Hermeneutica Schlegel e Schleiermacher PDF
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Resumo: A fortuna crítica de Friedrich Schlegel é rica em alusões a sua relação com
Schleiermacher. Ambos conviveram em Berlim por volta de 1800, época em que Schlegel
editava a Athenäum e em que Schleiermacher ainda não escrevera seus principais textos sobre
hermenêutica. É possível conceber Friedrich Schlegel como um predecessor de Schleiermacher?
Na tentativa de responder a essa pergunta, vamos nos deter sobre três textos, todos eles
publicados na Athenäum: o ensaio sobre Lessing (Über Lessing, 1797), o ensaio sobre o Wilhem
Meister de Goethe (Über Goethes Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1798) e o ensaio da
ininteligibilidade (Über die Unverständlichkeit, 1800).
Abstract: In Friedrich Schlegel’s criticism, one can find many references to his relationship to
Schleiermacher. Both were closely related by the time they in Berlin around 1800, when
Schlegel edited the Athenäum and Schleiermacher had not yet written his most important texts
on Hermeneutics. But can we consider Schlegel an early influence on Schleiermacher’s thought
by that time? In order to answer this question, we will focus on three of Schlegel’s essays of that
time: Über Lessing (1797), Über Wilhem Meisters Lehrjahre (1798) and Über die
Unverständlichkeit (1800).
produz a diferença entre os espíritos” (Id., ibd.). Schleiermacher, que dialogará com Ast
em seus Discursos da academia, de 1829, buscará justamente os princípios de uma
hermenêutica geral no próprio ato da interpretação. As diferenças, que para seu
antecessor Ast são anuladas ou desconsideradas a partir de um conceito idealista de
espírito e de reprodução do Todo nas partes, são, para o Schleiermacher maduro, o
cerne do ato da interpretação. O procedimento hermenêutico prevê um intercâmbio de
diferenças estilísticas e históricas entre intérprete e texto, cujo objetivo final é o
estabelecimento de coerência, correspondência e identidade. A interpretação funciona
segundo o modelo de pergunta-e-resposta, procedendo segundo os preceitos do círculo
hermenêutico, no qual a parte e o todo se interpenetram continuamente, até que se tenha
estabelecido uma totalidade semântica articulada.
Depreende-se daí que a hermenêutica geral desenvolvida pelo Schleiermacher
pós 1829, que tem justamente na integração das diferenças, assim como na
possibilidade de universalidade do entendimento, o pressuposto do ato da interpretação,
encontra-se, em seus principais teoremas, em franca oposição ao pensamento filológico,
literário e filosófico do jovem Schlegel. A hermenêutica de Schleiermacher compartilha,
por exemplo, com o futuro estruturalismo de Saussure a concepção de uma linguagem
articulada em níveis, de cuja combinação e substituição de elementos se constrói o
sentido. Uma tal concepção é cabalmente desfeita por textos como Über die
Unverständlichkeit [Da ininteligibilidade, 1800], ensaio do jovem Schlegel no qual a
ironia é o sintoma mais dramático e irrevogável da obscuridade lingüística, e como
Monolog [Monólogo, 1798], de Novalis, que antecipa, de maneira espantosa, a crise da
referencialidade instalada na lingüística pós-saussureana.
A concepção de linguagem praticada e defendida por F. Schlegel opõe-se ainda a
um conceito fundamental para a hermenêutica de Schleiermacher, que tem no trecho
obscuro e no equívoco da inteligibilidade [Missverständnis] a fonte de sua metodologia
de interpretação. Para Schleiermacher, é exatamente o Missverständnis que pode e deve
ser elucidado através dos procedimentos de contextualização lingüística, estilística,
histórica e histórico-literária, o que permitirá a completa interpretação e desvendamento
do texto. A isso, SCHLEGEL oporá o caráter irrevogavelmente opaco da linguagem do
qual a ironia se faz índice:
Para que se possa compreender alguém, é preciso ser mais inteligente do que
ele, depois tão inteligente e depois ainda tão estúpido quanto ele. Não basta que
se entenda melhor do que o autor entendeu o sentido próprio de uma obra
confusa. É preciso também conhecer os princípios da própria confusão, ser
capaz de caracterizá-los e construí-los. (SCHLEGEL 1956: 58)
Sob a luz da pesquisa atual sobre Schlegel, a primeira parte da primeira da oração pode,
sem dúvida alguma, ser mantida. Schlegel não está, de fato, preocupado ou empenhado
em desenvolver uma teoria hermenêutica, nem mesmo uma “moderna”, “romântica” ou
“filológica” teoria hermenêutica. É possível também manter o pressuposto de que faz
parte das preocupações do Schlegel de 1800 estabelecer uma visão crítica das relações
entre filosofia e filologia, o que se pode reconhecer de maneira nítida no texto da
ininteligibilidade. Mas o fato de não haver um ato positivo na direção da construção de
uma teoria hermenêutica não significa que esta, como arte da compreensão do discurso
do outro, desempenhe um papel secundário. É provável que nesse ponto, e só nesse
ponto, resida a verdadeira identidade entre o pensamento de F. Schlegel e
Schleiermacher. Ambos estão nitidamente comprometidos com a questão do alcance e
das possibilidades da compreensão intersubjetiva. Sob esse aspecto, Schleiermacher irá,
de fato, construir seu sistema hermenêutico (ou resgatá-lo, a partir da hermenêutica da
Aufklärung), ao passo que Schlegel, sob o viés do paradoxo, do fragmento e da ironia,
jamais atuará esse sentido. Seu legado, ao mesmo tempo contemporâneo da construção
da hermenêutica moderna, oferece a crítica (e mesmo a “desconstrução”) desse edifício
filológico2.
Da letra ao espírito
2 Fato que o aproxima, a nosso ver, da perspectiva “desconstrucionista” de Paul de Man e do pós-
estruturalismo em geral.
Schlegel propõe em seu lugar a “dedução de um novo leitor”, criado em tempo real pelo
próprio texto e seu autor:
Até aqui está claro que a explicação da palavra e das coisas ainda não é
interpretação, mas sim apenas um elemento dela, e que a hermenêutica começa
apenas com a determinação do sentido, por meio desse mesmo elemento. Da
mesma forma está claro que a determinação do sentido jamais será correta se ela
não suportar a prova do espírito do escritor, assim como a prova da
Antigüidade. Pois ninguém fala ou escreve algo contrário a seu próprio
espírito, a não ser em um estado de perturbação mental. (in FRANK 1989 :22,
grifo meu)
seriedade das intenções do autor será abalado e reformado pela “mais livre de todas as
licenças, pela ironia”.
A complexidade das relações entre Schlegel e a hermenêutica não se esgota aí.
Há textos de Schlegel que muitos consideram o ponto alto do procedimento
hermenêutico, como o ensaio sobre Lessing e a crítica sobre o Meister de Goethe, o
famoso Übermeister.
O ensaio constrói-se sobre uma estrutura de ziguezague, sendo que Schlegel apresenta
conceitos firmados pela fortuna crítica, para logo depois desfazê-los como equívocos
que seriam. O instrumento mais utilizado é certamente uma ironia moderada porque não
completamente aparente. Em suas Charakteristiken [Características, 1797], em meio às
quais se encontra o ensaio sobre Lessing, Schlegel apenas aponta para aquela ironia que
corre à larga no ensaio sobre a ininteligibilidade. Aqui, trata-se menos de uma
interpretação “gramatical” ou “filológica” da obra de Lessing do que de um texto
dedicado a investigar
4 Não por acaso, lembramo-nos aqui do sugestivo título do livro de Paul de Man, Blindness and insight
(University of Minnesota Press, 1983). Ali, De Man propõe uma espécie de leitura corretiva de vários
tópicos essenciais do pensamento filológico e filosófico moderno, apontando, maior parte das vezes, para
a “cegueira” da crítica que o precedeu.
(SCHLEGEL 1967: 100). A “brilhante aparição” tornaria turva a visão dos que a
contemplassem5. Esse é o argumento básico sobre o qual Schlegel construirá sua
interpretação de Lessing. Existe uma opinião crítica anterior firmada por sobre
pressupostos equivocados. A essa é preciso, literalmente, destruir (abbauen):
Como resultado disso, muito freqüentemente o autor é apresentado sob uma “falsa luz”.
A impressão geral, predominante, torna-se “crença cega”, “hábito irrefletido”, “tradição
sagrada” e, por fim, quase uma “lei inquebrantável”. (SCHLEGEL 1967: 101). Se não
fosse pela “crença sagrada”, muitos poderiam ter considerado Lessing “nada mais do
que um rematado místico, um cismador sofista e um pedantezinho” (SCHLEGEL 1967:
103). Schlegel propõe-se então a investigar a trajetória da construção da opinião
vigente, de modo a desconstruí-la para depois a reconstruir da maneira “correta”.
O primeiro julgamento sobre Lessing que deve ser refutado é: “Lessing foi um
grande poeta” (no sentido lato, que inclui também a idéia de autor dramático). Aquele
que não leu as obras em si, mas apenas as opiniões sobre elas, seria facilmente levado a
considerar que as obras dramáticas seriam melhores do que “Erziehung des
Menschheitsgeschlechts” [A educação da humanidade] e Freimaurergespräche
[Diálogos dos maçons]. Em segundo lugar, Schlegel afirma que Lessing fora louvado
como um “conhecedor quase perfeito e completo da poesia”, como “gênio universal”:
“Endeusam-no, fazendo dele o sal da terra, e parecem crer que seu espírito não
conheceu, definitivamente, quaisquer limites”. (SCHLEGEL 1967: 103). A despeito dessa
amplitude que se atribui a Lessing, quase não se fala “do Witz e da prosa”, que, segundo
Schlegel, mereceriam ser chamados de “clássicos”, em Lessing. Mais do que isso: uma
teoria da prosa em língua alemã deveria começar a partir do estilo de Lessing
(SCHLEGEL 1967: 104). Schlegel prossegue assim desautorizando a opinião vigente
sobre o autor, apontando sempre para “os principais pontos de vista e rubricas sob os
quais se julgou ou se quis dizer algo sobre Lessing”: “sobre o que ele era de verdade, no
5 A metáfora utilizada lembra, mais uma vez, o título do livro de Paul de Man, Blindness and Insight.
todo, sobre o que queria ser e deveria se tornar, sobre isso parece que ninguém tem nada
a dizer ou a julgar.” (SCHLEGEL 1967: 108)
Schlegel passa então a criticar o método da abordagem aos textos de Lessing,
censurando as opiniões que não se constituíram
Curiosamente, o comentário que Schlegel faz sobre Lessing (de caráter “filológico”,
embora desprovido de comprovação textual) cabe à perfeição como descrição da obra
do próprio Schlegel. É possível afirmar que Schlegel aplica aqui, de maneira invertida,
algo que anunciara nas primeiras páginas do ensaio sobre Lessing: a intenção de
submeter o próprio texto de Lessing às leis que este estabelecera para o julgamento dos
grandes mestres da arte e poetas (SCHLEGEL 1967:108). Schlegel parece julgar a obra de
Lessing projetando sobre ela seu próprio estilo de composição. Por fim, Schlegel afirma
que “é de se esperar que, de um homem como esse [Lessing], uma conversa breve possa
ser muita mais instrutiva, e conduzir muito mais longe, do que uma longa obra.” Linhas
antes, Schlegel já afirmara que “uma conversa viva teria muito mais poder e força do
que a palavra escrita.”
Essa concepção irá se desenvolve em toda a sua amplitude e consequências no
ensaio da ininteligibilidade, que se pode considerar o coroamento do pensamento
hermenêutico de Schlegel. Ali, convergirão tanto os pressupostos que compartilha com
Schleiermacher quanto se dará livre vazão ao furor anti-hermenêutico, em associação
com a ironia e a noção de linguagem em tempo real, que privilegia o momento da fala
entendida como performance.
que ele persegue em silêncio, e que não somos capazes de pressupor, quando
confrontados ao Gênio, cujo instinto se torna arbítrio. (SCHLEGEL 1988: 160)
A expressão “intenção do autor” [Absicht des Autors] ocorre repetidas vezes no texto,
sempre associada a uma descoberta que deve trazer maior clareza sobre o objeto
analisado, ainda que eivada de uma certa ironia:
Foi tão forte a intenção do artista de não apresentar uma doutrina incompleta da
arte, ou melhor, de oferecê-la em exemplos vívidos e perspectivas variadas [...],
que essa intenção pode induzi-lo a uma apresentação de caráter episódico [...].
(SCHLEGEL 1988: 160)
Não nos deixemos enganar pelo fato de que o poeta toma as pessoas e os
acontecimentos de modo tão leviano e caprichoso e menciona o protagonista
quase sempre com ironia, parecendo sorrir das alturas de seu espírito; trata-se,
para ele, da mais sagrada seriedade. (SCHLEGEL 1988: 161)
Schlegel está atento aos contrastes entre o estilo baixo e o elevado que convivem no
romance de Goethe, o que lhe permita reconhecer a presença da ironia sempre à
espreita:
Esse aspecto cômico não se constitui, absolutamente, de partes que sejam finas,
delicadas ou nobres. Ao contrário, muito pertence àquele tipo de coisa sobre a
qual a gente se ri com vontade e de modo vulgar, como o contraste entre as mais
belas expectativas e o péssima hospedagem.6 O contraste entre a esperança e
aquilo que efetivamente se dá, entre a imaginação e a realidade desempenha
6 Menção ao livro do romance de Goethe, no qual a trupe teatral espera ser alojada condignamente no
castelo do Conde e encontra uma verdadeira pocilga.
O trecho é fundamental para que se ilumine a concepção de ironia que tem o próprio
Schlegel: ao reconhecer, “hermeneuticamente”, a intenção do autor, Schlegel legitima-a
por meio de um recurso, digamos retórico ou prosódico (performático, diríamos hoje).
Apenas a leitura em voz alta (vorlesen), a modalização verbal do texto goethiano
permitiria aos mais desavisados o reconhecimento dessa ironia. Schlegel alude aqui,
quase desapercebidamente, à concepção de ironia como performance, que terá livre
desenvolvimento no ensaio sobre a ininteligibilidade. Alude também a uma espécie de
elite composta por aqueles a quem a ironia se dá a conhecer (Cf. MAAS 2008: 170).
Em resumo, é possível afirmar que nos dois ensaios comentados, o texto sobre
Lessing e a resenha sobre o romance de Goethe, operam conceitos reconhecidamente
hermenêuticos (intenção do autor, congenialidade, hermenêutica do espírito em
contraposição à filologia como hermenêutica da letra, conjunção entre crítica,
hermenêutica e história). Não se pode, portanto, afirmar que o repertório da moderna
hermenêutica, como a compreendia Schleiermacher, tenha sido estranho a Schlegel. Ao
contrário, os dois ensaios acima comentados legitimam e comprovam a familiaridade
com o campo e mesmo possíveis contribuições a esse repertório, como quer Körner. No
entanto, é preciso deixar claro que o processo de compreensão do discurso do outro, em
Schlegel, escapa a qualquer sistematização e normatização. A ênfase concedida à
individualidade da obra, que não permite sua inserção em uma série como a constituída
sobre a idéia de gêneros literários, a crença de que o entendimento da intenção do outro
se dá mais por meio de uma afinidade quase mística ente os intelectos do que por meio
da investigação filológica, culminando no entendimento da ironia apenas por alguns
iniciados, acabam por afastar Schlegel do projeto hermenêutico de Schleiermacher, o
que lhe valeu, por parte deste, anos depois de sua morte, o epíteto de “gênio paradoxal”,
em um discurso de 1829.
Referências bibliográficas