Ancestralidade em Cena - Candomblé e Teatro Na Formação de Uma Encenadora FERNANDA JÚLIA BARBOSA
Ancestralidade em Cena - Candomblé e Teatro Na Formação de Uma Encenadora FERNANDA JÚLIA BARBOSA
Ancestralidade em Cena - Candomblé e Teatro Na Formação de Uma Encenadora FERNANDA JÚLIA BARBOSA
ANCESTRALIDADE EM CENA:
CANDOMBLÉ E TEATRO NA FORMAÇÃO DE UMA ENCENADORA
Salvador
2016
1
FERNANDA JÚLIA BARBOSA
ANCESTRALIDADE EM CENA:
CANDOMBLÉ E TEATRO NA FORMAÇÃO DE UMA ENCENADORA
Salvador
2016
2
Escola de Teatro - UFBA
CDD 792
3
Fernanda Júlia Barbosa
ANCESTRALIDADE EM CENA:
CANDOMBLÉ E TEATRO NA FORMAÇÃO DE UMA ENCENADORA
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas
pela Universidade Federal da Bahia.
Banca Examinadora:
4
AGRADECIMENTOS
A Olodumare, Exu, Ogun, Oyá, Oxossi, Omolú, Yemanjá, Oxalá, todos os babá Eguns, a
todas as Yamis, aos demais Orixás, Inkisses,Voduns e Encantados. A Seu Laje Grande, Seu
Rompe Nuvem, Seu Boiadeiro. Ao Ilê Axé Oyá L´adê Inan, Ilê Axé Olo T´Ogun, à mãe Rosa
d´Oyá, babá Márgio d´Ogun, aos meus irmãos e filhos de axé, por serem minha fortaleza
identitária e terem me escolhido para com arte poder mostrar ao mundo a grandiosidade e a
força do Candomblé. Sinto-me honrada por ser a mensageira do mensageiro.
À minha família: minha mãe Rosa d´Oyá, meu pai Justino Júlio, meus irmãos Nando Zâmbia
e Fabíola Júlia e tia Mariza d´Oxóssi. Base, chão firme, que me auxilia nas caminhadas da
vida, cobrem-me de amor, proteção e me fizeram ser quem hoje sou.
À minha esposa Jai Santos e meus filhos Yan e Tauan, fontes renovadoras de amor. Agradeço
a paciência, o companheirismo e a generosidade de terem vivido comigo cada etapa desta
pesquisa, cobrindo-me de carinho, atenção e fé.
Ao NATA: Antônio Marcelo, Daniel Arcades, Eduardo Santiago, Fabíola Júlia, Francisco
Xavier, Fernando Santana, Jarbas Bittencourt, Marcelo Jardim, Nando Zâmbia, Rani Guerra,
Sanara Rocha, Susan Kalik, Kalik Produções Artísticas, Thiago Gomes, Thiago Romero e
Zebrinha, amigos, companheiros de trabalho, colaboradores poéticos, motivação para a
caminhada. Agradeço pela nossa história, pelo aprendizado e pelos desafios vencidos juntos.
A todos os artistas que já passaram pelo NATA e nos deixaram seus ensinamentos.
À minha orientadora Prof.ª Drª. Sonia Rangel, que de um modo amoroso e sensível me
conduziu pelos caminhos desta escrita com suas colocações, proposições, críticas e puxões de
orelha que me fizeram chegar a este resultado. Um encontro de profundo aprendizado e
generosidade.
Ao Prof. Dr. Luiz Marfuz e à Prof.ª Dr.ª Leda Maria Martins, pela honra concedida de
comporem esta banca de defesa e pelas preciosas e desafiantes contribuições no processo de
qualificação.
5
A Daniel Arcades e nossas madrugadas de trabalho para a construção do anteprojeto que
gerou esta pesquisa.
A querida Régia Mabel Freitas pela revisão técnica da dissertação e seu carinho nesta
empreitada.
A Dominique Faislon, Jai Santos e Fabíola Júlia pelo auxilio na organização dos anexos e
demais documentos da dissertação.
Ao CNPQ, que, por meio de seu Programa de Bolsas, financiou esta pesquisa.
A todas as professoras e todos os professores, que passaram em minha vida acadêmica nestes
dez anos de Escola de Teatro, meus sinceros agradecimentos.
A todos os funcionários da Escola de Teatro, todos os colegas, todos os espaços por onde
passei e pude aprender mais e melhor sobre ser artista.
Aos mestres da cena, grandes pilares de inspiração: Bando de Teatro Olodum, Cia Abdias
Nascimento – CAN e Cia dos Comuns, Teatro Vila Velha, Luiz Marfuz, Marcos Barbosa,
Márcio Meirelles, Roberto Lúcio, Hilton Cobra, Jarbas Bittencourt, Abdias Nascimento,
Ângelo Flávio, Lázaro Ramos, Elísio Lopes, Chica Carelli, Evani Tavares, Cristiane Sobral,
Gustavo Mello, Valdinéa Soriano, ao Fórum Nacional de Performance Negra e a todos os
grupos, coletivos e artistas negros.
A meu querido Tio Zebrinha que, como ogan e coreógrafo, conduz-me num aprendizado
profícuo na busca pelo equilíbrio entre ser sacerdotisa e encenadora. Agradeço por todas as
palavras e exemplo de incentivo, provocações e reflexões.
6
Ao Ilê Axé Ojisse Olodumare – Casa do Mensageiro na pessoa do babá Rychelmy Imbiriba,
pelo conhecimento ofertado sobre Exu. A todas as Comunidades de Axé que nesses séculos de
resistência lutam para manter viva a nossa herança ancestral.
A todos os amigos que por mim torceram e torcem, a cada desafio vencido, a cada superação,
a cada novo sonho almejado.
A Luiz Antonio Jr. e A Outra Cia de Teatro, pelo carinho, empréstimos e acolhidas
tecnológicas durante a pesquisa.
A todos os diretores e a todas as diretoras de teatro com quem tive a honra de trabalhar como
assistente e operadora de som e luz, atividades nas quais pude burilar meus conhecimentos e
aprimorar os aprendizados.
E, por fim, a todas e todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para o meu processo de
formação como pessoa e artista.
7
Egba rà bò ago mojuba rà
(Tenho fé e peço licença para te louvar em minha casa)
Egba kose
(Tenho fé)
E mó dé ko e ko
(Nossa casa está limpa. Protejas a nossa terra)
8
BARBOSA, Fernanda Júlia. Ancestralidade em cena: Candomblé e Teatro na formação de
uma encenadora. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) Universidade Federal da Bahia.
Escola de Teatro. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Salvador, 2016.
RESUMO
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BARBOSA, Fernanda Júlia. Ancestralidade em cena: Candomblé e Teatro na formação de
uma encenadora. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) Universidade Federal da Bahia.
Escola de Teatro. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Salvador, 2016.
ABSTRACT
This study follows the line of Poetics and the Process of Staging, in which a poetic and
reflective context is created at the conjunction of four fields: Creative Processes, Imaginary,
Candomblé and Theatre. The trigger is the process of educating this scholar, who has been
working as a theatre director at the Alagoinhas Afro-Brazilian Theatre Center – NATA since
1999. It consists of reflections on the encounter between Candomblé and theatre in my
education. Over the course of this educational and creative journey, I have sought to
understand and identify dominant Principles and Procedures that guide the practice of the
director of this group. The analysis of this course of research gave rise to three Principles:
Mythopoetic Narratives, Ritual Theatre and Tradition in the Contemporary World. In this
context, I present a brief study of the rituality, anthropology and history of Candomblé, given
its contribution to NATA‘s poetic construction. This critical account of my educational
experience is accompanied by interviews with actors and teachers, and the group‘s
performances are also taken into consideration, but the main focus is the creative process
behind the play Exu – A Boca do Universo (Eshu: Mouth of the Universe), my most recent
creation. This study takes a comprehensive approach to the creative process introduced by
Sonia Rangel, adopting theoretical references that include Luigi Pareyson‘s theory
of formability and Gilbert Durand‘s theory of the imaginary. In addition to other authors,
theorists and actors, taking as a starting point connections, tensions and similarities between
Candomblé and the Theatre, the ideas of Antonin Artaud, Eugenio Barba, Inaicyra Falcão,
Juana Elbein Santos, Jerzy Grotowski, Juremir Machado Silva, Lêda Maria Martins, Marco
Aurélio Luz, Luis Nicolau Páres and Renato da Silveira, among others, engage in dialogue
with the subject and the research process.
10
LISTA DE IMAGENS
Figura 3 – Daniel Arcades, Fabíola Júlia, Fernando Santana e Thiago Romero no espetáculo
Exu – Aboca do Universo – Espaço Cultural da Barroquinha..............................................23
Figura 6 – Colar para Orixá Yemanjá – Acervo do Ilê Axé Oyá L‟adê Inan..........................49
Figura 8 – Mãe Rosa d‟Oyá no espetáculo Siré Oba – A festa do Rei – Palco do
TCA...........................................................................................................................................56
Figura 9 – Mãe Rosa d‟Oyá e seus filhos de axé no Ilê Axé Oyá L‟adê
Inan...........................................................................................................................................59
Figura 11 – Babá Márgio d‟Ogun recebendo o axé da Oyá de Mãe Rosa no Ilê Axé Oyá
L‟adê Inan.................................................................................................................................61
11
Figura 14 – Bakulo – Os bem lembrados, espetáculo da Cia dos Comuns..............................70
Figura 21 – Daniel Arcades, Vânia Santana, Fabíola Júlia, Deise Vieira e Antônio Marcelo –
Primeiros ensaios do espetáculo Siré Oba – A festa do Rei – 2009 – Barracão do Ilê Axé Oyá
L‟adê Inan...............................................................................................................................106
Figura 24 – Fabíola Júlia, Nando Zâmbia, Antônio Marcelo, Daniel Arcades, Vânia Santana-
Espetáculo Siré Oba – A festa do Rei – Estreia no Teatro Vila Velha................................108
Figura 25 – Cena final do espetáculo Siré Oba – A festa do Rei – Entrada de Mãe Rosa d‟Oyá
saudando Oxalá – Em cena: ao fundo: Fabíola Júlia e a frente: Nando Zâmbia – Palco
Principal do TCA....................................................................................................................110
12
Figura 28 – Figurinos construídos, Xangô/Marinho Gonçalves, Oyá/Jussara Mathias e
Ogun/Val Perré/Ogun.............................................................................................................114
Figura 31 -- Ao fundo: Fernando Santana e a frente Val Perré – Espetáculo Ogun – Deus e
Homem – Teatro Martim Gonçalves.......................................................................................117
13
Figura 45 – Imagens que demonstram a grande contribuição da iluminação para a instalação
das atmosferas e das imagens propostas pela encenação.....................................................133
Figura 47 – Daniel Arcades, Fabíola Júlia, Thiago Romero, Antonio Marcelo e Fernando
Santana no espetáculo Exu – A Boca do Universo – Cena de Oxum – Espaço Cultural da
Barroquinha ............................................................................................................................138
Figura 48– Espaço de estreia do espetáculo Exu – A Boca do Universo – Jardim de Areia do
Vão Livre do TCA..................................................................................................................141
Figura 52 – Thiago Romero, Daniel Arcades e ao fundo Fernando Santana – Exu - A Boca do
Universo – Centro de Cultura de Alagoinhas.........................................................................155
Figura 53 – Fernando Santana – Exu – A Boca do Universo – Centro de Cultura de
Alagoinhas..............................................................................................................................162
Figura 54 – Matéria do Correio da Bahia – Perfil Fernanda Júlia.....................................179
Figura 55 – Matéria do Jornal A Tarde – Estreia do espetáculo Siré Obá no Teatro Vila
Velha.......................................................................................................................................180
Figura 56 – Matéria do Jornal A Tarde – Entrevista cedida a Eduarda Uzeda – Estreia do
espetáculo Ogun – Deus e Homem no Tetro Martim Gonçalves............................................181
Figura 57 – Matéria do Jornal A Tarde – Anúncio do resultado do edital TCA. Núcleo. Exu
Silé Oná TCA é o projeto vencedor........................................................................................182
Figura 58 – Divulgação da estreia do espetáculo Exu – A Boca do Universo – Vão livre do
TCA.........................................................................................................................................182
Figura 59 – Banner de divulgação na entrada do TCA..........................................................183
14
Figura 60 – Cartazes de divulgação do espetáculo – Estreia no TCA e Circulação em
Salvador (Cine –Solar Boa Vista, Arena do Teatro Sesc-Senac Pelourinho e Centro Cultural
Plataforma)..............................................................................................................................183
Figura 61 – Cartaz da apresentação do espetáculo Exu – A Boca do Universo em Belo
Horizonte – Palco Giratório....................................................................................................184
Figura 62 – Cartazes das apresentações do espetáculo Exu – A Boca do Universo em São
Paulo – Festival do Teatro Brasileiro – Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB – São Paulo
e cartaz da apresentação do espetáculo em Recife - Palco Giratório..................................184
Figura 63 – Pensamento Giratório – Belo Horizonte – 2015 – Palestra sobre o processo
criativo do espetáculo Exu – A Boca do Universo..................................................................185
Figura 64 – Cartazes de apresentação do espetáculo Exu – A Boca do Universo no Rio
Grande do Sul e no Rio de Janeiro – Palco Giratório.............................................................185
15
SUMÁRIO
2.1 ENCONTRO COM MÃE ROSA D´OYÁ E PAI MÁRGIO D´OGUN ............................. 56
2.2 ENCONTRO COM TRÊS COLETIVOS NEGROS ......................................................... 62
2.2.1 Cabaré da Rrrrrraça: encontro com o Teatro Negro ........................................................ 62
2.2.2 A Casa dos Espectros: no interior da consciência negra ................................................. 65
2.2.3 Bakulo: os bem-lembrados, o poder da narrativa ............................................................ 68
2.3 ENCONTRO COM TRÊS MESTRES DA CENA......................... ................................... 71
2.3.1 Luiz Marfuz: um formador de diretores .......................................................................... 72
2.3.2 Marcos Barbosa: diálogos sobre dramaturgia e encenação ............................................. 78
2.3.3 Roberto Lúcio: o encenador como Xamã ........................................................................ 83
16
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 151
17
ABERTURA: FORÇA E BELEZA DE UM DEUS
18
Figura 1 – Daniel Arcades–Exu - A Boca do Universo – Centro de Cultura de Alagoinhas – 2015 – Foto Andréa Magnoni.
Ibití eniá kossi, kossí imalé! Sem humano não há divindade!
Júlia ouviu esse ditado africano aos vinte e seis anos. A frase
pulsou no ouvido e na alma, assemelhando-se a uma síntese da sua
vida; ao ouvi-la, fechou os olhos e retornou ao tempo de criança.
Júlia, criança negra, moradora da periferia de Alagoinhas,
cidade pequena do interior da Bahia, cresceu em meio aos rituais do
Candomblé. Sabia músicas aprendidas com sua avó e sua mãe e se
fascinava pelo transe espiritual, o momento em que Orixás e Caboclos
chegavam a sua casa, ou na da avó, também yalorixá.
Os olhos de Júlia brilhavam ao ver Ogum, Oxossi, Oxum ou
Seu Sultão das Matas – não fazia diferença. Encantada com os sons,
cheiros e sabores das cerimônias, não tinha medo, vivia no colo dos
Erês, que brincavam com ela como criança solta e livre num
descampado de grama.
Filha de pai pedreiro e mãe manicure ouvia os mais velhos
falarem que ela seria a herdeira da mãe nos assuntos de axé1.
Não compreendia a conversa apenas ouvia.
Júlia tinha sonhos, adorava estudar, queria ser jornalista ou
professora, trabalhar com muita gente. Ouvia músicas e adorava
telenovelas – as histórias que elas contavam, os atores e, mesmo com
cinco anos de idade, já era capaz de gravar os nomes deles e os títulos
das novelas.
Aos sete anos, aprende a ler e a escrever e um grande mundo
se descortina aos seus olhos; agora, poderia saber mais sobre tudo.
Aos dez, sua mãe, uma filha de Oyá, é iniciada nos preceitos do
Candomblé. Júlia acompanha de perto esse processo e passa a
conviver em casa com uma yawô. Oyá, Orixá dos ventos, traz para
casa a sua força e benevolência e faz com que aos poucos os caminhos
de sua mãe dentro dos preceitos do axé se descortinem.
Na quinta série, com onze anos, Júlia chega à escola
entusiasmada com o fato de que o caboclo de sua mãe, Seu Laje
Grande, havia chegado e resolve compartilhar com os colegas da
turma. Fala do encontro, da força da voz de um caboclo forte, que
1
As palavras axé e Orixá estarão escritas neste trabalho sem o itálico, pois ambas são dicionarizadas e fazem
parte do vocabulário do Brasil. Assim, não se faz necessário o destaque em itálico que evidencia a origem
estrangeira da palavra.
19
dançava bonito para encanto de todos. À parte, ouvindo a história, está
sua professora que censura veementemente o relato, amaldiçoa a mãe
e diz a Júlia que ela (a mãe) estava possuída pelo diabo e que era
preciso fazer algo para Júlia não perder a própria mãe.
Neste exato momento, os colegas afastaram-se de Júlia, que,
desesperada, entra em choque com a realidade que vivera até ali.
O comportamento de Julia muda em casa, ela já não quer
ouvir as histórias dos Orixás que sua mãe lhe contava, não cantava
mais e, aos poucos, foi aproximando-se do universo católico cristão.
Um período conturbado: adolescente, com problemas emocionais,
vivera cedo uma grave crise de ordem ideológica e espiritual. Sua mãe
achava que era a adolescência, que a filha atravessava uma etapa de
vida na qual o interesse por muitas coisas é despertado e deixou que
ela fizesse suas escolhas. Não viu mal algum em Júlia iniciar a
catequese, batizar-se e fazer a primeira comunhão.
Neste momento, com quinze anos, era catequista e católica
praticante, ligada à Pastoral da Juventude do Meio Popular; militava
sob a égide da Teoria da Libertação de Leonardo Boff, mostrando a
veia para a militância e o olhar crítico diante da sociedade.
Aos dezessete anos, aconteceria algo que modificaria a sua
trajetória até ali. Neste afastamento das heranças culturais de sua
família, sua mãe foi crescendo no Candomblé, passando pelas etapas
que todo iniciado passa até atingir a maioridade ritual. Júlia crescia na
igreja, catequizava e havia tomado uma decisão importante, mas sem
comunicá-la à família: ingressaria para a vida religiosa, seria freira.
Em 1997, mais precisamente em agosto, a mãe de Júlia inicia
os rituais da cerimônia do adeiká, a qual a consagraria yalorixá. Júlia
se afastara e muito do Candomblé e, nesta cerimônia, sem saída, teria
que ir ao Terreiro ajudar na confecção dos elementos do rito.
Existia uma grande contradição em Júlia: ao tempo em que
refutava o Candomblé, encantava-se com as cerimônias, quando era
obrigada a ir ao Terreiro. Ficava emocionada e escondia as lágrimas.
O cerimonial de adeiká seguiu seu curso, a mãe de Júlia agora
era uma yalorixá e em breve teria que abrir um terreiro de Candomblé.
Após as cerimônias, a mãe de Júlia precisou passar alguns dias
no terreiro cumprindo resguardos exigidos pelo ritual. Mas no dia 24
20
de setembro deste mesmo ano, Júlia estava em casa e acordou com
forte dor de cabeça. Nunca antes sentira tamanha dor, seus olhos
precisavam manter-se fechados, a cabeça parecia que tinha uma faca
no centro, dor, muita dor, faltava-lhe força nas pernas e um frio
avassalador a tomava.
Nervosos, os irmãos mais novos a conduziram à presença dos
adultos, no Terreiro onde sua mãe cumpria o resguardo. Chegando lá,
Júlia vê sua mãe deitada numa esteira, a dor de cabeça se intensifica e
ela desmaia. Neste momento, ela se sente como que flutuando num
espaço vazio. Tudo escuro, nada de vozes, nada do corpo. O encontro
aconteceu, a fusão potente e poética se fez. Júlia entrara em transe
pela primeira vez, seu Orixá Omolú expandiu de seu interior e veio ao
exterior dizer que se fazia necessário o seu processo iniciático.
Ouro da Terra, o erê de Omolú, conta os planos de Júlia para
todos e relata que sua mala já estava pronta para ir ao convento onde
seria freira. Mas Omolú viria para ―salvá-la‖ da pior escolha que faria
na sua vida, como ela mesma dirá tempos depois.
Júlia escolhera ser religiosa não por vocação, mas porque sua
autoestima estava massacrada – uma sensação de inadequação
completa e acima de tudo uma forma de fugir da sua
homossexualidade premente, abafada.
Júlia não sabia lidar com o racismo, queria embranquecer-se e
parecer com as mulheres das novelas que eram brancas, magras e de
cabelos compridos e lisos. Omolú explodiu no corpo de Júlia e a fez
olhar para dentro, reencontrar-se com sua história, com a história de
seus antepassados.
Após esse desmaio, caiu no sono da iniciação no axé, acordou
três meses depois, iniciada para o orixá Omolú, aquele que traz a cura,
vence as doenças, brilha como o Sol.
Ao acordar e compreender o que havia acontecido, ela
descobriu que fora enganada, indignou-se, queria fugir, resistiu e se
aquietou.
Certa noite teve um sonho, uma visão, e isso mudaria sua vida
por completo. Um homem negro de mais ou menos cinquenta anos
surgia em sua frente, sorria e dizia: ―Por que está fugindo daquilo que
é mais seu do que de qualquer outra pessoa? Por que está fugindo e
21
procurando em outros lugares a paz que você só sentirá quando estiver
confortável na sua pele? O seu problema é que você não me conhece o
quanto eu te conheço, mas eu sou o seu tronco-matriz, eu sou o
negrume da sua pele, eu sou sua ascendência, eu sou Omolú, seu pai, e
quero saber se você não quer ser minha filha.‖
Ele a abraçou, um abraço de pai, ela chorava, seu coração
sentia um afago que nunca sentira, sua pele sorria e ele sorriu. Ele saía
de dentro dela e era ela, uma parte da divindade de volta à Terra.
Desperta do sonho comovida e resolve mudar. Júlia se
descobre negra, filha de Omolú, uma das herdeiras de um reino; a
partir daí, espalha para toda e qualquer pessoa o que sua avó lhe
contava, que ela tinha no corpo a força e a beleza de um Deus.
Com esta narrativa do vivido2, entre poesia, realidade e ficção, abro as páginas desta
pesquisa para rememorar e atualizar momento importante e definidor da minha vida. Um rito
de passagem fundamental e complexo para as decisões que se seguiram e que se expandiram
para as outras áreas. Esse encontro foi o disparador da construção de uma experiência pessoal,
religiosa, política, artística e profissional. Para além de uma furtiva visita às lembranças, essas
reminiscências são portais que se abrem para transportar a energia do mundo da
imaterialidade para o mundo da materialidade. Através delas me fiz gente, mulher, lésbica,
artista e negra.
A memória desse momento, inspirada em uma forma poética de pesquisa sobre o
imaginário, esteve em mim impregnada durante toda a construção deste percurso; como uma
voz que ressoava e produzia ecos, um ―motor‖, ―um sonho que realiza a realidade, uma força
que impulsiona indivíduos e grupos‖ e vai construindo a nossa ―marca digital simbólica‖,
como nos lembra Juremir (SILVA, 2003, p.12).
Assim, convido o caríssimo leitor desta pesquisa a entrar junto comigo neste ritual,
conhecer um fazer artístico que está em construção e que, ao ser fixado nestas páginas, pode
nos dar pistas dos caminhos e desafios que ainda estão por vir. O Candomblé e o Teatro, a
partir de agora, são os guias. E que todas as divindades nos acompanhem. Peço a Exu que
mantenha nossa comunicação em harmonia. Como dizem os mais antigos, é de passo em
passo que fazemos o caminho. O convite está feito. Caminhemos!
2
Formato inspirado numa das técnicas de pesquisa sobre o imaginário, citadas por Juremir Machado Silva no
livro As Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.
22
Figura 2 – Fernando Santana – Exu – A Boca do Universo – TCA – 2014 – Foto: Andréa Magnoni
23
1 .INTRODUÇÃO: ETAPAS DE UM CAMINHO
24
Figura 3 – Daniel Arcades, Fabíola Júlia, Fernando Santana e Thiago Romero no espetáculo – Exu – A Boca do Universo – Espaço Cultural da
Barroquinha – 2014 - Foto: Andréa Magnoni.
Esta pesquisa parte de uma reflexão acerca do meu processo de formação enquanto
encenadora3 teatral, por meio de estudos sobre o encontro entre Candomblé e Teatro,
norteadores de minha formação pessoal, artística e social, marcada por questionamentos sobre
a importância da formação do artista brasileiro e seu contato com as expressões culturais de
seu país. Busco compreender como esse encontro, suas aproximações, tensões e diferenças
refletiram e ainda refletem em meu fazer artístico e contribuíram na construção do projeto
poético do Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas – NATA.
Nestes questionamentos, sempre indaguei: quais as contribuições que o Candomblé
pode dar ao artista no campo da formação e da prática cênica? Problematizando a questão: é
possível a construção de um projeto poético para a cena teatral a partir da vivência no
Candomblé e da absorção dos elementos plásticos, sonoros e temáticos para o Teatro, sem que
isso fira e interfira nos fundamentos e preceitos dessa comunidade religiosa? Por fim, quais as
tensões e conflitos estabelecidos a partir do encontro entre Candomblé e Teatro? À procura de
compreender essas questões, busquei subsídios teóricos para refletir sobre o modo como a
prática cênica, desenvolvida nas encenações dos espetáculos do NATA, são tentativas de
respostas a essas inquietações.
O NATA é um grupo formado por cinco atores (Antônio Marcelo, Daniel Arcades,
Fabíola Júlia, Nando Zâmbia e Thiago Romero), uma instrumentista (Sanara Rocha) e um ator
colaborador (Fernando Santana). A direção musical do grupo fica a cargo de Jarbas
Bittencourt, as coreografias e preparação corporal são realizadas por Zebrinha e a preparação
vocal é responsabilidade de Marcelo Jardim e de Rani Guerra e as demais funções
(dramaturgia, cenário, figurino, maquiagem e iluminação) são desenvolvidas pelos atores do
grupo, questão a ser melhor tratada no capítulo três desta dissertação. O grupo mantém uma
parceria com a Kalik Produções Artísticas, responsável pela produção do grupo desde 2010,
tendo como direção de produção Susan Kalik e como produtor executivo Francisco Xavier. O
registro audiovisual fica a cargo de Thiago Gomes e o registro fotográfico conta com o olhar
de Andréa Magnoni.
A temática da ancestralidade africana e afro-brasileira é a marca do grupo, que tem
em seu repertório dez espetáculos. Dois deles foram apresentados em pelo menos trinta e
cinco cidades do país, com o total de quatrocentas apresentações. Além disso, foram
3
Neste trabalho, não há distinção no uso do termo diretor e encenador, ambos estarão indicando a mesma função.
Essa acepção está de acordo com a concepção de Walter Lima Torres em seu artigo: Introdução histórica: o
ensaiador, o diretor e o encenador, publicado na revista Folhetim, nº 9, Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto,
2001, p. 60-71.
25
realizadas inúmeras atividades de formação, reflexão e debates sobre a função do teatro e as
conexões étnico-religiosas com o teatro negro no Brasil. A partir de Siré Oba – A festa do Rei,
espetáculo que tem como tema o Candomblé, a trajetória do NATA passa a confundir-se ou a
fundir-se com minha trajetória de encenadora e praticante do culto religioso do Candomblé,
demarcando o início de um projeto poético, no campo do fazer teatral, que contempla as
questões artísticas a partir das narrativas espetaculares dos Orixás tomadas como eixo central
da construção dos espetáculos. É o momento em que se trançam as ramas tecidas no
Candomblé e as tramas inventadas no palco.
Teatro e Religião, cena e terreiro, sacerdotisa e encenadora – agora me colocam num
espaço onde não é mais possível uma tão nítida separação entre os dois. Em vários momentos,
esses dois caminhos se cruzam; em outros, vão cada um para seu lado e, em outros, juntam-se
não sem antes deixar um foco de tensão. De um modo ou de outro, esses dois lugares, seus
discursos, suas cerimônias, nunca me abandonaram. E o projeto poético, que se foi
construindo – ora de modo intencional, ora se deixando levar pela experiência, ora pela
imersão profunda que os dois campos promovem – traz as marcas desses encontros e
desencontros.
Iniciei a minha trajetória teatral em 1998, quando para representar o Colégio
Polivalente de Alagoinhas no festival estudantil Teatro em Destaque4, foi fundado o NATA.
Comecei como atriz, porém assumi a direção do grupo em 1999 com o espetáculo Guarda-
roupa íntimo, minha primeira encenação. De maneira intuitiva, fui dirigindo os espetáculos do
grupo até que em 2004 o NATA realizou a sua primeira apresentação em Salvador, através do
projeto Teatro de cabo a rabo5, participando da mostra A arte do interior na capital, ambos
organizados e realizados pelo Teatro Vila Velha, em Salvador.
Em 2006, após essa incursão no Teatro Vila Velha, resolvo profissionalizar-me como
artista, entrando para a Escola de Teatro da UFBA, no curso de Direção Teatral. Concluí a
graduação em 2010 e passei quatro anos me dedicando exclusivamente à direção de
4
Festival Teatro em Destaque, evento idealizado e realizado pela professora Fátima Salles, consistia numa
disputa teatral entre alunos matriculados da quinta série ao terceiro ano do ensino médio. Esses alunos seriam
responsáveis por todo o processo criativo, desde a escolha do tema, à escolha dos atores e todas as etapas e
funções criativas da encenação. O cenário estudantil da cidade mobilizou-se e, durante as duas edições (1998 e
1999), esse Festival formou grupos de teatro no interior das escolas e contribuiu para a divulgação da arte teatral
na cidade.
5
Projeto realizado pelo Teatro Vila Velha, sob a direção de Márcio Meirelles, que durante três anos circulou
pelo interior da Bahia, levando oficinas, apresentações e selecionando grupos artísticos das respectivas cidades
para participarem da mostra A arte do interior na capital. Essa mostra consistia na apresentação dos grupos
selecionados nas cidades do interior no Cabaré dos Novos e no palco principal do Vila.
26
espetáculos do NATA e de demais grupos da cidade de Salvador. Esse período foi bastante
produtivo, pois busquei colocar em prática os conceitos e técnicas apreendidas durante a
graduação, aliados aos conhecimentos vindos da minha prática com o NATA.
Em 2012, realizei uma oficina de preparação de atores, a qual intitulo OJUINAN6.
Nessa oportunidade, pude colocar em prática parte dos exercícios cênicos desenvolvidos junto
aos atores do NATA na construção dos espetáculos Siré Obá e Ogun – Deus e Homem com
outros atores, o que potencializou ainda mais as questões que norteiam esta pesquisa. Ao fim
da oficina que durou três meses, decidi que precisava investigar o fazer teatral que vinha
desenvolvendo e compreender melhor o que significava esse encontro entre Candomblé e
Teatro dentro das nossas encenações. Assim, surgiu a necessidade da realização da presente
pesquisa.
Julgo procedente abrir este capítulo introdutório apresentando minhas escolhas
metodológicas, a abordagem utilizada e a apresentação da estrutura desta dissertação. Nesta
parte, também examino os dois eixos de força que sustentam os passos da caminhada: a
iniciação no Candomblé e a iniciação no fazer teatral, este último por intermédio do NATA.
Do entrelaçamento entre esses dois eixos, sugere-se uma terceira via: o encontro entre o
Candomblé e o Teatro, encontro este que pode talvez aproximar-se do que Eugenio Barba
denomina de Terceiro Teatro7.
Para dialogar com a pesquisa, foram trazidos autores, teóricos e artistas, tais como
Inaicyra Falcão, Juana Elbein Santos, Juremir Machado Silva, Leda Maria Martins, Marco
Aurélio Luz, Luis Nicolau Páres, Renato da Silveira e Sonia Rangel. A teoria dos grandes
mestres do teatro universal Jerzy Grotowski, Antonin Artaud e Eugenio Barba são esteios
importantes para o diálogo, principalmente sobre o tema da ritualidade, teatralidade e
antropologia teatral que estarão presentes no decorrer do texto.
Para a realização desta dissertação, fiz uso de uma metodologia adequada a processos
criativos, na abordagem compreensiva apresentada por Sonia Rangel (2015), a qual, entre
outros autores, apoia-se na Teoria da Formatividade de Luigi Pareyson (1993) e na Teoria do
Imaginário de Gilbert Durand (2004) entre outros. Nessa abordagem, o pesquisador se
6
A Oficina de Preparação de atores OJUINAN (do yorubá Oju – olho e Inan – fogo = Olhos de fogo) consiste na
compilação dos exercícios cênicos criados e adaptados para o processo criativo do NATA em suas respectivas
montagens. A fim de experimentar a eficácia desses exercícios, criei a supracitada oficina que já foi realizada em
oito edições em cidades como Alagoinhas, Rio de Janeiro e Salvador.
7
O Terceiro Teatro seria então uma terceira vertente, a zona teatral que vive à margem desses dois teatros, fora
dos grandes centros culturais e se aloja na periferia. Por definição de Barba, é ―um teatro de pessoas que se
definem atores, diretores, homens de teatro, quase sempre sem terem passado por escolas tradicionais de
formação ou pelo tradicional aprendizado teatral, e que, portanto, não são ao menos reconhecidos como
profissionais‖ (BARBA, 1994, p.143).
27
preocupa com a compreensão da trajetória criativa, na qual o sujeito, imerso no processo de
sua obra, coloca-se em contato com as mudanças ou variações da sua criação, como apresenta
Rangel (2015, p. 22):
28
Pela via compreensiva, os dados criativos, a temática e a vivência grupal conduziram
a minha reflexão por um olhar mais transversal e complexo8. Desta forma, citando ainda
Juremir Machado Silva (2003, p. 13-14):
O termo complexo neste trabalho converge com a acepção defendida por Edgar Morin em seu livro: A cabeça
bem – feita: Repensar a reforma, Reformar o pensamento, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
29
ficha técnica do espetáculo Exu – A Boca do Universo. São documentos que considero
importantes para dar melhor visibilidade à interpretação e leitura que fiz deste caminho.
Como falam os ebomes (os mais velhos) sobre o Candomblé9, o caminho se faz
caminhando. O significado de caminhar para a cultura africana e afro-brasileira é muito mais
que chegar a algum lugar, atingir um objetivo. É a constatação da aprendizagem no
―percurso‖, ou seja, caminhar é o mesmo que aprender e apreender o percurso. Em muitas
circunstâncias, caminhar vale muito mais que o objetivo final; talvez nem se chegue a atingir
uma meta almejada, mas na hora do entendimento o que conta é o que o percurso trouxe, o
seu legado. Essa visão de mundo, presente no Candomblé e nas demais religiosidades de
matriz africana, norteou e ainda norteia minhas escolhas e orienta minhas decisões como
omon Orixá (filha do Orixá) e artista da cena.
Exu e Ogun, as divindades africanas ligadas ao ―caminho‖ e também ao ―caminhar‖,
são responsáveis pela liberação energética do impulso; são divindades-bússolas que orientam
as Comunidades de Axé e seus adeptos na jornada filosófica e prática da vida. O Candomblé,
na minha vida, ou seja, no meu ―caminho,‖ foi determinante para um encontro identitário e
cultural. Para além da dimensão religiosa, o Candomblé foi um norte a um reconhecimento
ancestral familiar e que se desdobrou na minha construção poética como profissional da cena.
Quando diante da yalorixá, (mãe de santo) observava os búzios caírem10, via, de lá,
saírem as orientações que auxiliariam o ―meu caminhar na vida‖. O Candomblé, além de ter
influenciado o processo civilizatório do Brasil, rompendo o estigma de uma nação primitiva,
sem valores ou crenças, é também um modo de vida; e tal modo definiu os primeiros eixos de
meu fazer teatral.
Isso se percebe ao ler a obra de autores como Marco Aurélio Luz, Juana Elbein
Santos, Mestre Didi, Leda Maria Martins, Renato da Silveira, Luis Nicolau Pares e Inaicyra
Falcão, só para citar alguns. A menção a esses autores surgiu da necessidade de poder reunir,
9
É importante salientar que, ao me referir ao Candomblé, busco falar da contribuição das diversas nações
africanas que organizaram essa expressão religiosa, portanto o termo Candomblé não se refere apenas à nação
Ketu, mas também às nações Angola e Jeje.
10
Refiro-me ao momento em que a Yalorixá joga os búzios (oráculo divinatório) comunicando-se com os
Orixás.
30
no horizonte teórico e conceitual da pesquisa, especialistas que analisam o Candomblé,
antropológica e etnograficamente, aliados a artistas, que desenvolvem suas pesquisas cênicas
a partir da pertença ou do interesse pelo estudo do Candomblé.
Esses autores são referências em suas respectivas abordagens sobre o Candomblé e
por meio de seus escritos historicizam e analisam o processo civilizatório africano
empreendido por nossos antepassados negros, o que desembocou na constituição do
Candomblé. Com um olhar ―descolonizado‖ e crítico propõem formas e apresentam histórias
sobre como ―afrografar11‖ o pensamento e as expressões artísticas, sem descuidar da
compreensão e união entre Arte e Antropologia, na construção dos raciocínios, no discurso
sobre a formação cultural brasileira. São autores que documentam e refletem sobre o processo
de construção do Candomblé e sua importância para a salvaguarda da herança cultural
africana no país, aliados a um olhar e proposições artísticas que inspiram outros artistas,
educadores e acadêmicos a desenvolverem projetos de cultura e arte.
A colonização europeia no Brasil firmou um de seus mais fortes pilares na
escravização de mulheres e homens africanos. Na construção do discurso histórico dito
―oficial‖, grande parte do material produzido através de livros, artigos, periódicos, filmes,
músicas e demais mídias apresentam a história da cultura africana no país a partir do processo
escravizatório e seus desdobramentos atuais, ignorando as culturas complexas que
antecederam as histórias de cada indivíduo africano escravizado no Brasil.
Essa forma de estabelecimento dos fatos históricos apaga a diversidade e a
grandiosidade da vida cultural, econômica, política, artística e religiosa dos nossos
antepassados africanos e nos faz crer, modo ainda vigente no senso comum, que descendemos
de ―homens sem alma‖, meros objetos a serem domesticados para servir a ―real civilização do
mundo‖, a Europa. É um equívoco que vem sendo duramente combatido pela comunidade
afrodescendente. Por esse e outros motivos, acredito ser pertinente uma mulher negra e
candomblecista poder dizer, através da construção de um trabalho artístico e acadêmico, sua
visão de mundo, a importância e a relevância do Candomblé para a cultura, a política, as artes
e a economia do Brasil.
Em seu livro Agadá – Dinâmica da civilização africano-brasileira, Marco Aurélio
Luz (2000) traz preciosas contribuições para a compreensão efetiva da construção civilizatória
do povo africano no Brasil. É importante dizer que as mulheres e homens africanos que foram
trazidos à força para cá não colaboraram apenas para a construção do país, fundaram aqui um
11
Conceito a ser aprofundado mais adiante ao ser mencionada a obra da autora Leda Maria Martins.
31
processo civilizatório negro-africano. Um processo civilizatório é muito maior que apenas
uma contribuição na constituição da nação. Nossos antepassados foram determinantes na
construção deste país, cujo legado cultural africano formou, modulou, influenciou e
modificou a constituição da sociedade brasileira desde o início, como afirma Marco Aurélio
Luz (2000, p.25):
A partir da afirmação de Luz (2000), pode-se indagar: como pode ser ―atrasada‖ a
mais antiga civilização do mundo? Somente através de um olhar equivocado e etnocêntrico é
que se propaga que os africanos e seus descendentes sejam indivíduos atrasados
culturalmente. Uma indagação que encontra respostas ou ressonância na contínua necessidade
de reescritura da nossa formação sócio-político-cultural, de um ajuste no entendimento
histórico e da abertura de novos caminhos de compreensão acerca do valor, da importância e
significância da cultura africana e seu legado no Brasil.
Um desses legados foi a construção dos quilombos e seus desdobramentos históricos.
Os quilombos representaram, e representam ainda, muito mais que apenas o ―espaço de fuga‖
das negras e negros escravizados; são contribuintes decisivos para a edificação de reinos
africanos no Brasil. O quilombo de Palmares12, o mais famoso do país, tomado como
exemplo, representa essa síntese histórica, na qual se demonstra as estratégias de resistência
do povo negro contra a escravidão e sua força contra a adaptação e reamalgamento das
estruturas culturais que as orientam, como se pode perceber na observação de Marco Aurélio
Luz (2000, p. 263):
12
Quilombo dos Palmares, situado na Serra da Barriga em Alagoas, fundado no fim do século XVI, ocupou
cerca de vinte sete mil quilômetros quadrados de superfície no alto das montanhas. Resistiu do final do século
XVI até a batalha final de 1695, quando em 20 de novembro Zumbi grande líder de Palmares foi assassinado
(LUZ, 2000, p. 291).
32
brasileiro dos Palmares se desenvolveu e teve diversos desdobramentos no decorrer
da história. Seus valores inspiradores da luta anticolonialista permanecem nos dias
atuais. Essa pujança marcada por esse continuum atenta que ele foi a forma viável
que melhor atendeu à edificação da nação brasileira no decorrer do período colonial.
Por fatos como esses, pode-se compreender a importância histórica que o quilombo
de Palmares representou na luta anticolonialista e na edificação da nação brasileira no
decorrer do período colonial, encontrando ecos de sua relevância até a República. O
Candomblé plantou uma de suas sementes de criação no interior dos quilombos, na nova
configuração transatlântica do povo negro e sua reorganização cultural, principalmente como
modo de resistência e necessidade de proteger aquilo que é a síntese da cultura africana: o
culto aos antepassados.
A religiosidade africana é calcada na memória, no conceito totêmico de pertença, de
origem, de conter e estar contido na natureza, ponto de partida da construção divina, e na
ancestralidade daqueles que aqui estiveram antes. As divindades são ancestrais míticos,
ancestrais primordiais que geraram todos os outros ancestrais. Essas noções, tão caras aos
africanos, foram a única riqueza não retirada pela escravidão. E essa riqueza lhes renovou
poder, força e, através dela, estabeleceu-se um grande fenômeno: o Candomblé.
Esse fenômeno é composto por um complexo conjunto de preceitos, conceitos e
regras, que reuniu o povo negro em estado de resistência contra o domínio do colonizador,
para manterem vivas as tradições, reinventar e adaptar preceitos e preservar a memória das
suas ―culturas‖; afinal, fala-se de um continente que possui meia centena de países e milhares
de línguas, costumes e valores13. Além disso, o Candomblé é um fenômeno civilizatório, um
grande instrumento de resistência, tanto do ponto de vista energético-espiritual quanto do
ponto de vista prático, na luta do dia a dia do negro africano para não entregar-se à
escravização sem lutar, como ressalta Luz (2000, p. 32):
O legado dos valores africanos que permitiu uma continuidade transatlântica está
consubstanciado nas instituições religiosas. São dessas instituições que se irradiam
os processos culturais múltiplos que destacam uma identidade nacional. Desde a
África, a religião ocupa um lugar de irradiação de valores que sedimentam a coesão
e a harmonia social, abrangendo, portanto, relações do homem com o mundo
natural.
13
Para maiores informações sobre o assunto, consultar www.infoescola.com
33
A constituição do Candomblé significou e ainda significa o fortalecimento da relação
com o continente africano pelo viés daquilo que herdamos dos nossos antepassados negros.
Estudar essa página de nossa história revela a perversão do processo de dominação imputado
aos nativos, chamados índios, e aos africanos, sequestrados e trazidos para o então
denominado Brasil. Para além das perversões do sistema colonizatório, o surgimento e o
fortalecimento do Candomblé comprovam a capacidade do povo negro de resistir, suas
estratégias de luta e conservação da memória e dos costumes.
É importante compreender que ele é resultado da união de comunidades étnicas
africanas diferentes e de seus descendentes nascidos no cativeiro. Africanos de diversas
nações passaram por cima de suas diferenças étnicas, religiosas, econômicas, filosóficas,
intelectuais, políticas e se aliaram com negras e negros nascidos durante o regime escravista,
para encontrar formas de resistência. Em seu livro O Candomblé da Barroquinha: processo
de constituição do primeiro terreiro baiano de keto, Renato da Silveira revela, através de um
panorama histórico pertinente e necessário, os conceitos filosóficos e ideológicos que
norteavam as estratégias de dominação do colonizador português e as estratégias do povo
negro para resistir e reexistir dentro daquele que representa a maior violência contra a
humanidade em todos os tempos: o tráfico negreiro.
Esse fato, infelizmente, não causa o choque merecido, mas é sem sombra de dúvida o
maior ato terrorista e genocida de todos os tempos. Segundo o antropólogo Vilson Caetano
Junior (2007) em depoimento dado no documentário Povo de Santo14: ―O tráfico negreiro foi
muito pior que a segunda guerra mundial, foi muito pior que o nazismo, foi muito pior que os
campos de concentração ou outras barbaridades que o mundo condena‖. Para ele, além de ter
durado cerca de mais de trezentos anos, e mesmo tendo sido findado o tráfico e abolida a
escravidão, ―os ecos, rastros e reincidências do preconceito racial e da construção simbólica
da inferioridade do povo negro permeiam as instituições, a execução das leis e a construção
do arcabouço simbólico da sociedade mundial‖.
O pensamento de Renato da Silveira (2006, p. 48) leva a compreender as nuances e
sutilezas do sistema escravagista, seus meios de dominação e anulação intelectual, cultural,
ideológica e o quanto, para ganhar, o povo negro teve que fingir que perdia. Para ele, ―os
negros africanos eram subestimados, considerados incapazes de agir politicamente, organizar
grandes sublevações, por isso não metiam medo. Nesse caso, o estereótipo preconceituoso
favorecia-os‖. Ao encontro desse pensamento, sobressai uma questão de primeira ordem na
14
O documentário ―Povo de Santo‖ tem direção de Manoel Passos Pereira (Manuca) e de Wilson Militão;
encontra-se disponível em https://youtu.be/rfX2uKJ-4xs.
34
construção do processo de resistência e ―re-existência‖ do povo negro no Brasil que
demonstra a fragilidade do colonizador em subestimá-lo e verdadeiramente acreditar nos
conceitos criados pelo cristianismo e fortalecidos pela ciência e o imaginário eugenista de que
os negros não dispunham de inteligência e intelectualidade.
Esse fato abriu flancos para que fosse possível aos africanos aproveitarem brechas e,
mesmo aterrorizados e desprovidos de acesso às mais elementares condições de
sobrevivência, pudessem construir um sistema que lhes restituiu dignidade, afeto, noções de
coletividade, memória e através desses elementos se fortalecerem de tal modo a passar por
séculos e não serem extintos. Sobre esse tema, o ogã (assistente cerimonial) do Terreiro do
Cobre e professor do curso de Direito da Universidade Federal da Bahia, Samuel Vida (2007),
em depoimento ao já citado documentário Povo de Santo diz:
Bem verdade, muitas tiveram que ser as estratégias para a sobrevivência do culto e
dos costumes do povo negro africano escravizado no Brasil. Apesar de toda repressão e
perseguição histórica vivida até os dias atuais, o Candomblé fortaleceu-se, adentrou em
espaços dantes impensados, letrou-se sem perder a força da oralidade e domou o código
35
dominante para chegar ao século XXI com um grande contingente de pensadores de diferentes
áreas do conhecimento humano. Esse conhecimento gerou publicações, experimentações
estéticas, encontros, seminários, congressos e eventos de diversas naturezas a fim de divulgar
a relevância e as contribuições que esta expressão filosófica e religiosa legou para o povo
brasileiro.
Os exemplos que reforçam esse raciocínio encontram sua maior expressão viva na
yalorixá Maria Stella de Azevedo Santos, mais conhecida como Mãe Stella de Oxossi, sendo
Odé Kaiodê seu nome africano dentro da religião. Mãe Stella, dentre várias personalidades da
comunidade negra, é a primeira yalorixá a assumir assento na Academia Baiana de Letras; sua
figura pode ser tomada como desembocadouro das lutas e vitórias de diversas mulheres e
homens negros, que através da liderança de terreiros de Candomblé e das reflexões sobre as
religiões de matriz africana, empreenderam conquistas significativas na legitimação do culto
aos Orixás, Inkisses (divindades da nação Angola) e Voduns (divindades da nação Jeje).
Dentre inúmeras outras e outros líderes que deram continuidade à luta e aos desejos
de emancipação cultural, política e econômica desejada e empreendida pelos nossos
antepassados, destacam-se as yalorixás Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá; Mãe
Senhora, também do mesmo Ilê Axé; Yá Nassô; Yá Adetá e Yá Kalá, fundadoras do Ilê Axé
Yá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca; Marcelina da Silva, a Yá Obá Tossi, também da
Casa Branca; Mãe Menininha do Gantois; o babalorixá (pai de santo) Procópio de Ogunjá;
Mãe Olga do Alaketo; Pai Agenor Miranda; pai Joãozinho da Goméia; pai Manoel Joaquim
Ricardo, Babá Talábi de Ajunsun, fundador do Ilê Axé Oxumare.
Contudo, Mãe Stella se destaca devido ao percurso que fez, unindo a oralidade da
cultura africana à logocidade da cultura ocidental, tornando-se uma intelectual reconhecida
nacionalmente. Seus escritos são contribuições e problematizações eficazes na divulgação e
preservação da força e beleza da religiosidade e da filosofia do Candomblé nos dias atuais;
sua biografia traz uma história de lutas e quebras de paradigmas15. Além do ingresso na
Academia Baiana de Letras, ela foi a primeira yalorixá a se colocar publicamente contra o
sincretismo religioso, em 1983, durante a II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás, em
15
Algumas das obras de Mãe Stella de Oxóssi: E Dai Aconteceu o Encanto, Maria Stella de Azevedo Santos
e Cléo Martins, Salvador, 1988; Meu Tempo é Agora, Maria Stella de Azevedo Santos. Editora Oduduwa, São
Paulo, 1993; Lineamentos da Religião dos Orixás - Memória de ternura. Cléo Martins, 2004; participação
especial de Mãe Stella - Alaiandê Xirê- ISBN 8590467813; Òsósi - O Caçador de Alegrias, Mãe Stella de Òsósi,
Secretaria da Cultura e Turismo, Salvador, 2006; Opinião - Maria Stella de Azevedo Santos - Iyalorixá do Ilê
Axé Opô Afonjá - Um presente de A TARDE para a história - Reunião de textos publicados no jornal A
TARDE na coluna Opinião.
36
Salvador. ―Nós conseguimos nos tornar independentes e colocar cada religião em seu lugar‖ –
afirma a yalorixá – e complementa:
16
A fim de ilustrar melhor o pensamento e as contribuições dessa yalorixá, incluí nos anexos deste trabalho dois
artigos da mesma, publicados no livro Opinião - Maria Stella de Azevedo Santos - Iyalorixá do Ilê Axé Opô
Afonjá - Um presente de A TARDE para a história", reunião de textos publicados no jornal A TARDE na coluna
"Opinião" 2012.
37
eventos científicos e culturais, pesquisam e orientam pesquisas, lideram experimentos de
diversas ordens que comprovam a força e o vigor da religiosidade de matriz africana. Assim,
ampliam a necessária divulgação e documentação do legado africano e afro-brasileiro.
Para reafirmar a importância da formação do Candomblé e da sua sobrevivência até
hoje, tomo aqui um dos pensadores citados no início do capítulo, Luis Nicolau Pares (2006)
que em seu livro A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia traz
reflexões de suma importância para a compreensão da representatividade política, ética,
cultural e econômica que consistiu este percurso histórico. Em seu texto, ele expõe:
38
1.2 – SOBRE O NATA: ORIGEM, ANDANÇAS, CRISES E CONFLUÊNCIAS
Figura 4 – O grupo NATA da esquerda para a direita: Fernando Santana, Sanara Rocha, Thiago Romero,
Fernanda Júlia, Fabíola Júlia, Daniel Arcades e Antonio Marcelo – Espetáculo Exu – A Boca do Universo
Espaço Cultural da Barroquinha – 2014 – Foto: Andréa Magnoni17.
17
Além dos componentes da imagem 04, fazem parte e/ou desenvolvem atividades com o grupo o ator e
iluminador Nando Zâmbia, o diretor musical Jarbas Bittencourt, o coreógrafo Zebrinha, o preparador vocal
Marcelo Jardim, a produtora Susan Kalik, o diretor de audiovisual Thiago Gomes e o produtor executivo
Francisco Xavier, além da cobertura fotográfica de Andréa Magnoni.
18
Esta montagem foi o desdobramento de uma pequena cena, apresentada em sala de aula como resultado de um
trabalho escolar para as disciplinas de Geografia e História. A comissão de professores que acompanharia a
montagem do espetáculo que representaria o Colégio Estadual Polivalente de Alagoinhas selecionou esta cena
como ponto de partida para a construção da peça para o Festival. O espetáculo abordava a seca do ponto de vista
psicológico. O que acontecia ao indivíduo para além da falta de água? A peça falava de violência, corrupção, da
vida e da luta do povo nordestino contra a negligência do poder público nas questões da seca no nordeste,
fazendo uma metáfora sobre a água como a representação da riqueza e da dignidade que todo ser humano
necessita e merece para viver.
39
num tema polêmico, o amor homoafetivo, e representou o Colégio Estadual Polivalente de
Alagoinhas na segunda edição do festival no ano de 1999, com o espetáculo Guarda-roupa
íntimo19, minha estreia como encenadora. Este espetáculo foi muito desafiador e revelador
para aquele grupo de jovens e, em especial para mim, pois percebi o meu lugar dentro do
fazer teatral e tive uma identificação imediata com a função de encenadora, mesmo estando
incialmente como atriz. A partir daí, não retornei mais para a cena, consolidando-me como a
encenadora do NATA até os dias atuais.
De forma muito intuitiva, fui percebendo e descobrindo que rumos tomar com a
peça, com a distribuição de personagens e principalmente como não deixar o espetáculo cair
na estereotipia sobre a homossexualidade. O Guarda-roupa íntimo venceu a segunda edição
do festival nas categorias Melhor espetáculo júri oficial20, Melhor espetáculo júri popular,
Melhor ator, Melhor ator coadjuvante e Melhor figurino21.
O NATA, após o êxito do Seco da Seca, e do Guarda-roupa íntimo, apresentava-se
com frequência em eventos do Colégio Polivalente, desde comemorações previstas no
calendário escolar a momentos importantes do colégio, quando a direção nos convocava a
escrever e montar pequenos espetáculos. Exemplo disso foi a participação do grupo nas
comemorações dos 20 anos de construção do Colégio Estadual Polivalente de Alagoinhas.
Porém, após o Guarda-roupa íntimo, percebemos que desejávamos conhecer mais e melhor o
teatro e, contrariando a muitos, saímos da escola e fomos fazer parte do teatro amador da
cidade.
Ao sair do colégio, o NATA decide fazer uma alteração no nome: deixa de ser
Núcleo Amador de Teatro e Arte e passa a se chamar Cia de Teatro NATA. Sofrendo dos
inúmeros problemas que formam a trajetória dos grupos de teatro no interior (saída de
integrantes, falta de local para ensaios e apresentações, falta de verbas e infraestrutura e de
respaldo institucional etc.), o grupo, em 2001, ficou reduzido a três integrantes, passando em
seguida por uma recomposição de elenco.22
19
O espetáculo Guarda-roupa íntimo consistia numa comédia romântica, que narrava a vida de Alan, um jovem
de classe média alta, estudante do último semestre de Direito, que se apaixona pelo melhor amigo da sua
namorada. A peça narrava um amor homo afetivo, a partir da valorização do amor, desconstruindo a imagem de
promiscuidade associada à figura dos homossexuais.
20
Os jurados foram o ator e arte educador, formado pela Escola de Teatro da UFBA, Alain Félix, o ator e diretor,
naquele período mestrando do PPGAC – UFBA, Alex Beigui, e o ator e professor de teatro da cidade de
Alagoinhas Roque Lázaro.
21
É importante dizer, que este espetáculo deflagrou no então grupo de atores a necessidade de sair do ambiente
escolar e enveredar pelas sinuosas curvas do teatro amador da cidade.
22
Eu e os atores Anderson Araújo e Gilmar Feitosa, a quem se juntou o então ator e aluno do curso de Letras da
UNEB – Alagoinhas Antonio Marcelo. A partir daí, houve uma recomposição do elenco, que resultou na entrada
de Nando Zâmbia, Fabíola Júlia, Vânia Santana, Reinaldo Alves, Joenice Reis, o jovem Luiz Antonio Jr. (em sua
40
Com esta recomposição, o grupo estava apto a começar um novo espetáculo. Assim,
apresentei ao grupo um texto teatral que vinha desenvolvendo e o sugeri como nosso próximo
espetáculo: Senzalas – a história, o espetáculo. Era a primeira vez que o grupo se confrontava
com um tema que abordava a ―discriminação racial‖. Não sem propósito, eu havia sido alvo
pela primeira vez de ato de discriminação racial: fui comprar um relógio em uma conceituada
loja em Alagoinhas e fui mal atendida por uma funcionária branca, ao dizer de forma irônica e
desregrada que eu não teria ―perfil‖ para usar o relógio que estava exposto na vitrine.
Eu já passara por situações semelhantes, porém nunca me tinha atentado para a
intenção das pessoas que me trataram dessa forma. Devo confessar que nunca havia, até
aquele dia, percebido que se tratava de discriminação racial e social. Após uma demorada
discussão com a atendente e depois do gerente da loja intervir e me pedir desculpas, saí
furiosa, dizendo a mim mesma que não poderia deixar isso se repetir comigo e com as demais
pessoas; precisava fazer algo para ajudar a combater esse tipo de humilhação. Naquele
momento, nasceu o argumento para o texto do espetáculo Senzalas – a história, o espetáculo.
Senzalas, como chamamos simplesmente a peça, estreou em novembro de 2002 e foi
a primeira bem-sucedida tentativa artística do NATA em abordar a herança cultural africana
em cena além de ter tido uma ampla aceitação de público e de crítica, ainda que estivéssemos
tateando em trazer para cena questões tão complexas como racismo, preconceito etc. O
espetáculo agradou pela temática, pelo visual, pela exuberância dos figurinos e pela
composição da trilha gravada em estúdio e foi o primeiro espetáculo local a lotar a plateia do
Centro Cultural de Alagoinhas em dois dias de apresentação, com capacidade para 300
espectadores. Mas estava longe do entendimento da complexidade das questões étnicas,
raciais, políticas e culturais.
Uma prova disso era que não tínhamos referências que pudessem nortear nosso fazer
teatral; o nosso modelo era a dramaturgia televisiva, especialmente a teledramaturgia
romântica, realista ou folhetinesca. Percebo hoje que, desde o espetáculo Guarda-roupa
íntimo, nossas peças pareciam telenovelas feitas no palco. O espetáculo Seco da seca fugiu ao
formato televisivo, mas se inspirou no videoclipe, igualmente televisivo. Nenhum de nós lia
ou sequer assistia a espetáculos teatrais.
Percebemos com essa montagem que precisávamos estudar mais o fazer teatral, ver
peças, acompanhar processos, buscar referências teatrais e não televisivas. A montagem e a
realização de Senzalas havia fortalecido em nós a decisão de fazer teatro profissionalmente
primeira incursão pelo teatro e atualmente diretor e produtor d`A Outra Cia de Teatro na cidade de Salvador) e
alguns adolescentes que estavam experimentando a cena para ver se continuariam ou não.
41
com todas as complicações que o termo ―profissional‖ apresenta. Daí sugiram a comédia
Fashion porque viver é fashion e a obra prima de Plínio Marcos Dois perdidos numa noite
suja.
Seja pelos desajustes pessoais internos ou pela falta de maturidade e conhecimento
cênicos, ambas as montagens resultaram em fracasso de público e crítica locais. Não tínhamos
mais afluência de público dos espetáculos anteriores nem os comentários eram favoráveis às
apresentações. Tratava-se de uma crise que foi depois transformada em um trampolim para
uma virada significativa do grupo: a busca por textos da dramaturgia brasileira, até aquele
momento desconhecida pelo grupo.
O grupo decidiu fazer uma pesquisa sobre autores teatrais e a partir daí selecionar
textos cujo único critério de escolha era o gosto pessoal. Por conta disso, montamos uma
colagem de textos como o Anti-Nelson Rodrigues e Dorotéia, de Nelson Rodrigues, A farsa
da boa preguiça e o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna e O assalto e a Despedida na
rodoviária, da Cia de Comédia Os Melhores do mundo; nasceu, assim, o espetáculo Perfil –
Só vendo pra crer.
O espetáculo voltou a encontrar seu público, identificado pelas temáticas ali expostas
e pelo fazer cênico mais apurado do que os as montagens anteriores. Perfil era um espetáculo
com vigor juvenil e trazia muita música, muita dança e conexões com o dia a dia do
espectador, além da qualidade dos textos selecionados. Todos esses elementos contribuíram
para que o NATA fizesse a sua primeira temporada fora de Alagoinhas, a convite da equipe
de artistas que dirigiam o Teatro Vila Velha23 em Salvador, Bahia.
Em agosto de 2004, desembarca em nossa cidade uma comitiva do Teatro Vila
Velha, com o projeto Teatro de cabo a rabo e com a apresentação do espetáculo Oxente cordel
de novo? do Bando de Teatro Olodum. Participamos das oficinas ofertadas para os artistas da
cidade (interpretação, dança, iluminação, leis de incentivo à cultura e música) e tivemos um
encontro com a equipe do Vila, quando, na oportunidade, mostraríamos uma cena de qualquer
espetáculo do repertório. O objetivo dessa equipe era escolher um grupo local para participar
da mostra A arte do interior na capital, também no Teatro Vila Velha. Após as apresentações,
23
O Teatro Vila Velha (TVV) sempre foi um espaço de liberdade, desde a sua inauguração, em 31 de julho de
1964, exatos quatro meses após o Golpe Militar. O Vila reagiu à ditadura, acolheu artistas e estudantes
perseguidos, abrigou encontros do movimento estudantil. Por toda essa história, o TVV foi sede da Anistia
Internacional. Foi também no palco do Vila que foram julgadas e aprovadas as anistias políticas do cineasta
Glauber Rocha e do guerrilheiro Carlos Marighella, que o Estado Brasileiro pediu desculpas a suas famílias
pelos atos criminosos durante o regime militar. É um tradicional espaço de potencialização de grupos teatrais.
42
a produção do projeto anunciou a escolha feita pelo diretor Márcio Meirelles de três grupos;
além do NATA, foram selecionados o Bando de Artistas Cênicos – BAC e os Macabéicos24.
Não tínhamos ideia sobre quem eram aqueles artistas, desconhecíamos a trajetória do
Teatro Vila Velha, do Bando de Teatro Olodum, de Márcio Meirelles e de Chica Carelli, mas
as oficinas foram uma excelente oportunidade de capacitação nas artes cênicas e um estímulo
a continuar o fazer teatral, aos quais se incluíam indicação de livros e peças de teatro além de
colocar o Vila à nossa disposição, quando fôssemos a Salvador. Em dezembro do mesmo ano,
realizamos a apresentação de Perfil, num Cabaré dos Novos lotado e, logo depois, recebemos
de Márcio Meirelles o convite para retornarmos com o mesmo espetáculo no mês de março,
quando participaríamos do projeto O que cabe neste palco?25 só que dessa vez o grupo arcaria
com os custos.
Nessa nova temporada, que contava com 04 apresentações, iniciamos as sessões com
oito pessoas na plateia no primeiro dia e um público de cento e quinze pessoas na última
apresentação, público este só alcançado pelo Bando de Teatro Olodum, nas temporadas de
Cabaré da rrrrrraça,26 quando realizadas no Cabaré dos Novos. Essa experiência foi
importante para o NATA prosseguir com novas apresentações em Salvador, acentuando o
intercâmbio interior-capital.
Em 2005, o NATA, já com a entrada do ator Daniel Arcades e com a continuação
dos atores Antônio Marcelo, André Gouveia (que entrou no grupo no espetáculo Perfil),
Nando Zâmbia, Fabíola Júlia e Vânia Santana, estreamos o espetáculo A Eleição27, da
paraibana Lourdes Ramalho, montagem responsável pelo retorno do NATA ao Teatro Vila
Velha na última edição do projeto Teatro de cabo a rabo. Desta vez, nós nos apresentamos no
palco principal do teatro e depois retornamos para o projeto O que cabe neste palco? em
outubro de 2006.
24
O Bando de Artistas Cênicos – BAC formou-se após a saída de alguns componentes do NATA (Luiz Antonio
Jr. e Gláuber Jorge) que atuou no cenário alagoinhense de 2003 até 2008. Eles apresentaram na mostra em
Salvador o espetáculo Nas entranhas do amor. Os Macabéicos consistiram num grupo de alunos dos cursos de
Letras e História da UNEB – Campus II – Alagoinhas, que por meio do teatro, encenavam suas insatisfações e
reivindicações no interior da universidade de 2004 a 2007; nessa oportunidade, apresentaram o espetáculo
Loucos demais.
25
Este projeto visava à realização de uma temporada de um mês no palco do Cabaré dos Novos do Teatro Vila
Velha. O desafio do projeto era colocar em cartaz o que coubesse naquele espaço, com pautas mais baratas e
apoio de divulgação. O projeto contemplava espetáculos do interior do estado e da periferia de Salvador.
26
Espetáculo de maior sucesso do Bando de Teatro Olodum, estreado em 1997. Essa montagem será melhor
detalhada no capítulo dois desta dissertação.
27
Espetáculo de autoria de Lourdes Ramalho, que narra o processo eleitoral da cidade de Fundão, onde um
padre, um médico e um cidadão da classe operária disputam o pleito. Acontecimentos inusitados, corrupção e
muita disputa de poder são os elementos centrais da peça. Com essa montagem, o NATA pela primeira vez sai
em uma matéria jornalística em Salvador, o que ajudou a divulgar o grupo na cidade.
43
Outro acontecimento deste ano foi a participação do NATA no I Fórum Nacional de
Performance Negra28, idealizado e realizado pela Cia dos Comuns e pelo Bando de Teatro
Olodum. Esse evento nos apresentou discussões pertinentes sobre a criação de políticas
públicas para o fomento e manutenção do fazer cênico identificado com o teatro negro, além
de nos apresentar diversos artistas, intelectuais, militantes negros ampliando nossos
referenciais. O Fórum abordou temas como identidade, ancestralidade, racismo institucional e
realizou uma análise sobre as peculiaridades do fazer cênico negro. Essas discussões
fortaleceram a decisão de aprofundar ainda mais o nosso conhecimento e de fazer um teatro
que colocasse em cena a nossa história ancestral africana e afro-brasileira.
Em 2006, fui aprovada no vestibular da Escola de Teatro da UFBA, no curso de
Direção Teatral. O fato de ter que estudar em outra cidade atrapalhou um pouco os planos de
continuidade artística do grupo. Por conta da graduação e da distância, o NATA ficou sem
montar nenhum espetáculo novo de 2005 a 2009, mas isso não impediu a continuidade do
grupo que participou do projeto Ato de 429, nos meses de abril e maio deste ano (2006), com
as cenas O assalto, da Cia de Comédia Os Melhores do mundo, e uma cena do texto O Anti-
Nelson Rodrigues, de Nelson Rodrigues, ambas anteriormente montadas no espetáculo Perfil.
Além disso, participou de pelo menos duas mostras didáticas da graduação sob a minha
direção30.
Depois de quatro anos sem realizar um espetáculo completo, resolvemos nos
inscrever pela primeira vez num edital público de estímulo a montagens teatrais. O ano era
2008 e através da Política de Interiorização da Cultura31 foram implementadas ações na
concepção dos editais. Uma delas, a que nos tocava diretamente, foi a destinação de um
percentual dos recursos e projetos para os grupos do interior do estado. Pela primeira vez,
uma comissão julgadora teria que levar em consideração esse critério. A possibilidade nos
animou e, portanto, inscrevemos no Edital Manoel Lopes Pontes de Estímulo a montagens
28
O Fórum Nacional de Performance Negra, reuniu no palco principal do Teatro Vila Velha, artistas negros de
teatro e de dança de todo o país, para discutirem políticas públicas que visam fomento, divulgação, formação e
valorização da arte cênica negra no Brasil e no mundo, além de pautas relacionadas com a poética do fazer
cênico negro. Foram quatro edições (2005, 2006, 2009 e 2015) e seus idealizadores são Hilton Cobra, Márcio
Meirelles, Chica Carelli e Luiza Bairros.
29
Projeto da Escola de Teatro da UFBA que consistia na seleção de quatro cenas de alunos da Escola, ou alunos
de outras unidades e/ou da comunidade, com duração de no máximo 15 minutos, que aconteciam todas as
segundas-feiras na Sala 5 (pequeno teatro, onde os alunos da Escola de Teatro, realizam as mostras didáticas).
30
O ator Antônio Marcelo atuou na mostra didática do segundo semestre no espetáculo Quando as máquinas
param, de Plínio Marcos, e Nando Zâmbia e Antônio Marcelo integraram o elenco da mostra do quinto semestre
no espetáculo As massas e o homem, de Ernest Toller.
31
―Cotas para o interior‖ foi uma ação que fez parte do programa político da gestão de Márcio Meirelles como
Secretário de Cultura do Estado da Bahia.
44
teatrais da Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB o projeto Siré Obá – A Festa do
Rei.
A realização desse espetáculo foi fruto da necessidade do NATA de voltar à sala de
ensaio depois de um longo período sem novos processos, de colocar em prática todos os
conhecimentos adquiridos sobre o fazer teatral que vínhamos acumulando e a necessidade de
estrear um espetáculo antes da minha formatura na Escola de Teatro. O nosso objetivo maior
era o de assumirmos cenicamente um discurso poético-político, fato que o NATA já vinha
afinando em conversas e reuniões.
Em agosto de 2008, encerrava-se a temporada do espetáculo Policarpo Quaresma32,
no qual trabalhei como assistente de direção e operadora de som. Em paralelo ao processo de
montagem do Policarpo, escrevia junto com o NATA o projeto de Siré Obá. Encerrada a
minha participação como assistente de direção e operadora de luz do espetáculo Atire a
33
primeira pedra e, após aprovação do projeto do NATA no edital, fomos a Alagoinhas e
iniciamos o processo de construção do espetáculo. Nessa oportunidade, adentraram ao grupo
o ator e diretor de arte Thiago Romero e a instrumentista Sanara Rocha.
Em 2010, como finalização da graduação em Direção Teatral, montamos o
espetáculo Ogun – Deus e Homem, vencedor do I Prêmio de Expressões Afro-brasileiras
patrocinado pela Fundação Cultural Palmares, Ministério da Cultura, Petrobras e Centro de
Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves – CADON. Esse foi o primeiro edital
federal que o NATA ganhou e nessa oportunidade nascia a parceria entre o NATA e a Kalik
Produções Artísticas, que, a partir dessa montagem, vem respondendo pela produção do grupo
até os dias atuais.
Em 2014, o NATA, que abandona o nome de ―Cia de Teatro NATA‖ e passa a se
chamar Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas, foi selecionado no Edital TCA
Núcleo "Em Construção" – Uma homenagem à Lina Bo Bardi, com o projeto Exu Sile Oná
32
Espetáculo dirigido por Luiz Marfuz, vencedor do edital TCA – Núcleo de 2008. Policarpo Quaresma foi o
primeiro espetáculo criado a partir do modelo de edital público, pois antes o TCA convidava o encenador para a
realização da montagem, realizando apenas seleção pública para a composição do elenco. Com adaptação do
texto de Lima Barreto realizada por Marcos Barbosa, a montagem venceu o Prêmio Braskem 2009 em cinco
categorias: Melhor Espetáculo, Direção, Atriz (Cláudia Di Moura), Atriz Coadjuvante (Elaine Cardim) e
Revelação (cenógrafo Rodrigo Frota), além da indicação de Melhor Ator para Hilton Cobra que protagonizava a
montagem.
33
Espetáculo de formatura dos alunos de interpretação da Escola de Teatro, dirigida por Luiz Marfuz com
adaptação de texto Cleise Mendes e Fernando Santana dos contos de A vida como ela é, de Nelson Rodrigues.
Espetáculo indicado ao prêmio Braskem de 2009 nas categorias melhor espetáculo adulto, melhor diretor para
Luiz Marfuz e revelação para Milena Flick.
45
TCA – Exu abre as portas do novo TCA34. Esse projeto resultou numa ocupação artística dos
espaços do complexo cultural do Teatro Castro Alves durante seis meses e como culminância
do projeto estreamos o espetáculo Exu – A Boca do Universo. Essa montagem, assim como
Siré Obá e Ogun, obteve uma forte aceitação por parte do público e da crítica e nos levou a
realizar uma circulação nacional, ao sermos selecionados pelo Serviço Social do Comércio –
SESC para integrarmos a programação do projeto Palco Giratório 2015.
Os espetáculos Siré Obá – A festa do Rei, Ogun – Deus e Homem e Exu – A Boca do
Universo integram o grande projeto do NATA de montar um espetáculo para cada Orixá que
compõe o panteão de divindades yorubanas cultuado no Brasil35. Além disso, foram
responsáveis pela construção do projeto poético do grupo e por concretizarem na cena nossas
aspirações acerca de um trabalho artístico norteado pelo encontro entre Candomblé e Teatro.
Vou deter-me sobre essas três montagens e suas contribuições em minha trajetória artística no
capítulo três desta dissertação.
O NATA é este espaço, onde venho desenvolvendo a minha trajetória como
encenadora. É no contato, diálogo e tensões estabelecidos com os demais artistas do grupo
que venho construindo um trajeto artístico que ambiciona propor uma contribuição no
processo de empoderamento da negritude brasileira.
Foi assim... Ao som do adjá (sineta que invoca as divindades no Candomblé), dos
atabaques, do agogô, das palmas e das vozes daqueles que compõem o egbé (comunidade de
axé, terreiro de Candomblé) que pouco a pouco foi se formando o meu olhar e o meu sentir
sobre o mundo. Através do contato com os mais velhos e observando o processo dos mais
novos, pude ampliar horizontes, perceber o mundo à volta, compreender e refletir sobre a vida
dentro e fora do egbé, aprendendo lá e cá.
Entretanto, um dos aprendizados de maior importância foi o da sensibilidade da
fruição artística que o Candomblé proporciona. Durante o processo, nem percebemos e nem
34
O Projeto EXU SILÉ ONÁ TCA – EXU ABRE OS CAMINHOS DO NOVO TCA desenvolveu-se em 05
(cinco) eixos de trabalho (Formação, Intercâmbio Cênico, Difusão, Criação e Circulação), compostos por 28
(vinte e oito) atividades interdependentes que se conectaram com a pesquisa cênica do grupo, partindo do
processo de residência artística e sendo norteado pelo profícuo processo de intercâmbio com a Cia do Miolo 34 de
São Paulo.
35
São eles: Exu, Ogun, Oxóssi, Ossãe, Omolú, Oxumarê, Xangô, Iroko, Logunedé, Oyá, Yemanjá, Oxum, Ewá,
Obá, Nanã, Ibeji e Oxalá.
46
discutimos isso como arte na acepção que usualmente classificaríamos como experiência
estética, área de conhecimento ou linguagem; é uma consciência que vem com o tempo, o
amadurecimento e/ou o fazer artístico. O Candomblé, assim como as demais religiões, traz em
seu interior uma ligação profunda com as artes.
O canto, a dança, a música, as vestimentas das divindades, os adereços, as
ferramentas dos assentamentos (símbolos das divindades guardados nos quartos de santo)
colocados nos altares, o uso das cores e das formas, os movimentos, os ritmos, os sabores e a
visualidade dos pratos preparados nas cerimônias dos Orixás - tudo é símbolo de comunicação
entre os humanos e as divindades, elementos que contribuem para o que podemos chamar de
cenicidade do axé. Como Juana Elbein Santos (1986, p. 51) elucida:
Antes de serem formas de arte, são formas que tem o encargo de significar as
múltiplas relações do homem com seu meio técnico e ético. Esse conceito não é
aplicável apenas aos textos, mas a todos os elementos que se combinam para
expressar a atividade ritual. O conceito estético é utilitário e dinâmico. A música, as
cantigas, as danças litúrgicas, os objetos sagrados quer sejam os que fazem parte dos
altares – (peji) quer sejam os que paramentam os Orixás comportam aspectos
artísticos que integram o complexo ritual [...] A manifestação do sagrado se expressa
por uma simbologia formal de conteúdo estético.
36
Refiro-me à cultura africana antes do processo colonizatório infligido pelo continente europeu ao continente
africano.
47
talismã ritual e protege quem o usa e um banco de madeira é um banco e ao mesmo tempo
uma escultura. Na concepção da cultura tradicional africana o mesmo vaso que ornamenta é
uma expressão da presença do ancestral.
Figura 5–Banco e vaso, peças encontradas em escavações no Egito, sobretudo a partir da criação do
Instituto Francês de Arqueologia Oriental do Cairo (1880) – Foto: Louvre37.
Figura 6 – Colar para o Orixá Yemanjá - Acervo do Ilê Axé Oyá L´adê Inan. Foto: Nando Zâmbia.
Desse modo, ela também me inspira com essa forma de investigação dinâmica, em
diálogo profundo para entendimento no processo da natureza dos ritos associados ao
significado do material fatual. Essa forma etnográfica é compatível com a abordagem
compreensiva por mim adotada, contribui para que o pesquisador esteja imbuído também do
ponto de vista do sujeito pesquisado, evitando um olhar unilateral. O fazer teatral que ora
venho compreender nasceu da necessidade de dedicar um olhar mais profundo sobre questões
que envolveram historicamente a população negra no decorrer do processo civilizatório deste
país, e o Candomblé é uma síntese cultural importante para auxiliar na aproximação e no
entendimento do ―complexo‖ processo de nossa formação.
Arte e antropologia são pilares que norteiam as escolhas poéticas do processo
criativo dos espetáculos que venho montando e que se apresentam nesta dissertação como
49
material de estudo e reflexão. A opção pelo caminho da arte como expressão e a construção
de uma poética cênica calcada no estudo das relações de ancestralidade e da herança cultural
africana se devem à necessidade de fortalecimento dos referenciais identitários negros, da
divulgação e da valorização da cultura negra e da potencialização da necessidade de
descerramento dos preconceitos e intolerâncias que compõem uma realidade premente em
nosso país: a de que somos culturalmente diversos.
Em seu livro Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá, Leda Maria
Martins apresenta uma profunda reflexão sobre a construção e a manutenção do legado
africano no Brasil e sua formulação na contemporaneidade. Nesse livro, a autora apresenta o
conceito ―afrografar‖, decisivo para compreender a abordagem das escolhas poéticas que
venho fazendo nas encenações e conceito fundamental que norteia esta pesquisa:
Por meio das afirmações feitas pela autora, podemos encontrar os contextos que
nortearam a criação do conceito ―afrografia‖ e ―afrografar‖, que consiste em recuperar, reaver
a africanidade conspurcada pela violência da escravização e seus desdobramentos na
contemporaneidade. ―Afrografar‖ nada mais é que ―grafar africanamente‖, através da visão de
mundo do povo africano, nossos antepassados e construtores de um processo civilizatório no
Brasil. Essa ideia também me orienta como um princípio filosófico, poético e espiritual no
meu percurso como encenadora desde a escolha do tema a ser desenvolvido até o processo de
finalização de uma montagem. Isso se reflete no teatro que escolhi fazer, que inclui o
―afrografamento‖ do fazer teatral desde a preparação dos atores à encenação como um todo.
A reflexão é realizada por todas as instâncias do processo criativo e vai até o nosso
encontro com o espectador. É um fazer que resulta no trânsito fluido das intersecções entre
Candomblé e Teatro, buscando colocar em cena elementos da história e da memória da matriz
negra brasileira: mitos, músicas, comidas, comportamentos e valores que estão
intrinsicamente ligados à vida dos indivíduos nascidos e criados no Brasil, mas que não
50
aparecem e nem são validados efetivamente nas instâncias e instituições de poder da nação.
Essa ―ausência‖ ilusória intensifica o racismo, cria o mito equivocado de uma única versão
histórica e retira as contribuições da comunidade negra na constituição social do Brasil,
simbolizada na figura da árvore baobá, conforme destaca Leda Maria Martins (1997, p. 25):
51
no Candomblé e de como o ensinamento da mesma pode contribuir de forma eficaz no
fortalecimento da referencialidade negra africana entre artistas e estudantes de dança de forma
geral, conforme a seguir:
Ela apresenta uma reflexão que nos convida a estarmos cientes da importância de
quem somos e da realidade circundante, reforçando mais uma vez o quanto ainda é necessário
que compreendamos a necessidade de fortalecimento da herança cultural afro-brasileira. A
compreensão e internalização desse universo simbólico de matriz africana leva a um modo de
fazer artístico que envolve a construção de um caminho e de um modo de caminhar que
abarca: o foco no percurso e não no fim da viagem, o encontro com os ancestrais, a validação
e a divulgação da beleza e grandiosidade da cultura negra africana e afro-brasileira, a
construção de um fazer cênico que empodere identitáriamente o artista e, por conseguinte, o
espectador; uma escrita cênica que ambiciona contribuir efetivamente para a desmistificação e
o fim dos estigmas imputados à cultura do povo negro no Brasil.
O Candomblé e o Teatro são, ao mesmo tempo, fonte e caminho, tema e forma.
Estudar meu percurso como encenadora através do entendimento das intersecções e inter-
relações existentes entre o ritual do Candomblé e o ritual do Teatro é uma aposta na pujança
da arte como propiciadora do fortalecimento dos valores da identidade cultural e de sua
relevância na constituição de uma nação justa, democrática, sensível, diversa e na formação
de artistas que ampliem seu entendimento para além da técnica, abarcando assim suas funções
política, filosófica e espiritual.
O persistente entrelaçamento teatro-religião – desde os ritos mais antigos, passando
pela mitologia grega, inspirada nos ritos de Dionísio, o deus do Teatro no ocidente – fornece
ao longo da história um rico manancial de aproximações e tensões. Assim, Candomblé e
Teatro caminham juntos em meu percurso artístico.
52
2 . APRENDENDO COM OS MESTRES
53
Figura 7 – Fabíola Júlia e Fernando Santana no espetáculo Exu – A Boca do Universo – Espaço Cultural Barroquinha – 2014 – Foto: Andréa
Magnoni.
O futuro vem do passado (NIANE, 1960, p. 09)
É em busca dessa essência do teatro que Grotowski (1971) tão bem define nessa
citação que venho nesses anos de trabalho e pesquisa encontrando pessoas, conceitos,
discursos, técnicas, reflexões, públicos e tensões que fortaleçam cada vez mais o meu
encontro com o Teatro e que me oportunize mergulhos cada vez mais profundos nessa arte tão
preciosa, coletiva e complexa. O encontro com o Candomblé e com Teatro o foi, acima de
tudo, o encontro com pessoas, com mestras e mestres; encontro com os sonhos, ideais, ideias
e formas de materializar esses anseios numa interação mágica entre as cerimônias de axé e as
apresentações de um espetáculo teatral.
Portanto, nesse percurso, encontrei mestres do axé como a yalorixá mãe Rosa d´Oyá
e babá Márgio d´Ogun, grupos, coletivos teatrais e artistas negros como o Bando de Teatro
Olodum, a Companhia dos Comuns e a Companhia Abdias Nascimento (CAN), e mestres do
Teatro como Luiz Marfuz, Marcos Barbosa e Roberto Lúcio. Com eles, realizei o que intitulo
de ―Encontros poéticos‖, título encontrado para descrever a relevância de cada um deles em
meu itinerário artístico-formativo. Assim, dedicarei as páginas seguintes para explicitar as
suas contribuições em minha formação.
54
2.1 – ENCONTRO COM MÃE ROSA D´OYÁ E PAI MÁRGIO D´OGUN
Figura 8 – Mãe Rosa d´Oyá no espetáculo Siré Obá – A festa do Rei – Palco principal do TCA – 2013 – Foto:
Andréa Magnoni.
Por isso, mas não só, considero mãe Rosa d´Oyá uma importante figura em minha
formação, meu primeiro contato com o poder transformador do axé e suas reverberações. No
interior de seu ventre materno, aprendi os primeiros movimentos de vida e, no interior do seu
ventre ritual, os primeiros preceitos de axé. Grande responsável por minha formação
emocional, espiritual e também profissional, mãe Rosa d´Oyá é consultora para os projetos
cênicos do NATA, nossa orientadora de axé. Em Siré Obá – A festa do Rei, brindou-nos com
sua presença ancestral em cena, encerrando o espetáculo ao som do adjá, cantando para
Oxalá.
A sua participação em nossos projetos artísticos é fundamental, pois é através de seu
axé e sua sabedoria de mulher negra, mãe e sacerdotisa que consultamos os Orixás e os
antepassados para saber se aceitam ou não o projeto de montagem, se a abordagem cênica
proposta os agrada e quais rituais e preceitos serão necessários para a construção do
espetáculo. O resultado dessa orientação religiosa define a tomada de decisão quanto à
realização ou não do espetáculo, o que já nos faz compreender incialmente uma importante
conexão entre Candomblé e Teatro. Assim, a decisão artística submete-se à decisão religiosa.
Um exemplo disso é o momento atual do NATA quando nos perguntamos qual o
próximo Orixá que será encenado. Só Exu poderá nos dizer. Essa é a nossa crença, portanto já
solicitamos à mãe Rosa que coloque um jogo de búzios. Cerimônia ainda não realizada,
consequentemente, não sabemos ainda que Orixá será tema da nossa próxima montagem. O
que faz com que se levante uma questão: quem não é adepto do Candomblé necessita ter essa
crença assim como, por exemplo, o ator precisa ter ―fé cênica‖ para interpretar seu papel,
56
conforme Stanislaviski (1982), ou acreditar numa determinada convenção estética ou
ideologia artística?
De início e com base em nossa experiência, adianto que o ator não precisa ser adepto
do Candomblé. Não precisa ser iniciado na religião, porém deve querer conhecer a
religiosidade e ter por ela respeito. Olhá-la como patrimônio cultural brasileiro e não apenas
como liturgia religiosa. Assim como nas religiões de matriz africana, nós do NATA não
procuramos catequizar ninguém. Ao trabalharmos com essa temática, não buscamos adeptos,
mas artistas que desejem conhecer esse patrimônio cultural, suas contribuições para a arte e
cultura do Brasil e de que maneira um maior conhecimento do Candomblé pode desenvolver
princípios e procedimentos na formação e na criação teatral.
Por outro lado, o axé religioso vem até nós. Mãe Rosa, por exemplo, é quem conduz
o primeiro dia dos rituais instauradores. Esse dia é dedicado a realizarmos os banhos de axé,
as oferendas propiciatórias e a saudarmos Exu. Mãe Rosa consulta os búzios meses antes e
prescreve o que deverá ser feito. Nesse primeiro dia, conduz toda a cerimônia, desde o
cozimento das oferendas, o banho ritual, a orientação para saudarmos o Orixá Exu no
momento de arriar as oferendas aos Orixás prescritas anteriormente.
Mãe Rosa, com observações assertivas, orienta-nos sempre, dizendo: ―O Orixá, é a
sua riqueza, ele representa sua família desde antes de você existir. Perceber isso vai fazer com
que vocês estejam sempre unidos aos seus‖. Essa fala por mim transcrita é uma síntese que
define o papel do Orixá e o de mãe Rosa d´Oyá em minha formação. Para tanto, o Ilê Axé Oyá
L´adê Inan tem uma função importantíssima na edificação do fazer teatral do NATA; esse
egbé, além de sede do NATA na cidade de Alagoinhas, é também espaço de divulgação do
fazer teatral na cidade. Comporta desde ensaios abertos e estreias do grupo à apresentação de
espetáculos de artistas parceiros que vêm apresentando-se antes da cerimônia do Caruru de
Ibeji, ritual que acontece todos os anos no dia 12 de outubro, dia das crianças.
Exemplos disso foram os espetáculos Caçador de sonhos, do grupo Teatro Griô
(Salvador), sob a direção de Rafael Morais, Histórias da chuva (Salvador) com direção de
Antônio Marcelo e atuação de Josi Acosta e os espetáculos Popoesia pá, pá criança, Barro
mulher, Ori – olho por onde vejo Deus, é o mesmo por onde ele me vê, de autoria de atores do
NATA. Essas apresentações possibilitaram o primeiro contato de pessoas da comunidade da
Santa Terezinha e adjacências com o teatro. Oyá e mãe Rosa abrem as portas do egbé para o
teatro e dessa forma o teatro torna-se palco para que as histórias de Oyá e de mãe Rosa
possam ser contadas numa confluência de reciprocidade e força.
57
Além de possibilitar nossa residência artística no interior do egbé que lidera, mãe
Rosa d‘ Oyá, por meio de sua atividade como diretora de cultura da Associação de Moradores
da Santa Terezinha e como colaboradora da coordenação regional de Alagoinhas, da
Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (FENACAB), é grande estimuladora e
divulgadora do fazer teatral e do NATA. A sua influência em minha vida perpassa os laços
consanguíneos, transpassa os laços de irmandade no axé e se enlaça na roda do siré
(cerimônia pública do Candomblé) e na roda da cena.
Figura 9 – Mãe Rosa d´Oyá e seus filhos de axé no Ilê Oyá L´adê Inan – 2015 – Foto: Andréa Magnoni.
Já Márgio Luís Régis de Souza – babá Márgio d´Ogun, Baragundê é seu nome no
Candomblé – é o babalorixá do Ilê Axé Olo T´Ogun, terreiro do qual fazemos parte eu e
minha mãe, situado no distrito de Barra do Pojuca, no litoral norte do estado da Bahia,
fundado em 20 de dezembro de 2008. Através do profundo respeito e conhecimento acerca da
nossa herança ancestral que tem babá Márgio, como é carinhosamente chamado, tivemos
acesso à história, aos preceitos e às ritualidades do Candomblé.
A liderança de babá Márgio foi fundamental para a fundação do Ilê Axé Oyá L´adê
Inan e para o nosso entendimento sobre a importância do egbé como contribuição
sociocultural. Por meio de seus ensinamentos, tanto eu quanto minha mãe tivemos contato
com a história antropológica do Candomblé, uma abordagem mais poética sobre as divindades
e definições históricas precisas que nos orientam a compreender a relevância dos Orixás e dos
58
antepassados em nosso cotidiano. Tive acesso aos conteúdos antropológicos sobre Candomblé
antes mesmo de adentrar a academia.
Fui formando-me pela vivência com babá Márgio e seus posicionamentos acerca de
questões sobre sincretismo religioso, organização ritual, história dos nagôs, e a ação do
Candomblé na vida como um todo. Em poucas palavras, ele definiu para mim a religiosidade
do Candomblé:
Orixá, minha filha, é equilíbrio. Estar equilibrado é fazer girar o triângulo do nosso
existir no mundo, o espiritual, o emocional e o material. O Orixá é nossa origem, ter
identidade, saber de onde se vem faz o seu triângulo girar. (Depoimento oral, em
março de 2007, transcrição da pesquisadora)
Figura 10–Babá Márgio d´Ogun em cerimônia no Ilê Axé Oyá L´adê Inan – 2015 – Foto: Andréa Magnoni.
59
Desse modo, se babá Márgio me mostrou a presença dos Orixás e dos nossos
antepassados em nosso cotidiano e a história do Candomblé como um dos elementos base de
força e preservação da nossa memória ancestral, Mãe Rosa me trouxe a ética da nossa
religiosidade e o quanto se faz importante no fazer artístico do NATA estarmos sempre em
diálogo com os Orixás, buscando aliar religiosidade e arte. Ambos, no fundo, representam um
porto seguro de orientação da vida, do axé e do fazer artístico o qual o NATA se dispôs a
fazer.
Figura 11 – Babá Márgio d´Ogun recebendo o axé da Oyá de Mãe Rosa no Ilê Axé Oyá L´adê Inan – 2015 –
Foto: Andréa Magnoni.
60
O Bando, o CAN e a Comuns dentre outros grupos e coletivos cênicos, são
responsáveis por contribuírem com a valorização e divulgação da cultura negra, e o
desenvolvimento de experimentações estéticas nas últimas décadas que aliaram a matriz
estético-política africana ao teatro contemporâneo brasileiro a partir de uma perspectiva desde
dentro para fora. É um processo de afrografamento do corpo, da voz dos atores e da
encenação como um todo, que busca nessa afrografia cênica aliar os elementos contidos na
religiosidade, musicalidade, corporeidade e visualidade africana e afro- brasileira em suas
montagens.
38
O Bando de Teatro Olodum nasceu no dia 17 de outubro de 1990, em parceria com o Grupo Cultural
Olodum. Nascido em uma cidade na qual a raça negra ocupa cerca de 80% de sua população, o elenco baiano do
Bando tem como proposta uma linguagem cênica contemporânea, comprometida com um teatro engajado. Suas
peças mesclam humor e discussão racial, leveza e ironia, diversão e militância. Além da palavra, os atores
utilizam a dança e a música. O Bando tem seu teatro enriquecido pela experiência dos diretores Márcio Meirelles
(fundador do grupo, porém hoje não mais dirige o Bando) e Chica Carelli, do coreógrafo Zebrinha e do diretor
musical Jarbas Bittencourt, que deram base estética à linguagem do Grupo, formado atualmente por 25 artistas
negros. Com uma linguagem própria e contemporânea, o grupo já produziu cerca de 26 espetáculos de teatro,
além de atuações no cinema e na TV, o que lhe proporcionou expressão nacional e internacional. Mais
informações consultar o livro O teatro do Bando – Negro, baiano e popular, de autoria de Marcos Uzel (2003), e
acessar o blog: bandodeteatro.blogspot.com.
61
A repercussão que relata o jornalista Marcos Uzel (2003) é compatível com a
qualidade e a profundidade do espetáculo. É uma aula cênica de discussão de conceitos e pré-
conceitos importantes para o empoderamento do indivíduo seja ele negro ou não. O
espetáculo estreou no palco do Teatro Vila Velha em 1997 e é um dos maiores sucesso do
grupo. A força da teatralidade, o vigor, a poesia da dança afro e a pulsação da música negra
brasileira foram decisivas para que, a partir daquele momento, saísse modificada da plateia e
buscasse afrografar meu fazer cênico com mais consciência.
Nessa apreciação artística, observei pontos importantes que mais à frente serviram de
baliza para a construção do projeto poético do NATA; dentre esses, destaco dois:
a) A musicalidade negra brasileira – as composições e a direção musical de Jarbas
Bittencourt davam ao espetáculo beleza e força. A utilização de ritmos como
rap, rock pop, samba, pagode, blues aliados a toques do Candomblé
compunham uma música pulsante e auxiliava no ritmo do espetáculo. Além
disso, os variados ritmos utilizados na peça ajudavam na instalação das
atmosferas da cena e vi nisso um elemento importante para a construção de um
espetáculo que pudesse aliar teatro e ritual. Outro fator importante sobre a
música em Cabaré da Rrrrrraça é o fato de grande parte delas serem
executadas ao vivo: além dos músicos, alguns atores também tocavam,
realizando um diálogo entre a banda do espetáculo e as bases gravadas. Tudo
isso apontou um caminho que foi experimentado pelo NATA na montagem de
seus espetáculos, principalmente de Siré Obá.
39
Os atores do elenco de estreia foram: Agnaldo Buiú, Auristela Sá, Cássia Valle, Cristovão da Silva, Gerimias
Mendes, Jorge Washington, Lázaro Machado, Lázaro Ramos, Leno Sacramento, Luís Fernando Araújo, Merry
Batista, Nildes Vieira, Rejane Maia, Tânia Toko, Valdinéia Soriano. Em 2005 quando assisti já não faziam
mais parte do elenco os atores:Agnaldo Buiú, Cristovão da Silva, Lázaro Machado, Lázaro Ramos e Tânia
Toko, haviam entrado os atores: Érico Brás, Sérgio Laurentino, Telma Souza, Elane Nascimento e Jamile
Alves.
62
dos Orixás? Surgiu ali o que mais tarde seria um dos pontos de partida para a
preparação corporal do NATA.
O Bando de Teatro Olodum é um referencial que nos inspira até hoje; foi assistindo a
seus espetáculos, refletindo e debatendo sobre eles, que vimos na prática alguns dos princípios
que hoje norteiam o NATA. Mesmo a religiosidade africana e afro-brasileira não sendo o foco
principal dos espetáculos do Bando, ela se faz presente no figurino, na maquiagem, na
musicalidade e na dança. O Bando realiza um teatro político, militante e voltado para questões
relacionadas à negritude e às discussões sobre raça e racismo no Brasil, elementos
importantes na organização do nosso fazer teatral.
Figura 12 – Atores do Bando de Teatro Olodum no espetáculo Cabaré da Rrrrrraça – Teatro Vila Velha –
2008 – Foto: Divulgação.
40
A Cia. Teatral Abdias Nascimento (CAN) nasce na Escola de Teatro UFBA, em 2002. Formada
exclusivamente por estudantes negros, é dirigida desde a sua fundação pelo ator e diretor Ângelo Flávio Zualê.
Juntos, passam a discutir a constante ausência do negro em cena e nos papeis principais, o inexistente estudo da
dramaturgia escrita por negros, sua aplicação na grade obrigatória curricular da instituição, além de debater o
63
montagem estreou em Salvador, em 2006, no subsolo em ruínas da antiga Faculdade de
Medicina da UFBA no Pelourinho, centro histórico da capital baiana. O espetáculo,
construído a partir do texto originado do livro Funnyhouse of a Negro, de Adrienne Kennedy,
foi minha primeira experiência como assistente de direção em Salvador.
O espetáculo conta a história de Sara, uma jovem negra que repudia sua raça criando
espectros de pessoas brancas em sua cabeça esquizofrênica para embranquecer-se. Ela repudia
o pai negro e ama e idealiza a mãe branca, buscando intensamente traços brancos em seu
corpo e personalidade. A tragédia da protagonista foi contada em um espaço que antes havia
sido palco das experiências e escritas eugenistas realizadas contra o povo negro nas décadas
de 30 e 40 do século XX41. Já na porta de entrada do espetáculo, encontrávamos uma mulher
negra com imenso cabelo a fechar o acesso das escadarias. O público precisava atravessar
esse portal para entrar no espaço de representação – uma metáfora apropriada para
adentramos simbolicamente no interior da consciência dela.
Sobre o espetáculo, o diretor teatral e professor da Escola de Teatro, Luiz Marfuz
falou publicamente na cerimônia de formatura da turma de Licenciatura em Teatro da UFBA.
A cerimônia foi realizada no auditório da mesma ex-Faculdade de Medicina da UFBA no
Pelourinho, espaço onde estreou a montagem:
eurocentrismo que, até hoje, é cânone epistemológico nas universidades. O CAN, além das montagens sempre
bem-sucedidas e elogiadas pela crítica especializada e público em geral, vem realizando constantes atividades
nas quais se discutem ações de políticas afirmativas e democratização da cultura. (Informações cedidas pelo
diretor Ângelo Flávio em março de 2015 por meio do histórico do grupo e se encontram também disponíveis:
www.memorialdeartescenicas.com.br).
41
A Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia, situada no Centro Histórico do Pelourinho, cenário das
pesquisas eugenistas impetradas por Nina Rodrigues no século XIX.
64
pretexto para a cena, atualizando a discussão, ambientando-a para a nossa realidade baiana e
brasileira e intensificando a atmosfera expressionista buscada por ele em cada elemento da
encenação, desde a música à exploração do subsolo da Faculdade de Medicina, cenário da
peça.
A montagem de A Casa dos Espectros foi reveladora. Ainda caloura, no início do
curso de direção pude acompanhar todo o processo de construção de uma montagem
profissional desde a escolha do texto até o último dia de temporada, compreender as
dificuldades, desafios e também vitórias e superações que uma empreitada assim traz. Com
essa experiência, observei os percalços e os desafios que iria encontrar na formatura na
graduação e na carreira de encenadora.
A assistência de direção, posso afirmar, foi minha quarta escola. A primeira foi o
NATA; a segunda, o Teatro Vila Velha; a terceira, a graduação em Direção Teatral na Escola
de Teatro da UFBA e a quarta, sem sombra de dúvida, somam-se todas as assistências de
direção que fiz. A montagem dirigida por Ângelo Flávio me possibilitou os primeiros contatos
com a realidade do ofício do encenador e do artista da cena em geral, compreender as
dificuldades de apoio, patrocínio, a necessidade de projetar as ideias e principalmente a
―desglamourização‖ da arte teatral e sua peculiaridade artesanal e coletiva.
Além disso, percebi também a importância da assistência de direção, a capacidade de
delegar que o encenador precisa ter e o quanto bons assistentes de direção podem contribuir
para o bom caminhar da montagem ao realizar interlocuções com o encenador e ser ponte de
diálogo da concepção e das indicações do encenador com os demais criadores do espetáculo.
E o mais importante: era possível dialogar interculturalmente com o teatro universal e fincar
as raízes da ancestralidade e da negritude na cena, desconstruindo o texto original e fazendo
da encenação o epicentro dos discursos ético, estético e ideológico.
65
Figura 13–Convite do espetáculo A Casa dos espectros – 2006 – Foto: Divulgação. Acervo – CAN.
42
Tomando como referência o Teatro Experimental do Negro - TEN, a Companhia dos Comuns foi fundada no
Rio de Janeiro, no ano 2000 pelo ator baiano, radicado na capital carioca Hilton Cobra. Formada só por atores
negros, o grupo trata da inserção do negro na cultura brasileira, em textos de criação coletiva. Os seus três
primeiros espetáculos (A roda do mundo, Candaces – A reconstrução do fogo e Bakulo – Os bem lembrados)
foram encenados pelo diretor baiano Marcio Meirelles. Já a quarta montagem do grupo o espetáculo Silêncio foi
a estreia de Hilton Cobra como encenador. O grupo conta com mais de vinte artistas, dentre atores e demais
criadores do grupo. (Informações cedidas pelo diretor Hilton Cobra, em abril de 2015, por meio do histórico do
grupo).
66
―lembrado‖ pela crítica teatral Barbara Heliodora (2001), em O Globo como uma encenação
de ―alta qualidade artística‖:
O espetáculo trazia uma força cênica inebriante, com um jogo vigoroso entre
dramaturgia e encenação por meio de instrumentos cênicos potentes e de um discurso
convergente com meus ideais políticos, religiosos e culturais. Mas é a narrativa e o poder da
palavra que saltou à minha percepção. O espetáculo colocava em diálogo elementos do
dramático, com elementos épicos, e o choque dialético entre esses dois estilos davam ao
espetáculo uma dinâmica inusual.
Mas a narrativa à queima roupa para a plateia, expondo pontos de vista ideológicos
em alguns momentos e em outros enaltecendo e poetizando nossa ancestralidade foi o fator
que me despertou maior interesse e atenção. Algumas questões foram surgindo enquanto
assistia à peça, tais como: de que maneira colocar em cena as lendas dos Orixás? Como aliar a
narratividades dos itans e dos orikis, a possibilidade de diálogo entre personagens numa
montagem? O espetáculo não abordava essas questões, mas sua estrutura dramatúrgica
apontava possibilidades de respostas aos meus questionamentos.
Bakulo era um espetáculo de alta qualidade no que tange a encenação. O trabalho dos
atores e o vigor de sua dramaturgia sobressaía-se dos demais elementos. Para exemplificar
essa questão, apresento a seguir fragmentos da cena de abertura do espetáculo.
PRÓLOGO.
COBRA:
(Entra e fala ao microfone.)
Queremos fazer uma reflexão independente sobre o nosso tempo
ter um pensamento sobre os seus fundamentos materiais e políticos
temos vontade de explicar os problemas e dores do mundo atual
e apesar das dificuldades da era presente queremos
também
43
HELIODORA, Barbara. Contestação no universo do negro, O Globo, Rio de Janeiro, 30 nov. 2001.
67
ter razões objetivas para continuarmos vivendo e lutando...
ABERTURA 01.
(Cobra olha a plateia. Ouve-se o mar. Cobra começa a chorar e, aos gritos,
vai para trás,
para os tambores. Começa a tocar o Tema dos Bakulo.
NEGRET:
Em pé, em cima do banco.
a noite cobriu meus olhos
a fome e o frio
foi-se o dia da minha terra
que lugar é esse pra onde me levam
longe da minha terra e das coisas que conheço
nunca vi tanta água
parece que não tem fim
ninguém me toque antes que eu toque de novo a terra
(Programa do espetáculo, 2005)
Nos fragmentos acima apresentados, as duas formas narrativas que compõem o texto
de Bakulo deram pistas para a criação da dramaturgia dos espetáculos Siré Obá e Ogun. A
união entre épico e lírico nos instigava, pois desejávamos pôr em cena espetáculos que
tivessem a narratividade dos itans e a beleza dos orikis sem perder a perspectiva ética e
ideológica. Acreditávamos que esse seria um dos princípios e procedimentos a nortear a
construção do nosso projeto poético.
O contato com a Companhia dos Comuns contribuiu para que pudesse ampliar
minhas referências intelectuais sobre artistas e intelectuais negros, seja pela força da cena e da
dramaturgia de seus espetáculos e todas as referências intelectuais negras utilizadas para sua
construção, seja pelo ativismo e militância de seu diretor Hilton Cobra que em consonância
com o Bando de Teatro Olodum idealizou e criou o Fórum Nacional de Performance Negra.
Esse evento, como citado anteriormente, reúne artistas negros de dança e teatro e intelectuais
das duas áreas de todo o país para discutir políticas públicas para a arte e cultura negra e
também questões relacionadas ao fazer cênico negro. Pude participar de todas as edições44.
44
Representei o NATA nas quatro edições do evento. Lá, além das mesas redondas e das plenárias, tive contato
com o pensamento e a obra intelectual de Abdias Nascimento, Cuti, Evani Tavares, Conceição Evaristo, Inaicyra
Falcão, Cristiane Sobral, Makota Valdina Pinto, Ubiratan de Castro, Clyde Morgan, Julio Moracen, Paulo Lins,
Carlos Moore, Leda Maria Martins, pensadores e fazedores das artes cênicas negras brasileiras.
68
Figura 14–Bakulo – Os bem lembrados, espetáculo da Cia dos Comuns – 2006 – Teatro Municipal RJ - Foto:
André Spinolla.
O encontro com esses três grupos de teatro45 foi uma imersão no universo do teatro
de grupo e do teatro negro brasileiro. A partir das montagens e depois das conversas,
encontros, eventos, publicações, fóruns em que representantes desses grupos estavam
presentes, pude ir conhecendo a história do teatro negro no Brasil desde o TEN – Teatro
Experimental do Negro, fundado e dirigido pelo já ancestre Abdias Nascimento até os dias
atuais, e encontrar diversos grupos de teatro que possuem como eixo norteador a cultura negra
para as suas pesquisas e encenações.
Percebia assim que o projeto poético do NATA e o meu, embora não tivesse
plenamente desenhado, estava em um processo de construção agregativa no qual podia
identificar traços e elementos de minha formação religiosa e artística, ao qual se somavam os
aprendizados com os mestres do Axé e os mestres de coletivos e do Teatro.
45
E com os demais artistas ligados a eles como Hilton Cobra, Zebrinha, Jarbas Bittencourt, Ângelo Flávio, Chica
Carelli, Márcio Meirelles, Gustavo Mello, Débora Almeida, Rodrigo dos Santos, Valéria Monã, Evani Tavares,
Valdinéia Soriano, Auristela Sá, Telma Souza, Érico Brás, Fábio Santana e Jorge Washington.
69
O ingresso no curso de Direção Teatral, na Escola de Teatro da UFBA em 2006 foi
um momento de descobertas conceituais e técnicas sobre o fazer teatral. Aliei os anos de
prática dirigindo o NATA aos conhecimentos obtidos em contato com o Bando de Teatro
Olodum, a Companhia dos Comuns e o CAN para auxiliarem no meu processo durante a
graduação. Tive contato com professores que aliavam a vida acadêmica a um fazer artístico
no cenário teatral local e que levavam para a sala de aula conteúdos e procedimentos cênicos
pelos quais passei a me interessar, tais como a teoria teatral de encenadores como Jerzy
Grotowisk e seu teatro laboratório, Bertolt Brecht e seu teatro épico e politizado, Antonin
Artaud e seu teatro ritualizado e visceral e Eugênio Barba e sua antropologia teatral.
Dentre esses professores destaco três que foram importantes e significativos na
minha busca por um fazer cênico que unisse Candomblé e Teatro no cerne das encenações.
De forma que Marcos Barbosa e seu estímulo ao surgimento de novas dramaturgias, Luiz
Marfuz e o processo de formação do diretor e Roberto Lúcio e os conceitos sobre o encenador
e sua postura ética são elementos que contribuíram significativamente para a minha formação
como encenadora.
Além de estudar a teoria de grandes encenadores do teatro, tive com os professores
citados acima, encontros que, cada um a seu modo, contribuiu com o meu processo de
formação. Esses mestres acompanharam o meu desenvolvimento artístico dentro e fora da
graduação, assistiram e discutiram comigo o processo de montagem dos espetáculos Siré Obá
– A festa do Rei, Ogun – Deus e Homem e Exu – A Boca do Universo. O primeiro espetáculo
foi o inaugurador do projeto político-poético do NATA; o segundo, a montagem de
finalização do curso de Direção Teatral na Escola de Teatro, cujo resultado trouxe inúmeras
reflexões para o amadurecimento do projeto poético do grupo; o terceiro, a montagem onde
mais amadurecemos o encontro entre Candomblé e Teatro e que será o foco de estudo nesta
dissertação.
Devido à relevância da participação de cada um deles46 em minha formação e na
construção do projeto poético do grupo, apresento a seguir as contribuições dos mesmos neste
processo.
46
A ausência de nomes femininos nessa listagem não quer dizer que não tenha existido em minha formação a
participação de mulheres. O fato é que esses professores com suas contribuições me auxiliaram no
desenvolvimento do teatro que defendo. Porém desde já cito grandes personalidades femininas que também
contribuíram enormemente na minha formação teatral como as professoras da Escola de Teatro Cleise
Mendes, Hebe Alves, Meran Vargens, Iami Rebouças, Eliene Benício, Antonia Pereira e Sonia Rangel, minha
orientadora nesta pesquisa. As diretoras teatrais: Chica Carelli, Fernanda Paquelet, Zeca de Abreu, Elisa
Mendes, Cristiane Sobral e as atrizes: Evani Tavares, Telma Souza, Auristela Sá e Valdinéa Soriano.
70
2.3.1 – Luiz Marfuz – Um formador de diretores
Luiz Marfuz47 foi e sempre será um grande mestre do teatro e da vida para mim. Suas
pesquisas cênicas sobre Samuel Beckett e Bertolt Brecht48 foram portas de entrada para a
nossa aproximação. Foi meu professor no primeiro semestre do curso de Direção Teatral e
meu orientador na formatura. Já em suas aulas da disciplina Direção I e Estética Teatral,
percebi que seu pensamento cênico me interessava e muito. Ele estimulava o trabalho em
equipe e a formação de grupos artísticos dentro da Escola. Sua visão de coletividade e seu
rigor na busca por uma excelência de qualidade de produto artístico nos era cobrada dos
trabalhos mais simples aos mais complexos.
Ele propunha continuamente debates polêmicos sobre artes, mídia, cultura, política,
sistema econômico etc. Obrigando-nos, assim, a estarmos atentos ao mundo que nos
circundava e como essas questões refletiriam em nossas escolhas cênicas. Porém foi a sua
definição de encenador que me apontou caminhos sobre o fazer teatral e as especificidades
desta função.
47
Luiz César Alves Marfuz – nascido na cidade de Coaraci – BA, é graduado em Administração de Empresas
(1976) e em Comunicação com Habilitação em Jornalismo, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas
(1996) pela UFBA e doutor em Artes Cênicas (2007). É professor-adjunto da Escola de Teatro (UFBA), diretor
teatral, arte-educador, dramaturgo e pesquisador sobre encenação contemporânea e estratégias de encenação no
teatro de Samuel Beckett. É líder-fundador e coordenador do Grupo de Pesquisa PÉ NA CENA - Poéticas de
Encenação e Atuação, vinculado ao CNPq. Na área de Artes, destacam-se experiências em direção teatral, teatro
contemporâneo, teatro na educação, direção de espetáculos musicais, processos de criação artística, matrizes
estéticas brasileiras na cena teatral contemporânea e o teatro de Beckett. Dirigiu espetáculos a partir de textos
próprios A Última Sessão de Teatro, Bodas de Prata, No tempo do R-Quero, Meu nome é Mentira e Cuida Bem
de Mim – coautor. Dirigiu espetáculos musicais com artistas e grupos nacionais, entre eles Maria Bethânia,
Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Nana Caymmi, Elza Soares, MV Bill, Zeca Baleiro, Chico César, Jards Macalé,
Geraldo Azevedo, Arnaldo Antunes, Daniela Mercury, Susana Baça (Peru), Maria João (Portugal), Paulo Flores
(Angola), Orquestra Sinfônica da Bahia, Grupos Olodum e Ilê Ayê. (Informações cedidas pelo próprio Luiz
Marfuz, por meio de envio de currículo em agosto de 2015).
48
Ainda na Escola de Teatro, fui sua bolsista de iniciação científica – PIBIC – dentro de dois projetos
coordenados por ele: o projeto Ator-contador e ator-mostrador: Teoria e prática na montagem Brechtiana e o
projeto Estudo das ações físicas na construção da cena. Nesses projetos, além de trabalhar questões acadêmicas
como leituras, escrituras de resenhas, ensaios e artigos, pude auxiliar na preparação do elenco do espetáculo
Quanto custa um homem?, resultado prático do projeto Ator-contador e ator mostrador: Teoria e prática na
montagem Brechtiana e do espetáculo Eles só usam black-tie em que os alunos do primeiro semestre de direção
teatral dirigiam os alunos do terceiro semestre de licenciatura em cenas retiradas do texto Eles não usam black-
tie, de Gianfrancesco Guarnieri.
71
Essa definição mostrou-me os desafios de encenar. Ser uma convocadora de
imaginários e de vontades trouxe a percepção de que havia abraçado a missão de ser gestora
de pessoas, ideias e criações num processo de montagem, e essa compreensão é significativa
para fortalecer os alicerces de uma carreira em construção. Aquele que convoca é o primeiro a
abraçar o desafio. Sonha e procura dividir o sonho até torná-lo de todos.
Ser artista exige generosidade e abnegação, por isso o encenador-convocador de
vontades - incitador de sonhos deve ter esses atributos elevados à máxima potência. São essas
até hoje as impressões que esse pensamento/ postura de Marfuz me remete. Sua condução
como encenador e professor passa por essa atitude. Ele nos convocava a desejar saber mais,
experimentar os diversos caminhos do ofício e perceber que era na troca entre nós alunos,
entre nós e ele, entre nós e nossos futuros atores e equipe de trabalho e entre nós e o público
que está o cerne da questão, a troca.
As aulas de direção com Marfuz iam desde a análise do fazer teatral dos grandes
nomes do teatro mundial à análise de plano e cronograma de ensaio, a utilização do palco e
seus centros de força, concepção cênica, preparação de ator, o processo de encenação, análise
do contexto sócio-político-cultural mundial, demais referências de outras linguagens artísticas
e o que ele considerava o mais importante, nosso olhar e concepção sobre quem éramos, qual
nossa origem social e cultural e o que pretendíamos ser. Todas essas informações formavam
um conjunto de conteúdos que, segundo ele, eram fundamentais para o processo de ampliação
da visão de mundo do encenador. Eis o ponto nevrálgico do pensamento de Marfuz sobre o
teatro e a formação do encenador:
A visão de mundo do encenador define muito a seu respeito e sobre a sua poética. E
foi entendendo qual era a minha visão de mundo, de que maneira me relacionava com a minha
história pessoal, cultural e artística que fui mapeando o caminho que culminou no fazer cênico
que faço e me tornando cada vez mais consciente dele. Luiz Marfuz e suas problematizações
72
acerca de quem é o encenador e de como é necessário uma ampliação constante de sua visão
de mundo me apresentou questões que orientaram a minha formação como pessoa e artista.
Questões essas que me guiaram às perguntas norteadoras desta pesquisa.
Possuindo uma forte ligação com a educação, o teatro e a política; a arte, segundo
ele, ―pressupõe também uma atitude política diante da vida, seja ela qual for‖ (MARFUZ,
2002). E é assim permeado por esses três eixos que ele correlaciona esses elementos em seu
fazer educacional e cênico, embebendo o seu processo de encenação, e de educação desde a
escolha do texto ou do tema com que vai trabalhar até o processo de construção do espetáculo
e da relação do trabalho com os atores e as discussões com os alunos em sala de aula. É um
diretor inquieto e atento ao seu tempo. Seus espetáculos possuem forma e conteúdo variados;
demostra, assim, uma ampla capacidade de comunicação e de sensibilidade artística.
O que o torna um importante formador de diretores, além do exposto acima, é o fato
de que Marfuz ensina através do exemplo, alia teoria e prática dentro e fora do espaço
acadêmico. Faz-nos compreender que o encenador é também um mediador, um provocador,
um problematizador e um formador. Tanto na sala de ensaio quanto na sala de aula, consegue
aliar essas características, o que enriquece o seu processo de montagem e também quem o
acompanha, seja o ator, os demais artistas colaboradores, ou os assistentes de direção.
Sua forma de pensar e de ver o fazer teatral coloca os demais participantes de suas
montagens sempre em estado de alerta ou, como ele mesmo diz, com o ―radar ligado‖. Pois
são variadas as referências que utiliza para fundamentar sua concepção cênica e a montagem
do espetáculo, buscando nunca impor uma única verdade, mas problematizando e
argumentando suas escolhas. Para mim, que trabalhei em dezesseis espetáculos que dirigiu,
pude aprender e apreender no calor de sua criação, conteúdos importantes que delinearam a
minha busca por um fazer cênico que, além de manter sempre em ampliação minha visão de
mundo, pudesse problematizar questionar e convocar o imaginário e as vontades daqueles que
criassem junto comigo.
Aprendi muito do que sei sobre encenação, concepção cênica, criação de atmosferas,
ritualidade e diálogo com os demais criadores de uma montagem vendo e acompanhando
Marfuz encenar. A sala de aula foi sim um palco importante para apreender e refletir sobre o
encenador, a encenação e o teatro na Bahia, no Brasil e no mundo. Foi em sua sala de ensaio,
entretanto, que pude apurar mais esses conteúdos e vê-los corporificados diante dos meus
olhos, desafiando-me a resolver problemas e estar atenta às necessidades dele e dos demais
artistas durante a montagem dos espetáculos que presenciei.
73
Como assistente de direção de Luiz Marfuz, além de desenvolver minhas habilidades
nas áreas de direção de ator, operação de som e luz e de protocolista de processo, trabalhei em
equipe e desenvolvi meu senso de liderança. Os assistentes de direção de Marfuz estabelecem
com ele uma interlocução, são pontes entre as necessidades do processo, as indicações de
direção aos demais criadores do espetáculo, defendendo perante esses a concepção cênica
proposta pelo encenador. Aprendi a organizar cronogramas, a detectar as dificuldades dos
atores com o texto, com a coreografia ou com a cena de modo geral, a criar horários e espaços
alternativos para trabalhar essas dificuldades e liberar a direção para resolver outras questões.
Acompanhei Marfuz em alguns de seus processos criativos, entrei em contato com
uma diversidade de artistas de diversas áreas do fazer cênico, vi e participei da construção da
montagem de seu projeto teatral no TCA.NÚCLEO49, quando da montagem do Policarpo
Quaresma, antes de me formar na graduação e adentrar ao mercado teatral. Essa experiência
me possibilitou perceber caminhos para vencer as dificuldades com apoios e patrocínios, a
carência de profissionais nas áreas de cenário, luz e figurino, a dificuldade de divulgação e
apoios de mídia, o que muitas vezes pode ocasionar plateias vazias. Mas também o valor do
outro e sua criatividade, o calor de um aplauso e do reconhecimento do espetáculo.
Isso me preparou para anos mais tarde assumir a direção de um projeto de ocupação
artística junto com o NATA no mesmo projeto do TCA. NÚCLEO. Contudo, o contato com
seu modo de pensar, de dirigir e de ensinar, provocou-me a buscar o meu, a desenvolver o que
compreendo ser o projeto poético que vem norteando minha prática e aliar meus
posicionamentos éticos e poéticos. Perguntado sobre o que diria a um artista em formação
Marfuz, respondeu o seguinte:
É quase uma condenação fazer teatro. Uma bela condenação. E você tem de cumprir
esta pena com muito prazer. O sofrimento, que é inerente à atividade do teatro, se
consegue transformar em prazer. Você está falando de uma dor intensa, mas,
também, da dor e alegria de criar. O teatro triunfa sobre o horror e faz a beleza
sobrevoar as ruínas. Você tem de conviver com as ruínas, mas alçar voos sobre o
abismo que se coloca para o artista (MARFUZ, 2009)50.
49
Uma das principais ferramentas de incentivo ao teatro na Bahia, o TCA.NÚCLEO realiza edições anuais
desde 1995 e busca conectar o Teatro Castro Alves com o cenário das artes cênicas em todas as suas instâncias e
dimensões. Até o ano de 2006, em suas primeiras 12 edições, o projeto era decidido através de um convite que
partia da Direção do TCA a um diretor teatral que apresentava sua proposta de encenação. Desde que se tornou
uma realização feita através de editais e seleções públicas, em 2007, possibilitou a montagem de sete espetáculos
teatrais, que, ao todo, alcançaram um público de mais de 20 mil pessoas. Maiores informações:
www.tca.ba.gov.br.
50
Jornal do Teatro, Ter, 03 de Novembro de 2009.
74
Para além de inspiração, referência e formador de diretores, é um pensador da encenação.
Além da criação do grupo de pesquisa PÉ NA CENA, que consiste num grupo de pesquisa
sobre as Poéticas de Encenação e Atuação, vinculado ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), sua tese de doutorado51 é uma pista
nesse sentido quando pensa um trabalho acadêmico do ponto de vista do encenador. Mesmo o
objeto central sendo a encenação no teatro de Beckett, Marfuz traz informações preciosas para
uma área ainda carente de escritos e publicações se compararmos com o manancial de escritos
sobre o ator e seu processo de formação e criação.
Como afirmei anteriormente, é um grande mestre, seu pensamento e prática
orientam, inspiram e estimulam seus alunos, assistentes e demais artistas que com ele
trabalharam ou ainda desejam trabalhar. Assim como Adelice Souza, Ney Wendell, Adriana
Amorim, Thiago Gomes, Susan Kalik, Rodrigo Frota, Diego Pinheiro e Lucas Modesto, posso
afirmar que faço parte do time de assistentes de Marfuz, que ampliaram seus conhecimentos
artísticos, trabalharam suas habilidades e chegaram ao mercado teatral como profissionais
bem orientados.
51
A tese de doutorado de Marfuz mergulha em algumas contribuições que a cena beckettiana trouxe para
compreendermos a teatralidade contemporânea. Marfuz coloca no centro de suas investigações as relações entre
texto e cena. Assim, tensiona os procedimentos formais oriundos da dramaturgia e suas possibilidades de
reconfiguração no ato teatral. A tese gerou a publicação do livro Beckett e a implosão da cena: poética teatral e
estratégias de encenação, pela Ed. Perspectiva, São Paulo, 2014.
75
Figura 15–Luiz Marfuz – 2013 – Foto: Andréa Magnoni.
52
Marcos Barbosa de Albuquerque – Nascido em Fortaleza, Ceará formou-se em dramaturgia pelo Instituto
Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual do Ceará, em 2000. Entre as peças desenvolvidas por Barbosa
durante sua formação no Colégio de Dramaturgia estão Os Sinos (Prêmio Oficina do Autor, 1997) e Braseiro
(Prêmio Lourdes Ramalho, 2000). De 2006 a 2013 foi professor de Dramaturgia e Teoria do Teatro da Escola de
Teatro da UFBA - instituição na qual obteve o título de mestre em artes cênicas, no ano de 2003, pelo Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC – UFBA), com a elaboração de Curral Grande, uma peça-
dissertação abordando o isolamento de flagelados em campos de concentração, no Ceará, durante a seca de 1932;
sob a orientação de Cleise Furtado Mendes. Também pelo PPGAC-UFBA (e ainda sob essa orientação), Barbosa
concluiu seu doutorado em 2008, com um estudo acerca do verso dramático de William Shakespeare, que inclui
uma tradução original, em verso, de Ricardo III. Integra ainda a formação em dramaturgia de Marcos Barbosa
sua passagem, em 2002, pela residência internacional do Royal Court Theatre, de Londres, como bolsista do
British Council de São Paulo. Nesse mesmo teatro, Barbosa teve encenados, em 2004, dois de seus textos: Quase
Nada e À Mesa, com direção de Roxana Silbert e tradução de Mark O‘Thomas. (Informações cedidas pelo
próprio Marcos Barbosa, por meio de envio de currículo artístico em maio de 2015).
76
Mesmo sendo muito jovem, possuía uma gama de conhecimentos e uma sapiência
digna daqueles que viveram muito – esse fato fazia com que sua relação com a dramaturgia
fosse além da sua própria obra dramatúrgica. Estar em suas aulas era fazer uma viagem pelo
mundo do texto, das personagens, das histórias e das palavras que ambicionavam encarnar-se
na cena. Marcos Barbosa é um dramaturgo comprometido com as questões essenciais do seu
tempo e, mais do que isso, com a contribuição temática enraizada em sua história de
nordestino. Suas peças dão voz aos esquecidos sociais, àqueles que o sistema quer tornar
invisíveis ao mundo.
Assim como eu, defende uma causa e sua arte é a sua maior ferramenta para
expressar e defender seus posicionamentos culturais, políticos e éticos. Suas colocações
diretas e objetivas auxiliavam o processo de aprendizagem e nos estimulava a pesquisa.
Compreender a história da dramaturgia e da encenação é fundamental para uma formação
mais consistente, dizia Marcos Barbosa durante as aulas. Procurava nos fazer entender que
mesmo com todas as transformações que o texto teatral havia passado, ele ainda desempenha
um papel de relevância no fazer teatral. Para exemplificar essas afirmações, apresento uma
reflexão de Marcos Barbosa, sobre a importância da dramaturgia na contemporaneidade:
77
gostaria de desenvolver e Marcos Barbosa através de pequenas provocações nos estimulava a
escrever e a compreender os elementos constitutivos da dramaturgia desde a escolha do tema,
da forma e do conteúdo abordado na escritura da peça. Foi neste curso que iniciei os primeiros
―rabiscos‖ do que viria ser o texto do espetáculo Ogun – Deus e Homem que anos mais tarde
seria finalizado em parceria com o ator e dramaturgo Fernando Santana.
Participar desse curso foi importante, pois eu buscava já há algum tempo ampliar
meus conhecimentos dramatúrgicos e amadurecer a escrita. O contato com Barbosa foi
auxiliando-me nos questionamentos a respeito de como construir uma escrita condizente com
os anseios artísticos do NATA, o desejo de afrografar a escrita dramatúrgica, a fim de colocar
em cena a história e as contribuições culturais dos nossos antepassados africanos, desde o
espetáculo Senzalas – A história, o espetáculo, primeira tentativa neste sentido, buscávamos
aprimorar forma e discurso.
Apesar de já ter escrito peças para o NATA antes da graduação, a novidade daquele
momento eram os pensamentos e conceituações que Barbosa propunha. Suas reflexões e
ponderações sobre a dramaturgia problematizavam questões sobre forma e conteúdo; discurso
e ideologia; posicionamento artístico; político e filosófico. Como explicita a seguir:
A definição exposta acima foi um ponto norteador para o meu pensamento artístico
durante a graduação. Ela apontava para onde desejava rumar, no sentido da construção de
uma dramaturgia que representasse a nós negros, poética e politicamente e que permanecesse,
expondo o nosso modo de pensar, tocando-nos, provocando e contaminando com poesia e que
pudesse devolver coisas ao mundo, como tão belamente afirma Barbosa. Essa devolução para
nós do NATA necessitava ser de empoderamento e de fortalecimento de nossos referenciais
culturais, políticos e artísticos.
Além de suas contribuições conceituais e técnicas sobre dramaturgia, Marcos
Barbosa foi muito importante no processo de entendimento e utilização dos conceitos forma-
conteúdo na construção de um texto teatral. Essa é a sua maior contribuição em minha
formação, pois teceu críticas importantes à dramaturgia do espetáculo Ogun – Deus e Homem,
53
Publicado em: A[L]BERTO – Revista da SP Escola de Teatro, 2012, p. 13.
78
quando compôs a minha banca de formatura no curso de Direção Teatral. Essas críticas
pontuaram um momento de significativa transição no meu entendimento como dramaturga e
encenadora. Orientaram escolhas formais que culminaram no aprimoramento do texto do
espetáculo Ogun e também nortearam escolhas na construção do texto do espetáculo Exu – A
Boca do Universo.
Embora Barbosa tenha feito opção por um estilo do gênero dramático, ele tem uma
visão ampla e aberta para perceber a pluralidade da dramaturgia. Foi ele quem pontuou que,
com a criação do texto do espetáculo Siré Obá, o NATA havia encontrado a forma que
melhor representava nossa percepção de como comunicar em cena. Para melhor entendimento
sobre esse assunto faz-se necessário uma breve rememoração de fatos. No ano de 2009 o
NATA estreou Siré Obá – A festa do Rei, no qual assino em coautoria com Thiago Romero
essa escrita. Nossa inspiração foram os itans e orikis sobre os Orixás e, no afã de fazer um
espetáculo celebrativo que remontaria na dramaturgia e na encenação a sequência de
saudações às divindades, nas cerimônias públicas das Comunidades de Axé da Bahia, o texto
acabou ganhando um caráter lírico-narrativo.
Embora o próprio Marcos Barbosa tenha ressalvas sobre a dramaturgia de Siré, ela
inaugurava no grupo um modo, um jeito de pensar e escrever dramaturgicamente mais
plausível com os nossos anseios de afrografar essa escrita. No ano seguinte, em parceria com
Fernando Santana, escrevi o texto do espetáculo Ogun – Deus e Homem, e nessa construção
buscamos aproximar ao máximo a divindade Ogun dos espectadores e para isso
acreditávamos que elementos lírico-narrativos aliados a elementos dramáticos pudessem dar
conta da empreitada.
Mas o que houve na verdade foi um choque de linguagem. Ao utilizar de modo
indiscriminado os elementos do dramático, criamos um texto que conflitava entre a liricidade
narrativa da poesia africana e afro-brasileira e a forma ocidental de criação dramática. O
problema é que nesse formato era como se tentássemos colocar o espetáculo numa forma que
não cabia. Essa escolha não condizia com o que desejávamos fazer ao criar uma peça sobre o
Orixá Ogun. O ponto central dessa discussão era que não percebíamos que fazíamos isso, era
como um retrocesso artístico e também político, pois tentávamos falar da cultura africana
pelos olhos da cultura ocidental.
No momento em que a banca de formatura reuniu-se para avaliar o espetáculo, esse
foi o foco da análise de Marcos Barbosa. Isso não quer dizer que não haja uma maneira de
união desses elementos num texto teatral, muito menos que essa junção seja desaconselhada e
79
proibida, porém ela precisa ser consciente, uma escolha. No nosso caso, não foi e por isso não
conseguimos articular os elementos de modo a concatenarem e trabalharem a favor da
construção do texto. Considero esse episódio como um momento de transição, pois mesmo
buscando afrografar meu fazer teatral, construindo os processos do NATA a partir do contato
íntimo com o Candomblé e a cultura tradicional africana, eu ainda raciocinava
ocidentalmente. Não há nessa afirmativa nenhum juízo de valor, mas na construção de um
projeto poético pautado na formação e criação artística nesses moldes, refletir sobre o que o
descaracteriza é importante.
Em sua análise de Ogun – Deus e Homem, Marcos Barbosa provocou-me algo novo
em direção a uma busca estilística narrativa. Esse chamado sobre essa dramaturgia foi um
ensinamento, um apontar de possibilidades para uma dramaturgia que se pretende construir no
fazer da cena de modo que o lírico e o narrativo se prestam muito a essa construção. Além do
que o estilo lírico-narrativo que o NATA apresentava na dramaturgia de Siré Obá e, de modo
fragmentado, expunha no texto do espetáculo Ogun, tem mais a ver com as narrativas orais, a
oralidade africana associada à expressão do eu lírico de um povo que foi arrancado à força de
sua terra, de seu país, de seus ancestrais. Esses são elementos fundamentais no projeto poético
do NATA.
Desse modo, Barbosa destacou dois pontos54 que explicam e sintetizam as
deficiências dramatúrgicas da peça. E que foram significativas para o aprimoramento da
dramaturgia do NATA, assunto que abordarei mais adiante. Foram elas:
1) Da humanização em excesso das divindades
Na busca por um diálogo de proximidade com os espectadores, a fim de
mostrar que as divindades do Candomblé estavam presentes no século XXI, o
binômio divindade-humanidade estava em desequilíbrio. Os Orixás possuem
características humanas, mas são divindades. A humanização em excesso
fragilizou as personagens. Um exemplo disso foi o triângulo amoroso
composto por Ogun, Oyá e Xangô. A utilização de diálogos e de cenas de
conflito, sem a utilização de metáforas que revelassem a divinitude dessas
personagens, fez com que nós vilanizássemos (sem querer) Oyá e Xangô e
vitimizássemos Ogun.
54
Esses pontos foram anotados no dia da banca de avaliação da montagem de formatura em novembro de 2010.
80
A organização das cenas proposta pelo texto tentou unir dois elementos: o
narrativo e o dramático, uma aposta legítima já desenvolvida com êxito por
outros dramaturgos, a exemplo de Brecht. Mas o que ocorreu foi que o narrar e
o mostrar na mesma cena acabaram causando um desequilíbrio, um choque
entre o ato de narrar, elemento do épico, e o ato de mostrar elemento do
dramático, o que, no presente caso, não ajudou muito para contar a história do
Orixá Ogun; pelo contrário, causou certa confusão no entendimento dos
espectadores.
O espetáculo Ogun – Deus e Homem teve seus méritos, reflexão que farei no capítulo
três desta dissertação, mas as considerações de Marcos Barbosa problematizaram e ainda
problematizam a construção da poética que o NATA vem buscando nesses dezessete anos de
trabalhos ininterruptos. O seu olhar sobre o texto reiterou o questionamento que abriu a
discussão abordada neste item: Como afrografar a escrita dramatúrgica, a fim de colocar em
cena a história e as contribuições culturais dos nossos antepassados africanos? Estou em busca
dessa resposta, mas perceber o que não consiste em um afrografamento me pareceu um bom
caminho para perseguir.
81
Roberto Lúcio55 foi meu professor no curso de direção teatral no quinto e sexto
semestres. Sua passagem em meu caminho foi rápida, porém intensa. Ele contribuiu em
minha formação de forma contundente sobre o papel do encenador e sua responsabilidade de
artista que, por natureza, lidera equipes. Em suas aulas, enfatizava essa questão mesmo
quando nos apresentava a história e a estética de encenadores como Brecht, Beckett,
Stanislavski, Peter Brook, Bob Wilson dentre outros.
Em suas exposições sobre a história do teatro, ficávamos estimulados com os
recortes que ele fazia para abordar personalidades e fatos históricos uma vez que essa
abordagem ia além do fazer teatral, aliando-a a posturas filosóficas, éticas e políticas das
personalidades históricas. Ele insistia que, mesmo tendo discurso, ética e consciência crítica e
política, o artista precisava antes de tudo ser artista, dedicar-se ao seu ofício, perceber a
grandiosidade da arte, do apuro, da qualidade, do cuidado com todos os elementos que
envolvem a construção de uma encenação. Assim ele se expressou em um ensaio aberto do
espetáculo Ogum – Deus e Homem:
O encenador pode ser visto também como um grande xamã, o oficiante de uma
grande cerimônia. Aquele que procura ativar e canalizar junto com a sua
comunidade as energias e as poesias de todos. Sua arte consiste em diluir-se diante
da reunião das artes e dos artistas que compõem a construção de um espetáculo. Não
é o elemento mais importante numa encenação, mas devemos admitir é um elemento
importante tamanha é a sua responsabilidade em fazer aparecer todos os artistas que
junto a ele construíram o espetáculo. (ARAÚJO, em depoimento após ensaio aberto
do espetáculo Ogum – Deus e Homem, 2010)
Em suas aulas, Roberto falava em ―fé‖; definia ―fé‖ como algo além das noções
ligadas à religião, falava de um artista que acreditava que tinha ―fé‖. Suas palavras me
remetiam diretamente ao conceito de ―fé cênica‖ de Stanislavski (1982). Ele olhava em
55
Roberto Lúcio Cavalcante de Araújo – Nascido em Arco Verde – Pernambuco, é bacharel em Direção
Teatral pela UFBA (1998) dirige espetáculos teatrais desde 1987. Foi diretor-artístico e administrador da
Companhia Teatro Nu, entre 1994 e 1999, em Salvador e também sócio-administrador e responsável pela direção
artística da Teodora Lins e Silva Companhia de Teatro, em Recife, de 2003 a 2006, produzindo espetáculos e
promovendo cursos. É mestre em Teatro pelo PPGAC - UFBA (2010), com a dissertação ―O Triângulo de Ceres:
Metodologias Fundamentais para Formação de Atores em Salvador‖. Participou de alguns espetáculos como
ator: Pipoca Moderna (1982), O Despertar da Primavera e Bodas de Sangue (1986), O Balcão (1987), A Flor e O
Fruto (1988), A Falecida (1994), Cabaré Brasil (1995), Lição de Botânica (2006). Licenciado como arte-
educador em teatro pela UFBA desde 1995, ministra cursos e oficinas para crianças, jovens e adultos em
diversos centros e espaços culturais, instituições e também em universidades. Desde junho de 2013 é professor
na área de Pedagogia do Teatro, no Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística do Centro de Artes e
Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. (Informações cedidas pelo próprio Roberto Lúcio, por
meio de envio de currículo artístico em maio de 2015.)
82
nossos olhos e falava com fulgor sobre a importância de ter uma fé que ―comovesse‖, ―co-
movesse‖, ou seja, ―mover-se com‖.
Outra grande definição importante em sua passagem em meu caminho foi a definição
da palavra ―mágoa‖. Nunca esquecerei aquela aula ―chuvosa‖ da turma insatisfeita e cheia de
ressentimentos por variados motivos e Roberto com sua voz aveludada e firme nos
explicando, desvendando essa palavra/sentimento:
83
Figura 17 – Roberto Lúcio – 2000 – Foto: Arquivo pessoal
Já diziam os mais antigos que Exu ficou dezesseis anos calado vendo Oxalá fazer o
homem, aprendendo ali através da observação da prática e da conduta ética, como deveria se
portar e quais instrumentos utilizar no fazer. Assim sou eu, no caminho, aprendendo,
observando, inspirando-me e reverenciando todos aqueles que vieram antes de mim e abriram
as portas para que pudesse hoje fazer em cena aquilo em que acredito e desejo.
84
3 ENTRE FORMAÇÃO E CRIAÇÃO: A BUSCA DE UM PROJETO POÉTICO
85
Figura 18 – Antonio Marcelo, Thiago Romero e Fernando Santana – Exu – A Boca do Universo – Centro de Cultura de Alagoinhas – 2015 –
Foto: Andréa Magnoni.
Quando não soubermos para onde ir,
devemos nos lembrar de onde viemos. (Sotigui Kouyaté)
Ao considerar que o princípio é vivo, molecular, como afirma Rangel, pude operar
por fluxos e conjuntos; pude também reconhecer como, em diferentes espetáculos, tanto as
repetições assim como a continuidade se confirmaram como Projeto Poético. Pude ainda
responder algumas questões propostas por esta pesquisa e também entender de forma mais
consciente as escolhas que venho fazendo nas encenações do NATA desde a composição de
nossas equipes de trabalho à construção propriamente dita dos espetáculos.
Pela avaliação crítico-reflexiva até aqui empreendida, considerei então os fios
condutores da criação do NATA que se entrelaçam em um projeto poético, no qual me sinto
inteiramente implicada, os seguintes princípios: as Narrativas Mito-poéticas, o Teatro Ritual e
a Tradição na Contemporaneidade. Foi procurando qual ou quais seria(m) a(s) unidade(s)
molecular(es) da obra artística do NATA que pude chegar a esses princípios norteadores
dominantes, elementos fundamentais que dão o sentido e a configuração do teatro que
buscamos fazer.
Essa configuração só pôde ser concluída ao final do processo do espetáculo Exu;
mesmo assim, optei por ordenar este capítulo sobre o processo criativo a partir dela. Portanto,
reflito de que maneira esses princípios estão vinculados à construção de procedimentos que
56
Artigo disponível na TFC - Territórios e Fronteiras da Cena - Revista eletrônica de artes cênicas, cultura e
humanidades ou em: http://kinokaos.net.
87
traduzam o encontro entre Candomblé e Teatro dentro dos espetáculos do NATA. Trato, neste
capítulo, de como eles foram interpretados na constituição do nosso projeto poético e como
são fundamentais para a construção artística do grupo, pois, geradores dos procedimentos
criativos do nosso fazer, perpassam os três espetáculos aqui estudados.
O mito é uma das unidades moleculares que dão o ponto de partida para a nossa
construção cênica. Entender a importância da mitologia e sua influência na construção do
universo simbólico do indivíduo fez com que compreendêssemos mais aprofundadamente
quão relevante se faz uma pesquisa sobre o manancial mitológico africano; no caso do NATA,
a mitologia de origem yorubá, que na Bahia concentra-se nas Comunidades de Axé de nação
Ketu, da qual faço parte.
Para tanto, relevante se faz a definição de mito apresentada por Mircea Eliade (1963,
p. 10) em seu livro Mito e Realidade:
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do ―princípio‖. Em outros termos, o mito narra como,
graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal,
um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma
―criação‖: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala
apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens
dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que
fizeram no tempo prestigioso dos ―primórdios‖. Os mitos revelam, portanto, sua
atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a
―sobrenaturalidade‖) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e
algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ―sobrenatural‖) no mundo.
Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana. Eles ensinam
que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos
símbolos (...) O mito ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de
estar vivo.
―Voltar-se para dentro e captar a mensagem dos símbolos‖ – essa imagem me remete
à expressão da porteira para dentro e da porteira para fora que auxiliou na criação do
conceito metodológico de pesquisa desde dentro para fora, utilizado por Juana Elbein Santos
e Inaicyra Falcão, já citado neste trabalho, cuja autoria da expressão é da célebre yalorixá
Mãe Senhora. Ela a utilizava para ensinar seus filhos de axé sobre as tramas das relações
dinâmicas entre o mundo de dentro e o mundo de fora do egbé. Defendo que essa expressão
traduz o pensamento de Campbell (1990) sobre mito e vice-versa, pois, ao olhar para dentro e
captar a mensagem dos símbolos, podemos nos orientar e compreender quem somos quais as
nossas origens e assim poderemos dialogar com o outro, ou seja, com o externo.
O mito nos apresenta visões de mundo, os ―comos‖ e os ―porquês‖ da criação.
Campbell (1990) além de apresentar algumas definições, descreve ainda as quatro dimensões
do mito: a mística, que dá conta do nosso olhar sobre o universo; a cosmológica, dimensão da
qual a ciência se ocupa mostrando qual a forma do universo; a sociológica, que dá suporte e
validação de determinada ordem social e a dimensão pedagógica, que mostra como viver uma
vida humana sob qualquer circunstância. É devido ao fortalecimento e ao reconhecimento das
visões de mundo africanas e afro-brasileiras presentes no Candomblé que o NATA tem como
um dos princípios criadores as narrativas mito-poéticas, na medida em que elas auxiliam na
construção do nosso fazer cênico, pautando-nos no reconhecimento das experiências
adquiridas ―da porteira para dentro‖ e só depois dialogadas ―da porteira para fora‖.
89
Tratar as narrativas mito-poéticas não se restringe apenas a conhecer a biografia das
divindades, mas abraçar uma cosmovisão, um modo de saber, conforme assinala Leda Maria
Martins (2016) em seu parecer de qualificação para esta pesquisa. Tomo aqui a liberdade de
citar um trecho deste parecer:
57
Parecer avaliativo, exame de qualificação, Escola de Teatro, 19 de janeiro de 2016.
58
Mais informações sobre itans no livro Mitologia dos Orixás de Reginaldo Prandi (2001) e sobre orikis em:
Oriki Orixá de Antonio Risério (1996).
90
e a dançarina e coreógrafa Nildinha Fonseca59; esses três, além de autoridades no axé, são
também personalidades importantes no cenário da dança e do teatro.
Contudo, a aprendizagem que mais nos norteou foi a adquirida no interior das
Comunidades de Axé. Por meio da transmissão oral do conhecimento, ouvimos os itans e os
orikis da boca das yás e babás, demais filhos e filhas de axé e autoridades do egbé, num rico
processo de contação de histórias, descobrindo formas e instâncias que se ligavam às
narrativas mito-poéticas do Candomblé e que guiariam a nossa criação. Para melhor
compreensão sobre a oralidade e o poder da palavra na cultura africana, elementos basilares
herdados pelo Candomblé, cito Leda Maria Martins (1997, p. 148) que pontua:
Na África tudo começa e tudo termina pela palavra e tudo dela procede, e é pela
palavra ritual que se fertiliza o ciclo vital fenomenológico, consenso dinâmico entre
humano e o divino, os ancestrais, os vivos, os infantes e os que ainda vão nascer,
num circuito integrado de complementaridade que assegura o próprio equilíbrio
cósmico e telúrico. Por isso, a palavra, como sopro, dicção, não apenas agencia o
ritual, mas é como linguagem, também ritual. E são os rituais de linguagem que
encenam a palavra, espacial e atemporalmente aglutinando o pretérito, o presente e o
futuro, voz e ritmo, gesto e canto de modo complementar.
59
José Carlos Arandiba – Zebrinha é coreógrafo e diretor artístico do Balé Folclórico da Bahia, coreógrafo do
Bando de Teatro Olodum, da Cia dos Comuns e do NATA, além de ogan confirmado no Ilê Axé Obá Inan, da
yalorixá Mãe Obá. Gustavo Mello é ator, diretor e pesquisador da performance negra na Universidade de Austin/
Texas, yawô do Ilê Axé Omiojuaro, da yalorixá Mãe Beata de Yemanjá. Nildinha Fonseca é bailarina e
professora de dança do Balé Folclórico da Bahia e ekedi confirmada no Ilê Axé Obá Inan da yalorixá Mãe Obá.
91
cultural, os orikis nos revelam de forma mais detalhada a personalidade, os tabus e ritos das
divindades. Dessa união, surgiu uma dramaturgia mais imagética, sensorial, que desliza entre
as dimensões do visível e do invisível, remetendo-nos a um tempo mítico que acentua nas
encenações as atmosferas de ritualidade.
Outro ponto significativo em nossa dramaturgia é a aprendizagem e o emprego do
idioma yorubá. Língua é poder, já diziam os mais antigos do Candomblé. Além de ser
considerado sagrado para o povo do axé (assim como o kimbundo, kikongo e o fon), o yorubá
corresponde a uma das línguas ancestrais do povo brasileiro60, é o idioma falado pelas
divindades da nação Ketu e também pelos antepassados. Esse idioma continua vivo no
continente africano e espalhado pelo mundo nos oferece mais um viés de comunicação e
encontro com nossa matricidade africana e sua diáspora. Sua presença em nossos textos
intensifica a pesquisa sobre a herança negra africana na constituição do Brasil e modifica a
plataforma melódica e semântica dos espetáculos.
Por fim, as narrativas mito-poéticas, sintetizadas pelo encontro entre os itans e orikis
no fazer teatral do NATA, auxiliam-nos a modificar nossa compreensão acerca do que vem a
ser a personagem. Em nossos textos e principalmente em nossas encenações, optamos por
trabalhar não com personagens, mas sim com personalidades. Esse modo de construção é uma
forma de olhar que adotei, por não querer criar a partir de uma mimese ritualística, ou seja,
com a imitação do Orixá da liturgia para a cena. Em nossas montagens preferimos observar as
personalidades dos Orixás, aproximando-as das personalidades dos atores. Como isso se
processa?
A criação de nossas montagens está dividida em etapas. Na denominada Rituais
Instauradores, os atores passam pelo ritual de ifá (oráculo)61, em que mãe Rosa d´Oyá joga os
búzios. O objetivo desse ritual é saber a qual divindade o ator pertence62; após esse momento,
faço um estudo da personalidade das divindades que compõem o eledá (conjunto de
divindades que formam a ancestralidade da pessoa. No Candomblé, de nação ketu são três
Orixás.) dos atores e a personalidade de cada um deles. Assim, consigo definir, por exemplo,
que ator fará que ―papel‖ no espetáculo.
60
Refiro-me ao yorubá, pois pertenço à nação de Ketu, mas se faz importante reconhecer a importância das
línguas indígenas, a língua kikongo e kimbundo do povo de nação Angola/Banto e a língua fon do povo Jeje na
composição do mosaico linguístico do Brasil.
61
Refiro-me ao jogo de búzios, oráculo divinatório que somente as yalorixás, babalorixás e os babalawôs têm
acesso.
62
Trata-se de saber qual é o Orixá da pessoa, de qual divindade ele descende.
92
Um exemplo disso é a atriz Fabíola Júlia que, filha de Nanã, representou a mesma no
espetáculo Siré Obá e o Orixá Ogun foi representado por um filho seu, o ator Val Perré, no
espetáculo Ogun – Deus e Homem. Quando não há possibilidade desse tipo de aproximação,
adoto o parâmetro dos elementos primordiais da natureza (terra, fogo, água e ar) que regem as
divindades. Assim, o ator que apresenta uma ligação com um Orixá regido pelo elemento
terra pode transitar entre os Orixás Ogun, Omolú, Oxossi, Logunedé. Foi o que ocorreu com o
ator Daniel Arcades no espetáculo Siré Obá, pois sendo ele do Orixá Logunedé, regido pelo
elemento terra, pode representar Oxossi no espetáculo. A preciosa informação mitológica de
que Oxossi é pai de Logunedé contribuiu ainda mais para a escolha.
Através das aproximações de personalidades, vou descobrindo pontos de encontro
entre o Orixá e o ator e vou construindo esse diálogo. O maior objetivo é evitar a
representação alegórica na cena e colocar o ator em um encontro mais íntimo entre ele e a sua
divindade ancestral, oportunizando um encontro pessoal e artístico. Nesse sentido, arte e
religião encontram-se e dialogam a favor do fortalecimento ancestral tanto do ponto de vista
pessoal, quanto artístico, cultural, político e religioso.
Um ponto de tensão nessa escolha tem a ver com a implicação do ator. Não há como
construir esse diálogo sem que ele não esteja implicado com o processo e com as questões
relacionadas à cultura afro-brasileira. Um ator que apenas queira experimentar esses rituais,
utilizando-os como meros instrumentais para a cena, não creio que logrará vitória. A
implicação com o Candomblé e a fé na existência dos planos material e imaterial,
independente de religião, é fundamental.
Essa afirmação parte da experiência com alguns atores que possuíam uma visão mais
racional da existência e que não estavam implicados com o tema e seus desdobramentos.
Assim sendo, a cada montagem buscamos aprimorar as discussões e problematizações criadas
a partir do norteamento dado pelas Narrativas Mito-Poéticas.
A união entre teatro e ritual para nós é um disparador poético que nos conecta com a
antiguidade do Teatro, com os elementos fundantes dessa arte e sua capacidade de estabelecer
encontros, de mobilizar energias, de nos fazer acreditar em fatos e circunstâncias
inacreditáveis, de colocar o ser humano num mergulho insondável de si e do outro. Assim, faz
aflorar os sentimentos de união, colaboração e identificação entre nós e a natureza.
93
O Teatro nasceu do ritual, da necessidade humana de se encontrar com os planos da
existência, com sua ancestralidade e com as forças espirituais da vida. Victor Turner (apud
COSTA, 2013. p. 54), um pesquisador sobre as relações entre o ritual e a antropologia, assim
define o primeiro termo:
A presente definição reforça as considerações feitas por mim sobre ritual. Por se
tratar de uma manifestação sagrada que provoca uma reelaboração simbólica e que visa ao
desencadeamento de uma mudança nos indivíduos e/ou no grupo, encontramos no ritual os
elementos potencializadores dos desejos e anseios de um fazer cênico que transmute e
transcenda a cena; engendrando, assim, nosso fazer artístico, propondo um encontro sensorial,
sinergético e sinestésico entre os atores e entre eles e os espectadores.
Já Richard Schechner, outro estudioso dos rituais, associa o ―comportamento ritual
humano‖ às memórias, conforme assinala Costa (2013. p. 55):
Rituais são memórias em ação, uma memória viva, dinâmica que estabelece fluxo e
contrafluxo dos planos do presente e do passado em vislumbre de um olhar para o futuro. Ao
trazer algumas referências de Turner e de Schechner sobre ritual, viso a colocar em diálogo
dois campos importantes que tangenciam a relação entre Candomblé e Teatro em nosso fazer
artístico: a Antropologia e a Arte. Ao falar de ritual do ponto de vista da antropologia, Turner
nos apresenta pistas importantes para melhor compreensão sobre os fatores culturais que
constituem a ritualidade nas várias sociedades, enquanto Schechner, que pensa o ritual pelo
olhar artístico da Performance, define o ritual no trânsito entre as culturas e suas
manifestações estéticas e poéticas.
63
Segundo o artigo O conceito de ritual em Richard Schechner e Victor Turner: análises e comparações, de
Grasielle Aires da Costa, Victor Turner (1974).
94
Nesse trânsito, está estabelecido também o diálogo entre Candomblé e Teatro no
fazer do NATA. A união desses olhares abrem caminhos para uma arte que opta por unir arte
e religião, mas com observância aos conflitos e tensões estabelecidos a partir deste diálogo.
Um dos maiores cuidados do grupo, ao construir um teatro ritualizado, é evitar a transposição
mimética da ritualidade do Candomblé para o palco e os parâmetros que nos guiam nessa
empreitada referem-se a um processo de construção cênica por meio da inspiração nos rituais
públicos do Candomblé, que acontecem nos barracões das Comunidades de Axé, abertos para
toda a comunidade, seja ela a religiosa ou não.
É da roda do siré que retiramos fragmentos, sons, cantos, cheiros, ritmos, texturas
sonoras e visuais, danças e sabores que passados por um processo de estilização cênica,
culminam nos espetáculos que construímos. Não há, portanto, nenhum desejo de imitarmos as
divindades e muito menos de revelarmos a intimidade ritual do axé, mas sim de nos
deixarmos conduzir pelos estímulos sensoriais e cognitivos que esse contato nos proporciona
para chegar a um estado de representação. Ele reforça o nosso objetivo de valorizar a herança
cultural africana, divulgando-a e fortalecendo nossos referenciais identitários negros.
Em seu livro A cena em sombras, Leda Maria Martins (1995, p. 40) mostra que o
teatro ritual é um espaço para o fortalecimento identitário e o destaca na África e nas
Américas, devido ao seu poder de convocação e aglutinação comunitária:
Considero que o NATA, por meio de suas montagens, vem invocando o poder das
divindades e com isso estabelecendo níveis variados de conexão entre os artistas envolvidos, a
sua identidade cultural, os planos materiais e imateriais da existência, na busca de um fazer
teatral mobilizador e ancestral. Isso ocorre por meio do nosso mergulho no universo
ritualístico dos Orixás, de onde trazemos para a cena cantos, palavras de força, cheiros, cores,
texturas e sabores dessa ritualidade, auxiliando na criação de atmosferas cênicas sensoriais e
potencializando no espaço do teatro a experienciação e não só a contemplação da cena.
Assim, propomos, como nos rituais do Candomblé, uma interação, uma intimidade entre
atores e público.
95
Em nosso processo de criação teatral, o Teatro Ritual define procedimentos ligados à
preparação corpo/vocal dos atores, a construção da música e da dança e da visualidade do
espetáculo no que se refere aos elementos de cenário, figurino, maquiagem e iluminação. Já
no que tange à preparação corpo/vocal dos atores chegamos à criação dos Rituais
Instauradores, que se trata de uma imersão sensório-espiritual, realizada no interior da
Comunidade de Axé (Terreiro de Candomblé), no Ilê Axé Oyá L´adê Inan na cidade de
Alagoinhas, sob a minha condução e a de Mãe Rosa d´Oyá. Esses rituais tem por objetivo,
realizar as cerimônias propiciatórias para a construção das montagens.
A cerimônia inclui desde as oferendas rituais, os banhos energizadores, os pedidos de
autorização para as divindades até as experimentações cênicas realizadas a partir do contato
íntimo dos atores com os quatro elementos essenciais da natureza, terra, fogo, água e ar. Cada
um dos elementos primordiais da natureza (fogo, terra, ar e água) é regido por certo número
de Orixás, por exemplo, os Orixás Ogun, Omolú e Ossãe são regidos pelo elemento terra.
Após organizar as divindades pelo seu elemento da natureza preponderante, nós saudamos as
divindades em quatro rituais: ritual do fogo (Exu e Xangô), ritual da terra (Ogun, Oxossi,
Omolú, Ossãe, Obá, Iroko e Logunedé), ritual do ar (Oyá, Oxumarê, Ewá e Oxalá) e ritual da
água (Oxum, Yemanjá, Ibeji e Nanã).
O objetivo é colocar os atores em contato com as energias, as cores, as músicas, os
alimentos e as lendas de cada um desses Orixás e as reverberações energéticas de cada
elemento primordial presente na personalidade de cada divindade. Além de propiciar um
contato mais íntimo com o dia a dia da Comunidade de Axé, o grupo pode observar e
aprender mais sobre a cosmologia e a cosmogonia da nossa cultura ancestral africana. Por
meio dessa imersão afro-antropológico-poética, estabelecemos contato com as divindades, nós
nos preenchemos de imagens e sensações que serão matéria-prima para a construção cênica na
sala de ensaio, discutimos questões éticas e litúrgicas que deverão nos orientar sobre o que e o
como abordarmos a história e a personalidade das divindades na montagem e definirmos quais
serão as diretrizes do espetáculo.
96
Figura 19 – Imagens Rituais Instauradores: à esquerda – Ritual da Terra, à direita – Ritual do Fogo – Ilê Axé
Oyá L´adê Inan - 2014 - Foto: Jô Stella.
Figura 20 – Imagens Rituais Instauradores: à esquerda – Ritual da Água, à direita Ritual do Ar – Ilê Axé Oyá
L´adê Inan – 2014 – Foto: Jô Stella.
64
Possui graduação em Pedagogia e Pós-graduação em Psicopedagogia Preventiva pela Universidade do Estado
do Pará e em Estudos Contemporâneos do Corpo pela mesma instituição. Atualmente, é Coordenadora
Pedagógica e professora de Educação Inclusiva na EEEM Alexandre Zacharias de Assumpção/SEDUC e mestra
em Artes pelo Instituto Ciências das Artes/ICA – UFPA. Trabalhou como instrutora de dança-teatro com as
crianças do projeto de Iniciação Artística da Fundação Curro Velho. Tem experiência na área de Artes com
ênfase em teatro e dança. É atriz e bailarina da Companhia Atores Contemporâneos e da Companhia Brasileira
de Cortejos. É membro do Grupo de Pesquisa em Etnocenologia e Carnaval – TAMBOR. Atualmente, trabalha
97
O corpo templo, no sentido religioso, é um corpo preenchido pelas forças cósmicas
em contato íntimo com a divindade. No sentido teatral, é um corpo tomado, conectado com a
ancestralidade, ciente de uma identidade cultural e em estado de prontidão, dilatação cênica e
irradiação energética; formando, assim, o bios-cênico do ator, elemento presente no Teatro
Antropológico de Eugênio Barba (1994, p. 44) em que o bios-cênico nada mais é que:
A busca por esse bios-cênico, presente nesse corpo templo, lança-nos a uma
imergência no universo do Candomblé, percebendo e criando exercícios cênicos que
potencializem a construção energética dos atores, sua presença cênica e estreitem a relação
entre Candomblé e Teatro. Para chegarmos a esse processo em nossas montagens, a
preparação corpo/vocal é composta de um conjunto de exercícios que vão desde o trabalho
realizado por meio da dança dos Orixás, à convivência dela com o samba, o funk, a dança
moderna, o jazz e a dança contemporânea.
Já a pesquisa vocal é desenvolvida por meio de um estudo sobre o idioma yorubá, os
cantos aos Orixás e a junção desses elementos ao universo da música negra brasileira, cubana
e norte-americana. Nesse processo de preparação, conseguimos trabalhar os elementos
ancestrais da cultura africana e suas reverberações na contemporaneidade, aprofundando esse
binômio Candomblé-Teatro sem nos afastar das discussões sobre o fazer cênico atual. Essa
preparação resulta também na construção da musicalidade e da coreografia dos espetáculos.
Findados os rituais instauradores, voltamos para a sala de ensaio e começamos o
nosso trabalho de exploração e improvisação corporal e vocal intitulado de ―poeirão cênico‖.
Ele consiste na listagem das imagens norteadoras do espetáculo e a improvisação a partir de
exercícios corpo/vocais, ainda sem a utilização da linguagem falada, estimulados por músicas,
cantos, danças, cheiros, cores e imagens poéticas que geram materiais cênicos a serem
selecionados e aprofundados no decorrer da construção do espetáculo.
A expressão ―poeirão cênico‖ vem da imagem da ―poeira‖ sendo levantada pelo
vento, em que um grande número de elementos é alçado no ar. Esse é um momento
99
A escolha por mergulhar no universo da tradição do Candomblé e representá-lo no
Teatro apresenta ao NATA alguns desafios, dentre eles o de construir trabalhos artísticos que
consigam se comunicar com o público de Candomblé e com o público não iniciado nessa
religião. Esse desafio comunicacional gerou perguntas que a cada montagem tentamos
responder: como não montar espetáculos que só sejam entendidos pelos candomblecistas?
Como estabelecer comunicação com o público de terreiro sem invadir a intimidade e o
segredo inerente ao Candomblé? Como unir a tradição do Candomblé com as temáticas e
questões da contemporaneidade? Uma tentativa de resposta a essas questões talvez esteja
expressa nos mecanismos que criamos para tornar eficaz esta comunicação.
O processo de colonização pelo qual o povo brasileiro passou construiu a
invisibilização dos elementos culturais africanos. Essa invisibilização é traduzida hoje por um
quase que total desconhecimento por parte da maioria da população brasileira sobre o
Candomblé e os elementos que o constitui. Assim, percebemos que, para efetivarmos uma
comunicação mais abrangente em nossas montagens, optamos por aliar a tradição do
Candomblé a elementos da atualidade, mostrando quão atual e presentes estão as divindades.
Mais do que isso, entendemos que tanto a tradição quanto a contemporaneidade estão
presentes no candomblé; é uma tradição que se renova a cada dia nas pessoas que o
constituem, que estudam sobre ele e que dele se nutrem para fazer suas escolhas pessoais e
artísticas. Nesse sentido, o espetáculo Ogun – Deus e Homem é um bom exemplo para
explicar o diálogo que propomos. Nessa montagem, procuramos mostrar o quanto o Orixá
Ogun está presente na atualidade ao colocarmos em cena uma de suas características, a de
engenheiro.
Ao explicar para o público que o Orixá Ogun é, para nós de Candomblé, o grande
engenheiro do universo e que através dessa sua habilidade construiu os mecanismos e as
tecnologias, indicamos a sua presença na computação, na engenharia civil, industrial e
eletrônica; enfim, mostramos a presença desse Orixá na sociedade contemporânea. A
visualidade da montagem tentou colocar em cena essa característica do Orixá, tanto no
cenário, quanto no figurino e maquiagem, como na música, coreografias e designer gráfico.
Não consideramos a tradição atrasada; ao contrário, e, por meio dessas tentativas,
buscamos estabelecer contato com aqueles que desconhecem o Candomblé e por isso ainda
continuam a demonizá-lo. Quando utilizamos elementos da atualidade, que são de fácil
reconhecimento por parte do público aliados às mitologias, danças, vestimentas e línguas da
100
tradição do Candomblé, criamos uma ponte com o espectador e por meio dela buscamos
desestigmatizar a imagem das divindades e da religiosidade como um todo.
Para o NATA, é tão importante o mergulho na tradição ao investigarmos a nossa
herança cultural e nos inteirarmos dela defendendo-a como patrimônio quanto a tomá-la como
inserida nos fenômenos da contemporaneidade. Esse olhar não visa a uma estilização fútil,
muito menos o desprezo pelas características fundantes dos elementos culturais tradicionais.
Ele busca por um diálogo efetivo que nos leve ao passado – porém lá não nos congele – e que
nos faça ver a riqueza dos valores ancestrais e sua continuidade em nosso tempo. Trago
Mestre Didi66 (1989) que melhor pode expressar esse diálogo entre tradição e
contemporaneidade, quando argumenta que:
Quando falo de tradição não me refiro a algo congelado, estático que aponta apenas
à anterioridade ou antiguidade, mas aos princípios míticos inaugurais, constitutivos e
condutores de identidade, de memória, capazes de transmitir de geração a geração a
continuidade essencial, e ao mesmo tempo, reelaborar-se nas diversas circunstancias
históricas, incorporando informações estéticas que permitam renovar a experiência,
fortalecendo seus próprios valores.67
68
O espetáculo Siré Obá – A Festa do Rei foi indicado ao Prêmio Braskem 2010 nas categorias Melhor
espetáculo adulto, Direção, Revelação e se sagrou vencedor na Categoria especial com Jarbas Bittencourt pela
Direção musical do espetáculo.
102
69
O espetáculo Siré Obá – A festa do Rei é uma celebração, uma homenagem às
divindades africanas que compõem a cosmogonia yorubá. Por intermédio do teatro, da dança
afro, da música, da narrativa mítica e da poesia, realizamos a montagem de um espetáculo-
festa, mostrando a beleza e a grandiosidade dos Orixás, desmitificando preconceitos e
combatendo a intolerância religiosa, unindo religião e arte. Essa montagem, que estreou em
abril de 2009, reuniu os atores do NATA e mais artistas convidados do cenário teatral de
Salvador como Fernanda Paquelet, Jarbas Bittencourt, Jandiara Barreto, Marilza Oliveira e
Marcelo Jardim70 para um processo de criação cênica numa imersão de cinco meses no Ilê
Axé Oyá L´adê Inan, em Alagoinhas.
A concepção cênica da montagem consistia na criação de um espetáculo inspirado
nos elementos das cerimônias públicas dos Candomblés da Bahia, por isso escolhemos o
barracão do Ilê Axé Oyá L´adê Inan como sala de ensaio e também palco para a estreia após a
consulta de Mãe Rosa e a autorização de Oyá. Entretanto, Siré Obá foi um processo de
grandes desafios. Esbarramos em nossa imaturidade no que tangia aos trâmites do edital, na
liberação de recursos e no trabalho de produção. Entramos em crise, pois tudo era novo o
discurso, a forma, o conteúdo e parte das pessoas que compunham a equipe. O mergulho no
universo dos Orixás e do Candomblé era desconhecido para a maioria dos atores e em dados
momentos assustador, pois esbarrávamos nos conceitos pejorativos e nos preconceitos
internalizados, incluindo os meus.
Durante muito tempo do processo, nós nos perguntamos se estávamos fazendo
Teatro ou Candomblé – as ritualidades haviam se misturado. Não sabíamos onde começava
uma e terminava a outra. Por um bom período, isso nos assustou. O receio de estar fazendo
um espetáculo catequético e de estar expondo a intimidade do Candomblé além da
preocupação de estarmos fazendo uma obra religiosa e não artística travou o processo. Não
havia respostas corretas. E, desse modo, sem ter certeza de quase nada seguimos.
Algumas escolhas foram desenhando o caminho e deixando pistas de como vencer
nossos receios e preocupações; por exemplo, quando decidimos buscar autoridades do axé
para nos orientar, estudar a história antropológica do Candomblé, ao selecionar os cantos e as
danças das divindades, mostrar aos nossos orientadores e saber o quanto daquilo poderíamos
trabalhar. E por fim não esquecer que estávamos fazendo arte e, portanto, licenças poéticas,
69
Traduzindo do yorubá: Siré – Festa e Obá - Rei, ou seja, a festa do Rei. Este termo – Siré – também é utilizado
para designar a cerimônia pública do Candomblé, em que são saudados todos os dezessete Orixás que compõem
o panteão yorubano cultuado no Brasil.
70
Jarbas Bittencourt – Diretor Musical, Jandiara Barreto - Instrumentista, Marilza Oliveira – Preparadora
corporal e Coreógrafa e Marcelo Jardim – Preparador vocal.
103
adaptações, inspirações e estilizações não necessariamente descaracterizariam o Candomblé,
já que não estávamos interessados em transpor a liturgia para a cena e sim as nossas
impressões de artistas sobre as imagens e sensações provocadas pela mesma.
Ensaiar no interior do terreiro foi um processo enriquecedor, mas também limitador.
Enquanto estávamos em contato cotidiano com os elementos éticos e estéticos do Candomblé,
presenciando o dia a dia do terreiro, observando o comportamento, as relações, e em contato
com a magia desse espaço, precisávamos nos adaptar às regras, atentar para horários,
situações, roupas e a nossa conduta. Embora estivéssemos fazendo teatro, o barracão é um
espaço sagrado que não admite alguns comportamentos que para nós de teatro é o usual, além
de estarmos sob o olhar atento da yalorixá, que nos repreendia caso descumpríssemos alguma
regra. E ainda termos que dialogar com o receio daqueles (os atores) que não possuíam
intimidade com o Candomblé e daqueles (filhos e autoridades do terreiro) que não possuíam
intimidade com o Teatro e neste caso ambos habitaram o mesmo espaço.
Figura 21–Daniel Arcades, Vânia Santana, Fabíola Júlia, Deise Vieira e Antônio Marcelo – Primeiros ensaios
do espetáculo Siré Obá – A festa do Rei –- 2009 – Barracão do Ilê Axé Oyá L´adê Inan – Foto: Andréa Santos.
Figura 22 – Apresentação do espetáculo Siré Obá no Terreiro do Gantois – Ao fundo na esquerda a Yalorixá do
terreiro Mãe Carmem e a Yakekerê Mãe Ângela, da esquerda para a direita: Thiago Romero, Daniel Arcades,
Guilherme Silva, Antônio Marcelo e Deilton José – maio 2012 – Foto: Jô Stella.
71
Em Salvador, o NATA apresentou o espetáculo Siré Obá nos seguintes terreiros: Terreiro Mokambo, Abassá
de Ogun, Ilê Axé Oxumare e Terreiro do Gantois. Pelo interior do estado, apresentou em terreiros nas cidades de
Alagoinhas, Feira de Santana, Dias D´Ávila, Inhambupe, Simões Filho, Catu, Santo Amaro da Purificação e
Cachoeira.
105
Figura 23 – Daniel Arcades – Siré Obá – A festa do Rei – Terreiro de Ogun - 2012 - Inhambupe72 –
Foto: Jô Stella.
72
Essa apresentação de Siré integrou o projeto NATA – Oná Ilú Ayê – O NATA pelos caminhos do mundo. Esse
projeto consistiu na circulação do espetáculo Siré Obá por oito Comunidades de Axé do interior da Bahia. A foto
retrata a emoção de Dona Sebastiana, filha de santo do Terreiro de Ogun, que do alto dos seus 85 anos nunca
havia ido ao teatro e ao ver o ator Daniel Arcades emociona-se e quase o abraça em cena aberta.
73
Realizamos temporadas no Centro de Cultura de Alagoinhas, Teatro Vila Velha, Sala do Coro do TCA, Palco
Principal do TCA, Arena do Teatro Sesc-Senac-Pelourinho, Centro Cultural Alagados, Cine Solar Boa Vista e
Centro Cultural Plataforma, em Salvador; no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo, e no Teatro José
Maria, em Curitiba.
106
Figura 24–Fabíola Júlia, Nando Zâmbia, Antônio Marcelo, Daniel Arcades e Vânia Santana –Espetáculo Siré
Obá – A festa do Rei – Estreia no Teatro Vila Velha – 2009 –Foto: Thalita Andrade.
74
Siré Obá participou dos principais festivais de Salvador incluindo Festival Internacional de Artes Cênicas –
FIAC – BA, Festival Internacional Latino Americano – FILTE – BA, integrou a programação do evento Cultura
em Campo durante a Copa das Confederações da FIFA, participou do Projeto Nova Dramaturgia de Melanina
Acentuada em São Paulo e a I Mostra Baiana em Curitiba.
107
Essas reflexões demostram a complexidade que apresenta o binômio Candomblé-
Teatro e o quanto precisamos entender sobre ambas as áreas para construir um fazer teatral
coerente e consistente. Siré Obá foi uma montagem encorajadora, divisora de águas em
nossas carreiras e também o início da jornada que provocou a presente pesquisa. Essa
montagem abriu caminho para o grande projeto de criação cênica do grupo, que consiste na
montagem de um espetáculo para cada um dos dezessete Orixás cultuados no Brasil. Esse
projeto visa estreitar a cada montagem o encontro entre Candomblé e Teatro, amadurecer o
projeto poético-político do grupo e colocar em cena, por meio dos princípios norteadores
apresentados neste trabalho, a história, a beleza e a grandiosidade da cultura africana,
apresentando outros parâmetros para a criação cênica no que tange a abordagem desta
temática.
Figura 25 – Cena final do espetáculo Siré Obá – Entrada de Mãe Rosa d´Oyá saudando Oxalá – Em cena: ao
fundo: Fabíola Júlia e à frente: Nando Zâmbia – Palco Principal do TCA – 2013 - Foto: Andréa Magnoni.
108
Ogum – Deus e Homem narra a história da divindade yorubá Ogun, o senhor da
guerra e da tecnologia. Com uma dramaturgia construída a partir de seis itans e quatro orikis,
o espetáculo mostra a trajetória dessa divindade, desde o momento em que, através de Exu,
solicita a Olodumare (Deus) seu desejo de se tornar humano e habitar o ayê (plano da
materialidade), passando pela conferência dos Orixás, em que Ogun apresenta a descoberta do
metal. Nanã, divindade mais velha, recusa-se a abandonar o barro e numa discussão acusa
Ogun de querer romper com as tradições. Ogun respeita as determinações de Nanã, porém
vem para o ayê e se transforma no assiwajú (aquele que vai à frente), abrindo caminho para
outras divindades também habitarem o ayê.
Figura 26– Deilton José e Val Perré no espetáculo Ogun – Deus e Homem – Teatro Martim Gonçalves – 2010 –
Foto: Agnes Cajaíba/Lab Foto.
109
declarado morto. Dilacerado pela dor de tamanha injustiça, Ogun pede a Olodumare para
retornar ao órun (plano da imaterialidade).
Ogun foi um espetáculo de repercussão75: em seus dez dias de temporada, esgotou a
lotação do Teatro Martim Gonçalves, com enormes filas de espectadores que não
conseguiram entrar, o que mostra não só o interesse que a montagem despertou nas
Comunidades de Axé quanto a curiosidade sobre a abordagem que seria feita no espetáculo
após o Siré Obá. Mas o que torna pertinente uma reflexão sobre esse espetáculo é o fato de ter
sido a montagem que finalizou o meu curso de Direção Teatral na Escola de Teatro da UFBA.
A graduação foi um importante momento em minha formação, pois conheci obras,
teorias e proposições artísticas de grandes mestres do teatro baiano, brasileiro e mundial,
dialoguei com as pesquisas de Luiz Marfuz sobre o ator e a encenação por meio de dois
projetos de iniciação científica e fui colocando em prática algumas das minhas inquietações
artísticas na realização das mostras didáticas ao longo dos semestres. Nesse acúmulo de
experiências, interagia com a prática das montagens do NATA e com trabalhos de assistência
de direção que fui desenvolvendo durante o curso.
O espetáculo Ogun é a culminância desse período de aprendizagem e trouxe em seu
processo de construção o diálogo entre a Academia e o Candomblé. Enquanto o espetáculo
Siré Obá estabeleceu o diálogo Terreiro-Teatro, Ogun estabeleceu o diálogo Terreiro-Teatro-
Academia, pois a escolha dessa temática como espetáculo de formatura, a montagem e a
apresentação da peça no espaço físico da Escola de Teatro e, principalmente, o contato com o
público que frequenta o Teatro Martim Gonçalves, em sua maioria estudantes, professores e
pesquisadores de teatro, pôs em conjugação e relevo essas duas searas.
Durante a montagem, o cotidiano da Escola era alterado pelos toques dos atabaques e
todo o processo ritualístico utilizado para a construção da peça; para alguns professores,
alunos e funcionários soava ―estranho‖ (e, para alguns, incômodo) a construção de um
espetáculo com essas características, dentro do espaço da Escola de Teatro. Esse
―estranhamento‖ por mim constatado considero que se deve ao fato já citado anteriormente
sobre o desconhecimento por grande parte da população brasileira sobre o Candomblé, os
75
Foi o representante da região nordeste no I Prêmio de Expressões Afro brasileiras. Prêmio financiado pela
Fundação Cultural Palmares, pelo Ministério da Cultura, Petrobras e CADON (Centro de Apoio ao
Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves). O anúncio da seleção foi feito durante o ensaio geral da cerimônia
de entrega do Prêmio Braskem de Teatro de 2010 no Teatro Castro Alves, dirigido por Luiz Marfuz, onde atuei
como assistente de direção e operadora de luz. Participou do Festival Internacional A Cena Tá Preta, do Bando
de Teatro Olodum.
110
elementos que o constitui e sua contribuição no processo de constituição da nação brasileira,
sendo assim um patrimônio cultural.
Apesar de não ser a primeira a fazer isso, colocar o universo da Escola de Teatro em
contato com o Candomblé, é mais uma contribuição na diminuição do desconhecimento
acerca da arte e cultura africana e afro-brasileira. O diálogo Terreiro-Teatro-Academia,
experienciado em Ogun, potencializou o projeto do NATA na construção de um discurso
poético que visa à diversificação de plataformas éticas, temáticas e técnicas para a cena. Ao
realizarmos a montagem e as apresentações desse espetáculo nesse palco privilegiado para
discussões e conceptualizações sobre o fazer cênico, problematizamos a ausência de uma
diversidade cultural nessa esfera.
Contribuímos também com a utilização de outros parâmetros culturais no processo
de construção teatral. Reunir os conhecimentos adquiridos na academia aos conhecimentos
adquiridos no terreiro foi um grande passo no sentido de buscar maior consistência na criação
cênica e maior equilíbrio no complexo encontro entre Teatro e Candomblé, todavia
esbarramos em algumas questões que atrapalharam e comprometeram e muito o espetáculo.
A primeira foi o choque estilístico causado entre o teatro lírico-narrativo que
apresentamos em Siré Obá e a inserção de elementos do dramático na construção do texto
dramatúrgico do espetáculo, como já citado no capítulo dois deste trabalho. Essa união não
logrou sucesso, pois colocou em choque – e não em integração – a atmosfera ritual proposta
pela narrativa lírica dos itans e orikis, com a cotidianidade construída pela inserção de
elementos como diálogo, conflito, personagem-ação, enredo e mimese, representantes do
drama.
A segunda diz respeito a problemas relacionados ao entendimento por parte de
alguns atores sobre a proposta de unir Candomblé e Teatro na construção de uma montagem.
Como afirmei anteriormente, para integrar o projeto poético do NATA, o ator não precisa ser
iniciado na religião, mas precisa estar implicado com a temática, respeitar e querer até mesmo
conhecê-la, pois a subjetividade inerente a abordagens como essa é a linha condutora do
processo. Contudo, devido a um choque de metodologia, tivemos conflito de linguagem com
parte do elenco, que esperava uma encenação mais dramática e menos ritualística e
performática.
A terceira questão, por fim, trata-se da descoberta nesse processo que, além dos
atores, os demais artistas envolvidos precisariam acompanhar com mais intimidade o nosso
processo de estudo, discussão e ritualizações no decurso do espetáculo. Não basta dominar a
111
sua área de atuação; precisa, assim como os atores, mergulhar no universo do Candomblé,
para compreender sutilezas, questões éticas e estéticas. Durante essa montagem, fui
percebendo que o encontro com sua ancestralidade africana não bastava ser apenas minha e
dos atores, mas sim de todos os artistas envolvidos (diretor musical, cenógrafo etc.), pois além
de facilitar a comunicação no que tange a criação, afina também a implicação e o discurso de
todos, evitando estereotipias e a criação de elementos no espetáculo que fiquem ao meio do
caminho tanto na concepção quanto na execução.
Apesar das questões que atrapalharam e comprometeram o espetáculo, houve pontos
muito positivos em sua construção a começar pela forte visualidade estabelecida pela
concepção de Thiago Romero, nesta ocasião figurinista e maquiador da montagem. Sua
proposição de criar os figurinos num diálogo entre a vestimenta tradicional do Orixá numa
modelagem atual, dialogando com tendências das passarelas de moda, deu ao figurino e a
maquiagem um arrojo interessante e trouxe para muito próximo os Orixás apresentados nesse
espetáculo Ogum, Exu, Xangô, Nanã e Oyá.
Figura 27 – Imagens inspiradoras para a criação do figurino do espetáculo Ogum – Deus e Homem – 2010.
112
Figura 28 – Figurinos construídos, Xangô/Marinho Gonçalves, Oyá/Jussara Mathias e Ogun/Val Perré/Ogum –
Foto: Agnes Cajaíba/Lab Foto.
113
cenografia inspirada nos pixels76 a característica de Ogun como divindade ligada à
tecnologia.
Figura 30 – Croqui cenográfico do espetáculo Ogum – Deus e Homem – Cenógrafo Yoshi Aguiar – 2010.
76
Com o objetivo de dar foco a característica de Ogun de divindade patrono da tecnologia a cenografia, inspirou-
se no pixels (menor partícula de uma imagem digital) na construção dos adereços e elementos de cena. (Ver
figura 30).
114
Figura 31 – Ao fundo, Fernando Santana e à frente Val Perré – Espetáculo Ogun – Deus e Homem – Teatro
Martim Gonçalves – 2010 – Foto: Agnes Cajaíba/Labfoto.
115
3.5 – CULMINÂNCIA: O ESPETÁCULO EXU A BOCA DO UNIVERSO
77
Nessa edição do TCA.NÚCLEO, o Teatro Castro Alves – TCA, realizou uma mudança no perfil do edital: o
que antes se tratava da formação de um elenco sob a condução de um diretor para a montagem de um espetáculo
passou a ser uma residência artística para grupos e coletivos teatrais da cidade, que deveriam ocupar os variados
espaços do teatro, com diversas atividades artísticas desde formação a difusão.
78
O projeto estava estruturado em 05 (cinco) eixos de trabalho (Formação, Intercâmbio Cênico, Difusão,
Criação e Circulação) compostos por 28 (vinte e oito) atividades interdependentes que se conectaram com a
pesquisa cênica do grupo, partindo do processo de residência artística e sendo norteado pelo profícuo processo
de intercâmbio com a Cia do Miolo de São Paulo.A comissão julgadora desse edital foi composta pelo diretor e
dramaturgo Elísio Lopes, o ator e diretor Fábio Vidal, o dramaturgo e diretor Gil Vicente Tavares, a então
diretora do departamento de Teatro da Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB Maria Marighela e a
diretora e iluminadora paulista Cibele Forjaz, sob a orientação e coordenação de Rose Lima diretora artística do
Teatro Castro Alves.
116
Locus tangencial assinalada como instância simbólica e metonímica, da qual se
processam vias diversas de elaborações discursivas, motivadas pelos próprios
discursos que a coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da performance, é lugar
radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções,
confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas,
multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação.
Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como lugar terceiro, é
geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos. (MARTINS,
1997, p. 28)
Em concordância com a definição exposta por Leda Maria Martins, considero ainda
que a encruzilhada é também um ponto neutro, de onde podemos vislumbrar as possibilidades
de caminho a seguir, seu desenho de encontro de caminhos; mostra diversidade de
possibilidades de escolha, mas também que esses caminhos de certa forma estão imbricados,
interligando-se e se comunicando. Essa imagem define um pouco o que significou a
construção desse espetáculo e quais foram os caminhos que nos levaram até a sua
constituição.
O que chamamos de Rua nesse diálogo Terreiro-Teatro-Academia, é a ampliação
geográfica, técnica e conceitual que a montagem de Exu nos proporcionou. Além de
estrearmos num espaço emblemático como o Teatro Castro Alves – TCA, fomos financiados
por um dos maiores editais de montagem do estado e integramos a programação do ano de
2015 do Palco Giratório79, projeto de circulação de espetáculos do Serviço Social do
Comércio – SESC. Exu – A Boca do Universo ampliou nossas plateias, nosso discurso e
principalmente nossa poética. A Rua-Encruzilhada vem dar conta de uma explosão em vários
sentidos e que faz dessa montagem um agente importante para a maturação do fazer cênico do
NATA.
79 Exu – A boca do universo estreou no Jardim de Areia do Vão Livre do TCA e 2014 e circulou em mais três
espaços culturais da cidade Cine Teatro Solar Boa Vista, a Arena do SESC – SENAC Pelourinho e o Centro
Cultural Plataforma com mais de 2.500 espectadores. Fez a abertura do Festival de Teatro Brasileiro – FTB no
Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB em São Paulo (devido à lotação no último dia de apresentação tivemos
que realizar três sessões do espetáculo). Realizamos nova temporada no Espaço Cultural da Barroquinha em
Salvador. Participamos dos festivais FILTE – BA e FIAC – Ba em 2014. O espetáculo foi indicado ao Prêmio
Braskem de Teatro 2015 em quatro categorias: Melhor espetáculo adulto, melhor espetáculo do interior, melhor
direção, categoria especial para Thiago Romero pelo cenário, figurino e maquiagem do espetáculo. Fomos
convidados para participar do Sarau du Brown, evento criado por Carlinhos Brown, abrindo o show Ritual Beach
System sob a direção de Elísio Lopes com cenas dos espetáculos Siré Obá e Exu, além de fazermos pequenas
aparições durante o show. Apresentou-se no I Polo Teatral em Camaçari, festival patrocinado pela Braskem para
indicar os melhores espetáculos do interior da Bahia. Realizou a abertura do Festival Itinerante de Teatro Latino-
Americano Âmbar – FLITLÃ. Também integramos a programação 2015 do projeto Palco Giratório, realizando
33 apresentações do espetáculo Exu em 27 cidades pelo Brasil.
117
3.5.1 – O Orixá
Figura 32 – Orixá Exu do Babalorixá Rychelmy Imbiriba – Ilê Axé Ojissé Olodumare – 2014 – Foto: Andréa
Magnoni.
80
Visão criada para Exu pelo Cristianismo desde o processo colonização impetrado pela Europa quando
missionários ao chegarem ao continente africano sincretizaram a imagem de Exu com a imagem do diabo cristão.
119
Exu é a divindade responsável por fazer cumprir aquilo que foi prometido. É o protetor da
verdade e da palavra empenhada. No entanto, de todas as possíveis definições de Exu, a que
considero melhor é a que ele mesmo faz de si: ―eu sou o infinito mais um!‖, expresso em um
de seus orikis. A partir da junção de outro oriki e um itan de Exu colhidos em conversa com o
babalorixá Rychelmy Imbiriba, Daniel Arcades dramaturgo do espetáculo Exu – A Boca do
Universo, descreve-o da seguinte maneira:
Como descrito no fragmento acima, Exu é uma grande divindade, sua importância
dentro da ritualidade do Candomblé é sem precedentes. Sua presença é sentida desde as mais
simples circunstâncias, como a sensação de dor que um beliscão provoca, quanto ao prazer de
um beijo; em ambas as situações, Exu está presente ao sinalizar que algo diferente acontece
com o corpo. É a poesia da existência, é patrono das encruzilhadas, de todas elas. Está na
passagem, na íris dos olhos. Caso precise de algo, ele está ali, como contam os mais antigos,
sentado à esquerda da porta de entrada.
Para uma melhor reflexão sobre o processo criativo, retomo os três princípios
poéticos abordados na abertura deste capítulo, que melhor podem exemplificar em quais
circunstâncias o grupo progrediu em suas investigações cênicas e de que maneira os citados
princípios geraram procedimentos para a construção da montagem. No que tange as
Narrativas Mito-Poéticas, orientaram, dentre outros elementos, a construção da nossa
81
Para melhor conhecimento da obra, incluí o texto completo nos anexos desta dissertação.
120
dramaturgia. Percebemos que a construção do texto neste espetáculo foi o disparador e
definidor de novos caminhos dramatúrgicos do grupo, como assinala Daniel Arcades:
Quis colocar no texto aquilo que fizemos em Siré Obá, ainda em experimentação de
linguagem cênica. Quis aprofundar a ideia da poesia na cena e da ―cotidianização‖
da palavra considerada poética. A provocação através das imagens construídas pelo
grupo auxiliava na construção do texto quando chegava em casa, e a possibilidade
de ouvir o grupo e refazer as cenas, foi um exercício de escuta para uma atividade
muitas vezes considerada solitária. Meu amor pela poesia, acredito, foi a maior
contribuição que pude dar a este espetáculo. (ARCADES, Entrevista concedida a
pesquisadora, novembro de 2015)
121
Reunidos os diversos materiais, optamos pela criação de um texto que mostrasse Exu
em cinco qualidades82 diferentes: Exu Yangui, o mais velho, o primeiro indivíduo a ser criado
por Olodumare; Exu Enugbarijô, aquele ligado à boca, à comunicação, à fala e aos prazeres
obtidos através da oralização; Exu Legbá, aquele que representa o poder, a liberdade, a
sexualidade; Exu Bará, aquele que rege os movimentos do corpo, que está dentro dos seres
vivos e, por fim, Oseturá, o mais novo, o filho fruto do amor de Exu com Oxum. O texto
configurou-se numa mescla de atmosferas ritualísticas e de cenas de grande interação com a
plateia, dando ênfase à comunicação, principal característica de Exu, a qual desejávamos
destacar.
A escolha por criar um texto poetizado sobre Exu deu a ele uma musicalidade
intensa, pois o texto, além de possuir um grande número de canções, apresentou também um
conjunto de sonoridades, sentidos e significados advindos da tradução e da melodia do idioma
yorubá e da poesia instalada na cena. Não podemos chamá-lo de um espetáculo musical na
acepção que usualmente se define essa forma, mas a música desempenha um papel importante
tanto no texto como na encenação como um todo.
Outra informação sobre a dramaturgia são os momentos confessionais do texto, em
que os atores relatam o seu encontro com Exu, além das narrativas míticas, proporcionadas
pela contação das lendas – a narratividade apresentou-se também de forma depoimental, traço
igualmente presente no texto dos espetáculos Siré e Ogun. Esses momentos contribuíram para
a criação de atmosferas de contemplação e de emoção, uma vez que os relatos dos atores
aproximavam o público e os convocava para conhecerem mais de perto esse Orixá.
O processo de construção da dramaturgia apresentou ao NATA outras possibilidades
de criar, uma vez que nos processos anteriores o texto foi construído previamente e submetido
às experimentações e improvisações em sala de ensaio; Nesse espetáculo, foi construído no
calor da criação e irrigado pelos materiais levantados nos poeirões cênicos, oportunizando a
construção de uma dramaturgia melhor tecida e mais consciente quanto à forma e ao
conteúdo. A busca por uma dramaturgia que consiga alinhar os elementos do Teatro a uma
investigação de cunho cultural e antropológica sobre o Candomblé e a cultura africana ainda
prossegue.
Outros pontos significativos sobre as narrativas Mito-Poéticas para além dos itans e
dos orikis começam a surgir e, a partir da criação da dramaturgia do espetáculo Exu,
percebemos que agora devemos fazer uma pesquisa meticulosa sobre o idioma yorubá, mas
82
Qualidades, aqui, referem-se às diversas formas e campos de ação do Orixá Exu.
122
do ponto de vista do cruzamento entre o yorubá tradicional falado nos Terreiros de
Candomblé no Brasil e o novo yorubá falado após os processos de colonização e pós-
colonização da África. Essa é uma pesquisa para as futuras montagens, onde buscaremos
perceber as nuances das questões políticas, históricas e sociais e seu impacto na composição
da língua. Cruzar esses aspectos do yorubá poderá nos conduzir a uma pesquisa reveladora
das comunicações, interações e redefinições culturais entre o Brasil e o continente africano no
decorrer da história – tudo isso a partir da pesquisa desse idioma.
No que concerne ao Teatro-Ritual, essa montagem apresenta avanços em diversos
campos da encenação, porém me deterei aos elementos concernentes à visualidade (cenário,
figurino, maquiagem e iluminação) e a direção musical e coreográfica, uma vez que o
processo de preparação corporal foi detalhado na abertura deste capítulo. No campo da
visualidade, nosso Ipadê visual estabeleceu diálogos mais conectados nessa montagem.
Existiu um melhor amalgamento desses elementos, pois o ator e diretor de arte Thiago
Romero e também ator e iluminador Nando Zâmbia, por meio de suas pesquisas cênicas
estabelecidas no interior do grupo, trouxeram ao espetáculo Exu uma visualidade que, além de
exuberante, revela Exu em sua majestade e profunda beleza. Como afirma Thiago Romero:
Em relação aos elementos visuais que também atuo como criador, pode-se notar um
aprofundamento na construção da visualidade do NATA, um aprofundamento na
pesquisa sobre a herança cultural africana e como ela está expressa no dia a dia do
povo brasileiro. Em Exu esses elementos foram criados durante o processo. Muitas
coisas dos elementos de figurino, cenário e maquiagem surgiram durante o processo
de criação do espetáculo e foram frutos da nossa pesquisa sobre ancestralidade. Este
mergulho nos propiciou a construção de uma visualidade rica, diversa, como é a
cultura brasileira e africana. Analisando minha trajetória enquanto diretor de arte do
grupo, posso notar um amadurecimento enquanto concepção e escolhas estéticas no
que se relaciona a criação e seleção de materiais, modelagens e formas. Fizemos
uma imersão nas indumentárias ritualísticas africanas e afro-brasileiras e a partir
deste mergulho conseguimos conceber um espetáculo com potência visual, onde
figurino, maquiagem e cenografia revelam, assim como a dramaturgia,
características sobre Exu e também contribuem para a instalação das atmosferas de
ritualidade e interatividade proposta pelo texto e pela encenação. Assim como no
Candomblé a roupa, os adereços não apenas vestem, mas também revelam magia e
encantamentos. E foram a busca destes elementos que orientaram as nossas
escolhas. (ROMERO, Em entrevista concedida a pesquisadora, novembro de 2015).
123
Referências para a criação visual do figurino e da maquiagem do espetáculo Exu – A
Boca do Universo
124
Figura 35 – Surmas – Comunidade da Etiópia – Foto: Internet.
125
Figura 37– Vestimenta do Orixá Exu nas Comunidades de Axé da Bahia – Exu do babalorixá Rychelmy
Imbiriba – Ilê Axé Ojissé Olodumare – 2014 – Foto: Andréa Magnoni.
Figurinos construídos
126
Figura 39 – Figurino dos Exus – Foto: Andréa Magnoni.
127
Figura 41 – Figurino da instrumentista. – Foto: Andréa Magnoni.
128
madeira foi construída para sustentar o totem e os elementos simbólicos dos altares dos
Orixás, como quartinhas, quartilhões, pratos de barro, bebidas e búzios foram colocados de
forma a dar a ideia de um altar para Exu. Com isso, a cenografia propõe colocar o público
num espaço de proximidade, integração e ritualidade e também de reverência a essa
divindade, buscando atrair e não afastar.
Figura 43 – Daniel Arcades e Fernando Santana maquiando-se para o espetáculo – Foto: Andréa Magnoni.
Figura 44 – Antonio Marcelo e Thiago Romero maquiando-se para o espetáculo – Foto: Andréa Magnoni.
No que diz respeito à iluminação, Nando Zâmbia propôs uma luz cenário, uma luz
texto, uma luz ritual. Em diálogo intenso com as diretrizes da encenação, a iluminação trazia
para a cena o poder transmutador do sagrado ao mesmo tempo em que convidava para uma
balada noturna, uma festa com os amigos, colocando no espaço cênico a intimidade da
cerimônia e a liberdade da rua.
130
A iluminação é um elemento de instauração de energia e atmosfera da cena.
Colabora com a construção corpórea dos atores, com as imagens construídas durante o
processo e com o jogo cênico entre os atores e entre eles e os espectadores. É um elemento de
intensificação de visualidade ao dialogar com a indumentária do espetáculo, revelando
nuances e símbolos.
Figura 45 – Imagens que demonstram a grande contribuição da iluminação para a instalação das atmosferas e
das imagens propostas pela encenação do espetáculo – Foto: Andréa Magnoni.
Pintar os sentimentos, mostrar a beleza dessa divindade por meio de uma tradução
pigmentada, os desejos e objetivos de Nando Zâmbia enquanto iluminador traduzem nossos
131
progressos na compreensão de um teatro ritualizado. Também dá pistas do processo de
conscientização técnica e conceitual ao qual estamos passando e explicita a relevância da
iluminação em nossas montagens. Desse modo, a sua participação nessa construção cênica
trouxe contribuições pertinentes e de muita relevância na efetivação do fazer teatral que
buscamos realizar.
Já no que pertence à direção musical e coreográfica, faz-se importante dizer que o
diretor Jarbas Bittencourt, a instrumentista Sanara Rocha e o coreógrafo Zebrinha
estabeleceram mais que um diálogo artístico. Eles criaram uma simbiose cênica que
auxiliaram na criação de uma montagem rica em movimentos, texturas sonoras e explosões
corporais. Num espetáculo em que Teatro e Ritual configuram a base da criação, não há como
segmentar nenhuma linguagem, muito menos a música e a dança. Assim, esses elementos
foram construídos de forma unificada, conjunta, sem nenhum tipo de distinção entre elas, pois
são mantenedores da energia e das imagens construídas pelos atores, conduzem e estimulam
as sensações do espectador.
Para facilitar a leitura e o entendimento deste estudo sobre o processo criativo do
espetáculo Exu, abordarei a concepção desses elementos de forma separada, começando com
a construção musical. Nessa montagem, a música passou por um processo de hibridização
rítmica, no que tange à composição da trilha sonora. Nós juntamos a música popular brasileira
com alguns ritmos africanos como o bravum, agueré e avamunha (ritmos tocados para o
Orixá Exu nas cerimônias do Candomblé), criando um universo sonoro diversificado. Essa
reunião de ritmos tinha como objetivo principal intensificar a comunicação com o público de
forma a não criarmos um espetáculo que só dialogasse com pessoas iniciadas no Candomblé e
assim pudéssemos, além de aproximar o Orixá Exu dos espectadores, mostrar-lhes a riqueza
da musicalidade africana e afro- brasileira e suas reverberações na composição da música
popular no Brasil.
Para a execução da trilha sonora, realizamos um processo de composição de música
executada ao vivo e bases musicais gravadas, criando uma simbiose interessante e dinâmica.
Procuramos criar um tecido musical que fizesse com que o público não diferenciasse o que
era executado ao vivo do que estava gravado; sendo, assim, uma unidade sonora. A música
em nossos espetáculos tem a finalidade de revelar a beleza da divindade a ser encenada, suas
sutilezas, sensibilidades e também estabelecer o encontro ritual.
Dentro da ritualidade do Candomblé, a música tem grande responsabilidade na
condução das cerimônias, principalmente as públicas em que tudo é cantado. É por meio
132
também da música que estabelecemos a comunicação com os planos do visível e do invisível.
Desse modo, almejamos sempre em nossas peças a criação de um universo sonoro que
proporcione aos espectadores uma fruição artística sensorial, ritualizada e que assim como no
Candomblé, crie um ambiente de transcendência.
Em entrevista realizada com o diretor musical do NATA Jarbas Bittencourt e com a
instrumentista Sanara Rocha, perguntei a ambos como definiriam a criação musical do
espetáculo Exu – A boca do universo. Bittencourt traduziu seu pensamento apresentando o
seguinte esquema:
Essa afirmação expõe nossas referências de criação que vão para além da herança
africana presente no interior dos egbés. Partimos da necessidade de estreitar esse contato com
a matriz africana, mas sem a idealização de uma África mítica. Queremos perceber na África
de hoje onde estão os elementos tradicionais da cultura e como essa tradição se mantém na
atualidade.
134
No caso da dança, dividimos o processo de criação em duas etapas. Na primeira,
durante o processo de preparação corporal, mergulhamos no universo do Candomblé ao
treinarmos corporalmente utilizando os ritmos tocados para Exu. Nesse treinamento,
conseguimos apreender a gestualidade, o vigor e as sutilizas, inerentes a essa divindade para
depois passarmos a incorporar fragmentos da coreografia ritual de Exu a experimentações
com outros elementos de dança. A segunda etapa compreendeu o levantamento da coreografia
do espetáculo; nesse momento, nosso coreógrafo Zebrinha uniu o material levantado no
processo de preparação com a sua concepção de coreografia.
A concepção coreográfica de Zebrinha consistiu na criação de um espetáculo
completamente coreografado. Todos os movimentos do espetáculo, os deslocamentos,
avanços e interação com os espectadores foram devidamente pensados por ele. Tudo foi
minimamente coreografado, nada deixou de ser dança. Até nos momentos de maior
espontaneidade dos atores, eles estavam executando uma coreografia. Essa opção deveu-se ao
fato de termos muitas variações rítmicas dentro da peça e pela necessidade de manter uma
pulsação interna que mantivesse o espectador conectado com o espetáculo. A dança, assim
como a música, precisava de um gráfico, de um metrônomo a dar andamento às cenas para
que pudéssemos atingir o chamado ―colorido cênico‖.
Esse colorido para nós tem relação em como a dança se processa nas cerimônias do
Candomblé, pois ao dançar durante o siré, o Orixá conta sua história, seus feitos, suas
derrotas e seus amores; nenhum gesto é à toa, tudo tem um simbolismo muito profundo.
Inspirados pelo sentido da dança no Candomblé, buscamos fazer, na construção coreográfica
desse espetáculo, uma narrativa corporal que contribuísse com a proposta da encenação ao
buscar intensificar as atmosferas criadas e diversificar os pontos de partida para as
construções de cada cena. O colorido se dá por causa da diversidade de elementos, gestos,
movimentos e pulsações criadas tanto pela música, quanto pela dança; um exemplo que
explicita esse colorido pode ser notado na cena do Exu Enugbarijô e na cena de Oxum.
135
Figura 46 – Thiago Romero, Daniel Arcades, Antônio Marcelo e Fernanda Santana – Espetáculo Exu – A Boca
do Universo - Cena de Exu Enugbarijô – Espaço Cultural da Barroquinha – 2014 – Foto: Andréa Magnoni.
Figura 47 – Daniel Arcades, Fabíola Júlia, Thiago Romero, Antônio Marcelo e Fernando Santana - Espetáculo
Exu - A Boca do Universo – Cena de Oxum – Espaço Cultural da Barroquinha – 2014 – Foto: Andréa Magnoni.
136
corpo fala, e nosso fazer cênico busca essa teatralidade que mobiliza todos os sentidos, para
além da linguagem verbalizada assim como propõe Artaud (1985, p. 37):
Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se
faça com que ela fale sua linguagem concreta. Digo que essa linguagem concreta,
destinada aos sentidos e independente da palavra, deve satisfazer antes de tudo aos
sentidos, que há uma poesia para os sentidos assim como há uma poesia para a
linguagem e que a linguagem física e concreta à qual me refiro só é verdadeiramente
teatral na medida em que os pensamentos que expressa escapam à linguagem
articulada.
Ao realizar a reflexão que Artaud (1985) propõe, para nós o corpo e seus significados
vão, durante o trabalho de criação coreográfica de Zebrinha, tecendo, tramando e compondo a
cena, desenhando e comunicando; como ele mesmo diz, ―legendando‖ a divindade. Sobre a
importância do corpo negro na cena e suas implicações, Zebrinha argumenta:
Eu encaro o corpo, eu posso falar do corpo negro, que é a minha praia. Partindo do
princípio que todos os corpos são iguais. Eu acho que o corpo negro é operístico.
Acredito muito na memória desse corpo, tem muitas histórias pra contar. O corpo
negro tem tanta coisa ainda pra dizer e que não foi dito. Acho que tudo em relação a
gente, a cultura. Temos tanta coisa pra falar, que nunca foi dito e nem escrito. Então
por exemplo é muito fácil eu olhar um corpo negro em movimento e dali escrever
um vocabulário só ao observar. Este corpo vem legendado por histórias. Vamos
contar a história de Ogun, por exemplo. Eu acho que na memória do corpo preto, e
que já tem certa compreensão a respeito deste mito, ou da sonoridade. O corpo já
reage assim. Inclusive quando, eu pego essa mesma reação corporal e levo pra outro
contexto musical, por exemplo, este corpo que vai legendar Ogun, dentro de uma
métrica melódica de rock, ou de jazz, ou de blues. Eu acho que o que conseguimos
com isso, é uma leitura contemporânea do que é super ancestral. (ZEBRINHA,
Entrevista concedida a pesquisadora março de 2016).
Por termos muito o que dizer sobre nós negros e sobre a nossa memória ancestral é
que necessitamos compreender esse corpo legendado de história, ativar suas memórias e,
com ênfase nessas reminiscências, apurar a técnica artística, estabelecer os diversos diálogos
e construir um espetáculo que possa ser uma contribuição efetiva na formação da identidade
cultural do artista brasileiro e também da ampliação do universo simbólico do nosso povo.
Perguntado sobre qual é o sentido das montagens Ogun – Deus e Homem e Exu – A
boca do Universo, no que tange a presença do corpo negro em cena, dialogando com a
ritualidade do Candomblé, qual seria o seu pensamento sobre a necessidade de os artistas
negros estarem em cena falando suas histórias, por meio da ritualidade ancestral africana,
Zebrinha pontua:
137
Não é necessidade, é uma obrigação. Muito pouco foi dito a respeito da gente. E nós
somos tão cheios de assunto. Muito pouco é feito. A minha erudição é a erudição
africana. A cultura africana é tão erudita quanto qualquer outra. Não é uma coisa à
parte. Os celtas também são eruditos. Eu acredito nisso. Minhas músicas, danças
originárias da África, sejam elas quais forem é tão erudito quanto qualquer dança
elaborada, criada na Inglaterra, França, Polônia ou Rússia. Nós estamos no caminho.
(ZEBRINHA, Entrevista concedida a pesquisadora março de 2016).
138
Figura 48 – Espaço de estreia do espetáculo Exu – A Boca do Universo – Jardim de Areia do Vão Livre
do TCA – 2014 – Foto: Andréa Magnoni.
Figura 49 – Fabíola Júlia e Fernando Santana – Espetáculo Exu – A Boca do Universo – Centro
Cultural Plataforma – Cena do Exu Bará – 2014 – Foto: Andréa Magnoni.
139
Porém o que nós visamos é mostrar o vigor da tradição ao tornar visível sua atualidade e sua
capacidade de atualização. Em se tratando dessa abordagem, o espetáculo Exu nesse quesito
energizou nossas buscas.
Os diálogos estabelecidos entre os elementos do Candomblé e demais áreas da arte
brasileira como a música, a dança, a moda, a atualização dos mitos do Orixá Exu por meio de
um texto que visou mesclar elementos da literatura teatral e o poder da oralidade ancestral
negro-africana, a utilização de equipamentos tecnológicos que auxiliaram na intensificação
das atmosferas de ritualidade na cena e por fim a necessidade de desestigmatizar essa
divindade, dando ênfase às contribuições da cultura africana e afro-brasileira na constituição
da nação brasileira são elementos que demonstram a importância desse trânsito entre Tradição
e Contemporaneidade estabelecidos para nós no encontro entre Teatro e Candomblé.
A composição Terreiro-Teatro-Academia-Rua contribuiu e muito para que
maturássemos a nossa relação com o princípio Tradição na Contemporaneidade, pois o
contato com as diversas plateias no decorrer do Palco Giratório e nas palestras que realizamos
antes ou após as apresentações colocaram em discussão a relevância da criação de um
espetáculo sobre o Orixá Exu. Diversas foram as problematizações e questões, algumas já
abordadas neste trabalho, e outras surgiram, como a estranheza de utilizarmos um ritmo como
o arrocha84 na cena de Exu Legbá para falarmos de poder por meio do sexo, ou o fato de em
cena os atores que representam Exu estarem calçados com botas e não descalços como nos
terreiros.
Desde a dramaturgia à encenação como um todo, o espetáculo Exu é uma tentativa de
pontuar a presença da ancestralidade negra na atualidade e também de colocar o quanto essa
ancestralidade contribuiu para a constituição do que chamamos contemporâneo. Um dos
pontos importantes a serem abordados nesse sentido tem relação com a recepção do público e
a identificação estabelecida principalmente dos não iniciados no Candomblé ao assistir ao
espetáculo.
No processo de apresentações durante o Palco Giratório, foi de grande importância o
retorno por parte do público sobre o espetáculo e como chegava até ele. O professor, jornalista
84
O Arrocha é um gênero musical e dança brasileira que nasceu na cidade de Candeias (Bahia) em 2001. Veio
proveniente da seresta, influenciado pela música brega e o estilo romântico, com modificações que o tornou,
segundo seus adeptos, mais sensual e eufórico com influências do axé e do forró. O arrocha pode ser romântico
(brega) ou agitado (forró), podendo ser dançado junto com pares (forró e brega) ou sozinho (axé). Maiores
informações: www.portaldoarrocha.com.br.
140
e dramaturgo Marcílio Moraes85 (2015), em seu artigo intitulado Exu – A boca do universo:
Um Teatro do Fogo, do Rito e da Arte, quando da passagem do NATA na cidade de Recife
assim declara:
85
Marcílio Moraes é jornalista, dramaturgo, diretor teatral e professor do Departamento de Artes Cênicas da
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Disponível em blog morpheusteatro.blogspot.com.br.
141
A contribuição de Zebrinha, que, além de coreográfo é ogan do Ilê Axé Obá Inan há
vinte e um anos, fez-nos perceber que continuamos em processo de aprendizado sobre esse
fazer, mas que o caminho escolhido é significativo. Ele argumenta que:
Viajando pela África, eu vejo que nada disso é tabu, nada disso é escondido, nada
disso é só segredo. Um babalawô me falou no Benin que: ―se você quiser falar sobre
tradição, venha, você tem muito a aprender comigo. Se você quer falar sobre
religião, eu não sei nada. Por que religião você vai nascer em uma, vai escolher
outra e quando morrer alguém vai mudar sua religião. Só que sua tradição está em
você para sempre‖. É disso que eu falo. A minha prática religiosa na verdade é a
prática da tradição. E dela eu posso fazer o que eu quiser. E depois se eu mesmo
pego a minha religião e transformo em arte, eu acho que nada melhor para fazer as
pessoas entenderem, para divulgar de maneira respeitosa. Eu preparo todo um texto,
um cenário para apresentar as qualidades da minha tradição. É isso o que eu faço.
Cada espetáculo que faço é para apresentar aos olhos dos leigos e dos não leigos o
que a minha tradição tem de plasticidade e de mais bonito (ZEBRINHA, Entrevista
concedida a pesquisadora, março de 2016).
142
4 ASPECTOS CONCLUSIVOS
Figura 50 – Antonio Marcelo e Fernando Santana no espetáculo Exu – A Boca do Universo – Centro de Cultura de Alagoinhas – 2015 – Foto:
Nando Zâmbia.
A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e
que se encontra latente em tudo o que no transmitiram, assim como o
baobá já existe em potencial em sua semente.
(Tierno Bokar)
O Candomblé e o Teatro são as duas espirais em que giro, no ritual de ser sacerdotisa e
ser artista. As intersecções entre estes dois espaços e formas de expressões humanas pululam
em mim e norteiam as escolhas pessoais e profissionais. Voltear no tempo, compreender o
percurso, avivar a memória da criação, retomar e rever os ensinamentos dos grandes mestres
que tenho a sorte de ainda estarem aqui, no plano da materialidade, e com o ori e o okan
cheios de Exu fazendo parte da minha vida, foi uma experiência enriquecedora e com certeza
trouxe maturação.
Como diz minha orientadora Sonia Rangel ―O conhecimento é uma aventura alegre,
pelas motivações e implicações imprescindíveis no engajamento do sujeito ao eleger seu
objeto de desejo a conhecer.‖ (RANGEL, 2015). E na alegria desta aventura, pude estudar e
aprofundar meus conhecimentos acerca dos elementos fundamentais para a criação do Teatro
que defendo. Ao atualizar o caminho, vi nas paisagens das lembranças e nos encontros
estabelecidos mais pistas para um amadurecimento pessoal e artístico.
Encontrei respostas para alguns dos questionamentos que me conduziram até aqui,
compreendendo hoje melhor em que medida o Candomblé pode contribuir na formação do
artista, ao conduzi-lo a uma imergência e encontro com sua ancestralidade cultural africana,
sendo este encontro um grande disparador para a criação, tanto no sentido técnico, quanto
ético e poético. Creio ser possível a construção de um projeto poético para a cena teatral a
partir da vivência no Candomblé e da absorção dos elementos plásticos, sonoros e temáticos
para o Teatro, sem que isso fira e interfira nos fundamentos e preceitos desta comunidade
religiosa. Uma vez que, ao estudar o processo criativo dos espetáculos Siré Obá – A festa do
Rei, Ogun – Deus e Homem e Exu – A Boca do Universo percebi que este vem sendo o
caminho que o NATA perseguiu nestes espetáculos e as reverberações das citadas montagens
e suas contribuições no processo de preservação e divulgação do legado cultural negro podem
ser consideradas tentativas bem sucedidas na construção de um projeto político-poético.
146
O processo do mestrado, ao invés do que já ouvi dizer, não me ―enlouqueceu‖ e sim
me trouxe mais gana para encenar, estou com a ―sacola cheia‖, preciso gastar, ou seja,
exercitar na prática as leituras que neste processo ampliei. Processo de retroalimentação entre
prática e teoria que fortaleceu o pé e apresentou novas estradas, pretendo palmilhá-las. Chego
ao fim desta escrita e digo que não há respostas, há proposições, caminhos, encruzilhadas a
serem desvendadas. Há uma riqueza cultural enorme que compõe a diversidade deste país e
não faz sentido algum não nos apercebermos deste valoroso patrimônio.
Enquanto encenadora mergulho cada vez mais nesse mar inusitado, sinuoso e povoado
que é o fazer teatral, porém, não antes de saudar Olokun (Divindade dos oceanos) e contar aos
espectadores que se dentro do mar tem rio, dentro de mim tem Omolú e Yemanjá a unir os
mares da arte e da fé na procura de novos mares onde Olodumare quiser.
147
REFERÊNCIAS
148
Figura 51 – Antonio Marcelo no espetáculo Exu – A Boca do Universo – Centro de Cultura de Alagoinhas – 2015 – Foto: Andréa Magnoni.
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151
GLOSSÁRIO
152
Figura 52 – Thiago Romero, Daniel Arcades e ao fundo Fernando Santana – Exu – A Boca do Universo– Centro de Cultura de Alagoinhas – 2015
– Foto: Andréa Magnoni.
GLOSSÁRIO
ADUPÉ – Obrigado.
ADJÁ – Sineta utilizada nos rituais do Candomblé para a invocação dos Orixás.
AGOGÔ – Instrumento de metal composto por duas câmpulas, utilizado nos rituais públicos e
internos do axé. Seu som geralmente é agudo e serve para manter o compasso das músicas
entoadas.
BABÁ – Pai.
BESSEN - Divindade jeje que representada pela serpente e pelo Arco-íris, simboliza a
riqueza e a prosperidade.
153
C
EGBÉ – Comunidade.
EKEDIS – Assistente cerimonial feminina que não entra em transe, responsável por zelar
pelos filhos de santo, quando eles estão em transe ritual, pelas vestimentas e indumentárias,
pela preparação da comida festiva e da comida ritual e pela organização do egbé para as
cerimônias.
ERÊS – Entidades infantis que são guiadas por Ibeji e corresponde a criança que o Orixá traz
no processo de iniciação e que fica nos momentos que o filho de santo não está no transe do
Orixá.
EXU – Orixá mais importante do panteão iorubá cultuado no Brasil. Senhor da comunicação
entre todos os planos e todas as pessoas, é ligado à liberdade e é responsável pela alegria,
prazer e harmonia.
154
I
IBEJI – Divindade yorubá ligada à infância, são as Orixás gêmeos, ligados à renovação.
ILÊ AXÉ MAROKETO – Comunidade de axé de nação Ketu, liderada pela yalorixá Cecília
Soares, localizada no Engenho Velho da Federação, em Salvador, Bahia.
ILÊ AXÉ OJISSE OLODUMARE – Casa do Mensageiro, comunidade de axé de nação Ketu,
liderada pelo babalorixá Rychelmy Imbiriba, localizada na localidade de Barra do Pojuca, em
Camaçari, Bahia.
ILÊ AXÉ OLO T´OGUN – Comunidade de axé de nação Ketu, liderada pelo babalorixá
Margio d´Ogun, localizada em Barra do Pojuca, em Camaçari, Bahia.
ILÊ AXÉ OPÔ AFONJÁ – Comunidade de axé de nação Ketu, uma das mais antigas do país,
localizada no bairro do Cabula, em Salvador, Bahia, liderada pela yalorixá Mãe Stella de
Oxossi.
ILÊ AXÉ OXUMARÊ – Comunidade de axé de nação Ketu, uma das mais antigas do país é
liderada pelo babalorixá Pecê. Fica localizada na Av. Vasco da Gama, em Salvador, Bahia.
ILÊ AXÉ OYÁ L´ADÊ INAN – Comunidade de axé de nação Ketu, liderada pela yalorixá
Mãe Rosa d´Oyá. Fica localizada na cidade de Alagoinhas, Bahia.
ILÊ AXÉ YÁ NASSÔ OKÁ – Comunidade de axé de nação Ketu, uma das mais antigas do
país, chamada também de Casa Branca, é liderada pela yalorixá Mãe Tatá, fica localizada na
Avenida Vasco da Gama, Salvador, Bahia.
155
JEJE-NAGÔ– Etnia que corresponde às comunidades de axé de nação ioruba e fon.
LOGUNEDÉ – Divindade yorubá, filho de Oxóssi e Oxum, que herdou traços dessas duas
divindades; princípe de Ketu.
MACULELÊ – Dança folclórica afro-brasileira que corresponde a uma batalha, em que duas
ou mais pessoas dançam/lutam carregando em suas mãos duas grimas (bastões de madeira) ou
dois facões.
NANÃ – Divindade responsável pela lama da criação com a qual Oxalá criou a humanidade.
OBÁ – Divindade yorubá, ligada à caça e à guerra; rainha do reino africano de Ilecô.
OGÃ – Assistente cerimonial masculino, que não entra em transe, responsável junto com a
ekedi da arrumação do egbé para as cerimônias. É também responsável pela manutenção dos
instrumentos musicais e por tocá-los nos rituais e de coordenar os rituais de sacrifícios de
animais.
OKAN – Coração.
156
OMO NÁÀ FÉ - A criança está só.
ORI – Cabeça.
ÒSUMARE– Divindade yorubá, representada pela serpente e pelo arco-íris, que simboliza a
riqueza e a prosperidade.
OXUM – Divindade yorubá ligada à maternidade no que tange a gestação e parto; senhora da
beleza e do amor.
SAWO – Ver.
SIRÉ OBÁ – Festa do rei. Cerimônia pública em que são reverenciados os Orixás.
TEMPO – Divindade banto que representa a grande árvore sagrada; chama-se Intembua.
TERREIRO MOKAMBO – Comunidade de axé de nação banto, liderada pelo Tatá Anselmo,
localizada no bairro do Trobogy, em Salvador, Bahia.
YÁ – Mãe.
IPÀDE – Encontro.
158
APÊNDICES E ANEXOS
159
Figura 53 – Fernando Santana – Exu – A Boca do Universo– Centro de Cultura de Alagoinhas – 2015 – Foto: Andréa Magnoni.
APÊNDICE I – MODELO DE QUESTIONÁRIO APLICADO PARA A PESQUISA
QUESTIONÁRIO
Nome:..........................................................................................................................
Nome Artístico:.............................................................................................................. .
Função no espetáculo:..................................................................................................
Prezados colaboradores:
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater com o
público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Salvador,..../..../ 2015.
160
APÊNDICE II – QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
A montagem é um ato estético-político. Falar sobre esse tema, em específico sobre esse orixá, é ir na contramão
das ações reativas da emergente onda conservadora brasileira. Significa enquanto negro contar sua versão da sua
história, descontruindo ―verdades‖ e dissuadindo até mesmo a comunidade negra a respeito de si mesma. Minha
contribuição foi como pesquisador e ator.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
Não houve desconfortos ou problemas relevantes nem no fazer nem no debater o espetáculo. Destaco o
desconhecimento das pessoas em relação ao orixá Exu e o estranhamento de algumas com a apresentação dele
com elementos de realeza, diferente do que geralmente é apresentado na mídia.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
O aprendizado não apenas em relação ao ofício de artista, mas principalmente em relação à cultura brasileira e
suas pluralidades, o que viabiliza, entre outras coisas, o aprendizado em relação ao ser humano e sua
complexidade.
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
‗Exu, a boca do universo‘ apareceu como uma grata surpresa na formação artística do grupo e na ideia de
entendimento de como queremos trabalhar. Montar este espetáculo significou definir caminhos para o percurso
artístico de cada um e do próprio NATA. Percebo que, se antes acreditávamos que o valor empírico estava acima
de qualquer coisa, hoje colocamos a intuição artística no mesmo pé da técnica. Exu é um espetáculo que se
mostra amadurecido pela qualidade técnica e pelo cuidado de todas as áreas e ainda assim, extremamente
sensorial. Esse amadurecimento refletiu muito para mim no pós-estreia, devido à responsabilidade a partir do
momento que o público aumentava e circulávamos por públicos diferentes.
Sobre a minha contribuição no trabalho, enquanto dramaturgo, acredito muito na construção do texto de Exu
como um disparate definidor de uma pesquisa sobre o entendimento do formato da dramaturgia do grupo. Quis
colocar no texto aquilo que fizemos em ―Siré Obá‖ ainda em experimentação de linguagem cênica, aprofundar a
ideia da poesia na cena e da ‗cotidianização‘ da palavra considerada poética. A provocação através das imagens
161
do grupo para a construção do texto, quando chegava em casa, e a possibilidade de ouvir o grupo e refazer as
cenas foi um exercício de escuta para uma atividade muitas vezes considerada solitária. Meu amor pela poesia,
acredito que foi a maior contribuição que pude dar a este espetáculo.
Enquanto ator, esse processo foi muito provocativo, pois logo percebi que o trabalho que era sugerido no texto
pedia uma técnica que eu não tinha para a cena: cantar, dançar com células mais definidas e estar em cena com
controle e ironia o tempo inteiro eram características que me deixaram com a estima lá embaixo, por não
perceber como poderia contribuir para a cena. Mas acredito que foi justamente a garra, após a percepção dessa
falta, a minha contribuição enquanto intérprete na cena; a dedicação com aulas particulares de canto; a
necessidade de, mesmo com um corpo pouco trabalhado, estar inteiro nas cenas durante o ensaio e,
principalmente, na construção de imagens junto aos outros atores no poeirão cênico. Essa eu acho que foi a
maior contribuição enquanto ator: a possibilidade de ser mais um no elenco e trabalhar em unidade com todos os
colegas para a construção de imagens colaborativas e possíveis para a obra.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
Com relação ao público, acho que tocar na própria temática já causaria desconforto. Falar de ‗Exu‘ até para
quem já tem certo conhecimento sobre a cultura do candomblé e sobre o processo histórico que foi dado a este
orixá é um desafio complexo. Resolvemos não desafiar o público, mas apresentar a nossa versão dos fatos.
Queríamos justamente o contrário: trazer para o público o conforto da felicidade associado a Exu e pitadas de
provocações sociais. É um espetáculo que pode causar desconforto pela percepção da falta de conhecimento
sobre este assunto e de quebra de paradigmas de valores morais cristianizados, mas não pela apreciação da obra.
Exu foi feito para ser um desbunde aos olhos e aos ouvidos do público, queríamos uma sonoridade de palavras
prazerosas (inclusive no que tange ao baixo calão) e uma visualidade deslumbrante – acho que conseguimos.
Chegar a este ponto do espetáculo é que causou desconforto na equipe durante toda a feitura, pois enquanto não
experimentávamos isso com o público não tínhamos esta noção tão bem definida.
Existiram desconfortos daqueles que não aceitaram não ver o Exu do barracão de candomblé em cena. O nosso
Exu era teatral, usava botas, falava como sujeitos da rua, bebia, fumava, dançava, se apaixonava. Ouvimos de
uma parcela bem pequena que aquilo não era Exu, mas tínhamos em contraponto a isso uma popularidade e uma
recepção tão positiva sobre o nosso modo de contar a história do orixá que podemos dizer que praticamente não
houve reações negativas ao trabalho. Os debates eram muito voltados para o assunto do espetáculo e pouco sobre
o fazer artístico; ali, percebíamos que as pessoas realmente queriam saber mais, se sentiram provocados com o
trabalho a ter sede sobre essa história, sobre essa percepção.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
A unidade de trabalho. Acho que o entendimento da estrutura do grupo faz com que consigamos uma unidade no
fazer artístico que só nos leva a amadurecer a cada momento. Apesar de ser dramaturgo do grupo, o que em um
teatro tradicional estaria em um patamar importantíssimo, sou mais um dele, estou no entre, assim como todos.
Assim como a encenação, como a direção musical, como a produção do espetáculo, como o elenco – onde
também estou –, o coreógrafo, o iluminador. Entendemo-nos enquanto rede de um diálogo que respeita suas
hierarquias, mas não as teme. O NATA ainda precisa aperfeiçoar muita coisa, filosoficamente, artisticamente e
na administração, mas a vontade do labor e a falta de medo na hora de encarar seus trabalhos nos leva a um
processo que é simples: nos encontramos para fazer teatro. E para fazer este teatro que queremos levar à cena.
Sinto-me provocado pelo grupo e sei que provoco também, isso nos leva a continuarmos juntos pesquisando
nosso fazer estético e nossa poiesis. Acho que é a disponibilidade para estarmos em unidade que mais contribui
para a potência criativa do grupo.
162
NOME: FABÍOLA JULIA BARBOSA
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
Sou de candomblé desde muito pequena e sempre ouvir as pessoas falarem com muito receio de Exu. Esse orixá
é muito temido, mas de uma forma negativa. A ele é atribuído tudo de ruim que se possa imaginar. As pessoas
que são de axé não sabem quem é Exu de verdade.
Desmistificar Exu.
Exu está dentro de você mesmo que você não saiba ou não queira.
A montagem de Exu foi de fundamental importância para sanar a falta de entendimento e conhecimento, assim o
processo de pesquisa me ajudou a compreender a grandiosidade de Exu. Desmistificar esse imaginário que se
tem em relação ao candomblé e especificamente Exu.
Outro ponto fundamental foi ver a plateia repleta do povo negro. Fazer este espetáculo para o nosso povo,
colocar o orixá como protagonista da cena. Peça de preto pra preto.
Contribuições
Dar vida à parte mais humana de Exu e costurar todas as peripécias deste rei.
Mostrar a força da mulher nesse jogo que é a nossa celebração a vida. Estar em cena com quatro homens me fez
entender o grande poder feminino.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
163
Sou atriz?
Houveram vários desconfortos nesse processo. Exu me desnudou completamente, me fez perceber várias
fragilidades no trabalho de atriz e na vida pessoal. Fiquei à flor da pele o tempo inteiro. Sentia a minha pele
avermelhar e meu corpo tremer. Ali eu tive que controlar o meu emocional diariamente.
Percebo que existe uma mulher antes e depois de Exu. Este processo me fez virar mulher e entender que não
tinha mais espaço para a adolescente que existia dentro de mim. Agora tem que aparecer a mulher que tem
dentro de você. Aparecer a mulher significa enfrentar a vida de uma outra forma. A vida te pede mais
amadurecimento e esse amadurecer dói.
Estava ali exposto as fragilidades, os problemas, as renúncias, as dúvidas, as promessas e a falta de amor. Tive
que entender tudo isso que estava presente em mim para poder entender Exu e falar dele. Exu me colocou à
prova.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Entrei no NATA muito cedo e não sabia o que eu queria pra minha vida. Existia na época muitas dúvidas em
relação à carreira. Com quinze anos você não sabe o que você quer comer, imagina o que você vai fazer para o
resto da vida ou por um bom tempo. Foi aqui que eu aprendi que eu podia ser muita coisa.
Um das reflexões que tenho é sobre o meu papel na sociedade. Eu sou uma mulher negra, sou de axé e sou atriz.
O que faço com tudo isso? Todo o meu processo junto ao NATA hoje parte dessa indagação.
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
A montagem desse espetáculo, dentre outras coisas, é um ato político de muita coragem. Falar de um orixá tão
cercado de preconceitos e discriminação é, sem dúvida, um salto contra a demonização que é feita em cima dele
e também, ao mesmo tempo, um fortalecimento de nossa cultura ancestral. Exu que simboliza o movimento do
mundo, tem sua imagem distorcida pelo mundo ―dominado‖ pela Igreja católica e por tendências televisivas que
sempre o caracterizaram como o demônio, aliando seu tridente (amuleto sagrado de poder) a um instrumento
para cutucar a alma dos mortos que vão para o inferno. Eu represento um dos caminhos de Exu nesse espetáculo
e interpreto Exu Bará. Um Exu responsável pelo movimento do corpo. Diante de estímulos da Direção, da
música, da coreografia no processo de construção pude expor com inteireza, dentro de uma condução feita pela
Diretora, as vertentes corporais que essa divindade proporciona.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
O Desconforto surgiu muito mais no processo de construção. Quebrar paradigmas é sempre uma tarefa árdua.
Como ator, sou um fiel apaixonado pelo texto, até porque também sou Dramaturgo. Trazer as palavras nos
gestos do meu corpo foi um desafio apaixonante que, em vários momentos, me trouxe uma certa angústia que se
resolveu no produto final. A lascividade, a picardia, a astúcia existentes nesse Orixá foram todos transpostos para
o corpo que se moldou de acordo com os estímulos do corpo artístico construtor da peça.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Observação. Essa foi a palavra que mais me norteou. Entender os diversos mecanismos de dominação existentes
no mundo me trouxe novos horizontes e caminhos artísticos.
164
O NATA exige a reflexão 24 horas. E foi uma das coisas que mais fiz nesse percurso pelo espetáculo. Agradeço
ao NATA por todo aprendizado e carinho. Axé!!
Salvador,15/10/ 2015
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
A montagem do espetáculo ―Exu – A Boca do Universo‖ representa para mim em sua completude a vontade
vertical de representação. Conjuntamente com a desmistificação da figura da divindade Exu, tivemos algo ainda
mais positivo: trazer a discussão sobre a representatividade de filhos e filhas de Orixá que enxergam no
espetáculo Exu uma potente plataforma de representatividade, que retira dos guetos da discriminação a
autoestima de ser do Candomblé e aflora-a em suas conversas e até mesmo conhecimento sobre a divindade.
No que tange à minha contribuição, enxergo que ficou toda ela, como iluminador, condicionada em revelar
nuances sensíveis de uma megatela em movimento. ―Exu‖ é uma incrível obra dinâmica que se apropria das
personalidades que a compõe.
Inicialmente, temi por talvez não conseguir dar a dimensão da obra que fui desafiado, por que foi um desafio, a
iluminar e contribuir. Costumo dizer que o espetáculo é um quadro de imensas proporções que se apresenta com
todas cores e que nós, iluminadores, somos responsáveis por retirar o excesso e acentuar os pontos que os pincéis
– atores, encenadores, diretores musicais, cenógrafo, figurinistas e colaboradores – pintaram. Em ―Exu‖ não foi
diferente, tinha ali uma profusão de cores e traços que se emaranhavam na exuberância inerente à divindade ali
homenageada e que precisava de contornos expressivos e tradução pigmentada. Minha função foi pintar os
sentimentos e (des)colorir a moldura do quadro repleto de linhas e cores.
Para além da função primordial de iluminador, tive a atenção de que meu trabalho também era responsável por
mostrar a beleza dessa divindade que tanto foi vilipendiada e demonizada ao longo da colonização e pós-
colonização europeia.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
O público sempre, ou na maioria das vezes, demonstrava surpresa por ter visto um espetáculo que falava tão
poeticamente de Exu, que tinha um tratamento estético apurado para revelar as cores e traços daquele Orixá,
comigo não foi tão diferente. Mesmo sendo do Candomblé, confesso que fui tomado por algumas surpresas
durante o processo. A Colonização está tão presente no nosso dia a dia que às vezes não nos damos conta da
beleza do que está no nosso lado, ou faz parte da gente, e sempre olhamos para o externo.
A minha participação efetiva no espetáculo se deu pós-estreia, quando a direção resolveu levar o espetáculo para
a caixa cênica e não mais em espaço aberto, como era o desejo inicial. Então, diante da peculiaridade tomei o
primeiro contato concreto com a obra como público e depois como iluminador e foram nas discussões durante o
Palco Giratório que as minhas impressões foram pluralizando-se e tomando formas mais abrangentes. Já não
mais sentia que o espetáculo servia como desmistificador somente, mas entendia que se criava ali um referencial
ético/poético de uma cultura que remonta séculos de história, mas sofre por outros séculos de
descontextualização, pré-conceito e racismo.
Percebi que foi deixado de lado a ―conscientização pelo horror‖, que o espetáculo se estabelecia por outro viés
de cognição e tocava no público bem mais profundo do que se tivéssemos repetido a fórmula de demonstrar
vulnerabilidade para atrair a consciência. Exu parte por outro campo, mais eficiente; ele instiga a revelar a beleza
estética, cultural e política do povo afro-brasileiro, ele contorna as certezas do povo desconhecedor da religião
165
ancestral africana, aqui no Brasil chamada de Candomblé, e vai além quando se propõe falar do ser humano e
divindade os dois entrelaçados, complementares.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
O NATA surge de anseios de estudantes alagoinhenses em discutir filosófica e politicamente a nossa Cidade,
Estado e País. Tenta entender as mazelas humanas por outros caminhos, entender as razões que constroem a
discriminação e o pré-conceito. Esses jovens criam para outros jovens a referência de que é possível a discussão
saudável desses temas e, o mais importante, de que é possível se entender dentro dessas discussões e gerar um
melhor encaminhamento para homens e mulheres que sofrem por descaso, discriminação, pré-conceito e
racismo.
Faço parte da juventude que viu o NATA ser criado e conseguiu se enxergar dentro das discussões de forma
problematizante e não conformada. É óbvio que esse sentimento te impulsiona para um busca de entendimento
da sua história e isso te transforma radicalmente. O autoentendimento somado à minha personalidade constrói
um homem em busca de caminhos diferentes para o entendimento do estar e ser no mundo.
Dado o panorama acima de mudanças e autoentendimento integro-me ao NATA com o intuito de dinamização
do discurso do Grupo. Sou por natureza inquieto e estou sempre em constante dinâmica entre o NATA e outras
realidades.
Internamente, enxergo a dinamização da parte técnica, tenho levado ao grupo a construção de uma relação mais
direta com questões do universo técnico, que normalmente são ignoradas ou diminuídas. Os trabalhos de ator,
iluminador e técnico de iluminação servem ao grupo de forma igualitária, sem hierarquia de importância e isso
faz do NATA um potencial nas individualidades, por absorver o melhor de cada integrante e fazer desse do
Grupo um mosaico complexo de potencialidades.
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
Bom, é difícil eu definir em tão pouco tempo e linhas o que significou a montagem do espetáculo ―Exu: A Boca
do Universo‖, me limito a afirmar que foi, decerto, um divisor de águas na cena teatral soteropolitana. Sem
pretensões e não somente porque participei do projeto de criação do ―Exu‖ afirmo isso, mas por tudo o que ele se
propôs a dizer, pela forma como disse e para o público-alvo que moveu ao teatro: a comunidade negra, de axé e
periférica. Penso que foi uma das obras teatrais mais significativas para Salvador entre 2013 e 2014 e tenho
orgulho de ter participado disso.
Bom, penso que a minha contribuição para o processo de montagem do espetáculo ―Exu: A Boca do Universo‖
se reflete inteiramente em questões que dizem respeito à sua musicalidade. No domínio técnico do que era
necessário dominar para o processo, no estudo particular para construir os estímulos sonoros durante o processo
de criação, na cocriação musical concedida pelo diretor musical do espetáculo durante a minha execução. Muitas
vezes, ele me mostrava o caminho para o qual apontava e me deixava construir aquilo que eu achava pertinente a
partir do estímulo dele na manutenção dos instrumentos musicais do espetáculo e na manutenção das células
musicais do espetáculo, de canto e de ritmo, no registro da metodologia de criação do espetáculo.
166
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
Bom, dentre muitos pontos relevantes que foram surgindo e ampliando a minha concepção do que o espetáculo
―Exu - A boca do Universo‖ abordava não posso me furtar de estreitar minhas observações a dois aspectos que
tocam na minha pesquisa individual, mesmo fora do grupo, voltada para o estudo de novos métodos de criação
musical e exercício vocal na cena e sobre feminismo negro.
A primeira diz respeito muito mais a uma observação minha com relação ao processo de criação da
musicalidade do espetáculo ―Exu‖ e do seu resultado final – isto se é que posso me referir assim sobre um
elemento técnico de uma arte efêmera como o teatro ―resultado final‖.
Dentro da nossa pesquisa para a construção do espetáculo e ao longo do processo de direção de Jarbas
Bittencourt bem como em momentos de diálogo com a plateia durante a trajetória do espetáculo em sua
circulação dentro e fora de Salvador, era recorrente falarmos de buscar referências africanas para a criação
musical, não somente afro-brasileiras; referências técnicas de canto, de treinamento vocal e de construções
rítmicas que modificassem a lógica de construção e treinamento vistos na academia, predominantemente de
referencia clássica europeia. Ainda que não tivéssemos muito a nosso favor para investigarmos uma nova
proposição, pois contávamos com pouco tempo, diversas atividades culturais de ocupação, um preparador vocal
formado pela academia, um diretor musical também formado pela academia e que pesquisa música afro-
brasileira e tendo como ponto de partida o próprio hibridismo do candomblé.
Em minhas observações pessoais acerca do que construímos no ―Exu‖ e anteriormente no Siré Obá - A festa do
Rei‖ e do método coordenado pela direção geral do espetáculo, a qual coaduna criação musical e movimento,
iniciei um processo de investigação e comparação com a metodologia de criação musical de uma tribo africana
do Gabão. Depois do espetáculo já estar pronto, a partir de meus escritos individuais e de memórias do processo,
percebi que a metodologia de criação musical estabelecida por Fernanda Júlia na criação dos espetáculos do
NATA não difere tanto da forma com a qual aquela referida tribo constrói ou exercita musicalmente, exceto no
que diz respeito ao tempo; para aqueles não existe, pois a música trata-se de uma prática coletiva cotidiana e, no
caso do Exu, visávamos um produto artístico em um prazo específico para estrear. E exceto também pelo
resultado estético vocal de ambos os grupos, mas em método o que Fernanda propõe com o desenvolvimento da
―Ojuinan‖ é sobretudo um processo de vivência e convivência que resulta em um produto, em material cênico e
musical o qual poderá ir para a cena ou não. Assim, como entre os Pigmeus do Gabão, a musicalidade gerada de
forma empírica, que mais tarde foi direcionada para um objetivo estético cênico almejado pelo Diretor musical e
pela direção geral do espetáculo já foi construída de uma forma intuitiva, fruto de uma prática coletiva, de um
movimento espontâneo do corpo que gera uma vocalidade tal, ou uma sonoridade tal etc. O que me leva a pensar
que possivelmente o NATA vem construindo, paulatinamente, também um método de criação musical mais
livre, com uma técnica vocal coadunada à criação corporal e a práticas corporais e vivências coletiva, o que traz
à criação musical um sentido de ritualidade cotidiana. Não que na criação do Exu o trabalho de preparação vocal
de um profissional tenha sido dispensado, não foi; a propósito, tivemos quatro contribuições bastante
significativas. O que quero dizer com isso é que esse é um dado que venho observando na metodologia de
criação do grupo, que pode vir a se tornar um método de criação e preparação também vocal e musical a ser
experimentada em outras produções vindouras.
Minha segunda consideração é mais voltada à reflexão suscitada pelo público do espetáculo, sobretudo em sua
circulação nacional no projeto ―Palco Giratório 2015‖. Em um dado momento do espetáculo, ―Exu: A Boca do
Universo‖ surge uma cena onde as três figuras femininas do grupo assumem os atabaques (tambores do axé),
enquanto as quatro figuras masculinas dançam ao toque primordial da cerimônia do axé, a arramunha (ou
avamunha). Essa cena ainda tem provocado muitas discussões acerca da restrição das mãos femininas nos
tambores do axé nas cerimônias litúrgicas e sobre como o grupo subverte tais restrições em um espetáculo que
trata justamente do mais controverso dos orixás: Exu. É interessante observar que essa cena não foi concebida
assim, com três mulheres à frente do atabaque enquanto os orixás dançam, mas ela foi se configurando assim por
necessidades técnicas que surgiram no caminho. E não tínhamos percebido o quanto essa cena era política e
refletiam questões vigentes do nosso tempo, até termos a primeira observação apontada por uma espectadora,
seguida de outra, de outra…Exu, como a própria obra teatral, nos mostrava que ainda haviam dimensões a serem
atingidas com o discurso do espetáculo, condizentes com o momento que vivemos: o de desconstrução de
padrões de gênero. Essa cena trouxe para o grupo, a propósito, o dado de que em algumas tradições de axé a
restrição feminina a frente dos tambores sagrados, não existe. É um número ínfimo, de fato, mas a exceção
suscitou o desejo de discutir um pouco mais a respeito da regra, e era um dado novo para o grupo também. Logo,
o tema se tornou recorrente nos bate-papos pós-espetáculo durante a circulação e tem sido atualmente meu
objeto pessoal de pesquisa dentro do grupo NATA.
167
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Junto ao NATA o que é mais significativo para mim, enquanto artista, é a possibilidade de investigação musical
num sentido muito mais próximo da etnomusicologia, de investigação antropológica da música. Investigar
métodos de criação musical desconhecidos, ou melhor, investigar a possibilidade de construir música a partir de
um ―Não-método‖, que é muito próximo de como algumas tribos africanas ainda concebem música, como uma
prática diária, coletiva; investigar isso no intuito de construir essa metodologia mais livre, que dialoga sobretudo
com o entendimento individual musical do intérprete e direcionar isso para a cena, posso dizer que é o que tem
sido mais significativo na minha investigação a partir de estímulos do grupo. Observar as correspondências entre
o que fazemos e investigamos musicalmente com o que é de origem africana seja tradicional e litúrgica ou
popular, estudar metodologias de criação da cena através de estímulos musicais, me dedicar a pesquisa de
instrumentos musicais de origem africana e ao conhecimento técnico de execução destes para utilização em
espetáculos teatrais, enfim. Poder me dedicar a investigação musical africana, sobretudo ao universo percussivo
de origem africana é o meu interesse e o que tenho feito de mais significativo dentro do grupo NATA.
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
Acredito que o espetáculo Exu tenha sido um processo de sofisticação para o discurso estético e político do
NATA. Entendendo que o processo do espetáculo tenha sido um momento de aprofundamento dos
procedimentos que já tinham sido trabalhados anteriormente em espetáculos como Siré Obá e Ogum.
Minha contribuição se dá em dois aspectos. No que tange a atuação, vale ressaltar que em todo o processo o ator
é provocado a se colar em cena como um artista que contribui na construção, que cria e que sugestiona
criativamente a sua posição em cena. Aqui temos um ator-criador, ativo e político que aprofunda e se coloca
perante a encenação. Suas posições estéticas e políticas são ferramentas essenciais que contribuem na obra.
Em relação aos elementos visuais que também atuo como criador, pode-se notar um aprofundamento na
construção da visualidade do NATA, um aprofundamento na pesquisa sobre a herança cultural africana e como
ela está expressa no dia a dia do povo brasileiro. Em Exu, esses elementos foram criados durante o processo
criativo; era importante que os profissionais que atuavam tecnicamente no espetáculo estivessem presentes nos
ensaios. Muitas coisas dos elementos de figurino, cenário e maquiagem surgiram durante o processo de criação
do espetáculo e foram frutos da nossa pesquisa sobre ancestralidade. Este mergulho nos propiciou a construção
de uma visualidade rica, diversa, como é a cultura brasileira. Analisando minha trajetória enquanto diretor de
arte do grupo, posso notar um amadurecimento enquanto concepção e escolhas estéticas no que se relaciona a
criação e escolhas de materiais, modelagens e formas.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
O NATA em seu modelo e/ou método de criação cênica sempre leva em consideração sua relação com
espectador, entendendo que o olhar do público contribui na construção do espetáculo. É interessante ressaltar que
em EXU o público é agente e não passivo do espetáculo e isso potencializou a debate da peça. Era importante
que o espetáculo chegasse ao espectador, que gerasse uma reflexão a cerca da divindade EXU. E, com uma
168
estrutura dramatúrgica que prezava pela proximidade e reflexão, noto que no percurso da peça um público reflete
e é convidado a questionar seus conceitos e/ou preconceitos.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Acredito que o que fica mais forte no trabalho do NATA seja a colaboração o que podemos entender como
processo colaborativo. Um processo que busca em seu caminho um método de criação horizontal, questionando
o status vertical do encenador tão trabalhados em alguns processos. O que fica de mais importante que durante o
processo de EXU é que nós integrantes do NATA atuamos como uma engrenagem em que suas peças atuam em
suas áreas em prol de uma obra, e isso fica claro não só em uma atuação, criador, em uma encenadora
provocativa, e atuadores técnicos que estão disponíveis criativamente para a construção de um espetáculo
potente em todos os seus aspectos.
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
1.1 - Do ponto de vista simbólico e cultural o espetáculo ―Exu, A Boca do Universo‖ atuou sobretudo na
ressignificação desta divindade que ao longo dos anos foi estigmatizada socialmente como ―malévola‖ e
―diabólica‖ no sentido cristão do termo.
Operando nesse âmbito discursivo, a montagem de ―Exu, A Boca do Universo‖ deu voz aos adeptos e
simpatizantes do Candomblé no ambiente teatral brasileiro permitindo ao público verticalizar o pensamento a
respeito de ―Exú‖ enquanto arquétipo mitológico e divindade religiosa.
A presença quantitativamente marcante de um público negro e/ou ligado ao culto afro-brasileiro do candomblé
nas sessões de apresentação do espetáculo pelas capitais brasileiras, permite-nos perceber a demanda de
representatividade por parte de uma parcela numerosa da sociedade identificada com a proposta estética e
ideológica do espetáculo. Aqui vale citar Piaget quando estabelece a ideia de que ―interesse é sinônimo de
necessidade‖.
1.2 – Importante observar que a autoavaliação implica em alguma perda de objetividade. Isto posto, respondo
abaixo a segunda questão colocada que é a de como interpreto minha contribuição criativa no processo.
A música desempenha um papel preponderante no fazer teatral da diretora Fernanda Júlia. É a partir da música
que ela estrutura a encenação e dirige seus atores.
Com ênfase na música oriunda do culto do Candomblé, é sobretudo a partir dos elementos rítmicos que
Fernanda busca alcançar os estados psicológicos e físicos nos intérpretes que dirige.
Sendo assim, antes mesmo de iniciar os trabalhos de composição das músicas do espetáculo já há, nos processos
de preparação dos atores e nos primeiros ensaios de construção de cenas, algum estímulo sonoro/musical a partir
do qual o trabalho de direção/composição musical se fará.
A minha atuação no espetáculo pode ser descrita de forma esquemática da seguinte forma:
1 -Identificação dos traços musicais mais importantes em cada um dos ―estímulos sonoros/musicais‖ presentes
em cada cena. Tais estímulos serão aqui doravante denominados ESM.
169
2 -Interferência nos aspectos de ―forma e estrutura musical‖ dos ESM propiciando maior inteligibilidade no
discurso sonoro interno e em sua relação com os outros elementos da encenação.
3– Proposição de alterações timbrísticas que possam, em termos de dramaturgia sonora, dialogar de forma
mais enriquecedora com a macro forma do espetáculo. Recursos tais como os do simbolismo sonoro, da alusão
musical, da criação de texturas sonoras a partir de ritmos dados e da descontextualização foram frequentemente
usados neste processo.
4 – Composição de temas e/ou estruturas musicais que expressem os estados desejados pela direção para cenas
do espetáculo.
6 – Definição em termos de sintaxe musical de como um elemento encadeia-se a outro no processo de sucessão
de cenas do espetáculo.
7 – Finalização da parte musical do espetáculo definindo com os atores/intérpretes e técnicos musicais todas as
questões referentes à DINÂMICA e AGÓGICA que irão compor a teia da música dentro da encenação.
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
Aqui só posso falar de minha reflexão já que não participei de muitos debates.
Com Exu, fortaleceu-se em mim a responsabilidade pelos meus próprios caminhos e o amor ao movimento como
lei fundamental da natureza.
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Colocar a minha visão e experiência de música cênica a serviço da estruturação sonora e musical dos elementos
imanentes ao ser artístico do NATA.
1 – O que significou a montagem deste espetáculo e como interpreta a sua contribuição como criador neste
processo?
A voz é o único instrumento que comporta um texto junto com a melodia... Cantar é fácil, porque cantar, é a
busca!
Se pensarmos que a voz é um instrumento, como sax ou violino etc. Antes de sair fazendo barulho, é interessante
você conhecer o instrumento, ver quais opções de teclas você tem, quais dificuldades e medos esse instrumento
te traz, quais facilidades ele te proporciona, onde estão os momentos de prazer e de menor intimidade com ele? E
por fim, principalmente, o que eu quero "tocar" nele, que texto quero entoar pro mundo? E por que eu preciso
dizê-lo cantando e não declamando, ou seja, por que cantar?
Ajudar a entender essas perguntas e guiar por outras tantas questões, é o trabalho de um preparador vocal!
Fui convidado como parte de um intercâmbio estético realizado entre o grupo NATA – Bahia e a Cia do Miolo –
São Paulo.
170
Minha participação seria trocar vivências de preparação vocal. A preparação vocal normalmente eu trabalho em
3 passos, conhecer, reconhecer e ouvir/trocar. E foi assim meu primeiro encontro com o NATA, muitos
conhecimentos!
Vi um grupo maduro, e cenicamente muito inteligente, extremamente generoso! Um grupo quente, com artistas
magnetizantes!
Além de um elenco corajoso, vibrante e direções contundentes, eu conheci Exu, e amei reconhecê-lo na obra dos
homens e mulheres do NATA! Foi uma das experiências mais intensas que vivi no teatro. Mais que afinação,
emoção! Mais que textos benditos, uma razão! Acho que foi isso que vivi com eles...
2 – Cite questões relevantes que apareceram em sua reflexão derivadas do processo de fazer e/ou debater
com o público este espetáculo. Houve desconfortos? Quais?
Talvez não consiga passar todos os sentimentos que vivi nas semanas de trabalho com o NATA, mas vou tentar
detalhar o máximo o que esse casamento bom proporcionou. O projeto me apresentou como ponto de partida
para trabalho, seis corpos, seis artistas em cena, seis vozes... E claro, seis diferentes entendimentos sobre
música! Primeiro, fiz o trabalho base de todo regente de coral, identifiquei e classifiquei as vozes, aprendi suas
extensões vocais, seus gostos musicais, suas andanças e escolhas que os fizeram falar, cantar, soar e se doarem
assim... Nada incomum, o básico! O que vem depois é um pouco mais trabalhoso: fazer deles um grupo! Como
entender que vozes e vidas tão diferentes agora precisam trabalhar juntas e serem um só discurso? No grupo,
havia Thiago Romero, nitidamente um cantor em toda sua excelência, simplesmente pronto. Porém, era ele o
primeiro artista a ser trabalhado e transformado. Ele tinha o que a gente chama no canto lírico de liderança
nociva! Por ser tão pronto, generoso e bom, o restante do elenco o sobrecarregava, sem perceber e sem intenção,
com obrigações que não lhe competiam. Ou seja, inconscientemente, ninguém se preocupava em cantar, na hora
o Thiago assume e canta! O resultado disso: tínhamos seis pessoas tentando imitar a voz do Thiago Romero.
Identificado isso, foi preciso coragem para mexer no que aparentemente era a única certeza vocal do grupo: a
voz e atuação impecáveis do 2º tenor, Thiago Romero. Quando deslocamos a referência fortíssima da voz do
tenor, para uma busca compenetrada de qual é a voz de cada indivíduo, tivemos descobertas incríveis!
Pudemos ver Sanara e sua belíssima e afinadíssima voz de soprano e como o grupo estava carente do brilho
dessa voz!
Conhecemos o barítono de Daniel Arcades, uma voz pastosa e harmoniosa, extremamente generosa, típica dos
barítonos trovadores cancioneiros.
Antônio Marcelo, um baixo forte e denso. Responsável pela base de todo grupo vocal, aquele que atua na
discrição, sem gritos, e se faz presente inevitavelmente, porque é base. E Fernando Santana, um contratenor, um
homem naturalmente com extensão vocal feminina. Incomum e raro, bem como o nível de interpretação e
entendimento de cena desse ator!
Mas dentre todos, nada foi tão maravilhoso quanto o caso de Fabíola, simplesmente uma revelação!
A princípio, Exu, orixá masculino, estava dividido em quatro qualidades diferentes, contemplando cada um dos
homens do grupo com um "tipo de Exu", e a única mulher do grupo representaria uma "mãe de santo" que narra
a história. O caso é que na cabeça da atriz, a peça era unicamente de Exus e seus atores, e que ela era somente
um fundo estético. Antes de mexer na voz dessa atriz, tivemos que provocar outro entendimento para essa
personagem: não tínhamos quatro homens contra uma mulher em cena, era uma mãe servida por quatro Exus,
todinhos só pra ela, para que ela fizesse o que bem desejasse! Quando isso foi acordado, entendido por todos e
todas, nos foi apresentado uma grande contralto, farta e potente!
Isso feito, agora eu tinha uma paleta de cores vocais bem definida: uma soprano, uma contralto, um contratenor,
um tenor, um barítono e um baixo. O trabalho agora era trabalhar e desenvolver o máximo, as habilidades, e
particularidades de cada voz a fim de reforçar a potência de cada indivíduo... Diferente do que se prega,
vocalmente, antes de trabalhar o grupo, é necessário conhecer todas as camadas do indivíduo. Só assim você
saberá como cada cantor poderá compor esse coletivo! Ou seja, eu não preciso mais me preocupar com as notas
agudas, ou com a grande projeção, para isso tem o Thiago Romero, assim como o Thiago não precisará mais se
desdobrar para alcançar notas graves, isso é função do Marcelo e etc... Identificado cada cor, brilho, extensão,
interpretação e intensidade dos cantores/ atores, fomos trabalhar o colorido de cada cena! Assim como nas
171
canções, todas as cenas estavam com uma única tonalidade sonora, todas respiravam e esbanjavam um tom
burlesco, lembravam cenas de cabaré e teatros de revista! Mas agora estava mais fácil de colorir, já tínhamos
"tintas" fortes! Cada um dos Exus, tinha uma cena que contava um pouco sua história, cada um tinha um
momento de liderar e conduzir o espectador bem como os demais atores em cena. Então, era só imprimir e
assumir as características vocais de cada ator em cada Exu.
A gente abre a peça com o Exu de Thiago Romero, forte, imponente, voz potente e clara, de intensidade
admirável, um excelente abre-alas! O segundo Exu é por conta de Fernando que usa e se lambuza com a leveza
de sua voz feminina. O que antes causava estranhamento, e até desconforto pro artista, aparece assumida de
forma jocosa e ligeira, deixando a cena com o brilho da excentricidade! Depois é apresentado o Exu
representado por Antônio Marcelo. A cena que no início era realizada de forma displicente e unicamente festiva,
ganha o tom do baixo, grave e aterrado, dando para a cena a qualidade de sacerdócio e excelência e só então
ressaltando a brincadeira e a festa que a cena exige!
O Exu representado por Daniel, e aqui vou descrever apenas a cena final, ganhou a paixão e contundência de
toda voz barítono. A cena é um romance entre Exu e Oxum. E nada melhor que um barítono apaixonado com
voz firme e melódica para dar o tom dilatado de um amor! Tudo isso conduzido na ancestralidade trazida por
essa mãe contralto! Uma voz agora consciente de sua projeção e extensão.
Sanara tem aqui a função homeopática de equilíbrio vocal e harmônico. Ela é a percussionista e conseguiu
transformar, sabiamente, sua voz em mais um instrumento de sua "cozinha percussiva"! Ora solando ora
acompanhando e, por muitas vezes, dando o coração de cada cena! De tudo vivido nesse momento, ficam as
perguntas: estamos prontos para assumir quem somos de verdade? O discurso que eu canto é o mesmo discurso
que eu vivo? Dentro do coletivo, qual a medida de cada indivíduo?
3 – O que considera mais significativo em seu processo de atuação junto ao grupo NATA?
Exu- A Boca do Universo é, antes de qualquer coisa, um ato político! Uma resistência, o contraponto de uma
sociedade que prega, ensina e exige a competitividade e a exploração! Exu é a possibilidade do que deveríamos
ser, é o conhecimento de si, origem e direitos, questões e inquietações, poder e homem!
172
APÊNDICE III – ENTREVISTA COM ZEBRINHA
FJ – Quais os pontos mais significativos do processo de construção coreográfica nos espetáculos Ogum e
Exu? Fale o papel do corpo nesta construção.
Z - Eu encaro o corpo, eu posso falar do corpo negro, que é a minha praia. Partindo do princípio que todos os
corpos são iguais. Eu acho que o corpo negro é operístico.
Acredito muito na memória desse corpo, tem muitas histórias pra contar. O corpo negro tem tanta coisa ainda pra
dizer e que não foi dito. Acho que tudo em relação a gente, a cultura. Temos tanta coisa pra falar, que nunca foi
dito e nem escrito. Então, por exemplo, é muito fácil pra mim olhar um corpo negro em movimento e dali
escrever um vocabulário só ao observar. Este corpo vem legendado por histórias.
Vamos contar a história de Ogum, por exemplo. Eu acho que na memória do corpo preto, e que já tem certa
compreensão a respeito deste mito, ou da sonoridade. O corpo já reage assim. Inclusive quando, eu pego essa
mesma reação corporal e levo pra outro contexto musical, por exemplo, este corpo que vai legendar Ogum,
dentro de uma métrica melódica de rock, ou de jazz, ou de blues. Eu acho que o que conseguimos com isso, é
uma leitura contemporânea do que é super ancestral.
FJ – Qual o sentido das montagens Ogun – Deus e Homem e Exu – A boca do Universo, no que tange a
presença do corpo negro em cena, dialogando com a ritualidade do Candomblé. O que o senhor pensa
sobre isso? Essa necessidade de a gente está em cena falando nossas histórias, por meio da ritualidade
ancestral africana. O que o senhor pontuaria sobre isso?
Z - Eu acho que não é necessidade. Acho que é uma obrigação. Muito pouco foi dito a respeito da gente. E nós
somos tão enormes, somos tão cheios de assunto. Muito pouco é feito. Imagine aqui em Salvador, que é o centro
cultural da criação e da formação não só de espetáculos, mas do pensamento cultural baiano e brasileiro. Nós
somos 82% de negros e quanto está se produzindo em termos de música, teatro e dança com bases na nossa
cultura? Quanto está sendo produzido agora, neste exato momento? Nada! Então não é uma questão de
necessidade, e sim de dever. E se a terra não produz a gente tem os kamikazes, você, eu, que fazemos. Agora
neste exato momento (fala do momento real sexta 26 de fevereiro de 2016), acho que tem o Balé Folclórico da
Bahia, e sei lá, já é sexta-feira à tarde, já mais nada funciona. Então não vão produzir mais nada em relação a
isso. Eu acho um dever a gente fazer isso.
A minha erudição é a erudição africana. A cultura africana é tão erudita quanto qualquer outra. Não é uma coisa
à parte. Os celtas também são eruditos. Porque este pensamento erudito é super eurocentrista. Eu não acredito
nisso. Minhas músicas, danças originárias da África, seja ela qual for, é tão erudita quanto qualquer dança
elaborada, criada na Inglaterra, França, Polônia ou Rússia. Então é uma obrigação, é de uma naturalidade enorme
a gente tá produzindo isso. É super normal, o que não é normal é a gente não fazer. Esse povo que só basta não
ser de Candomblé para deixar de ser preto. E não produzir o que a gente produz. Nós estamos no caminho. E
assim, deveríamos inclusive ser ressarcidos pelos nossos ancestrais e pelo povo que se diz detentor de todos os
direitos e deveres e direção da diáspora, podia tá pagando pra gente está fazendo isto. E Ogum por tudo o que eu
faço, sou o maior propagandista, faço a maior propaganda de Ogum e de Exu. A recompensa maior que ele me
dá é por isso e não pelas obrigações que eu tenho.
FJ – Qual a sua opinião de ogan e coreógrafo sobre a colocação de elementos do ritual do Candomblé em
cena?
Z – Eu tenho uma opinião muito curta, grossa e bem formada a esse respeito. Eu acho que, como diria meu avô,
Afrodísio. Eu não devo nada a ninguém! Como dizia meu avô, é uma propriedade minha, e dela eu faço o que eu
quero. É de fórum íntimo mesmo.
Viajando pela África, eu vejo que nada disso é tabu, nada disso é escondido, nada disso é segredo. Um babalawô
me falou no Benin que ―se você quiser falar sobre tradição, venha você tem muito a aprender comigo. Se você
quer falar sobre religião, eu não sei nada. Por que religião você vai nascer em uma, vai escolher outra e quando
morrer alguém vai mudar sua religião. Só que sua tradição está em você para sempre‖. É disso que eu falo.
Quando falo de Candomblé eu sou pouco religioso, porque a religião na verdade está na minha cabeça. Mas o
exercício das minhas tradições, não. É este exercício das minhas tradições que eu exemplifico bem. Ninguém vai
tirar o que está dentro do meu ori, ninguém vai desfazer o que foi feito, e por consequência disso eu tenho a
173
propriedade das minhas tradições. Eu sou religioso quando me deito para o Orixá, quando saio de lá (terreiro) eu
continuo sendo religioso, mas praticando minhas tradições. Minhas quizilas são uma questão de tradição, minhas
roupas e contas são uma questão de tradição, vestir branco é uma questão de tradição. Preservar isso é uma
questão de tradição. Quando bato minha cabeça para o meu Orixá e me concentro completamente nesta troca e
que rezo, peço, louvo, estou sendo religioso. Mas a minha prática religiosa na verdade é a prática da tradição. E
dela eu posso fazer o que eu quiser. E depois, se eu mesmo pego a minha religião e transformo em arte, eu acho
que nada melhor para fazer as pessoas entenderem, para divulgar de maneira respeitosa. Eu preparo todo um
texto, cenário para apresentar as qualidades da minha tradição. É isso o que eu faço. Cada espetáculo que faço é
para apresentar aos olhos dos leigos e dos não leigos o que a minha religião tem de plasticidade e de mais bonito.
Uma vez assistindo ao Balé Folclórico da Bahia o espetáculo Herança Sagrada, as pessoas deixam de ser
preconceituosas em relação ao Candomblé e inclusive param de satanizar tudo. Quando assistem aos espetáculos
do Balé Folclórico seja ele qual for, as pessoas... Não é uma questão de identificação, eu estou falando da
memória do corpo que é revelada, ali sua memória é revelada, ali você se sente parte disso, parte de algum lugar
em você, sente que é parte do seu DNA. Quando você começa a compartilhar isso no som que ouve, através das
imagens, das sensações que isso te traz, você começa a acordar para isso. Pra que coisa melhor? Apresentar
nossa religião de maneira digna artisticamente e preservá-la.
Todas as religiões do mundo são utilizadas artisticamente, por exemplo, no continente africano no Benin ou em
outros países que já passei, a religião é super bem representada nos escritos, nas máscaras, na comida, na dança e
inclusive essas máscaras são vendidas, estão em museus e não faz mal nenhum. As pessoas passaram a estudar
as máscaras rituais.
Como a sociedade Geledés e a sociedade de Ilecô seriam conhecidas no mundo, estudadas e compreendidas se as
pessoas não tivessem contato? Como a saga de Xangô, de Ogum e todos os nossos herois e ancestrais seriam
conhecidos se não existissem essas composições, se essas pessoas não traduzissem essas músicas? Ou ficaríamos
como nas missas católicas rezadas em latim, que as pessoas iam e ficavam lá sem entender nada? É muito pouco
sagrado traduzir uma música do siré? É uma ofensa traduzir uma cantiga de ori? Eu acho que não. As pessoas
deveriam ter acesso a estas traduções, pois aí veriam que não há nada de demoníaco nelas.
Z - Cheguei lá e olhei este povo, olhei você, e a gente viaja junto. Eu não tenho que pesquisar muito porque é
tanto a dizer. A cada vez que eu penso neste assunto, é tanto a dizer, que eu faria 200 horas de Exu. Aquilo (o
espetáculo Exu) é um nada a respeito de Exu. Basta ver o conceito, basta a gente junto. Basta cantar inan, inan,
mojubá ê, que se abre uma porta, uma gama de possibilidades a criação, a modelo estético.
FJ – O senhor fala muito sobre como através da ocidentalização do corpo, perdemos a capacidade de
responder corporalmente por meio da coluna. Como deixamos que a música se manifestasse de uma
forma mais orgânica, mais intensa. E que uma das suas buscas artísticas é justamente este enegrecimento
do corpo, este recontato com a medula, com a coluna vertebral. Gostaria que o senhor falasse sobre isso.
Z - No aprendizado da dança, existe uma maneira de mover em que a coluna fica estática. A dança ocidental,
nela sua coluna tem que estar ereta. Quando você coloca isso dentro de uma métrica musical e do jeito que você
ouve a música, são poucas as possibilidades de movimentos, falando especificamente da coluna, das nossas
articulações e de divisão rítmica. Muito poucas possibilidades. Na música clássica entre no início e no final do
compasso, existem várias modulações rítmicas e melódicas, mas do jeito que a dança ocidental é concebida você
não precisa ouvir isso, você precisa ouvir as contagens (1,2,3,4... 1,2,3,4... 2,1,2,2,2,3 etc...) E se você é capaz de
ouvir isso de uma maneira eficaz você é chamado de ―ouvido absoluto‖.
Agora o africano ele tem ouvido absoluto quando percebe o ―entre‖. Ele ouve a colcheia, a semicolcheia e aí vai.
Ele subdivide isso no corpo dele todo. Quando você vê um africano da costa oeste, por exemplo, os senegaleses,
os beninoás, os nigerianos dançando, você percebe. Eeles ouvem coisas, o corpo mostra que eles estão ouvindo
todas as coisas que o ouvido ocidental não percebe. É como na música japonesa, eles tem umas modulações
melódicas mínimas que eles conseguem executar e ouvir e que nós não conseguimos.
Essa capacidade, essa reeducação corporal, que nos deram, nos fez perder a compreensão da música, da rítmica,
da utilização dos sentidos, de você preencher as notas de dentro de um compasso. As notas, subnotas... Isso faz
muita falta. O cubano, por exemplo... Presta a atenção nele dançando. Ele já tem uma outra maneira de ouvir a
música através do corpo. Aqui no Brasil nós temos, eu vejo mais nos mais velhos do que nos mais novos. Eu
174
tenho exemplo de pessoas que tem isso, a memória ancestral viva. É como se este corpo tivesse aprendido
milênios atrás.
FJ – Por ser ogã e coreógrafo, quais os cuidados o senhor aconselha que deveríamos ter no trânsito entre
Candomblé e Teatro?
Z – Se aproprie do que é seu e inclusive tente ganhar dinheiro com isso artisticamente, não como yakekerê. As
nossas prateleiras estão cheias de livros sobre nós, que foram escritos por pessoas brancas, e essas pessoas são
celebradas, ganham até prêmio. Os maiores tratados sobre nós foi escrito por pessoas brancas. Hoje em dia é que
nossos mais novos estão tentando escrever. Acho que tudo tem que ser reescrito por mãos negras, com o olhar
negro, com conceito negro. Essas pessoas são celebradas e quando nós utilizamos o que é nosso para fazer arte,
para propagar uma estética somos desestimulados e cheios de senões.
As tradições africanas são por si só muito artísticas, tudo se dança, se canta, se come. É muita arte. Por que não
trazer isso para o nosso deleite, sem essa obrigação religiosa? Por que não conceber como os cubanos que fazem
músicas geniais, todas baseadas em cânticos ancestrais? Artistas como Angelique Kidjo cantam a sua
ancestralidade todos os dias. Ogum falou que pode! No festival de identidade negra que aconteceu no Benin, e o
Balé participou, os grandes sacerdotes, babalawôs ficaram super orgulhosos do que apresentamos lá, inclusive
deu ao Balé Folclórico da Bahia o título de embaixadores culturais na diáspora.
Salvador, 04/03/2016
175
ANEXO I – HISTÓRICO DO NATA
Histórico
176
O espetáculo recebeu três indicações ao Prêmio Braskem de Teatro 2009: Melhor
espetáculo adulto, direção revelação para Fernanda Júlia (diretora e autora) e além da
indicação o prêmio Braskem na categoria especial para Jarbas Bittencourt, pela direção
musical da montagem.
Ainda como parte do projeto Siré Obá, o NATA realizou em o I IPADÊ – Fórum Nata
de Africanidade, que reuniu Yalorixás, Babalorixás, a Comunidade de Axé, a Comunidade
artística e a Comunidade em geral para discutirem questões relacionadas ao Candomblé, e o
processo criativo do espetáculo Siré Obá.
Além da montagem Siré Obá, o NATA montou os espetáculos Axé – Origem, encanto
e beleza (2000), Senzalas – A história, o espetáculo (2002), e Axé! (2003), montagens que
colaboraram no combate a intolerância religiosa sofrida pelas Comunidades de Axé,
instaurando a discussão e provocando reflexões.
Em 2010 estreia o espetáculo Ogum – Deus e Homem, montagem premiada pelo I
Prêmio Nacional de Expressões Afro brasileiras patrocinado pela Fundação Cultural
Palmares, Ministério da Cultura e CADON.
Este espetáculo participou da segunda edição do Festival Internacional A Cena Tá
Preta do Bando de Teatro Olodum em novembro do mesmo ano e realizou o II IPADÊ–
Fórum Nata de Africanidade.
No ano de 2011 o NATA foi convidado para integrar o quadro de grupos residentes
do Teatro Vila Velha em Salvador, sendo o primeiro grupo do interior a realizar residência
artística no respectivo teatro.
Em 2012 fomos aprovados no Edital Setorial de Teatro da Fundação Cultural da Bahia
com o projeto de manutenção, criação, circulação e interatividade cênica ALAMOJU que
prevê a realização de oficinas técnicas, workshops, seminário e a estreia da nova montagem
do grupo o espetáculo infanto juvenil EREMIM e foi selecionado também com o espetáculo
Siré Obá para integrar a grade de programação da V Edição do Festival Internacional de Artes
Cênicas da Bahia – FIAC – BA realizando apresentações do citado espetáculo na Arena do
Teatro Sesc-Senac Pelourinho e na Centro Cultural Alagados.
Ainda neste ano o NATA é aprovado no Edital Demanda Espontânea da FUNCEB e
realiza o projeto NATA ONÁ ILÚ AYÊ – O NATA pelos caminhos do mundo que consistiu
na apresentação do espetáculo Siré Obá em quatro Comunidades de Axé de Salvador
(Terreiro Mokambo, Abassá de Ogum, Ilê Axé Oxumarê e Gantois) e mais oito comunidades
177
de axé em cidades do interior do estado (Catu, Alagoinhas, Feira de Santana, Dias D´avila,
Cachoeira, Santo Amaro, Simões Filho e Inhambupe)
No ano de 2013 com o espetáculo Siré Obá fizemos parte da programação do projeto
Nova Dramaturgia de Melanina Acentuada sob a direção e produção de Aldri Anunciação que
desenvolveu o projeto de ocupação do Teatro de Arena Eugênio Kusnet em São Paulo. Neste
mesmo ano integramos a programação da I Mostra Baiana no Fringe do Festival internacional
de Curitiba com apresentações também de Siré Obá e participamos da sexta edição do
Festival Latino Americano – FILTE realizado pelo Oco Teatro, onde apresentamos o
espetáculo Siré Obá na tenda do Teatro Popular de Ilhéus.
Em 2014 estreamos o espetáculo Exu – A Boca do Universo, esta montagem integrou
a programação do projeto Exu Sile Oná TCA que foi o projeto vencedor da 19 edição do
TCA. NÚCLEO, edital que consistiu em seis meses de ocupação artística do NATA no
complexo do Teatro Castro Alves com a realização de 28 atividades que dividiram-se em
atividades artísticas, de formação, de difusão, e de intercâmbio com a Cia do Miolo de São
Paulo,. Em sua primeira temporada no mês de março deste ano o espetáculo Exu – A Boca do
Universo foi apresentado no Vão Livre do Teatro Castro Alves e circulou em mais três
espaços culturais da cidade o Cine Teatro Solar Boa vista, a arena do Sesc – Senac Pelourinho
e o Centro Cultural Plataforma o que totalizou mais de 2.500 espectadores.
No mês de maio deste ano participamos do I Abriu de leituras, projeto de leituras
dramáticas idealizado e realizado pelo CAN – Cia Abdias do Nascimento que comemorou os
dez anos de existência do grupo, nesta oportunidade o NATA realizou a leitura dramática do
texto Anjo Negro de Nelson Rodrigues.
No mês de setembro o NATA faz a abertura do Festival de Teatro Brasileiro – FTB no
Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo com a apresentação do espetáculo Exu – A
Boca do Universo, com grande repercussão de público, o que nos obrigou a fazer três sessões
do espetáculo no último dia de apresentação.
Exu continua em cartaz e o NATA participa nos meses de setembro e outubro dos festivais
FILTE – BA e FIAC – BA.
Em novembro realizamos nova temporada do espetáculo Exu – A Boca do Universo no
Centro Cultural da Barroquinha.
O espetáculo é indicado ao prêmio Braskem de Teatro em quatro categorias: Melhor
espetáculo adulto, melhor espetáculo do interior, melhor direção, categoria especial para
Thiago Romero pelo cenário, figurino e maquiagem do espetáculo.
178
Neste ano ainda fomos convidados para participar do Sarau du Brown, evendo criado
por Carlinhos Brown, abrindo o show com cenas dos espetáculos Siré Obá – A festa do Rei e
Exu – A Boca do Universo, além de fazermos pequenas aparições durante o show.
Em 2015 no mês de janeiro NATA apresentou-se no Polo Teatral em Camaçari,
festival patrocinado pela Braskem para indicar os melhores espetáculos do interior da Bahia.
Em fevereiro realizamos a abertura do Flitlã - Festival Intinerante de Teatro Latino
Americano Âmbar com o espetáculo Exu – A Boca do Universo no Teatro Sesc-Senac
Pelourinho e finalizamos nossa participação no Sarau du Brown.
Em março iniciamos o projeto Palco Giratório, onde realizamos 33 apresentações do
espetáculo Exu – A Boca do Universo em 27 cidades pelo Brasil.
Em dezembro o NATA vence o edital FUNARTE MÍRIAM MUNIZ 2015 com o
projeto NATAS em Solo – Seis Olhares sobre o mundo. Onde serão montados solos dos
atores do NATA, frutos das pesquisas individuais desenvolvidas dentro do grupo, com
execução prevista para o segundo semestre de 2016.
Quando o ator entra em cena, ele não está sozinho. Carrega em cada partícula do seu
corpo a história, a cultura e os valores de onde veio. Mesmo sem raciocinar muito sobre isso,
a sua simples presença em cena fala muito de um determinado lugar, de determinadas pessoas
e seus respectivos costumes.
Observando o dia a dia das comunidades de axé (Terreiros de Candomblé) -
compreendendo as noções de sagrado, o respeito aos mais velhos, o valor da vida, da
natureza, do equilíbrio entre material e espiritual e o transe ritual - foi que o NATA
compreendeu a necessidade de um teatro que trouxesse para a cena a história de uma cultura
que durante séculos vem sendo demonizada.
Partindo da premissa que a ancestralidade africana forma e integra a ancestralidade
primordial da humanidade, fomos buscar no Candomblé o material basilar e necessário para a
construção de um teatro fundamentado no teatro-físico ritual, este se traduz num teatro
pautado na fisicalidade, na força da presença dilatada do corpo do ator na cena, na pré
expressividade, é um teatro que busca exaustivamente a prontidão e o auto conhecimento
integral do corpo e da mente e possui na ritualidade, no jogo entre o plano da materialidade e
179
o plano da imaterialidade, na cerimônia do encontro do ator com a sua divinitude ancestral
africana seu pilar mais forte.
Influenciados pela teoria do Teatro Antropológico de Eugênio Barba, o Teatro Pobre
de Jerzi Grotowiski, o Teatro político–dialético de Bertolt Brecht e pela estética e política
cênica do Bando de Teatro Olodum (BA) do Coletivo Abdias do Nascimento – CAN (BA) e a
Cia dos Comuns (RJ,) o NATA tem o teatro físico-ritual como linha de pesquisa e, na busca
da ancestralidade afro-brasileira, o Candomblé a sua espinha dorsal. Esta busca resultou na
pesquisa cênica Ativação do movimento ancestral, uma investigação com o intuito de
colaborar com o fazer cênico do artista negro tendo como grande objetivo ver em cena a
história dos ancestrais africanos e toda a cultura de resistência criada por eles e seus
descendentes no Brasil.
Acreditamos que a arte é um grande instrumento para guardar a memória de um povo,
sua cultura, seus feitos, enfim, sua existência. Dessa forma, a linha de pesquisa do NATA está
no teatro primitivo, no qual os signos sensoriais sobrelevam o plano da racionalidade
cartesiana e o artista é um elo de ligação entre a dimensão espiritual e a dimensão humana e
que faz do teatro o lugar de encontro do material com o imaterial.
180
ANEXO II – CLIPAGEM – NATA
181
Figura 55 - Matéria do Jornal A Tarde – Estreia do espetáculo Siré Obá, no Teatro Vila Velha – maio de 2009.
182
Figura 56 – Matéria do Jornal A Tarde – Entrevista cedida a Eduarda Uzeda – Estreia do espetáculo Ogun –
Deus e Homem no Tetro Martim Gonçalves – 2010.
183
Figura 57 – Matéria do Jornal A Tarde – Anúncio do resultado do edital TCA. NÚCLEO – Exu Silé Oná TCA é
o projeto vencedor – 2013.
Figura 58 – Divulgação da estreia do espetáculo Exu – A Boca do Universo – Vão livre do TCA – 2014.
184
Figura 59 – Banner de divulgação na entrada do TCA.
Figura 60 – Cartazes de divulgação do espetáculo – Estreia no TCA e Circulação em Salvador (Cine –Solar Boa
Vista, Arena do Teatro Sesc-Senac Pelourinho e Centro Cultural Plataforma) – Arte gráfica: Susan Kalik –
Fotos: Andréa Magnoni.
185
Figura 61 – Cartaz da apresentação do espetáculo Exu – A Boca do universo em Belo Horizonte – Palco
Giratório. Arte gráfica: Susan Kalik – Foto: Andréa Magnoni.
Figura 62 – Cartazes das apresentações do espetáculo Exu – A Boca do Universo em São Paulo – Festival do
Teatro Brasileiro – Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB - São Paulo e cartaz da apresentação do espetáculo
em Recife – Palco Giratório. Arte gráfica: Susan Kalik – Foto: Andréa Magnoni.
186
Figura 63 – Pensamento Giratório – Belo Horizonte – 2015 – Palestra sobre o processo criativo do espetáculo
Exu – A Boca do Universo – Foto: Nando Zâmbia.
Figura 64 – Cartazes de apresentação do espetáculo Exu – A Boca do Universo no Rio Grande do Sul e no Rio
de Janeiro – Palco Giratório. Arte gráfica: Susan Kalik – Foto: Andréa Magnoni.
187
ANEXO III – TEXTO E FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO EXU – A BOCA DO UNIVERSO
188
Texto registrado pela Fundação da Biblioteca Nacional
Divindades:
Yangi
Enugbarijó
Legbá
Bará
Lonan
Oxum
Humanos:
Coro de Vendedores de Cachaça
A Vendedora de cachaça
Os Vendedores de cachaça
1 (Thiago), 2 (Daniel), 3(Marcelo), 4 (Fernando), 5(Zâmbia)
Obs: Como se trata de uma obra construída a partir do processo de experimentos do grupo e exercícios de
criação durante ensaios, as imagens definidas para a obra apareceram através da análise e escolhas dos perfis
físicos e energéticos dos atores da montagem original.
189
- PRÓLOGO –
(O coro de vendedores chega ao espaço cênico saudando todo o espaço e a figura de Exu que está no centro da
cenografia)
A canção do mercado
Coro de vendedores:
Ma - Uma cachaça volátil,
Thi - Um corpo meio bambo
Bi - e uma vida livre é coisa que todo mundo merece.
Dan - Porque o sagrado, meu rei, pisa e bambeia no mesmo chão.
Fer - Esse álcool em ebulição, te deixa forte como um deus, meu irmão.
Todos - Compra minha cachaça!
Zam - Compra minha cachaça, senhora!
Thi - Sinta esse cheirinho de passarinho, mulher!
Fer - Ele não bebe, mas voa com meu álcool
Dan - e assuma que você quer.
Ma - Viva grande, dona de si,
Zam - bambeando e aquecendo o coração.
Todos - Essa cachaça é sagrada, meu irmão!
(O coro de vendedores se mistura junto ao público e começam a vender cachaça por toda a plateia. Enquanto
vendem, o momento é interrompido por um vendedor)
86
Canção de Domínio Público para saudar Exu.
190
A vendedora de cachaça: Você conhece Exu?
Coro de vendedores:
Dan - O da capa preta?
Fer - Tridentão?
Thi - Cara de caveira?
Mar - Parece o cão?
Zam - O que come criancinha?
Dan - Parece desenho animado?
Zam - Tem chifre e pés peludos?
Fer - A cara do esqueleto do He-man!
Thi - Veste terno, gravata, tem unhas grandes e um barbão?
Mar - A cara do Zé do caixão!
Bi - Você conhece Exu?
Zam - Qual Exu você conhece?
Fer - O que só anda nas quebradas?
Thi - O que aparece no cinema, na TV?
Mar - A cara do saci-pererê?
Bi - Aquele que diz: Se Zufia forunfar com a guia, Zufia morre?
Fer - O que só dá gargalhadas?
Dan - O que é ganancioso e não faz nada de graça?
Zam - Você conhece Exu?
Todos - Qual Exu você conhece?
Fer - São esses que falamos agora?
Então, lamentamos informar que...
- O INÍCIO –
(O dinheiro da venda da cachaça é todo depositado no Totem, instalação cênica de Exu. A vendedora de
cachaça prepara a cena arriando um agari87 Saúdam todo o espaço com a cachaça e a borrifam para o ar)
Coro de vendedores:
Mojubá! Ojuobá!88
(Os vendedores depositam a garrafa de cachaça no totem e seguem para o fundo do espaço cênico onde o
processo de troca da energia do humano para o divino acontece. No centro da cena, com a cabeça direcionada
ao chão está apenas A vendedora de cachaça que faz a sua saudação sozinha)
A vendedora de cachaça:
Agô, E ku abo.
Agó onilé o
Mo wò ó Lénu
Ó gbá oro lénu mi
Enu yá mi
Laroyê
Agô, E ku abo.Se dada ni89
87
Farofa de dendê para Exu.
88
Apresentando o meu humilde respeito.
89
Com licença, sejam bem-vindos.
Com licença ao dono da casa
Eu prestei atenção ao que ele disse
Ele removeu a palavra da minha boca
191
(para a plateia)
Ao movimento.
Fiquei surpresa
Laroyê
Com licença, sejam bem vindos. Como vai você?
90
Grande Exu
91
Letra da música de Jarbas Bittencourt
192
Cruza clandestina a mente as fronteiras da razão
Põe o teu cajado à frente e que ele a nós nos oriente
E a mente apresente a direção
Yangi e Enugbarijó:
Eu to querendo falar de mim
Bará e Legbá:
Eu to doido pra falar daqui.
Yangi e Enugbarijó:
Você tá querendo que eu fale de mim.
Bará e Legbá:
Fale de mim pra mim.
Enugbarijó: Yangi
- A LATERITA – YANGI –
(Mudança de clima.Música africana em tributo a entrada de Yangi. Um paredão se forma. Jogo de partituras
corporais que representem o nascimento e a explosão. Início da dança das cabaças)
Yangi:
Há muito que estou para vir
Você me inventa, mas não me veta
Você me sente, mas não me enxerga
Você me usa, mas não me abusa
Lambuza, coma, fale
Me reinvente na sua mente
Sobre o que a gente sente
92
Nós o saudamos pela sua experiência e virtudes
193
Minha palavra, minha boca
Água revolta
Poeira que voa e gruda em teu corpo
Tua pele como a lama da criação
Eu to querendo falar de mim
Sem julgamentos, sem esclarecimentos
Yangi:
Cada pedaço de mim
Sou criador, sou criatura
Enugbarijó:
Kosi Okuta
Kosi Orisa95
Yangi:
Eu vou explodir em mim
Eu vou pro mundo
Enugbarijó:
Kosi Exu
Kosi Ayê96
Yangi:
mais uma hora, mais um tempo, mais um momento, mais um riso,
Yangi:
Dizem que ele parou
Dizem que eu parei
Eu to querendo falar de mim
Por isso, antes observei
93
O ponto alto da cabeça
94
A criança está só
95
Sem pedra/sem orixá
96
Sem Exu/ Sem mundo
194
Tá tudo muito doido, né?
Tá demorando, né?
Sempre esteve.
Tá tudo muito caos
Escuta? (silêncio) Esse é o som do mundo
Escuta? (muito barulho e muito movimento) Esse é o som do mundo
Essa harmonia
Gritando na esquina, meditando no arranha-céu.
Calar a boca, nunca mais!
Eu to querendo falar de mim
Número 1: Sempre seja mais um.
Porque eu sou o infinito mais um.
Ení Okàn97
(O som de uma avamunha toma conta do espaço. Paralelos, Yangi dança junto com Enugbarijó, Bará e Legbá.
A avamunha ganha uma crescente até todos concretizarem a dança das cabaças com todas elas depositadas ao
totem. Yangi retorna ao espaço do início da cena.Entra A vendedora de cachaça)
A vendedora de cachaça:
Bonito isso!
Ení Okan! Porque eu sou o infinito mais um.
Isso, meu pai, fale mais de você.
(observa ele)
Eu to escutando! To escutando tudo!
Eu aprendo muito com você!
(olha para um espectador)
Aí é Professor dos bons, com uma didática
Uma churria, uma chulapa,
Aí me ensina,
(percebe que ele observa o mundo)
Dizem que ele viu Oxalá fazer o homem
Dizem que foram dezesseis anos aprendendo
Calado, sem perguntar, prestando atenção em tudo.
Esse conhece o homem desde a essência
Porque ele é o primeiro, Yangi. Ele veio antes de vir
E viu todo mundo vindo
E pisando na laterita pesada
Ficou assim, ó: olhando tudo, observando tudo.
Mas, minha filha, quando este ser aprendeu tudo
E Orunmilá transformou ele em dono da porta
Ele ouvia e falava tudo ao mesmo tempo
Ele ouviu o caos do mundo
E desceu para organizar
Sabe com o quê?
97
Um coração
195
-A BOCA-
Enugbarijó: Atenção, passageiros, sejam bem-vindos a nave Enugbarijó. Na viagem, sairemos da minha boca
com possibilidade de turbulência nos tubos até o meu cu. Boa viagem!
A canção da Boca
Bouchache
Boca
Boca que chupa
Boca que beija
Boca que come
Boca
Boca que fala, que beija, que lambe, que engole, que morde, que fode
Boca que fala, que cheira, que limpa, que escarra, que xinga, que engole
Boca
Chupa, engole
Chupa, engole
- O CAMINHO-
(Após a música da boca, os Exus ganham uma velocidade exorbitante em cena, ao mesmo tempo entram em
estado de zombaria diante da vendedora de cachaça, que começa a se sentir um tanto quanto perdida diante
da cena.)
98
As traduções das palavras em língua estrangeira seguem a seguinte ordem:
(O texto será dito com velocidade. Muita velocidade. Enquanto isso os Exus estão fazendo caminhos, e a
Vendedora de cachaça correndo desenfreadamente pelos caminhos)
Lonan: Estamos na turbulência dos tubos. Não ficamos apenas nas possibilidades, temos certeza que nos tubos
sempre haverá turbulências. Ainda nos resta o dia e caminhamos por sete quadras que induzem o caminho.
Parece que o passo se aperta. Olha o caminho de lá: ―é a polícia, neguinho‖. Olha o caminho de cá: ―É um gran
fino, bobinho‖. Olha esse caminho daqui: ―Pronto, já pode sair‖. Olha o caminho que te deram sem me consultar,
estou só olhando se você vai aceitar. Estamos correndo quase, e correndo a gente nem olha e nem escuta. Aliás,
não, estamos correndo mesmo. Menina, quando se olha para o fim, você só aceita o destino e...
Vendedora: Tô cansada!
Lonan: E porque não para? Olhe, a preguiça é um dom e uma cura na alma. Eu posso dar caminho, não dou
surra de cansanção pra você sair correndo. Tu não é a amobirim101 que manda todo mundo estudar? Seus pés têm
que ler. A leitura do jeito de correr, pelo o que se corre e, o mais importante, do caminho que percorre é o que
vai fazer de você um ser. Sua correria é uma escolha.
Lonan: Você só corre, corre, corre, corre. E eu lá atrás dando risada. É caminho, nega, não é pista de corrida,
não. Quando for para correr, deixa que eu te dou um empurrão.
100
A colheita na encruzilhada
101
Mulher solteira
197
Vendedora: Eu mesma não!
Lonan: Ah, sem auto-sentença! Deixa a gente provocar! Caminho é provocação, se você não olha para os lados,
se não deixa aquela orelha coçar, chega no fim e só.
Enugbarijó: Pra silenciar. Sem perguntas, sem respostas, sem frases, sem orações, sem boca.
Legbá: Pra brochar. Sem grude, sem poder, sem nudez, sem gozar, sem a boca de lá.
(Silêncio. Movimentação muda. Os Exus dançam o caminho, dançam a encruzilhada. Tudo pausa, tudo
lento)
Lonan: Ikorità102!Na encruzilhada, você escolhe. E não escolhe. Na vida, você que dita. E não dita. Na boa,
qualquer pessoa é uma encruzilhada! Observe a batalha, ouça as provocações e as lamentações, perceba as
segundas intenções. Estão querendo te guiar? Vá. Vá estudar. Ninguém é bom, ninguém é mau. Todo mundo é
animal! Na encruzilhada, o que você vai fazer?
(Risos. Um Kuduro começa a tomar conta do espaço e todos dizem coisas para a vendedora. Enquanto isso,
Lonan fica alternando entre guiá-la e ficar só observando-a caminhar sozinha)
102
encruzilhada
103
Quadril -princípio - medo
104
Casa – consulente de adivinhação
105
Oráculo
106
Oráculo - desafio
198
Vai vir, vai vir, vai vir, vai vir!
Ibadí Ibere Iberu
Ibujoko Idáwò
Ifá Ifijaló
Igbojú igbóro107
Andar com Igbàbó108
Andar com Igbàbó
Andar com Igbàbó
Andar com Igbàbó
(A vendedora vai andando de costas para a plateia e seguindo seu rumo como se estivesse caminhando cheia
de incertezas. A música vai diminuindo seu ritmo e cada Exu vai cantando lentamente até chegar em um
sujeito da plateia e leva-lo consigo para o local desejado)
Igbàbó
Igbàbó
Igbàbó
Fé
-TOCA!-
(Cada Exu convida um espectador da plateia para ir ao espaço de encenação junto a ele. Durante o texto, a
relação com o toque, o olhar e a energização entre eles é provocada na cena)
Bará:
Veja aqui possibilidades
O corpo
Seu instrumento que tanto toca,
E toca, e toca, e toca,
Toca um tambor, um adjá, um adarrum
Toca o próprio corpo, toca o òrún109
Toca o sonho, toca o ayê110
Toca o distante
Seu corpo em transe
Seu olho, você
Yangi:
Toca!
Eu o conheci quando forcei a passagem
E como um ser que berra entrei na atmosfera
Era para ser assim sempre
Mas a caixinha de surpresas da vida reservou o hoje para você
Um corpo sem Exu é um corpo em coma.
Enugbarijó:
Primeiro, você vai nascer
E despontar o bará no corpo
Aí você vai chorar, gritar, mexer os bracinhos, expelir líquidos
Expelir, você sabe, né? Vai mijar, suar, cuspir...
Você vai estar nu, e os olhares do mundo serão tão bonitinhos.
Depois você vai aprender a andar, falar, ouvir e seu bará aumenta
107
Coragem - estrada
108
Fé
109
Céu
110
Plano terrestre
199
Enugbarijó, sua boca fomenta a vida
Sua boca faminta
Come, bebe, fala, ri e joga para o mundo
E quando o sol quiser, esse movimento brilhará
Legbá:
Depois você vai crescer
Vai ter o futuro nas mãos,
Calejar o braço de trabalhar,
Você vai experimentar seu Legbá, Ficar Odará
E quando a cabeça expandir
Iangui e Oxeturá se encontrar
O mais novo e o mais velho na roda da vida
Lonan:
Ah...Aí sim, você conhecerá
Sentir ocotô guiando Lonan
Qual entrada escolherá?
E quando Iku estiver por perto
Vai valorizar esse movimento
Sentir o que há por dentro
Você vai... E vai!
Todos:
Está pronto!
Porque um corpo sem Exu é um corpo em coma!
(Uma conversa regada a cerveja. Sons de latinha de cerveja abrindo.Sua música toca como se fosse algo tão
cotidiano e especial e seu ritmo de fala segue o percurso da musicalidade em cena. Parece que pessoas
passeiam por ele e ele dialoga com todas elas. Uma grande brincadeira entre eles.)
Todos: Enugbarijó!
200
Todos: é surrado, avacalhado, acabado, estrupiado.
Yangi: Estou matando o senhor por tomar um golinho de cerveja? (olha para outra pessoa).
Enugbarijó: Estou trazendo doença para você porque estou trepando? (para outra).
Todos: estando.
Enugbarijó: É incrível como esta cidade cheira a desconhecimento. Como é que pode eu estar tão presente e a
cidade exalar ignorância pelo suvaco?
Legbá: Fala.
Enugbarijó: Depende.
201
Lonan: Fala
Enugbarijó: Cachaça
Yangi: Fala
Enugbarijó: Farofa
Bará: Fala
Enugbarijó: Dinheiro.
Enugbarijó: Sou não! É muito amor nessa brincadeira. É muito amor pra você pensar besteira.
Yangi: Olha, quero resolver esse negócio de vez, porque não vou ficar aqui lamentando ter ganhado o papel de
antagonista da história se essa história não é minha. Dê aos seus os seus personagens.
Lonan: Não vou tocar em nome das histórias dos outros, portanto, cão, diabo, demônio, deixem para ouvir nos
lugares onde vocês tanto ouvem.
Legbá: A gente sabe onde encontrar, todos os dias nos mesmos horários nos mesmos canais.
Yangi: Tá maluco?
Bará: Tô brincante!
Bará: To errante.
Bará: Aparecer.
Enugbarijó: (silêncio) Eu falei que não ia falar disso. Agora escuta que sou eu quem falo. (Enugbarijó se dirige
até às instrumentistas do espetáculo que começam a tocar um grande samba. Enquanto isso, os outros dançam
libertamente na frente da cena. A cena ganha um outro ritmo muito mais acelerado e brincante) Me deixa aqui
com meu povo, com minha história e o meu valor.
Yangi: Me deixa ser fogo sem pudor, beber até cair sem ninguém me condenar porque eu vou vomitar, me deixa
escolher na encruzilhada o caminho da batalha. Porra, me deixa gozar.
Legbá: Diabo?
Yangi: Demônio?
Lonan: cão?
202
Todos: Nãooooo!
(todos tomam um barra-vento111 e a música mais uma vez se modifica na cena. Um ritmo mais caribenho,
caliente, arrocha. Todos se sentam ao redor do totem e desmancham-se dando o texto)
Legbá: Tá ouvindo? Amo essa música. A minha fome, fome de tudo que a boca pede.
Enugbarijó: Amo beijar, por exemplo. Beijar e essa música são duas coisas que eu amo. Eu troco muita coisa
por um beijo.
Bará: A minha sede de origem, tenho uma voz que grita silenciosamente,
Enugbarijó: Dá para explicar como você é igual a essa música para mim? É possível entender e amar aquilo que
se vai e se movimenta e fala como a boca da fome? Ama sem medo aquilo que não controla ou chama de cão?
Você tem visão?
Enugbarijó: Está boa, obrigado. Eu só quero que você fale para os seus. Conte, nega. Conte seus desejos, seus
queridos, seus odiados...
- LEGBÁ – O PODER -
(As latinhas de cerveja são depositadas no totem e um grande culto a Legbá começa a se organizar)
111
Barra-vento é o processo de leves rodopios que o indivíduo recebe no processo de transe do orixá.
203
Arrocha do poder
Coro de vendedores:
Legbá, Legbá, Legbá
Legbá, Exu Legbá
Legbá Legbá
Legbá, Legbá, Legbá
Legbá, Exu Legbá
Legbá Legbá
A alegria está contida
No poder que há nesta pica
Ahah! Ahah! Ahah!
Legbá:
O que aponta para a frente
Encaminha a semente
E pode te empoderar
Legbá:
Fertilidade vem à tona
Falo com propriedade
gozo para anunciar
Tempos de prosperidade
Coro de vendedores:
Não me interessa essa história sem razão
De que todo mundo tem um rolão.
O que ele vai dizer é que se você tem poder
Utilizar seu instrumento você vai saber
Pode ser tcheca, pipiu ou pintão
Na descoberta do poder
Há vida em ebulição
Não me serve culpa, não
A grande pica de Legbá aponta a direção
Legbá:
O que querem é nos calar!
(saem todos de cena como se estivessem em um ápice de gozo, deixando apenas Legbá e a plateia. A partir de
agora, a cena ganha um caráter intimista como se fosse um bate-papo com todos)
Legbá:
Se é no alto que você pensa estar o centro do poder, em verdade, eu vos digo: O meu céu está no chão e
o poder é alimento pro tesão.
Já sei que tentaram te esconder, tentaram te silenciar, mas eu acho que a gente sempre soube onde o
poder está. Tá querendo disfarçar, é?
O que acontece é mais que um esconderijo, é mais do que uma trava, é mais do que um cabaço.
Esse mastro, meu amor, não tem nada a ver com a ideia de jerico que implantaram na nossa cabeça. São
os meus, vindos de antes. É meu povo africano que diz que essa mangueira é uma lançadora de semente jogada
na terra molhada por um lindo gozo.
Fertiliza a vida. É uma mangueira que participa. É a arte de multiplicar. Mas aí, por medo, jorrar vira
qualquer coisa, né?
Mas há um poderio que nenhum homem explica. É uma energia que aos falsos poderosos irrita. (chega
mais perto de um dos espectadores) De qual poder você quer usufruir? Sobre esse sistema será que dá para
insistir?
Baixaria em MPB pode haver. Agora toque a minha música. Toque meu rap, meu samba, meu funk,
solta meu pagodão. Aí você chama de proibidão!
To deixando livre e solto pra cidade responder. O que é que incomoda você? Vai respeitar qual poder?
Ah, você me quer atrás de uma bancada, com terno e gravata. Me quer com uma grife,com horário
eleitoral. Assim vai me achar o tal?
O que a gente quer no fundo, do fundo, do fundo, é outra coisa, é outra história, é outra vida. É
sacanagem sem fazerem sacanagem com a gente.
―Exu para presidente‖. Quero não.
O meu poder é de outro quinhão.
-BARÁ – MOVIMENTO –
(Entra A vendedora de cachaça na mesma onda de bate-papo com o público. Só que logo atrás entra Bará,
fazendo brincadeiras e traquinagens enquanto a mulher quer conversar)
A vendedora de cachaça: Eu diria, olhe em volta, olhe para dentro. Escute seu ará, escute Bará.
205
Bará: Mojubá Ô!
A vendedora de cachaça: Aponte o mais belo caminho desse infinito percurso que é o nosso corpo. Diz sim
com o teu não.
Agô, eis aqui minha cabeça
Eu saúdo a encruzilhada e me coloco no centro dela para conhecer o caminho que em meu ori há.
Escute Bará.
(Jogo de cena. Coreografia entre Bará e A vendedora de cachaça. A coreografia tem como mote o processo de
sedução através da brincadeira e como consequência da sedução o momento da descoberta do jogo de búzios
pela mulher113. Movimento, movimento, movimento até que a mulher finalmente está com jogo de búzios nas
mãos.)
- DEPOIMENTOS –
(A vendedora de cachaça começa a jogar os búzios diante de todos. Entram os outros que vendem cachaça no
início da peça e a observam jogar).
A vendedora de cachaça:Menino...
Outros: Hum...
Outros: Hã...
Vendedor de cachaça 1: Ô minha mãe, veja aí se a senhora não errou na qualidade. Veja aí se não é Ogum.
Vendedor de cachaça 2: Ô minha mãe, meu filho entrou no axé foi pra melhorar, viu? A senhora contou errado,
não foi, não?
Vendedor de cachaça 3: Eu nunca vi mãe de santo nenhuma jogar de vela apagada, não é mesmo?
Vendedor de cachaça 1: Eu nunca vi ninguém feito de Exu. Cadê Exu no Dique 114?
112
Nós o saudamos pela sua experiência e virtudes
113
Alguns itans africanos dizem que Oxum só descobriu o poder do jogo de búzios graças ao seu jogo de
sedução diante de Exu, que lhe ensinou e lhe deu o poder das leituras do oráculo.
114
O Dique do Tororó é uma lagoa de 110 mil metros quadrados tombado como patrimônio Histórico e Artístico
Nacional na cidade de Salvador.Um espaço onde milhares de pessoas circulam todos os dias. Dentro dela e ao
redor dela existem várias estátuas representando os orixás do candomblé feitas pela artista plástica Tati Moreno.
Dentre os 12 orixás presentes no Dique do Tororó, Exu não é um deles.
206
Vendedor de cachaça 2: Ô minha mãe, veja aí de novo, vá. Veja se não é Ogum, Ogum... me ajuda.
Todos: Xoroquê!
(Ela mostra o jogo para a plateia e sai irritada. Os outros permanecem no espaço. Durante os depoimentos, o
humano se mistura com o divino e o figurino dos vendedores começa a ser trocado pelo de Exu na cena aberta.)
Vendedor de cachaça 2:
Nenhuma mãe cria alguém para ele ser filho de Exu. Nenhuma boa mulher da família brasileira criaria seu filho
para ganhar o título de dono das ruas. Mal sabem elas que é na rua onde o sujeito se faz homem e foi nela que
tive o maior encontro da minha vida. Todo mundo dizia que eu era de Ogum. Forte, decisivo, conquistador, mas
em momento nenhum eu me esforçava para ser assim. Eu tinha fogo nos olhos, uma pele que queimava e acendia
com o contato e o movimento do mundo. Eu tinha amor por andar pelas ruas, por ouvir e falar com as pessoas,
por transformar qualquer entrada em minha casa. E Ogum não vinha. Era eu, na vida e no axé, mistério...
Vendedor de cachaça 5:
Mas o meu coração tambor foi sentindo um batuque. E o toque fazia com que meus pés pensantes firmassem o
encontro do orún com o ayê. Minha alma passeava pela minha carne em uma fusão que só quem sente entende.
Eu não enxergava Exu como orixá, até porque ninguém me dizia que ele era um. Sei lá, para mim, ele era apenas
o caminho para chegar até um, nada de importante, nem humano e nem divindade. E a ancestralidade batia nos
nervos, tocava como físico, trazia nos sentidos...
Vendedor de cachaça 1:
Nos meus olhos, um cenário do passado se fazendo presente e aquela confusão na minha mente e meu coração
tambor saltava mais forte, meu compasso já não era mais só meu. E eu não entendia, só sentia. Eu me perguntava
na mesma hora do que aquilo se tratava e nada me respondia, só sentia. Exu se apresentou me invadindo sem
pedir permissão, como se conhecesse meu corpo de tempos ancestres. Foi saltando do meu coração tambor para
os meus olhos, minha face, meu corpo, para os meus movimentos. E ...
Vendedor de cachaça 4:
E dançava. E me conduzia naquela dança em um jogo que meu corpo não conhecia. Era um princípio de
dinamismo que ia além do meu movimento externo, ativava uma camada que movimentava meu passado, minha
história. Minha mãe não queria que eu fosse filho de Exu, mas eu entendi a mensagem assim que ele pulsou
dentro de mim. Eu não podia ser dele, eu sou ele. E quando percebi no seu movimento a doçura de ter a coragem
de ser feliz, de abrir a boca para a vida, de lançar ao universo todas as querências, eu já não queria mais nada.
Era eu e ele no nosso transe, no diálogo da circularidade da esfera. Era...
Vendedor de cachaça 3:
Era Bará por todo o corpo. Era movimento, revolução dentro de mim. Eu não entendia como Exu podia se
mostrar tão belo, tão próximo e ainda mais, tão amigo de mim. Daquele momento em diante, nada do que diziam
importava e eu estava cagando se pensavam mal dele. Eu senti Exu dentro de mim e isso me fez pleno, me fez
poderoso. Aquele que está no caminho tem a sorte de parecer humano e ser a divindade que cresce para o
infinito. Aquele que está na rua não tem tempo de subir em pódio, porque seus pés sacralizam o lugar onde piso.
Laroiê, Exu. O seu poder limpa o caminho.
(som de tensão. De repente o ambiente começa a ficar sombrio e Exu se mostra valente, mas intrigado com a
situação)
Enugbarijó: Quem é?
207
Yangi: Bata na porta da frente!
(o canto de morte aumenta ainda mais e os Exus se preparam para uma batalha em cena)
(coreografia. Eles brigam com o canto que se apresenta cada vez mais forte, até ficar insuportável. De longe,
Legbá e Lonan assistem a cena e narram)
(Mais briga. O som se torna ensurdecedor para eles e mesmo assim eles resistem)
Yangi: Ah, é você! Ainda se mostra furioso por aqui! Não, não faremos chacina nesta praça por sangues
anteriores, não é com sangue que vou limpar a sujeira dos outros.Mas se quiser vir, venha.
(Mais briga. O som se torna ensurdecedor para eles e mesmo assim eles resistem)
Legbá: (de longe) Ninguém pode dar um jeito na morte. Se havia um ser que não temia Exu este era Iku. Eles
viviam se trombando, se provocando.
Lonan: Exu princípio de vida, faísca de existência vez por outra esbarrava com a morte.
Legbá: Este sempre foi o encontro de antíteses.
(o canto se torna cada vez mais alto. E Exu se posiciona para brigar com o invisível. Uma grande correria pelo
espaço aponta a ideia de disputa. Ogós ao alto, gritos de batalha e vários, vários socos ao vento, rasteiras no
nada, várias sensações de perdição. Qualquer ação de Exu, por mais ágil que seja, aparenta não atingir quase
nada de Iku. Um caos se estabelece na cena em que Exu por mais que se mostre vigoroso, pronto para briga,
multiplicado, esteja com um certo enfraquecimento diante de tanta movimentação invisível.Até que não resistem
e caem. Ao fundo, Legbá surge com um lenço branco representando Orunmilá e canta.Durante a música,
aqueles que estavam ao chão, sentem-se, devagar, com energia para levantar.)
Legbá:
Elekete meye
Orunmila
elekete meye bogbo shakutu awa selawo 117
Lonan :A guerra entre Exu e Iku só se acalmou quando Orunmilá se meteu. Esse sábio deu a possibilidade de
cada um cuidar dos seus. Aqueles que se cuidam, podem ser guiados por Exu e os que já não conseguem mais se
cuidar, devem seguir nos braços de Iku.
115
Eu ouvi um rumor no quarto
Ele apresenta o desejo de me ver
116
Ele se tornou meu inimigo
117
Música Afro-cubana de domínio público em saudação a orunmilá.
208
Legbá: Orumilá que é amigo de Iku e de Exu, interferiu na peleja e Exu entendeu que ―Ikú Kí pani, ayò I'o npa
ni‖
(A vendedora de cachaça aparece diferente, produzida, com a vaidade de Oxum no corpo e na voz. Todos se
sentem fascinados pela imagem dela e se colocam a serviço. Todos estão dispostos a amá-la em cena)
A vendedora de cachaça: Menino, quanta honraria... Olha, que eu vou querer isso todo dia, viu? O dia já está
indo embora e eu estou tão cansada, tô tão sem vontade de mais nada. Só faltava agora um neguinho cheirando a
alfazema pr´eu me agarrar e relaxar. Um homem e um feijão fradinho no azeite com ovo e camarão eram tudo o
que eu queria agora. Duas paixões gostosas. Essas paixões que duram o tempo de uma pratada é bom demais.
Um sorriso, uma chegada, um cheiro...Essas paixões sedutoras, mesmo que a gente não continue, ficam sempre
como lembrança boa e a gente guarda aquela consumição da paixão, do tesão, aquele homem que provoca.
Dofonitinha me contou uma história que pouca gente sabe, que Exu teve um amor. É, ele teve um amor desses
que atenta até hoje o mais provocador dos orixás.
Ele quis aquela, a que cheirava a mel.
(Eles continuam a dançar e envolver a vendedora que já está sobre o transe de Oxum)
Enugbarijó: Eu quis aquela, a que cheirava a mel. Oxum, a yabá de mais profunda beleza e doçura. Água pura,
água fresca, água da minha boca.
Eu não conseguia conter o tesão que havia naquela mulher cheia de desejos, sua dança fascinante inebriava meus
sentidos, faiscava a minha essência. E eu só perguntava a ela: Quer saber o segredo dos caminhos? Quer estar
com os búzios nas mãos.
Emplaquei o olhar naquela mulher que estava ali, a dançar e escorrer feito mel.
Vivi aquele momento. Amor profundo só surge do encontro e Oxum é a água fresca que acalma a volúpia de
Exu.
Toda paixão deveria durar o tempo em que há ansiedade. Porque aí a gente podia se apaixonar a toda hora pela
mesma pessoa ou por pessoas diferentes. Eu sentia naquele corpo uma calmaria que minha ansiedade só entendia
quando estava ali, entre as carnes adocicadas daquele banho de mel.
Era ela, Oxum. Com seu corpo dourado, seus olhos de águas doces, sua imponência feminina e um corpo que
parece ter chamas ao dialogar com o mundo molhado.
Era uma gota de suor pelo meu corpo.
Era uma lágrima que descia em meu rosto.
Era saliva por toda a minha boca.
Era sangue bombeando o meu sexo.
Era fluxo.
Minha linda Iyalodé! Minha deusa da fertilidade! Só suas águas podem apaziguar o fogo dos meus
olhos, só seus cantos podem suavizar a batida dos meus pés!
Ah, minha yalodê! Dança comigo, dança? Dança que te ensino do mundo, te ensino o futuro e te salvo
de qualquer armadilha. Dança comigo que plantamos a semente da vida em qualquer, qualquer ser que se
movimenta. Dança comigo, dança...
(Neste momento, a vendedora de cachaça já está sob a história de amor de Oxum e assume esse posto. E
dançam,dançam. Todos se dedicam a dançar com ela e com os pertences de Oxum, sua cabeça, seus tecidos, seu
abebé. Até que numa fusão, uma cabaça ganha as mãos de Oxum e em coreografia ela dá a luz a este ser)
-OSETURÁ, TUDO SEMPRE HÁ DE RECOMEÇAR –
209
(A dança entre eles cessa. Oxum está ao meio com seu filho118)
Yangi: Uma vida para se dar um jeito. Uma molhada vida prestes a pegar fogo pelo mundo.
Bará: Há um filho em cada pedaço de rua, em cada metro quadrado de casa, em cada partícula de ar que se
movimenta na Terra.
-SAUDAÇÃO FINAL-
(Em contato com o espaço, os atores pegam todos os seus pertences que estão espalhados ainda na cena e como
uma última oferenda, entregam cantando ao totem do centro do espaço)
Todos:
E eu só estou falando de mim.
Laroyê, Exu.
FIM
118
Alguns itans africanos afirmam que Oxeturá é filho de Exu e Oxum, e ao mesmo tempo representa o Exu
mais novo, aquele que é dono do recomeço.
210
FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO
Direção: Fernanda Júlia
Texto: Daniel Arcades
Coautoria: Fernanda Júlia
Coreografia: Zebrinha
Direção musical: Jarbas Bittencourt
Assistente de direção: Sanara Rocha
Elenco: Antônio Marcelo, Daniel Arcades, Fabíola Júlia, Fernando Santana, Thiago Romero
Instrumentista: Sanara Rocha
Cenografia, figurinos e maquiagem: Thiago Romero
Preparação vocal: Marcelo Jardim e Rani Guerra
Letras das canções: Daniel Arcades
Composições: Jarbas Bittencourt com contribuições do NATA
Iluminação e operação de luz: Nando Zâmbia
Técnico de som e operador de microfones: Eduardo Santiago
Operação de trilha: Fernanda Júlia
Consultoria litúrgica afro-antropológica: babalorixá Rychelmy Imbiriba
Orientação de axé: yalorixá Roselina Barbosa (Mãe Rosa d´Oyá)
Figurinista assistente: Tina Melo
Coordenação de costura: Guida Maria
Costureira: Lucinha Lopes
Modelagem e costura: Saraí
Assistência de costura: Edlene Cruz
Adereços: Alessandra Santiago, Deilton José, Juma Mascarenhas, Moaba
Cenotécnico-chefe: Adriano Passos
Cenotécnicos: Antônio Pequeno, Cássio Vieira dos Santos, Israel Luz (Gão), Leonardo Brito,
Romildo Alves (Bido)
212
ANEXO IV – ARTIGOS DE MÃE ESTELA DE OXOSSI PUBLICADOS NO JORNAL A TARDE
Maria Stella de Azevedo Santos | Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá [email protected]
COMENTÁRIOS (3)
-AA+
Lúcio Távora | Ag. A TARDE
Estou preparada para dormir, não tão cedo como dormem os idosos. Tenho 90 anos e 7 meses, mas minha filha
joga fora os 90. Ela é de Iyemanjá. Como sua essência é de mãe, ela me cobre. Agora sou um bebê de 7 meses.
Para que o pacote fique completo, minha filha/mãe começa a contar uma "estorinha":
"Era uma vez uma senhora encantada e encantadora que se tornou conhecida como 'A Grande Mãe'. Em seu
colo, as crianças se aconchegavam e os adultos buscavam conforto para as dores do dia a dia. De sua boca saíam
conselhos que ajudavam a secar as lágrimas de homens e mulheres aflitos. Se seus conselhos não bastavam, ela
dançava e com suas mãos indicava os caminhos a serem seguidos.
"As desesperadas pessoas que buscavam 'A Grande Mãe' saíam de seu lar com a esperança renovada. Sua casa
era uma extensão dela própria. E, por isso, todos queriam agradá-la e a presenteavam com flores para que sua
casa ficasse ainda mais aconchegante. Isso agradava a generosa senhora, mas não era capaz de impedir que
quando estivesse sozinha chorasse as dores do mundo.
"De seus olhos saíam tantas lágrimas, tanta água salgada, que sua adorável casa se transformou no mar. Iyemanjá
era seu nome, que significa 'mãe que é respeitada e agradada com entusiasmo'. Todos são filhos de Iyemanjá, e
todos ansiavam por agradá-la com flores, perfumes, maquiagem, joias. Iyemanjá adorava receber presentes, mas
sorria da ingenuidade de seus protegidos:
213
"- Como ela poderia ter tempo de ser vaidosa, quando precisava dedicar-se a esfriar as várias cabeças quentes
que deitavam em seu colo?...
"As pessoas não sabiam, mas quem gostava daqueles lindos e ricos presentes era a jovem e vaidosa filha de
Iyemanjá: Oxum. Quanto mais Iyemanjá ajudava as pessoas, mais presentes eram depositados em sua casa. Seu
lar foi ficando sujo. Iyemanjá pediu, então, que as pessoas não lhe dessem presentes de plásticos nem de metal,
pois estes, com o tempo, transformavam-se em lixos difíceis de serem degradados. Os mais obedientes passaram
a oferendar apenas o líquido dos perfumes e flores, mas os produtos químicos dos quais eram feitos os perfumes
poluíam as águas e as pétalas das flores adoeciam os peixes.
"A população tinha crescido muito e no mar não cabiam mais tantos presentes‖. Iyemanjá retirou-se para meditar
e encontrar a forma ideal de permitir que as pessoas continuassem a praticar seus ritos de agradecimento, sem
que ela, sua casa (o mar) e seus filhotes peixes sofressem.
"Muito tempo já tinha se passado até que uma bela e harmoniosa melodia pôde ser ouvida pelo povo da Bahia.
Iyemanjá cantava: 'Reúnam-se, cantem e me encantem; este é o presente que quero e posso receber a partir de
agora. Não quero mais presentes, quero presença'."
Acordei na manhã seguinte. Já não sabia se tinha ouvido a estória ou sonhado com ela. Era uma vez; há sempre
uma vez; há sempre a primeira vez; há de ter sempre pessoas que encarem a primeira vez. "O candomblé é uma
religião ecológica" - dizem. Então vivamos o que pregamos!
Encaro o desafio e digo que a partir de 2016 o "Presente de Iyemanjá" do Ilê Axé Opô Afonjá não mais poluirá o
mar com presentes. Meus filhos serão orientados a oferendar Iyemanjá com harmoniosos cânticos.
Quem for consciente e corajoso entenderá que os ritos podem e devem ser adaptados às transformações do
planeta e da sociedade. Os ritos se fundamentam nos mitos e nestes estão guardados ensinamentos valorosos. O
rito pode ser modificado, a essência dos mitos, jamais!
Sei que Iyemanjá ficará feliz, afinal qual é a mulher, principalmente sendo mãe, que não gosta de ouvir belas
melodias que confortam e dão alento a um coração permanentemente preocupado com os filhos?
NO OUTONO DA VIDA
postado por Cleidiana Ramos @ 6:40 PM
13 de abril de 2011
Mãe Stella reflete sobre o papel dos velhos. Foto: José Silva | Ag. A TARDE
214
O religioso tem por obrigação prestar atenção à sucessão das estações, uma vez que elas marcam o ritmo da vida
e as etapas do desenvolvimento humano. O Inverno, ligado ao elemento água, refere-se à infância; a Primavera,
estação das flores, mostra a fluidez do ar e da juventude; o Verão, a intensidade do sol, símbolo do fogo,
demonstra o auge do dinamismo e atuação na vida, características do adulto; o Outono – crepúsculo vespertino –
que está ligado ao elemento terra, é a luminosidade do sol e do velho que vai aos poucos se escondendo e se
aproximando do horizonte.
Há tempos atrás, não se constituía em problema usar as palavras velhice e velho, pois elas apenas se referiam a
uma das etapas do desenvolvimento dos seres vivos. Atualmente, isso é ―politicamente incorreto‖. É como se
fosse uma desvalorização dessa etapa de vida, chegando ao ponto de se tornar um adjetivo pejorativo.
Resolveram adotar a expressão ―melhor idade‖.
Entretanto, será que existe alguma idade que seja melhor que a outra? Na infância, temos a alegria da criança,
acompanhada, no entanto, de uma fragilidade, que deixa os adultos em constante atenção. Na adolescência, o
caráter espontâneo não deixa de vir acompanhado de uma coragem inconsequente. Na maturidade, se é dono da
própria vida e se carrega, no entanto, o peso da responsabilidade. Na velhice, a tranqüilidade decorrente do
acúmulo das experiências vividas é gratificante, energia física, porém, não é mais a mesma – falta ―pique‖.
Percebe-se, assim, que em todas as fases sempre existe uma lacuna. É como diz um dos ditados que os velhos
gostam de usar, a fim de passar sua sabedoria para os mais novos: ―Na mocidade temos vitalidade e tempo, mas
não temos autonomia nem dinheiro; na fase adulta, temos vitalidade e autonomia, mas não temos tempo; na
velhice, temos tempo e dinheiro, mas não temos vitalidade.
O candomblé é considerado uma religião primitiva. Geralmente, isso é dito com um sentido de desvalorização.
Contudo, uma religião é tida como primitiva por ser de origem primeira, original, vinda desde os primeiros
tempos. Na referida religião, como em muitas outras de procedência oriental, e nas tribos indígenas, o velho é
muito valorizado, ele é considerado um sábio, tendo uma condição de destaque e respeito.
Na cultura yorubana, o velho é um herói, pois conseguiu vencer a morte, que nos procura e ronda todos os dias.
Ele tem sempre a última palavra, a qual não deve ser contestada. Tanto que é comum em África, a pessoa que
ainda não completou 42 anos se manter calada durante as assembléias comunitárias, a fim de exercitarem a
importante arte de ouvir. No candomblé, tentamos seguir a tradição que herdamos e ensinamos aos iniciantes
essa difícil arte. Mesmo que o iniciante se ache com razão, ele tem o dever de ouvir o mais velho de cabeça
baixa e pedir a benção, por respeito. Todavia, não lhe é negado o direito, de em momento outro, justificar-se.
Não está fácil manter a tradição hierárquica de respeito ao mais velho: enquanto para o candomblé ―antiguidade
é posto‖, fora dos nossos muros, os mais novos, que vivem em uma sociedade imediatista, não querem ou não
conseguem encontrar tempo para ouvir experiências que um dia terão que enfrentar. Até porque os pertencentes
à classe da ―melhor idade‖, não se disponibilizam mais a assumir o papel de transmissores de conhecimento,
pois esta característica deixou de ser valorizada na sociedade atual.
Não quero dizer com isso que o idoso deve recolher-se, deixando de aproveitar a vida, já que quando jovem
aprendi com minha Iyalorixá que ―a vida é boa e gozá-la convém‖. Para o bem da sociedade, o povo yorubá diz:
215
―ola baba ni imú yan gbendeke‖, mostrando que ―é a honra do pai que permite ao filho caminhar com orgulho‖.
E eu digo: Todo pai é um mestre e todo filho é um discípulo!
216
ANEXO V – Modelo de Termo de Autorização para liberação de uso de imagem e texto.
TERMO DE AUTORIZAÇÃO
Esta autorização inclui o uso de todo o material criado que contenha a entrevista
concedida, e imagens fotográficas pela aluna e Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia-UFBA, da forma que melhor lhe aprouver, notadamente para toda e
qualquer forma de comunicação ao público, tais como material impresso, CD
(―compactdisc‖), CD ROM, CD-I (―compact-disc‖ interativo), ―home video‖, DAT
(―digital audio tape‖), DVD (―digital video disc‖), rádio, radiodifusão, televisão
aberta, fechada e por assinatura, bem como sua disseminação via Internet,
independentemente do processo de transporte de sinal e suporte material que venha a
ser utilizado para tais fins, sem limitação de tempo ou do número de
utilizações/exibições, no Brasil e/ou no exterior, através de qualquer processo de
transporte de sinal ou suporte material existente, ainda que não disponível em
território nacional, sendo certo que o material criado destina-se à produção de obra
intelectual organizada e de titularidade exclusiva da Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia-UFBA, conforme expresso na Lei 9.610/98 (Lei de
Direitos Autorais).
Assinatura:
Nome:
End.:
CPF:
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