Ele muito
curioso e muito atual. Tu conheces alis o autor (cf. Lettres a Gnica Athanasiou, pp. 109 e 126). Este se-
gundo nmero compreende os dois textos que precedem.
2. Le Pont tranversi, de Jean Paulhan, havia aparecido em 1921 nas edies Camille Bloch.
246 LINGUAGEM E VIDA

revelou tais contingncias da alma - por uma maior submisso ao assunto, e


pela exata elucidao deste assunto.
Traduo de]. Guinsburg
NA LUZ DA EVIDNCIA

Na luz da evidncia1 e da realidade do crebro,


no ponto em que o mundo se torna sonoro e resistente em ns,
com os olhos de quem sente em si as coisas se refazerem, de quem se apega
e se fixa no comeo de uma nova realidade.
Estes estados em que a realidade mais simples, mais ordinria, no chega
at mim, onde a instante presso da realidade costumeira no penetra at mim,
onde eu no atinjo mesmo o nvel necessrio de minha vida.
E que esta presso e este sentimento em ti abram caminho e se apresentem
com sua evidncia e sua densidade normal no mundo e que convm quilo que
tu s em um sistema e com uma quantidade que te representa, com a quantidade
que te representa.
No, a bem dizer, o volume das coisas, mas seu sentimento e sua reper-
cusso em mim: a repercusso ao cabo da qual est o pensamento.
Deixar-se levar pelas coisas em lugar de se fixar sobre certos lados especiosos,
de pesquisar sem fim definies que no nos mostram seno os pequenos lados
mas para isto ter em si a corrente das coisas, estar ao nvel de sua corrente,
estar enfim ao nvel da vida, em lugar de permitir que nossas deplorveis cir-
cunstncias mentais nos deixem perpetuamente no entremeio,

1. A pgina n 5 de A Vidraa do Amor ocupa uma s pgina de uma folha dupla. As notas que
comeam por Na Luz da Evidncia... esto escritas em tinta preta sobre as trs outras pginas desta fo-
lha (cf. nota 1, p. 231).
248 LINGUAGEM E VIDA

estar ao nvel dos objetos e das coisas, ter em si sua forma global e sua
definio ao mesmo tempo
e que as localizaes de tua substncia pensante entrem em movimento ao
mesmo tempo que seu sentimento e sua viso em ti.

De uma vez por todas2


Io eu tenho o ar terrivelmente preocupado de demonstrar que eu no penso
e que me dou conta disto, que tenho o crebro fraco, mas eu penso que todos
os homens tm primeiro o crebro fraco - e em seguida que mais vale ser fraco,
que mais vale estar em um estado de abdicao perptua em face do esprito da
gente. E um melhor estado para o homem, um estado mais normal, mais
adaptado a nosso sinistro estado de homens, a esta sinistra pretenso dos homens
de querer.
Eu tenho uma imaginao estupefata.

H montanhas3 de problemas que nos encerram por todas as partes: Infeliz


de quem pensou escapar aos problemas, infeliz de quem acreditou poder dispen-
sar-se de pensar.
Que sculo traz, pode mostrar em seu ativo, este esforo desesperado de
conquista que se situa nos cumes glaciais do Esprito.
Traduo de]. Guinsburg

2. O curto fragmento De uma vez por todas... est escrito a tinta vermelha na pgina de frente de
uma folha cujo verso traz a pgina n 3 de A Vidraa do Amor
3. No fim, escrito a lpis, na pgina de frente de uma folha cujo verso e ocupado pela pgina n
4 de A Vidraa do Amor, encontra-se o fragmento H montanhas....
SOBRE O SUICDIO1

Antes de me suicidar exijo que me assegurem a respeito do ser, eu gostaria


de estar seguro a respeito da morte. A vida me parece apenas como um consen-
timento legibilidade aparente das coisas e sua ligao no esprito. Eu no me
sinto mais como a encruzilhada irredutvel das coisas, a morte que cura, cura ao
nos separar da natureza; mas se eu no sou mais que um divertimento de dores
onde as coisas no passam?
Se eu me mato, no ser para me destruir, mas para me reconstituir, o
suicdio no ser para mim seno um meio de me reconquistar violentamente,
de irromper brutalmente em meu ser, de antecipar o avano incerto de Deus.
Pelo suicdio, eu reintroduzo meu desgnio na natureza, eu dou pela primeira
vez s coisas a forma de minha vontade. Eu me livro deste condicionamento de
meus rgos to mal ajustados com meu eu e a vida no mais para mim um
acaso absurdo onde eu penso aquilo que me do a pensar. Eu escolho ento meu
pensamento e a direo de minhas foras, de minhas tendncias, de minha rea-
lidade. Eu me coloco entre o belo e o feio, o bom e o malvado. Eu me torno
suspenso, sem inclinao, neutro, exposto ao equilbrio das boas e das ms soli-
citaes.
Pois a prpria vida no uma soluo, a vida no tem nenhuma espcie
de existncia escolhida, consentida, determinada. Ela no mais que uma serie

1. Le Disque vert (3 o ano, n 1, 4a srie, janeiro de 1925). Este nmero se intitula Sur le suicide.
A resposta de Antonin Artaud enquete lanada por esta revista traz o mesmo ttulo.
250 LINGUAGEM E VIDA

de apetites e de foras adversas, de pequenas contradies que levam a resultados


ou abortam conforme as circunstncias de um acaso odioso. O mal est deposi-
tado desigualmente em cada homem, como o gnio, como a loucura. O bem,
assim como o mal, o produto das circunstncias e de um levedo mais ou menos
atuante.
E certamente algo abjeto ser criado e viver e sentir-se nos mnimos recn-
ditos, at nas ramificaes mais impensadas de nosso ser irredutivelmente deter-
minado. Ns no somos mais do que rvores, no fim de contas, e est prova-
velmente inscrito em uma extremidade qualquer da rvore de minha raa que
eu me matarei um determinado dia.
A idia mesma da liberdade do suicdio cai como uma rvore cortada. Eu
no creio nem no tempo, nem no lugar, nem nas circunstncias de meu suicdio.
Se eu no invento sequer o pensamento do suicdio, sentirei a sua extirpao?
Pode ser que neste instante se dissolva o meu ser, mas se ele permanecer
inteiro, como reagiro meus rgos arruinados, com que impossveis rgos re-
gistrarei eu o dilaceramento?
Eu sinto a morte sobre mim como uma torrente, como o salto instantneo
de um raio cuja capacidade eu no imagino. Eu sinto a morte carregada de delcias,
de ddalos turbilhonantes. Onde est, a dentro, o pensamento de meu ser?
Mas eis Deus de repente como um punho, como um feixe de luz cortante.
Eu me separei voluntariamente da vida, eu quis remontar meu destino!
Ele disps de mim at o absurdo, este Deus; ele me manteve vivo em um
vazio de negaes, de negaes encarniadas de mim mesmo, ele destruiu em
mim at os menores brotos da vida pensante, da vida sentida. Ele me reduziu a
ser como um autmato que anda, mas um autmato que sentiria a ruptura de
sua inconscincia.
E eis que eu quis dar prova de minha vida, eu quis me reunir com a
realidade ressoante das coisas, eu quis romper minha fatalidade.
E este Deus, o que diz ele?
Eu no sentia a vida, a circulao de toda idia moral era para mim como
um rio seco. A vida no era para mim um objeto, uma forma; ela se tornara
para mim uma srie de raciocnios. Mas de raciocnios que giravam no vazio,
de raciocnios que no giravam, que eram em mim como "esquemas" possveis
que minha vontade no conseguia fixar.
Mesmo para chegar ao estado de suicdio, devo esperar o retorno de meu
eu, preciso do livre jogo de todas as articulaes de meu ser. Deus me colocou
no desespero como em uma constelao de impasses cuja radiao chega a mim.
Eu no posso nem morrer, nem viver, nem desejar morrer ou viver. E todos os
homens so como eu.
Traduo de]. Guinsburg
DECLARAO DE 27 DE JANEIRO DE 19251

Tendo em vista uma falsa interpretao de nossa tentativa, estupidamente


espalhada entre o pblico,
Cumpre-nos declarar o que segue a toda a gaguejante crtica literria, dra-
mtica, filosfica, exegtica e mesmo teolgica contempornea:

1. Este manifesto, publicado em forma de cartaz, encontra-se entre os papis de Antonin


Artaud preservados por Gnica Athanasiou. Foi publicado em Documents surrcalistcs, por Maurice
Nadeau (Editions du Seuil, 1948). Em Conversation avec Andr Masson nitidamente afirmado que
esta declarao foi escrita por Antonin Artaud. Andr Breton a cita entre os textos coletivos
publicados sob estmulo de Antonin Artaud. Ora, esta declarao s coletiva porque ela foi assinada
por vinte e sete nomes, mas aqui todos os testemunhos concordam, ela foi integralmente redigida por
Antonin Artaud.
Ela foi o gesto pelo qual ele assinalou que assumia a direo do Bureau de Recherches. A data de
27 de janeiro de 1925 significativa. Com efeito, no foi somente depois de 30 de janeiro, como
deixaria supor o aviso incerto no fim do nmero 2 de Ia Rvolution Surralistc, que esta funo foi
confiada a Antonin Artaud, mas desde o dia 26. o cahier depermanence do Bureau de Recherches que
nos informa. Na data de sbado, 24 de janeiro, l-se a o seguinte:
Sexta-feira a noite (23 de janeiro) teve lugar uma reunio geral em Certa. Estavam presentes os Srs.
Aragon, Breton, Boiffard, Qrard, Desnos, Lbeck, luard, Emst, Leiris, Tual, Masson, Prct, Quencau,
Ch. Baron.J. Baron, Artaud, Naville.
Havendo a necessidade imediata de remediar o funcionamento da Central, que demonstrou
plenamente sua incapacidade de atender ao objetivo proposto, ns examinamos por quais meios apropriados
se poderia lhe proporcionar eficcia. Aps deliberao, a direo do Bureau de Recherches foi confiada a
Antonin Artaud, com todos os poderes. A partir de segunda-feira, 26 de janeiro, um novo funcionamento
da Central estar, pois, em vigor.

Cfir.ni A DE BELAS ARTFR / UFMG


252 LINGUAGEM E VIDA

Io Ns nada temos a ver com a literatura;


Mas somos bem capazes, se necessrio, de nos servir dela como todo o
mundo.
2 o O surrealismo no um meio de expresso novo ou mais fcil, nem
mesmo uma metafsica da poesia;
E um meio de libertao total do esprito
e de tudo o que se lhe assemelha.
3o Ns estamos realmente decididos a fazer uma Revoluo.
4o Ns ajuntamos a palavra surrealismo palavra revoluo unicamente
para mostrar o carter desinteressado, desprendido, e mesmo inteiramente deses-
perado, desta revoluo.
5o Ns no pretendemos mudar nada nos costumes dos homens, mas pen-
samos realmente demonstrar-lhes a fragilidade de seus pensamentos, e sobre quais
alicerces movedios, sobre quais pores, eles fixaram suas casas estremecentes.
6o Ns lanamos Sociedade esta advertncia solene:
Que ela preste ateno a seus desvios, a cada um dos falsos passos de seu
esprito, ns no a deixaremos escapar.
7o A cada uma das viradas de seu pensamento, a Sociedade tornar a nos
encontrar.
8o Ns somos especialistas da Revolta.
No h um meio de ao que ns no sejamos capazes, se necessrio, de
empregar.
9o Ns dizemos mais especialmente ao mundo ocidental:

o surrealismo existe

- Mas o que ento este novo ismo que se prende a ns?


- O surrealismo no uma forma potica.
E um grito do esprito que se volta para si mesmo e est de fato decidido
a triturar seus entraves,
e se necessrio por meio de martelos materiais!

Do bir de pesquisas surrealistas


15, rue de Grenelle
Louis Aragon, Antonin Artaud, Jacques Baron, Jo Bous-
quet, J.-A. Boiffard, Andr Breton, Jean Carrive, Ren Cre-
vel, Robert Desnos, Paul Eluard, Max Ernst, T. Fraenkel,
Francis Grard, Michel Leiris, Georges Limbour, Mathias L-
beck, Georges Malkine, Andr Masson, Max Morise, Pierre
Naville, Mareei Noll, Benjamin Pret, Raymond Queneau,
Philippe Soupault, Dd Sunbeam, Roland Tual.

Traduo de]. Guinsburg


ESTA NA MESA1

Deixai as cavernas do ser. Vinde. O esprito sopra fora do esprito. tempo


de abandonardes vossas habitaes. Cedei ao Todo-Pensamento. O Maravilhoso
est na raiz do esprito.
Ns somos de dentro do esprito2, do interior da cabea. Idias, lgica,
ordem, Verdade (com V grande), Razo, ns damos tudo ao nada da morte.
Cuidado com vossas lgicas, Senhores, cuidado com vossas lgicas, no sabeis
at onde nosso dio lgica nos pode levar.
No seno por um desvio3 da vida, por um decreto imposto ao esprito,

1. A direo do nmero 3 de Ia Rvolution Surraliste (15 de abril de 1925) foi confiada a


Antonin Artaud. O ttulo geral do nmero :
1925: FIM DA ERA CRIST
Est na Mesa abre o nmero. Este texto no est indicado no sumrio, e no interior da revista
no aparece assinado, mas no h dvida que de Antonin Artaud.
A verso primitiva deste texto, conservada por Gnica Athanasiou, se intitulava Appel au
monde. Na poca da publicao, certas passagens foram suprimidas.
2. Cedei ao TodoPensamento. Tudo o que se aplica ao real imediato inutilizvelpela cabea. O
mundo est num entrecruzamento de loucura. No h limites para a maravilhosa liberdade da cabea. O
esprito vive numa eterna transubstanciao de si mesmo, tudo o que no maravilhoso no existe verda-
deiramente no mundo. No mundo do esprito, o nico. O Maravilhoso est na raiz do esprito.
Sede um pouco menos na vida, perdei o p em vosso ser, h meios ilgicos de recuperar a paz lgica do
espirito.
Ns somos de dentro do esprito...
3. ... nos pode levar. H lebres a levantar, h questes, ser necessrio de fato um dia que vos eleveis
at as questes.
254 LINGUAGEM E VIDA

que se pode fixar a vida em sua fisionomia dita real, mas a realidade no se
encontra a. Da porque, a ns, que visamos a uma certa eternidade, surreal, a
ns que de h muito no nos consideramos mais no presente, e que somos para
ns mesmos como nossas sombras reais, no se deve vir nos chatear em esprito.
Quem nos julga, no nasceu no esprito, neste esprito que ns queremos
viver e que existe4 para ns fora daquilo que chamais o esprito. No se deve
atrair de mais nossa ateno para as cadeias que nos prendem petrificante im-
becilidade do esprito. Ns pusemos a mo sobre um animal novo. Os cus
respondem nossa atitude de absurdo insensato. Estes hbitos que tendes de
voltar as costas s questes no impediro, no dito dia, os cus de se abrirem,
e uma nova lngua de se instalar em meio a vossos tratados imbecis, queremos
dizer, dos tratados imbecis de vosso pensamento.
H signos no Pensamento. Nossa atitude de absurdo e de morte a da
melhor receptividade. Atravs das fendas de uma realidade doravante invivel,
fala um mundo voluntariamente sibilino.
Traduo de]. Guinsburg

4. Seguimos aqui a lio da cpia preservada por Gnica Athanasiou e no a de Ia Revolution


Surralistc. ... neste esprito que ns queremos dizer e que ... provavelmente, dizer, que corresponde mui-
to menos do que viver, quer ao sentido deste apelo quer ao do movimento surrealista, o resultado de
um erro de impresso.
NA VIDA
VAN GOGH.
o SUICIDADO DA SOCIEDADE

INTRODUO

Pode-se falar1 da boa sade mental de Van Gogh que, em toda a sua vida, apenas
queimou uma mo e, fora disso, no fez mais que cortar uma vez a orelha esquerda,
num mundo em que se come todo dia vagina assada ao molho verde ou
sexo de recm-nascido flagelado e enraivecido,
tal como foi colhido sada do sexo materno.
E isto no uma imagem, mas um fato abundante e cotidianamente repe-
tido e cultivado por toda a terra.
E assim, por mais delirante que possa parecer essa afirmao, que a vida
presente se mantm em sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem,
de delrio, de desregramento, de loucura crnica, de inrcia burguesa, de anomalia
psquica (pois no o homem, mas o mundo que se tornou um anormal), de
proposital desonestidade e de insigne tartufice, de imundo desprezo por tudo
aquilo que tem raa,
de reivindicao de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de
uma injustia primitiva,
de crime organizado, enfim.

1. Ditado a partir de textos escritos entre 28 de fevereiro e 2 de maro de 1947. A cpia feita a
partir do ditado foi datilografada, e ser designada por (C). Um exemplar foi imediatamente enviado
ao editor, que estabeleceu a primeira edio (K).
58 ^ ^ ^ LINGUAGEM E VIDA

Isso vai mal porque a conscincia doente tem um interesse capital, nesse
momento, em no sair de sua doena.
E assim que uma sociedade tarada inventou a psiquiatria, para se defender
das investigaes de certas lucidezes superiores cujas faculdades de adivinhao a
incomodavam.

Grard de Nerval no era louco, mas foi acusado de o ser para que lan-
assem o descrdito sobre certas revelaes capitais que ele se preparava para
fazer,
e alm de ser acusado, foi ainda golpeado na cabea, fisicamente golpeado
na cabea, certa noite, para que perdesse a memria dos fatos monstruosos que
ia revelar e que, sob a ao desse golpe, passaram nele para o plano sobrenatural,
porque toda a sociedade, ocultamente aliada contra sua conscincia, foi naquele
momento bastante forte para faz-lo esquecer sua realidade.
No, Van Gogh no era louco, mas suas pinturas eram fogos gregueses,
bombas atmicas cujo ngulo de viso, ao lado de todas as outras pinturas que
grassavam nesta poca, teria sido capaz de perturbar gravemente o conformismo
larvar da burguesia Segundo Imprio e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Flix
Faure, bem como os de Napoleo III.
Pois no um certo conformismo de costumes que a pintura de Van Gogh
aaca, mas o das prprias instituies. E mesmo a natureza exterior, com seus
climas, suas mars e suas tempestades de equincio, no pode mais, depois da
passagem de Van Gogh pela terra, manter a mesma gravitao.
Com mais forte razo, no plano social, as instituies se desagregam e a
medicina faz o papel de um cadver imprestvel e ranoso, que declarava Van
Gogh louco.
Diante da lucidez de Van Gogh que trabalha, a psiquiatria no passa de
um reduto de gorilas, eles prprios obcecados e perseguidos e que no tm, para
aliviar os mais apavorantes estados de angstia e de sufocao humanas2, seno
uma ridcula terminologia,
digno produto de seus crebros tarados.
No existe um psiquiatra, na verdade, que no seja um notrio erotmano.
E no creio que a regra da erotomania inveterada dos psiquiatras possa
sofrer alguma exceo.

2. Esta passagem uma daquelas que foram acrescentadas durante o ditado. O texto da edio K
falho em duas passagens:
... para aliviar os mais apavorantes estados ...
e o singular para o adjetivo humana. bastante provvel que esses dois erros provenham de uma pas-
sagem malfeita, de (C) para (K).
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 259

Eu conhecia um que se rebelou, h alguns anos, diante da idia de me ver


acusar assim em bloco todo o grupo de altos crpulas e de fanfarres patenteados
a que ele pertencia.
Eu, senhor Artaud, me disse ele, no sou um erotmano e o desafio a
me mostrar um nico elemento no qual o senhor se baseia para fundar sua
acusao.
Basta que eu mostre o senhor mesmo, Doutor L.3, como elemento,
o senhor carrega na cara o estigma disso,
seu canalha ignbil.
E o focinho de quem mete sua presa sexual debaixo da lngua e a revira
em seguida como uma amndoa, para fazer figa de um certo modo.
Isto se chama fazer seu p de meia e aumentar seu lucro.
Se no coito o senhor no conseguiu gargarejar com a glote daquele jeito
que o senhor sabe e gorgolejar ao mesmo tempo com a faringe, o esfago, a
uretra e o nus,
o senhor no pode se declarar satisfeito.
E no seu sobressalto orgnico interno h um certo vinco que o senhor
adquiriu, que o testemunho encarnado de um estupro imundo,
e que o senhor cultiva ano aps ano, cada vez mais, porque socialmente
falando no est sob a alada da lei,
mas est sob a alada de uma outra lei, em que est toda a conscincia
lesada que sofre, porque, comportando-se desta maneira, o senhor a impede de
respirar.
O senhor declara delirante a conscincia que trabalha, enquanto, por outro
lado, a estrangula com sua sexualidade ignbil.
E justamente este o plano em que o pobre Van Gogh era casto,

3. O Doutor Jacques Latrmolire, que era interno do hospital psiquitrico de Rodez durante a
permanncia de A. Artaud, acreditou reconhecer-se sob essa inicial. Em seu artigo: Falei de Deus com
Antonin Artaud (em La Tour de Feu, n 69, abril de 1961), depois de ter grifado essa passagem, efetiva-
mente declara: Eu sou o doutor L e esta censura constitui a ltima mensagem pessoal que recebi de Antonin
Artaud vivo: as precedentes, aquelas de Rodez, eram muito diferentes [...]. Reeditando seu artigo dez anos
mais tarde (La Tour de Feu, n 112, dezembro de 1971), acrescenta ao exergo que chama de Van Gogh-
Introduo (I a edio K) esta surpreendente nota: Meu amigo Gaston Ferdire insinua que bastante es-
tranho que tenham sido suprimidas, na edio posterior, as pginas iniciais do "Van Gogh" de onde tirei
este exergo, talvez para me privarem de insultos dos quais eu conheo a origem e pelos quais no guardo ne-
nhum rancor. Ora, as duas afirmaes do Doutor Latrmolire so inexatas. No houve segunda edi-
o K de Van Gogh, o Suicidado da Sociedade e, portanto, nem supresso da Introduo, alm de no
ter sido ele que Antonin Artaud quis designar por Doutor L. Ns lhe perguntamos em quem pensava
quando nos ditou essa passagem e ele nos deu o nome do mdico que havia tomado como modelo: no
era o doutor Latrmolire. Alis, se Antonin Artaud tivesse pensado neste ltimo, certamente teria
dado seu nome, como fez, nesse mesmo texto, com o doutor Ferdire e, alm disso, como sempre es-
creveu incorretamente La Trmolire em duas palavras, teria certamente empregado a inicial T ou as
duas iniciais, L. T.
260 LINGUAGEM E VIDA

casto como nem mesmo um serafim ou uma virgem podem ser, porque
so justamente eles
que fomentaram
e alimentaram na origem a grande mquina do pecado.
Talvez, alis, Doutor L., o senhor seja da raa dos serafins inquos, mas,
por favor, deixe os homens sossegados,
o corpo de Van Gogh, salvo de todo pecado, foi salvo tambm da loucura
que, alis, s o pecado traz4.
E no creio no pecado catlico,
mas creio no crime ertico de que
justamente todos os gnios da terra,
os alienados autnticos dos asilos se preservaram,
ou ento porque no foram (autenticamente) alienados.
E o que um alienado autntico?
E um homem que preferiu ficar louco, no sentido em que socialmente isto
entendido, do que trair uma certa idia superior de honra humana.
assim que a sociedade fez estrangular em seus asilos todos aqueles de que
quis se livrar ou se defender, por terem se recusado a ser seus cmplices em
certas imensas sujeiras.
Porque um alienado tambm um homem que a sociedade no quis ouvir
e a quem ela quis impedir de dizer verdades insuportveis.
Mas nesse caso o internamento no sua nica arma e o concurso con-
certado dos homens tem outros meios para atingir as vontades que quer al-
quebrar.
Alm dos pequenos feitios dos bruxos do campo, existem os grandes en-
feitiamentos globais de que toda a conscincia alertada participa periodicamente.
E assim que por ocasio de uma guerra, de uma revoluo, de uma agitao
social ainda embrionria, a conscincia unnime interrogada e se interroga e
ela tambm faz seu julgamento.
Tambm pode lhe acontecer de ser provocada e sair de si mesma a prop-
sito de certos casos individuais retumbantes.
E assim que houve feitios unnimes a respeito de Baudelaire, de Edgar
Poe, de Grard de Nerval, de Nietzsche, de Kierkegaard, de Hlderlin, de Co-
leridge,
e houve um a respeito de Van Gogh5.

4. Na lio da edio K consta: ...salvo tambm de loucura que, alis, somente o pecado traz. Ora,
a lio de (C) e de (), idntica quela do texto inicial (cf. p. 156, 10 ) : ...salvo tambm da loucura...
Parece evidente que a supresso do artigo resultado de um erro de impresso que Antonin Artaud
no percebeu quando da correo das provas, e parecia necessrio corrigi-lo.
5. A lio da edio K:
houve um a respeito de Van Gogh
, muito provalvemente, errada e reproduz aquela de (A), enquanto na de (Q, idntica do texto ini-
cial, consta:
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE

Isso pode acontecer durante o dia, mas acontece, de preferncia, em geral


durante a noite.
E assim que estranhas foras so levantadas e conduzidas abbada astral,
nessa espcie de cpula sombria que constitui, acima de toda respirao huma-
na, a venenosa agressividade do esprito maligno da maioria das pessoas.
E assim que algumas raras boas vontades lcidas que tiveram que se debater
aqui na terra se vem, em certas horas do dia ou da noite, no fundo de certos
estados de pesadelo autnticos e despertos, cercados pela formidvel suco, pela
formidvel opresso tentacular de uma espcie de magia cvica que logo surgir
a descoberto nos costumes.
Em face dessa sujeira unnime, que de um lado tem o sexo e de outro,
por sinal, a missa6 ou certos ritos psquicos como base ou ponto de apoio, no
h delrio algum em passear noite com um chapu com doze velas atadas, para
pintar ao vivo uma paisagem7,
pois como o pobre Van Gogh haveria de fazer para se iluminar?, como
outro dia notava com tanta justeza nosso amigo, o ator Roger Blin.
Quanto mo queimada, trata-se de herosmo puro e simples,
quanto orelha cortada, trata-se de lgica direta,
e repito,
um mundo que dia e noite, e cada vez mais, come o incomvel,
para levar sua vontade m aos seus fins,
s tem, nesse ponto,
que calar a boca.
Traduo de Slvia Fernandes e Maria Lcia Pereira

POST-SCRIPTUM*

Van Gogh no morreu por um estado de delrio prprio,


mas por ter sido corporalmente o campo de um problema em torno do
qual, desde as origens, se debate o esprito inquo desta humanidade.
O do predomnio da carne sobre o esprito, ou do corpo sobre a carne,
ou do esprito sobre ambos.

e houve um a resptito de Van Gogh.


A conjuno inicial, que tem aqui valor de reforo, deve ter sido esquecida por ocasio do trans-
porte de (C) para (K). Como em todos os casos duvidosos, pareceu-nos prefervel seguir a lio do ma-
nuscrito.
6. Erro de impresso na edio K, que traz a massa, enquanto (Q e {K) do a missa, lio confir-
mada, alis, pelo que segue: ou certos ritos psquicos.
7. Antonin Artaud refuta aqui um dos argumentos sustentados pelo doutor Beer em seu artigo:
"Sua Loucura"?
8. Como j indicamos, esse PostScriptum foi ditado alguns dias depois do envio do manuscrito
ao editor, por volta de 10 de maro de 1947 aproximadamente.
262
LINGUAGEM E VIDA

E qual , nesse delrio, o lugar do eu humano?


Van Gogh procurou o seu durante toda a vida com uma energia e uma
determinao estranhas,
e no se suicidou num acesso de loucura, no transe de no alcan-lo,
mas ao contrrio, tinha acabado de alcan-lo e de descobrir o que ele era
e quem ele era, quando a conscincia geral da sociedade, para puni-lo por ter se
desprendido dela,
o suicidou.
E isto aconteceu9 com Van Gogh como sempre acontece, habitualmente,
por ocasio de uma bacanal, de uma missa, de uma absolvio, ou de qualquer
outro rito de consagrao, de possesso, de sucubao ou de incubao.
Ela se introduziu, portanto, em seu corpo,
esta sociedade
absolvida,
consagrada,
santificada
e possessa,
apagou nele10 a conscincia sobrenatural que acabava de adquirir, e, como
uma inundao de corvos negros nas fibras de sua rvore interna,
submergiu-o num ltimo torvelinho,
e, tomando seu lugar,
matou-o.
Pois a lgica anatmica do homem moderno jamais ter podido viver,
nem pensar viver11, a no ser como possesso.

Traduo de Slvia Fernandes e Maria Lcia Pereira

9. A lio da edio K: E isto acontecia errada. Reproduz um transporte mal feito de (C) para
(A). Restabelecemos a lio de (Q: E isto aconteceu...
10. Ela introduziu-se, portanto, em seu corpo, apagou nele... (C) e (K). As cinco linhas intercaladas
no incio da frase foram acrescentadas por Antonin Artaud quando ele corrigiu as primeiras provas. O
papel anexado s provas, no qual ele colocou esse acrscimo, foi conservado. O prprio acrscimo
apresenta uma correo. Sua forma inicial era:
esta sociedade
absolvida
consagrada,
delirante
e possessa.
11. Tambm aqui a forma da edio K reproduz um transporte errado de (Q para (K): nem pen-
sado viver,... Ns restabelecemos a lio de (C): nem pensar viver,...
VAN GOGH. Q SUICIDADO DA SOCIEDADE 263

O SUICIDADO DA SOCIEDADE

A pintura linear pura12 me deixava louco h muito tempo, quando encon-


trei Van Gogh que pintava no linhas ou formas, mas coisas da natureza inerte
como que em plenas convulses.
E inertes13.
Como que sob a terrvel invectiva desta fora de inrcia da qual todos
falam com meias palavras, e que jamais se tornou to obscura como quando a
terra toda e a vida presente se combinaram para elucid-la14.
Ora, s bordoadas, realmente s bordoadas que Van Gogh atinge sem
cessar todas as formas da natureza e os objetos.
Cardadas pelo prego de Van Gogh,
as paisagens mostram sua carne hostil,
o mau humor de suas pregas estripadas15,
que no se sabe qual fora estranha, por outro lado, est metamorfoseando.

Uma exposio de quadros de Van Gogh sempre uma data na histria,


no na histria das coisas pintadas, mas simplesmente na histria histrica.
Pois no h fome, epidemia, exploso de vulco, tremor de terra, guerra,
que mude o rumo das mnadas do ar, que tora o pescoo cara torta de fama
fatum, o destino neurtico das coisas,
como uma pintura de Van Gogh - que sai para a luz do dia,
recompondo imediatamente a viso,
a audio, o tato,
o aroma,
nas paredes de uma exposio -
enfim lanada como nova na atualidade corrente, reintroduzida em circu-
lao.

12. O primeiro esboo dessa parte central, que serviu para Antonin Artaud nos ditar este texto,
foi escrito entre 8 e 15 de fevereiro de 1947, o que j um tempo bastante curto. Foi tudo isso que fez
com que Pierre Loeb dissesse que a obra havia sido escrita em duas tardes. A comparao deste primei-
ro esboo com o texto definitivo revela o considervel trabalho anterior feito a partir dele.
Uma parte do manuscrito foi oferecida por A. A. a Pierre Loeb, que em seguida deu-a a uma
amiga, que a cedeu, pouco depois, a um colecionador. Depois disso o documento passou de mo em
mo e ignoramos quem seu atual proprietrio. Felizmente ele nos foi enviado por Pierre Loeb em
1948, antes que ele se separasse dele, e ns pudemos ento obter uma cpia do mesmo.
13. Aqui restabelecemos o plural do manuscrito: E inertes. O singular que consta da lio da
edio K, reproduz um mau transporte em (C), do qual A. A. no deve ter se apercebido, corrigindo o
exemplar (K).
14. ...que a terra toda ea vida presente recomearam a falar. (Cj
15. O mau humor de suas pregas agitadas (Q e (K). Lio que igual do manuscrito. Ao corri-
gir as primeiras provas A. A. transformou agitadas em estripadas (aventes em ventres).
64 LINGUAGEM E VIDA

Na ltima exposio de Van Gogh, no Palais de 1'Orangerie, no esto


todas as grandes telas do infeliz pintor. Mas, entre aquelas que esto ali, h
desfiladeiros giratrios constelados de tufos de plantas de carmim, caminhos ocos
encimados por um teixo, sis violceos girando sobre feixes de trigo de ouro
puro, Pai Tranqilo16 e retratos de Van Gogh por Van Gogh,
para fazer lembrar de que srdida simplicidade de objetos, de pessoas, de
materiais, de elementos,
Van Gogh extraiu essas espcies de cantos de rgo, esses fogos de artifcio,
essas epifanias atmosfricas, essa "Grande Obra", enfim, de uma sempiterna e
intempestiva transmutao.

Esses corvos pintados dois dias antes de sua morte no lhe abriram, mais
que suas outras telas, a porta de uma certa glria pstuma, mas abrem pintura
pintada, ou melhor, natureza no-pintada, a porta oculta de um alm possvel,
de uma realidade permanente possvel atravs da porta aberta por Van Gogh de
um enigmtico e sinistro alm.
No comum ver um homem, com o tiro que o matou no ventre, cobrir
uma tela de corvos negros, tendo abaixo uma espcie de plancie lvida talvez,
vazia, de qualquer forma, onde a cor de borra de vinho da terra se confronta
violentamente com o amarelo sujo do trigo.
Mas nenhum outro pintor17, a no ser Van Gogh, saberia encontrar, para
pintar seus corvos, esse negro de trufas, esse negro de "rico festim" e, ao mesmo
tempo, como que excremencial das asas18 dos corvos surpreendidos pelo claro
descendente do crepsculo.
E, embaixo, de que se queixa a terra sob as asas dos corvos faustos, faustos
apenas para Van Gogh, sem dvida e, por outro lado, faustoso augrio de um
mal que j no o atingir?
Pois ningum, at ento, havia como ele transformado a terra19 nessa roupa
suja retorcida de vinho e empapada de sangue.

16. Quando ns acompanhamos A. A. a Orangerie, uma falsa recordao fez com que chams-
semos "O Pai Tanguy" (n 71 do catlogo, tela 0,92 x 0,73, Perodo de Paris, Museu Auguste Rodin,
Paris) de O Pai Tranqilo. Quando ele nos ditou essa passagem, ns assinalamos nosso erro. Ele nos
respondeu que ela no era desprovida de sentido e que a denominao Pai Tranqilo convinha, de
qualquer modo, ao personagem tal como foi pintado por Van Gogh e que queria mant-la.
17. Nenhum outro pintor... (Q e (A). Como a impresso das primeiras provas trazendo as corre-
es de A. A. foram conservadas, fcil deduzir que as outras modificaes em seu texto foram feitas
por ocasio das segundas provas, tais como esto aqui. Como a maioria das correes foi feita por oca-
sio das segundas provas, por necessidade de simplificao mencionaremos apenas quando elas estive-
rem presentes desde as primeiras provas.
A tela descrita aqui , evidentemente, a obra talvez mais clebre de Van Gogh: Campos de Trigo com
Corvos (n 172 do catlogo, tela 0,505 x 1,05, Auvers, julho 1890, coleo V. W. Van Gogh, Laren).
18. ...de trufas, este negro como que excremencial das asas... (C) e (A)
19. Ningum at a havia transformado a terra... (Q e (A)
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 265

O cu do quadro muito baixo, esmagado,


violceo como as margens de um raio.
A tenebrosa franja inslita do vazio se elevando aps o relmpago.
Van Gogh soltou seus corvos como os micrbios negros de seu bao de
suicida, a poucos centmetros do alto e como se viessem por baixo da tela,
seguindo a negra cicatriz da linha onde o adejar de sua rica plumagem faz
pesar, sobre o turbilho da tempestade terrestre, as ameaas de uma sufocao
vinda do alto.
E apesar disso todo o quadro rico.
Rico, suntuoso e calmo, o quadro.
Digno acompanhamento para a morte daquele que, em vida, fez girar tantos
sis brios sobre tantos montes de feno rebeldes e que, desesperado, um tiro
no ventre, no soube deixar de inundar de sangue e de vinho uma paisagem,
molhar a terra com uma ltima emulso, ao mesmo tempo alegre e tenebrosa,
com gosto de vinho azedo e vinagre talhado.
E por isso que o tom da ltima tela pintada por Van Gogh, ele que, por
outro lado, nunca ultrapassou a pintura, consegue evocar o timbre abrupto e
brbaro do drama elizabetano mais pattico, passional e apaixonado.
isto que me toca mais em Van Gogh, o maior pintor de todos os pintores,
e que, sem ir alm do que se fala, e que a pintura, sem sair do tubo, do pincel,
do en-quadramento do tema e da tela para recorrer anedota20, narrativa, ao dra-
ma, ao de imagens, beleza intrnseca do assunto ou do objeto, conseguiu
apaixonar a natureza e os objetos de tal forma que qualquer conto fabuloso de Edgar
Poe, Herman Melville, Nathanal Hawthorne, Grard de Nerval, Achim d'Arnim
ou Hoffmann no supera, no plano psicolgico e dramtico, suas telas de quatro
cntimos,
quase todas as suas telas, alis, e como que de propsito, de medocre
dimenso.

Uma lamparina acesa sobre uma cadeira, uma poltrona de palha verde
tranada,
um livro sobre a poltrona,
e eis o drama revelado.
Quem vai entrar?
Ser Gauguin ou algum outro fantasma?

A lamparina acesa sobre a poltrona de palha indica, ao que parece, a linha


de demarcao luminosa que separa as duas individualidades antagnicas de Van
Gogh e Gauguin.

20. ...e que a pintura, sem recorrer jamais a. anedota,... (C) e (A)
266 LINGUAGEM E VIDA

O motivo esttico de sua divergncia no ofereceria, talvez, se o contsse-


mos, grande interesse, mas devia indicar, entre as duas naturezas, de Van Gogh
e Gauguin, uma ciso humana profunda.
Creio que Gauguin achava que o artista deve buscar o smbolo, o mito,
ampliar as coisas da vida at o mito,
enquanto Van Gogh achava que preciso saber deduzir o mito das coisas
mais terra a terra da vida21.
No que, penso eu, ele tinha absoluta razo.
Pois a realidade terrivelmente superior a qualquer histria, a qualquer
fbula, a qualquer divindade, a qualquer surrealidade.
Basta ter o gnio de saber interpret-la.
O que nenhum pintor antes do pobre Van Gogh havia feito22,
o que nenhum pintor voltar a fazer depois dele,
pois acredito que desta vez,
hoje mesmo,
agora,
neste ms de fevereiro de 1947,
a prpria realidade,
o mito da prpria realidade, a prpria realidade mtica que est se incor-
porando23.
Assim, ningum depois de Van Gogh soube pr em movimento o grande
cmbalo, o acorde sobre-humano, perpetuamente sobre-humano, seguindo a or-
dem rechaada na qual ressoam os objetos da vida real,
desde que se saiba ter ouvido suficientemente aberto para escutar a elevao
de seu macaru.
E assim que a luz da lamparina ressoa, que a luz da lamparina acesa sobre
a poltrona de palha verde ressoa como a respirao de um corpo amante diante
do corpo de um doente adormecido.
Soa como uma estranha crtica, um julgamento profundo e surpreendente cuja
sentena parece que Van Gogh nos deixar presumir mais tarde, bem mais tarde, no
dia em que a luz violeta da poltrona de palha tiver acabado de submergir o quadro.
E no se pode deixar de notar24 esta incisao de luz lils que come as barras
da grande poltrona turva, da velha poltrona encarquilhada de palha verde, ainda
que no se possa, de imediato, not-la.
Pois o foco de luz est como que colocado alm e sua origem estranhamente
obscura, como um segredo do qual apenas Van Gogh tivesse guardado a chave25.

21. ...as coisas mais comuns da vida. (Q


22. O que nenhum pintor antes de Van Gogh havia feito,... (C) e (K)
23. ...que est se completando (C)
24. Pois no se pode deixar de notar... (C) e (K)
25. A origem obscura, quero dizer que ela faz parte de um segredo do qual apenas Van Gogh soube
guardar a chave. (Q
A Poltrona de Gauguin, a que se refere esse longo trecho, fez parte da exposio da Oran-
VAN GOGH, O SUICIDADO DA SOCIEDADE 267

E se Van Gogh no tivesse morrido aos 37 anos? No recorro Grande


Carpideira26 para que me diga de que supremas obras-primas a pintura teria sido
enriquecida,
pois no posso, depois dos Corvos, acreditar que Van Gogh viesse a pintar
mais algum quadro.
Penso que ele morreu aos 37 anos porque tinha, infelizmente, chegado
ao fim de sua fnebre e revoltante histria de possudo por um esprito ma-
lfico.
Pois no foi por ele, pelo mal de sua prpria loucura, que Van Gogh
abandonou a vida.
Foi sob a presso do esprito malfico que, dois dias antes de sua morte,
passou a chamar-se doutor Gachet, psiquiatra improvisado, e que foi a causa
direta27, eficaz e suficiente de sua morte.
Lendo as cartas de Van Gogh a seu irmo, adquiri a convico firme e
sincera de que o doutor Gachet, "psiquiatra", detestava, na realidade, Van Gogh,
pintor, e que o detestava como pintor, mas acima de tudo como gnio.
quase impossvel ser mdico e honesto, mas crapulosamente impossvel
ser psiquiatra sem ao mesmo tempo estar marcado pela mais indiscutvel loucura:
a de no poder lutar contra esse velho reflexo atvico da turba, e que faz de
todo homem de cincia aprisionado na turba uma espcie de inimigo nato e
inato de todo gnio.
A medicina nasceu do mal, se que no nasceu da doena ou, pelo con-
trrio, no provocou e criou inteiramente a doena para dar a si uma razo de
ser; mas a psiquiatria nasceu da turba vulgar dos seres que quiseram preservar o
mal como fonte da doena e que assim extirparam de seu prprio nada uma
espcie de Guarda Sua para arrancar na base o impulso de rebelio reivindica-
tria que est na origem do gnio28.
H em todo demente um gnio incompreendido, cuja idia que luzia na
cabea provocou medo, e que s no delrio pode encontrar uma sada para os
estrangulamentos que a vida lhe prepara.

gerie (n 122 do catlogo, tela 0,375 x 0,325, Aries, novembro de 1888, coleo V. W. Van Gogh,
Laren).
26. A lio do manuscrito d: Se Van Gogh no tivesse morrido aos 37 anos eu no recorreria
grande carpideira... O fato de A. A. ter ditado o presente - eu no recorro, mais afirmativo, indica que
ele quis empregar essa no-recorrncia como certeza. Portanto, a proposio introduzida por se no
condicional, mas sim uma interrogao absoluta. Parece provvel, portanto, que ele tenha ditado um
ponto de interrogao e no uma vrgula ao final desta proposio, pontuao que no foi transporta-
da corretamente em (Q porque mal compreendida pela copista.
27. ...que, h dois dias de sua morte, passou a chamar-se, humanamente falando, o doutor Gachet,
psiquiatra, e que foi a causa direta... (Q
28. ..a doena e que assim fomentou sua guarda sua para lutar contra este impulso de liberao
reivindicatria que est na origem do gnio. {)
268 LINGUAGEM E VIDA

O doutor Gachet no dizia a Van Gogh que estava ali para consertar sua
pintura (como me disse o doutor Gaston Ferdire, mdico chefe do manicmio
de Rodez, que estava ali para consertar minha poesia), mas o mandava pintar ao
vivo, enterrar-se numa paisagem para fugir ao mal de pensar.
No entanto, a partir do momento em que Van Gogh virava a cabea, o
doutor Gachet lhe fechava o interruptor do pensamento.
Como se no estivesse fazendo por mal, mas com um daqueles franzires
de nariz depreciativos de um algum andino, onde todo o inconsciente bur-
gus da terra inscreveu a velha fora mgica de um pensamento cem vezes re-
calcado.
Ao proceder assim, no era apenas o malefcio do problema que o doutor
Gachet lhe proibia,
mas a semeadura sulfurosa,
o terror do prego girando na garganta da nica passagem,
com que Van Gogh,
tetanizado,
Van Gogh, desestabilizado sobre o redemoinho da respirao,
pintava.
Pois Van Gogh era29 uma terrvel sensibilidade.
Para se convencer disso, basta olhar seu rosto, sempre como que ofegante
e tambm, sob certos ngulos, enfeitiante, de aougueiro.
Como o de um antigo aougueiro tranqilizado e agora aposentado dos
negcios, este rosto30 mal iluminado me persegue.
Van Gogh representou a si mesmo numa grande quantidade de telas e, por
mais bem iluminadas que fossem, sempre tive a penosa impresso de que as
haviam obrigado a mentir sobre a luz, que se havia roubado a Van Gogh uma
luz indispensvel para que ele cavasse e traasse em si seu caminho.
E este caminho, no era o doutor Gachet, sem dvida, o mais capaz de
indic-lo.
Mas, como disse, h em todo psiquiatra vivo um repugnante e srdido
atavismo que faz com que ele enxergue em cada artista, em todo gnio sua
frente, um inimigo.
E eu sei que o doutor Gachet deixou na histria, diante de Van Gogh,
de quem ele tratava e que acabou por suicidar-se em sua casa, a lembrana
de seu ltimo amigo na face da terra, de uma espcie de consolador provi-
dencial.

29. ...para fugir ao mal de pensar. At aqui est perfeito e no h nada a reprovar, trata-se mesmo de
uma teraputica altamente concebida e admiravelmente aplicada. Mas Van Gogh era... (Q
30. ..aposentado dos negcios, resguardado, por assim dizer, arrancando enfim a circulao, este
rosto... (C)
VAN GOGH. O SUICID A D o DA SOCIEDADE 269

Penso, entretanto, mais que nunca, que foi ao doutor Gachet, de Auvers-
sur-Oise, que Van Gogh deveu, naquele dia, o dia em que se suicidou em Au-
vers-sur-Oise,
deveu, digo, deixar a vida -
pois Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior, o que lhe
permite, em todas as circunstncias, enxergar mais longe, infinita e perigosamente
mais longe que o real imediato e aparente dos fatos.
Quero dizer, da conscincia que a conscincia tem por hbito guardar deles.
No fundo de seus olhos", como que depilados de aougueiro, Van Gogh
se entregava ininterruptamente a uma dessas operaes de alquimia sombria que
tomaram a natureza por objeto e o corpo humano32 por vasilhame ou crisol.
E sei que o doutor Gachet sempre achou que isto o fatigava.
O que no era nele resultado de um simples cuidado mdico,
mas a confisso de uma inveja to consciente quanto inconfessada.

Pois Van Gogh tinha chegado a esse estgio do iluminismo onde o pensa-
mento em desordem reflui diante das descargas invasoras
e onde pensar j no consumir-se,
e j no ,
e onde nada mais resta seno juntar corpos, quero dizer,

AMONTOAR CORPOS.

No mais o mundo do astral33, aquele da criao direta que assim


retomado, mais alm da conscincia e do crebro.
E nunca vi um corpo sem crebro fatigar-se por causa de telas inertes.
Telas do inerte, essas pontes, esses girassis, esses teixos, essas colheitas de
azeitonas, essas ceifas de feno34. Elas no se movem mais.
Esto congeladas.

31. ...que a conscincia tem por hbito conservar deles.


No fundo desses olhos... (C)
32. Ao ditar essa passagem, A. A. que ainda no tinha podido encontrar uma formulao satis-
fatria, nos pediu que deixssemos um espao em branco que ele preencheria posteriormente, o que,
alis, a copista fez em (C): ...que tomaram a natureza por objeto e[...]o corpo humano... A questo foi re-
solvida por ele, a menos que o tenha sido pelo editor, ao rever a cpia antes de envi-la para a impres-
so, pela simples supresso da conjuno e.
33. ...que isto o fatigava.
E que Van Gogh havia chegado a esse estgio do iluminismo em que se abandona o pensamento e
onde so as prprias necessidades que falam, como catapultas, de corpos postos a nu.
No mais o mundo do astral,... (C)
Assinalamos que (A) no apresenta nem itlico nem maisculas. Foi certamente ao corrigir as se-
gundas provas que A. A. deve ter indicado essas mudanas tipogrficas.
34. ...essas colheitas das azeitonas, essas ceifas de feno. (C)
270 LINGUAGEM E VIDA

Mas quem poderia sonh-las mais duras sob o golpe do cepo em carne viva
que arrancou deles o impenetrvel estremecimento?35
No, doutor Gachet, uma tela nunca cansou ningum. So foras de fu-
rioso, que repousam sem suscitar o movimento.
Eu tambm sou como o pobre Van Gogh: no penso mais, mas dirijo cada
dia mais de perto enormes ebulies internas e gostaria de ver um terapeuta
qualquer vir me repreender por eu me cansar.

Deviam a Van Gogh uma certa soma em dinheiro, a respeito da qual, a


histria nos conta, Van Gogh, j h vrios dias, se inquietava.
E uma inclinao das naturezas elevadas, sempre um ponto acima do real,
explicar tudo pela m conscincia.
Acreditar que nada, jamais, se deve ao acaso e que tudo o que acontece de
mal acontece por causa de uma m vontade consciente, inteligente e combinada36.
O que os psiquiatras no acreditam jamais.
O que os gnios acreditam sempre.
Quando fico doente, porque estou enfeitiado, e no posso acreditar que
estou doente se no acredito, por outro lado, que algum tenha interesse em me
roubar a sade e que tire proveito de minha sade.
Van Gogh tambm acreditava que estava enfeitiado e dizia isso.
Quanto a mim, acredito, convenientemente, que ele estava e um dia direi
por onde e como.
E o doutor Gachet foi aquele grotesco crbero, aquele sanioso e purulento
crbero, palet azul e glacial camisa branca37, colocado diante do pobre Van
Gogh para lhe roubar todas as suas idias sadias. Pois, se esta maneira de ver
que sadia fosse unanimemente difundida, a sociedade no poderia mais viver,
mas sei quais so os heris da terra que encontrariam a sua liberdade.
Van Gogh no soube livrar-se a tempo dessa espcie de vampirismo da
famlia interessada em que o gnio de Van Gogh pintor se limitasse a pintar,
sem ao mesmo tempo exigir a revoluo indispensvel expanso38 corporal e
fsica de sua personalidade de iluminado.

35. Mas quem poderia sonh-las mais duras sob o golpe do sepo em carne viva que arrancou deles o
movimento?
36. ...uma m vontade inteligente e combinada (C)
37. O Retrato do Dr. Gachet exposto na Orangerie (n 141 do catlogo) era uma gua-forte
(0,175 x 0,145, Auvers, maio 1890, Cabinet des Estampes, Amsterd). A. A. alude aqui ao Retrato do
Dr. Gachet (tela 0,66 x 0,57), junho 1890, Frankfurt-sur-le-Mein, Stadelsches Kunstinstitut), cuja repro-
duo em cores figura em Viccnt Van Gogh (Edies do Phaidon, Viena, 1937.), rplica ligeiramente di-
ferente daquele que est exposto no Museu do Louvre (tela, 0,68 x 0,57, princpio de junho de 1890).
38. ...sem ao mesmo tempo exigir socialmente a ordem das coisas indispensvel a expanso... (Q
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE

E quantos daqueles concilibulos fedorentos das famlias com os mdicos-


chefes dos asilos de loucos houve entre o doutor Gachet e Theo, o irmo de
Van Gogh, a respeito do doente que eles lhes trouxeram.
- Vigiem-no, para que ele no tenha mais todas essas idias; oua, disse o
doutor, preciso deixar de lado todas essas idias; isso lhe faz mal, se voc
continuar a pensar nisso, ficar internado para o resto da vida.
- De jeito nenhum, senhor Van Gogh, volte a si, vejamos, o acaso, e
depois, nunca foi bom querer decifrar assim os segredos da Providncia. Eu
conheo o senhor Fulano de Tal, um homem muito bom, o seu esprito de
perseguio que o faz acreditar novamente que ele pratica magia em segredo.
- Prometeram ao senhor pagar-lhe esta soma, vo lhe pagar. O senhor no
pode continuar assim teimando em atribuir este atraso m vontade.
So assim as conversas mansas de psiquiatra honesto que parece que no
so nada, mas que deixam no corao como que o rastro de uma pequena lngua
negra, a pequena lngua negra andina de uma salamandra envenenada.
E no preciso mais, s vezes, para levar um gnio a se suicidar.
H dias que o corao sente to terrivelmente o impasse, que recebe
como um golpe de bambu sobre a cabea, esta idia que no poder mais pr
de lado.
Pois foi, de fato, exatamente aps uma conversa com o doutor Gachet que
Van Gogh, como se nada houvesse, entrou em seu quarto e se suicidou.
Eu mesmo passei nove anos num asilo de loucos e nunca tive a obsesso
do suicdio, mas sei que cada conversa com um psiquiatra, de manh, no horrio
de visita, me dava vontade de me enforcar, ao sentir que no poderia esgan-lo.
E Theo talvez fosse materialmente muito bom para seu irmo, mas isso
no impede que o considerasse delirante, iluminado, alucinado, e se esforasse,
ao invs de acompanh-lo em seu delrio,
, em acalm-lo".
Que importa que ele tenha morrido depois de desgosto?
que Van Gogh mais prezava no mundo era sua idia de pintor, sua
terrvel idia fantica, apocalptica, de iluminado.
De que o mundo devia organizar-se sob o comando de sua matriz, retomar
seu ritmo comprimido, antipsquico, de oculta festa em praa pblica e, diante
de todo mundo, [ser40] recomposto no superaquecimento do crisol.

39. ...em lugar de acreditar nele e tornar-se seu amigo confidente


de acalm-lo (C)
...em lugar de acreditar nele,
de acalm-lo. (K)
40. Este infinitivo deve ter sido esquecido em (C), depois em (K), e este esquecimento repercuti-
r na lio da edio K. Entretanto, realmente parece que recomposto no super-aquecimcnto do crisol
no pode ser ligado ao ritmo, mas se aplica ao mundo:
Que o mundo deveria reorganizar-se sob o comando de sua matriz, retomar seu ritmo [...] e[...] ser re-
composto no superaquecimento do crisol.
272 LINGUAGEM E VIDA

Isto quer dizer que o apocalipse, um apocalipse consumado se desenvolve


embrionariamente nesta hora nas telas do velho Van Gogh martirizado, e que
a terra tem necessidade dele para dar coices com a cabea e os ps41.
Ningum jamais escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inven-
tou a no ser para sair, realmente, do inferno.
E prefiro, para sair do inferno, as naturezas desse tranqilo convulsionrio
do que as efervescentes composies de Brueghel, o Velho, ou de Jrme Bosch
que, diante dele, no passam de artistas, onde Van Gogh no passa de um pobre
ignaro preocupado em no se enganar.
Mas como fazer um cientista entender que h algo de definitivamente des-
regrado no clculo diferencial, na teoria dos quanta, ou nos obscenos e to in-
genuamente litrgicos ordlios da precesso dos equincios, por causa daquele
acolchoado42 rosa camaro que Van Gogh faz espumar to suavemente num lugar
eleito de seu leito, por causa da pequena insurreio43 verde veronese, azul mo-
lhado, barca diante da qual uma lavadeira de Auvers-sur-Oise est se levantando
aps o trabalho, por causa tambm daquele sol fixado44 por trs do ngulo cin-
zento do campanrio da aldeia, pontiagudo, l embaixo, no fundo; em frente,
aquela enorme massa de terra45 que, no primeiro plano da msica, procura a
onda onde se congelar.

41. A. A. ditou assim: ...que a terra tem necessidade dele para pegar fogo da cabea aos ps. Expres-
so que vem reforar nossa convico de que mesmo o mundo que devia ser recomposto no super-aque-
cimente do crisol (cf. nota 40). Alm disso, esta lio est muito prxima da lio inicial (cf. p. 181, 4o
pargrafo): ...que a terra teria, um belo dia, pegado fogo da cabea aos quatro ps. Ora, um erro de trans-
crio havia dado em (C): ...para pegar voto da cabea e dos p. Erro corrigido em (K) pela simples su-
presso do termo falho: ...para fazer da cabea aos ps. Lio ainda mantida por ocasio da correo das
primeiras provas (prova impressa dessa passagem foi conservada) e que ser modificada na poca das se-
gundas provas para ...para dar coices com a cabea e os ps.
42. ...da precesso dos equincios atravs deste acolchoado. (C) e (A)
43. ...de seu leito, pela pequena insurreio... (C)
44. ..jtps o trabalho, tambm por causa deste sol fixado... (C) e (K)
45. A lio da edio K d aqui: ...l embaixo, ao fundo dessa enorme massa de terra... Lio que
no corresponde quela que foi ditada, mas que o copista transcreveu esquecendo de colocar certas
pontuaes: l embaixo, ao fundo, diante dessa enorme massa de terra... (Q e (/). O exame da prova im-
pressa conservada desta passagem mostra-nos que foi o impressor que, em razo deste esquecimento de
pontuao, deve ter acreditado em um erro de impresso da copista e tomado a iniciativa de substituir
diante por de.
Ora, se olharmos atentamente os trs quadros de Van Gogh descritos aqui por A. A., percebe-
mos que diante realmente a lio correta. Esses trs quadros so: Quarto de Dormir de Van Gogh em
Aries (n 152 do catlogo da exposio, tela 0,72 x 0,90, Saint-Rmy, setembro de 1889, coleo de V.
W. Van Gogh, Laren); A Ponte do Ingls em Aries (situada erroneamente em Auvers-sur-Oise), sendo
que A. A. utilizou para descrever o quadro exposto na Orangene (n 109 do catlogo, tela, 0,525 x
0,65, Aries, maro-abril 1888, Ryksmuseum Krller-Mller) a reproduo em cores de uma aquarela
da qual ele a rplica e que ele olhava enquanto ditava esta passagem (0,30 x 0,30, maro de 1988, Ber-
lim, Baron von Simolin), que em Vicent Van Gogh (Ed. do Phaidon, op. cit) est em frente a uma re-
produo em negro e branco do terceiro quadro descrito: Ia Roubine du Roi (tela 0,73 x 0,60, junho de
1888, Hamburgo, Kunsthalle), quadro que no figurava na exposio. E neste ltimo quadro que se
VANGOGH, O SUICIDADO DA SOCIEDADE 273

o vio profe
o vio proto
o vio loto
o thth

Para que descrever um quadro de Van Gogh! Nenhuma descrio tentada


por qualquer outro poder valer o simples alinhamento de objetos naturais e de
tintas ao qual se entrega o prprio Van Gogh, to grande escritor quanto grande
pintor e que, a propsito da obra descrita, d a impresso da mais estonteante
autenticidade.

pode ver ao fundo aponta de um campanrio, com um sol atrs que pode, com efeito, parecer parafusa-
do; e na frente uma massa avana em direo ao olho que olha, uma massa de gua, aquela da roubine
que, por efeito do negro e branco, pode tambm ser vista como uma massa enorme de terra, uma esp-
cie de terra lamacenta, lquida, qual A. A. devolve sua liquidez no final da frase: ...que, no primeiro
plano da msica, procura a vaga onde se congelar.
O que desenhar? Como que se chega a isso? E a ao de abrir uma passagem
atravs de um muro de ferro invisvel, que parece se encontrar entre o que se sente
e o que se pode. Como se deve atravessar esse muro, pois de nada serve golpe-lo
fortemente; deve-se minar esse muro e atravess-lo com o auxilio de uma lima, len-
tamente e com pacincia, a meu ver46.

8 de setembro de 1888

No meu quadro Caf Noite, procurei expressar que o caf um lugar onde
possvel arruinar-se, ficar louco, cometer crimes. Enfim, procurei, atravs de con-

46. Ao ditar este texto A. A. tinha feito uma indicao para que se reservasse aqui uma ou vria
pginas nas quais ele queria inserir excertos da correspondncia de Van Gogh. Dentre as cartas que le-
mos para ele na obra citada - Cartas de Vinccnt Van Gogh a seu irmo Tho -, escolheu:
Io um excerto da cana de n 237, no datada, mas escrita de La Haye em 1882-1883. 2o um ex-
certo da carta de n 534, escrita de Aries em 8 de setembro de 1888; 3o a carta de n 651 escrita de Au-
vers-sur-Oise em 23 de julho de 1890. A seu pedido, ns copiamos novamente esses dois excertos e essa
carta em duas folhas separadas, que remetemos em seguida ao editor K. Este, providenciando a datilo-
grafia da carta para imprimi-la, infelizmente inverteu a ordem das cartas e disps sua cpia de tal
modo que o excerto no datado da carta 237 foi impresso em seguida ao excerto da carta 651, de modo
que o leitor tinha a impresso que esses dois excertos eram uma nica carta datada de 8 de setembro de
1888. Alm disso, a indicao colocada por A. A. nas primeiras provas, pedindo o itlico para as cartas
de Van Gogh, no foi respeitada.
VAN GOGH, O SUICIDADO DA SOCIEDADE _275

trastes de rosa esmaecido e vermelho sangue e borra de vinho, de suave verde Lus
XV, e veronese, contrastando com os verde-amarelos e os verde-azuis duros, tudo
isso numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre plido, exprimir como que o
poder das trevas de uma tabema. E no entanto, sob uma aparncia de graa japonesa
e a bonomia do Tartarin...

23 de julho de 1890

Talvez voc veja este croqui do jardim de Daubigny - uma de minhas telas
mais queridas -, junto a ele um croqui de velhas palhas e os croquis de duas telas de
trinta representando imensos trigais depois da chuva...
O jardim de Daubigny - primeiro plano de grama verde e rosa. A esquerda
um arbusto verde e lils e um tronco com folhagens esbranquiadas. No meio um
canteiro de rosas, direita uma cerca, um muro e, acima do muro, uma aveleira
de folhagem violeta. Depois uma moita de lilases, uma fileira de tlias amarelas
arredondadas, a prpria casa ao fundo, rosa, com um telhado de telhas azuladas. Um
banco e trs cadeiras, uma figura negra com chapu amarelo e em primeiro plano
um gato preto. Cu verde-plido.
Como parece fcil escrever assim.
Pois bem, tentem ento e me digam se, no sendo o autor de uma tela de
Van Gogh, vocs poderiam descrev-la to simplesmente, secamente, objetiva-
mente, duradouramente, validamente, solidamente, opacamente, maciamente,
autenticamente e milagrosamente quanto nesta pequena carta47 dele.
(Pois o critrio, prego separativo, no uma questo de amplitude ou de
contrao, mas de simples fora48 pessoal do punho.)
Portanto no descreverei um quadro de Van Gogh depois de Van Gogh,
mas direi que Van Gogh pintor porque recoletou a natureza, porque como
que a retranspirou e fez suar, porque a aspergiu em feixes sobre suas telas, em
conjuntos monumentais de cores, a secular triturao de elementos, a pavorosa
presso elementar de apstrofes, de estrias, de vrgulas, de barras, das quais, depois
dele, no se pode mais acreditar que os aspectos naturais no sejam feitos.

E com quantas cotoveladas reprimidas49, quantos choques oculares e pes-


tanejos tomados ao natural, as correntes luminosas das foras que trabalham a

47. A expresso pequena carta remete cora muita preciso breve cana de 23 de julho de 1890,
o que a disposio da edio K no permite compreender.
48. ...de amplitude ou de penetrao, mas de simples fora... (C)
49. Quantas cotoveladas reprimidas... (Q
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 277

realidade tiveram que derrubar a barreira50 antes de serem finalmente recalcados,


e como que iados sobre a tela, e aceitos?

No h fantasmas nos quadros de Van Gogh, no h vises, no h aluci-


naes.
H a verdade trrida de um sol de duas horas da tarde.
Um lento pesadelo genesaco pouco a pouco elucidado.
Sem pesadelo e sem efeito.
Mas o sofrimento do pr-natal est ali.

H a reluzente umidade de uma pastagem, da haste de um trigal que est


prestes a ser extraditado51.
E do qual a natureza um dia prestar contas.
Assim como a sociedade prestar contas de sua morte prematura.

Um trigal inclinado ao vento, tendo acima as asas de um nico pssaro


pousado em vrgula52: qual o pintor, que no fosse estritamente pintor, poderia,
como Van Gogh, ter a audcia de atacar um tema de to desarmante simplici-
dade?

No, no h fantasmas nos quadros de Van Gogh, no h drama, no h


assunto e eu diria mesmo que no h nem objeto, pois o prprio motivo, o que ?
Seno algo como a sombra de ferro de um motete de uma inenarrvel
msica antiga53, como que o leitmotiv de um tema desesperado de seu prprio
assunto.
a natureza nua e pura vista exatamente como ela se revela, quando se
sabe chegar suficientemente perto dela.

50. Preferimos aqui voltar lio do manuscrito. Com efeito, o copista transcreveu por engano
em (Q correntes luminosas onde a lio inicial d as correntes luminosas. O editor acreditou que corren-
tes luminosas tinha a mesma funo que cotoveladas, choques e pestanejos e, em conseqncia, acrescen-
tou uma vrgula depois de realidade. A frase tornou-se ento incompreensvel; as correntes luminosas
na lio da edio K perdiam sua funo de sujeito de tiveram que derrubar.
51. ...da baste de um trigal que est l, prestes a ser extrado. (C)
Assinalamos aqui, como tambm algumas linhas a seguir, que a lio do manuscrito haste
(plant). A copista havia transcrito por engano plano em (Q. Ao corrigir seu exemplar, A. A. restabele-
ceu o final, correo que o editor j tinha transportado para (A), pensando provavelmente, de forma
incorreta, que a ortografia correta era plano, e que Artaud havia suprimido posteriormente o t que ele
acabara de acrescentar. O que faz com que a edio K traga por duas vezes a lio incorreta plano
(plan).
52. A. A. faz aluso aqui ao quadro intitulado Campos de Trigo (n 57 do catlogo, tela 0,54 x
0,645, Perodo de Paris, Coleo V. W. Van Gogh, Laren).
53. ...como no sei que motetes de uma inenarrvel msica antiga... (C) e (A)
278 ^ LINGUAGEM E VIDA

Testemunha esta paisagem de ouro fundido, de bronze derretido no antigo


Egito, onde um sol enorme se apoia em telhados to sacudidos de luz que pa-
recem estar em decomposio54.
E no conheo nenhuma pintura apocalptica, hieroglfica, fantasmtica
ou pattica que me d essa sensao de oculto estrangulada55, de cadver de um
hermetismo intil, com a cabea aberta, e que revelaria no cepo seu segredo.
Ao dizer isto, no estou pensando no Pai Tranqilo56, ou naquela funam-
bulesca alameda de outono onde passa, por ltimo, um velho alquebrado com
um guarda-chuva pendurado na manga, como o gancho de um trapeiro57.
Penso novamente em seus58 corvos de asas de um negro de trufas lustrosas.
Penso novamente em seu trigal: cabea de espiga sobre cabea de espiga, e
tudo est dito,
com, em frente, algumas cabecinhas de papoula suavemente semeadas, acre
e nervosamente aplicadas ali, e espalhadas, voluntria e iradamente pontuadas e
dilaceradas59.
S a vida sabe oferecer assim60 desnudamentos epidrmicos que falam sob
uma camisa desabotoada, e no sabemos por que o olhar se inclina esquerda
e no direita61, em direo ao montculo de carne crespa.
Mas assim e um fato.
Mas assim e est feito.

Oculto tambm seu quarto de dormir, to adoravelmente campons e se-


meado como que de um odor de conserva, os trigos que vemos fremir na pai-
sagem, ao longe, por trs da janela que os esconderia.

54. A. A. faz aluso aqui, muito provavelmente, a uma obra de Van Gogh que havia gravado es-
pecialmente em razo de seu enorme sol irradiante ao infinito em Vincent Van Gogh (Edies do Phai-
don, op. cit): As Santas Marias ([roseau] 0,43 x 0,60, Berlim, Coleo Sra. Margarete Mauthner).
55. A lio do manuscrito, que preferimos seguir, : esta sensao de oculto estrangulada. Por cau-
sa de um acordo incorreto, encontra-se tanto em (C) como em (K): esta sensao de oculto estrangulado.
E provvel que aqui o impressor tenha acreditado que se tratava de um erro de impresso, que ele cor-
rigiu de maneira interpretativa, o que o levou a esta lio errnea da edio K: esta sensao de oculta es-
tranheza.
56. Cf nota 16, p. 262.
57. Na realidade, no quadro de Van Gogh Os Aliscamps (n 120 do catlogo, tela, 0,71 x 0,91,
Aries, novembro de 1888, Ryksmuseum Krller-Mller), o homem de costas no est especialmente
curvado e usa seu guarda-chuva como uma bengala.
58. A lio da edio K reproduz aqui o demonstrativo [ces], certamente incorreto, de (Q; ns
restabelecemos o possessivo [ses] da lio manuscrita.
59. Campo sob um Cu Tempestuoso (n 170 do catlogo, tela, 0,50 x 1,00, Auvers, julho de
1890, Coleo V. W. Van Gogh, Laren).
60. Aqui um possessivo incorreto [ses] que (C) apresenta: a lio manuscrita d um demonstra-
tivo [ces], mas o erro foi corrigido em (K), que transforma esse possessivo em [des].
61. ...inclina esquerda mais que a direita...(Q
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 279

Camponesa, tambm, a cor do velho acolchoado, de um vermelho de me-


xilho, de ourio do mar, de camaro, de salmonete do Midi, de um vermelho
de pimento tostado.
E certamente foi culpa de Van Gogh que a cor do acolchoado de sua cama
fosse na realidade to perfeita, e no vejo que tecelo teria podido transplantar
sua inenarrvel tempera62, como Van Gogh soube transbordar do fundo do seu
crebro sobre uma tela o vermelho desta inenarrvel coberta.
E no sei quantos padres criminosos, sonhando diante de seu suposto es-
prito santo, o ouro cor de ocre, o azul infinito de um vitral com sua puta
"Maria"63, souberam isolar no ar, extrair das tetas maliciosas do ar, estas cores
sem cerimnia, que so todo um acontecimento, onde cada pincelada de Van
Gogh na tela pior que um acontecimento.
Uma vez isto resulta num quarto muito asseado, mas de um espelho de
ao de blsamo ou de aroma que nenhum beneditino conseguir encontrar para
preparar convenientemente seus lcoois de sade.
Uma outra vez isto resulta num simples feixe de palha esmagado por um
sol enorme64.

62. E no foi talvez culpa de Van Gogh que a cor do acolchoado de sua cama era na realidade to
perfeita, mas no creio, e no vejo que tecelo teria podido transplantar, da tela de Van Gogh para a reali-
dade, sua inenarrvel tempera... (C) e (K)
63. A. A. ditou assim: puta maria (maric) que , alm disso, a lio do manuscrito, precisando
que no era necessrio maiscula para maria, que se tornava assim uma espcie de adjetivo ambguo.
Foi isto que a copista transcreveu em (Q, mas confusa, acreditando sem dvida que se tratava de um
erro de ortografia, corrigiu em seguida sua datilografia acrescentando um r suplementar: arrependida
(marrie). O editor, retornando a (K) antes de pass-lo ao impressor, percebeu que arrependida (marric)
devia ser um erro, pois ele havia cercado essa palavra com um trao de lpis e marcado a linha na mar-
gem a fim de pedir esclarecimentos a A. A., que deve ter-lhe dito ento que a lio correta era o nome
da virgem. Foi nesse momento, sem dvida, que a palavra foi colocada entre colchetes e que, reescre-
vendo- sobre a palavra datilografada, o editor a dotou de uma maiscula, que no podemos saber se
foi ou no indicada por A. A.
64. Este pargrafo no existe nem em (Q nem em (K). Foi certamente acrescentado por A. A.
quando ele corrigia as segundas provas, mas parece que o lugar onde ele devia ter intercalado no foi
bem compreendido pelo impressor. A ordem inicial dos pargrafos nesta passagem se apresenta assim
em (C) e (K):
Uma vez, isto resulta...
Este quarto...
H aqueles brancos...
Ora, na edio K, depois do acrscimo desse pargrafo, encontra-se a seguinte ordem:
Uma vez, isto resulta
Este quarto...
Uma outra vez...
H aqueles brancos
Esta ordem levou a uma total desarticulao do texto, da qual o impressor parece ter se dado
conta, pois sentiu necessidade de colocar entre parnteses o pargrafo: Este quarto... Alm disso, o pa-
rgrafo: H aqueles brancos... foi impresso de modo bizarro, em caracteres muito pequenos, no alto de
uma pgina. A ordem que seguimos nos parece mais lgica. No quebra a ordem inicial do texto nem
280 LINGUAGEM E VIDA

Este quarto, com sua parede branca de prolas claras, da qual pende uma
spera toalha de rosto, como um velho amuleto campons, inacessvel e recon-
fortante, fazia pensar na Grande Obra.
H aqueles brancos de cal leves que so piores que antigos suplcios, e
jamais, em nenhuma outra tela, o velho escrpulo operatrio do pobre e grande
Van Gogh aparece como nesta.
Porque tudo em Van Gogh mesmo isso, o nico escrpulo65 do toque
surda e pateticamente aplicado. A cor plebia das coisas, mas to exata, to
amorosamente exata que no existe pedra preciosa que possa atingir sua ra-
ridade66.

Porque Van Gogh ter sido mesmo o mais verdadeiramente pintor de todos
os pintores, o nico a no querer ultrapassar a pintura67 como meio estrito de
sua obra, e mbito estrito de seus meios.
E o nico que, por outro lado, absolutamente o nico que ultrapassou
absolutamente a pintura, o ato inerte de representar a natureza para, nesta repre-
sentao exclusiva da natureza, fazer jorrar uma fora giratria, um elemento
arrancado em pleno corao.
Ele fez, sob a representao, brotar um ar, e nele encerrou um nervo68,
que no esto na natureza, que so de uma natureza e de um ar mais verdadeiros
que o ar e o nervo da verdadeira natureza.

Vejo, no momento em que escrevo estas linhas, o rosto vermelho ensan-


gentado do pintor vir at mim, numa muralha de girassis eviscerados,

interrompe a descrio do quadro Quarto de Dormir de Van Cogh em Aries (cf. nota 45, p. 270). Com
efeito, no pargrafo Este quarto... trata-se de um branco de prolas claras que lembra H aqueles brancos
de cal leve... Alm disso, est bem precisado neste pargrafo que se trata da mesma obra: como nesta
tela.
Articulao que prossegue no pargrafo seguinte: o velho escrpulo operatrio/ Porque tudo em
Van Gogh mesmo isso, o nico escrpulo...
O pargrafo que foi acrescentado durante as provas remete ao quadro Os Moinhos de Provena
(n 105 do catlogo, tela 0,73 x 0,92, Aries, junho de 1888, Ryksmuseum Krller-Mller).
65. Em (C) a copista repetiu por distrao tudo: Porque tudo em Van Gogh mesmo isso tudo, o
nico escrpulo..., erro no corrigido em (A), mas que o foi por ocasio da reviso dos originais. Ora, a
supresso do tudo no deve ter sido feita de modo correto na impresso, pois a lio da edio (K) d:
Porque Van Gogh mesmo isso tudo, o nico escrpulo... e ns preferimos voltar lio do manuscrito:
tudo em Van Gogh..., pois parece evidente que o nico escrpulo que tudo em Van Gogh. Assinala-
mos que a lio manuscrita o insigne escrpulo e que encaramos a possibilidade de uma m transcri-
o em (C) ou aquela de A. A. relendo mal seu prprio texto. Mas bem possvel que A. A. tenha
mudado o adjetivo por ocasio do ditado, nico reforando raridade, da prxima frase.
66. A lio da edio K reproduz aquela de (C) e (K) ...que no existem pedras preciosas que pos-
sam atingir sua raridade. Como o plural pode ser um erro de transcrio, preferimos restabelecer o sin-
gular da lio manuscrita.
67. ...o nico que no ultrapassou a pintura... (C) e (K):
68. Aqui h erros de impresso na edio K.
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 2iU

num formidvel braseiro de carves de jacinto opaco, e de capim de lpis-lzuli.


Tudo isso em meio a um bombardeio como que meterico de tomos que
se deixariam ver gro a gro,
prova que Van Gogh pensou suas telas como um pintor, claro, e unica-
mente como um pintor, mas que seria,
por isso mesmo
um msico formidvel.

Organista de uma tempestade interrompida e que ri na natureza lmpida,


pacificada entre duas tormentas, mas, como o prprio Van Gogh, esta natureza
mostra mesmo que est prestes a ir-se embora.
Podemos, aps t-la visto, voltar as costas a qualquer tela pintada, pois ela
nada mais tem a nos dizer. A tempestuosa luz da pintura de Van Gogh comea
suas sombrias recitaes na mesma hora em que deixamos de enxerg-la.

Nada alm de pintor, Van Gogh, e nada mais,


nada de filosofia, de mstica, de rito, de psicurgia ou de liturgia,
nada de histria, de literatura ou de poesia,
seus girassis de ouro brnzeo esto pintados69; esto pintados como giras-
sis e nada mais, mas para entender um girassol ao natural, preciso agora voltar
a Van Gogh, assim como para entender uma tempestade ao natural,
um cu tempestuoso,
uma plancie ao natural,
no se poder mais deixar de voltar a Van Gogh.

Caa uma tempestade assim no Egito ou nas plancies da Judia semita,


talvez estivesse escuro assim na Caldia, na Monglia ou nas montanhas
do Tibete, que no me consta que tenham mudado de lugar.
E, no entanto, ao olhar esta plancie de trigo ou de pedras, branca como
um ossurio enterrado70, sobre a qual pesa esse velho cu violceo, no posso
mais acreditar nas montanhas do Tibete.

69. Van Gogh pintou girassis vrias vezes. Na Orangerie esto expostas: Flores de Girassis (n
78 do catlogo, tela, 0,50 x 0,97, Perodo de Paris, Ryksmuseum Krller-Mller); O Jardim com Giras-
sis (n 91 do catlogo, [encre de chine, rosea], 0,61 x 0,49, Aries, agosto de 1888, coleo V. W. Van
Gogh, Laren). Alm disso, nas duas obras citadas que A. A. consultava freqentemente, estavam re-
produzidas as seguintes obras: Os Girassis (tela, 0,93 x 0,73, Aries, agosto de 1888, National Gallery,
Londres); Girassis (tela, 0,91 x 0,72, Aries, agosto de 1888, Neue Staatsgalerie, Munique).
A lio da edio K reproduz o demonstrativo certamente incorreto de (C): esses girassis...; nos
restabelecemos o possessivo da lio manuscrita.
70. Aluso a Crau, vista de Montmajour (n 86 do catlogo, bico de pena, 0,48 x 0,60, Aries,
maio de 1988, coleo V. W. Van Gogh, Laren).
O plural da edio K: brancas, reproduz um erro da transcrio em (C), no corrigido. Ns res-
tabelecemos o singular da lio manuscrita.
282 LINGUAGEM E VIDA

Pintor, nada alm de pintor, Van Gogh pegou os recursos da pura pintura
e no os ultrapassou.
O que quero dizer que, para pintar, ele serviu-se apenas dos recursos que
a pintura lhe oferecia.
Um cu tempestuoso,
uma plancie branca como cal,
telas, pincis, seus cabelos vermelhos, tubos, sua mo amarela, seu cavalete71,
ainda que todos os lamas do Tibete, reunidos, sacudam sob suas saias o
apocalipse que tiverem preparado,
Van Gogh nos ter feito pressentir por antecipao seu perxido de azoto
numa tela que contm dose suficiente de sinistro para obrigar-nos a nos orientar.
Isto fez com que um dia ele decidisse no ultrapassar o tema,
porm, quando se v um Van Gogh, no se pode mais acreditar que haja
algo menos supervel que o tema.
O simples tema de uma lamparina acesa sobre uma poltrona de palha de
estrutura violcea72, nas mos de Van Gogh, diz muito mais que toda a srie de
tragdias gregas ou de dramas de Cyril Tourneur, de Webster ou de Ford que,
alis, at hoje no foram encenados.

Sem querer fazer literatura, vi o rosto de Van Gogh, vermelho de sangue


na exploso de suas paisagens, vir at mim,

kohan
taver
tensur
purtan73

num incndio,
num bombardeio,
numa exploso,
vingadores daquela pedra de amolar que o pobre Van Gogh, o louco, car-
regou no pescoo a vida inteira.
A amolao de pintar sem saber para qu74 nem para onde.

71. Aluso ao Retrato de si mesmo, no cavalete (n 77 do catlogo, tela, 0,65 x 0,505, Paris, 1888,
Coleo V. W. Van Gogh, Laren).
72. A Poltrona de Gauguin (cf. nota 25, p. 266).
73. A lio da edio K: Entretanto (pourtant), incorreta. Era relao aos elementos glossolli-
cos que A. A. introduz em seus textos, indicamos a maneira como ele os pronunciava. O era pro-
nunciado como ou, o que explica que no ditado a ltima linha tinha sido transcrita pourtan, transcrio
que se repete em (Q e (K). Foi certamente durante a impresso que um final foi indevidamente acres-
centado. Preferimos, como em todos os outros casos duvidosos, retornar lio manuscrita.
74. Restabelecemos tambm aqui a lio do manuscrito que d claramente para que ipourquo) e
no, como na edio K, porque (pourquoi).
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 283

Pois no para este mundo,


nunca para esta terra que ns todos sempre trabalhamos,
lutamos,
bramimos de horror, de fome75, de misria, de dio, de escndalo e de
desgosto,
que fomos todos envenenados,
embora por ela tenhamos sido todos enfeitiados,
e que enfim nos suicidamos,
pois no somos todos, como o pobre Van Gogh, suicidados da sociedade!

Van Gogh, pintando, renunciou a contar histrias, mas o maravilhoso


que este pintor que unicamente pintor,
e que mais pintor que os outros pintores, por ser aquele em quem o
material, a pintura, ocupa um lugar de primeiro plano,
com a cor captada como ela assim que espremida do tubo,
com a impresso, um aps o outro, dos plos do pincel na cor,
com o toque da pintura pintada, como que distinta em seu prprio sol,
com o i, a vrgula, o ponto da ponta do prprio pincel enroscada direta-
mente na cor, tumultuada, e que jorra em fagulhas, que o pintor macera e amassa
de todos os lados,
o maravilhoso que este pintor que unicamente pintor tambm, de
todos os pintores natos, o que mais faz esquecer que temos que nos envolver
com a pintura,
com a pintura para representar o tema que ele discriminou,
e que traz nossa frente, para diante da tela fixa, o enigma puro, o puro
enigma da flor torturada, da paisagem recortada, arada e comprimida por todos
os lados por seu pincel embriagado.
Suas paisagens so velhos pecados que ainda no encontraram seus primi-
tivos" apocalipses, mas que no deixaro de encontr-los.
Por que as pinturas de Van Gogh me do assim a impresso de serem
vistas como que do outro lado do tmulo de um mundo onde seus sis, no final
das contas, tero sido tudo o que girou e iluminou alegremente?
Pois no a histria inteira daquilo que um dia foi chamado de alma que
vive e morre em suas paisagens convulsionrias e em suas flores?
A alma que deu sua orelha ao corpo, e Van Gogh a restituiu alma de
sua alma,
uma mulher para ampliar a sinistra iluso.

Um dia a alma no existia,


nem o esprito,

75. O mesmo acontece aqui, onde o copista transcreveu erroneamente em (Cj: ... bramimos o
horror de fome,... erro no corrigido em (A) e que repercutiu na edio K.
284 LINGUAGEM E VIDA

quanto a conscincia, ningum jamais pensara nela,


mas onde estava, alis, o pensamento num mundo feito unicamente de
elementos em plena guerra, recompostos assim que destrudos,
pois o pensamento um luxo de paz.
E, melhor que o inverossmil Van Gogh, qual o pintor que entendeu o
fenomenal do problema, ele em quem76 toda verdadeira paisagem est como que
em potencial no crisol onde ela recomear.
Ento, o velho Van Gogh era o rei contra quem, enquanto ele dormia,
foi inventado o curioso pecado chamado cultura turca,
exemplo, habitculo, mvel do pecado da humanidade, a qual nunca soube
fazer outra coisa a no ser comer, ao natural, o artista, para rechear sua hones-
tidade.
Com o que ela s fez, sempre, consagrar ritualmente sua covardia!
Pois a humanidade no quer se dar ao trabalho de viver, de entrar nesse
acotovelamento natural das foras que compem a realidade, a fim de extrair
dela um corpo que nenhuma tempestade poder mais consumir.
Ela sempre preferiu contentar-se muito simplesmente em existir.
Quanto vida, no gnio do artista que ela tem o hbito de ir procur-la.
Ora, Van Gogh, que queimou uma mo, nunca teve medo da guerra para
viver, isto , para arrancar o fato de viver idia de existir,
e tudo pode, claro, existir sem se dar ao trabalho de ser,
e tudo pode ser sem se dar ao trabalho, como Van Gogh, o furioso, de
irradiar e rutilar.
Isto o que a sociedade tirou dele para realizar a cultura turca, aquela da
honestidade de fachada que tem o crime por origem e apoio.
E foi assim que Van Gogh morreu suicidado, porque o concerto da cons-
cincia integral no pde mais suport-lo77.
Pois se no havia nem esprito, nem alma, nem conscincia, nem pensa-
mento,
havia um pouco de fulminato,
de vulco maduro,
de pedra de transe,
de pacincia,
de bubo,
de tumor cozido,
e de escara de esfolado.
E o rei Van Gogh cochilava, incubando o prximo alerta da insurreio
de sua sade.
Como?

76. ...o pintor entendeu o problema, ele em quem... (C)


77. A copista transcreveu em (C): ...que no mais pde suport-lo. Parece evidente que as duas pa-
lavras pde mais foram invertidas, inverso que repercutiu na lio da edio K.
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 285

Pelo fato de a boa sade ser pletora de males conhecidos, de formidveis


ardores de viver, por cem feridas carcomidas, e que preciso, mesmo assim,
fazer viver,
que preciso levar a perpetuar-se.
Quem no sente a bomba cozida e a vertigem comprimida no digno de
estar vivo.
Este o ditame que o pobre Van Gogh em chamas se estabeleceu por
dever manifestar.
Mas o mal que espreitava fez-lhe mal.
O turco, sob sua cara honesta, aproximou-se delicadamente de Van Gogh
para colher nele a pralina,
a fim de extrair a pralina (natural)78 que se formava.
E Van Gogh perdeu nisso mil veres.
Morreu disso aos 37 anos,
antes de viver,
pois todo macaco viveu antes dele foras que ele reunira.
E que agora ser preciso restituir, para permitir a Van Gogh ressuscitar.
Diante de uma humanidade de macaco covarde e de cachorro molhado79,
a pintura de Van Gogh ter sido aquela de um tempo onde no havia alma,
nem esprito, nem conscincia, nem pensamento, nada alm dos elementos pri-
mordiais sucessivamente encadeados e desencadeados.
Paisagens de convulses fortes, de traumatismos arrebatados, como de um
corpo onde a febre age para lev-lo sade exata.
O corpo sob a pele uma fbrica superaquecida,
e, do lado de fora,
o doente brilha,
reluz,
por todos os poros,
explodidos.
Assim uma paisagem
de Van Gogh
ao meio-dia.
S uma guerra perptua explica uma paz que apenas uma passagem,
assim como um leite prestes a derramar explica a panela onde fervia.
Desconfiem das belas paisagens de Van Gogh, turbilhonantes e pacficas,
convulsas e pacificadas.
a sade entre dois acessos de febre quente que vai passar.
a febre entre dois acessos de uma insurreio de boa sade.

78. ...a pralina natural... (Q e (A). Colocao entre parnteses do adjetivo, realizada durante as provas.
79. A edio K reproduz aqui o plural da transcrio da copista em (C): ...macacos covardes e ca-
chorros molhados.... Pareceu-nos prefervel restabelecer o singular da lio manuscrita, sobretudo por-
que A. A. usa freqentemente o termo macaco para designar aquilo que alguns dizem ser deus.
286 LINGUAGEM E VIDA

Um dia a pintura de Van Gogh armada e com febre e com boa sade
voltar para lanar no ar a poeira de um mundo enjaulado que seu corao
no podia mais suportar.

Traduo de Slvia Fernandes e Maria Lcia Pereira

POST-SCRIPTUM

Volto ao quadro dos corvos80.


Quem j viu, como nesta tela, a tela eqivaler ao mar.
Van Gogh, de todos os pintores, o que nos espiona mais profundamente,
at a trama, mas como81 se nos espiolhasse de uma obsesso.
A de fazer com que os objetos sejam outros, a de ousar finalmente arriscar
o pecado do outro, e a terra no pode ter a cor de um mar lquido, e no entanto,
realmente como um mar lquido que Van Gogh lana sua terra como uma
srie de golpes de escardilho82.
E ele ps sua tela em infuso na cor de borra de vinho, e a terra que
cheira a vinho, que marulha ainda no meio das ondas de trigo, que ergue uma
sombria crista de galo contra as nuvens baixas que se amontoam por todos os
lados no cu.
Porm, como j disse, o fnebre da histria o luxo com que os corvos
so tratados.
Aquela cor de almscar, de nardo rico, de trufa como que sada de uma
grande ceia.
Nas ondas violceas do cu, duas ou trs cabeas de velhos de fumaa
arriscam uma careta de apocalipse, mas os corvos de Van Gogh esto ali inci-
tando-os a mais decncia, quero dizer, a menos espiritualidade,
e o que o prprio Van Gogh quis dizer83 com esta tela de cu rebaixado,
pintada como que no exato momento em que ele se livrara da existncia, pois
esta tela tem uma cor estranha, quase pomposa, por outro lado, de nascimento,
de npcia, de partida,
ouo as asas dos corvos baterem toques de cmbalo forte acima de uma
terra cujo fluxo parece que Van Gogh no poder mais conter.
Depois, a morte84.

As oliveiras de Saint-Rmy

80. O Post-Scriptum foi ditado a partir de diversos textos escritos entre 15 e 28 de fevereiro de 1947.
Para Campos de Trigo com Corvos, cf. nota 17, p. 264.
81. ...aquele que nos espiona, mas como... (C) e (K).
82. ...como uma srie de golpes de raspador (expresso: invectivas)... (Q e (K).
83. ...intando-os a mais decncia, e que quis dizer... (Q e (K)
84. Pargrafo acrescentado por ocasio da correo da segunda prova.
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 287

O cipreste solar85.

O quarto de dormir.

A colheita de azeitonas.

Os Aliscamps.

O caf de Aries.

A ponte onde d vontade de mergulhar o dedo na gua, num movimento


de regresso violenta a um estado de infncia ao qual se obrigado pela fora
fantstica de Van Gogh.
A gua azul,
no de um azul de gua,
de um azul de pintura lquida.
O louco suicida passou por ali e restituiu a gua da pintura natureza,
mas a ele, quem a restituir?

Um louco, Van Gogh?


Que aquele que soube um dia olhar uma face humana olhe o auto-retrato
de Van Gogh - estou pensando naquele com chapu mole86.

85. Nem todas as telas enumeradas nesta passagem figuravam na exposio da Orangerie. Alm
daquelas que j assinalamos - Quarto de Dormir de Van Gogh em Aries, Os Aliscamps - as outras so:
Campos de Oliveira: duas verses estavam expostas (n 148 do catlogo, tela 0,71 x 0,90, Saint-Rmy,
setembro/outubro de 1889, Ryksmuseum Krller-Mller, e n 151, tela, 0,71 x 0,90, Saint-Rmy, se-
tembro/outubro de 1889, Ryksmuseum Krller-Mller); numa dessas telas esto, alis, um homem e
uma mulher colhendo azeitonas;
Caf a Tarde (n 110 do catlogo, tela, 0,79 x 0,63, Aries, setembro de 1888, Ryksmuseum Krl-
er-Mller).
A Colheita de Azeitonas (tela 0,73 x 0,92), Saint-Rmy, dezembro de 1889, coleo Chester-Dale,
Nova York), que no estava exposta, mas cuja reproduo se encontra em Van Gogh (Ed. Pierre Tisn,
op. cit.)
No que diz respeito obra que A. A. chama aqui de cipreste solar, e qual ele deu sua exata de-
signao no texto manuscrito a partir do qual ditou esta passagem, trata-se de uma obra no exposta na
Orangerie, mas cuja reproduo se encontra em Vicent Van Gogh (Ed. Phaidon, op. cit), obra da qual
ele gostava especialmente: Cipreste sob a Lua (encre de Chine, 0,47 x 0,625, junho de 1889, Kunsthalle,
Brme), cuja verso sobre tela chamada de Noite Estrelada. E verdade que as estrelas que rolam em
turbilhes no cu podem parecer uns tantos sis. E preciso, entretanto, indicar que na Orangerie esta-
va exposto O Caminho de Ciprestes (n 162 do catlogo, tela, 0,91 x 0,71, Saint-Rmy, maio de 1890,
Ryksmuseum Krller-Mller), onde um enorme cipreste numa posio intermediria separa o sol de-
scendente da lua ascendente.
86. Retrato do Artista (n 70 do catlogo da exposio, tela, 0,44 x 0,375, Paris, por volta de
1887, Coleo V. W. Van Gogh, Laren). O chapu mole , na realidade, um chapu de palha.
LINGUAGEM E VIDA

Pintada por Van Gogh extralcido, aquela cara de aougueiro ruivo, que nos
inspeciona e espia, que nos escruta tambm com um olho de soslaio. No conheo
um nico psiquiatra que saiba escrutar um rosto de homem com uma fora to
esmagadora e dissecar como que no trinchante sua irrefragvel psicologia.
O olho de Van Gogh de um grande gnio, mas maneira pela qual eu
o vejo dissecar-me a mim mesmo do fundo da tela de onde surgiu, no mais
o gnio de um pintor que sinto naquele momento viver nele, mas aquele de um
certo filsofo que jamais encontrei na vida.
No, Scrates no tinha esse olho, talvez antes dele, apenas o infeliz Nietzs-
che tivesse esse olhar que despe a alma, livra o corpo da alma, pe a nu o corpo
do homem, fora dos subterfgios do esprito.
O olhar de Van Gogh est suspenso, fixo, vidrado por trs de suas plpebras
raras, suas sobrancelhas magras e sem uma ruga sequer.
um olhar que penetra diretamente, ele traspassa naquela cara talhada a
foice como uma rvore bem esquadriada.
Porm Van Gogh captou o momento em que a pupila vai deitar no vazio,
onde este olhar, dirigido contra ns como a bomba de um meteoro87, toma
a cor tona do vazio e do inerte que o preenche.
Melhor que qualquer psiquiatra deste mundo, foi assim que Van Gogh
situou sua doena.
Perfuro, retomo88, inspeciono, engancho, desprego, minha vida morta nada
contm, e o nada, alm do mais, nunca fez mal a ningum, o que me fora a
voltar para dentro esta ausncia desoladora que passa e me submerge por alguns
instantes, mas vejo claro nela, muito claro, at mesmo o nada eu sei o que , e
poderei dizer o que tem dentro.
E ele, Van Gogh, tinha razo, pode-se viver para o infinito, s se satisfazer
com o infinito, h sobre a terra e nas esferas infinito suficiente para saciar mil
grandes gnios, e se Van Gogh no pde satisfazer seu desejo de com ele irradiar
sua vida inteira, porque a sociedade proibiu-lhe isto.
Proibiu terminante e conscientemente.
Houve um dia os executores de Van Gogh, como houve aqueles de Grard
de Nerval, de Baudelaire, de Edgar Poe e de Lautramont.

Aqueles que um dia lhe disseram:

87. um dos pontos onde lamentvel que no possamos consultar o exemplar datilografado
corrigido por A. A. e retido pela senhora Kiesler. A lio de (C) d: onde esse olhar dirigido contra ns
estoura a bomba de um meteoro... O editor, voltando a correo de A. A. feita no exemplar destinado
impresso, riscou estoura e escreveu por cima como. Pode-se perguntar se essa correo foi bem com-
preendida e se no se tratava simplesmente de um esquecimento do advrbio pelo copista, advrbio re-
colocado sem que o verbo fosse suprimido: estoura como a bomba de um meteoro,...
88. (C) traz aqui torno a perder (je reperds), e temos o direito de perguntar se no se trata de uma
transcrio errnea, e se A. A. no havia ditado: eu determino (je repre). De todo modo, foi por ocasio
das primeiras provas que ele prprio corrigiu esta m transcrio por eu retomo (forma conservada).
VAN GOGH. O SUICIDADO DA SOCIEDADE 289

Agora chega, Van Gogh, j para o tmulo, estamos cheios do seu gnio;
quanto ao infinito, para ns o infinito.
Pois no foi de tanto buscar o infinito que Van Gogh morreu,
que se viu obrigado a sufocar de misria e de asfixia,
foi de tanto ver-se recusado pela turba de todos aqueles que, quando ele
ainda estava vivo, acreditavam deter o infinito contra ele;
e Van Gogh poderia ter encontrado infinito suficiente para viver a vida
toda se a conscincia bestial da massa no tivesse querido apropriar-se dele para
alimentar suas prprias bacanais, que jamais tiveram alguma coisa a ver com a
pintura e a poesia.

Alm do mais, ningum se suicida sozinho.


Ningum jamais nasceu sozinho.
Ningum, tambm, morre sozinho.
Porm, no caso de suicdio, preciso um exrcito de seres maus para decidir
o corpo ao gesto antinatural de privar-se da prpria vida89.
E creio que sempre h algum no momento exato da morte extrema para
despojar-nos de nossa prpria vida90.

Assim, portanto, Van Gogh se condenou, porque havia acabado de viver


e, como deixam entrever suas cartas ao irmo, porque, diante do nascimento de
um filho do irmo,
ele se sentia uma boca a mais para alimentar.

Mas, sobretudo, Van Gogh queria enfim ir ao encontro daquele infinito


para o qual, diz ele, se embarca como num trem para uma estrela91, e se embarca
no dia em que se decidiu mesmo acabar com a vida.
Pois bem, na morte de Van Gogh, tal como ocorreu, no creio que seja
isto o que tenha ocorrido.
Van Gogh foi despachado do mundo por seu irmo, primeiramente, anun-
ciando-lhe o nascimento de seu sobrinho, foi despachado em seguida pelo doutor
Gachet que, ao invs de recomendar-lhe repouso e solido, mandava-o pintar ao
vivo num dia em que ele sentia mesmo que seria melhor que Van Gogh se
deitasse92.
Pois no se pode contrariar to diretamente uma lucidez e uma sensibilidade
de tempera daquela de Van Gogh, o martirizado.

89. ...deprivar-se de seu prprio corao (C) e {K).


90. ...para despojar-nos de nosso prprio corao. (C) e (K).
91. Se tomamos o trem para nos levar a Tarascon ou a Rouen, tomamos a morte para ir a uma estre-
la. (Cana escrita de Saint-Rmy por volta de julho de 1888, que leva o n 506 em Cartas de Vicente
Van Gogh a seu irmo Tho, op. cit.)
92. ...seria melhor se se deitasse. (Q e (K)
290 LINGUAGEM E VIDA

Existem conscincias que, em certos dias, se matariam por uma simples


contradio, e no h necessidade, para isso, de ser louco, louco reconhecido e
catalogado; basta, ao contrrio, gozar de boa sade e ter a razo a seu favor.
Eu, em caso semelhante, no suportaria mais, sem cometer um crime, ouvir
me dizerem: "Sr. Artaud, o senhor est delirando", como j me aconteceu por
tantas vezes.
E Van Gogh ouviu lhe dizerem isto.
E foi por isso que se fez em sua garganta aquele n de sangue que o matou.

POST-SCRIPTUM

A propsito de Van Gogh93, da magia e dos feitios, todas as pessoas que


esto indo h dois meses desfilar diante da exposio de suas obras no Museu
de 1'Orangerie esto bem certas de se lembrarem de tudo o que fizeram e de
tudo o que lhes aconteceu todas as noites dos meses de fevereiro, maro, abril
e maio de 1946? E no houve uma certa noite em que a atmosfera do ar e das
ruas ficou como que lquida, gelatinosa, instvel, e em que a luz das estrelas e
da abbada celeste desapareceu?
E Van Gogh, que pintou o caf de Aries, no estava ali. Mas eu estava em
Rodez, isto , ainda na terra, enquanto todos os habitantes de Paris devem ter
se sentido, durante a noite, bem perto de deix-la.
E no que todos tivessem participado, de combinao, de certas safadezas
generalizadas, onde a conscincia dos parisienses deixou por uma ou duas horas
o plano normal e passou para um outro, numa daquelas manifestaes macias
de dio das quais fui muitas vezes um pouco mais que testemunha durante meus
nove anos de internamento. Agora o dio foi esquecido como as expurgaes
noturnas que resultaram disso e os mesmos que por tantas vezes mostraram a
nu e na cara de todos suas almas de porcos baixos desfilam agora diante de Van
Gogh a quem, em vida, eles ou seus pais e mes torceram to bem o pescoo.
Mas, numa das noites de que estou falando, no caiu no Boulevard de Ia
Madeleine, na esquina da Rua dos Mathurins, uma enorme pedra branca como
que sada de uma erupo vulcnica recente do vulco Popocatepetl?
Traduo Slvia Fernandes e Maria Lcia Pereira

93. O Post-Scriptmn do Post-Scriptwn foi acrescentado por A. A. diretamente no exemplar dati-


lografado que ele havia corrigido. Tem analogia com muitas passagens das canas escritas a Andr Bre-
ton a propsito da Exposio Internacional do Surrealismo de 1947, cartas que foram publicadas no
phmre (n 8, inverno de 1968).
PERSPECTIVA NAS ARTES

A Arte no Horizonte do Provvel - Haroldo de Campos


Apocalpticos e Integrados - Umberto Eco
Pequena Esttica - Max Bense
Bauhaus: Novarquitetura - Walter Gropius
Esttica e Filosofia - Mikel Dufrenne
Linguagem e Cinema - Christian Metz
Histria do Surrealismo - M. Nadeau
Oficina: do Teatro ao Te-ato - Armando Srgio da Silva
Mareei Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido - Pierre Cabanne
A Arte da Performance - Jorge Glusberg
Mimesis - Erich Auerbach
Por uma Arquitetura - Le Corbusier
Filosofia do Estilo - G. G. Granger
Artaud e o Teatro - Alain Virmaux
Espao da Arquitetura - Evaldo Coutinho
O Processos Criativos de Robert Wilson - Luiz Roberto Galizia
A Artisticidade do Ser - Evaldo Coutinho
Arquitetura Ps-industrial - Raffaele Raja
Cidades do Amanh - Peter Hall
O Prazer do Texto - Roland Barthes
Lvi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo - Octvio Paz

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