O Narcisismo Das Pequenas Diferenças
O Narcisismo Das Pequenas Diferenças
O Narcisismo Das Pequenas Diferenças
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Artigos
Anton Blok*
Resumo
Este ensaio explora as implicaes tericas do conceito freudiano de
"narcisismo das pequenas diferenas": a ideia de que so exatamente as
pequenas diferenas entre os povos que, sob qualquer outro aspecto, so iguais,
que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles.
Um estudo comparativo mostra que as pequenas diferenas subjazem a uma
vasta gama de conflitos: de formas relativamente brandas do campanilismo a
guerras civis sangrentas. As afirmaes iniciais de Freud se relacionam com
os insights de Darwin (que argumentou que a luta pela sobrevivncia mais
rdua entre indivduos e variedades da mesma espcie), Simmel, Durkheim,
Lvi-Strauss, Dumont, Elias e Girard. De especial utilidade a afirmao de
Bourdieu em seu livro "A Distino": "A identidade social est na diferena,
e a diferena se afirma contra aquilo que mais prximo, que representa
a maior ameaa". Um esboo de uma teoria geral do poder e da violncia
deve incluir um exame do narcisismo das pequenas diferenas, em particular
porque sua contrapartida a hierarquia e as grandes diferenas concorre
para uma estabilidade relativa e para a paz.
Palavras-Chave
Cultura. Pequenas diferenas. Violncia.
1
Traduo do texto Narcissism of minor differences, originalmente publicado como um dos
captulos do livro Honor and Violence. Cambridge and Oxford, Polity Press / Blackwell Publishers,
2001.
* Anton Blok Professor Emrito de Antropologia Cultural da Universidade de Amsterdan.
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Abstract
This essay explores the theoretical implications of Freud's notion of "the
narcissism of minor differences": the idea that it is precisely the minor
diferences between people who are otherwise alike that form the basis of
feelings of strangeness and hostility between them. A comparative survey
shows that minor differences underlie a wide range of conflicts: from
relatively benign forms of campanilismo to bloody civil wars. Freud's tentative
statements link up with the insights of Darwin (who argued that the struggle
for life is most severe between individuals and varieties of the same species),
Simmel, Durkheim, Levi-Strauss, Dumont, Elias, and Girard. Especially
helpful is what Bourdieu writes in his book 'Distinction': "Social identity lies in
difference, and difference is asserted against what is closest, which represents
the greatest threat." An outline of a general theory of power and violence
should include consideration of the narcissism of minor differences, also
because its counterpart - hierarchy and great diferences -makes for relative
stability and peace.
Keywords
Culture. Minor differences. Violence.
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grupos, que causam muitos conflitos e lutas cruis. Por que seriam justamente
as pequenas diferenas aquilo que faz com que as pessoas excluam os outros,
os discriminem, os estigmatizem e os submetam a formas extremas de
violncia? E at que ponto os pesquisadores vm reconhecendo o papel das
distines sutis nas configuraes explosivas?
II
Pode-se comear com Freud (no com Marx, pois ele acreditava que a luta de
classes s podia se dar quando as diferenas entre capitalistas e proletariado,
entre capital e trabalho tivessem se acentuado; quando todos os meios de
produo estivessem nas mos dos capitalistas). Comeamos com Freud
porque ele foi provavelmente o primeiro a reconhecer a importncia das
pequenas diferenas na compreenso dos conflitos.2 H ao menos quatro
lugares de sua obra em que ele discute 'o narcisismo das pequenas diferenas'.
O que ele quer dizer com essa expresso e o que faz com ela?
O primeiro momento em que Freud discute o narcisismo das pequenas
diferenas em seu ensaio 'O Tabu da Virgindade' [1917]. Ele se refere a um
estudo feito por Crawley, que argumenta que as pessoas so separadas umas
das outras por um 'tabu do isolamento pessoal', e que so exatamente as
pequenas diferenas entre as pessoas que, com exceo delas, so idnticas,
que esto na base de sentimentos de estranheza e hostilidade mtuos. 'Seria
tentador desenvolver essa ideia e deduzir deste 'narcisismo das pequenas
diferenas' a hostilidade que vemos, em todas as relaes humanos, enfrentar
com sucesso os sentimentos de companheirismo e superar o mandamento
de que todos os homens devem amar uns aos outros' (1991a: 272).
Alguns anos depois, Freud voltou ao assunto. Em 'Psicologia de Grupo
e Anlise do Ego' [1921], ele comea fazendo referncia parbola de
Schopenhauer sobre os porcos espinho friorentos que se aproximavam uns
dos outros para se aquecer, mas logo se machucavam com os espinhos uns
dos outros e se afastavam novamente. Freud ento estende a comparao
2
Hobbes e Tocqueville chamaram a ateno para a estreita relao existente entre a igualdade,
a semelhana e o conflito. Para uma exposio mais recente, ver Dumont (1980: 13-20, 262-6),
fortemente baseada nas ideias de Tocqueville.
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rivalidade entre aldeias vizinhas conhecida como campanilismo (derivado
de campanile, o sino da igreja) o patriotismo local ou regional, uma forma
de solidariedade que se desenvolve como desprezo e reao contra uma
aldeia ou vila prxima:
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Ao final da vida, em seu ltimo ensaio, 'Moiss e o Monotesmo' [1939], no
qual tenta explicar o anti-semitismo, Freud retoma o assunto. Seu argumento
de que o dio aos judeus est basicamente relacionado com a circunstncia
de que a maior parte deles vive como minorias entre outros povos,
III
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no pode ser penetrada, no sem o custo da destruio do valor
da personalidade do indivduo. Esse tipo de esfera construda
ao redor do homem por sua 'honra'. A lngua, de maneira muito
arguta, designa um insulto honra de algum como 'chegar perto
demais': o raio dessa esfera marca, por assim dizer, a distncia cuja
ultrapassagem por outra pessoa constitui um insulto honra.
(Simmel, 1983, p.265; 1950, p.321)
3
Sobre territrios pessoais e violaes territoriais, ver Goffman (1971, p.28-61).
278 INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas
(1966, p.107-8; cf. 1969, p.155-64; e 1966, p.115-17)
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faz afirmao semelhante em seu livro Land without Justice (1958), ao refletir
sobre as rixas sangrentas que afetavam sua prpria famlia:
4
Citado por Boehm (1984, p.60-1).
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entre torcedores de clubes de futebol na Europa ocidental so um bom
exemplo. Em vez de conflitos de interesses, vemos novamente a articulao
de diferenas menores entre grupos que compartilham muitos traos
(idade, gnero, classe, educao, trabalho, linguagem, vesturio, interesses
culturais e identidade). Alm disso, esses grupos fazem parte de outras
formaes dualistas, tais como clubes, bares, bairros e cidades. As lutas e
os comportamentos agressivos so agora parte da ida ao estdio. Assim
como acontecia nos duelos entre a jeunesse dore na Europa ocidental at o
final do sculo XIX, a hora e o local dos encontros violentos extra muros so
combinados fora da rea do estdio:
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poder. Elias resume assim sua concepo do processo civilizador, enfatizando
que certas diferenas culturais no apenas refletem diferenas de poder, mas
tambm ajudam a mold-las e mant-las:
Para ilustrar sua teoria sobre as diferenas, Girard discute o papel dos
gmeos e de outros grupos de irmos. Em algumas sociedades tribais, os
gmeos inspiram um medo particular. No raro que um ou mesmo os dois
sejam mortos. Onde no h diferenas, a violncia ameaa. Girard destaca
o aspecto da poluio ritual: quando diante de gmeos biolgicos, uma
reao comum das sociedades tribais evitar o contgio. Assim, os recm-
nascidos so expostos, isto , abandonados (1979, p.56-8).
Girard conecta o tema dos gmeos com o tema dos irmos que se
tornam inimigos. Ele se refere a Kluckhohn (1968, p.52), que argumenta
que o conflito mais comum nos mitos a luta entre irmos uma luta que
geralmente termina em fratricdio. Nem sempre se trata de gmeos podem
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ser apenas irmos muito parecidos e com uma diferena de idade pequena.
Mesmo quando os irmos no so gmeos, a diferena entre eles muito
menor do que entre todos os outros graus de parentesco. Em muitos casos,
ocupam a mesma posio diante de outros parentes, tanto prximos quanto
distantes. Irmos tm mais direitos, obrigaes e funes em comum entre si
do que com outros membros da famlia. De certa forma, gmeos so irmos
reforados, de quem a ltima diferena objetiva, a idade, foi tirada: muitas
vezes, impossvel distinguir um do outro. Temos a tendncia, continua
Girard, a considerar o vnculo fraternal como um modelo de relao afetiva
(fraterno como sinnimo de afetuoso e leal). Mas os exemplos mitolgicos,
histricos e literrios que nos vm mente contam uma histria diferente:
Caim e Abel, Jac e Esa, Rmulo e Remo. Mas no apenas nos mitos,
diz Girard, que os irmos so simultaneamente atrados um para o outro
e afastados por algo que ambos desejam ardentemente e que no querem
ou no podem compartilhar um trono, uma mulher ou, em termos mais
gerais, uma herana paterna (1979, p.61-4)5. Podemos desenvolver um
pouco mais o argumento. Conforme Sulloway demonstra, de forma muito
convincente, em seu detalhado e primoroso estudo sobre a ordem de
5
O tema do fratricdio no apenas mtico. A histria do reino Zulu do incio do sculo XIX, por
exemplo, inclui vrios casos de fratricdio entre dspotas. O regime terrorista de Shaka chegou ao
fim em 1828 por meio de uma conspirao entre seus irmos Dingane e Mhlangana. Mais tarde,
Dingane matou Mhlangana e sucedeu a Shaka como rei dos Zulus. Dingane morreu em 1840
depois que seu irmo Mpande se voltou contra ele em uma revolta (Walter, 1969, p.174-5, p.209-
11). De acordo com uma pesquisa recente, cerca de dez por cento dos homicdios em sociedades
agrrias envolvem o fratricdio (Daley e Wilson, 1988, p.25, citado por Sulloway, 1996, p.437).
Mas os irmos nem sempre lutam e matam um ao outro. Nas sociedades tribais, a matrilocalidade
exige paz interna, enquanto as sociedades patrilocais muitas vezes incluem 'grupos de interesse
fraternais', que so responsveis por um alto grau de agresso aberta (Thoden van Velzen e Van
Wetering, 1960; cf. Koch, 1974, p.166-71); ver, contudo, Knauft (1987, p.471-3; cf. 1985), que
mostra que os Gebusi da Nova Guin no tm grupos de interesse fraternais, mas, mesmo assim,
tm um ndice extremamente alto de violncia interna. A lealdade entre irmos e outros parentes
agnticos tambm importante entre os mafiosi sicilianos, em particular na luta entre 'famlias'
(Blok, 1988). Ainda assim, parentes prximos podem facilmente se tornar antagonistas, como
aconteceu na chamada segunda guerra da Mfia no incio dos anos 1980, que terminou com a
vitria dos Corleonesi, que traram muitos rivais que eram parentes prximos (Stajano, 1986, p.16-
37; Stille, 1995, p.99-120 e passim). Naquela poca, conforme relatou um jornal, no seio de uma
mesma famlia um irmo temia o outro, e os filhos tinham medo do que o pai estivesse planejando
para eles. Esses casos ilustram o dito popular 'Nella stessa faccia, locchio destra odiava il sinistro'
(No mesmo rosto, o olho direito odiava o esquerdo) (La Repubblica, 07 de junho de 1997, p.
2). Outras expresses, tais como 'Fratelli, coltelli' (Irmos, facas), 'Cuggini, assassini' (Primos,
assassinos), 'Genitori, traditori' (Pais, traidores) e 'Per gli amici mi guarda Iddio' (Deus me proteja
dos meus amigos), sugerem da mesma maneira uma familiaridade com o outro lado do afeto e da
amizade (cf. Blok, 1999).
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nascimento, a rivalidade entre irmos e as relaes entre irmos podem ser
melhor compreendidas em termos de estratgias de sobrevivncia; os irmos
competem entre si pela ateno e pela dedicao dos pais: por isso que
os irmos se esforam para se diferenciarem um do outro (1996, p.55-118
e passim).
De que forma o narcisismo das pequenas diferenas a ideia de que a
identidade est na diferena, e de que a diferena afirmada, reforada e
defendida contra aquilo que mais prximo e representa a maior ameaa
pode esclarecer casos contemporneos de confrontos extremamente
violentos?
IV
6
Esse esboo se baseia em De Vos e Wagatsuma (1972, p.33-67, esp. p.34-8).
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de escolas e mais de 300 casas de Burakumin foram destrudas ou
queimadas. Dezoito Burakumin foram mortos e onze seriamente
feridos. Estimou-se que cerca de vinte e seis mil agricultores
participaram da revolta (De Vos e Wagatsuma, 1972, p.37).
7
Para uma interpretao antropolgica recente do linchamento no sul dos Estados Unidos, ver
Brundage (1993). Ver tambm suas observaes sobre o caso de Forsyth County (1993, p.43, 315,
n. 87). Cf. Dumont (1980, p.262-4, p.425, n. 26).
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Assim, a teoria das pequenas diferenas encontra confirmao em
figuraes caracterizadas por grandes diferenas. Uma a contrapartida
da outra. Quando a distncia social maior, quando as diferenas culturais
e de poder so mais pronunciadas, a chance de conflito, luta e violncia
extrema diminui proporcionalmente (cf. Walter, 1969, p.15-16). Em vez
de formas abertas de violncia, encontramos formas sutis de resistncia
passiva, registradas em transcries oculta, conforme documentado
cuidadosamente por Scott em dois estudos importantes (1985; 1990). Sem
dvida, no h falta de registros histricos e etnogrficos de movimentos
populares contrrios a foras estabelecidas, mas esses movimentos s so
bem sucedidos quando conseguem formar alianas com os rivais de seus
oponentes8.
VI
8
Ver, por exemplo, o estudo de E. Wolf sobre revoltas camponesas (1969) e as reflexes de Aya
(1990, p.106-22).
9
No original: satisfaktionsfhige (N. do T.).
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O duelo um exemplo de violncia estilizada e refinada entre iguais,
um dos quais transpassou a 'esfera ideal' do outro, que, consequentemente,
ganha a chance de defender sua honra arriscando a vida.10 Em forma de
miniatura, o duelo mostra como a cultura e as diferenas culturais entre
indivduos, grupos e estados nacionais podem ser uma questo de vida
ou morte11. Simmel percebeu tambm que a defesa final da honra est na
violncia fsica:
VII
Para estudos recentes sobre o desenvolvimento do duelo na Alemanha, ver Frevert (1995) e
10
McAleer (1994).
11
A cultura pode ser uma questo de vida ou morte. Devo essa formulao a Rod Aya.
12
(N. do T.) No texto original, essa citao est em ingls em traduo de Anton Blok.
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srvios a repisarem suas divises essencialmente pequenas (...)13.
13
Richard West, Tito and the Rise and Fall of Yugoslavia (1994), citado por Michael Ignatieff: 'The
politics of self-destruction', em New York Review of Books (2 de novembro de 1995, p. 17). Ver
tambm a afirmao de Ignatieff em seu artigo 'The Balkan Tragedy', em New York Review of Books
(13 de maio de 1993, p. 3): 'Freud uma vez argumentou que quanto menor a diferena entre dois
povos, maior ela os ameaa em sua imaginao. Esse efeito, ao qual ele se referia como narcisismo
das pequenas diferenas, especialmente visvel nos Blcs1. Ignatieff voltou a esse assunto de
forma mais detalhada em seu livro The Warrior's Honor: ethnic war and the modern conscience (London:
Chatto & Windus, pp. 34-71), publicado no vero de 1998, quando esse ensaio estava no prelo.
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fronteiras polticas internacionalmente impostas e pelos esforos
centralizadores dos principais estados, e os intelectuais desses
estados erigiram, por vezes, fronteiras lingusticas a servio de
interesses nacionalistas (Hammel, 1993, p.7).
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seus direitos.
A viso do correspondente de guerra britnico Glenny em The Fall of
Yugoslavia muito prxima da posio adotada nesse ensaio. Glenny observa
que, desde o incio do conflito na Crocia, uma questo em particular
intrigava as pessoas, tanto na Iugoslvia quanto no mundo: 'O que causa
esse nvel de dio, que provocou atrocidades e massacres em uma escala
to ampla em um perodo to curto?' (1992, p.168) Tornou-se bvio que
a luta nessa regio durante a Segunda Guerra Mundial no terminou com
o estabelecimento do regime comunista comandado por Tito. O conflito
interno na Iugoslvia entre 1941 e 1945 'assumiu propores to sangrentas
que, se algum dia ressurgisse, seria provavelmente implacvel' (1992, p.168).
'Mesmo para pessoas como eu', escreve Glenny, 'que j observei tanto a
guerra em si quanto as intrigas polticas que a ela conduziram, a natureza
da violncia permanece incompreensvel'. O conflito tem causas histricas
e polticas complexas; mas o dio tem origens diferentes. Ele observa que
as guerras da sucesso iugoslava foram de natureza nacionalista: 'No so
conflitos tnicos, como a mdia tantas vezes afirmou, uma vez que a maior
parte dos envolvidos na matana da mesma etnia. De fato, o que espanta
na Bsnia-Herzegovina, em particular, o quo prximos so os srvios, os
croatas e os muulmanos' (Glenny, 1992, p.168).
Hayden observa que as guerras civis na antiga Iugoslvia tiveram lugar
quase que integralmente nas regies mais 'misturadas' - com altos nveis
de heterogeneidade etno-nacional e taxas crescentes de casamentos entre
membros de grupos nacionais distintos. Ele conta que 'os casamentos 'mistos'
aumentaram tanto em nmeros absolutos quanto proporcionalmente em
relao ao nmero total de casamentos em toda a Iugoslvia, mas eram
particularmente comuns entre srvios e croatas e entre srvios e muulmanos
na Bsnia-Herzegovina' (1996, p.788-9). Mas o autor no reconhece que a
semelhana entre esses grupos e o esmaecimento das fronteiras esto na base
da violncia inter-tnica nessas reas. Um outro observador da Bsnia, David
Rohde, que relatou os infortnios de Srebrenica, corrobora esse ponto de
vista. Ele observa que a Bsnia ('esse pas pitoresco, com uma populao
de 4 milhes e 300 mil pessoas, era 44 por cento muulmano, 31 por cento
srvio, 17 por cento croata e oito por cento 'iugoslavo' ') era a mais integrada
das seis repblicas da Iugoslvia, e que o casamento entre srvios, croatas e
muulmanos era comum nas cidades e nas aldeias maiores. Os trs grupos
so racialmente idnticos ('brancos eslavos da Europa oriental') e falam
servo-croata com um sotaque bsnio. As diferenas esto na crena religiosa
290 INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas
e nas prticas de batismo: O nico modo de um srvio, um croata e um
muulmano identificarem um ao outro pelo primeiro ou pelo ltimo
nome (Rohde, 1997, p.xi-xii).
Embora a religio tenha desempenhado um papel decisivo na diviso
entre esses povos, no se trata de um conflito confessional. Glenny afirma:
VIII
INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas 291
sculo XX, diminuram drasticamente por meio da atuao do antigo
poder colonial. Ambos os grupos passaram de relaes iniciais feudais do
tipo suserano-vassalo para o surgimento de faces internas s suas prprias
elites: os Tutsi com o apoio do governo belga colonial, que administrava
a rea por via indireta; e os Hutu, primeiro com o apoio da Misso, que
favorecia o antigo grupo subalterno e mandava suas crianas para a escola,
e mais tarde, nos anos 1950, com apoio integral das autoridades belgas,
que incentivavam a igualdade e a independncia tnica.14 A diminuio das
diferenas econmicas, sociais, culturais reforada pelo aumento dos
casamentos mistos, chegou at mesmo a confundir os antroplogos quanto
identidade tnica dos Tutsi e dos Hutu.
As diferenas entre os Tutsi e os Hutu, sob certos aspectos, esto longe
de serem acentuadas. Prunier descreve os Tutsi e os Hutu como os 'famosos
gmeos rivais de Ruanda'. Vivem lado a lado, 'nas mesmas escarpas ngremes,
em aldeias vizinhas para o bem e para o mal, para o casamento ou o massacre'
(1995, p.3). Embora sejam muitas vezes chamadas de tribos de Ruanda, no
formam tribos separadas, nem tm territrios distintos. Os Tutsi e os Hutu
falam a mesma lngua banto, tm a mesma religio, seguiam as mesmas
prticas culturais (parentesco patrilinear, poliginia), vivem lado a lado e com
frequncia casavam-se entre si. Mas, poca de seu primeiro contato com os
exploradores europeus, no eram nem parecidos nem iguais. Os Tutsi eram,
originalmente, pastores e suseranos dos Hutu; esses eram originalmente
agricultores e cultivavam a terra. Cada grupo tinha seu prprio tipo somtico
dominante. Os Hutu, que compunham mais de 80 por cento da populao,
tinha as caractersticas fsicas padro dos Banto e se pareciam com os povos
dos pases vizinhos. Os Tutsi eram muito diferentes: muito altos e magros,
tinham traos fisionmicos mais angulosos (Prunier, 1995, p.5).15
Entre 1945 e 1959, os Tutsi e os Hutu se tornaram mais parecidos, no
apenas intelectualmente e enquanto elites, mas tambm em termos de
propriedades e riqueza. Por volta de 1959, a situao financeira mdia dos
Tutsi e dos Hutu tinha se tornado, em linhas gerais, mais prxima. Os Hutu
14
Esse esboo se baseia em Prunier (1995). Para uma viso da relao entre os Tutsi e os Hutu em
torno de 1900, ver a reconstituio feita por Maquet (1961, p.129-72 e passim).
15
Para uma descrio detalhada desses diferentes tipos raciais, ver o ensaio fotogrfico de Maquet
(1957). Sobre a proximidade entre os Tutsi e os Hutu de Ruanda, e sobre a sua unidade lingustica,
religiosa e cultural, ver Vidal (1996, p.335-7, p.356-7).
292 INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas
ricos compensavam os Tutsi pobres na mdia econmica: 'sob a bandeira da
'regra democrtica da maioria' de um lado e da 'independncia imediata' do
outro, tratava-se de uma luta entre duas elites rivais, a recm-desenvolvida
contra-elite Hutu produzida pela igreja e a elite neo-tradicionalista Tutsi,
mais antiga, que as autoridades coloniais haviam promovido desde os anos
1920 (Prunier, 1995, p.50). A perda das diferenas tambm era visvel na
aparncia fsica. Para entender essa perda geral das distines entre os
dois grupos, preciso olhar para o padro dos casamentos intergrupos.
Os frequentes casamentos entre Tutsi e Hutu, afirma Prunier, haviam
produzido muitos Tutsi de aparncia Hutu e muitos Hutu de aparncia Tutsi
(1995, p.249).16 Os refugiados Hutu de Burundi consideravam a mistura de
caractersticas por meio do casamento intergrupos (os intelectuais Hutu que
se casavam com mulheres Tutsi) como algo que gerava no vida, mas morte:
O massacre de 1972 foi visto como a culminao histrica dessa confuso
das fronteiras (Malkki, 1995, p.86).
Nos anos 1950, Maquet esboou um perfil da sociedade ruandesa tal
como era provavelmente por volta de 1900. Ele observa que os casamentos
entre Hutu e Tutsi no eram proibidos. Na verdade, de acordo com seus
informantes Hutu, esses casamentos eram frequentes. Seus interlocutores
Tutsi, contudo, afirmavam que esses casamentos eram raros, mas admitiam
que os Tutsi com frequncia tinham concubinas Hutu (Maquet, 1961, p.65-
6). Dessa discrepncia Maquet infere que
16
Em sua descrio do genocdio ocorrido na primavera de 1994, Prunier observa que distinguir
os Hutu e os Tutsi nas aldeias no era um problema, porque a identidade dos moradores em geral
j era conhecida. Entretanto, no era assim nas cidades e ainda mais em Kigali, onde as pessoas
no se conheciam. Nesses lugares, os Interahamwe que vigiavam as barreiras nas estradas pediam
s pessoas seus documentos de identidade. Ser identificado no documento como Tutsi ou fingir
ter perdido o documento significava morte certa. Mas ter um documento atestando ser um Hutu
no era uma garantia automtica de segurana. (...) E as pessoas eram frequentemente acusadas
de ter uma identidade falsa, principalmente se fossem altas, tivessem um nariz reto e lbios finos.
Os casamentos inter-raciais frequentes haviam gerado muitos Tutsis de aparncia Hutu e muitos
Hutus de aparncia Tutsi. Nas cidades e ao longo das estradas, os Hutus que se pareciam com
os Tutsis eram muitas vezes mortos, com suas negativas e seus documentos apresentados com a
referncia tnica correta sendo encarados como um tpico engodo Tutsi (1995, p.249).
INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas 293
mais baixo) e uma moa Hutu trabalhava mais do que uma Tutsi
(...). Um Hutu prspero podia se casar com uma moa Tutsi, mas
nesse caso o lobolo era muitas vezes maior do que aquele pago por
uma moa Hutu. Por vezes ocorria tambm que um Tutsi dono
de muitas cabeas de gado desse uma de suas filhas a um de seus
vassalos Hutu (1961, p.66).
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mas categorias 'inventadas' pelas antigas autoridades coloniais (belgas) e
impostas populao de Ruanda. Prunier observa:
IX
17
Para os ndices populacionais, ver Prunier (1995, p.4). O autor observa o rpido crescimento
populacional (de 1,5 milho em 1934 para aproximadamente 7 milhes em 1989): Por mais
horrvel que isso soe, a violncia genocida da primavera de 1994 pode ser parcialmente atribuda
a essa densidade populacional (1995, p.4).
INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas 295
extrema. O anti-semitismo na Alemanha se intensificou com a crescente
assimilao dos judeus. Como afirma o intelectual alemo anti-semita Carl
Schmitt, que colaborou com os nazistas (e foi julgado em Nuremberg), em
seus apontamentos do ps-guerra Glossarium': 'O verdadeiro inimigo o
judeu assimilado'.18 O anti-semitismo na Polonia e na Ucrania nos sculos XIX
e XX mostra o mesmo padro: os pogroms comearam aps a emancipao
dos camponeses e dos judeus. Antes disso, os ltimos tinham uma posio
separada, de alguma forma privilegiada, como mediadores entre a pequena
nobreza e os camponeses. Por vezes, a violncia dos camponeses explorados
se expressava sob a forma de uma jacquerie contra representantes dessa classe
mdia de administradores judeus de grandes fazendas e, conforme ocorreu
na revolta camponesa na Moldvia em 1907, ganhava uma natureza anti-
semita.19
O narcisismo das pequenas diferenas tambm permite lanar luz sobre
18
Citado por Mark Lilla, The Enemy of Liberalism, em New York Review of Books (15 de maio
de 1997, p. 39). Em seu ensaio sobre a psicologia do preconceito, Ernst Kris observa que o
pressuposto de que quanto maiores as diferenas entre os grupos mais intenso ser o preconceito
no provm dos fatos. Ao contrrio, o autor constatou que 'at mesmo a menor diferena pode
ser sublinhada e enfatizada e pode se tornar um ponto nodal em torno do qual o preconceito
pode se cristalizar. Pode-se ir ainda mais longe: a afinidade parece convidar essa nfase; assim,
uma pequena diferena de sotaque ou pronncia em uma mesma lngua pode ser vivenciada
como indicativa de um abismo mais amplo entre grupos do que o uso de uma lngua diferente;
'irmos de sangue', como os espanhis e os portugueses, podem nutrir uns em relao aos outros
preconceitos to amargos quanto pessoas de pele de cor diferente'. Kris desenvolve seu argumento:
'Se uma diferena tende a desaparecer ou a perder importncia, isto , a parecer menos essencial
aos membros do grupo, outra convocada para assumir seu lugar. Assim, quando na Europa
ocidental e central durante o sculo XIX a assimilao dos judeus avanava rapidamente, de
forma que um nmero cada vez maior de pessoas de ascendncia judaica se tornava impossvel de
distinguir dos grupos dominantes e, ao mesmo tempo, a diferena religiosa comeava a ser sentida
como menos determinante por muitos, subitamente surgiu uma alegao de que a diferena entre
judeus e no judeus residia na herana racial; razes raciais foram invocadas para complementar
as razes religiosas da segregao e da discriminao' (1975, p.467-68). Cf. Gay (1988, p.14-21;
1978, p.18-19) sobre a emancipao e a assimilao dos judeus em Viena no sculo XIX. Zizek
tambm argumenta que a ansiedade provocada pela semelhana entre judeus e alemes foi um
fator chave do antissemitismo (Zizek, 1989, p.128-9). Em sua discusso sobre a conexo entre
o antissemitismo e o nacionalismo na Alemanha, Goldhagen (1996, p.45, p.55-62, 487n.) no
reconhece as consequncias no intencionais da emancipao judaica (legalmente, politicamente
e socialmente). A emancipao dos judeus, combinada ao desenvolvimento da Alemanha como
nao, gerou as formas do antissemitismo que levaram soluo final.
19
Sobre o desenvolvimento dessa revolta, que se tornou a revolta camponesa mais importante
da histria da Europa oriental e que foi sufocada pelo exrcito (com grande derramamento de
sangue), ver o resumo feito por Chirot (1976, p.150-5) e o estudo detalhado de Eidelberg (1974).
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os chamados 'Troubles'20, a luta entre protestantes e catlicos na Irlanda do
Norte.21 Conor Cruise O'Brien afirma:
20
(N. do T.) Os Problemas, em uma traduo literal.
21
Podemos encontrar uma indicao a esse respeito em uma anlise dos primeiros distrbios:
Trata-se de um problema da classe trabalhadora. No houve qualquer distrbio nas reas mais
prsperas de Belmont ou na Malone Road em Belfast. Nesses locais, as classes mdias abastadas
esto protegidas por sua prpria mobilidade. Elas sabem que dispem dos recursos para levantar
e se mudar, se for necessrio e h mais pessoas considerando fazer isso para uma rea mais
calma da provncia, para a Repblica ou mesmo para a Inglaterra. Mas, para os guetos pobres das
reas de Shankill e Falls em Belfast, ou para os distritos de Bogside e Fountain de Londonderry,
essa opo no existe. Com um nvel geralmente baixo de remuneraes industriais, alto ndice
de desemprego e uma carncia aguda de moradias de baixo custo, as pessoas aprisionadas pelas
circunstncias econmicas nesses lugares so presas fceis de emoes viscerais sempre que sentem
uma ameaa pequena estabilidade qual podem se apegar. So essas pessoas que tm menos a
perder em termos materiais que mais precisam agarrar aquilo que tm (H. Jackson, 1972, p.5).
22
Akenson (1988) tambm ilustra muito bem meu argumento, mas quando travei contato com
seu trabalho j estava muito tarde para us-lo aqui.
23
Fonte: State of the Nation Report, South African Institute of Race Relations, janeiro de 1993,
citado em New York Review of Books (13 de fevereiro de 1993, p. 24ff). Sobre a luta feroz interna
prpria faco Zulu um caso de fratricdio interno ao fratricdio -, ver Meredith (1997, p.419-33).
INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas 297
recproco. Para compreender melhor, vale a pena examinar o que judeus
e muulmanos tm em comum (sempre a execrao das partes em conflito,
que narcisisticamente preferem enfatizar e exagerar as diferenas). Os judeus
e os muulmanos no apenas so ambos Povos do Livro, compartilhando
muitas vises cosmolgicas e religiosas; h tambm paralelos impressionantes
na linguagem (origens semitas), na aparncia fsica, nos regimes ecolgicos
(origens pastoris), nos tabus alimentares, nas estruturas patriarcais de
parentesco e casamento, na circunciso masculina e nas preocupaes com
a contaminao.24
Um outro caso de violncia extrema que vale a pena explorar em
termos do narcisismo das pequenas diferenas a luta entre os tmeis e
os cingaleses no Sri Lanka desde 1950. Os cingaleses so mais de 70 por
cento da populao total de cerca de 14 milhes de pessoas. Mas tambm h
regies em que os tmeis predominam. Embora haja diferenas importantes
de lngua e religio, Tambiah descreve a guerra civil entre esses dois grupos
como fratricida:
24
Huntington, que atribui muita importncia s diferenas entre as civilizaes, principalmente s
suas linhas de fissura e no plano da religio, que ele descreve como 'possivelmente a diferena mais
profunda que pode existir entre os povos' (1996, p.254), reconhece que o duradouro e violento
conflito entre o Isl e a cristandade 'deriva tambm das suas semelhanas' (1996, p.210-11).
Mas exatamente ao longo dessas fissuras e fronteiras, em que os conflitos so particularmente
sangrentos, que se pode esperar encontrar semelhanas transculturais que resultam da
proximidade e que Dumont, em seu ensaio sobre a relao entre muulmanos e hindus, chama
de 'osmose cultural' (1980, p.206).
298 INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas
simbiose tranquila para uma identidade cingalesa imposta, vemos
uma razo para a 'sobredeterminao' nas atitudes anti-tmil de
certos segmentos da populao cingalesa (1991, p.100-1).
25
Desse ponto de vista, os eventos em Bali ocorridos em dezembro de 1965 merecem uma
investigao mais profunda. Em menos de duas semanas cerca de oitenta mil pessoas foram
mortas (em larga medida, mataram-se entre si) em consequncia do golpe mal-sucedido em
Jacarta em 01 de outubro. Ver Geertz (1973, p.452) para uma nota secundria e Robinson (1995
p.273-313) para um relato detalhado do massacre ps-golpe em Bali. Os assassinatos em massa
entre muulmanos, hindus e sikhs no Punjab, logo aps a independncia da ndia e do Paquisto
em 1947 ('gmeos nascidos do mesmo ovo', conforme formulao de um autor) so mais um
exemplo da violncia que se segue eroso iminente das pequenas diferenas pequenas
diferenas anteriormente respeitadas sob o domnio britnico, mas que agora perderam sua
natureza autoevidente sob o impacto da ideologia da igualdade social. No lado ocidental da nova
fronteira, muulmanos mataram hindus e sikhs, no lado oriental, hindus e sikhs massacraram
muulmanos (NRC Handelsblad, 9 de agosto de 1997). Confrontos violentos entre muulmanos
e hindus j eram um problema h muito tempo na prpria ndia. Para explic-los, os estudiosos
muitas vezes acompanham a viso nativa e enfatizam as diferenas entre as partes em conflito
e deixam de lado as semelhanas. Em uma resenha da edio francesa do livro de Dumont,
Yalman afirma: 'O problema, entretanto, no simplesmente que os princpios fundamentais
do hindusmo e do Isl sejam diferentes. No contexto indiano, ao contrrio, o problema central
so as semelhanas culturais extraordinrias entre os hindus e os muulmanos. A ideologia geral pode
expressar a polarizao, mas, na definio de Dumont, no d conta das nuances, em particular
dos muulmanos' (1969, p.128-9, grifos meus). O narcisismo das pequenas diferenas tambm
pode nos ajudar a compreender porque, em ambientes urbanos modernos, muitas vtimas de
crimes violentos so mortas por amigos, parentes ou conhecidos. Uma pesquisa recente sobre
1.156 mulheres, que morreram assassinadas entre 1990 e 1994 em Nova Iorque, relata que quase
metade das vtimas cuja relao com seu assassino podia ser identificada foram mortas por seu
parceiro atual ou anterior (International Herald Tribune, 01 de abril de 1997). Estamos lidando aqui
com relaes estruturais caracterizadas pela diminuio de diferenas hierrquicas e culturais
entre homens e mulheres que coincidem com um envolvimento mtuo crescente. Knauft analisou
detalhadamente a coexistncia paradoxal entre amizade afetuosa e violncia extrema (geralmente
no seio da prpria comunidade) entre os Gebusi na Nova Guin, cujos ndices de homicdio esto
entre os mais altos registrados junto s sociedades humanas (1985, p.116-17). O autor observa que
'o mesmo padro (embora em grau muito reduzido) evidente nas relaes conjugais ou entre
INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas 299
Mas esse exame preliminar d uma certa ideia da conexo existente entre
a violncia extrema e a identidade ameaada que se segue perda das
diferenas entre grupos. O narcisismo das pequenas diferenas se manifesta
na nfase e na acentuao de distines sutis vis--vis outros com quem h
muitas semelhanas. Estamos interessados em formas de ao simblica par
excellence nas quais elementos sociais, culturais, morais, mentais e cognitivos
esto intimamente entrelaados. O significado terico do narcisismo das
pequenas diferenas sugere que a identidade quem a pessoa , o que
representa ou o que defende, de onde retira sua autoestima se baseia em
distines sutis que so enfatizadas, defendidas e reforadas contra aquilo
que mais prximo, porque isso que representa a maior ameaa. Isso nos
leva de volta a Simmel, que argumenta que, para manter a honra, as pessoas
esto prontas a fazer e a exigir terrveis sacrifcios.
Em um subrbio de uma cidade inglesa situada na regio central
da Inglaterra, estudado nos anos 1950, dois bairros adjacentes de classe
trabalhadora estavam em conflito: as famlias melhor organizadas que
viviam l h mais tempo excluam e estigmatizavam os recm-chegados, que
no podiam se defender devido ao seu baixo grau de coeso social (Elias e
Scotson, 1965). As famlias de classe trabalhadora j estabelecidas se sentiam
ameaadas pelos recm-chegados e temiam ser colocadas no mesmo nvel
que suas cpias, que toleravam em seu meio uma pequena minoria de
famlias desviantes. As pessoas que moravam no bairro prximo de classe
mdia (onde algumas famlias de classe trabalhadora tambm residiam)
formavam um grupo de referncia para as famlias estabelecidas de classe
trabalhadora, mas no se sentiam incomodadas pela presena dos recm-
chegados. Para eles, no havia qualquer razo para se preocupar, j que a
distncia social era grande o suficiente para que no se sentissem ameaados.
amantes na nossa prpria sociedade: afetos positivos intensos tm um potencial subjacente para a
raiva ou a violncia extremas quando a relao termina ou quando um lado se sente trado. (...)
Nos pases ocidentais, a violncia fsica e o homicdio tm sido documentados com frequncia
maior entre cnjuges com o lao de casamento sendo o mais ntimo e mais valorizado na nossa
sociedade' (1985: 182-3). Knauft argumenta, de forma convincente, que entre os Gebusi 'talvez
seja exatamente a intensa valorizao do ideal de 'boa companhia' que acaba por levar violncia'
e observa que, em certo sentido, 'a violncia que provm das atribuies de feitiaria entre os
Gebusi no a anttese da 'boa companhia', mas seu pice final' (1985, p.111-12). Knauft observa
ainda que entre os homens, a coexistncia de amizade e agresso letal tem sido etnograficamente
documentada em diversas sociedades politicamente descentralizadas, em particular naquelas com
normas rgidas de harmonia e cooperao' e com 'uma carncia geral de diferenas de status entre
os homens adultos (1985, p.337).
300 INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas
Esse exemplo demonstra, em pequena escala, como a estigmatizao
acompanha as pequenas diferenas, mais do que as grandes, e que a distncia
social, o maior nvel de controle e um equilbrio estvel de poder protegem
as pessoas tanto da contaminao quanto do medo da contaminao.26 Les
extrmes se touchent, tambm literalmente. Em seu livro sobre a etiqueta da
corte nos sculos XVII e XVIII, Elias descreve o modo como as damas da
nobreza podiam se despir e se banhar sem qualquer cerimnia na presena
de suas criadas uma forma de intimidade encontrada tambm em outras
sociedades estratificadas, como nas observaes de Simmel sobre a discrio.27
O exemplo ingls tambm mostra que o narcisismo das pequenas
diferenas no resulta em violncia automaticamente. Conforme discutido
acima, outros fatores ajudam a determinar a tonalidade e os matizes das
relaes entre grupos rivais. O contexto poltico o papel do Estado -,
juntamente com as condies demogrficas e ecolgicas, crtico. Em que
medida h um monoplio relativamente estvel, eficaz e impessoal dos meios
de exerccio da violncia? Em todos os casos em que uma perda das diferenas
resultou em violncia extrema encontramos estados instveis: as minorias,
seus direitos, suas identidades social e cultural estavam desprotegidos. Em
alguns casos, o Estado e o exrcito tomam partido, de forma mais ou menos
aberta, de uma das partes em conflito, como no Sri Lanka, em Bali, em
Ruanda e na antiga Iugoslvia.
26
Comparar com a viso comparativa de Dumont, resumida em um conjunto de aforismos em
um pargrafo sobre o racismo norte-americano com o ttulo 'Da hierarquia discriminao'.
Por exemplo, 'Torne a distino ilegtima e voc ter discriminao' e 'A segregao substituiu a
etiqueta como um modo de distncia social' (Dumont, 1980, p.262ff).
27
Elias (1969, p.77n). Em seu ensaio sobre a no pessoa, Goffman cita uma passagem de Mrs.
Trollope em Domestic Manners of the Americans (1832) sobre a ntima relao entre senhores e
escravos: Vi uma vez uma senhora que, sentada a uma mesa entre um homem e uma mulher, se
sentiu obrigada pelo recato a avanar sobre a cadeira de sua vizinha para evitar a indelicadeza de
tocar o cotovelo de um homem. Vi uma vez essa mesma jovem amarrar seu espartilho com a mais
perfeita compostura diante de um criado negro (1959, p.151-2).
INTERSEES [Rio de Janeiro] v. 18 n. 2, p. 273-306, dez. 2016 BLOK, O Narcisismo das Pequenas Diferenas 301
Simmel, Elias e outros na criao de um esboo de uma teoria geral do
poder e da violncia. Devemos dar o crdito a Bourdieu por ter reaberto a
discusso sobre o narcisismo das pequenas diferenas com uma afirmao
perspicaz. A identidade social est na diferena, e a diferena estabelecida,
reforada e defendida contra aquilo que mais prximo e aquilo que
mais prximo (nos vrios sentidos do termo) representa a maior ameaa.
Comeamos com Freud e adequado concluir tambm com ele, porque
estava bem familiarizado com o problema do duplo monstruoso - e com
base em sua prpria experincia. Freud e Arthur Schnitzler eram ambos
judeus, moravam na mesma cidade, eram ambos mdicos, pertenciam
mesma gerao e, alm disso, tinham muita afinidade de esprito. Freud
estava ciente j h anos da existncia de uma forte semelhana entre suas
ideias e as de Schnitzler, mas passou-se um longo tempo at que ele decidisse
fazer contato com o famoso dramaturgo. Em uma carta para Schnitzler
escrita em maio de 1922, ele explica o porqu:
28
Carta de Freud a Schnitzler, 14 de maio de 1922, citada por Scheible (1976, p.119, p.121).
** Maria Claudia Coelho professora Associada de Antropologia e Chefe do Instituto de Cincias
Sociais (ICS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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