Chihiro - Análise
Chihiro - Análise
Chihiro - Análise
RESUMO
Contar e ouvir histrias so prticas antigas da humanidade. Os povos representam suas
culturas em diferentes estilos e estratgias no ato da contao. Scherezade e As Mil e Uma
Noites correram o mundo e ainda encantam crianas e adultos com suas aventuras narrativas.
Para seduzir os ouvintes, observava detalhes no mercado, nas ruas, nas pessoas, para utiliz-
los no entorno de seus temas. Por associao de estilo, ao assistir A Viagem de Chihiro,
animao produzida pelo diretor Hayao Miyazaki, surgiu a inspirao e inteno de investigar
a fantasia encontrada na linguagem flmica, que teve por incio do encantamento a produo
do visvel esboado primeiro manualmente, resistindo tecnologia, valorizando o trao
artstico a partir de pesquisa de campo feita por sua equipe para atingir a forma mais prxima
do imaginrio, ou seja, concretizar as ideias de Miyazaki. No cenrio digitalizado e ocidental,
dominado pelas produes americanas, irrompe-se uma obra japonesa, cuja animao
apresentava uma proposta aparentemente simples de composio e criao. E nesse cenculo
acontece o inesperado, em 2003, A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001,
Hayao Miyazaki), um filme estrangeiro, leva o Oscar de Melhor Animao, aps um ano da
entrega do primeiro prmio. Essa obra tem despertado tanto interesse que, alm do Oscar, foi
contemplada com o Urso de Ouro no Festival de Berlim, mais outras 34 premiaes e 19
nomeaes. Motivos apurados, o passo seguinte ser a busca de respostas para a apreenso
do mtodo. possvel, por meio da observao e aplicao de um procedimento esquemtico,
desenvolver o mtodo. Da, o intuito ser analisar o processo de criao, relacionar a obra do
diretor com as formas de interpretao e representao do contexto histrico-cultural;
entender como as diferentes linguagens se tornam importantes para a apreenso dos
significados dos elementos simblicos, ressaltando a relevncia de compreender conceitos e
formas, como um modo de buscar os prprios meios de construir esquemas de desenhos.
Dessa forma, a principal inteno da pesquisa ser investigar o processo de criao como
elemento estrutural para o desenvolvimento da criatividade, pretende-se tambm extrair
depoimentos contidos no making of que afirmem a possibilidade de um mtodo. Esse trabalho
ter como sistema de pesquisa o mtodo hipottico dedutivo, do qual ser traado um
percurso de anlise dos excertos grficos extrados tanto do filme (obra acabada) de Miyazaki
quanto do seu making of (obra em construo) para ilustrar o conceito da prtica do desenho
de observao, o qual foi utilizado pela equipe do diretor no processo de criao da animao.
Assim, os objetivos gerais so: investigar e refletir sobre o desenho de observao que sai do
storyboardy, enquanto ilustrao, ganha vida nos avatares e se transforma em animao nas
telas iluminadas do cinema. Para isso, o corpus, alm do filme, atm-se ao making of, o qual
ser explorado como mtodo de processo criativo da representao pela observao. Para isso,
a fundamentao terica est alicerada nos autores: Faya Ostrower, Edith Derdyk, Vincent
1
Doutorado em Letras (1999), Unesp/Assis/SP. Mestrado em Projeto, Arte e Sociedade (1994) Comunicao e
Poticas Visuais, Unesp/Bauru/SP. Atualmente, Professora Assistente Doutora da Unesp-Bauru. Tem
experincia na rea de Comunicao e Artes. [email protected].
2
Graduada em Educao Artstica Habilitao em Artes Plsticas. Atualmente, Professora da EE Francisco
Antunes e participa do Projeto Ler e Escrever da EE Joaquim Rodrigues Madureira. [email protected].
2
Jouve, Fanny Abramovich, Cmara, dentre outros. Essa pesquisa ter como resultado testar o
mtodo de Miyazaki, levando-se em conta o fazer e o como fazer no processo criativo. Outro
resultado o teste enquanto material didtico para o comunicador/arte/educador, que permite
plurileitura e plurissignificao. Nesse sentido, destaca-se a importncia do estudo sobre
leitura do legvel e do visvel, da intertextualidade e da pesquisa de smbolos culturais para
que o intangvel se torne tangvel no processo de criao. Observa-se que a narrativa oriental,
implicitamente, faz aluso a Literatura Infantil ocidental como a viagem de Alice no Pas das
Maravilhas; na cena em que Chihiro perde o sapatinho, pressupe-se que ela seja a
aculturao da Cinderela, alm da Alice viajante; o vento mgico; a sombra
assustadora; jogo de espelhos, iluso (pssaros de papel - origami), personagem sem rosto; a
roca vira tric; A Galinha dos Ovos de Ouro. Tem-se, ento, a intertextualidade, atualizao
e reposicionamento de elementos clssicos do realismo mgico na construo da animao no
processo virtual. A presena mesmo que sutil da literatura ocidental pode ser lida como
homenagem ou como referncia de sucesso de clssicos globalizados. Assim, a fuso entre
oriente com pitadinhas da varinha mgica do ocidente resultou em literatura atraente,
instigante, encantadora e sedutora. Do esboo animao, as linguagens transitam entre a
poeticidade e a imaginao. Logo, experincia e observao resultaram em efeito de sentido
produzido pela imaginao.
O homem descobriu que no era necessrio estar presente para transmitir uma ideia,
deixar um recado, expressar um sentimento ou contar uma histria. Segundo Abramovich,
quando seguramos um texto nas mos, descobrimos qual a mensagem que o autor nos
comunica atravs de uma personagem, pois o modo de compreenso que o autor possui sobre
uma personagem no o mesmo que o do leitor, e, no entanto:
Para Jouve, a leitura um processo pelo qual o indivduo percorre alcanando nveis
cada vez maiores de compreenso. Esse desenvolvimento parte de um conhecimento cultural
fundamental, aqueles que so historicamente acumulados no convvio social, ou seja, atravs
da transmisso sistemtica e espontnea dos saberes que permite que o leitor, ao fazer o
deciframento da leitura (nvel do sentido) comece a compreender, dentro do texto, qual
o modo pelo qual o sentido est constitudo, sabendo-se que ele deve ter o mesmo para
todos os leitores (JOUVE, 2004, p. 128).
3
Paulatinamente, o cenrio da ilustrao foi mudando, o espao que antes era ocupado
somente pela escrita, foi cedendo lugar ao trabalho do ilustrador. Atualmente, dependendo da
inteno do artista, a imagem ocupa o lugar do texto escrito, servindo como modelos que do
margem a muitas possibilidades de narrativas, das quais o criador das imagens tambm o
autor das histrias. Segundo Abramovich (1997, p. 26), as possibilidades mencionadas
compreendem narrativa apenas visual, a histria contada pelos desenhos ou fotos, sem
nenhuma palavra.
importante pensar o verbal pelas imagens, pois os processos de significao que se
buscam esto inseridos no mbito visual, na linguagem flmica. Para Cmara, a
responsabilidade de conferir sentido s cenas, dispondo os objetos de maneira estratgica e
distribuir as imagens em planos, do realizador. Esse profissional incumbido de colocar
em evidncia a imagem desencadeadora do significado a ser apreendido, atraindo o interesse
do espectador (dentro de um tempo limitado). Se a disposio da imagem ou um conjunto
delas no estiverem dentro de uma composio da qual os planos no estejam agrupados de
forma correta, a histria perder pontos referenciais importantes que dariam sentido s cenas,
das quais o espectador no conseguir efetuar uma leitura perfeitamente compreensvel.
Ostrower (2009) fala em processo ordenado que orienta o pensar e o imaginar.
DESENHOS VIVOS
O termo narrador deve ser conhecido como aquele que instaura uma narrao e a
desenvolve, moldando situaes, aes e personagens, podendo interferir e paralisar
o tempo narrativo da estria que est sendo desenvolvida. [...]. (LEONE;
MOURO, 1987, p. 18).
3
Storyboard: [...] O storyboard uma premontagem do filme, uma sucesso de planos desenhados, baseados no
roteiro narrativo, onde se analisam todos os aspectos do filme. [...] Estudo em pormenor do planejamento visual
da narrativa. (CMARA, 2005, p. 49).
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passo a passo, mais complexo, pois mesmo que se siga um molde das formas clssicas
para atribuir movimento (vida) ao desenho, ter que emprestar o movimento de modelos
reais (pessoas) que, a partir da observao de suas aes, ser possvel uma criao mais
realista. De modelos reais ou de esquemas, o indivduo sempre busca referncias para criar,
pois de seu contexto, dos elementos que interagem com ele, que emergem as possibilidades
de produo, a partir de suas experincias. Seus desenhos contam aquilo que seus olhos
conseguem ler.
4
Jargo utilizado para designar um processo de produo audiovisual.
5
Religio genuinamente japonesa e a mais praticada em seu pas de origem; o xintosmo (caminho dos deuses)
busca a harmonia entre o homem e a natureza.
6
E por falar em Casa de Banho, esta um costume muito antigo no Japo, o qual era um
ato pblico, um lugar onde homens e mulheres se banhavam. Tambm havia a procura das
guas termais naturais e visitas s casas de banhos mais sofisticadas. Esses estabelecimentos
ofereciam servios de imerso nas guas quentes com sais e ervas medicinais. O perodo Edo
foi poca em que essa prtica tornou-se popular entre os japoneses que as chamavam de
Yuna baro, yu em portugus traduz-se para gua quente, e Yubaba significa Velha Senhora
da gua quente, exatamente o nome da administradora da Casa de Banho do filme. No Japo
costume o nome ser aquilo que a pessoa faz. Miyazaki, ao tomar emprestado esse costume
cultural, chama a ateno a um ritual da tradio japonesa que est se tornando cada vez
menos praticado.
As referncias culturais no param por a, aspectos da religio budista faz-se notar em
um determinado trecho do filme, trata-se do momento em que a garota Chihiro apanha um
trem. Observando a cena com ateno, veremos que nesse trem h uma placa com duas
inscries chinesas (caracteres), a traduo dos significados de cada caractere caminho e
meio, respectivamente, ou seja, caminho do meio. Para um olhar ocidental talvez essa
referncia possa passar despercebida, mas queles que so familiarizados com o significado
dos smbolos, compreendem que se trata de uma metfora, mais precisamente das designaes
do caminho de Buda ou Budadharma. um modo que Miyazaki encontrou para dizer que
aquele momento era decisivo para a personagem, a qual estava com as emoes perturbadas.
Chihiro foi busca de equilbrio. o dualismo do diretor se fazendo presente, querendo juntar
as partes, as quais so diferentes, mas que se complementam: fantasia-realidade, homem-
esprito, novo-velho, medrosa, corajosa.
MTODO DE CRIAO
Nos exemplos das ilustraes 1-A e 1-B, nota-se o mtodo utilizado pelo diretor
Miyazaki. Ele instrui sua equipe quanto criao da personagem Haku, no momento em que
assume a forma de um drago. Como se tratava de uma figura existente apenas na fico, o
diretor precisou buscar modelos do mundo real para conseguir atribuir aes personagem
com o objetivo de criar uma sequncia animada com uma ao especfica.
Nota-se que na ilustrao 1-B o diretor descreve o modo como o drago deve mover-se.
A lagartixa foi referncia mais prxima que encontrou para elucidar o que pretendia extrair.
Ele desejava que o drago adquirisse movimentos semelhantes aos dela, principalmente
quando a personagem deveria grudar e descer pela parede: - O drago, vem caindo... Por ser
um drago no desce ao cho, como se fosse uma lagartixa, ele gruda na parede. Podemos
perceber na ilustrao 2 a apropriao feita a partir do referencial dado.
sbita e rpida. Mesmo diante de tantos exemplos, a equipe ainda no havia atingido o nvel
de compreenso necessrio, atrasando a continuidade dos esboos.
O diretor ento infere que seria necessria uma investigao visual para enriquecer o
repertrio dos ilustradores, nutri-los com imagens, e a observao de modelos foi o meio
sugerido. Ele prope uma visita a um restaurante com pratos especializados em enguias (pela
semelhana com a cobra), a instruo era observar o exato momento em que uma enguia fosse
lanada do alto e, posteriormente, cortada. Deveriam, inclusive, apreender os movimentos de
contores do peixe, para prosseguirem com outros movimentos realizados na mesma cena. A
partir desse ponto de observao, considerava que a forma da ao concebida pelo seu
imaginrio ficaria mais clara.
Segue abaixo a ilustrao da queda:
Assim eu encarei o desafio de escrever algo que atrairia as meninas para mim, algo
que elas poderiam pensar sobre seu futuro e seu relacionamento com a sociedade.
[...] as crianas esto perdendo tudo. Chihiro sofre da mesma coisa. A raiva na face
dela tpica de crianas que no tem muito tempo para brincar. Uma vez
enfrentando uma crise, a guerreira em Chihiro desperta. As habilidades para adaptar
e usar seu julgamento vem tona. Eu no queria que ela fosse uma herona atraente
e perfeita. O charme dela vem do corao e da profundidade de sua alma. (A
VIAGEM..., 2001).
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Mang destinado ao pblico juvenil feminino.
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Pauzinhos que os japoneses utilizam para comer, tambm podem ser encontrados como ohashi.
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Esse exemplo demonstra como a ilustrao (no sentido de tornar compatvel imagem
desejada) no uma tarefa fcil, mas possvel de se realizar mediante aplicao de um
processo facilitador, caso contrrio expresso cultural seria representada de forma diferente
da original.
CONSIDERAES FINAIS
experincias de vida e gosto pessoal. Essa observao foi vlida a partir dos conceitos de
Ostrower (2009), ao dizer que so os caminhos (escolhas) que orientam e influenciam o
indivduo durante o processo de criao.
Muitas outras cenas do making of do filme poderiam ser analisadas, mas, assim como
nas produes japonesas, as histrias sempre acabam no ponto onde foi compreendida a
essncia da mensagem.
Demonstrou-se a maneira criativa de construir imagens, de como observar e extrair
aspectos da vida real e coloc-los dentro de um contexto de fantasia, no qual espritos, deuses
e humanos dividem o mesmo plano flmico, mesmo que metaforicamente, dialogando com as
temticas atuais.
O resultado obtido relativo semelhana das formas comprova que, a partir desse
processo, a expressividade da imagem/teste foi baseada em referncias da cultura africana,
criada tambm a partir de esquemas de desenhos j resolvidos (modelos prontos).
Sendo assim, que a busca da forma pretendida de contedo simblico, acontea por
meio de um processo do qual no se restrinja somente imagem visual, e sim que se estenda
aos significados que geram, representam, provocam, instigam, a partir de experincias e de
contexto cultural.
REFERNCIAS
LEONE, Eduardo; MOURO, Maria Dora Genis. Cinema e montagem. So Paulo: Editora
tica, 1987.
MELLO E SOUZA, Gilda de. O desenho primitivo. In: Exerccios de leitura. So Paulo:
Duas Cidades, 1980.
18
SILVA, Cleide G. da; SPERION, Mrcia D.; MORENO, Mrcia. A concepo dos
pedagogos quanto a importncia e a funo do desenho infantil. Disponvel em:
<http://www.periodicos.udesc.br/index.php/arteinclusao/article/viewFile/2110/1601>. Acesso
em: 27 out. 2011.