Machado de Assis e Guimarães Rosa - Miopia e Transgressão
Machado de Assis e Guimarães Rosa - Miopia e Transgressão
Machado de Assis e Guimarães Rosa - Miopia e Transgressão
Resumo:
Leitura comparativa entre vida e obra de Machado de Assis e Guimares Rosa,
enfatizando, em ambos, o olhar mope e a tica transgressora a partir da lente crtica da
realidade. O texto como pretexto de leitura da sociedade e da prpria condio humana.
A sutileza da escrita do Machado crtico e ficcionista, pelo olhar agudo do personagem
Brs Cubas, defunto autor, atento realidade de seu tempo e espao e, mais ainda,
complexa teia que envolve o comportamento humano. O homem e o mundo
redescobertos pelas lentes da escrita rosiana, de Miguilim a Riobaldo, numa trajetria
pelos sertes. Em ambos, a fora do imaginrio a seduzir e provocar o leitor, operando a
transfigurao do real e vislumbrando novos tempos na sociedade, cultura e na
Literatura Brasileira.
Introduo
O ano de 2008 um marco celebrativo em que se faz memria destes dois grandes
referenciais da Literatura e da cultura brasileiras. Machado de Assis (1839-1908), pelo
centenrio de sua morte. E Guimares Rosa, os cem anos de nascimento (1908-1967).
Em ambos, uma particularidade biogrfica em comum merece destaque. Como
James Joyce, Joo Cabral de Melo Neto, Jorge Luiz Borges, Glauco Mattoso, James
Joyce e John Milton, Lus Vaz de Cames, dentre tantos outros, tiveram de conviver
com uma deficincia visual, que superaram e da qual tiraram proveito, em sua prtica de
leitura crtica da realidade.
*
Professora Titular e Coordenadora do Mestrado em Educao e Linguagem, do Centro
Universitrio de Caratinga (UNEC); Doutora em Teoria Literria (UFRJ); Mestre em
Teoria Literria (UFJF). ([email protected])
Machado e Rosa eram mopes e, embora a miopia seja uma limitao visual j
que os olhos podem ver objetos prximos, mas no so capazes de enxergar claramente
os objetos que esto longe eles souberam, com admirvel destreza, enxergar em
profundidade o ser humano com delicadeza e aguado senso crtico. O conjunto de suas
obras oferece ao leitor uma complexa leitura da realidade, sob uma tica transgressora,
tanto na maneira de concepo da vida e das relaes humanas, quanto na prpria arte
do fazer literrio.
A metfora da miopia, que aqui se toma como ponto de partida para a leitura
comparativa de aspectos significativos na vida e obra de Machado e Rosa, sugere-se,
mais que uma condio limitadora da capacidade visual, uma forma de superao e
transgresso do olhar, ultrapassando a maneira convencional de ver o os homens, o
mundo, a natureza e a vida.
Miopia, nome popular dado hipometropia o erro de refrao da luz no olho,
mope, que apresenta uma curvatura da crnea acentuada ou comprimento do olho alm
do normal. Esse desvio resulta numa focalizao da imagem antes de esta chegar
retina, resultando em uma viso de objetos prximos com nitidez, enquanto que os
objetos distantes so visualizados como se estivessem embaados, desfocados.
O substantivo feminino miopia, originrio do grego, designa 'vista curta' e,
ainda significa "olho fechado", devido ao hbito comum aos mopes de apertarem os
olhos para melhor enxergarem objetos distantes.
Ironicamente, segundo consta no Dicionrio Aurlio, o sentido figurado do
vocbulo miopia designa falta de perspiccia, estreiteza de viso (Ferreira, 1986, p.
1.139). A conotao do termo, nesta comunicao vem insistir, justamente, no oposto:
na argcia do olhar mope, do escritor consciente de seu papel de lanar ao leitor, pelas
lentes do texto literrio, um novo olhar sobre o real.
Esse esforo de fechar os olhos, buscando ver melhor, ver por dentro, sugere,
aqui, o que Mikhail Bakhtin, na anlise do processo de criao da personagem,
denomina contemplao esttica, uma maneira prpria de enxergar o outro:
A revoluo dessa obra, que parece cavar um fosso entre dois mundos,
foi uma revoluo ideolgica e formal: aprofundando o desprezo s
idealizaes romnticas e ferindo o cerne do narrador onisciente, que tudo v
e tudo julga, deixou emergir a conscincia nua do indivduo fraco e
incoerente. O que restou foram as memrias de uma homem igual a tantos
outros, o cauto e desfrutador Brs Cubas (Bosi, 1994, p. 177).
Dentre tantos estudos sobre o autor e a obra, aqui se pretende apenas pontuar,
alguns aspectos significativos dessa nova forma de olhar alm das aparncias, de
convidar o leitor a tambm apertar os olhos para captar o real, pelo imaginrio,
inspirado pela arte da palavra.
Retomando-se as consideraes de Bakhtin, sobre a contemplao-ao,
observa-se, nas Memrias, que Machado se serve de um narrador defunto autor j
liberto de todas as barreiras das convenes sociais, da autocensura, do amor-prprio e
de todas as iluses. Assim lhe possvel contemplar o interior das personagens, penetrar
no mais ntimo de suas vaidades, sonhos, vcios e paixes. Esse recurso, que introduz o
fantstico na literatura realista, sugere uma leitura alm do que alcanam as retinas do
autor, atingindo, pelo imaginrio, o que seria impossvel captar da realidade difusa,
embaada pelo labirinto das paixes humanas.
E ainda mais, numa leitura metalingstica, essa forma livre de um Sterne ou de
um Xavier de Maistre, escrita com a pena da galhofa e a tinta da melancolia (Assis,
1992a, p. 513), resgata a escritura da tradio e a ultrapassa, transgride e depura, ao
propor uma nova forma narrativa de Machado de Assis. Esse o trunfo do narrador
Brs Cubas que, no Prlogo ao leitor, ir se confessar original, extraordinariamente
criativo na produo memorialstica: Conseguintemente, evito contar o processo
extraordinrio que empreguei na composio destas Memrias, trabalhadas c no outro
mundo. [...] A obra em si mesma tudo [...] (Ibidem). Aqui se instaura a dvida entre o
real e o fictcio que instaura o fantstico: a hesitao entre o real, naturalmente
compreensvel, e o sobrenatural, segundo Todorov (2004).
Esse estranhamento na forma ficcional, na caracterizao das personagens e em
tantas outras negativas (Ibidem, p. 639), como o prprio narrador resume no ltimo
captulo de suas memrias, que tornar essa obra um texto plural, antittico, como
observa Therezinha Mucci Xavier:
Homem e o mundo pelas lentes da escrita rosiana: uma trajetria pelos sertes
Aqui o menino se extasia com a paisagem rural, que lhe entranha a alma e lhe
ensina o belo, nas coisas simples do serto. Como um disfarce memorialista do autor
Rosa, a trajetria do menino mope vai se delineando, como um abrir-se ao mundo a
partir do sentido da viso.
Em Manuelzo e Miguilim, Guimares Rosa, pelas palavras do protagonista
menino narra, poeticamente, um episdio que certamente resume uma experincia
pessoal, ao registrar a histria de Miguilim, que, no Mutum, serto das Gerais, vai
aprendendo a enxergar a vida com olhos de adulto, a partir das vrias lies da vida,
marcada pelo sofrimento, em famlia. E vai espelhando na natureza essas lies, como
uma mestra sbia e compassiva, que lhe abre os olhos para enfrentar a dura realidade.
Miguilim vivia com simplicidade, desde pequeno ajudando a famlia no cultivo do
solo e na criao de gado. Entretanto, com a morte rpida do irmo Dito e o suicdio de
seu pai, perdeu a espontaneidade ingnua e aprendeu a dureza da vida. Doente e
abatido, teve sua vida transformada, com a chegada dois homens a cavalo. Um deles, o
doutor Jos Loureno, reparou que o menino olhava com os olhos apertados:
Por que voc aperta os olhos assim? Voc no limpo de vista? Vamos
at l, Quem que est em tua casa?
Me, e os meninos...
Estava Me, estava Tio Terez, estavam todos. O senhor alto e claro se
apeou. [...] Depois perguntava a ele mesmo: Miguilim, espia da: quantos
dedos da minha mo voc est enxergando? E agora?
Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezinho tinha ido
se esconder.
Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera a, Miguilim...
E o senhor tirava os culos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
Olha agora!
E Miguilim olhou. Nem podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo
novo e lindo e diferente, as coisas, as rvores, as caras das pessoas. Via os
grozinhos da areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas
passeando no cho de uma distncia. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta
coisa, tudo... (Rosa, 1995a, p. 540-541).
E Miguilim olhou para todos, com tanta fora. Saiu l fora. Olhou os
matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijo-bravo e so-
caetano; o cu, o curral, o quintal [...].
Olhava mais era para Me. Drelina era bonita, a Chica, tomezinho. Sorriu
para Tio Terez: Tio Terez, o senhor parece com Pai... Todos choravam. O
doutor limpou a goela, disse: No sei, quando eu tiro esses culos, at
meus olhos enchem dgua... Miguilim entregou a ele os culos outra vez.
Um soluozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. Sempre alegre,
Miguilim... Sempre alegre, Miguilim... Nem sabia o que era alegria e tristeza.
Me o beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-leite nas algibeiras, para a
viagem. Papaco-o-Paco falava alto, falava. (Ibid., p. 542).
evidente, neste fragmento, o dilogo, pela fico, do autor homem, no menino
personagem. O doutor se enxerga ao emprestar-lhe as lentes, fecha os olhos, para
contemplar a experincia do menino, cuja viso agora transfigurada, recuperada, ao
transcender o real, que seus olhos antes apreendiam, deformado. E que, agora,
acrescentando-lhe o imaginrio, o sonho reavivado no interior de Miguilim.
Tambm em Grande serto: veredas, essa arte de contemplar o mundo, a
natureza, transcendendo o real, as aparncias, o regional, conduz o leitor travessia
existencial, do interior geogrfico, dos sertes das gerais, para as regies mais
profundas da alma humana. Esse aprendizado pelo olhar revelar uma viso mstica do
mundo, um transrealismo, segundo observa Tristo de Atade: H sempre um
mistrio que cerca a paisagem, as figuras, os atos e as palavras do narrador. uma aura
transrealista, que refoge a qualquer limitao pelos sentidos (1992, p. 112).
Toda a narrativa de Riobaldo ao seu interlocutor permeada pelas lembranas dos
fatos, sempre evocada pelo olhar contemplativo, adensando-se pelas paisagens fsicas e
interiores visitadas, em sua trajetria existencial, pois O serto est em toda parte
(Rosa, 1995b, p. 11). E da hidrografia e topografia sertaneja, o narrador tece o fio de
suas memrias e lhe d uma conotao potica. O rio Urucuia Meu rio de amor o
Urucuia (Ibid., p. 51). O Rio de So Francisco que de to grande, comparece
parece um pau grosso, em p, enorme (Ibid., p. 385). O Chapado onde tanto boi
berra. Da, os gerais, com capim verdeado. Ali que o vaqueiro brama, com suas
boiadas espatifadas (Ibid., p. 51). [...] o Liso do sussuaro concebia silncio, e
produzia uma maldade feito pessoa! (Ibid., p. 38)...
O serto rosiano o lugar das contradies, onde convivem o bem e o mal, a vida
e a morte, o heri e o bandido, como observa Riobaldo, numa de suas inquiries sobre
os mistrios a apreendidos: Melhor de arrepare: pois, num cho, e com igual formato
de ramos e folhas no d a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava,
que mata? Agora, o senhor j viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente
virar zangada motivos no sei [...] (Ibid., p. 13).
Eis uma das metonmias rosianas desse espao antagnico, que simboliza o
prprio interior do ser humano, provisrio, imprevisvel, onde tudo e no , o mesmo
cho duro, de onde tanto pode germinar mandioca mansa, quanto a mandioca-brava. E
at a prpria mandioca-mansa, ali pode tambm se tornar alimento fatal...
Assim tambm as personagens, no romance, revelam a cuidadosa caracterizao
do autor, como uma contemplao esttica e tica do outro, que, pela tica de Riobaldo,
vai alinhavando a sua narrativa, como uma forma de conferir a prpria vida. E sua saga,
povoada pela secreta atrao pelo amigo Diadorim, que o faz constatar que: S se
pode viver perto do outro, e conhecer uma outra pessoa, sem perigo de dio, se a gente
tem amor. Qualquer amor j um pouquinho de sade, um descanso na loucura (Ibid.,
p. 200). Com a morte de Diadorim, a trajetria do jaguno toma outro rumo, a partir da
descoberta, no desvelamento do seu corpo de mulher Deodorina: Uivei. Diadorim!
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol no acende a gua do rio
Urucuia, como eu solucei meu desespero (Ibid., p. 380).
Novamente, ao novo apelo do olhar, como que se esvai a neblina da realidade e o
sonho do amor impossvel se concretiza, definitivo, agora, diante da amada morta.
Assim, no jogo de disfarces, do ser e no ser, relativizando tudo, na dura realidade
do serto que vige dentro de cada homem humano (Ibid., p. 385), em sua travessia
existencial. E mais, no disfarce da narrativa, Guimares Rosa desafia o leitor a tambm
explorar as veredas textuais, penetrar no mistrio da palavra potica e desvelar o real, na
contemplao esttica. Literatura e vida se encontram no jogo do imaginrio.
Enfim, Neiva Pavesi, em Ensaio sobre o olhar, resume, poeticamente, essa
experincia do autor mope, de oferecer ao leitor o seu texto potico, como uma forma
idealizada de ver o mundo:
Consideraes finais
Por trs das lentes da palavra artesanal, Machado de Assis e Guimares Rosa
interpelam o leitor de todos os tempos e lugares, como uma forma singular de sugerir a
reflexo sobre as relaes humanas e a reviso das deformaes da vida em sociedade.
Pela Literatura, a fora do imaginrio vem transfigurar o real, exigindo que o leitor
tambm aperte os olhos, aguce a viso crtica ao seu redor, e vislumbre um novo tempo,
uma nova forma de olhar a natureza humana.
Assim, pela revoluo de uma linguagem esttica transgressora e universal,
unindo tradio e ruptura, esses cones da Literatura Brasileira espelharam flagrantes da
cultura, paixes, anseios e realizaes do homem humano e tantas formas de expresso
da vida. Essa vida que, fecundada pela semente do fascnio que se escorre nas veias do
discurso, faz-se transfigurada, a cada pgina desvelada, a cada mistrio perscrutado com
engenho, arte e sutileza.
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