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Significação
Revista de Cultura Audiovisual
dezembro 2013

ISSN 2316-7114 | Volume 40 | Nº 40 | Brasil


Significação
Revista de Cultura Audiovisual
dezembro 2013

40

ISSN 2316-7114 | Volume 40 | Nº 40 | Brasil


Significação: Revista de Universidade de São Paulo
Cultura Audiovisual é uma
revista acadêmica voltada ao Reitor
público de pesquisaores de João Grandino Rodas
Cinema e Audiovisual que, do
Vice-Reitor
número 13 ao 30, fazia parte
Hélio Nogueira da Cruz
das atividades do Centro de
Pesquisa em Poética da Imagem
do Departamento de Cinema, Escola de
Rádio e Televisão da ECA/USP. Comunicações e Artes
A partir do número 31 passa a Diretora
ser uma publicação semestral Margarida M. K. Kunsch
vinculada ao Programa de
Vice-Diretor
Pós-Graduação em Meios
e Processos Audiovisuais da Eduardo Henrique S. Monteiro
Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Programa de
Paulo, Brasil. Pós-Graduação em Meios e
Processos Audiovisuais
Site
Coordenador
http://www.usp.br/significacao Eduardo Victorio Morettin
Vice-Coordenador
E-mail Eduardo Vicente
significaçã[email protected]
Assistente editorial,
Significação diagramadora e webmaster
Paula Paschoalick
Dezembro de 2013
Preparação de originais
Foto da capa e revisão de textos
Detalhe de Cartaz do Filme de Juliana Doretto
Vertov.
Projeto gráfico
Base de dados: João Parenti
Meire Assami
Latindex
Thomas Yuba
Confibercom

Portal Capes de Periódicos

Portal SEER ISSN 2316-7114

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 3
Editores Conselho científico

Eduardo Victorio Morettin Arlindo Machado Marcius Freire


Universidade de São Paulo Universidade de São Paulo Universidade Estadual de Campinas
[email protected]
Consuelo Lins Maria de Fátima Tálamo
Rosana de Lima Soares Universidade Federal do R. de Janeiro Universidade de São Paulo
Universidade de São Paulo
Eric Landowski Mauro Wilton de Sousa
[email protected]
Centre National de la Recherche Universidade de São Paulo
Scientifique - França
Mayra Rodrigues Gomes
Editor especial do dossiê Esther Hamburger Universidade de São Paulo
Universidade de São Paulo
“História e Audiovisual” Michael Renov
Etienne Samain School of Cinematic Arts - França
Eduardo Victorio Morettin
Universidade Estadual de Campinas
Universidade de São Paulo
Muniz Sodré
Eugênio Trivinho
Universidade Federal do R. de Janeiro
Pontifícia Universidade Católica de SP
Conselho editorial
Norval Baitello Junior
Cristian Borges Gilberto Prado
Pontifícia Universidade Católica de SP
Universidade de São Paulo
Universidade de São Paulo
Philippe Dubois
Eduardo Peñuela Cañizal Henri Pierre Gervaiseau
Université de Paris III – França
Universidade de São Paulo
Universidade de São Paulo
Robert Stam
Eduardo Vicente Ismail Norberto Xavier
New York University – EUA
Universidade de São Paulo
Universidade de São Paulo
Rubens Luis R. Machado
Geraldo Carlos do Nascimento Itania Maria Gomes
Universidade de São Paulo
Universidade Federal da Bahia
Universidade Paulista

João Luiz Vieira Sylvie Lindeperg


Irene Machado
Universidade Federal Fluminense Université de Paris I – França
Universidade de São Paulo

Jorge La Ferla Tunico Amancio


Maria Dora Genis Mourão
Universidad de Buenos Aires - Argentina Universidade Federal Fluminense
Universidade de São Paulo

José Luiz Aidar Vera França


Pontifícia Universidade Católica de SP Universidade Federal de Minas Gerais

José Manuel Pérez Tornero Vicente Sánchez Biosca


Un. Aut. de Barcelona - Espanha Universidad de Valencia - Espanha

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 4
Significação
Revista de Cultura Audiovisual
dezembro 2013

40
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Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

Significação: Revista de Cultura Audiovisual / Programa de Pós-Graduação


em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo. - - n.1 (1974) -- São Paulo: Programa de
Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais / ECA/USP, 1974- Brasil.

http://www.usp.br/significacao
Semestral – segundo semestre de 2013
Subtítulo entre 1974 e 2008: Revista brasileira de semiótica
ISSN 1516-4330 (impresso) 2316-7114 (digital)

1. Comunicação 2. Cinema I. Universidade de São Paulo. Escola de


Comunicações
e Artes. Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais
II. Revista de Cultura Audiovisual.

CDD – 21.ed. – 302.2

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 6
/////////// Sumário
/// Apresentação
pág. 11

DOSSIÊ - História e Audiovisual

//////////// Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em


pág. 13 Buenos Aires
Arthur Autran

//////////// A conversão para o cinema sonoro no Brasil e o mercado exibidor


pág. 29 na década de 1930
Rafael de Luna Freire

//////////////////////// Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre


pág. 52 cinema e censura
Ana Maria Veiga

///////////////// Sob o signo d ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do


pág. 74 Brasil
Carlos Eduardo Pinto de Pinto

//////////////// Figuras do mal no filme biográfico brasileiro


pág. 96
Cristiane Freitas Gutfreind

//////////////////////// O Senhor está vendo, mas Stálin não: representação do embate


pág. 111 ideológico no período da guerra fria na Itália
Mariarosaria Fabris

///////////////// Israel: Nova história e cinema pós-sionista


pág. 132 Sheila Schvarzman

///////////////// A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971)


pág. 153 e El diálogo de América (1972)
Ignacio Del Valle Dávila e Carolina Amaral de Aguiar
ARTIGOS

///////////////// O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas


pág. 173 Arilson Oliveira

/////////// Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González


pág. 189 Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental
Cláudio Coração

/// O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard


pág. 208
Roberta Veiga

//////////// A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança


pág. 224 documental em falsos found footage de horror
Rodrigo Carreiro

//////////// Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em


pág. 245 Pi’õnhitsi and Mokoi Tekoá Petei Jeguatá
André Brasil

REVIEWS

//////////// Visões da Câmera clara


pág. 268 Reuben da Cunha Rocha

//////////// O rosto e a vida da sala de cinema na Lisboa do século XX


pág. 279 Talitha Ferraz e João Luiz Vieira

//////////////////////// Convocação da mais armada


pág. 288 Andrea Limberto Leite
/////////// Contents
/// Presentation
page 11

DOSSIÊ - História e Audiovisual

//////////// Close encounters Brazil and Argentina: Adhemar Gonzaga in


page 13 Buenos Aires
Arthur Autran

//////////// The conversion to sound cinema in Brazil and its theatrical


page 29 exhibition market in the 1930’s
Rafael de Luna Freire

//////////////////////// Tereza Trautman and Os homens que eu tive: a history on cinema


page 52 and censorship
Ana Maria Veiga

///////////////// Under the signs of ambiguity: an analysis of Anchieta, José do


page 74 Brasil
Carlos Eduardo Pinto de Pinto

//////////////// Figures of evil in Brazilian biographical film


page 96
Cristiane Freitas Gutfreind

//////////////////////// God is watching, but not Stalin: ideological fight’s representation


page 111 during the Cold War in Italy
Mariarosaria Fabris

///////////////// Israel: New history and post zionist cinema


page 132 Sheila Schvarzman

///////////////// The Chilean way in debate: an analyze of Compañero presidente


page 153 (1971) and El diálogo de América (1972)
Ignacio Del Valle Dávila e Carolina Amaral de Aguiar
ARTICLES

///////////////// The film The name of the rose: secret among flowers and
pág. 173 laughter into flames
Arilson Oliveira

/////////// Communication in conflict in Alejandro González Iñárritu


pág. 189 cinema: ethos and documental fictionality
Cláudio Coração

/// Time, painting, and politcs in Godard’s Passion


pág. 208 Roberta Veiga

//////////// The diegetic camera: narrative legibility and documental


pág. 224 verisimilitude in found footage horror films
Rodrigo Carreiro

//////////// Mise-en-abyme of the culture: the space behind the camera in


pág. 245 Pi’õnhitsi and Mokoi Tekoá Petei Jeguatá
André Brasil

REVIEWS

//////////// Visions from Camera lucida


pág. 268 Reuben da Cunha Rocha

//////////// The face and life of Lisbon movie theaters in the 20th century
pág. 279 Talitha Ferraz e João Luiz Vieira

//////////////////////// Armed calling for sur plus


pág. 288 Andrea Limberto Leite
/////////// Apresentação

Neste número, a Revista Significação: Revista de Cultura


Audiovisual apresenta o dossiê “História e Audiovisual”, além de
artigos livres e resenhas. Em relação ao recorte temático, deve ser
ressaltada a atualização bibliográfica trazida pelas mais diferentes
abordagens que deram ênfase ao cinema e ao seu contexto
histórico. Assim, o texto de abertura do dossiê traz Arthur Autran,
que analisa as relações entre as cinematografias da Argentina e do
Brasil nas décadas de 1930 e 1940, tendo como eixo central a visita
de Adhemar Gonzaga a Buenos Aires em 1934 e os contatos ali
estabelecidos. Já Rafael de Luna Freire examina a conversão do
circuito cinematográfico exibidor brasileiro para a projeção de
filmes sonoros, atentando para as particularidades regionais e as
dimensões tecnológicas e econômicas entre os anos 1929 e 1935.
Ana Maria Veiga, por sua vez, se debruça sobre uma cineasta e
filme pouco estudados, a saber, Tereza Trautman e o seu primeiro
longa-metragem, Os homens que eu tive (1972), filme que após
sua estreia foi censurado por vários anos. Outro artigo que resgata
obra não muito estudada nos meios acadêmicos é “Sob o signo da
ambuiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil”, de Carlos
Eduardo Pinto de Pinto. O autor valoriza o exame dos sentidos
históricos produzidos pelo filme e apropriados pelos diferentes
segmentos socioculturais da época. Cristiane Freitas Gutfreind
recupera os filmes biográficos de ficção sobre a ditadura militar
brasileira, especificamente, Zuzu Angel (Sérgio Resende, 2006),
para tratar das figuras do mal e sua representação cinematográfica.
Mariarosaria Fabris reflete sobre o embate ideológico entre
esquerda e direita na Itália, durante o período da Guerra Fria, e suas
consequências no campo da representação cinematográfica. Sheila
Schvarzman, em “Israel: Nova história e cinema pós sionista”,
aborda como os documentários de Eyal Sivan dialogam com o
movimento cultural e político que faz a revisão da história da criação
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de Israel. Por fim, o último artigo do dossiê, o de Ignacio Del Valle


Dávila e Carolina Amaral de Aguiar, traz as visões complementares
sobre o primeiro ano do governo da Unidade Popular (1970-1973)
do presidente Salvador Allende presente em Compañero presidente
(Miguel Littin, 1971) e El diálogo de América (Álvaro Covacevich,
1972), realçando as tensões ideológicas decorrentes das visões que
a esquerda tinha da experiência chilena. Na seção de artigos livres,
Arilson Oliveira recupera o sentido histórico da rosa e do riso a
propósito de O Nome da Rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud.
Claudio Coração identifica os aspectos relacionados ao problema da
comunicação em Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel
(2006), de Alejandro González Iñárritu. Roberta Veiga recompõe
o desenho do mecanismo fílmico de Jean-Luc Godard, em Passion
(1982), a partir da pintura, da discussão sobre o tempo e do político.
Rodrigo Carreiro analisa como os falsos documentários de horror
codificados como found footage tem sido massivamente realizados
nas últimas duas décadas. Por fim, André Brasil se dedica ao exame
do conceito de antecampo pensado a partir de dois documentários
- Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá , vinculados ao cinema
indígena da equipe Vídeo das Aldeias.

A Revista dá continuidade neste número à seção de resenhas,


valorizando o debate em torno da produção acadêmica recente.

Boa leitura!

Os editores

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 12
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///////////////////
Contatos imediatos Brasil e
Argentina: Adhemar Gonzaga
em Buenos Aires1

Arthur Autran2

1. Este artigo foi desenvolvido com o apoio do Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico por meio do Edital 07/2011.
Uma primeira versão foi apresentada no XVI Encontro da Socine,
ocorrido no Centro Universitário Senac, em São Paulo.

2. Doutor pelo Instituto de Artes da Unicamp. É professor do


Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São
Carlos. Bolsista PQ nível 2 do CNPq. E-mail: [email protected].

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Resumo Este artigo enfoca as relações entre as cinematografias da Argentina


e do Brasil nas décadas de 1930 e 1940, tendo como eixo central a
visita de Adhemar Gonzaga a Buenos Aires em 1934 e os contatos
ali estabelecidos. O artigo também aborda a excursão do astro
de Hollywood Ramón Novarro pela América do Sul, uma das
motivações da viagem de Gonzaga.

Palavras-chave História do cinema, cinema brasileiro, cinema argentino,


Hollywood.

Abstract This paper focuses on the relations between the cinematography of


Argentina and the cinematography of Brazil in the 1930s and 1940s,
with the central axis Adhemar Gonzaga’s visit to Buenos Aires in
1934 and the contacts established there. The paper also discusses
the tour of Hollywood star Ramón Novarro in South America, one
of the motivations of the trip of Gonzaga.

Keywords Film history, Brazilian cinema, Argentine cinema, Hollywood.

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

Introdução

A partir da análise dos discursos historiográficos a respeito da


trajetória das cinematografias da Argentina e do Brasil entre 1930 e
1945, este artigo discorre sobre os intercâmbios ocorridos entre elas
ao longo do período mencionado, com destaque para a passagem
de Adhemar Gonzaga por Buenos Aires em 19343.
3. Este artigo não seria possível sem o Em primeiro lugar, é preciso notar que, no caso da Argentina, a
material coletado no Arquivo Cinédia.
historiografia clássica do cinema indica o período que vai de 1933
Agradeço a D. Alice Gonzaga pelo
acesso. Agradeço também a Carlos até 1942 como “la época de oro”, título da parte referente a esse
Roberto de Souza, que me indicou interregno de tempo no livro fundador da historiografia daquele
fontes e referências bibliográficas país, escrito pelo crítico Domingo di Núbila e cuja primeira
fundamentais para a pesquisa.
edição data de 1960. Isso porque no período 1933-1942 surgiram:
os estúdios Argentina Sono Films, Lumiton, Pampa Film e San
Miguel, entre outros; um star system com artistas como Hugo Del
Carril, Libertad Lamarque, Luis Sandrini, Niní Marshall e Tita
Merello; diretores como Francisco Mugica, Lucas Demare, Luis
Saslavsky, Manuel Romero e Mario Soffici. Outrossim, houve
consistente avanço do produto nacional no mercado interno
e no latino-americano. O auge desse processo ocorre com o
lançamento e o sucesso de público e crítica de A guerra gaúcha
(La guerra gaucha, Lucas Demare, 1942), que, para Di Núbila:
“Foi a película de maior êxito do cinema argentino e também
uma das melhores”4 (1998, p. 392).
4. As traduções para o português Muito outra foi a situação brasileira ao longo dos anos 1930
neste artigo foram feitas pelo autor.
até o final da 2ª Guerra Mundial, cujas experiências industriais

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Dossiê - História e Audiovisual

surgidas no início da década, tais como a Cinédia e a Brasil Vita


Film, fracassaram em termos econômicos. O quadro brasileiro
ficou caracterizado pela pequena produção de filmes de ficção
e a manutenção da atividade por meio da produção de curtas-
metragens e cinejornais, os quais eram exibidos compulsoriamente
por meio da lei 21.240 de 1932. Essa situação levou Alex Viany
(1959, p. 100), na sua obra fundadora Introdução ao cinema
brasileiro, publicada em 1959, a considerar que, após o advento
do som, o cinema brasileiro seria como “um rapazinho inteligente
que, exatamente ao atingir a maioridade, levara um tombo e
voltara ao tatibitate”.

E se a Argentina, segundo César Maranghello, em 1942,


“constituía um perigo real” para os lucros da indústria norte-
americana de cinema ao ponto de os Estados Unidos diminuírem
o fornecimento de filme virgem a fim de prejudicar a produção do
país sul-americano (MARANGHELLO, 2005, p. 112)5; já no Brasil,
5. Sem negar que a concorrência ao longo dos anos 1930 e 1940, o contexto da produção local, na
comercial levou os Estados Unidos visão de Paulo Emílio Salles Gomes (1980, p. 32), era marcado por:
a restringir a exportação de filme
virgem para a Argentina, é de
observar que outra razão para a Algumas leis paternalistas de amparo asseguram o
restrição foi a posição neutra prolongamento dos péssimos jornais cinematográficos
assumida por este país na maior parte e, numa fase posterior, obrigam as salas a exibir uma
da Segunda Guerra Mundial, pois o pequena percentagem de filmes brasileiros de enredo.
filme virgem era considerado insumo
estratégico pelos Estados Unidos
(GETINO, 1998, p. 37-38). É possível perceber que a diferença entre a situação concreta da
produção de ambos os países no período levou a que o tom do
discurso historiográfico acerca dele fosse bem distinto. Mais do
que isso: a própria dedicação dos historiadores também apresenta
notável discrepância, pois se, na Argentina, a década de 1930 até
hoje é tema de artigos e livros, no Brasil, só recentemente o período
parece ter despertado algumas análises mais percucientes.
Ainda em relação à historiografia clássica, há diversos elementos
comuns no discurso historiográfico: narrativas que se pretendem
um panorama totalizador a respeito do passado cinematográfico
nacional; a inspiração no modelo ditado por Georges Sadoul; a
teleologia; a centralidade da produção em detrimento de outras
áreas; a importância da constituição do cânone artístico etc.

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

Quanto à produção historiográfica contemporânea, podemos


destacar trabalhos como os de Raúl Horacio Campodónico (2005),
Ana Laura Lusnich (2007) e Rafael de Luna Freire (2011). Trincheras
de celuloide, de Campodónico, a partir de uma perspectiva bastante
crítica em relação à historiografia clássica do cinema argentino —
representada, sobretudo, por autores como Domingo di Núbila
—, proporciona ampla discussão sobre as relações entre cinema e
Estado de 1933 a 1958, cobrindo as diferentes formas de intervenção
estatal — censura, pressões políticas, medidas protecionistas,
financiamento etc. — em todo o período da produção industrial
no país vizinho. Já El drama social-folclórico, obra originada da
tese de doutorado de Ana Laura Lusnich, objetiva estudar um dos
principais “modelos cinematográficos” argentinos no marco que vai
de 1933 a 1956, elaborando uma criteriosa divisão de tipos de drama
ambientado no campo a partir dos quais a autora busca entender
a estrutura narrativa, o sistema de personagens, a constituição
das imagens etc. Quanto a Carnaval, mistério e gangsters, tese de
doutoramento de Rafael de Luna Freire ainda inédita na forma
de livro, a partir de uma discussão aprofundada em torno dos
gêneros, busca-se historicizar o filme policial no quadro do cinema
brasileiro entre 1915 e 1951. Um primeiro dado que chama a
atenção nesses estudos é que eles evitam o recorte panorâmico e
constituem de forma clara os seus objetos de pesquisa; outro dado
que deve ser destacado é a conciliação entre a pesquisa em relação
às fontes (sejam os filmes propriamente ditos, sejam textos críticos
mais ou menos contemporâneos ao lançamento dos filmes, sejam
documentos legais, entre outros) e a verticalização da discussão
teórica (de cunho historiográfico, das teorias sobre gênero ou das
teorias sobre a narração etc.).

Os intercâmbios entre Argentina e Brasil no campo do cinema

Ontem como hoje permanece na sombra uma questão: qual a


relação entre as cinematografias dos dois países ao longo do período
1930-1945? Trata-se de uma problemática ainda praticamente
intocada pela historiografia, como, aliás, pouco se discutem também
os intercâmbios em outros períodos. A pouca atenção para com as

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Dossiê - História e Audiovisual

relações entre as duas cinematografias deve-se a uma característica


da historiografia já apontada por Paulo Antônio Paranaguá: o
recorte ser determinado pelas fronteiras nacionais. O mesmo autor
observa que isso já é quase naturalizado na história do cinema, e
os primeiros trabalhos canônicos do campo de estudos recorriam a
esse tipo de recorte (PARANAGUÁ, 2000, p. 109).

Ao contrário do que se possa pensar, não se tratava de algo


estanque, ou seja, cada país encapsulado na sua luta contra o
produto norte-americano — dominante em ambos os mercados —
e buscando bravamente construir a sua própria indústria de filmes.

O sinal mais evidente de que havia trocas se relaciona com o


fato de as fitas argentinas de sucesso terem sido comercializadas no
mercado brasileiro. Por exemplo, a comédia Riachuelo (Luis Moglia
Barth, 1934), com Luis Sandrini à frente do elenco, foi exibida em
São Paulo no cine Glória em outubro de 1935 (Correio Paulistano,
13 out. 1935, p. 10). Trata-se de uma comédia importante, pois,
para além do público alcançado na Argentina, ela apresenta tipos
populares e situações cômicas que marcaram a produção do país
vizinho. Madreselva (Luis César Amadori, 1938), película estrelada
por Libertad Lamarque, foi exibida a partir das 14 horas do dia 12
de fevereiro de 1939 no cine Rosário, também em São Paulo, e o
anúncio publicitário divulga ainda que na mesma sala haveria duas
sessões, às 16h20 e às 21h20, com a atriz e cantora se apresentando
no palco — ela é chamada no anúncio de “a alma da canção
argentina” (Folha da Manhã, 12 fev. 1939, p. 7). O já citado A
guerra gaúcha também passou no Brasil, conforme anúncios que
divulgam sua exibição em dezembro de 1944, no Pathé, no Rio
de Janeiro (Correio da Manhã, 19 dez. 1944, p. 1). E, pelo menos
no caso de Bonequinha de seda (Oduvaldo Viana, 1936), uma
produção da Cinédia, houve a tentativa brasileira de alcançar o
mercado portenho (GONZAGA, 1987, p. 66).

Para além dos filmes, também havia circulação de profissionais.


Oduvaldo Viana, o diretor de Bonequinha de seda e já então
conhecido como dramaturgo, viajou em 1938 para a Argentina e
lá realizou a fita El hombre que nació dos veces (1938). Ademais,
ele teve adaptada para o cinema a sua peça Amor: o filme de título
homônimo foi dirigido por Luis Bayón Herrera em 1940.

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

Em outra chave, mais ligada ao intercâmbio cultural, merece


ser mencionado Embrujo (Enrique Susini, 1941), filme da Lumiton
que ficcionaliza o romance entre D. Pedro I e D. Domitila de
Castro, com Jorge Rigaud no papel do imperador brasileiro e que
entre nós foi lançado com o título A marquesa de Santos. Trata-
se de uma das produções mais caras feitas até então na Argentina
(NÚBILA, 1998, p. 338).

Em termos comerciais, destaca-se no período a implantação


de uma representação da Distribuidora Panamericana no Brasil.
Segundo o pesquisador Héctor R. Kohen, o produtor Miguel
Machinandiarena, proprietário dos Estudios San Miguel e
da Panamericana, veio ao Brasil em 1942 acompanhado por
Augusto Alvarez e Eduardo Morera para instalarem um escritório
da distribuidora argentina. No mesmo ano, Eduardo Morera
entregou cópias de Melodías de América (Eduardo Morera, 1941)
e En el viejo Buenos Aires (Antonio Momplet, 1942) para Alzira
Vargas, a filha de Getúlio Vargas, e, em 1943, enviou um curta-
metragem para o próprio presidente da República. Tratava-se de
uma evidente tentativa de aproximação com o governo brasileiro.
Ainda em 1943, Miguel Machinandiarena veio ao Brasil e ofereceu
um jantar na ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no qual
esteve presente Israel Souto — diretor da Divisão de Cinema e
Teatro do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) —,
que, por sua vez, no ano seguinte, foi a Buenos Aires a convite dos
Estudios San Miguel e da produtora Artistas Argentinos Asociados
(KOHEN, 2000, p. 352-355). Para a imprensa argentina, Israel
Souto declarou que a produção de cinema no Brasil tinha como
óbice a existência de “poucos elementos artísticos”, além de
destacar positivamente a existência da exibição obrigatória de
curtas-metragens nacionais (Declaraciones del dr. Israel Souto.
Heraldo del Cinematografista, 26 abr. 1944, p. 58).

Conforme Michèle Lagny (1992, p. 101), as fronteiras nacionais


não são impenetráveis e a “circulação dos filmes de um país para o
outro acarreta todo um jogo de influências recíprocas”. Outrossim,
é necessário observar com essa historiadora que a produção
industrial com base no capital privado tende a buscar o mercado

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Dossiê - História e Audiovisual

exterior, da mesma forma que outros ramos industriais (1992, p.


100). A produção argentina almejou ocupar ao longo dos anos 1930
e 1940 parte do mercado da América Latina, além da alguns países
europeus como a Espanha, o que incluiu a tentativa de ampliar o
seu acesso ao mercado brasileiro.

Adhemar Gonzaga visita Buenos Aires

As visitas dos profissionais do meio cinematográfico de um país ao


outro eram relativamente constantes no período 1930-1945. O ator
Armando Louzada foi a Buenos Aires em 1940 e aproveitou para
conhecer os estúdios locais (LOUZADA, 1940). E José A. Mentasti,
um dos chefes da Argentina Sono Films, veio ao Rio de Janeiro
nesse mesmo ano e deu longa entrevista para a imprensa local
clamando por mais espaço nas salas de cinema para as produções
da nação vizinha (MENTASTI, 1940) — essa declaração, aliás,
reforça a asserção de Michèle Lagny apontada acima.

Mas, antes desses visitantes, quem esteve na Argentina, no ano


de 1934, foi o principal produtor do cinema brasileiro, Adhemar
Gonzaga, que em 1930 criara a Cinédia. Segundo suas próprias
palavras ao jornal A Noite, em entrevista publicada em 1932, ele
tinha os seguintes objetivos com a Cinédia:

Vamos produzir bons filmes, com a vantagem de terem


espírito e o pensamento brasileiros. Não apenas para
mostrar as belezas naturais aos estrangeiros, mas visando à
educação de nosso povo. (apud GONZAGA, 1987, p. 11).

Esse trecho da entrevista deixa perceber claramente que as ideias


do crítico de cinema Adhemar Gonzaga, expostas reiteradamente
em Para todos — entre 1924 e 1926 — e em Cinearte — a partir de
1926 —, estavam sendo retomadas no contexto da agenda político-
cultural do governo formado com a Revolução de 1930. Em artigo
datado de 1926, Gonzaga já defendia o papel ideológico do cinema
para a formação da nacionalidade brasileira:

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

O Cinema se tornou um fator de peso no comércio


internacional, só por seu intermédio é que se conseguirá
fazer propaganda das coisas maravilhosas da nossa terra,
e ainda com ele ensinaríamos aos brasileiros a serem
brasileiros e não pernambucanos, baianos, paulistas etc.
(GONZAGA, 1926).

No entanto, também havia diferenças cruciais nas posições de


Gonzaga antes e depois de 1930. Nesse mesmo artigo de 1926, ele
atacava o filme “natural” — ou seja, a não ficção — e defendia
que o “posado” — a ficção — era “o único que nos [aos brasileiros]
adianta”. Paulo Emílio Salles Gomes (1974, p. 308-309) observa
que o “natural” garantia “a continuidade do cinema brasileiro”,
enquanto o “posado” colocava “em risco a própria estabilidade e a
permanência da cinematografia nacional”; mas Adhemar Gonzaga
não tinha consciência da estrutura econômica da produção
brasileira nos anos 1920, e seus objetivos tinham por base “modelos
longínquos que só tinham a ver conosco o fato de os consumirmos”.
Ou seja, ao mirar em Hollywood, Gonzaga não atentava que o
filme “natural” permitia aos produtores continuar na atividade
ao responder às demandas das elites econômicas e políticas de
filmagens que registrassem o seu poder; já a ficção não encontrava
lugar nas salas de cinema e, mesmo ao ser exibida, poucas vezes
tinha público, o que levava à descapitalização dos produtores.

Conforme sabemos, outra será a postura de Adhemar Gonzaga


na década seguinte, ainda mais diante da Lei 21.240, de 1932,
que garantia a exibição compulsória do filme de curta-metragem
de caráter educativo. A Cinédia já a partir de 1933 produziu
curtas-metragens documentários como Ameba (Edgard Roquette-
Pinto) e Como se faz um jornal moderno (Adhemar Gonzaga)
(GONZAGA, 1987, p. 159).

Quando da viagem de Gonzaga à Argentina em 1934, além


desses e de outros filmes curtos, a Cinédia já havia lançado
comercialmente os seguintes longas-metragens: Lábios sem beijos
(Humberto Mauro, 1930), Mulher (Octavio Gabus Mendes,
1931), Ganga bruta (Humberto Mauro, 1933) e A voz do Carnaval
(Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, 1933). É de notar que

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Dossiê - História e Audiovisual

as três primeiras produções obedeçam ao programa do crítico


recém-convertido em produtor: trata-se de películas de ficção
interpretadas pelo que se pretendia o star system da produtora e
com forte destaque para os desencontros e encontros amorosos;
outrossim, no caso do primeiro e do terceiro filmes, a ambientação
dominante era a da alta sociedade. Já A voz do Carnaval foi uma
produção caracterizada pelas filmagens bastante rápidas e que
apresentava diversos números com músicas de sucesso, tais como
Linda morena — de Lamartine Babo — e Fita amarela — de Noel
Rosa —, além de “um entrecho cômico” com Palitos e Jararaca,
entre outros artistas (GONZAGA, 1987, p. 42-43).

Afigura-se que Adhemar Gonzaga, diante do custo elevado


dos três primeiros filmes, do investimento nos estúdios e da falta
de recuperação financeira nas bilheterias, começava a agir menos
como crítico e mais como produtor, daí a importância de A voz do
Carnaval na filmografia da Cinédia.

E por que Gonzaga foi à Argentina? É sabido o seu interesse


em acompanhar de perto o desenvolvimento da indústria
cinematográfica em Hollywood, o que já havia motivado
três viagens suas aos Estados Unidos, em 1927, 1929 e 1932
(GONZAGA; AQUINO, 1989, p. 150). No entanto, o cinema
argentino, que logo apresentaria alto grau de desenvolvimento,
ainda buscava se estruturar com a fundação de empresas como
a Lumiton — criada em 1932 — e a Argentina Sono Films —
em 1933. No ano de 1933, foram produzidos apenas seis longas-
metragens e no ano seguinte, sete, números que ainda não
discrepavam do cinema brasileiro, cuja produção nesses mesmos
anos foi, respectivamente, de dez e sete longas.

As motivações podem e devem ter sido diversas, mas o que


possibilitou e/ou deu impulso fundamental para o jornalista e
produtor Adhemar Gonzaga viajar à Argentina foi o cinema norte-
americano. É de notar que Gonzaga continuava ligado à revista
Cinearte, e esta, conforme é sabido, tinha na cobertura do cinema
hollywoodiano o seu principal eixo.

Em 1934, o astro Ramón Novarro fez uma grande excursão


pela América do Sul. Hoje pouco lembrado, esse ator de origem

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

mexicana estrelou filmes da MGM de enorme sucesso de público,


tais como O bem amado (Ben Hur, Fred Niblo, 1925), O pagão (The
pagan, W. S. van Dyke, 1929), Mata Hari (George Fitzmaurice,
1931) — no qual contracenava com Greta Garbo — e Uma noite
no Cairo (The barbarian, Sam Wood, 1933). Nessa excursão,
que incluiu o Brasil, o Uruguai e a Argentina, Ramón Novarro
apresentou-se em espetáculos ao vivo na companhia de sua irmã
Carmen Samaniego, nos quais ele cantava e dançava. Saindo dos
Estados Unidos em abril de 1934, no navio Northern Prince, ele
foi acompanhado também por Carlos Borcosque6 — que fora seu
6. De origem chilena, Carlos assistente de direção na película La Sevillana (1931), versão em
Borcosque, após viver em espanhol de Sevilha dos meus amores (Call of the flesh, Charles
Hollywood, foi contratado pela Sono Brabin, 1930), ambas com Novarro no elenco. A chegada ao Rio
Films e se fixou na Argentina a partir
de Janeiro e a saída de lá levaram grandes multidões ao porto.
de 1938 como diretor. Realizou,
entre muitos outros filmes, obras Em Montevidéu e em Buenos Aires, sua estadia também trouxe
importantes como Alas de mi patria muita gente para as ruas a fim de vê-lo. O ator ainda retornou ao
(1939), Y mañana serán hombres Rio de Janeiro, onde permaneceu vários dias (SOARES, 2010, p.
(1939) e El tambor de Tacuarí (1948)
197-199). Nessa estada no Rio, Ramón Novarro apresentou-se no
(OLIVERI, 2011, p. 23-26).
Palácio Teatro no final de junho; e, a seguir, foi a São Paulo, onde
fez espetáculos no Cine Odeon a partir do início do mês seguinte
(Folha da Manhã, 21 jun. 1934, p. 12). De Santos, o astro voltou
para os Estados Unidos no dia 12 de julho (Folha da Manhã, 12
jul. 1934, p. 13). O programa da primeira apresentação de Ramón
Novarro e sua irmã em São Paulo, ocorrido no Odeon a 3 de julho,
foi divulgado pela imprensa:

1º - Ouverture pela grande orquestra de 25 professores


sob a regência do maestro argentino Eduardo Armani; 2º
- RN numa canção do filme Uma noite no Cairo; 3º - RN
na canção “El Platero”; 4º - Carmencita Samaniego no
bailado “Alegrias”, de Valverde; 5º - RN em “Charming”,
do filme O Bem amado; 6º - RN na “Serenata del Paltor”,
do filme O Bem amado; 7º - Carmencita no bailado “La
Farruca”; 8º - RN em um número de surpresa; 9º - Sinfonia
pela orquestra; 10º - RN e Carmencita em “Mírala bien”.
(Folha da Manhã, 4 jul. 1934, p. 16).

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A Folha da Manhã noticiou que os espetáculos em São Paulo


tiveram ótimo público. Ramón Novarro chegou mesmo a interpretar
a canção brasileira Se a lua contasse, que, ainda segundo o jornal,
ele cantou “com muita graça e em muito bom português” (Folha da
Manhã, 6 jul. 1934, p. 6).

Quando da primeira chegada de Ramón Novarro ao Rio de


Janeiro, em abril de 1934, Cinearte destacou o fato e publicou
duas páginas com fotos do ator, sendo uma cobrindo os passeios
que ele fez pela cidade e outra da despedida no porto. Esta página
apresenta uma imagem da multidão no cais diante do navio. A
legenda da foto é a seguinte:

O “adios” [de Ramón Novarro] ao Rio, na memorável


tarde de 20 de abril, vendo-se a bordo o diretor de
“Cinearte”, Adhemar Gonzaga, que partiu para Buenos
Aires acompanhando o astro da M.G.M. (Cinearte, 1
maio 1934, p. 6) [grifou meu].

Ou seja, Gonzaga teve como uma das motivações da sua viagem


a Buenos Aires a cobertura da turnê de Ramón Novarro na América
do Sul. Uma vez na capital argentina, o jornalista e produtor
brasileiro aproveitou para, além de fazer o trabalho jornalístico,
também travar contatos com a cinematografia local. No Arquivo
Cinédia, é possível encontrar fotos dele nos estúdios da Lumiton,
o que demonstra cabalmente os contatos aos quais me referi. É
importante observar que, em anotações apensas às fotos, Gonzaga
identifica a presença de Carlos Alberto Pessano, chefe de redação da
revista Cinegraf, a homóloga de Cinearte na Argentina — ou seja,
ambas eram revistas ricamente ilustradas por fotos e voltadas para os
fãs de cinema, com uma cobertura marcadamente direcionada para
Hollywood. Uma das fotos apresenta ambos no set de filmagem da
película Ayer y hoy (Enrique T. Susini, 1934), ao de lado de atores
e técnicos. Aparentemente, foi Pessano quem ajudou a introduzir o
produtor brasileiro no universo cinematográfico local.

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

Carlos Alberto Pessano era um crítico de corte conservador


e bastante respeitado na imprensa argentina. Apesar de Cinegraf
ser dedicada, sobretudo, ao produto hollywoodiano, Pessano,
por meio da coluna “Primer Plano”, frequentemente se referia à
produção nacional com posturas “tão exacerbadamente normativas
quanto moralistas” (CAMPODÓNICO, 2005, p. 59) — o que
não deixa de lembrar a perspectiva de Adhemar Gonzaga nos anos
1920. Pessano seria nomeado, em 1936, diretor técnico do então
recém-criado Instituto Cinematográfico Argentino, voltado para
a produção de documentários de cunho informativo e educativo.
Esse era também o órgão responsável pelo veto à exportação de
filmes argentinos que pudessem criar uma imagem negativa do país
no exterior (MARANGHELLO, 2000, p. 32 e 45).

É de observar que a relação entre Gonzaga e Pessano estendeu-


se para além da viagem, pois o brasileiro indicou Gilberto Souto,
o correspondente de Cinearte em Hollywood, para também ser
correspondente de Cinegraf7, o que de fato ocorreu por algum
7. Carta de Carlos Alberto Pessano tempo. Pessano, na sua correspondência a Gonzaga, pede que este
para Adhemar Gonzaga. [S.l.]: 1934. envie informações sobre o cinema brasileiro, a fim de “publicizar”
Arquivo Cinédia. Rio de Janeiro. nossa produção na Argentina por meio de Cinegraf. Ao mesmo
tempo, prontifica-se a enviar fotos e notícias; ademais, ele fez
comentários entusiasmados em torno de Riachuelo, película que,
apesar de baseada em um “sainete vulgar”, estaria sendo “realizada
com um critério verdadeiramente cinematográfico” e seria “uma
surpresa realmente inesperada”8. Como já mencionei, Riachuelo
foi estrelada pelo célebre cômico Luis Sandrini, e seu público foi
8. Carta de Carlos Alberto Pessano
para Adhemar Gonzaga. [S.l.]: 14 grande, fazendo sucesso não apenas em Buenos Aires mas também
jul. 1934. Arquivo Cinédia, no interior do país e na América Latina, a qual “sonhou com a noite
Rio de Janeiro. de Buenos Aires e imitou a fala entrecortada de Luis Sandrini”
(ESPAÑA, 1984, p. 59).

Cumpre ainda anotar que no Arquivo Cinédia há bastante


material sobre a Argentina no que tange às informações sobre o
mercado local e a respeito das diversas propostas de legislação nos
anos 1930 e 1940.

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Dossiê - História e Audiovisual

Considerações finais
Essa passagem de Adhemar Gonzaga por Buenos Aires e a
documentação que integra o Arquivo Cinédia, por si sós, indicam a
existência de relações entre as cinematografias brasileira e argentina
nos anos 1930 e 1940, e não de dois entes estanques, sem quaisquer
contatos. Afigura-se importante assinalar isso, pois a historiografia
do cinema, com os seus recortes fortemente vinculados às fronteiras
de cada nação e eivada por uma perspectiva evolucionista, construiu
uma imagem segundo a qual o contato entre as cinematografias do
subcontinente latino-americano teria florescido apenas nos anos
1960, sob a égide dos Cinemas Novos.
Outrossim, o fato de a visita de um astro do cinema norte-
americano à América do Sul ter sido o motor da viagem do
principal produtor brasileiro ao país vizinho demonstra o papel
importante que Hollywood jogou, ainda que involuntariamente,
para o avanço dos contatos cinematográficos na América
Latina. O internacionalismo da dominação do cinema norte-
americano possibilitou, sem que isso fizesse parte do programa
de Hollywood, uma maior aproximação entre as cinematografias
da Argentina e do Brasil.
Finalmente, parece muito provável a hipótese de que a estratégia
de Adhemar Gonzaga passava nesse momento pela composição com
o cinema dominante, e não pela oposição a ele, isso até pelo fato
de que o produtor continuava ligado à Cinearte e, inclusive, nesse
momento, ocupava a direção da revista. Além de querer emular a
forma e o modo de produção do filme hollywoodiano, Gonzaga não
parecia disposto a confrontar as majors, mas sim a compor com elas;
daí, talvez, a falta de reivindicação de uma política protecionista por
parte do Estado que impedisse a importação do produto estrangeiro,
contentando-se com a exibição obrigatória do curta-metragem tal
como previsto na Lei 21.240 — o que implicava confronto com os
exibidores, e não com as distribuidoras de filmes estrangeiros. A
“ambigüidade”, a qual se refere Paulo Emílio Salles Gomes (1974,
p. 321), que “habitava o íntimo de Adhemar Gonzaga”, lastreada no
fato de que ele, como todos os fãs da sua época, aprendera a amar o
cinema com base no filme norte-americano e admirava Hollywood
incondicionalmente, mesmo buscando com todas as suas forças
desenvolver uma indústria cinematográfica nacional, continuava a
assombrar o jornalista e agora principal produtor brasileiro.

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Contatos imediatos Brasil e Argentina: Adhemar Gonzaga em Buenos Aires | Arthur Autran

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submetido em: 15 ago. 2013 | aprovado em: 25 set. 2013

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A conversão para o
cinema sonoro no Brasil
e o mercado exibidor na
década de 1930
Rafael de Luna Freire1

1. Professor do curso de graduação em cinema e audiovisual da


Universidade Federal Fluminense e da Pós-Graduação em
Comunicação da UFF. E-mail: [email protected]

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Resumo
O artigo analisa a conversão do circuito cinematográfico exibidor
brasileiro para a projeção de filmes sonoros, atentando para as
particularidades regionais e para as dimensões tecnológicas e
econômicas. Ao examinar como esse processo ocorreu em caráter
nacional, são identificadas três fases: a chegada do cinema sonoro
às principais cidades brasileiras (1929-1930); a lenta conversão dos
circuitos secundários (1931-1933) e as dificuldades geradas pela
necessidade de padronização tecnológica (1934-1935).

Palavras-chave
Cinema sonoro, exibição, tecnologia.

Abstract
This article analyses the adaptation of Brazilian movie theaters
to sound film projection with special attention to the local
particularities and its economic and technologic dimensions. It is
described how this process took place nationwide, identifying three
different phases: the arrival of the talkies in the main Brazilian
cities (1929-1930); the slow expansion of sound projection in the
secondary circuit (1931-1933); and the difficulties of technology
standardization (1934-1935).

Keywords
Sound film, exhibition, technology.

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

Introdução

A adaptação das salas de cinema das cidades de São Paulo e Rio


de Janeiro para a projeção de filmes sonoros foi relativamente
rápida. Poucos meses após a inauguração do cinema sonoro no
Cine Paramount, em São Paulo, em 13 de abril de 1929, e no
Palácio Theatro, no Rio de Janeiro, em 20 de junho do mesmo
ano, o circuito de primeira linha dessas cidades já tinha sido
convertido para a exibição dos novos talkies. Afinal, esses luxuosos
palácios cinematográficos podiam arcar com a compra e instalação
dos caros e importados projetores Western Electric conjugados
para os sistemas Vitaphone (som em discos) e Movietone (som
ótico) (FREIRE, 2012a). Por outro lado, a febre do sincronizado
não demorou muito para chegar também aos cinemas de bairro,
atingindo o circuito secundário carioca e paulistano.

Entretanto, o ritmo acelerado do processo de conversão


para o cinema sonoro no Rio e em São Paulo não foi repetido
em outras localidades do país. Este artigo pretende demonstrar
como a transformação do circuito nacional com a chegada dos
talkies ocorreu de forma irregular e diferenciada nas várias
regiões do Brasil, fornecendo um quadro mais amplo do
mercado exibidor brasileiro.

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As estreias do cinema sonoro: primeira fase de


conversão (1929-1930)2

2. Abreviações utilizadas: Cine A exemplo do pioneirismo das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
Magazine (CM), Cinearte (CI). foi a região sudeste aquela cujo circuito lançador3 mais rapidamente
se converteu para o cinema sonoro. A cidade de Niterói, então capital
do estado do Rio de Janeiro, conheceu o cinema falado já em 3 de
setembro de 1929, com o filme da Paramount A canção do lobo (dir.
Victor Fleming, 1929). Como ocorrera na vizinha capital federal,
3. As salas de cinema eram
classificadas conforme o luxo, em Niterói o Cine-Theatro Imperial, inaugurado no ano anterior,
conforto, lotação, localização e também expôs durante alguns dias, em seu hall de entrada, as caixas
preço. Os principais filmes eram que vieram dos Estados Unidos com os equipamentos sonoros da
lançados primeiro nas melhores
salas (os cinemas de primeira linha),
Radio Corporation of America (RCA) (FREIRE, 2012b, p. 133-4).
sendo depois exibidos nas demais
Pouco tempo depois, o Photophone RCA também foi a opção
salas (fazendo o circuito).
para a inauguração da projeção sonora no Cinema Coliseu, lançado
na cidade de Santos. O projetor RCA da sala santista era divulgado
como “o 1º aparelho instalado no estado de São Paulo e o 2º no
Brasil” (A Tribuna, 3 out. 1929, p. 10). Realmente, somente após o
Imperial, de Niterói, e o Coliseu, de Santos, é que o Photophone
foi utilizado em outros cinemas brasileiros.

Também em Santos, as caixas com aparelhagem importada


ficaram expostas na sala de espera do Coliseu, principal cinema
da empresa do Comendador Manoel Fins Freixo. A população foi,
inclusive, convidada a assistir, no dia 18 de setembro, à abertura
das 25 caixas de madeira, numa ostensiva exibição daquela que
era considerada a mais moderna tecnologia cinematográfica que
chegava à cidade. O primeiro filme sonoro exibido em Santos,
Melodia da Broadway (dir. Harry Beaumont, 1929), estreou dez dias
depois (A Tribuna, 17 set. 1929, p. 11; A Tribuna, 3 out. 1929, p. 10).

A exposição pública das caixas dos equipamentos sonoros


importados – ocorrida, talvez pela primeira vez, no Palácio Theatro,
no Rio de Janeiro (cf. FREIRE, 2012a, p. 255) – foi aparentemente
uma estratégia repetida por vários exibidores brasileiros, em seus
contextos locais. Aliás, ela foi citada por um jornalista carioca, dois
anos mais tarde, ao lembrar que os “primeiros aparelhos americanos

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

custavam uma pequena fortuna e o cinema que os adquiria deixava


os caixotes em exposição na sala de espera, para mostrar o arrojo do
proprietário” (Diário da Noite, 8 jun. 1931, p. 5).

Além da litorânea Santos, cidades economicamente mais


desenvolvidas do interior de São Paulo também foram rápidas
na conversão. Já no início de outubro de 1929 o jornal Correio
Paulistano (5 out. 1929, p. 12) anunciava a chegada da aparelhagem
norte-americana Pacent, importada pela Empresa Campos &
Cia, para a instalação do cinema sonoro no Cine São José, em
Piracicaba. No dia 24 de outubro, o cinema piracicabano teria
iniciado sua temporada de filmes sonoros com O pagão (dir. W. S.
Van Dyke, 1929) (CARRADORE, 2002, p. 14).

Já em 19 de dezembro de 1929, o Theatro Carlos Gomes,


de Vitória, estreou o cinema falado no Espírito Santo com um
aparelho “dos mais aperfeiçoados e completos” da RCA. Como
em outras cidades, o programa dessa estreia foi exatamente o
mesmo de seis meses antes no Rio de Janeiro: o discurso do cônsul
brasileiro Sebastião Sampaio, as canções de Yvette Rogel, e o já
famoso “filme cantado, falado, bailado, musicado” Melodia da
Broadway (Diário da Manhã, 19 dez. 1929, p. 8).

Depois da região sudeste, foi a região sul a que mais rapidamente


incorporou a novidade, ainda em 1929. Em Curitiba, o luxuoso e
recém-inaugurado Cine-Theatro Avenida, da J. Muzzillo & Filhos,
tinha alardeado a exibição de A divina dama (dir. Frank Lloyd, 1929)
no dia 23 de outubro, com aparelhagem Movietone-Vitaphone
RCA, mas “motivos técnicos” impediram o pioneirismo (República,
20 out. 1929, p. 9). A estreia do sonoro na cidade ocorreu, portanto,
no Palácio Theatro, da Empresa Mattos Azevedo, com o antigo,
mas ainda inédito O cantor de jazz (dir. Alan Crosland, 1927), “o
primeiro filme falado visto no Paraná”, em 24 de outubro de 1929,
exibido com som em discos. Reparado o problema, o Avenida só fez
sua primeira exibição sonora no dia 25 de outubro (SCHWINDEN,
1991; ALVETTI, 1989, p. 28; República, 26 out. 1929, p. 7).

O Palácio Theatro de Curitiba pertencia à empresa do


português Antonio Mattos Azevedo, e, em setembro de 1929, um

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jornal catarinense dizia que já existia cinema falado no Rio, em São


Paulo, em Santos e em Curitiba, tendo sido nesta cidade “instalado
pela Empreza A. Mattos Azevedo”. Em seguida, o jornal dizia
que a mesma empresa instalaria brevemente o cinema falado em
Florianópolis (Cine-Theatro, v. 1, n. 2, set. 1929, p. 1).

Datam também do final de 1929 as primeiras exibições do


cinema sonoro em Porto Alegre. Enquanto Cláudio Todeschini
(1986, p. 115) mencionou a exibição de Melodia da Broadway no
Cinema Central, Susana Gastal (1999, p. 43) indicou que foi o
Cine Apollo que teria introduzido a novidade, afirmando ainda que
“entre 1929 e 1930, mais da metade dos cinemas de Porto Alegre
adapta-se à novidade”. De fato, a estreia do cinema sonoro na cidade
ocorreu com a exibição de Melodia da Broadway no Cine Apollo, da
Greco &. C., no dia 8 de outubro de 1929, equipado com aparelhos
Pacent e cobrando ingressos a caros quatro mil réis (A Federação, 7
out. 1929, p. 6, A Federação, 8 out. 1929, p. 4).

A primazia do Cine Apollo é confirmada ainda por carta escrita


para o jornalista Pedro Lima por um amigo porto-alegrense, datada
provavelmente de 15 de outubro de 1929, na qual era comentada a
chegada da novidade à cidade.4
4. Documento do Arquivo Pedro A correspondência dá uma boa amostra de críticas recorrentes
Lima, Cinemateca Brasileira.
na época da chegada do cinema sonoro, contrapostas, porém,
à inegável atração que a novidade definitivamente gerava no
público espectador:

Estreou aqui o tal de CINEMA FALADO. Boa droga,


foi ao menos a minha opinião e a da maioria d’aqui.
Até te escrevo esta, com este intuito. Não sei se porque
o aparelho de reprodução do som do Cinema Apollo
é muito primitivo, conforme ouvi dizer, ou não sei se
o povo desta capital aprecia o cinema de fato, com C
grande, como já te tenho dito muitas vezes. […]

Mas, como estava te dizendo, o Cinema Apollo


apresentou para a estreia do “talkie” o filme Broadway
Melody, da Metro-Goldwin-Mayer, e primeiro, a título
de “lever de ridau”, na expressão dos anúncios, o trecho
do Barbeiro de Sevilha cantado pelo Tita Ruffo. Mas

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

o aparelho é uma victrola, digo, um gramofone e dos


mais ordinários, piores do que os existentes nos [...]
“sertões de Pindamondagava”, ou coisa que o valha e,
de vez em quando, o tal de aparelho desandava e tome
o homem falando pela boca da mulher, e vice-versa, o
povo desandava a bater com os pés como se fora uma
estrebaria e... acabava-se a parte. O fato não agradou, e
agora a Paramount promete para breve no Carlos Gomes
um outro aparelho, desta vez, porém, um aparelho muito
melhor, de oitenta contos, segundo dizem. [...]

Dizem que o Guarany vai também botar o tal


cinema, espero que seja ao menos com uma vitrola
em vez de gramofone.

Ainda a respeito de Porto Alegre, também é importante mencionar a


notícia do jornal O Estado do Rio Grande, de 12 de março de 1930
(apud GASTAL, 1999, p. 44), indicando ter sido a Empresa Sirângelo
Irmãos que introduziu na cidade o verdadeiro sistema sonoro, “com
aparelhos adquiridos na Radio Corporation Association”, que no
Brasil, além de São Paulo e Rio de Janeiro, só existiriam até então
em Porto Alegre. Os irmãos Paschoal, Francisco e Salvador Sirângelo
eram os proprietários do Cine Central, que deve ter adquirido um
Photophone conjugado da RCA de melhor qualidade do que o
criticado som em discos Pacent instalado no Apollo.

Assim como aconteceu em Niterói, Santos, Vitória, Curitiba


e Porto Alegre, o Photophone RCA também foi adotado em
Salvador. Walter da Silveira (1978, p. 73) citou publicidade
relatando que a novidade foi inaugurada na capital baiana
pelo Cine Guarani, em 19 de abril de 1930, com Inocentes de
Paris (dir. Richard Wallace, 1929), usando “os mais modernos
e custosos aparelhos da Radio Corporation”. A inauguração do
cinema falado na Bahia teria sido incentivada pelo gerente da
Paramount nesse estado, Manoel Araújo. Após visitar São Paulo
durante o congresso sul-americano da empresa no ano anterior,
o distribuidor teve a oportunidade de conhecer a novidade na
capital paulista e convenceu o Sr. Cel. Ponde “sobre a instalação
do novo sistema no seu bem frequentado cinema Guarany”
(Mensageiro Paramount, v. 12, n. 3, set. 1930, p. 28).

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Dossiê - História e Audiovisual

Após este que foi um “verdadeiro acontecimento social na


capital baiana” (Mensageiro Paramount, v. 12, n. 3, set. 1930,
p. 28), dois outros cinemas de Salvador também compraram
aparelhagem RCA, o Cine Lyceu e o Cine Glória. Aliás, Cinearte
(v. 5, n. 221, 21 mai. 1930, p. 29) informou que o Cine Gloria,
“casa de recente construção e de propriedade do Dr. Simões
Filho”, teria sido responsável pela inauguração do cinema sonoro
na Bahia com o filme Garotas modernas (dir. Harry Beaumont,
1928) – originalmente lançado no Rio em fevereiro de 1929 com
cópia silenciosa, mas relançado sete meses depois em versão com
música sincronizada. Conforme Silveira (1978, p. 73), o Cine
Liceu estreou a sua aparelhagem sonora no dia 21 de junho de
1930, com o filme Broadway (dir. Paul Fejos, 1930).

Antes disso, por volta de janeiro de 1930, o filme falado


estreou em Belo Horizonte, com a exibição do célebre Melodia
da Broadway (CI, v. 5, n. 212, 19 mar. 1930, s.p.). Poucos meses
depois da capital mineira foi a vez de Juiz de Fora. Conforme
relato da correspondente de Cinearte de pseudônimo Mary
Polo, a cidade vinha recebendo com curiosidade o tal cinema
sincronizado, mesmo que por meio de sessões de produções
nacionais acompanhadas por discos de vitrola, ou de filmes
americanos musicados, mas sem diálogos. O sucesso foi
verdadeiramente alcançado com a estreia em Juiz de Fora do
filme falado e cantado Hollywood revue (dir. Charles Reisner,
1929), apesar das alardeadas deficiências do sistema de som em
discos (CI, v. 5, n. 219, 7 mai. 1930, s.p.).

Como foi mencionado no caso de Salvador, foi realmente


em 1930 que o cinema sonoro estreou nas melhores salas das
capitais nordestinas. Luciana Corrêa de Araújo (2011, p. 33) citou
reportagem comentando a chegada de navio de quarenta volumes
de aparelhagem de som para o Theatro do Parque, cinema de
Recife pertencente a Luiz Severiano Ribeiro que, em março de
1930, exibiu os filmes A divina dama e Melodia da Broadway. Em
maio, Cinearte reportava que o primeiro filme sonoro lançado em
Recife “foi Broadway Melody, que inaugurou a temporada dos
‘talkies’, mantendo-se oito dias no cartaz do Cinema Parque, um
dos mais modernos do Norte” (CI, v.5, n. 221, 21 mai. 1930, p.

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

29.) Luciana Araújo (2007, p. 75) esclarece ainda que, reformado


no ano anterior, o Theatro Parque havia se tornado a principal e
mais luxuosa sala de Recife.

O fato é que a conversão para o cinema sonoro atingiu em seus


primeiros doze meses os melhores cinemas daquelas reconhecidas
como as principais praças exibidoras do país, que consistiam nas
capitais e cidades mais desenvolvidas do sudeste, sul e nordeste.
Essa pode ser definida como a primeira fase do processo de
adaptação à projeção sonora em âmbito nacional.

Essa questão obviamente também está relacionada ao poderio


das empresas regionais. Já dominando o mercado exibidor
nordestino, além de Pernambuco, o exibidor Severiano Ribeiro,
por exemplo, também foi responsável pela estreia do cinema sonoro
no Ceará, com a exibição, a partir do dia 19 de junho de 1930, de
Melodia da Broadway no Cine Moderno de Fortaleza. As latas do
filme e o operador vieram de navio do Rio de Janeiro, assim como
tinham vindo semanas antes os técnicos e os equipamentos de som
em discos de fabricação nacional (LEITE, 1995, p. 359-62).

Já em Aracaju, o cinema sonoro teria estreado alguns meses


depois, com Hollywood revue, exibido na capital sergipana a partir
de 28 de novembro de 1930 (DANTAS, 1971).

Afora as capitais nordestinas, o cinema falado também se


espalhou ao longo de 1930 pelas mais prósperas cidades do interior
paulista como Ribeirão Preto, Campinas e Rio Preto. Conforme a
revista Mensageiro Paramount (v. 12, n. 4, out. 1930, p. 11), São
Paulo era o Estado que, naquele ano, já dispunha do maior número
de cinemas adaptados “ao novo sistema”. Não apenas o estado mais
rico da federação, São Paulo era também aquele que possuía o
maior número de salas de cinema do Brasil.

Difícil expansão: segunda fase de conversão (1931-1933)

Apesar do investimento dos principais cinemas das maiores cidades


brasileiras, a primeira fase de conversão para o cinema sonoro foi
restrita a uma parte pequena do circuito exibidor nacional. Um
editorial de Cinearte (v. 5, n. 211, 12 mar. 1930, p. 3) se dedicou a
explicar uma das razões para isso:

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O maior embaraço para a divulgação do filme sonoro


entre nós como em quase toda parte consiste no
exagerado preço das instalações exigido pelos fabricantes,
que absolutamente não se coaduna com os recursos
financeiros da maioria dos proprietários de Cinemas,
menos ainda com as possibilidades econômicas dos
pequenos núcleos de população do interior.

Devido aos altos custos, o editorialista apostava que o interior


do Brasil continuaria por muitos anos ainda como mercado para
o filme silencioso. E isso não se daria apenas pelo alto custo das
instalações (projetores, retificadores, alto-falantes etc.), mas
também pelo elevado preço de aluguel das cópias dos talkies
cobrado pelas distribuidoras, o que se transformava em “problema
de suma gravidade” para os exibidores do interior (CI, v. 5, n. 222,
28 mai. 1930, p. 3).

Eram fatores como esses – aliados às dificuldades iniciais


experimentadas para se adaptar satisfatoriamente os filmes falados
em inglês ao gosto e à compreensão das plateias brasileiras – que
provocavam entusiasmo nos produtores brasileiros que ainda
investiam nos filmes silenciosos ou apenas musicados com o
objetivo de explorar os circuitos secundários de exibição. Esse
otimismo se fundamentaria no fato de que essa situação se manteria
semelhante um ano depois. Afinal, em junho de 1931, cerca de
dois anos após a estreia do filme sonoro em São Paulo e no Rio, o
panorama do mercado exibidor brasileiro era assim resumido no
editorial de Cinearte (v. 6, n. 276, 10 jun. 1931, p. 3):

As grandes casas de exibição fizeram enormes despesas


com o aparelhamento, as menores, à míngua de recursos,
buscaram derivativos nos aparelhos sincronizados [por
discos]; os mais modestos ainda sujeitaram-se a programar
filmes velhos ou então as versões silenciosas dos filmes
sonoros ainda piores do que aqueles.

Duas semanas mais tarde, o editorial da revista especulava: “País


pobre, cremos que não existe em todo o país ainda cinquenta
cinemas dotados de aparelhos para a reprodução perfeita do filme

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

sonoro” (CI, v. 6, n. 278, 24 jun. 1931, p. 3 [grifo do texto]). O


adjetivo “perfeita” indicaria que muitos cinemas vinham exibindo
filmes sonoros precária ou improvisadamente nos últimos dois
anos, isto é, por meio de discos comuns executados em vitrolas ou
em contrafações canhestras do Vitaphone.5
5. O sistema Vitaphone usava discos Mas mesmo que de forma precária ou improvisada, a exibição
especiais – de maior dimensão
de filmes sonoros demorava a chegar a diversas localidades do Brasil,
e duração –, diferentes dos
discos empregados pela indústria como Caratinga, interior de Minas Gerais. O Cine Caratinga,
fonográfica. o único da cidade, inaugurou seu projetor Vitaphone em 14 de
outubro de 1932, com o já antigo Broadway, “superando as ingentes
dificuldades que representam as caríssimas adaptações que foram
necessárias para dotar Caratinga de uma casa de diversões à altura
de suas necessidades e de seu meio social elevado e culto” (O
município, v. 6, n. 134, 6 out. 1932, p. 1, 6).

Realmente, os caratinguenses deviam se orgulhar, pois,


na mesma época, um leitor de Manaus reclamava na revista
Cinearte (v. 7, n. 354, 7 dez. 1932, p. 35) que sua “linda cidade
[...] desconhece o cinema falado e todos os filmes são mudos e na
mor parte antigos!”. A pesquisa de Selda Vale Costa (1988, p. 168)
sobre o cinema em Manaus cita artigo da revista Victoria-Regia,
de fevereiro de 1933, elogiando “o cinema falado”, nos fornecendo
subsídios para concluir que a novidade finalmente havia chegado à
capital amazonense naquele início de 1933.

Apesar dos avanços, o real limite da conversão geral do circuito


exibidor nacional era demonstrado por reportagem da Cine
Magazine publicada no final de 1933, na qual o correspondente da
revista em Recife traçou um quadro da situação no norte do país.
Se em Pernambuco, o principal estado da região, havia apenas 26
cinemas sonoros, a situação relatada pela revista nos demais estados
da região norte e nordeste era muito mais tímida, cada um deles
contando com apenas três cinemas sonoros (Alagoas e Ceará),
dois (Rio Grande do Norte, Amazonas) ou mesmo somente um
(Paraíba, Maranhão, Piauí).

Em situação significativamente melhor que os demais estados


do norte estaria o Pará. Como a capital Belém tinha um tradicional
e próspero circuito de salas, em 1933 o estado já contava com oito

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a nove salas equipadas para o sonoro, sendo ressaltado que apenas


uma possuía sistema duplo – isto é, era dotada de dois projetores,
o que permitia a troca de rolo (e, se fosse o caso, de disco) sem
interrupção do filme (CM, n. 7, nov. 1933, p. 14, 17, 19).6
6. A maior parte das salas brasileiras Deste modo, embora a conversão para o cinema sonoro
então já adaptadas exibia os filmes
avançasse lentamente em todo o Brasil – assumindo um ritmo mais
sonoros em apenas um projetor, o
que exigia de três a cinco intervalos, acelerado apenas nas principais capitais –, fica evidente que em
em geral, durante a projeção de um muitos cinemas do país ela tinha sido feito de forma restrita. Afinal,
longa-metragem. num diagnóstico do circuito exibidor de Porto Alegre publicado em
Cinearte (v.7, n.333, 13 jul. 1932, p. 8), afirmava-se que das 19 salas
da cidade, três delas ainda “usam adaptações de Vitaphone”, o que
consistia provavelmente em toca-discos comuns. Já no relato de
Cine Magazine sobre o circuito exibidor de Pernambuco em 1933,
se apontava que a maioria dos cinemas do estado possuía “aparelhos
Vitaphone ou nacionais, excetuando-se algumas instalações em
Recife que são uma Western e outra RCA no Parque Moderno.”

Para além dos tapeafones e cavatones – simples vitrolas


improvisadas –, a demanda pelo cinema sonoro por parte de
exibidores menos capitalizados estimulou a fabricação nacional
de projetores e instalações sonoras mais baratos e simples. Esse
quadro que incentivava a produção de equipamentos brasileiros era
confirmado em reportagem que destacava o fato de a concorrência
estar fazendo os preços diminuírem. Vinha sendo, sobretudo, por
meio da venda de aparelhos sincronizados nacionais que se chegava
àquela situação que ia “permitindo as instalações estenderem-se
pelo interior do país” (CI, v. 6, n. 278, 24 jun. 1931, p. 3).

A complexidade desse processo pode ser verificada com mais


detalhes nas cartas enviadas por Eduardo Ferrez, então residindo
em Porto Alegre, a seu pai, Julio Ferrez, da companhia exibidora
e distribuidora Marc Ferrez & Filhos, no Rio de Janeiro, nos
últimos meses de 1931.7
7. Documentos do Arquivo Família Por meio da correspondência, podemos notar que a maioria das
Ferrez, Arquivo Nacional.
salas gaúchas convertidas estava em Porto Alegre, onde, segundo
Eduardo, “todos os cinemas estão equipados com o sonoro e não
vi ainda um filme mudo em cartaz” (carta de 3 dez. 1931). Apesar
disso, os grandes cinemas porto-alegrenses não estariam dando

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bons resultados financeiros, sobretudo diante do caríssimo preço


de aluguel das cópias dos talkies de Hollywood. Mas ele notava
ainda que a alternativa de distribuir filmes mudos não era boa,
pois nos melhores cinemas ninguém mais queria saber de cinema
silencioso. Já nos cinemas de bairro, além de depender da boa
vontade dos exibidores, o distribuidor teria que arcar com os gastos
de propaganda e da compra de discos para o acompanhamento
sonoro da fita muda – sem falar do trabalho de “sincronizá-la
mais ou menos, pois neste ponto de vista eles [os exibidores] não
entendem muito de música” (carta de 11 dez. 1931). Ou seja, nessa
operação se acabaria perdendo dinheiro, pois o “máximo que [os
exibidores] podem pagar seria o que eu teria de tirar do meu bolso
para sincronizar o filme” (carta de 3 dez. 1931).

Se esses complicadores para a distribuição de cópias mudas não


fossem o bastante, Eduardo Ferrez se surpreendia com o fato dos
donos de salas de cinema do interior do estado fazerem questão
absoluta de seus filmes serem “completamente falados e ainda em
inglês, apesar de não compreenderem nada” (carta de 5 dez. 1931).

Mesmo com as dificuldades, o processo de interiorização do


cinema sonoro, ainda relativamente reduzido em 1931, ganhou um
grande impulso em 1932 e 1933, com a aceleração da conversão,
por exemplo, dos circuitos secundários das grandes capitais, assim
como dos melhores cinemas das cidades de médio porte. No Rio
Grande do Sul, podemos estimar que a proporção de cinemas
sonoros passou, entre 1931 e 1933, de 15% a 42%.

Esse avanço, no entanto, conheceu pouco depois uma


acentuada diminuição, aparentemente devido à saturação do
mercado das capitais brasileiras. Em seu estudo sobre o cinema
no Paraná, Celina Alvetti (1989, p. 51) afirmou que “depois
de um surto de inaugurações de aparelhamento sonoro, entre
1930 e 1933, elas foram rareando, entrando no ritmo normal de
exibição e melhorias. Algumas cidades […], no entanto, levaram
anos para ter o seu sonoro”.

Portanto, a partir desse momento, os clientes que faltavam


ser conquistados eram, na maior parte, os pequenos exibidores
das cidades do interior do país, principalmente nas regiões mais

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distantes dos grandes centros urbanos. Este era o caso, por exemplo,
do Cine Parisien, o único de Cuiabá, inaugurado em 1912 e desde
então funcionando num precário barracão de zinco. Fechado em
1930, o Cine Parisien só foi reinaugurado em 30 de março de 1933
como Cine Teatro República. Dotado de aparelhagem de som em
discos, os equipamentos foram estreados com Marrocos (dir. Josef
von Sternberg, 1930), filme falado da Paramount exibido dois anos
antes no sudeste, mas que era o primeiro talkie visto e ouvido em
Mato Grosso (ALENCASTRO, 2012, p. 91).

Esse atraso do mercado exibidor brasileiro motivou, entre


fins de 1933 e meados de 1934, uma verdadeira campanha pela
conversão para o cinema sonoro nas páginas de Cine Magazine,
periódico cujos anunciantes incluíam distribuidores e fabricantes
de equipamentos diretamente interessados nesse assunto. No
editorial da edição de dezembro de 1933, intitulado “Uma questão
palpitante”, L. S. Marinho indagava o motivo de ainda existirem
tantos cinemas silenciosos no Brasil mesmo com a popularidade
dos aparelhos nacionais e diante do fato de que “os filmes mudos
estão absolutamente banidos de circulação” (CM, n. 8, dez. 1933,
p. 3). Três meses depois, em editorial no qual lamentava a falta de
boas salas de exibição para os “modernos filmes de grande sucesso”,
Marinho novamente comentava a existência de aparelhagem
sonora de boa qualidade e de todos os preços. Assim sendo, “não
se compreende que exibidores persistam em manter seus cinemas
sem aparelhos para filmes falados!” (CM, n. 11, mar. 1934, p. 3).

De fato, apesar da crescente oferta de equipamentos nacionais


mais baratos para atender os pequenos exibidores e do avanço
na adaptação do mercado exibidor ao filme sonoro nos anos
anteriores, a conversão do circuito nacional ainda estava distante
de ser completa. Em 1935, a situação era assim descrita por José. J.
de Barros na Sessão Técnica de Cine Magazine: (n. 22, fev. 1935,
p. 18): “Há ainda no território nacional, um grande número de
cinemas mudos, um número ainda maior de salas completamente
paradas há anos, e um número considerável de cinemas equipados
somente com aparelhos para reprodução de som em discos”.

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Segundo o autor do texto, eram quatro as razões para esse


estado de coisas: 1) o aumento no preço do aluguel das cópias de
filmes sonoros; 2) o custo elevado dos aparelhos de som; 3) as más
experiências de colegas com aparelhos de baixa categoria; 4) as
crises econômicas regionais.

Mas, se José. J. de Barros afirmava que a tendência era a baixa


progressiva dos preços dos programas (isto é, do aluguel das cópias) com
o aumento da oferta de filmes sonoros por diferentes distribuidores,
ele argumentava ainda que o custo dos equipamentos também não
representaria um empecilho real:

Já existem no mercado marcas de aparelhos, oferecidos


por firmas de grande idoneidade, que cuidaram com
especial carinho de organizar equipamentos apropriados
para pequenas salas por preços absolutamente razoáveis,
por menos do que o custo de um automóvel Ford de
segunda mão, e em condições de tanta suavidade que
mais seria de causar suspeita.

Aos exibidores que argumentavam que o investimento não era


vantajoso, Barros respondia com a ameaça da concorrência local:
“Esteja certo de que existe no lugar uma pessoa que terá intimamente
o desejo de montar um cinema muito melhor que o atual, mas não
o faz porque não dá para dois [...] e não quer aborrecimento”.

Barros citava ainda a vantagem de se poder exibir nos cinemas


sonoros “cenas grandiosas de espetáculos que, ao vivo, são vistos
apenas nas grandes cidades e para os ricos”. Por fim, em relação
à experiência frustrada de alguns exibidores com certos projetores
sonoros, o autor do artigo responsabilizava por isso os colegas afoitos
que adquiriram aparelhos de amadores.

Padronização tecnológica (1934-1935)

Além dos negócios das empresas fabricantes de equipamentos – o


autor do artigo citado, José J. de Barros, por exemplo, era diretor de
uma delas, a Cinephon –, a campanha pela conversão à projeção

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sonora dos cinemas brasileiros em revistas como Cine Magazine


atendia também aos interesses comerciais de outros anunciantes.

Afinal, as agências distribuidoras desejavam padronizar


a circulação de cópias no mercado nacional, uma vez que
o cinema sonoro havia trazido um aumento de seus gastos
com a necessidade de lançamento de diferentes versões
do mesmo título. Se inicialmente foi necessário distribuir
simultaneamente versões sonoras e mudas para atender tanto aos
cinemas já convertidos quanto àqueles ainda não aparelhados,
posteriormente foi preciso lançar os mesmos talkies em dois
sistemas sonoros diferentes (Vitaphone e Movietone).

Entretanto, com a ampla adoção do mais simples, prático e


econômico som ótico como padrão da indústria, o lançamento
de cópias com som em discos – para atender exclusivamente os
cinemas que tinham instalado apenas o Vitaphone – se tornou cada
vez mais um gasto extra a ser imediatamente dispensado.

Deste modo, em março de 1934, uma reportagem sobre as


futuras estreias da Warner (o estúdio de Hollywood que lançara o
próprio Vitaphone) no país terminava com um alerta:

E, agora, não hesite mais […] moderniza o seu cinema,


dotando-o com a aparelhagem necessária ao vitorioso
sistema MOVIETONE, pois definitivamente suspensa
pela Warner Brothers-First National e as demais grandes
produtoras, a importação de cópias para VITAPHONE,
assim, não mais teremos discos fonográficos, de difícil e
arriscada embalagem e que podem falhar! Somente o
MOVIETONE é garantido! (CM, n. 11, mar. 1934, p. 8).

A importância dessa padronização – que não só apresentava


vantagens práticas, como traria benefícios econômicos
significativos para as companhias distribuidoras – possivelmente
explica um tom quase de terrorismo adotado num editorial da
mesma revista, quatro meses depois:

Todas as companhias produtoras estão abolindo o sistema


Vitaphone: os filmes sincronizados com discos estão

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sendo eliminados devido às dificuldades de transporte, e


pela facilidade de prejuízos que acarretam.

Agora mesmo, acabamos de receber da Fox Film


uma comunicação de que todos os seus filmes serão
unicamente pelo sistema Movietone: os discos não
serão mais importados, por isso, fazemos uma especial
recomendação a todos os exibidores cujos aparelhos não
estão ainda adaptados para o uso dos filmes Movietone,
providenciarem no sentido de modificar suas instalações
(CM, n. 15, jul. 1934, p. 3).

A padronização da distribuição de cópias sonoras no mercado


brasileiro para o som ótico demandava a instalação do sistema
Movietone na maior parte do circuito exibidor. Tratava-se de um
esforço considerável, uma vez que, em 1933, 54% dos cinemas
brasileiros adaptados para o cinema sonoro ainda estavam equipados
apenas com o sistema de som em discos, isto é, o Vitaphone e seus
congêneres (CI, v. 8, n. 370, 1 jul. 1933, p. 37).

Embora até 1929 todos os projetores sonoros comercializados


mundialmente possuíssem o sistema de som em discos, a mudança
para o som ótico havia sido rápida. No final de 1930, a maioria
dos cinemas norte-americanos já projetava filmes em Movietone,
Photophone ou qualquer outro tipo de som ótico genérico.
Em março de 1932, a revista Film Daily apontou que, dentre
as salas convertidas nos EUA, 43% tinham apenas som ótico,
33% possuíam os dois sistemas e 24% apenas o som em discos
(CRAFTON, 1997, p. 146, 148, 571). Já em 1933, apenas 2,6% dos
cinemas norte-americanos ainda usariam exclusivamente o som
em discos, segundo o Motion Picture Almanac. Na França, por sua
vez, esse sistema estava praticamente extinto desde o final de 1930
(GUBERN, 1993, p. 11).

Assim, em 1934, provavelmente com cerca de metade de seu


circuito ainda dependente de filmes com som em discos, o mercado
exibidor brasileiro era forçado a se adaptar ao som ótico.

Pressionados, portanto, pela falta de filmes silenciosos e logo


também pela escassez até mesmo de cópias com som em discos, os
pequenos exibidores brasileiros viram-se obrigados a converterem-

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se para a projeção sonora em som ótico, fecharem as portas ou


passarem a funcionar como teatros ou casas de espetáculos. Ou
seja, o aumento da porcentagem de cinemas convertidos também
esteve inevitavelmente ligado à diminuição do próprio circuito
brasileiro, devido ao fechamento, provisório ou definitivo, de
inúmeros pequenos cinemas. O mercado exibidor brasileiro sem
dúvidas encolheu na segunda metade da década de 1930.

Enfim, essa fase final foi marcada pela substituição dos


Vitaphones, vitrolas e tapeafones inicialmente instalados por
novos equipamentos do “verdadeiro cinema falado” (som ótico)
nas pequenas salas que estavam fechadas ou vinham sobrevivendo
precariamente. A região centro-oeste parece ter sido a última
fronteira a ser conquistada pelo filme falado, o que teria ocorrido
nesse momento. Baseando-se em pesquisas de Marinete Pinheiro
(2010, p. 78-9) e outros documentos, pode-se indicar que em
1937, com a reforma do Cineteatro Santa Helena e a importação
de equipamentos da Europa, Campo Grande viu a primeira
exibição de um filme sonoro em som ótico. Também em 1937 foi
inaugurado o Cine Progresso, o primeiro cinema a exibir filmes
falados no estado de Goiás (LEÃO, BENFICA, 2009, p.1)

Finalmente ocorria a conversão da última parte do circuito


exibidor brasileiro. Em junho de 1935, Cinearte (v. 10, n. 417, 15
jun. 1935, p. 24) noticiou a instalação de aparelho falado no único
cinema da cidade de Cafelândia, interior de São Paulo. Outro
exemplo é o cinema de Cambuí, em Minas Gerais, sonorizado
apenas em 1937 (BARRO, 2008, p. 55). Foi nesse mesmo ano que
o cinema sonoro também foi inaugurado no Teatro Municipal de
Morretes, cidade no litoral do Paraná (ALVETTI, 1989, p. 51).
Os cinemas de pequenos municípios como Três Rios, no interior
do estado do Rio de Janeiro, e Conceição do Rio Verde, no sul
de Minas Gerais, foram reaparelhados somente em 1938 (CM,
n. 64, ago. 1938, p. 14, 16). Por fim, já no final da década, o
Jornal do Exibidor (v. 2, n. 35, 15 jan. 1939, p. 2) anunciava a
inauguração tardia do cinema sonoro no município de Antonio
Caetano, no Espírito Santo.

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

Conclusão

À guisa de conclusão, podemos tentar resumir brevemente o


processo descrito anteriormente. Inicialmente, a conversão das
salas de cinema brasileiras atingiu, entre 1929 e 1930, apenas os
melhores cinemas das grandes cidades do país, que foram dotados
de projetores conjugados Western Electric. Rio de Janeiro e São
Paulo testemunharam a rápida conversão de parte significativa
de seus circuitos de primeira linha. Outras capitais da região sul,
sudeste e nordeste apressaram-se para acompanhar a novidade com
a conversão de seus cinemas mais modernos e lucrativos.

A maior parte dos exibidores regionais adquiriu, nessa fase,


projetores Photophone RCA, que teriam a mesma qualidade do
Western Electric, mas com preços e condições mais vantajosas.
Uma evidência da forte campanha da empresa norte-americana
no país é uma nota do jornal gaúcho A Federação (26 set. 1929,
p. 4) que noticiava a presença do Sr. Edward C. Adler, da RCA,
em Porto Alegre, negociando todos os tipos de projetores sonoros.
Tendo vendido vários aparelhos na capital gaúcha, o representante
da empresa partiria em breve para o interior do estado atrás de
novos compradores.

Outra estratégia da empresa norte-americana era incentivar o


uso do Photophone em salas mais luxuosas que promovessem a
marca. Em 1929, o gerente do Cassino Atlântico, em Copacabana,
assegurou que a RCA “ofereceu sem custo equipamento de projeção
sonoro ao Atlântico” (GONZAGA, 1996, p. 194).

Num segundo momento, enquanto salas lançadoras de outras


cidades importantes do interior dos estados da região sul e sudeste
também se adaptavam à novidade, o cinema sonoro finalmente
chegava às capitais do norte e nordeste. Em seguida, quando a
conversão atingia a última parte do circuito do Rio e São Paulo
(nesse caso, os cinemas de bairro), ela chegava aos principais
cinemas de cidades como Manaus ou João Pessoa. Desta forma,
em meados dos anos 1930, enquanto espectadores dos centros
mais desenvolvidos economicamente do país já não tinham mais
locais onde assistir a filmes silenciosos, o público de pequenos
municípios do interior do Brasil entrava em contato pela primeira

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vez com os afamados talkies. Como foi dito, essa situação


impulsionou a fabricação de equipamentos nacionais de marcas
como Fonocinex, Cinephon, Cinevox, Cinetom, Centauro,
Triunfo, Sólidus, entre outras.

A conversão virtualmente total do circuito brasileiro ocorreu


apenas nos últimos anos da década de 1930, quando chegou a
cerca de 90% o número de salas adaptadas para o cinema falado
– consolidada com a padronização do som ótico e da legendagem.
Nos rincões do país, porém, certamente ainda persistiram exibições
silenciosas (com ou sem música ao vivo) ou com acompanhamento
musical mecânico não sincronizado. Portanto, o filme falado
só chegou às modestas salas das pequenas cidades brasileiras no
momento em que os palácios de cinema do Rio e São Paulo já
incorporavam outras novidades, como os modernos sistemas de
ar-condicionado, tema de uma nova campanha da revista Cine
Magazine (FREIRE, 2011, p. 312).

Deste modo, a situação esboçada neste artigo parece justificar


um comentário irônico em A Scena Muda (n. 1019, 1 out. 1940,
p. 4-5) quando era anunciado que o ator Genésio Arruda retornaria
ao cinema na nova produção da Cinédia O dia é nosso (dir.
Milton Rodrigues, 1941). Segundo o jornalista, o filme anterior
do cômico caipira, O campeão de foot-ball (1931), feito dez anos
antes e sonorizado em discos 78rpm para execução em vitrolas
comuns, era uma “película que ainda se exibe por esses ‘Brazis’ a
fora”. A ironia reside no fato de que a brutal desigualdade de um
“país pobre” – como já havia ressaltado Cinearte – e formado por
diferentes “Brasis”, não podia deixar de ser refletida na coexistência
entre o moderno e o arcaico no circuito exibidor cinematográfico
brasileiro. Essa desigualdade tornou-se especialmente aguda
durante o processo de conversão para a projeção sonora.

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

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A conversão para o cinema sonoro no Brasil e seu mercado exibidor na década de 1930 | Rafael de Luna Freire

Periódicos citados8
8. Consultados no acervo da
Cinemateca do MAM-RJ, na
Biblioteca Nacional, na Hemeroteca
Digital Brasileira A Federação, Porto Alegre, 26 set. 1929, p. 4; 7 out. 1929, p. 6; 8
(http://hemerotecadigital.bn.br/), no out. 1929, p. 4.
acervo André Malverdes e no acervo
pessoal do autor. A Scena Muda, Rio de Janeiro, n. 1019, 1 out. 1940, p. 4-5.

A Tribuna, Santos, 17 set. 1929, p. 11; 3 out. 1929, p. 10; 3 out.


1929, p. 10.

Cinearte, Rio de Janeiro, v. 5, n. 211, 12 mar. 1930, p. 3; v. 5, n.


212, 19 mar. 1930, s.p.; v. 5, n. 219, 7 mai. 1930, s.p.; v. 5, n. 221,
21 mai. 1930, p. 29; v. 5, n. 221, 21 mai. 1930, p. 29; v. 5, n. 222, 28
mai. 1930, p. 3; v. 6, n. 276, 10 jun. 1931, p. 3; v. 6, n. 278, 24 jun.
1931, p. 3; v. 6, n. 278, 24 jun. 1931, p. 3; n. 354, 7 dez. 1932, p. 35;
v. 7, n. 333, 13 jul. 1932, p. 8; v. 8, n. 370, 1 jul. 1933, p. 37; v. 10,
n. 417, 15 jun. 1935, p. 24.

Cine Magazine, Rio de Janeiro, n. 7, nov. 1933, p. 14, 17, 19; n. 8,


dez. 1933, p. 3; n. 11, mar. 1934, p. 3; n. 11, mar. 1934, p. 8; n. 15,
jul. 1934, p. 3; n. 22, fev. 1935, p. 18; n. 64, ago. 1938, p. 14, 16.

Cine-Theatro, Florianópolis, v. 1, n. 2, set. 1929, p. 1.

Correio Paulistano, São Paulo, 5 out. 1929, p. 12.

Diário da Manhã, Vitória, 19 dez. 1929, p. 8.

Diário da Noite, Rio de Janeiro, 8 jun. 1931, p. 5.

Jornal do Exibidor, Rio de Janeiro, v. 2, n. 35, 15 jan. 1939, p. 2.

Mensageiro Paramount, New York, v. 12, n. 3, set. 1930, p. 28; v. 12,


n. 4, out. 1930, p. 11.

O Município, Caratinga, v. 6, n. 134, 6 out. 1932, p. 1, 6.

República, Curitiba, 20 out. 1929, p. 9; 26 out. 1929, p. 7.

submetido em: 30 jun. 2013 | aprovado em: 8 nov. 2013

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Tereza Trautman e Os
homens que eu tive:
uma história sobre
cinema e censura
Ana Maria Veiga1

1. Professora substituta do Departamento de História da Universidade


Federal de Santa Catarina. Doutora em História Cultural com a
tese Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas,
especificidades (UFSC, 2013). Tem experiência profissional em
realização audiovisual. E-mail: [email protected]

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Resumo
Além da política, a censura moral foi amplamente praticada no
Brasil, visando filmes não adequados aos padrões vigentes durante
o regime militar. No contexto do cinema erótico, incentivado pela
Embrafilme, uma jovem cineasta viu seus sonhos naufragarem em
1973 com um ato da censura. Este artigo analisa a interdição do
filme Os homens que eu tive, de Tereza Trautman, como elemento
representativo da arbitrariedade com base na moral e nos bons
costumes, fortemente valorizados a partir do golpe militar.

Palavras-chave
Tereza Trautman, Os homens que eu tive, cinema, história, censura.

Abstract
Beyond politics, the moral censorship was widely practiced in
Brazil toward films that contested the military patterns of conduct.
In the context of erotic cinema, promoted by Embrafilme, a young
director saw her dreams sink in 1973 with a censorship act. This
article analyses the interdiction of the film Os homens que eu tive
[the men that I’ve had], by Tereza Trautman, as a representative
element of arbitrariness with its basis on moral and good habits,
strongly emphasized from the military coup d’état.

Keywords
Tereza Trautman, Os homens que eu tive, cinema, history, censorship.

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

Enquanto grande parte do mundo ocidental vivia a plena


transformação social, cultural e política, impulsionada pelas
manifestações ocorridas principalmente no ano de 1968 e a
entrada em cena do Movimento de Liberação da Mulher e
do movimento feminista, no Brasil tal efervescência esbarrava
em alguns obstáculos nos primeiros anos da década de 1970. A
ditadura militar, recrudescida a partir do Ato Institucional número
5 (promulgado em dezembro de 1968), ainda impunha sobre a
sociedade rédeas mais do que puxadas. Era um momento de intensa
censura e opressão. Entre os denominados subversivos estavam
principalmente estudantes, artistas e intelectuais de esquerda,
inconformados com o regime autoritário de um governo que
abafava e reprimia manifestações que lhe fossem contrárias. Muitos
foram perseguidos, presos ou exilados, diante do lema central da
ditadura: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, em que amar o país significava
estar de acordo ou resignado à mão militar do poder.

Podemos afirmar que a censura aos meios de comunicação,


reconhecendo sua importância ideológica, funcionou como um
aparato paralelo de repressão, montado para cortar aquilo que não
encontrasse a convergência com o projeto militar para a nação
brasileira. Reportagens, músicas, filmes e até obras de arte, tudo
passava por uma edição ideológica, o que muitas vezes gerava um
resultado totalmente diferente do que era proposto na autoria. Por
outro lado, a licença poética, a alegoria e a ficção permitiam certo
espaço de manobra política no campo das artes.

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Dossiê - História e Audiovisual

Em meio a esse contexto, a cena cinematográfica brasileira


ganhou contornos curiosos na década de 1970. Com a criação da
Embrafilme, em 1969, o governo começou a investir na indústria
cinematográfica brasileira e passou a exigir que as salas de cinema
exibissem também filmes nacionais. Muitos diretores críticos ao
regime estavam afastados de suas atividades, alguns do próprio
país, enquanto outros viriam a assumir papeis administrativos
junto à Embrafilme (MALAFAIA, 2007, p. 336). Os filmes a serem
exibidos nos cinemas não poderiam de modo algum questionar o
regime. Entre alguns poucos que ainda tentavam fazê-lo, a década
de 1970 viu explodir nas telas um gênero cinematográfico brasileiro
que ficou conhecido como pornochanchada, que misturava humor
e erotismo em seus roteiros água com açúcar, inspirados nas
chanchadas das décadas anteriores, como pano de fundo para cenas
picantes. Wolney Malafaia resume a situação:

A década de 1970, principalmente na sua segunda


metade, representará uma fase em que a política
oficial de cultura na área cinematográfica, levada
à frente pela Embrafilme, colherá seus melhores
resultados. [...] De qualquer forma, mesmo diante
de todo esse sucesso, produções como Dona Flor e
seus dois maridos ou Xica da Silva serão exceções
num universo inundado por jecas, trapalhões e
pornochanchadas (MALAFAIA, 2007, p. 345).

O prefixo pornô não tem a correspondência explícita dos dias


de hoje, mas os corpos das mulheres eram fartamente exibidos,
seguindo a fragmentação orientada pela censura: um seio de
cada vez2 (GIORDANO, 2010). As atrizes desses filmes eram
2. Giordano informa ainda que, a automaticamente classificadas como prostitutas, pois estavam ali
partir do governo Médici, pornografia como duplo objeto de satisfação masculina: para os homens com
e erotismo também entravam na quem se relacionavam nas películas e para o público espectador,
esfera da Segurança Nacional.
nas salas de cinema.

Nuno Cesar Abreu (1996) traça um panorama detalhado desse


gênero tipicamente brasileiro nos anos 1970, apontando para uma
tendência no campo cinematográfico que acabou conquistando um
grande filão de mercado. O autor vê a pornochanchada como uma

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

expressão da onda de liberação dos costumes da época (ABREU,


1996, p. 74-75). Isso se dá em um contexto ambivalente das
relações entre cinema e Estado em tempos de autoritarismo. Com
cenas consideradas vulgares e apelativas, esse conjunto de filmes
seria “fruto de um momento de forte repressão do poder à produção
cultural”; a pornochanchada, para Abreu, era uma “filha da
ditadura”, tendo sido inaugurada simultaneamente à Embrafilme,
em 1969, com o filme Os paqueras, de Reginaldo Faria (ABREU,
1996, p. 76-77). Diante de tanta repressão, a sexualidade provocada
e discutida por aquela geração acabou encontrando sua linha de
fuga por meio das telas do cinema. O grande sucesso de público
foi a resposta a um diálogo que já não podia mais ser contornado.

A pornochanchada criou de certo modo um estigma sobre o


cinema brasileiro, identificado pela nudez e pelo erotismo. Tendo
como polo de produção a chamada Boca do Lixo, no centro de
São Paulo, seu sucesso de público influenciou diretores do cinema
autoral, como Ana Carolina e Arnaldo Jabor (SILVA, 2010, p. 136).
Mesmo a partir dos anos 1980, quando o gênero cinematográfico
perdeu força e passou a ser mostrado apenas na “sala especial”
da televisão (ABREU, 1996), os filmes que vieram depois ainda
traziam como marca a nudez feminina, muitas vezes injustificada e
aleatória. Entre as películas dos anos 1970 não era de se estranhar
enredos que explorassem personagens masculinos em cenas eróticas
com mais de uma mulher ou a rotatividade de parceiras sexuais
para um só homem. No cinema aprovado por um regime militar
masculinizado, demonstrações de virilidade tinham seu valor.

Os homens que eu tive

No Jornal do Brasil, em agosto de 1973, a coluna do crítico


de cinema Ely Azeredo anunciava uma novidade na cena
fílmica, ou o que hoje podemos considerar um acontecimento
histórico: Tereza Trautman, uma diretora estreante no cinema
brasileiro, exibia desde o mês anterior seu primeiro longa-
metragem – Os homens que eu tive.

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Dossiê - História e Audiovisual

O filme estreou no Rio de Janeiro em junho de 1973 no cinema


Roxy, com seus 1800 lugares tomados. Durante dois meses as sessões
continuaram lotadas, tendo estreado também em Belo Horizonte,
o que sinalizava um provável sucesso de bilheteria. A vez de São
Paulo estava marcada para a Semana da Pátria (setembro) de 1973,
quando acabou sendo interditado3.
3. Entrevista de Tereza Trautman a No centro da tela estava Pity, interpretada pela atriz Darlene
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de
Glória. O papel era originalmente destinado a Leila Diniz4 – atriz
2010, no Rio de Janeiro.
que inspirou a criação da personagem e que gerava polêmica por
suas atitudes liberais. Leila morreu em um acidente aéreo antes de
voltar ao Brasil para iniciar as filmagens. A polêmica em torno de
4. Uma visão mais aprofundada
sobre a atriz Leila Diniz e sua sua personalidade continuaria viva, dessa vez na representação da
personalidade “solar” pode ser personagem Pity.
encontrada em Silva, 2010, p. 79-99.
O filme começa com uma cena rotineira entre o casal Pity e
Dôde, no café da manhã. Ele lê o jornal, já de gravata, enquanto
ela, vestida com uma bata leve, come lentamente, ao lado de um
grande aparelho de telefone que ocupa parte da mesa. O telefone
toca enquanto Dôde se levanta e veste o paletó para sair. É Peter,
que convida Pity para ajudá-lo na montagem de um filme. Na
despedida do marido, Pity avisa que não vai dormir com ele
naquela noite. Tem um encontro com Sílvio e pode ser que ele vá
dormir com ela5 em casa (no quarto ao lado). Mas Pity não volta do
5. A expressão dormir com alguém é encontro de trabalho antes das duas da manhã e deixa os dois em
usada no filme em substituição a fazer casa, esperando por ela. O detalhe do chaveiro rodando nas mãos
amor. O termo dormir, que depois foi de Sílvio sinaliza que algo não vai bem.
substituído por transar, significava ter
uma relação sexual independente do A cena seguinte acontece em uma locação externa, em plena
envolvimento amoroso, o que estava praia de Ipanema. Pity, Dôde e Sílvio mostram seus corpos
de acordo com a proposta do filme de
bronzeados, espalhados sobre o calor da areia, num lindo dia de sol.
Tereza Trautman.
Os homens estão calados. Pity informa que ficou trabalhando com
Peter, por isso chegou tarde. Reclama que o amante está ficando
mais ciumento do que o marido. O clima melhora quando o casal
convida Sílvio para morar em seu apartamento. O sobe som de uma
trilha estilo bossa nova mostra a animação do triângulo.

A cena é cortada para o interior do quarto de Pity; dessa vez a


banda sonora traz a voz de Caetano Veloso, que acabava de voltar
do exílio, cantando You don’t know me. A batida sensual da música

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

acompanha o enquadramento de um grande espelho, na frente


do qual Pity entra em cena, os seios nus, que em seguida são
cobertos por uma bata sensual. Ela arruma o quarto do amante.
Naquela noite, faz sexo com Dôde, mas puxa Sílvio para a
cama de manhã, depois que o marido sai. Os lençóis cobrem
o encontro dos corpos, sob a luz difusa que entra pela janela e
é filtrada pela cortina. Os corpos dos homens são mostrados de
maneira sensual, em suas cuecas.

Os primeiros minutos do filme não dão folga ao público


espectador, que é pego de surpresa pela naturalidade e a liberdade
da personagem. Não é difícil imaginar o impacto desse filme – que
(não) mostra o sexo praticado por uma mulher, livre de tabus e
regras morais – sobre a censura e a ideologia militar vigente, já que
o projeto de governo estava voltado para a normatização da camada
média brasileira, com base em regras de conduta que acabavam
submetendo as mulheres. A prova de uma ordem do gênero, que
se queria preservar nos pré-requisitos da censura, estava no apoio
às pornochanchadas, que podiam ser exibidas dentro de sua
classificação etária.

O clima da narrativa muda quando Pity e Peter, o cineasta, se


apaixonam. O fato é anunciado na narrativa, em termos estéticos,
pelo filtro azulado que a diretora decidiu colocar na lente da
câmera para representar a decepção de Dôde e Sílvio ao se verem
em segundo plano na cena em que Pity passa um bronzeador nos
ombros de Peter, o intruso, convidado por ela para relaxar com os
três no apartamento de cobertura, com vista para o mar. Ao expandir
seus afetos para outro homem, além do amante já permitido, Pity
acaba provocando ciúmes não só em Dôde, mas também em Sílvio.
O marido vai se consolar nos braços de Alessandra, sua amante.
Depois manda Pity embora de casa. No apartamento da amiga
Bia, ela decide dar um tempo dos três homens. Duas semanas
depois, o marido a procura e a harmonia é retomada. Dôde não
quer o desquite, aceita a aproximação entre Pity e Peter. Ele mesmo
continua com sua outra namorada.

Mas Pity e Bia decidem morar em um casarão compartilhado


por jovens hippies, que escutam música, namoram e trocam de

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parceiros, aproveitam no quintal os dias ensolarados. A mise-en-scène


mostra um grupo tocando violão e cantando uma canção no estilo
Os Mutantes, enquanto outras pessoas se divertem namorando,
pintando ou brincando com cachorros. Eles se preparam para viajar
por toda a América do Sul. Comportamentos libertários podiam
ser associados ao movimento hippie, mas também à inspiração
socialista de Che Guevara e da Revolução Cubana.

Neste contexto, da movimentação no casarão, acontece a cena


mais erotizada do filme, em que Pity faz sexo com Vítor, que
acabava de chegar à casa, procurando por outra pessoa, e que a
encontra chateada. O carinho das mãos no cabelo e no pescoço
acaba seduzindo Pity e aos poucos se expande para uma relação
sexual. Depois do orgasmo, Vítor pergunta: “Qual é o seu nome?”

Em outra cena, Pity e a amiga Bia aparecem abraçadas, nuas sob


os lençóis, fumando um cigarro e conversando, deixando evidente o
relacionamento sexual lésbico, provavelmente aberto e fugaz. Pity
oferece o novo namorado, Lúcio, para transar com a amiga: “Ele
é tão carinhoso, você vai adorar!” A trilha sonora complementa o
quadro: “Pra se fazer a cama, precisa de dois...”

Quando todos enfim partem em viagem, incluindo Lúcio e


Bia, Pity fica sozinha com Torres, um artista plástico que é o dono
da casa, com quem passa a ter um relacionamento aparentemente
mais estável. Dôde aparece para visitá-los. A cena final acontece
na rua, possivelmente em frente ao casarão, quando o marido
se despede. Ela sugere a formação de um novo triângulo, agora
com a entrada em cena de um bebê que Pity espera, sem revelar
a paternidade. Fica a sugestão de que o filho pode ser criado pelos
três, mas Dôde, como marido, quer dar seu nome à criança. Depois
de tudo acertado, eles vêm caminhando, conversando, sorrindo,
Pity no meio, e passam pela câmera fixa, até saírem de quadro.

Resumido o enredo, trazemos para a análise as palavras de um


dos pareceres do Ministério da Justiça, Departamento de Polícia
Federal, Divisão de Censura de Diversões Públicas sobre o filme,
no momento de seu lançamento:

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

Título: Os homens que eu tive. Classificação etária: 18


anos. Cortes: sim. Vedada a exploração comercial: não.
Cenas: levianas, da alcova. Linguagem: vulgar e algumas
palavras de baixo calão. Tema: social, infidelidade
conjugal. Personagem [sic]: vulgares e levianas.
Mensagem: negativa.

Enredo: Pity, mulher leviana, deixa o marido, que


também mantinha relações extraconjugais, e prossegue
sua vida com vários homens. No final, ela engravida de
um dos companheiros, fica muito feliz e comunica o
acontecimento ao marido, pedindo o desquite.

Cortes: No trailer – palavrão porrada. Segundo rolo do


filme – palavrão filho da puta.

Conclusão: trata-se de película com conteúdo amoral,


baseado no adultério. Opinamos pela liberação para
maiores de 18 anos, com os cortes acima mencionados.
Brasília, 01 de junho de 19736.

6. Documento da Censura em
PDF. Disponível em: <www.
O parecer 3612/73, mencionado acima, foi assinado por duas
memoriacinebr.com.br>.
mulheres e um homem que avalizaram a exibição do filme a
partir de junho de 1973. Pela quase ausência de cortes sugeridos,
percebemos que a película de Trautman não deve ter causado
tanto incômodo aos censores, ao menos no início. O que parece
ter chamado sua atenção, como confirmaremos mais adiante, é o
comportamento de uma mulher casada e liberada. Afinal, como
uma protagonista poderia desvendar ao público espectador sua
intimidade e liberdade de escolha sexual com tanta naturalidade?
Como uma jovem ousava ser a primeira diretora do cinema
brasileiro no período ditatorial e ainda trazer à tona esse tipo de
temática? E se as mulheres das boas famílias resolvessem pensar
assim também? O mal teria que ser cortado pela raiz, com a tesoura
moral da censura. Isso aconteceria pouco tempo depois.

“A ditadura tinha me proibido de discutir a realidade social


do país, mas havia uma questão privada, que era social, que era a
condição feminina, que eu ia discutir”7. Ou seja, Tereza queria, mas
não podia questionar a política. Aderiu, então, de certo modo ao
7. Entrevista de Tereza Trautman a
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de slogan do feminismo “o pessoal é político”, trazendo um problema
2010, no Rio de Janeiro. de gênero para as telas e para os balcões do departamento de

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censura. Seu posicionamento não ficou sem resposta. Dois meses


depois da estreia e do sucesso inicial, Os homens que eu tive foi
censurado e permaneceu na geladeira, assim como sua realizadora,
por longos anos.

Pesquisas em jornais como A Folha de São Paulo8, O Estado de


8. “Fantasias de Tereza sem São Paulo9 e Jornal da Tarde10 saídos em agosto de 1980, e também
traumas”, de 18 ago. 1980, p. 19. nos documentos da censura, mostraram que o filme foi liberado
naquele ano, apesar de sua diretora ter afirmado em entrevista
que foram dez anos de interdição. Isso demonstra que o tempo
9. “Os homens que eu tive, psicológico de interdição pode ter sido maior do que o tempo
liberado sete anos depois”, de 12 histórico para a cineasta, que passou anos batendo de porta em
ago. 1980, p. 20. porta em busca da liberação. Para nós, fica o alerta das inúmeras
possibilidades abertas pelos relatos de memória, que não devem
ser tomados como histórias de vida, mas como interpretações
10. “Os homens que eu tive, uma subjetivas dos fatos.
derrota da censura”, de 11 ago.
E por falar em memória, o rosto de Tereza se fechou, colérico,
1980, p. 17; “Os homens que eu tive,
Filmes novos”, de 18 ago.1980, p. ao mencionar ainda recentemente a censura ao filme11. Depois
19; “Simpático, simples, direto. E de muitas visitas aos órgãos do governo, finalmente ela soube que
levemente ingênuo”, de 18 ago. 1980. a ordem de veto tinha vindo lá de cima, do alto escalão militar12.
A interdição foi feita diretamente pelo general Antônio Bandeira,
então diretor geral do Departamento de Polícia Federal. A cineasta
contou que, de acordo com o que lhe diziam – antes da estreia em
11. Eu a entrevistei em maio de 2010
no Rio de Janeiro e pude sentir a São Paulo, depois de um mês e meio de sucesso no Rio de Janeiro e
mágoa acumulada naqueles anos. de duas semanas em cartaz em Belo Horizonte –, o filme teria sido
denunciado por uma mulher não identificada, por ser um atentado
contra a imagem da mulher brasileira e contra a família. De acordo
12. Entrevista de Tereza Trautman a
com Tereza, não havia motivo justificável para a interdição, pois
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de a película não trazia nenhuma cena explícita. Mesmo assim, foi
2010, no Rio de Janeiro. tomada como subversiva.

Seu nome entrou para o índex proibitivo da censura ditatorial


e cada projeto que apresentava ou do qual participava já era
negativamente carimbado e vetado, não importando seu conteúdo.
Em 1975 foi a vez de um segmento do filme As deliciosas traições
do amor, baseado em contos do Marquês de Sade. Dividindo
espaço com adaptações de outros diretores, entre eles Domingos
Oliveira, Tereza relata que teve sua parte totalmente picotada

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

pela censura13. Depois, em 1976, iniciou a produção de um filme


13. Trata-se do segmento intitulado sobre D. Hélder Câmara, em contrato com a TV francesa Antena
“Dois é bom... quatro é melhor” 2, que foi cancelado sob a ameaça de negação de visto para o
diretor da empresa que a havia contratado. Em 1978 pediu apoio
da Embrafilme para rodar Os saltimbancos14. Passado o entusiasmo
inicial, encontrou seu entrave nas palavras do diretor geral do órgão
14. Peça musical escrita e
composta para o teatro por Chico na época, Roberto Farias, que ela reproduziu: “Tereza, você já fez
Buarque de Holanda em 1977, um filme interditado. Chico Buarque, um sujeito interditado... Eu
também gravada em disco. não posso financiar, botar dinheiro da Embrafilme num filme que
vai ter problemas com a censura”15 . Sempre a censura...
15. Entrevista de Tereza Trautman a Ao analisarmos o mais polêmico filme dessa autora, nos
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de
deparamos também com o debate sobre as reivindicações feministas
2010, no Rio de Janeiro.
que apareciam com força naqueles anos. Por um lado, o crítico Ely
Azeredo tentava proteger Tereza desse estigma:

Primeira mulher a realizar um longa-metragem no


Brasil desde a década de 1950, Tereza Trautman poderá
reivindicar um lugar na história do cinema brasileiro, no
mínimo como a primeira realizadora a filmar entre nós
com um ponto de vista nitidamente feminino. Classificar
Os homens que eu tive de feminista me parece apressado
e, a julgar pelas distorções sectárias sempre presentes nos
movimentos feministas, uma atitude talvez injusta. Um
‘cinema feminino’ está longe do pensamento da autora
(AZEREDO, 2009, p. 208).

Este argumento, elaborado no calor do momento, mostrava a


ausência de um conhecimento aprofundado do que representou
o movimento feminista, além do preconceito contra as feministas,
vistas então, e muitas vezes até hoje, como sectárias. Mas o curioso
contraponto é que, em entrevista, Tereza Trautman falou da
proximidade com as ideias feministas e do contato que teve com
alguns grupos, chegando a participar de reuniões e compartilhar
ideais. Ela relembrou: “Quando eu escrevi Os homens que eu tive,
eu falei: Ah é? Essa coisa de ‘as mulheres que eu tenho’... Eu disse:
Não! As mulheres também! Então, ‘Os homens que eu tive’”.

Sérgio Augusto, colunista da revista Veja, viu em Os homens


que eu tive uma “versão corriqueira de As duas faces da felicidade,

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de Agnès Varda” (Veja, 1 ago. 1973). Azeredo também comparava


os dois filmes. “Sem dúvida Varda comunica um prisma feminino,
mas o mais importante em As duas faces da felicidade é uma visão
de liberdade existencial [...]” (AZEREDO, 2009, p. 208). Ou seja,
a perspectiva feminista perdia importância diante de questões
existenciais (entenda-se não feministas).

A variação importante entre as duas películas é que Varda


colocava um homem como protagonista. Cada mulher era para ele
apenas “mais uma rosa em meu jardim”. A leveza e a naturalidade
com que isso foi mostrado levou a cineasta a sofrer duras críticas,
devido ao otimismo com que tratava a questão da desigualdade, por
valorizar a natureza feminina e por não historicizar as mulheres
(JOHNSTON, 2000[1973], p. 32).

No caso de Os homens que eu tive, a protagonista levava a um


repensar de papéis dentro de uma sociedade tradicionalmente
marcada pela submissão das mulheres e por uma criação direcionada
para que, acima de tudo, elas zelassem por seu casamento, aceitando
as escapadas do marido, um comportamento considerado inerente
ao sexo masculino. Pity, ao se relacionar com outro homem, além
daquele permitido pelo marido, acaba provocando uma crise
conjugal. Sem reconhecer ou aceitar limites, ela sai de casa e dá
continuação a suas aventuras.

Alberto da Silva observa que a existência da personagem Pity


só é possível no recorte espacial em que acontece: a Zona Sul do
Rio de Janeiro, onde algumas mulheres da classe média podiam
experimentar certa liberação sexual nos anos 1970. Para Silva, a
única janela que o filme de Trautman abre para a vida comum
da maioria das mulheres brasileiras é o encontro de Pity com sua
irmã, mãe de três filhos e que acabara de se separar. Depois desse
encontro, a protagonista começa a pensar em engravidar (SILVA,
2010, p. 109-110). Observamos que, como contraponto de Pity, a
irmã é submissa ao marido e abriu mão de ter um trabalho para
viver apenas dentro do casamento e da família. Ela é interpretada
pela própria cineasta, que se coloca em cena como a coadjuvante
que faz falar ainda mais alto a subjetividade da protagonista.

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

Antoine de Baecque analisa o corpo do/a cineasta “como lugar


mesmo do cinema” e observa que a prática do cinema “auto-
corporal” fez parte do chamado “cinema moderno”, como “[…]
um desejo de encarar a principal invenção teórica dos críticos que
formam a Nouvelle Vague, a política dos autores”, além de “moldar
uma singular aparência de si mesmos” (BAECQUE, 2008, p. 501)

Pity conquistava seu espaço num momento em que o movimento


hippie e a liberação sexual que o perpassava cruzavam fronteiras
nacionais e ameaçavam bater à porta dos regimes militares latino-
americanos. Sobre a protagonista, a diretora informa: “Ela não
sente nenhuma culpa. É o que ela tem vontade de fazer e é o que
ela vai fazer. Não é uma carga”16 .
16. Entrevista de Tereza Trautman a Silva sinaliza o contraste entre o filme Todas as mulheres do
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de
mundo, de Domingos Oliveira – também inspirado em Leila Diniz
2010, no Rio de Janeiro.
e estrelado por ela –, e o de Tereza Trautman, como narrativa
biográfica de uma mesma atriz, símbolo da liberação da nova
mulher de Ipanema e da Zona Sul carioca:

Ironicamente, se o título Todas as mulheres do mundo não


causou mal estar entre os censores em 1966, o filme de
Tereza Trautman o causa ao colocar as mulheres em um
pé de igualdade inaceitável pelo poder falocêntrico da
ditadura militar dos anos 1970, momento em que triunfava
a produção cinematográfica erótica (pornochanchadas)17
(SILVA, 2010, p. 109).
17. “Ironiquement, si le titre Todas
as mulheres do mundo n’avait pas
causé de malaise chez les censeurs
Apesar de lançado antes dos chamados anos de chumbo, o que já
en 1966, le film de Teresa Trautman
en causa en mettant les femmes sur explica parte da pressão sofrida por Trautman, o filme de Oliveira
un pied d’égalité inacceptable pour tratava de aventuras amorosas em nada questionadas, por serem
le pouvoir phallocentrique de la vividas por um homem.
dictature militaire des années 1970,
au moment même où triomphait Ao contrário dos exemplos de outras realizadoras brasileiras,
la production cinématographique como Ana Carolina e Helena Solberg (cf. VEIGA, 2013), Tereza
érotique (pornochanchadas)”.
Trautman, enquanto a ditadura durou, foi uma cineasta sem
Tradução nossa.
películas, frustrada em seu talento e em seus sonhos. “Minha
carreira teria sido outra, minha vida teria sido outra, tudo teria

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sido diferente”18, desabafa. Liberado para exibição em 1980, Os


18. Entrevista de Tereza Trautman a homens que eu tive não causou o mesmo impacto sobre o público
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de como havia acontecido sete anos antes, como podemos perceber
2010, no Rio de Janeiro. com a crítica mais dura ao filme19, que o tomava como ingênuo
sem contextualizá-lo dentro de uma história de repressão à busca
de igualdade das mulheres nos anos 1970 e mesmo dentro das
19. “Simpático, simples, direto. E
levemente ingênuo”. Jornal da Tarde, limitações dos recursos cinematográficos da época.
18 ago. 1980.
Mas, em que medida a interdição ao filme teria sido parte
de um projeto de intelligentsia militar? Ou seria ela movida por
decisões meramente arbitrárias?20 Já que em momento algum a
20. Já que não consta dos vinte e diretora questionou em seu filme o regime político e seus efeitos,
oito documentos da censura ao apenas relações de gênero envoltas em valores morais, podemos
filme qualquer registro de um perceber a força dos projetos autoritários (não apenas no Brasil, é
pedido formal de interdição em
claro), que tinham como meta a reação à subversão e a afirmação
Belo Horizonte, podemos pensar
na hipótese de tal solicitação ter de sua ideologia política, que compreendia esses valores.
sido feita pessoalmente ao general
Em carta ao ministro da justiça, Armando Falcão, em 12 de
Antônio Bandeira por alguma
pessoa conhecida dele ou mesmo junho de 1974, a produtora Herbert Richers, responsável pelo
por alguém da sua família. Este filme e há um ano pedindo sua liberação, evocava a exibição no
fato pode ser um indicador da Brasil de filmes como Jules e Jim (1962), de François Truffaut e
arbitrariedade como elemento
Cesar e Rosalie (1973), de Claude Sautet, que traziam temáticas
central do aparelho repressor
brasileiro nos anos de ditadura. semelhantes à de Os homens que eu tive, mostrando mulheres
envolvidas com mais de um homem. Possivelmente essa subversão
de costumes era tolerada como estrangeirismo, mantendo intacta a
moral das mulheres brasileiras casadas. A produtora argumentava
que: “Paralelamente às chanchadas pornográficas que importamos
e que são também produzidas no Brasil há alguns anos, existe o
cinema erótico sério [...]” e que o filme de Tereza Trautman seria
um de seus representantes, assim como Toda nudez será castigada,
de Arnaldo Jabor, também interditado em 1972, mas liberado com
cortes no ano seguinte21.
21. Carta da empresa Produções De acordo com Nuno Cesar Abreu, o filme de Jabor foi um
Cinematográficas Herbert
dos mais destacados do chamado cinema erótico. Para este autor, a
Richers S.A. ao Ministério da
Justiça. Disponível em: <www. moral era o veículo do controle social, como expressão organizada
memoriacinebr.com.br/ dos bons costumes, reprimindo e ajustando os indivíduos (ABREU,
pdfsNovos/0890473C01104.pdf>. 1996, p. 74). Foi ela a justificativa evocada na interdição de ambos
Acesso em 19 jan. 2013.
os filmes aqui mencionados.

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

O argumento da produtora Herbert Richers de que Os homens


que eu tive seria representante do “cinema erótico sério” nos remete
à distinção entre filme erótico (soft core) e filme pornográfico (hard
core), entre o sugerido e o explícito (ABREU, 1996).

O citado filme de Jabor, adaptado da obra de Nelson Rodrigues,


foi visto pelos censores como carregado de erotismo e cenas de
nudez, com sentido negativo para a sociedade brasileira. Mesmo
tendo sido indicado para cortes na estreia e com classificação etária
de 18 anos, também foi interditado, mas, ao contrário de Os homens
que eu tive, Toda nudez será castigada foi liberado um ano depois.

Enquanto Tereza Trautman e a produtora ainda brigavam


pela autorização de exibição, em 1977 os documentos da
censura mostram o filme de Jabor já pedindo autorização para
ser exibido na televisão. O motivo de tal diferença pode ser
presumido ao analisarmos os discursos dos seus pareceres nos
processos de censura.

Parecer 4645/73. Título: Toda nudez será castigada.


Classificação etária: não liberação.

Cenas: de desajustamento familiar, conflitos, relações


de sexo, de exibicionismo erótico, de fuga, de suicídio.
Linguagem: vulgar, de baixo calão, sórdida. Tema:
psicossocial. Personagens: sadomasoquistas, desajustados,
angustiados. Mensagem: negativa.

Enredo: O sexo e o erotismo são recursos engendrados


para desfazer a obsessão do viúvo pela ex-esposa, e,
também, como instrumento de vingança do filho contra
o pai, que com uma prostituta formam um triângulo
amoroso. São marcantes as cenas de exibicionismo
erótico, indução sexual, curra, tendo como desfecho o
suicídio da prostituta de um lado, e do outro, a opção do
filho pelo homossexualismo.

Conclusões: [...] Embora apresente nível técnico que o


tenha credenciado a mais de um prêmio como arte, o
seu conteúdo, entretanto, é negativo, sob o ponto de vista
das instituições morais e sociais. Por conseguinte, [...]
sugerimos sua não liberação.
22. Disponível em: <www.
memoriacinebr.com.br>. Brasília, 10 de julho de 1973. Maria Bemvinda Bezerra22

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Apesar de dois pareceres negativos, o mesmo general, Antônio


Bandeira, decidiu liberar em 8 de agosto de 1973 a exibição do
filme de Jabor, exigindo os devidos cortes já sugeridos na saída
do filme em 1972: cortar a palavra suruba, o gesto que Geni faz
batendo com a mão aberta sobre a outra fechada, a fala de Geni
“Perto de você eu fico toda molhadinha”, a fala de Herculano
“Eu vou deflorar você”, a cena que apresenta o ambiente policial
como “antro de depravação e irresponsabilidade”23. Além disso, o
23. Documento anexo ao documento do general Bandeira exigia o corte de boa parte das
certificado de censura do filme, cenas de Geni no bordel com o “busto desnudo”, uma cena em
expedido pelo Ministério da que o casal se acaricia sexualmente no sofá, outra em que Geni é
Justiça, Departamento de Polícia
mostrada com “os dois seios de fora” tentando seduzir Serginho. O
Federal, Divisão de Censura de
Diversões Publicas e assinado
general também proíbe a cena em que o jovem foge com o preso
por Rogério Nunes e Deusdeth boliviano que o estupra na cadeia, mandando cortar inclusive
Burlamaqui em 21.12.1972. parte final da banda sonora quando Geni diz: “Teu filho fugiu,
com um ladrão boliviano”. Assim o homossexualimo (termo que
dá significado patológico à sexualidade) também seria eliminado
do filme24. Pelo que notamos na descrição feita do enredo, Toda
24. Despacho do gabinete do nudez será castigada poderia ser considerado bem mais ousado e
Diretor Geral do Departamento de explícito em termos de cenas picantes do que Os homens que eu
Polícia Federal, Antônio Bandeira. tive, o que justificaria sua interdição. Ao contrário disso, foi liberado
08 ago. 1973. Disponível em www.
simultaneamente ao engavetamento do outro, e pelo mesmo oficial.
memoriacinebr.com.br.
Acesso em 19 jan. 2012. Em 1973, Toda nudez será castigada, terceiro longa-metragem de
Arnaldo Jabor, ganhou o Urso de Prata em Berlim e foi o vencedor
do Festival de Cinema de Gramado, onde Darlene Glória também
levou o Kikito de melhor atriz. Depois da liberação, com cortes, sua
bilheteria registrada pela Ancine foi de 1.737.151 espectadores25.
25. Dados da Agência Nacional Podemos inferir que o cinema-arte de Jabor, adaptando Nelson
do Cinema. Disponíveis em: Rodrigues, tenha convencido os censores a respeito de sua qualidade
<http://www.ancine.gov.br/media/
artística, confirmada pela premiação que acumulou.
SAM/2011/filmes/por_ano_1.pdf>.
Acesso em 20 jan. 2012. Quanto ao filme de Trautman, uma vez censurado e com suas
cópias recolhidas, passou a ter um tratamento bastante rígido,
impregnado de uma carga moral ainda mais evidente, como
percebemos nos pareceres de 1975, em resposta a um novo pedido
de liberação por parte da produtora Herbert Richers, com o filme
já cortado nos dois palavrões e com título alterado para Os homens
e eu, por sugestão da própria censura.

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

Parecer 4680/75. Título: Os homens e eu. Classificação


etária: não liberação.

Enredo: Mulher casada troca a segurança do lar e do


marido por vida libertina, prostituída até o dia em
que resolve engravidar-se [sic] do último homem que
tivera, quando reencontra com o marido, que sempre
lhe dera cobertura para todos os atos de prostituição e
pouca vergonha.

Conclusão: Filme amoral, pornográfico em sua


mensagem, debochado, cínico, obsceno que tenta com
enredo mal feito justificar a vida irregular de mulher
prostituída. É um libelo contra a instituição do casamento,
considerando como tal todas as investidas irregradas da
insaciável mulher.

É uma afronta à moral e aos bons costumes, em


que pese os interessados terem subtraído os poucos
palavrões existentes.

É o mesmo filme que já foi objeto de exame e


posterior interdição (Os homens que eu tive), tendo
sido, apenas, mudado o nome. A bem da moral, bons
costumes, à [sic] instituição do casamento, à [sic]
sociedade, das pessoas normais e de bem, somos pela
NÃO LIBERAÇÃO [grifo original].

Brasília, 23 de maio de 1975. Joel Ferraz – Técnico Censor.

Os limites de um julgamento técnico perdem lugar para a força e


o peso do julgamento moral, quase passional. O enredo do filme,
apresentado pelo censor, é bastante diferente daquele descrito no
primeiro parecer, que foi elaborado na época da estreia. De acordo
com este último (parecer 4680/75), a mulher que tem mais de um
parceiro leva “uma vida libertina, prostituída”. O filme, além de
amoral, é “pornográfico em sua mensagem”, ou seja, fica claro que
não o é em suas imagens. A mensagem gera o problema, mostrando
“as investidas irregradas da insaciável mulher”, colocando-a num
lugar culturalmente aceitável apenas para homens. O apelo
veemente à “NÃO LIBERAÇÃO”, com caixa alta, fecha o texto
do parecer, no qual o censor afirma por duas vezes querer proteger
a moral, os bons costumes, o casamento, a sociedade e as pessoas
“normais e de bem”. Ou seja, Pity não era, para ele, nem normal
nem de bem, mas uma anomalia, do mal.

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O apelo ao adjetivo normais para o sujeito pessoas aponta para


o sentido foucaultiano de “normalização”26, explorado por Judith
26. No capítulo “Corpos dóceis”, Butler, por vezes traduzido como “normatização”. Este sentido
de Vigiar e Punir, Michel Foucault está evidente no discurso do censor, já que o filme de Tereza
argumenta sobre o estabelecimento Trautman trazia uma protagonista que fugia à normalidade social,
do normal como princípio de
que compreendia a mulher submissa, dentro do casamento. Para
coerção. Os desvios deveriam ser
reduzidos, por meio de penalidades Butler, “[...] as práticas reguladoras que governam o gênero também
aplicadas ao “campo indefinido governam as noções culturalmente inteligíveis de identidade”,
do não-conforme”, do anormal. ou seja, a coerência da pessoa é uma norma de inteligibilidade
O “poder da Norma” faria parte
socialmente instituída e mantida (BUTLER, 2003, p. 38).
das leis da sociedade moderna
(FOUCAULT, 2002 [1975], p. 148- Pity teria cruzado os limites do gênero com um comportamento
154). Podemos associá-lo às práticas
quase masculino. Suas “práticas perturbadoras” questionam o que
dos regimes militares sul-americanos.
Butler chamou “heterossexualidade compulsória” (2003, p. 39). E
mais, no caso do filme analisado, são uma afronta ao controle da
sociedade pelas regras do governo militar. O regime exigia respeito a
uma hierarquia hetero-normativa, onde a iniciativa nas relações via
de regra é tomada pelos homens, detentores do controle da relação
e da família. O sexo, para Pity, não estava ligado à reprodução,
tampouco restrito ao casamento ou à hetero-normatividade. Era
um prazer e não tinha motivos para ser reprimido. Fugindo à
norma que deveria ser reiterada, e marcada assim como antagonista
das pessoas de bem, essa personagem representava um perigo para
a sociedade idealizada. É o que podemos observar na retomada
dos argumentos a propósito do filme, já com o título Os homens
e eu, em 1975. O adjetivo obsceno indicava que estava colocado
em cena aquilo que deveria permanecer escondido. O mal que a
película representava deveria ser extirpado, ao mesmo tempo que o
governo sustentava a produção de filmes eróticos que enfatizavam a
repetição dos papéis de gênero pré-estabelecidos.

Nas pornochanchadas, mulheres sexualmente ativas estavam


em cena para serem consumidas, não para escolher ou consumir,
como a protagonista Pity. Adaptando as palavras de Nuno Cesar
Abreu, sugiro que Tereza Trautman tenha feminilizado de algum
modo as representações “ao situar a mulher como sujeito e como
produtora de material pornográfico” (ABREU, 1996, p. 36), aqui,
no caso, erótico sério.

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

De volta ao parecer 4680/75, é interessante também observarmos


no início da conclusão a crítica ao “enredo mal feito” do filme,
o que mostrava sutilmente um outro lado da profissão do censor,
que acabava tomando (vaidosamente) a si mesmo como crítico
de cinema, apto a dar opiniões estéticas, além de decidir sobre a
pertinência moral de cada filme. Ou seja, sua profissão, ligada ao
cinema, também teria certo vínculo artístico.

Um segundo documento (4681/75), assinado dessa vez por


José M. A. Tolentino em 23 de maio de 1975, afirma que o enredo
do filme faz “dessa agressão aos nossos princípios de moral e bons
costumes uma coisa simplesmente normal”. Mais uma vez a crítica
da censura ecoa: “isso não é normal”. Indo no mesmo sentido dos
outros dois, o último parecer (4682/75) não deixa qualquer dúvida:
“O filme é totalmente AMORAL, contrariando os princípios que
norteiam os critérios censórios vigentes. Propõe constantemente a
destruição da instituição do Casamento. Estimula a prática do sexo
livre e desmoraliza a figura da mulher casada”27.

27. Cf. www.memoriacinebr.com.br. O abjeto – no caso a representação da mulher casada que foge
aos padrões sociais – designa “as zonas inóspitas e inabitáveis da
vida social”, que são densamente povoadas por aqueles que não
gozam do estatuto de sujeito (BUTLER, 2001, p. 155-156). E que
por isso devem ser combatidos, assim como a representação de Pity.

Curiosamente, é a mesma atriz, Darlene Glória, que protagoniza


os filmes de Jabor e de Trautman, sendo que em Toda nudez será
castigada a personagem encontra-se no lugar adequado para uma
prostituta: um bordel. Talvez por isso o filme possa ter sido liberado,
pois não rompia com as convenções sociais vigentes. A prostituta,
vista como mulher de vida fácil, poderia ser traiçoeira e vulgar, sem
maiores problemas para sua imagem já assimilada. Por outro lado,
no enredo de Os homens que eu tive Darlene Glória fazia o papel
de uma mulher casada, de classe média, que mantinha relações
com outros homens. Apesar de não receber qualquer dinheiro por
isso, Pity foi denominada prostituta pelos censores. Muito pior
do que a primeira, ficava subentendido que ela fazia o que fazia
porque realmente gostava disso, no sentido pejorativo. A mácula
na imagem da mulher casada era mais do que suficiente para uma
sentença de interdição quase perpétua.

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Quanto à atriz, ela também sofria as consequências de suas


personagens, sendo muitas vezes identificada ou confundida com
elas, como percebemos em uma crítica da estreia do filme:

“OS HOMENS QUE EU TIVE” – Se em “Toda nudez


será castigada” Darlene Glória sofria na mão dos homens,
a vingança veio rápida, pois em “Os homens que eu tive”
estes é que sofrem sob a ação de seus caprichos. E olhe
que os homens são uns “pães”, como Gracindo Júnior,
Arduíno Colassanti, Milton Moraes, Gabriel Arcanjo e
Roberto Bonfim. É certo que o fato do diretor ser uma
mulher (Tereza Trautman, 22 anos) ajuda esta situação,
mas Darlene vai mesmo à forra, pois além dos homens,
tem oportunidade de transar com Ítala Nandi e Annick
Malvil numa história profundamente humana e sincera,
de autoria da própria diretora. “Os homens que eu tive”,
numa apresentação da Ipanema Filmes28, estréia no
próximo dia 3 no circuito do cine Ipiranga (Folha de São
28. Aqui mais uma coincidência
Paulo, 23.08.1973).
entre Os homens que eu tive e
Toda nudez será castigada – os
dois filmes foram distribuídos pela
Ipanema Filmes. Isso significa que a crítica (provavelmente uma mulher, já que
chama os atores de pães – linguagem coloquial na época para se
falar sobre homens bonitos) recomendava bem o filme e chamava o
público para ir às salas de cinema ver a atriz Darlene Glória transar
com atores bonitos e ainda com as atrizes Ítala Nandi e Annick
Malvil. Infiro que, se esse tipo de mentalidade podia estar impresso
nas páginas de um grande jornal, ele também estaria presente no
senso comum de muitos leitores e leitoras. As atrizes seriam menos
ou mais respeitáveis de acordo com as personagens que aceitavam
interpretar no cinema ou na televisão. Julgamento semelhante
poderia ser aplicado a uma diretora que ousasse rodar um filme
como Os homens que eu tive.

Depois de 1976, com autorização de exportação, a exibição do


filme ocorreu em alguns festivais fora do Brasil, como o de New
Orleans (1976), que exibiu filmes brasileiros tirados de cartaz pela
ditadura militar. Isso nos mostra que o espaço para o cinema mais
questionador dos costumes e da política estava fora do país.

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Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura | Ana Maria Veiga

Trautman marcou posição no diálogo sobre a situação


hierárquica inferior das mulheres nas sociedades brasileira e
latino-americana. Com sua trajetória, podemos refletir sobre a
verdadeira lei que esteve em vigor durante os anos da ditadura no
Brasil: a lei moral do mais forte, do governo militar e seus valores
conservadores, principalmente no que dizia respeito às relações de
gênero e ao lugar das mulheres. A imagem da verdadeira brasileira
era aquela da mulher de camada média, religiosa, dona de casa,
mãe zelosa, esposa compreensiva e disponível para seu marido;
a mulher patriota, responsável pela economia, pelo consumo e
pela criação dos filhos da nação. Assim como no tratamento aos
militantes combativos de esquerda, as mulheres que estivessem fora
desse padrão e o desafiassem, também estavam fora do sistema e
poderiam ser livremente consumidas.

Podemos concluir que, apesar de ter sido aclamada pela


imprensa como a primeira mulher diretora do cinema moderno
brasileiro, de acordo com a crítica de Ely Azeredo em agosto de
1973, Tereza Trautman pagou o preço por ter permanecido no
país durante a repressão e por ter batido de frente com a ideologia
militar. Elogiada por sua competência e criatividade na elaboração
de um filme de realização simples e orçamento barato, como Os
homens que eu tive, ela talvez tenha sido a grande representante
de uma geração: “Cineastas amordaçadas. Talvez seja esse o título
que deveria se dar a toda essa geração, essa leva de mulheres”29).
29. Entrevista de Tereza Trautman a
Ana Maria Veiga, em 10 de maio de Assim define as diretoras que, como ela, tiveram de se submeter aos
2010, no Rio de Janeiro caprichos da censura ou simplesmente não puderam se expressar.

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Dossiê - História e Audiovisual

Referências

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Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.

submetido em: 17 ago. 2013 | aprovado em: 05 nov. 2013

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Sob o signo da
ambuiguidade: uma
análise de Anchieta,
José do Brasil
Carlos Eduardo Pinto de Pinto1

1. Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade
Federal Fluminense. Possui artigos publicados sobre a representação
da história e do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo. E-mail:
[email protected]

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Resumo
Anchieta, José do Brasil (Paulo César Saraceni, 1979) é considerado
o primeiro filme histórico do Cinema Novo a ser produzido pelo
Estado, via Embrafilme. Em seu circuito de produção e exibição,
os “sentidos históricos” que o filme veicularia foram disputados
pela Igreja Católica, pela ditadura civil-militar, pelo Cinema
Novo, por críticos e teóricos. A obra mostra-se, portanto, um
vetor de reflexão sobre a cultura histórica brasileira do período,
caminho seguido pelo artigo.

Palavras-chave
Cinema Novo, filme histórico, ditadura civil-militar, cultura histórica.

Abstract
Paulo César Saraceni’s Anchieta, José do Brasil (1979) [Anchieta,
Brazil’s José] is considered the first Cinema Novo’s historic film
produced with governmental aid, by Embrafilme. On its production
and exhibition circuit, the “historical representation” enacted by
the movie was disputed by the Catholic Church, the civil-military
dictatorship, the Cinema Novo itself, critics and theorists. As such,
it is an important vector to think on the Brazilian historical culture
at that time, path followed by this article.

Keywords
Cinema Novo, historic film, civil-military dictatorship, historical culture.

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Sob o signo da ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil | Carlos Eduardo Pinto de Pinto

Disputas em torno da construção de sentidos de um filme são


bastante comuns na história do cinema. Na acepção de Roger
Odin (2005), nesse processo se dá o encontro de modos de ver —
aqueles inerentes à obra, cuja detecção é possibilitada pela análise
do “específico fílmico” (KORNIS, 1992; MORETTIN, 2003), e os
que são mobilizados por seus diversos públicos. Pela perspectiva de
Semiopragmática, defendida por Odin, menos que contrapor uma
série de interpretações sobre o filme, que virtualmente teria um
sentido primário a ser apreendido, trata-se de mapear os sentidos
criados com o filme, em regimes “espectatoriais” diversos. Para
algumas obras, esse encontro de modos de ver poder ser pacífico
e satisfatório para todos os setores envolvidos. Em torno de outras,
travam-se aguerridas batalhas pela construção de seu sentido, como
apontei no início deste parágrafo. É esse o caso de Anchieta, José do
Brasil (Paulo César Saraceni, 1977), filme analisado aqui.

A obra trata da biografia de José de Anchieta e da miscigenação


cultural, temas caros à ditadura civil-militar instaurada em 1964,
mas assume perspectivas diegética e narrativa em parte contrárias
à visão conservadora. Não se trata, de forma alguma, de um filme
absolutamente contestador, mas de uma obra ambígua, que desliza
e se adequa às polaridades mobilizadas em seu circuito social, que
não eram poucas. Afinal, a obra foi disputada pela Embrafilme,
empresa estatal de cinema que a coproduziu e distribuiu; pela Igreja
Católica, interessada na beatificação de Anchieta; pelo Cinema
Novo — em fase de revisão de seus postulados políticos e estéticos
—, por parte tanto de Saraceni quanto de alguns de seus pares,

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Dossiê - História e Audiovisual

que questionavam suas intenções ao realizar a obra; finalmente, por


críticos e teóricos, voltados para a discussão da natureza do filme
histórico, num esforço de definição do gênero e de sua importância
no cenário da produção cinematográfica brasileira da década.

Embora para alguns desses setores a biografia do então candidato


à beatificação estivesse diretamente em jogo, defendo que o tema
principal dos debates tenha sido a ideia de história, num momento
em que a cultura histórica brasileira ganhava a atenção. Essa relação
que uma sociedade mantém com seu passado, pautada não apenas
pela historiografia mas também pela cultura política (GOMES,
2007), foi intensamente trabalhada pela política cultural construída
pela ditadura civil-militar ao longo da década. Não se deve esquecer
o poder do simbólico, já que, como postula Serge Berstein (1992, p.
69), “[...] na ordem da cultura política, é a lenda que é a realidade,
pois é ela que é mobilizadora e determina a ação política concreta,
à luz da representação que ela propõe”2. Tratava-se de erigir um
2. As traduções para o português aparato de legitimação em que as ideias de história e memória
neste artigo foram feitas pelo autor. se confundiam (PINTO, 2005), voltado para o ensino de história
em seus diversos níveis, para os museus, para as cidades históricas
e para os filmes históricos. Sempre a partir de uma perspectiva
reverenciadora das “glórias”, dos “grandes vultos” e dos “heróis” —
para lançar mão de uma terminologia bastante em voga.

Anchieta, José do Brasil e seu circuito social formam, dessa


maneira, um excelente vetor de reflexão sobre a cultura histórica
brasileira do período, apontando um caminho que pretendo
seguir ao longo deste texto.

A natureza do “filme histórico” e sua presença no cinema brasileiro

O cinema e a história podem se encontrar de muitas formas,


construindo uma “relação de diversos andares” (LEUTRAT, 1995)
ao ritmo dos conectivos e preposições: história (no/do/através
do) cinema. Neste artigo, as três relações se conjugam; afinal
;produzo conhecimento histórico através do cinema, por meio da
abordagem de um filme histórico — um meio de representação
cinematográfica da história —, ao mesmo tempo que me atenho a
reflexões pertinentes à história do cinema (brasileiro).

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Sob o signo da ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil | Carlos Eduardo Pinto de Pinto

Entre as relações apontadas acima, uma que merece mais a


atenção é o “filme histórico”. O termo, falsamente transparente,
encobre uma gama variada de tipos de produção cinematográfica.
Cristiane Nova (2000) propõe um espectro que inclui
reconstituições, biografias, filmes de época, ficções históricas,
filmes-mito e filmes etnográficos, além de adaptações literárias e
teatrais. De forma bastante ampla, portanto, pode-se considerar
como “filme histórico” aquele que realiza, em algum nível, uma
representação do passado, tomando como referência o tempo em
que é feito — sem deixar de acrescentar, às possibilidades listadas
pela autora, os documentários. Essa primeira aproximação, contudo,
ainda se mostra falha no que se refere à relação que as obras podem
estabelecer com a história. Afinal, existem muitas possibilidades
de combinação entre fidelidade às pesquisas acadêmicas e uso de
doses variadas de ficção. Assim, e para ficar apenas nos extremos,
um filme pode ser vendido como reconstituição e operar somente
com imagens e ações que “pareçam” históricas; outro pode se
assumir como “imaginação” e apresentar um alto nível reflexivo
sobre o tema que aborda.

Importante salientar que, qualquer que seja o resultado da


equação esboçada acima, filmes históricos possibilitam, se não uma
“aprendizagem”, ao menos a experimentação de algum contato —
sensorial, intelectual, emocional — com o passado. Desse modo, o
cinema se constitui como agente de criação de sentidos históricos,
sendo mais do que um meio de divulgação — uma vez que colocar
a relação nesses termos pressuporia um saber histórico pronto a ser
propagado, ao passo que o cinema seria encarado apenas como
um dispositivo propagador. Muitas gerações travaram contato com
o passado através de ficções desse tipo, aproximando-se do que
David Lowenthal (1988, p. 229) denominou factions — híbrido de
fato (fact, no original) e ficção (fiction). Embora o autor trate dos
romances históricos em voga no século XIX, acredito que o paralelo
com os filmes históricos seja possível. Afinal, o mesmo desejo dos
leitores de unir biografia e história, de vivenciar o passado e se
identificar com personagens vivas, que comem, bebem, amam e
têm raiva parece animar os espectadores dos filmes.

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A partir dessa definição, é possível identificar que o gênero


sempre esteve presente na cinematografia brasileira, desde a
fase muda (MACHADO, 1987) até hoje. Mesmo que todos os
períodos apresentem debates e disputas em torno da representação
cinematográfica da história, é possível afirmar que, naqueles em
que governos autoritários estavam no poder, a sensibilidade diante
dos filmes históricos foi mais aguçada. É o caso do Estado Novo,
entre 1937 e 1945 (MORETTIN, 2000) e da ditadura civil-militar
(1964-1985), mais especificamente a década de 1970, em que
tanto o Estado quanto os cinemanovistas apresentaram acentuado
interesse no gênero.

Os cinemanovistas, em sua maioria, realizaram “filmes


históricos modernos” ou “inovadores” (ROSENSTONE, 2010, p.
36). Tais obras são caracterizadas por se apropriarem de forma
crítica e reflexiva dos discursos históricos, questionando a história
oficial e, não raro, se questionando sobre o próprio sentido da
história (XAVIER, 2001). No cinema brasileiro, como indicado
acima, foram realizadas prioritariamente pelos cinemanovistas
ou, de forma mais inclusiva, por aqueles comprometidos com o
cinema moderno.

A geração do Cinema Novo e o “desejo de história”

Além de Paulo César Saraceni, entre os integrantes do Cinema


Novo estavam Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá
Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy
Guerra, Walter Lima Jr., Zelito Viana, Gustavo Dahl, David
Neves e Eduardo Coutinho. Eram relativamente jovens quando
o movimento começou a se delinear, pertencendo todos à
geração de 1964 (PINTO, 2011), que para Denise Rollemberg
tinha como marcos fundadores “os movimentos reformistas
e o golpe civil-militar que depôs o presidente João Goulart”
(ROLLEMBERG, 1999, p. 493).
3. A autora não se refere aos
O “novo cinema” brasileiro deveria representar,
cinemanovistas, mas aos exilados
políticos da ditadura civil-militar, seu simultaneamente, uma luta contra a dominação do mercado
objeto de estudo. nacional pelo cinema norte-americano e a tentativa de “capturar”

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Sob o signo da ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil | Carlos Eduardo Pinto de Pinto

a realidade brasileira, não apenas através das temáticas dos filmes


como também pela criação de novas maneiras de filmar que
fossem genuinamente nacionais (XAVIER, 2001; FIGUEIRÔA,
2004). Se essa é a contribuição dos reformismos, o golpe de 1964
atingiu — para além dos posicionamentos políticos mais evidentes
— a relação que estabeleciam com a história, o que me interessa
prioritariamente aqui.

Para esses criadores, a história só tinha um caminho a seguir — a


mudança —, cabendo a eles efetivar o processo. No caso dos jovens
cineastas, a sua arte era considerada a principal arma: faziam filmes
como quem faz história. E os debates históricos sempre estiveram
presentes em suas falas, ainda que como uma sombra, perpassando
os propósitos com que essa geração filmava. O desejo de conhecer
e simultaneamente apresentar o Brasil para os brasileiros incluía
necessariamente o reconhecimento do seu passado. Como Ismail
Xavier (2001, p. 127), escrevendo sobre Glauber Rocha, afirmou:
trata-se de “uma geração de intelectuais e artistas brasileiros
marcados por uma aguda consciência histórica, sempre atenta à
ligação do cultural com o político”, o que pode ser corroborado
pela análise que Maurício Cardoso (2011) faz de História do Brasil
(Glauber Rocha e Marcos Medeiros, 1974).

A insubordinação da história tornara-se palpável a partir


do ponto em que, em 1964, ela se recusou a seguir os rumos
determinados pelos jovens (REIS FILHO, 1991). O ano de 1968,
com a assinatura do AI-5 e o reforço da repressão, surgia para essa
geração como a conclusão do golpe dado quatro anos antes. Os
caminhos apresentados a partir desse ponto eram perigosos, mas
precisariam ser trilhados: menos que lutar contra a ditadura, tentar
driblá-la parecia ser a trilha encontrada para continuar criando. Uma
das maneiras de pisar nesse terreno era dialogar com as demandas
ditatoriais, o que era o caso dos filmes históricos. Porém, é preciso
reforçar que já havia nos filmes e nas falas dos componentes dessa
geração um desejo de história que não se manifestara somente após
os golpes, sendo mesmo um de seus traços definidores.

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A vida de Anchieta daria um filme...

Paulo César Saraceni foi responsável por alguns marcos do Cinema


Novo, o que fez que se tornasse respeitado e admirado pelos
companheiros. Realizou o primeiro curta considerado um filme
profissional do Cinema Novo, finalizado enquanto ele estudava
no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. Já O desafio
(1965) foi considerado por muitos autores como o inaugurador da
representação urbana no Cinema Novo (RAMOS, 1987; PINTO,
2013b), em que ousou refletir abertamente sobre o golpe de 1964
(CAMPO, 1995; 2011).

A partir de 1975 já começaria a se delinear o projeto de


Anchieta, José do Brasil, o primeiro filme histórico cinemanovista
coproduzido pela Embrafilme. Segundo a autobiografia de
Saraceni (1993, p. 283), primeiro veio “[...] a ideia de fazer um
filme sobre nossas origens”, finalmente concretizada no tema de
Anchieta, sem ficar claro o porquê dessa escolha. É importante
salientar que a memória do jesuíta foi resgatada pela ditadura
4. Movimento surgido no seio da civil-militar, que em 1965 instituiu o dia 9 de junho para sua
Igreja Católica, que tende a revisar celebração (FLECK; MATOS, 2010), organizando uma Comissão
a teologia política, procurando Nacional responsável por fomentar atividades em torno do tema,
usar os ensinamentos cristãos em
incluindo um acordo com a UnB para a realização de um filme,
prol da superação da dependência
econômica e da exploração dos que não viria a ser realizado.
oprimidos. Os seus adeptos se
Independentemente da origem de suas ideias, Saraceni teria
empenharam na luta conta a
ditadura civil-militar no Brasil, se mostrado tácito no esforço de construir, com seu filme, “outro”
procurando defender os Direitos Anchieta, diferente daquele que interessaria à igreja tradicional e à
Humanos dos militantes perseguidos. ditadura: “Leio os livros que trouxe da Europa, começo a visualizar
um Anchieta catequizado pelos índios” (SARACENI, 1993, p. 289).
Ainda segundo sua memória, o “seu” Anchieta estaria associado
à Teologia da Libertação4 e a dom Pedro Casaldáliga5, havendo
5. O padre espanhol Pedro mesmo trechos em que o associa a Luís Carlos Prestes. Tratava-se,
Casaldáliga se radicou no Brasil portanto, de uma tentativa de “esquerdização” (embora mantendo
em 1968, sendo nomeado bispo no o caráter religioso, ao menos nos dois primeiros casos). Essa postura
início da década de 1970. Adepto
já indica a forma de construção da narrativa fílmica, que mantém
da Teologia da Libertação, foi
perseguido pela ditadura, por conta um diálogo mais profícuo com a memória erigida em torno do
de sua defesa dos Direitos Humanos. jesuíta do que com a historiografia a seu respeito.

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O início da produção: disputas

Em 1975, a Embrafilme criou uma comissão para escolher


projetos de filmes históricos. É importante perceber que essas
propostas já estão coadunadas com uma política cultural mais
elaborada, surgida a partir da implementação da PNC (Política
Nacional de Cultura), cujo objetivo era formar um projeto
homogêneo de política cultural no país. A concepção de cultura
presente na PNC era de inspiração claramente antropológica,
sendo encarada como “a plenitude da vida humana no seu meio”
(RAMOS, 1983, p. 119). Estava fortemente baseada nas ideias dos
intelectuais conservadores reunidos em torno do CFC (Conselho
Federal de Cultura), criado já em 1965 e formado por profissionais
egressos dos Institutos Históricos e Geográficos e das Academias
de Letras. A base de sua concepção era a miscigenação cultural,
como desenvolvida por Gilberto Freyre.

Saraceni enviaria o roteiro de Anchieta para o projeto da


Embrafilme, sendo, finalmente, o único filme realizado. O diretor
lembra que sofreu pressões do ministro da Educação, Ney Braga,
bem como do diretor da Embrafilme, Roberto Farias, e de seu
assessor, Zelito Viana, para que mandasse o roteiro de Anchieta.
Diante disso, teria ficado ressabiado: “Deve haver uma manobra
política aí que eu não estou gostando; se eu fizer Anchieta, vou
fazer o meu Anchieta, e não o do ministro ou de qualquer um”
(SARACENI, 1993, p. 295).

A desconfiança tinha a sua razão de ser. Desde o início da


década, a ditadura mostrava interesse pelos filmes históricos,
como indica o discurso do então ministro da Educação, Jarbas
Passarinho, incentivando os cineastas a filmarem o “nosso glorioso
passado histórico” (FILME CULTURA, 1971). Tratava-se de um
incentivo à realização de filmes ufanistas, seguindo a fórmula do
épico clássico, que tem, entre suas características, a grandiosidade
e o tom espetacular (VADICO, 2012). Se essa diretiva poderia ser
apenas intuída em 1971, ela ficaria clara no ano seguinte, quando
o próprio presidente Médici encampou a obra Independência
ou morte (Carlos Coimbra, 1972), superprodução sem qualquer
vínculo com o Estado, mas completamente coerente com o

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clima de celebração nada crítica em torno do sesquicentenário da


Independência (PINTO, 2005, 2005b).

Ao investir em filmes históricos, único gênero a ganhar uma


atenção especial (RODRIGUES, 1987), a Embrafilme surgia
como a face mais evidente do dirigismo cultural. Por outro lado,
a estatal funcionava como uma espécie de banco financiador,
o que era uma relação bem-vinda. Por exemplo, em 1970, após
uma reunião entre ministros, produtores e cineastas (entre outros,
Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Luís Carlos Barreto),
foi declarado enfaticamente que ao ministro Jarbas Passarinho
caberia a “glória de implantar uma indústria cinematográfica
brasileira” (RAMOS, 1983, p. 95)6.
6. O autor cita trecho da matéria “A Os atritos entre Saraceni e a Embrafilme tendiam a se acirrar
glória do cinema para Passarinho”,
no decorrer das filmagens. O diretor queria realizar o filme em
Jornal da Tarde, 11 set. 1970.
Porto Seguro, na Bahia, “[...] único lugar onde havia um clima
de século XVI”, diria em uma entrevista a Alex Viany (1999, p.
339), mas também porque a distância lhe daria mais liberdade,
segundo sua autobiografia (SARACENI, 1993). Alegando os altos
custos dessa operação, a Embrafilme não permite, mas ainda
assim Saraceni insiste e viaja com sua equipe, relatando que havia
atrasos propositais na liberação das verbas, o que fez que precisasse
de apoio do governo de Porto Seguro para continuar os trabalhos.
No retorno, com apenas 70% das filmagens realizadas, ocorreria
um incidente envolvendo prisões e drogas que viria a ter bastante
repercussão na mídia e abalaria ainda mais as relações.

Depois desse episódio, a Embrafilme apreendeu o material.


“Fiquei oito meses esperando a decisão [...]. Ou eu acabava o filme
ou me davam o copião para eu conseguir meios de acabar de fazê-
lo” (SARACENI, 1993, p. 307). A obra foi finalizada, depois de se
realizar as últimas filmagens em Paraty, Estado do Rio. O filme
pronto foi exibido para uma comissão formada por Roberto Farias,
Ney Braga e padre Hélio Abranches Viotti. Embora o ministro não
tenha se manifestado diretamente, Saraceni ficou sabendo por
Roberto Farias que ele havia implicado com uma cena de nudez
frontal masculina. Já o padre Viotti aprovou o filme, entregando
ao diretor um pequeno texto, que Saraceni reproduz: “A figura

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do Apóstolo do Brasil foi tratada com simpatia constante, com


dignidade e na intenção de apresentá-lo como santo, a caminho dos
altares” (SARACENI, 1993, p. 314). Mesmo sem corresponder ao
que a empresa estatal esperava, um espetáculo histórico nos moldes
de Independência ou morte, o filme foi liberado para a exibição.

Análise: o “específico” de um filme ambíguo

Fruto de um cruzamento insólito, Anchieta, José do Brasil


resulta de uma relação entre antagonistas e carrega as marcas
dessa ambiguidade. Por um lado, tende a ser uma reconstituição
histórica clássica e, por outro, se mostra bastante experimental.
Embora apresente uma estrutura “início-meio-fim” bem
delimitada, use cenários de época e as atuações procurem dar
profundidade psicológica aos personagens, em muitas sequências
a narrativa “jorra aos borbotões”, se estendendo em cadeias de
imagem e música fluidas que em nada lembram o didatismo
das produções históricas clássicas que a ditadura procurava
incentivar. Assim ocorre já no início, com as imagens que passo
a descrever agora, tentando manter, na escrita, o mesmo tom
telegráfico usado em sua narrativa:

Mulher amamentando uma criança — tela escura —, pegadas


na areia — mar —, um texto de Anchieta que finaliza com “Só a
heróis compete tantas glórias” — nome do filme —, mar (música
instrumental), créditos, o mar sempre ao fundo, fim dos créditos (a
música continua), pátio interno de uma casa, voz de Anchieta em over
narrando em primeira pessoa que nasceu nas Ilhas Canárias, falando
do pai (imagem do pai — quadro fixo, câmera parada), falando da
mãe (quadro fixo, a música cessa), “Sou um afro-castelhano [...],
o que me ligaria mais tarde aos índios brasileiros” (volta a música,
quadro em plano aberto), mão em gesto de despedida segurando um
chapéu, a voz em over explicando que se trata do pai se despedindo
do filho que iria estudar em Coimbra, “Deixo Tenerife para nunca
mais voltar” — a mãe encara a câmera (quadro fixo), “Vivo em
pleno esplendor do Renascimento [...]. Gosto de escrever poesias e
declamá-las para meus amigos”. A voz continua em over, mas já posso
ver Ney Latorraca, o intérprete do padre jesuíta.

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Esse fluxo inicial segue veloz, sem pausas, porque não


parece ser nele que se encontra o que mais interessa, mas sim
o primeiro êxtase místico de Anchieta. Em seguida, a cena que
esclarece o envio do padre para o Brasil e sua reação desanimada,
pois então os trópicos pareciam um jugo muito pesado para um
religioso à beira da morte. Já no Brasil, outra sequência-córrego.
Plano aberto, mise-en-scène bem evidente: praia, índios de costas,
cavalos, soldados. A voz de Anchieta em over informa se tratar
da Bahia. O governador-geral desembarca, índios avançam em
direção a ele, o cercam, vê-se o mal-estar estampado na expressão
de seu rosto, a câmera se desloca — desestabilizando o quadro
bem montado —, vai para o meio da multidão de nativos, filma
de perto, cria closes, sempre em movimento constante, e se afasta
novamente. Anchieta aparece na praia, os índios fazem os mesmos
movimentos de boas-vindas que ofereceram ao governador-geral,
sendo que o padre reage bem, sorri (acompanhado de uma
música instrumental extradiegética, com tonalidades românticas).
O jesuíta passeia com os índios, deixa que eles o toquem e recebe
os objetos que lhe ofertam, inclusive uma lança.

Mais adiante, o encontro com José da Nóbrega, o superior


da Companhia de Jesus no Brasil. Segue-se uma conversa entre
eles, na qual o subalterno desfila todas as boas impressões que a
nova terra e seus habitantes lhe deixaram. A união das sequências
em que Anchieta se mostra familiarizado com a cultura local e
misticamente integrado à natureza do Brasil com essa sequência
em que conversa com José da Nóbrega funciona como a defesa
de que a união com os índios deveria ser o caminho seguido pelos
colonizadores no Brasil, de acordo com a opinião do padre.

Na porção final do filme, os negros também aparecem. Em


viagem a Pernambuco, Anchieta trava contato com uma corte
branca envolvida em “luxos orientais”, enquanto são servidos por
negros escravizados. As orgias são filmadas com a câmera quase
parada, sendo perceptível apenas um leve movimento na horizontal
(como se eu, que vejo, estivesse movimentando a cabeça de um
lado para o outro, mas de maneira muito contida). Os atores não
falam, apenas se movimentam, riem, comem, se beijam, desfilam

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Sob o signo da ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil | Carlos Eduardo Pinto de Pinto

usando figurinos luxuosos. A música extradiegética cresce em


intensidade, aproximando-se da lógica dos mantras. Em seguida,
Anchieta aparece se referindo à precariedade com que os negros
escravizados eram tratados e ao fato de não serem batizados.

Presente na montagem fluida da abertura, nos enquadramentos


em plano aberto contendo uma mise-en-scène bastante explícita,
na câmera na mão e no tom brechtiano das atuações, a estética
cinemanovista pode ser bem observada nas sequências que
reforçam a teatralidade do filme. Por exemplo, num trecho em
que uma mulher compra uma índia, encenação interrompida pela
inserção de outra sequência, em que Anchieta aparece ao lado de
Manoel da Nóbrega, os dois encostados em uma cerca, olhando
para a câmera. Anchieta diz que gostaria de escrever um auto em
que a mesma dona Maria José, que acabou de comprar a índia, lhe
daria liberdade. Tal afirmação vem conectar o esquematismo da
montagem do filme ao esquematismo didático utilizado pelo padre
nas suas peças teatrais.

Essa proposta é logo confirmada pelas sequências em que vejo


alguns dos personagens da trama declamando como se estivessem
fazendo parte de autos nos quais se poderia ver, nas palavras de
José de Anchieta, a “formação do Brasil”. Ao fim, a inspiradora
dos autos, dona Maria José, finalmente aparece dando liberdade
à índia comprada: “O Brasil [...] me deu poder. Eu acorrento
porque não quero ser acorrentada”. Como que seguindo o mesmo
clima dos autos, o perigo da presença protestante é representado
pela figura de Jean de Boulés, com quem Anchieta e Nóbrega
dialogam, organizados em uma mise-en-scène muito próxima da que
é dispensada à representação dos autos.

Na porção final do filme, são apresentados também alguns


transes místicos do padre, cada vez mais frequentes no fim da
vida. A sequência que representa a sua morte é filmada de forma
lenta, enquanto no som extradiegético ouvem-se música e um
poema declamado pela voz de Anchieta em over. O seu enterro é
representado como um grande acontecimento, com a câmera se
movimentando em meio ao cortejo numeroso, se misturando aos
presentes. Os sons dos sinos que anunciavam o enterro vão sendo

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Dossiê - História e Audiovisual

aos poucos substituídos por batuques extradiegéticos e apitos.


Figurantes agitam estandartes, como num desfile de Carnaval. A
impressão é confirmada quando percebo o padre sentado sobre
a liteira que deveria levar seu corpo: Anchieta está vivo, sorrindo
e observando o cortejo, como se fosse um destaque de carro
alegórico. A música fica cada vez mais frenética, com presença de
sax e elementos eletrônicos. As imagens, em contraste, começam a
ser mostradas em “câmera lenta”. Os créditos finais sobem.

Circulação: um filme para todos os gostos

No espaço de comunicação do filme (ODIN, 2005, 2011), devem


ser consideradas as expectativas em torno do projeto, bem como
as afirmações de Saraceni sobre o que pretendia fazer com a obra.
Em ambas as situações, o discurso religioso teve importância
(MALAFAIA, 1998; FLECK; MATOS, 2010), mas não será foco de
minhas observações. No espaço deste artigo, o que mais interessa
é perceber que na campanha de Saraceni pela beatificação está
implícita uma releitura da história, intentada através de recursos
fílmicos e reforçada pela divulgação da obra. Nesse jogo, as regras
do filme histórico clássico são associadas à ditadura e à Embrafilme
(e a qualquer outro grupo ou instituição conservadores), enquanto
a releitura livre que ele realizaria de Anchieta definiria uma postura
militante, de um cineasta identificado com as esquerdas. Trata-
se, portanto, de um esforço de “desmonumentalização”, como
apresentado por Eduardo Morettin (2001) e Marcos Napolitano
(2011), mas realizado concomitantemente a disputas em torno
da reinvenção do mito. Afinal, com seu filme, Saraceni também
disputava espaço pela releitura da biografia de Anchieta. Por mais
que pareça nonsense, o diretor e roteirista “desmonumentalizava”
para tentar monumentalizar de outra forma.

Ao fim, a tese do filme se completa: Anchieta surge como o


pivô de união das três raças durante o período colonial. Essa leitura
histórica está de acordo com a política cultural desenvolvida a
partir de 1975, momento em que os governos ditatoriais passaram
a apresentar postura mais propositiva nesse campo. O que antes
era intuído pela atuação dos órgãos de censura (que esclareciam

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Sob o signo da ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil | Carlos Eduardo Pinto de Pinto

o que não era possível fazer), passou a ser apresentado de forma


mais sistemática a partir da implementação da Política Nacional
de Cultura, já comentada. Contudo, o filme não é apreendido
como entreguista, servindo de defesa à sua idoneidade a linguagem
moderna de que se utiliza — maior indício de sua estratégia de
“desmonumentalização” —, que tanto incomoda à Embrafilme,
mediadora entre os cineastas e o governo (AMANCIO, 2001;
RODRIGUES, 1987). Logo, imperou a ambiguidade.

O espaço crítico corrobora tal impressão. Em texto


contemporâneo ao lançamento da obra, mas referindo-se à
atuação dos críticos diante dos filmes históricos produzidos ao
longo da década, Jean-Claude Bernardet parte da hipótese de
que os críticos trabalham com um complexo de ideias, tais como
naturalismo, ciência e grandiloquência. O naturalismo pretendia
uma aproximação da história real. A ciência daria embasamento
ao naturalismo, pois só calcado em pesquisas um cineasta poderia
fazer uma boa reconstituição de época. Enfim, a grandiloquência
seria exigida pelo fato de os críticos não admitirem que enredos
“menores” fossem filmados: a história, sendo nobre, precisaria
contar com personagens igualmente nobres, filmados de
forma adequada, ou seja, espetacular (BERNARDET, 1979).
A rejeição aos filmes históricos modernos se daria, portanto,
pela exigência de que seguissem tais parâmetros, associados aos
filmes históricos clássicos.

No caso de Anchieta, um filme “rompido com o naturalismo e


afastado de qualquer intenção de reconstituição” (BERNARDET,
1979, p. 58), o autor encontra um bom exemplo. Afinal, ao
mesmo tempo que foi criticado “pelas falhas do naturalismo, da
reconstituição, da reprodução”, foi igualmente elogiado “pelas
qualidades da reconstituição” (BERNARDET, 1979, p. 58). Por
certo que isso se dá pela mobilização de diferentes modos de ver por
parte da crítica — como fica claro no embate entre Ely Azeredo,
do Jornal do Brasil, e Sérgio Santeiro, da revista Filme Cultura,
exposto abaixo —, mas também pode ser encontrado na própria
narrativa do filme. Logo, não se trata apenas de “reconstruir” o
filme de acordo com suas intenções (ou capacidades), mas de
“construir” o sentido com o filme.

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Dossiê - História e Audiovisual

Ely Azeredo (1979, p. 2) indica, de partida, que compreende


as opções de Saraceni por não “desenvolver um trabalho
rigorosamente histórico”, preferindo o tom lírico. Contudo,
também aponta os esforços de uma reconstituição bem realizada,
no sentido de “reproduzir com empenho [...] o Brasil quinhentista,
os ambientes, as gentes, e permanecer fiel a uma certa fantasia
indianista, ultrapassada”. Apesar do desprezo por essa leitura,
Azeredo demonstra seu esforço em “esquecer o compromisso
com o documento real” em prol da leitura utópica, concluindo
que os intentos de Saraceni não foram bem-sucedidos, nem como
“documento real” nem como utopia.

Em resposta a essa crítica, Sérgio Santeiro (1979, p. 2) escreve


uma carta indignada, enviada para a seção “Leitores”, reclamando
do “descaso pela produção nacional”, conclusão a que chegou após
perceber a “banalização” do filme perpetrada por Azeredo. Assim,
a “belíssima visão de um Anchieta entre o sublime e o profano,
glosando a vida da própria vida brasileira na crônica política de nosso
quinhentismo, cede no interesse da triste página do suplemento às
mais ridículas afirmações”. Em crítica publicada na Filme Cultura
(1980, p. 29s), no início do ano seguinte, Santeiro defende mais
acuradamente seu ponto de vista: “Quando se dispôs a contar essa
história da colonização, tenho como certo, e bem o demonstra o
filme, que Saraceni tinha os olhos no nosso tempo, redescobrindo
o passado [...] como a prática do tempo presente”.

Até aqui parece concordar com Azeredo e continua ao afirmar


que “infelizmente, ou não, a história é um conceito, ninguém a vive
de fato porque a vida humana contida pela morte pode no máximo
ser uma existência biográfica”. Saraceni, consciente desses limites,
teria se lançado num ensaio histórico pleno de liberdade poética,
procurando ultrapassar limites do tempo cronológico da biografia
de Anchieta, estendendo a temporalidade do filme para o presente
(da produção), procurando unir biografia e História. Ao fim, conclui
que Anchieta era uma “inspiradíssima versão [dos primeiros tempos
de vida colonial] que, se não foi bem acolhida, certamente deve-se
mais à pobreza dos tempos em que vivemos do que à generosidade
com que os artistas se têm dedicado a descobrir o país”.

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É possível perceber que ambos concordam quanto ao dualismo


que perpassa a obra, discordando apenas do resultado: para
Azeredo, que parece “tolerar” a ficcionalização, o resultado final
não teria soado convincente como um “filme histórico”, ainda que
moderno; já para Santeiro, era justamente a ficcionalização que
permitia ao filme ser “histórico”, de forma mais complexa do que
seria uma cinebiografia tradicional. Para ambos, a ambiguidade é
o caráter mais forte da película — sendo encarada como entrave
para um, e como essencial para o outro. De qualquer forma, são
os sentidos históricos que se põem em disputa, o que valida o filme
como agente da cultura histórica.

Considerações finais: modos de ver


A história está presente em Anchieta, José do Brasil não da forma
como ela surgiria em um épico clássico: afinal, o filme busca uma
linguagem alternativa. Ainda que, se comparada a outros filmes
do período, não apresente uma experimentação radical, a obra
está longe do espetáculo histórico no estilo de Independência ou
morte. Nele, a história aparece objetivada, quando Anchieta afirma
que vive em pleno esplendor do Renascimento, o que obviamente
é uma construção histórica, já que quem vivia no Renascimento
não sabia disso. Em outra sequência, Anchieta diz ouvir vozes do
futuro acusando os jesuítas de destruírem as populações indígenas
ao espalharem doenças entre eles. É a voz da história de seus atos,
construída no futuro; voz que ele se recusa a ouvir, seguindo
adiante em seus propósitos.
Essa personificação da história — que permite um diálogo dela
com uma personagem — não é possível em um épico clássico.
Nesse, os únicos que devem saber da existência da história são os
espectadores. As personagens da trama, ao contrário, devem viver
a história sem ter consciência disso. Aqui fica reforçado o futuro
do pretérito (PINTO, 2005) como o “tempo verbal” dos filmes
históricos modernos: Anchieta ouve vozes de seu futuro, que é, de
fato, o presente do filme. O passado é representado a partir de uma
“contaminação” do presente. Afinal, só um Anchieta que estivesse
no presente (1979), narrando sua atuação no século XVI, poderia
saber que viveu em pleno esplendor do Renascimento.

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Dossiê - História e Audiovisual

Ainda assim, o filme foi disputado e, em torno dele, tentou-se


delimitar o caráter da história contada: se fiel ou não, se política,
religiosa, de direita ou de esquerda, entre outros. Retomo aqui a
expressão de Lowenthal (1988) para se referir às representações
da história: factions (síntese de “fato” e “ficção”, em inglês). Mais
que um jogo de palavras, o autor realiza com o neologismo uma
complexa leitura dessas representações, conjunto em que incluo
os filmes “históricos”: ao mesmo tempo miméticos e imaginados
em relação ao passado. Defendi ao longo deste texto que, além de
inerente ao “específico” dessas obras, o status de factions aparece
também nos modos de ver, como defendido por Roger Odin (2005,
2011): há, a priori, um modo de olhar “documentarizante” lançado
sobre os filmes históricos — não porque se tende a acreditar no
referencial das filmagens, como no gênero documentário, mas
porque se tende a crer no referencial da diegese. Porque é histórico, é
real. Mesmo em um filme como Anchieta, em que esse falso truísmo
é contestado na diegese, na narrativa e no espaço de comunicação,
a tendência é se apropriar dele como um objeto cuja posse pudesse
garantir o domínio sobre a história. Ainda assim, a obra escapou às
amarras, permanecendo sob o signo da ambiguidade.

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Sob o signo da ambiguidade: uma análise de Anchieta, José do Brasil | Carlos Eduardo Pinto de Pinto

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submetido em: 15 ago. 2013 | aprovado em: 5 nov. 2013

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Figuras do mal no filme
biográfico brasileiro1

Cristiane Freitas Gutfreind2

1. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e


Cultura do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2013.

2. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação


Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e
pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico. E-mail: [email protected]

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Resumo
Esse texto tem por objetivo analisar o mal de maneira subjetiva por
meio da representação que o cinema realiza da história. A partir do
conceito de figura (Lyotard e Dubois), a imagem é pensada pela
sua ontologia e pelo sensível. A análise dos filmes biográficos de
ficção sobre a ditadura militar brasileira, especificamente, Zuzu
Angel (Sérgio Resende, 2006), legitima as escolhas estéticas dessa
forma de representação atrelada a posições políticas culturalmente
determinadas, impondo ao espectador uma atividade crítica de
desconstrução da história.

Palavras-chave
Figura, mal, filme biográfico.

Abstract
This paper aims to analyze the evil, subjectively, through the
history representation that the film does . From the concept of
figure (Lyotard and Dubois), the image is thought by its ontology
and by the sensitive. A review of biographical films of fiction about
the Brazilian military dictatorship, specifically, Zuzu Angel (Sergio
Resende, 2006), legitimizes the aesthetic choices of this form of
representation linked to political positions culturally determined,
requiring the viewer a critical deconstruction of history.

Keywords
Figures, evil, biographical film.

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

Pensar o mal no cinema

A questão sobre a qual vamos nos indagar é o que é o mal e,


principalmente, como esse mal é representado no cinema. Em
tempos em que o hedonismo impera, o mal pode se apresentar
disfarçado ou transparente e, com frequência, banalizado. Como,
então, esse mal é reconfigurado pelas imagens cinematográficas? O
objetivo deste texto é pensar o mal histórico e a sua relação com o
cinema sob o viés teórico, pois essa relação que desperta interesse
cultural, político e estético continua presente massivamente nas
telas. Como ainda se referir a um mal que aconteceu no passado,
mesmo que este construa o presente e faça história? Retratar o mal
do passado é autorizado, mas de que maneira? A importância em
estudar o cinema como objeto teórico traz à luz os ideais da história
e, por meio deles, é possível confrontar os valores que fazem parte
da essência fílmica.

A partir do conceito de figura, pensado por Lyotard,


desenharemos o trajeto teórico das imagens cinematográficas
até a sua acepção figurativa, específica do cinema, devido a
sua capacidade mimética de retratar a realidade. Em seguida,
mapearemos as distintas figuras do mal que se apresentam
pela ruptura de laços do sujeito social e cinematográfico e suas
derivações em outras figuras, como o mal oficial.

Esse percurso possibilita uma visão histórica do cinema ilustrada


pelos filmes biográficos de ficção sobre a ditadura militar brasileira
ocorrida de 1964 a 1985, particularmente, Zuzu Angel (Sérgio

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Dossiê - História e Audiovisual

Resende, 2006). Os filmes biográficos, devido a sua essência


histórica, são um instrumento importante para entender o figurativo
cinematográfico. Em relação à produção cinematográfica brasileira,
não se encontram muitos filmes biográficos ficcionais sobre esse
tema. A maior parte da produção é reservada ao documentário que
vem sendo realizado recentemente3. Esse dado reflete e ressalta a
3. Os dados apresentados no texto dificuldade em representar o mal no filme de ficção biográfico; por
fazem parte do projeto de pesquisa isso, o nosso interesse em analisá-lo.
intitulado “Os filmes biográficos
sobre a ditadura militar brasileira: Esses filmes são muito parecidos em suas estratégias estéticas
o realismo como estratégia — para representar o mal, com frequência, opta-se por uma
estética”, financiado com bolsa
produtividade do CNPq.
transparência das imagens, sem muito espaço para a subjetividade
e restringindo o ponto de vista ao da vítima. São filmes, por
exemplo, como Lamarca, o capitão da guerrilha (Sérgio Resende,
1994), Batismo de sangue (Helvécio Ratton, 2007) ou Em teu nome
(Paulo Nascimento, 2009). Nesse sentido, a escolha por Zuzu
Angel justifica-se por acompanhar esse processo criativo, porém o
protagonista não é o militante de esquerda como nos outros filmes
(capitão Lamarca, frei Tito ou o estudante Boni, inspirado em João
Carlos Bona Garcia), mas a mãe do militante Stuart Angel Jones.
Zuzu Angel narra a história de Zuleika Angel Jones, reconhecida
estilista brasileira que teve o seu filho, estudante, torturado e
assassinado pela ditadura militar nos anos 1970. A partir daí, Zuzu
empreende uma busca para recuperar o corpo do filho e obter
explicações dos culpados. Essa guerra aberta contra o regime leva ao
assassinato da estilista num acidente de carro em abril de 1976. Em
1998, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu
o regime ditatorial militar como responsável pela morte de Zuzu.

Zuzu Angel e outros filmes biográficos brasileiros sobre a


ditadura militar se inscrevem a partir de uma visão social e política
do mal no cinema, além de possibilitar uma análise dos meios de
que dispõem culturalmente para exorcizar esse mal, permitindo um
questionamento teórico-filosófico sobre o tema.

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

Filme biográfico entre o figurativo e a história

O cinema, objeto de comunicação relacional desde a sua origem,


registra imagens e sons com o intuito de revelar uma realidade
a partir de escolhas estéticas que submetem ao ato criativo a (re)
construção da história. O filme biográfico é um instrumento desse
cinema baseado em personagens cuja existência é legitimada
pela história, e constrói imagens que permitem compreender essa
história - muitas vezes, servindo de contraponto à história oficial.
Esse gênero, híbrido por excelência, transita entre o filme político,
o dramático-social e, naturalmente, o histórico. O filme biográfico
permite, portanto, identificar fenômenos históricos, definir e
desmitificar a permanência de certos traços e estilos culturalmente
determinados. De acordo com Siegfried Kracauer (2006), esse tipo
de análise sustenta a relação entre a escrita da história e a concepção
cinematográfica, resultando em uma poética de escrita crítica que
contribui com a história dos discursos críticos.

A vivência do mal relacionado a um período histórico, como


no caso da ditadura militar brasileira, desencadeia um processo
de angústia resguardado pelo tempo e retomado na atualidade por
meio de diversas manifestações artísticas (teatro, cinema, pintura,
literatura) como forma de captar as emoções, possibilitando
exorcizar o mal e atualizar a história. Dessa forma, o cinema
constrói o presente a partir de uma ressignificação do passado em
interação entre o vivido e o transmitido.

Além da sua dimensão histórica, o filme biográfico é pensado


nesse texto pelo viés do mal a partir da concepção teórica de
figura. Esse conceito foi amplamente trabalhado por Jean-François
Lyotard no livro Discours, figure (1971), em relação, sobretudo, às
formas picturais, porém sem referência importante ao cinema. Por
isso, partiremos do conceito de figura e suas derivações na imagem
fílmica desenvolvido por Philippe Dubois no texto intitulado
L’écriture figurale dans le cinéma muet des années 20 (1999), para
entender que a figura é a ação da lógica do visual como algo que
vem de dentro da própria imagem e diz respeito ao sensível.

Assim, Dubois divide as imagens fílmicas entre figurativas


(o visível ou percepção ótica); figuradas (o legível ou percepção

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articulada); o figurável (a potência de tornar figurativo e figurado);


e figural (derivada de figurável, mas que não é figurativo nem
figurado). Para o autor, essa última derivação de figura seria
outra coisa que se impõe às imagens como “um ponto de vista
mais sensível à organicidade das matérias, à fluidez dos espaços,
às modulações da forma e do que informa, aos efeitos (poéticos,
irônicos, lúdicos, líricos etc.), que não é nem do sentido e nem da
semelhança, mas da força” (DUBOIS, 1999, p. 248)4. E, finaliza,
4. As traduções para o português
figural “não é o que acontece na imagem, mas é o que acontece à
neste artigo foram feitas pela autora. imagem” (DUBOIS, 1999, p. 248).

O figural, tanto para Lyotard quanto para Dubois, transcende


o conceito, pois é maleável, elástico e adaptável, é algo que ativa
o conhecimento e a criação, relacionado à ordem do sensível e ao
pensamento da imagem que fala por ela mesma — e a linguagem
está a serviço da construção desse processo. Ou seja, é o meio pelo
qual as imagens pensam e tem a ver com a matéria que transcende
a informação da forma, “figural é a matéria do pensamento visual”
(DUBOIS, 1999, p. 247).

O entendimento dessa ideia causa estranhamento e dificuldade


devido à própria natureza do cinema. Nele, o figural não se restringe
ao texto, mas nos remete ao figurativo. Como afirma Jean-Michel
Durafour, “no cinema, o figurativo já é figural” (DURAFOUR,
2009, p. 100), pois, devido à sua natureza técnica, o filme na sua
versão mais figurativa perde a capacidade criativa e se restringe
simplesmente a uma representação-narrativa (LYOTARD, 2005).
Durafour avança no seu argumento, afirmando que o figural
estaria deslocado na imagem fílmica, pois “o cinema se interessa
somente por imagens excepcionais devido ao seu modo de
fabricação sui generis, que pode transformar acontecimento em
arte” (DURAFOUR, 2009, p. 102). Nesse sentido, o figural se
apresenta no cinema pelo excesso; o figurativo cinematográfico não
se reserva a um código e ao limite da aparência icônica, mas pode
ser atravessado pelo acontecimento da imagem, resultado de um
enquadramento cultural determinado e determinante.

O acontecimento da imagem é, para Lyotard (2000), o


desconhecido que vem do imprevisível e do invisível, por isso

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

inenarrável. Mesmo no figurativo pode-se ter ausência; a semelhança


mesmo da forma mais perfeita supõe dessemelhança. Portanto,
o figurativo no cinema precisa ser reorganizado em relação à
percepção comum e não realiza algo novo. A proximidade com o
que é visto (o real) autoriza a imagem cinematográfica a ver de outra
maneira o que é visto a partir das ausências de representação. Por
isso, o filme biográfico faz do cinema uma arte aberta à presença
emblemática do figurativo, podendo se tornar um acontecimento da
imagem. A imagem cinematográfica, devido a seu caráter mimético,
encena o mistério da origem das coisas, como a história sobre o
regime ditatorial no Brasil, cuja dimensão figurativa é definida pelo
espectador por meio de seu próprio capital cultural. É a partir dessa
perspectiva que as figuras do mal, em suas distintas derivações no
cinema, serão pensadas, considerando o filme biográfico Zuzu Angel.

Figuras do mal

O que é o mal? Considerado em vários sentidos que não se


restringem somente a um ponto de vista determinado pela história,
pela moral ou pela religião, pode-se defini-lo de maneira subjetiva
por meio da representação que o cinema realiza de uma sociedade.
O mal seria, assim, a ruptura de laços determinados a partir de três
figuras distintas que se desdobram em outras:

a) ruptura de laços sociais: a sociedade diante do mal constitui um


pensamento baseado no direito e possui uma força concreta,
a polícia, encarregada de aplicar esse direito em todas as suas
instâncias. Existe uma hierarquização que funciona de maneira
particular, permitindo à sociedade resistir à barbárie coletiva, como
no caso da ruptura dos direitos civis impostos por uma ditadura e/
ou quando ocorre uma generalização da criminalidade, sintoma
de perda da consciência e da solidariedade coletiva, resultado
de uma ruptura de laços sociais. Ou seja, para o indivíduo ou
cidadão, o mal tem a ver com a criminalidade que destrói a
5. A pulsão de morte, no
solidariedade social;
sentido freudiano, determina a
manifestação da agressividade que
poderá voltar-se para o próprio b) ruptura de laços do sujeito: há no indivíduo (sujeito consciente e
indivíduo ou para o outro. inconsciente) forças de destruição, como a pulsão de morte5 que

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pode levá-lo a um não ser. Ou seja, o mal é aquilo que conduz ao


nada. O mal não é uma força positiva que leva à ação, mas uma
contraforça, uma negação, uma perda da identidade e do ser.

Se a consequência do mal é a ruptura de laços da solidariedade


social, da perda do sujeito e, talvez, da alma, por que no cinema
associamos sistematicamente o mal à violência? É claro, porque a
violência está diretamente relacionada ao mal; especificamente,
porque é ela que faz surgir diante do espectador, de maneira brutal,
condensada e terrivelmente presente, o mal. Este está diretamente
relacionado à negação de futuro, àquilo que é inominável, indizível
e intolerável. Mas a situação inaceitável está no indivíduo, no
centro da sua identidade vacilante e inscrita na pulsão de morte.

Além disso, o mal é presença constante no cinema devido ao


seu grande poder de alcance do imaginário do público6. A imagem
6. O cinema hollywoodiano,
é a forma primária da captação das angústias do homem, é o
por exemplo, explora de forma lugar onde se inscrevem a memória e a vontade; e o imaginário
recorrente as temáticas sociais que é o caminho para apaziguar os sentimentos e restitui-los à ordem
determinam o imaginário coletivo, simbólica; ele é uma síntese subjetiva que projeta as angústias
celebrado pelo conjunto de filmes
que concorrem ao Oscar, como na
(SARTRE, 1986; BARTHES, 1965). Segundo Julia Kristeva (1997,
edição de 2013, direcionado para p. 9), a arte cristã encontrada nas igrejas e catedrais possibilita
a temática étnica determinante da uma calma determinada pelo espaço silencioso, mas coloca o
colonização norte-americana. sujeito diante de imagens do inferno. Nesse sentido, a arte, em suas
diferentes manifestações, é o espaço de compensação e fascinação
das angústias por meio da imagem.

O cinema, interseção entre o pensamento de um autor e o


do público que engendra o real pela sua técnica (a imagem em
movimento e o som), produzindo uma escrita simbólica, é um
instrumento potente de ruptura de laço do sujeito, pois mobiliza
o que é mais latente originado desse real, o mal, nas múltiplas
derivações da violência: ruptura de direitos sociais, controle das
mídias, tentativas de golpes políticos etc.

Por exemplo, nos filmes, assim como na imagem real, o


diferente, o estranho e o estrangeiro são frequentemente o mal.
Quem vive fora do seu lugar sabe o que isso significa. Quando o
estranho aparece, o diálogo, as palavras desaparecem, deixando o

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

espaço preenchido por aquilo que não pode ser dito. Por isso, o
silêncio no cinema tem a função de provocar o desaparecimento
da palavra e o aparecimento de sons que contribuem, muitas vezes,
para o aumento de tensão na cena.

c) ruptura de laços no cinema (ou o mal cinematográfico): a imagem


cinematográfica atiça o voyeurismo do espectador; o principal
prazer é ver. Muitas vezes, o cinema faz a (re) apresentação, ou
seja, simboliza o mal por meio da linguagem cinematográfica,
porém de forma mimética. Por exemplo, na representação de
uma cena de tortura repleta de sangue, gritos, espancamentos e
ameaças, não existe a sublimação ou a superação; o espectador
vê somente a repetição. O cinema, como qualquer arte, é
sublimação; cai como toda arte frustrada no simulacro, mas
um simulacro que funciona tecnicamente na realidade como
se fosse uma imagem de um corpo erotizado enquadrado e
(re)erotizado pelo voyeurismo do espectador. Um filme ruim
coloca o espectador distante das suas pulsões, do seu desejo de
autodestruição que o leva ao seu mal interior.

Essas três figuras de mal (social, sujeito e cinematográfico) nos


levam a pensar sobre o mal ditatorial que, em nome da segurança
e proteção, emerge de forma honrosa na sociedade, controlando a
economia e a política. Esse é o mal oficial.

Zuzu Angel incarna de modo figurativo as rupturas de laços em


suas diversas instâncias; a mãe empreende uma busca incansável
para achar o corpo do filho desaparecido pelo mal oficial e acaba
morta. Zuzu enfrenta sozinha a barbárie ao sentir a solidariedade
social perdida. Na cena da sua morte, provocada por um acidente
que ela já sabia que poderia acontecer, os sons representam o desejo
de calar Zuzu, pois o mal não pode ser denunciado. Zuzu, quando
fala, é como os estranhos, mas a sua morte é silenciosa.

História fílmica do mal

No filme Zuzu Angel, o que predomina é uma visão social e


política — especificamente, uma visão histórica do mal. Por um
lado, isso significa que a história contemporânea domina o sujeito

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desse filme e, por outro, que a visão do mal histórico presente nele
está associada à crise das ideologias que dominam a cena teórica
desde os anos 1980.

Com uma obstinação desesperada e ingênua, Zuzu Angel


coloca em cena a ruptura de uma história que levou ao fracasso das
utopias revolucionárias nascidas no meio do século passado. Com
apelo dramático e de forma espetacular, o filme revela as faces do
mal juntando o mundo apolítico de uma mãe e a militância de um
filho. O cinema, então, torna-se uma maneira de exorcizar o mal;
o filme é uma aceitação que permite uma recusa do presente sem
memória, da ordem estabelecida que cobre uma profunda desordem
do mundo e uma “moral da imagem” (ROLLET, 1997, p. 87). Mas
a tensão instaurada entre a recusa da falta de memória no presente e
o desejo de construir essa memória aparece nesse filme atravessada
por uma visão quase metafísica do mal, a desesperança.

Nesse sentido, por trás do desencantamento proposto em Zuzu


Angel, visualiza-se o sonho irrepreensível de um outro mundo,
além de uma incontornável realidade de um fracasso que aparece
na concepção profundamente trágica da realidade. Assim, a figura
do mal fulcral que desenha o cinema que aborda o tema é a que
trata da ruptura da consciência devastada, marcada em nome
de um projeto político utópico que fez com que a política fosse
ressignificada na atualidade.

A referência à visão histórica do mal no cinema nos remete


a essa ideia não de maneira metafórica, mas de forma concreta,
pois diz respeito literalmente à imagem. Por isso, retomamos a
questão: é possível que o cinema realize uma imagem do mal?
O mal é da ordem do representável? O aspecto político do mal
poderá ser localizado na transparência das imagens? Imagem
entendida aqui em seu sentido pleno visual e sonoro. O mal
tem representações sonoras que podem ser representadas? E,
se uma das marcas da opressão é o silêncio, como filmar o mal
pelas palavras? A busca pela eficácia e por modos distintos de
representação legitima a tradução visual do mal em imagens que
ficam registradas na memória. Dessa forma, pensar sobre a visão
cinematográfica do mal é pensar sobre a dimensão temporal das
imagens em movimento em sua dimensão comum à história.

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

Zuzu Angel retrata o mal, na maior parte do filme, de forma


literal, com direito a cenas de tortura convencionais ou sem
sublimação, personagens de jovens militantes estereotipados e
narração explicativa. Mas, em uma cena emblemática, Zuzu
confronta o capitão Lamarca, tenta indagar o significado da história,
e as palavras não dão conta desse encontro entre sujeitos distintos
com objetivos que os aproximam. O filme resgata o relato da
história — ainda é preciso que os personagens se façam conhecidos,
que a história seja lembrada, para que a memória interditada pelo
mal oficial possa ser reconstruída.

As escolhas estéticas do filme, então, são conduzidas por uma


reflexão pela relação estabelecida entre a temporalidade fílmica e
o tempo histórico. O mal histórico nesse filme é como o rosto de
“um tempo que não passa” — segundo Sylvie Rollet, essa é a maior
característica da imagem em movimento (ROLLET, 1997, p. 88).

O mal histórico é incarnado nesse e em outros filmes biográficos


sobre a ditadura militar a partir de figuras fílmicas de espaço e de
tempo. A origem da violência é sempre coletiva, mesmo que a
percepção dessa violência passe por um determinado indivíduo que
pode ser, por exemplo, o torturador. O mal histórico tem, assim,
todos os aspectos da opressão a partir de duas figuras dominantes: o
encarceramento e o exílio.

Nesses filmes tem-se a presença constante de espaços


fechados, sendo a prisão a matriz inicial do processo. O modelo de
encarceramento organiza todo o espaço social, seja nos chamados
aparelhos usados pelos militantes para se organizarem, seja nos
porões de tortura dos serviços militares; a liberdade é banida e o
mal, apresentado sempre do ponto de vista da vítima.

A outra figura de opressão é o exílio, a saída para o encarceramento.


Nos filmes de ficção sobre a ditadura, são constantes cenas de exílio,
como em Em teu nome — boa parte do filme é dedicada ao exílio
do protagonista, Boni; o mal é apresentado pelas dificuldades da
perda em todas as instâncias (ideais, projetos, referências culturais)
e da culpa pela sobrevivência. Em Zuzu Angel, o exílio aparece na
solidão da mãe que não é ouvida, no seu percurso solitário, no não
lugar que se torna o seu país, e ela tenta ajuda em outro, Estados

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Unidos, onde realiza protestos por meio da criação do seu trabalho.


Zuzu mostra pássaros, característicos das suas estampas, enjaulados.
Aí temos simbolicamente o encarceramento e o exílio retratados.

Essas duas figuras espaciais de opressão desenham


progressivamente uma linha de tensão fundamental: a fronteira que
se constitui no motivo maior da narrativa que define o mal (liberdade
versus opressão) e é traduzida em uma sequência de planos que
mostram acontecimentos emblemáticos da vida da personagem.
Isso reflete uma necessidade histórica que tem dificuldades com a
subjetividade do mal e ainda precisa apresentá-lo.

Desse modo, não é reservado praticamente nenhum espaço


para a multiplicação de vazios na tela; essa ausência possibilita o
aparecimento de uma “topografia imaginária de fraturas históricas”
(ROLLET, 1997, p. 89), mas essas fraturas no contexto brasileiro
ainda estão expostas — sintoma de como a história é culturalmente
rememorada.

A recorrência dos planos vazios equivale ao silêncio no plano


sonoro, pois desenha uma figura maior do cinema que é a falta. A
falta do que ver é o que diz melhor sobre o poder. O espaço que
falta é a marca do poder pela essência enigmática. Ao contrário,
em Zuzu Angel, assim como em outros filmes ficcionais sobre a
temática, o poder é simbolizado pelo excesso da imagem.

Se a característica do poder do mal reside na sua dificuldade


de representação, paradoxalmente, a sua força está no desejo
do espectador de ver, da necessidade por imagens, como dito
anteriormente. Em Zuzu Angel, a potência da sedução da imagem
e a sua manipulação pelo poder está no cerne do filme. A estratégia
estética de preencher espaços e sons encontra o enfrentamento do
poder na trajetória do ideal do filho que se transforma na luta
da mãe contra o mal apresentada de forma dramática. Dessa
maneira, o mal absoluto, um dos instrumentos mais eficazes da
manipulação, reside na fabricação de imagens que têm o poder
de se fazer passar pela realidade.

Mesmo que Zuzu Angel aposte nessa estratégia de transparência


da imagem, escapa da adequação natural ao real determinada

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

exclusivamente pelo seu registro. Essas escolhas estéticas estão


atreladas a determinadas posições políticas culturalmente
determinadas. A representação precisa impor ao espectador ao
menos uma atividade crítica de desconstrução. Em Zuzu Angel,
o melhor meio de alcançar essa forma é o uso de modos distintos
de representação, como utilizar diferentes níveis de narração, o
individual e o político.

Percebemos, então, no filme, uma característica a ser destacada:


a imagem atual, a que a câmera é autorizada a registrar, se define
como a reconstrução de uma história que há muito tempo está
fora de campo. O sentimento de preenchimento do campo se
torna um instrumento contra o domínio de um presente amnésico.
O simulacro se torna um elemento constitutivo do real, criando
uma tensão permanente entre a imagem e o imaginário, entre o
percebido e o memorável. O filme tenta, dessa maneira, exorcizar
o mal absoluto da imagem atual que gostaria de se passar pelo real.

Algumas reflexões finais

O mal continua invadindo as telas, construindo o presente e


fazendo história. Pensar esse mal em suas mais variadas formas de
representação cinematográfica permite ressaltar a dificuldade em
representá-lo, mas, sobretudo, compreender que algumas escolhas
estéticas marcadas pela ausência de espaço e som possibilitam que
o figurativo no cinema torne-se um acontecimento da imagem,
porém culturalmente determinado. Essas escolhas trazem à tona a
subjetividade do mal, o enigmático da imagem e o preenchimento
das angústias do imaginário pela falta.

No cinema, a proximidade com o real faz do conceito elástico


de figura um instrumento importante para pensar a imagem a
partir da sua ontologia, do sensível e do subjetivo. A figura em sua
derivação figurativa, específica do cinema devido a sua capacidade
mimética, autoriza o cinema a ver o real de outra maneira; não
espera o novo, mas permite exorcizar o mal e atualizar a história. O
mal do sujeito social e cinematográfico permite a ruptura de laços
e uma construção de figuras nas imagens cinematográficas que

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Dossiê - História e Audiovisual

desenham uma visão histórica do mal determinada pela cultura.


Assim, o filme biográfico de ficção sobre a ditadura militar brasileira
é um instrumento legitimado para entender o presente a partir de
uma ressignificação do passado.

Dessa maneira, o principal interesse foi compreender como o


cinema significa o mal por meio de escolhas estéticas determinadas
no filme biográfico brasileiro, tendo como exemplo Zuzu Angel.
Segundo Alain Badiou (2010, p. 375), “a filosofia é a violência feita
pelo pensamento às ligações impossíveis”. Ou seja, o cinema é o
espaço legítimo das relações improváveis e paradoxais, pois, quando
não existe tensionamento, a filosofia se torna vã e o cinema perde a
sua capacidade maior de relacionar o artífice e a realidade em todas
as suas variações.

Assim, em Zuzu Angel temos um cinema essencialmente


narrativo e excessivo em imagens devido à dimensão cultural
que diz respeito à necessidade de, ainda, relatar a história
para conhecê-la. O paradoxo dessa forma representativa está
justamente nesse excesso como meio para construir uma
crítica de desconstrução da história. O poder da opressão é,
essencialmente, apresentado em duas figuras, o encarceramento
e o exílio, figuras de espaço e tempo que ajudam a apresentar o
mal e a simbolizar o poder das imagens do real.

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Figuras do mal no filme biográfico brasileiro | Cristiane Freitas Gutfreind

Referências

BADIOU, A. Cinéma. Paris: Nova, 2010.

BARTHES, R. Mythologies. Paris: Seuil, 1965.

DUBOIS, P. “L’écriture figurale dans le cinema muet des années


20”. In: Figure, figural. Paris: L’Harmattan, 1999.

DURAFOUR, J.-M. Jean-François Lyotard: questions au cinéma.


Paris: PUF, 2009.

KRACAUER, S. L’histoire, des avants-dernières choses. Paris: Stock,


2006.

KRISTEVA, J. “Introduction”. In: Le cinéma et le mal. Paris, n. 31,


maio 1997.

LYOTARD, J.-F. Discours, figure. Paris: Klincksieck, 1971.

__________. Misère de la philosophie. Paris: Galilée, 1993.

__________ .“O acinema”. In: Teoria contemporânea do cinema.


São Paulo: Senac, 2005.

PINEL, V. Écoles, genres et mouvements au cinéma. Paris: Larousse,


2000.

ROLLET, S. «  L´amnésie comme mal dans le cinéma


d’Angelopoulos ». In: Le cinéma et le mal. Paris, n. 31, maio 1997.

SARTRE, J.-P. L’imaginaire. Paris: Gallimard, 1986.

submetido em: 14 ago. 2013 | aprovado em: 10 out.. 2013

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// O Senhor está vendo, mas
Stálin não: representação
do embate ideológico
no período da guerra
fria na Itália

/////////////////// Mariarosaria Fabris1

1. Doutora em Artes (Cinema) pela Escola de Comunicações e Artes da


Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na Università di Roma
III. Professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, onde atuou na área de língua e literatura italiana.
E-mail: [email protected]

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Resumo
O embate ideológico entre esquerda e direita na Itália, durante o
período da Guerra Fria, e seus reflexos no campo da representação
cinematográfica.

Palavras-chave
Guerra Fria, La rabbia, Pier Paolo Pasolini, Giovannino Guareschi,
Dom Camilo e o nobre Peppone.


Abstract
The ideological fight of Left with Right in Italy, during the
Cold War, and its reflections in the domain of cinematographic
representation.

Keywords
Cold War, Rage, Pier Paolo Pasolini, Giovannino Guareschi, Don
Camillo’s last round.

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O Senhor está vendo, mas Stálin não: representação do embate ideológico no período da guerra fria na Itália | Mariarosaria Fabris

Um documentário de 1963, editado a partir de material de arquivo,


algo não muito comum no cinema da Itália naquela época, via lado
a lado duas figuras singulares da cena cultural do país: o marxista
Pier Paolo Pasolini e o conservador Giovannino Guareschi. Tratava-
se de La rabbia, projeto articulado por Gastone Ferranti, produtor
2. A expressão “mundo livre” surgiu
do cinejornal Mondo libero [mundo livre]. Na concepção inicial, o
no início da Guerra Fria para
designar a liberdade política e de convite havia sido feito apenas a Pasolini, o qual elaborou, de forma
expressão nos países não alinhados absolutamente poética, uma espécie de salmodia sobre os males que
com a União Soviética. Foi afligiam a humanidade, como sequela do último conflito mundial e
empregada por Winston Churchill,
como consequência da grande batalha ideológica internacional na
em 5 de março de 1946, na
conferência que anunciou a divisão qual se defrontavam Estados Unidos e União Soviética: a Guerra
da Europa em dois blocos. Fria2. Em réplica à indagação proposta pelo filme — “Por que nossa
vida é dominada pelo descontentamento, pela angústia, pelo medo
da guerra, pela guerra?” —, Pasolini dizia: “Para responder a essa
pergunta, escrevi este filme sem seguir uma ordem cronológica
e, talvez, nem uma ordem lógica, mas somente minhas razões
políticas e meu sentimento poético” (BORGES, 2008)3.
3. O autor publicou o argumento no As vozes do escritor Giorgio Bassani (texto poético, o da
n. 38 da revista Vie Nuove (20 set. placidez) e do pintor Renato Guttuso (locução prosaica, a da
1962) e, posteriormente, no volume
Le belle bandiere (1977).
invectiva) se alternavam na declamação das geremíades escritas
pelo amigo bolonhês, enquanto corriam as imagens de um mundo
de humilhados, ofendidos, desesperançados, em cuja “inocente
ferocidade” Pasolini vislumbrava a nova religião de uma nova
era. Ao som do Adagio, de Tomaso Albinoni, desfilavam trechos
filmados sobre a era nuclear e a espacial, o levante húngaro, as lutas
no Oriente Médio e pela independência na África, os problemas da

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Dossiê - História e Audiovisual

Índia e de um “país chamado Itália”, a guerra da Coreia, a revolução


cubana, a incapacidade de renovação da Igreja Católica e dos
movimentos sociais, a decepção causada pelo socialismo soviético,
as formas de poder na Inglaterra e nos Estados Unidos, a barbárie do
capital e a vulgarização do saber, dominado pela indústria cultural
(com destaque para o crescente perigo da televisão), entre outros
assuntos. Pasolini valeu-se, ainda, de fotos, quadros e de trechos
extraídos de cinejornais tchecos, soviéticos e ingleses, bem como
de outros temas musicais, de cantos revolucionários cubanos e
argelinos e de canções tradicionais russas.

Gastone Ferranti assustou-se com o resultado apresentado


pelo diretor e, para contrabalançar uma visão tão radical, resolveu
fazer um novo convite, desta vez ao escritor satírico Giovannino
Guareschi4. Dessa forma, o cineasta teve de cortar e remontar
4. Embora seu nome verdadeiro sua realização. A nova feitura do filme irritou Pasolini, o qual,
fosse o diminutivo Giovannino, no fim, aceitou compartilhar a autoria da obra, mas, em 2008,
muitas vezes o escritor foi lembrado o diretor Giuseppe Bertolucci aventurou-se numa “hipótese de
como Giovanni.
reconstrução” do documentário original de 1963.

A “nova” versão foi realizada, com o apoio do Instituto Luce,


da Minerva Rarovideo e da Cinemateca de Bolonha, a partir
de uma ideia do poeta Tatti Sanguineti, o qual, ao ler o roteiro
original — publicado no primeiro volume de Pasolini per il
cinema (2001), organizado por Walter Siti e Franco Zabagli —,
percebeu que este era mais longo e apresentava outra estrutura
em relação ao filme de 1963. Como o Instituto Luce dispunha
dos arquivos de Mondo libero, Sanguineti convenceu Bertolucci
a aceitar o desafio. La rabbia di Pasolini: ipotesi di ricostruzione
della parte iniziale inedita articulava-se em quatro momentos:
a introdução, em que o restaurador explicava os motivos de
sua intervenção (2’), a hipotética proposta inicial, reconstruída
por meio de imagens de arquivo de Mondo libero e do roteiro
original (16’), a parte pasoliniana da edição de 1963 (55’) e um
apêndice com trechos de jornais de atualidades da época sobre
Pasolini (12’). A “reconstrução-simulação” de 2008, no entanto,
não agradou a todos, tendo resultado num “filme abortado”,
na opinião de Anahí Borges (2008), que apontou a seleção do

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material, a montagem e a narração de Giuseppe Bertolucci —


“referencial, pertencente mais ao jornalismo que à poesia” —
como os grandes problemas do filme:

A escolha das imagens de arquivo, e mais ainda, a sua


ordem e tempo de montagem destoam da construção
poética verdadeira de Pasolini. E, pior do que isso, a
narração proposta por Bertolucci é escandalosamente
incoerente com o conceito de dor e indignação
colocados em cena por Giorgio Bassani e Renato
Guttuso na direção de Pasolini.

Na reconstrução da parte inicial, eliminada em 1963, a outra voz


narradora, que serve de contracanto à de Bertolucci, é do ensaísta e
escritor Valerio Magrelli.

Voltando ao filme comercializado na época, enquanto Pasolini,


na primeira metade, com sua visão poética e utópica, fazia um
verdadeiro ato de acusação à civilização ocidental, Guareschi saía
em sua defesa, na segunda parte, dando uma demonstração cabal
de seu reacionarismo preconceituoso e de sua intolerância em
relação ao outro, o que levou Curzio Maltese (2008) a afirmar
que, nesse documentário, o escritor satírico “ofereceu [...] o pior
de seu indiferentismo”5.
5. No original, qualunquismo. Essa Ao contrário da desesperada interpretação pasoliniana dos
questão será retomada mais adiante;
acontecimentos sociopolíticos, religiosos e até mundanos daquele
as traduções para o português neste
artigo foram feitas pela autora. período, Guareschi propunha uma leitura esperançosa, como era
afirmado na obra em tela: “Porque, apesar de Mao, Kruschev e
dos outros problemas, ainda vale a pena viver neste planeta [...] e,
dentro de nós, é mais forte a esperança do que o medo”6. Segundo
6. Se, na parte de Pasolini, o texto Mario Turello, apesar dessa gritante diferença, havia, em La rabbia,
dividia-se em canto e discurso, convergências entre os dois autores, na escolha do material e no
como os denominou Hervé Joubert- amor de ambos pela civilização camponesa, em vias de extinção.
Laurencin (1995, p. 313), na parte
de Guareschi, os comentários eram La rabbia estreou em 13 de abril de 1963, mas foi um fracasso
ora sérios, ora satíricos, sendo sua comercial, ficando apenas alguns dias em cartaz, em pouquíssimas
locução confiada a Gigi Artuso e
cidades. O documentário só tornou a ser exibido em 1992, na
Carlo Romano, respectivamente.
televisão, o que, talvez, explique a pequena fortuna crítica a seu

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respeito. No calor da hora, apenas alguns críticos, dentre os quais


Alberto Moravia, Mino Argentieri e Edoardo Bruno, ressaltaram a
qualidade estética e o valor poético da parte pasoliniana; nos anos
1990, a crítica francesa se debruçou sobre ele; finalmente, em 2005,
Paolo Garofolo dedicou um ensaio de fôlego ao longa-metragem:
“‘La rabbia’ di Pier Paolo Pasolini e Giovannino Guareschi.
Speranza e disperazione. Convergenze e divergenze”. O artigo
que Moravia (2010, p. 505-506) escreveu quando do lançamento
do filme intitulava-se sintomaticamente “Pasolini nella trappola di
Guareschi” [Pasolini na armadilha de Guareschi]:

Temos vergonha, em primeiro lugar, que, nas telas


italianas, surja uma série de lugares comuns tão
decrépitos e vulgares como os tecidos na parte do filme
de autoria de Giovanni Guareschi. Temos vergonha pelos
argelinos, pintados como um povo incivil e indigno de ser
livre; pelos massais, bantos, uatúsis, iorubas, ibos e todos
os demais povos africanos, dos quais Guareschi fala fora
de propósito, demonstrando uma ignorância igual à sua
estupidez7; pelos Estados Unidos e pela União Soviética,
juntados no mesmo ódio impotente e ridículo, segundo
7. Bertolucci, também, considerou
uma concepção política pequeno-burguesa e nazista,
insustentável a atitude de Guareschi
que remonta aos anos ao redor de 1930; por todos os
em relação à descolonização da
caídos das muitas guerras que pessoas como Guareschi
África e à guerra da Argélia, o que
mandaram os italianos combater e sobre os quais o autor
o levou a excluir a parte do escritor
de Dom Camilo não hesita em especular com inverídica
satírico da nova versão de La rabbia.
retórica. E temos vergonha, por fim, logo dele, Giovanni
Guareschi, que não se dá conta de ter a cabeça cheia do
lixo político de 30 anos atrás.

Vergonha à parte, o filme de Guareschi nada mais


é do que propaganda fascista sem a mínima sombra
de uma interpretação pessoal. Como sói acontecer, a
estupidez e a ignorância são preguiçosas; Guareschi
nem tentou confrontar as suas ideias, vamos dizer assim,
com a realidade, levar a cabo uma modesta verificação
qualquer do fundamento de suas convicções. Diante
de tal filme, só se podia responder com a propaganda
oposta. Pasolini deveria ter feito ele também um filme
impessoal e de propaganda; e, sem dúvida teria sido mais
eficaz do que Guareschi, do mesmo modo que a retórica
baseada na razão, no fim, é mais eficaz do que a baseada
na loucura. Mas Pasolini quis dar uma interpretação

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o mais possível original e pessoal, ou seja, poética, dos


acontecimentos destes últimos 15 anos. Ou seja, tentou
deslindar pacientemente a intricada complexidade dos
fatos para encontrar neles um sentido não convencional,
não preestabelecido, não previsível. A sua, mais do que
uma interpretação e uma explicação, é uma trabalhosa
leitura de um texto sempre obscuro e, às vezes, até
mesmo indecifrável. Nessas reconstruções a posteriori é
difícil, para não dizer impossível, conseguir ser de todo
convincente. [...] Pier Paolo Pasolini fez uma escolha
de imagens muito bonitas, consoantes com seu gosto
ora austero e cristão, ora barroco e decadente. Quanto
ao comentário, o teríamos preferido mais simples, mais
direto, mais racional, menos literário.

A indignação de Moravia com a postura de Guareschi e seu espanto


com a candura do amigo, ao aceitar participar de tal empreitada,
justificavam-se ainda mais com a visão dos cartazes e do trailer de
La rabbia, feitos para aguçar a curiosidade do público pela disputa
ideológica entre os dois autores e, no fundo, endossar as ideias do
escritor satírico. Um dos cartazes trazia, à esquerda, a silhueta de
Pasolini, de corpo inteiro e vestido como um burguês, diante de
uma placa na qual estava escrito “La rabbia de Pier Paolo Pasolini”,
e, à direita, a silhueta de Guareschi, também de corpo inteiro e
vestido como um homem abastado do campo, diante de outra placa
com os dizeres “La rabbia de Giovannino Guareschi”. Num outro,
um círculo, contendo os rostos de Pasolini (no topo, à direita) e
de Guareschi (em baixo, à esquerda), estava circundado por
escritas em letras garrafais: “Governantes/politiqueiros/mulheres
bonitas/e feias/mitos.../figuras.../e fatos de/nosso tempo/arrastados
pelo embate entre o diabo e a água benta/Um filme de Pasolini-
Guareschi/La rabbia”. E a locução do trailer também insistia nessa
contenda entre as duas partes envolvidas:

Filme único e inconfundível/La rabbia/La rabbia é o


resultado da mais acesa polêmica/entre dois diretores
de ideologias opostas./Um muro sempre os dividiu, um
muro não apenas ideológico/mas também real./Assim
Pasolini trabalhou sem ter contato com Guareschi/e
Guareschi pôde não encontrar Pasolini./E, agora,

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com a palavra, Pasolini,/o homem de esquerda:/“Passe


bem, seu Pier Paolo Pasolini”. E este é Giovannino
Guareschi,/o homem de direita:/“Prezado Pasolini, eu,
burguês de direita,/ao ver um negro degolar um branco,/
digo: pobre branco”./La rabbia oferecerá a possibilidade
de ver personagens e acontecimentos/não mais com o
olhar exclusivo do sentimento pessoal,/mas com um
olhar que analisa as perspectivas desde a esquerda/e
outro que as analisa desde a direita,/com o olhar de
Pasolini/e o de Guareschi./La rabbia/Um filme sem
precedentes/Apaixonante

O discurso do trailer merece alguns comentários. Em primeiro


lugar, a insistência com que era sublinhado o choque entre duas
visões de mundo, divergência que remetia à primeira página do
semanário satírico Candido (criado por Guareschi e Giovanni
Mosca em 1945), com suas vinhetas sobre qualquer acontecimento
visto desde a esquerda e desde a direita, que serviam para pôr
na berlinda os marxistas, conforme as normas mais sórdidas do
anticomunismo da época e que, no fundo, não deixaram de ser
seguidas também no material publicitário do filme. Entre elas,
poderia se pensar no fato de Pasolini, no trailer e nos cartazes, ser
quase sempre apresentado vestido como um burguês, ao contrário
de seu antagonista, talvez para pôr em evidência o que, aos olhos
dos conservadores, devia ser uma contradição. Essa crítica fica
bem clara quando Guareschi se declara um burguês de direita,
o que deixa subentendido que seu oponente não passava de um
burguês também, de esquerda, mas sempre burguês.

Em segundo lugar, a insinuação de uma troca epistolar entre


os autores, que nunca existiu, mas foi inventada para promover o
documentário, presente nas palavras que os dois trocam no trailer.
Nas falsas cartas, Pasolini teria jogado na cara de Guareschi sua
mediocridade, seu indiferentismo, sua demagogia e seu humorismo
reacionário, e Guareschi teria contestado Pasolini, dizendo, entre
outras coisas: “As ditaduras não toleram o humorismo, do qual
têm medo, e, na soleira do tétrico e infinito império comunista, a
História escreveu com o sangue de milhões de pessoas assassinadas:
‘Aqui é proibido rir’” (TURELLO, [S.d.]).

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E, por fim, o embaralhamento entre esquerda e direita,


realçado não apenas pelas roupas dos protagonistas da contenda
mas também no segundo cartaz descrito, em que, pela posição de
Guareschi e de Pasolini, o primeiro, com seu rosto carrancudo,
encarnaria o diabo, enquanto este, com sua expressão cândida,
corresponderia à água benta — hipótese reforçada pelo fato de,
no trailer, as palavras de Pasolini virem acompanhadas de uma
melodia eclesiástica, enquanto as de Guareschi tinham, como
fundo musical, acordes mais incisivos.

Diante disso, entende-se melhor por que Moravia repreendia


seu amigo por ter caído na armadilha do escritor satírico, mas,
ao mesmo tempo, sem essa ingenuidade do diretor-poeta e,
principalmente, sem sua coragem para continuar na empreitada,
mesmo quando se deu conta de que talvez tivesse embarcado
numa canoa furada, o cinema teria sido privado de uma obra tão
singular e expressiva.

Se o nome de Pasolini é largamente conhecido entre nós, o


mesmo não acontece com o de Guareschi, embora ele esteja
na base de uma das séries mais bem sucedidas da indústria
cinematográfica italiana dos anos 1950-1960, a de Dom Camilo e
Peppone, na qual, independentemente dos diretores que dirigiram
os filmes (praticamente intercambiáveis entre si), a unidade e a
continuidade eram asseguradas pelo carisma de seus intérpretes,
Fernandel e Gino Cervi: Don Camillo (Dom Camilo, 1951) e
Il ritorno di Don Camillo (O regresso de Dom Camilo, 1953), de
Julien Duvivier, Don Camillo e l’onorevole Peppone (Dom Camilo
e o nobre Peppone, 1955) e Don Camillo monsignore ma non
troppo (Dom Camilo monsenhor, 1961), de Carmine Gallone, e
Il compagno Don Camillo (O camarada Dom Camilo, 1965), de
Luigi Comencini. O sexto filme com o comediante francês e com
o ator italiano deveria ter sido Don Camillo e i giovani d’oggi, cuja
realização foi interrompida pela morte de Fernandel, em 1971. As
filmagens foram retomadas por Mario Camerini no ano seguinte,
tendo como protagonistas Gastone Moschin (Dom Camilo) e
Lionel Stander (Peppone).

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Outras realizações televisivas e cinematográficas vieram


atestar a longevidade do universo criado por Guareschi, uma
vez que todas as produções se basearam nos mais de 300 contos
que ele começou a escrever em 1945 para as páginas de Candido
e a publicar em livros a partir de 1948, quando lançou Mondo
piccolo - Don Camillo: a série O pequeno mundo de D. Camillo,
com Otello Zeloni (o padre) e Heitor de Andrade (o prefeito),
apresentada entre 1954 e 1957 pela TV Tupi; a novela da Rede
Globo Padre Tião (1965-1966), inspirada no personagem de
Guareschi; outra série da TV Tupi, Dom Camilo e os cabeludos
(1971-1972), novamente com Zeloni; os 13 episódios de The little
world of Don Camillo, estrelados por Mario Adorf (Dom Camilo)
e Brian Blessed (Peppone), que a BBC mandou em onda em
1981, transmitidos também sob o título de Die kleine Welt des
Don Camillo, na República Federal da Alemanha (1983) e na
Suíça (1985); Don Camillo (1983), filme dirigido e protagonizado
por Terence Hill, com Colin Blakely no papel do antagonista.

Do ponto de vista de seu conteúdo ideológico, os filmes


da saga protagonizada por Fernandel e Cervi também podem
ser considerados intercambiáveis entre si, uma vez que, em
todos eles, “o pequeno mundo de Dom Camilo” é sempre o
mesmo: o mundo do pequeno-burguês ainda à procura de uma
identidade, não mais fascista, mas indiferentista, avesso ao
comunismo, sem um papel específico na nova sociedade que
vinha se estruturando e que buscava na recuperação de um vago
humanismo o caminho para a paz. Um mundo aparentemente
à margem das grandes questões nacionais (uma vez que elas
eram reduzidas à dimensão do cotidiano e do familiar), no qual
as massas populares deveriam continuar excluídas da política,
ainda segundo os ditames do fascismo8.
8. Leitura, em chave inversa, Ao resenhar O regresso de Dom Camilo, Moravia (2010, p.
dos argumentos de Brunetta
177-179) ressaltava como, nesse filme, o embate ideológico entre
(1982, p. 489-493).
esquerda e direita era amenizado, quando não neutralizado:

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O Senhor está vendo, mas Stálin não: representação do embate ideológico no período da guerra fria na Itália | Mariarosaria Fabris

O gigantesco sucesso do primeiro Dom Camilo, de


Duvivier, sem dúvida é uma das operações mais claras
desse espírito redutivo em função positiva de abordagem
e familiarização. Em palavras simples, Dom Camilo é
um sonho, o sonho da burguesia a respeito dos terríveis
problemas que dividem a humanidade nos dias de
hoje. Em Dom Camilo, a burguesia sonha com um
padre armado de metralhadora, brigão, forte, esperto,
vitorioso e generoso, diante do qual está um prefeito
comunista, ele também violento e brigão, mas menos
forte do que o padre, totalmente desarmado do ponto de
vista ideológico, puro sentimento e, apesar dele, levado
a ceder e a concluir todas as suas revoltas com o sinal
da Santa Cruz. Dissemos que Dom Camilo é um sonho
e, de fato, não seria difícil demonstrar que, tanto na
realidade quanto na história, padres e comunistas como
Dom Camilo e Peppone não existem. Mas o ponto não
é esse. Graças a esse sonho, em que as coisas são como
se gostaria que fossem quando não o são, a burguesia do
mundo todo se familiariza com a questão do comunismo,
aproxima-se dele, toca-o. A superioridade de Dom Camilo
em relação a tantos filmes anticomunistas e, em geral, de
viés político, consiste em que, mesmo intermediado pela
figura de um marxista camponês e boa-praça, a realidade
do comunismo é enfrentada e parcialmente descrita.
Assim, o sucesso de Dom Camilo deve-se a vários fatores,
mas, principalmente a dois: de um lado, uma descrição
quase nova do contraste social e ideológico e, de outro,
a redução desse contraste, de outra forma assustador e
insolúvel, a uma pequena briga de aldeia, a troca de peças
e desfeitas entre um padre simpático e turbulento e um
revolucionário não menos simpático e bonachão.

[...] Todo o filme equilibra-se, como o primeiro Don


Camilo, na corda estirada daquele espírito redutivo que
pode ser resumido no dito popular: “O diabo não é tão
feio como parece”. [...] Peppone, talvez, quase não seja
mais reconhecível de tão bonzinho que se tornou e de
tanto que seu marxismo parece ter-se evaporado; mas,
como dissemos, trata-se de um sonho [...].

Ao contrário do romancista, outros críticos, como Gian Piero


Brunetta e Gian Franco Vené, viram na saga a abertura de um
diálogo entre católicos e comunistas, em virtude da humanização
da imagem destes, muito diferente da pintada pela propaganda

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norte-americana (BRUNETTA, 1982, p. 489-490). Num discurso


na Câmara dos Deputados em 1954, Mario Alicata (BRUNETTA,
1982, p. 490), um dos máximos representantes da política cultural
do PCI (Partido Comunista Italiano), assim comentava o enorme
sucesso de Dom Camilo:

Esse filme lucrou mais de um bilhão, porque, apesar


de tudo, talvez não corresponda às intenções de quem
o produziu; quer dizer, um filme facciosamente,
estupidamente anticomunista. Em suma, era um filme
no qual circulava certo ar que levava a pensar numa
possibilidade de pacificação, de distensão.

Vittorio Spinazzola (BRUNETTA, 1982, p. 490) também não


9. A temporada cinematográfica, na
Itália, vai de setembro de um ano a deixou de ter uma visão positiva sobre a primeira produção da série:
agosto do ano seguinte.

Dom Camilo obtém um bilhão e meio de lucro e o


10. A tradução correta seria “Dom primeiro lugar absoluto na classificação geral de 1951-
Camilo e o deputado Peppone”. 529, com uma diferença de 500 milhões sobre o segundo
O DVD traz a versão francesa, La colocado, Anna, de Lattuada. Que inesperado mecanismo
grande bagarre de Don Camillo; de massa tinha sido acionado?
por isso, seu título em português Simplesmente tinha acontecido que, num dos países mais
acabou sendo A grande briga de politizados do mundo, o público se achava diante de um
Don Camillo. filme que falava de política e falava dela em termos de
atualidade, chamando em causa diretamente os grandes
protagonistas da vida coletiva, católicos e comunistas.
11. Peppone é o aumentativo de
Peppe, uma das formas familiares
para o nome próprio Giuseppe
Diante dessas afirmações surgem duas dúvidas, a serem comentadas
(José). O emprego do sufixo –one
e os bastos bigodes do prefeito de à luz de Dom Camilo e o nobre Peppone (cujo DVD foi lançado
Brescello, cidadezinha da Emília- recentemente no Brasil10), o único a trazer no título o nome do
Romanha, o caracterizavam antagonista11. A primeira diz respeito à politização da sociedade
como um êmulo de Baffone,
italiana. Não se pode esquecer que todos os filmes foram rodados
apelido popular de Stálin na
Itália, principalmente depois da da primeira metade dos anos 1950 em diante; portanto, depois do
II Guerra Mundial. No grande fatídico pleito de 18 de abril de 1948, quando a Frente Popular
cartaz de propaganda eleitoral, — formada pelo PCI e pelo Partido Socialista Italiano de Unidade
a pose do prefeito lembrava a
Proletária — foi excluída do poder, pela esmagadora vitória da DC
do líder soviético, até que Dom
Camilo, com alguns retoques, o (Democracia Cristã), que quase alcançou a maioria absoluta, com
caracterizou como o diabo. 48,5% dos votos, afirmando-se de vez como uma força hegemônica,

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representante da burguesia moderada. Guareschi foi um dos


principais artífices da vitória da DC, ao transformar Candido
no órgão oficial do partido e ao criar cartazes de propaganda
anticomunista, com dizeres do tipo “No segredo da cabine eleitoral,
Deus está vendo você, Stálin não” (FERRAZZOLI, [S.d.]), frase
retomada por ele no roteiro da produção de 1955. Nesse filme,
embora Giuseppe Bottazzi, vulgo Peppone, tivesse conseguido
eleger-se deputado, seu partido, a Frente Independente da Paz,
havia sido derrotado. História e ficção ostentavam a mesma data,
1948, pois o prefeito, nascido em 1899, tinha na época 49 anos.

A vitória dos democrata-cristãos havia sido arduamente


preparada, depois do susto levado com as perdas sofridas numa
série de eleições administrativas em fins de 1946, em favor de
L’Uomo Qualunque (o homem comum). O partido havia sido
fundado no dia 8 de agosto de 1945 por Guglielmo Giannini, que,
em 12 de dezembro do ano anterior, tinha lançado, em Roma, o
semanário L’Uomo Qualunque. O indiferentismo canalizava os
temores da classe média italiana, particularmente a do Sul, a qual,
diante da grave situação econômica, do fervilhar de novas ideias
políticas e da participação de amplas camadas da população na
vida nacional, aspirava à ordem como valor supremo, sobretudo
a social, estando insatisfeita com a demora da DC em excluir do
governo comunistas e socialistas.

Na opinião de Moravia (2010, p. 177, 487, 618), mais do que


expressar o ideário específico de um partido, esse movimento era
uma “inclinação psicológica” de seus conterrâneos, resultado da
“deterioração do ancestral humanismo italiano”, e suas vitórias
eleitorais vinham demonstrar não apenas o quanto os princípios
do fascismo ainda estavam vivos no imediato pós-guerra, mas,
principalmente, o profundo antissocialismo das camadas
médias moderadas. Caracterizando-se por uma visão de mundo
fragmentária, cristalizada, que se interessava apenas pelo fait divers,
o indiferentismo seria uma espécie de “bom senso regressivo”, “um
estado de espírito”, mas de um “espírito redutivo”, o qual, em vez
de tentar alcançar pensamentos mais elevados, procurava reduzi-
los ao próprio tamanho. Com fina ironia, o escritor, no entanto,

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não o considerava de todo negativo, na medida em que ajudaria as


almas simples a penetrar numa realidade que, de outro modo, não
conseguiriam captar, e a familiarizar-se com ela.

A segunda dúvida leva a indagar se a esquerda tinha caído,


como acontecerá com Pasolini, na armadilha de Guareschi. Se, de
um lado, a palavra de ordem no seio do PCI era distensão, visto o
partido estar empenhado em dar um “novo rumo” às suas diretrizes
políticas, repudiando manifestações sectárias, de outro, causa
espanto que não se percebesse nesse envolvimento afetivo entre as
partes focalizadas na saga uma tentativa de homogeneização, na
qual o comunismo acabava sendo apresentado como um desvio,
temporário, pois, como se concluía em Dom Camilo e o nobre
Peppone, o bom filho à casa torna. É muito sintomática, no filme,
uma das conversas do pároco com o Cristo crucificado do altar-
mor de sua igreja. O prefeito, que foi acender um grande círio na
paróquia antes das eleições, acabou por esquecer seu chapéu num
dos bancos da frente. Dom Camilo estava amassando o chapéu,
quando Cristo o repreendeu, pedindo-lhe que o colocasse de volta
no banco, como se Peppone o tivesse deixado lá para guardar lugar.
E assegurou-lhe que um dia este voltaria, dentro de dois meses ou
dentro de dois anos, mas voltaria, sem se esconder e pela porta
principal. Ao que o cura contestou que esse era um sonho lindo.

E, de fato, o prefeito regressou, com outro círio, desta vez


carregado por quatro camaradas, para agradecer a graça de ter sido
eleito. E não apenas ele frequentava a igreja; Lênin, seu caçulinha,
também havia ido pedir uma graça porque seu pai estava sendo
processado sob a acusação de ter roubado as galinhas do padre, em
represália ao estrago que este fizera a seu material de propaganda.
Mais uma vez será a intervenção de Cristo a resolver a situação,
mandando Dom Camilo inocentar Peppone, o que ele fará, mas
sem deixar de vingar-se de seus inimigos, ao declarar no tribunal
que eram todos bons cristãos, pois, embora de dia negassem sua fé,
de noite iam implorar o perdão de Deus.

Para completar o quadro, a mulher do prefeito também havia


voltado à igreja, anos depois do batizado de seu último filho, para
acender uma vela à Virgem Maria, não conseguindo esconder

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seu desgosto pelos boatos sobre o marido e sua secretária, a bela e


jovem Clotilde, líder do Comitê Feminino pela Paz, que, quando
discursava, lotava o auditório... de homens, atraídos mais por seus
dotes físicos do que por suas palavras inflamadas. O idílio, na
verdade, havia sido abortado pelo próprio Peppone, mas o padre,
ao consolar a esposa do adversário, aproveitou para destilar seu
veneno, dizendo-se surpreso, porque aquele tipo de situação era
aceito dentro do partido, uma vez que uma jovem mulher era a
recompensa dada a quem realizasse uma grande façanha, numa
clara alusão à relação entre a parlamentar Nilde Iotti e o Secretário
Nacional do PCI, Palmiro Togliatti, casado, pai de um filho e 27
anos mais velho do que sua companheira.

Como se não bastassem essas pequenas vitórias de Dom Camilo,


pois será sempre ele a vencer com seu bom senso, havia um ataque
maior, que o filme promovia — nas entrelinhas, mas de modo não
muito sutil — contra o prefeito e, consequentemente, contra os
que compartilhavam sua ideologia, o de ser ignorante. Para poder
assumir o novo cargo, Peppone precisava obter o diploma da escola
primária. O cenário do exame de admissão será uma inusitada sala
de jardim de infância, o que vinha sublinhar a infantilização do
personagem. No dia do exame, o prefeito não conseguia resolver
o problema de matemática nem sabia como desenvolver o tema
da redação, “Um homem que você nunca esquecerá”. A salvação
providencial virá do pároco, que lhe dará a solução do problema,
em troca da autorização para construir uma nova igreja, e lhe
sugerirá que fale dele como homem inesquecível. Desse modo, o
público saberá que os dois se conheceram na época da luta contra
os nazifascistas, embora na redação, narrada emoff, o prefeito
contará os fatos de modo a sublinhar a covardia do padre, enquanto
as imagens o desmentirão. O filme voltará a bater na mesma tecla
em mais um episódio. Para tirar das terras de um companheiro um
tanque escondido lá desde o fim da guerra, que Peppone e seus
camaradas acreditavam ser alemão, apesar da grande estrela que
o blindado exibia, ele precisará aceitar de novo a ajuda do pároco,
pois o carro de combate deveria ter sido entregue às autoridades
militares aliadas ao término do conflito, quando foi ordenado o
desarmamento dos partisans. Embora o tamanho do armamento

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fosse exagerado, tratava-se de uma nova alusão a fatos relativos ao


PCI, o qual, mesmo no período pós-bélico, manteve uma estrutura
paramilitar, principalmente no centro e no norte da Itália, pronta
para intervir em caso de perigo para os membros do partido, como
quase aconteceu por ocasião do atentado a Togliatti, em 14 de julho
de 1948. Mais uma vez, foram os sábios conselhos do pai espiritual
que permitiram a Peppone enfrentar uma situação da qual não
saberia sair sozinho, pois, como uma criança — levada, mas de
bom coração —, ele precisava de alguém que lhe indicasse qual era
o caminho certo a seguir.

Dessa forma, o filme transformava em mera boutade um dos


momentos-chave da história italiana, o da Libertação, quando
homens e mulheres, na maioria das vezes bem jovens, pegaram
em armas, contando também com a colaboração da população,
principalmente no campo, e com a solidariedade de padres de
pequenas comunidades e até mesmo de bispos, como atestam
relatos de partisans recolhidos no volume Io sono l’ultimo: lettere
di partigiani italiani (2012), organizado por Stefano Faure,
Andrea Liparoto e Giacomo Papi, e filmes como Roma, città
aperta (Roma, cidade aberta, 1944-45), de Roberto Rossellini,
e Il sole sorge ancora (O sol ainda se levantará, 1946), de Aldo
Vergano, em que padres católicos e combatentes comunistas eram
torturados e/ou fuzilados por nazistas.

Apesar da presença de pessoas de várias ideologias na luta pela


libertação, a Resistência acabou se tornando patrimônio moral das
esquerdas; talvez por isso Dom Camilo e o nobre Peppone preferiu
apelar para o sentimento patriótico ligado à Primeira Guerra
Mundial, quando, ao conquistar territórios pertencentes ao Império
Austro-Húngaro, a Itália completava sua unificação. Enquanto
Peppone se dirigia à população no dia das eleições, o cura, para
encobrir sua fala, passou a transmitir pelo alto-falante La canzone
del Piave, fato que teve um efeito diferente do desejado, uma vez
que o prefeito, ao lembrar os acontecimentos dos quais ele também
havia sido protagonista, se inflamou e, com seu discurso ufanista,
entusiasmou seu eleitorado e o próprio Dom Camilo.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 126


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O Senhor está vendo, mas Stálin não: representação do embate ideológico no período da guerra fria na Itália | Mariarosaria Fabris

La canzone del Piave, título popular de La leggenda del Piave, foi


o hino oficial da Itália entre 1943 e 1946. Tinha sido composta por
E. A. Mario (pseudônimo de Giovanni Ermete Gaeta), no calor da
hora, para rememorar a participação da Itália na Primeira Guerra
Mundial e celebrar a batalha travada entre as tropas italianas e o
exército austro-húngaro às margens do rio Piave (nordeste do país),
entre 15 e 23 de junho de 1918. O patriotismo presente em seus
versos foi instrumentalizado para fazer esquecer as atrocidades da
Grande Guerra e o enorme número de baixas, embora a canção
não tivesse deixado de narrá-los.

Levar à comoção ao rememorar o primeiro conflito mundial,


e não o segundo, significava aproximar-se da apropriação que o
fascismo soube fazer da Grande Guerra, ao glorificar a bravura dos
que se bateram para resgatar de mãos inimigas o solo pátrio, e unir
a esse sentimento o receio pelo perigo bolchevique, representado
pelos ideais do Partido Socialista Italiano, promotor de uma série
de agitações no campo e nas cidades, entre 1919 e 1920, o que
fez com que parte da população, assustada, desejasse que a lei e a
ordem fossem restauradas no país com mão de ferro.

Em Dom Camilo e o nobre Peppone, portanto, o que determinou


a eleição do prefeito como deputado não foi o que ele pregava, mas
o patriotismo, o que vinha esvaziar sua ideologia. Nesse sentido, o
filme estava bem consoante com as diretrizes dos grupos católicos
em relação ao papel da sétima arte em prol de seu ideário:

Os marxistas, ao oporem a tela ao púlpito nos países em


que imperam, transformaram milhares de igrejas em
cinemas: é nosso dever defender nossas igrejas e, além
disso, é nossa ambição transformar também as telas em
púlpitos e, desse modo, fazer dos nossos cinemas filiais de
nossas igrejas (PINTO, 1976, p. 12).

Poder-se-ia concluir que os dois lados tinham objetivos não muito


diferentes a serem alcançados graças a estratégias bem parecidas,
uma vez que dogma marxista e moral católica pareciam equivaler-
se, como havia assinalado o escritor Ignazio Silone (2004, p. 59-60),
em 1959, ou seja, 28 anos depois de ter sido expulso do PCI:

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 127


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Dossiê - História e Audiovisual

Igreja e Partido Comunista, no campo, são dois vasos


comunicantes. [...]

A principal concorrência entre essas duas grandes


instituições se dá, no plano local, na base de
diversões e brindes. [...]

Isso demonstra a confiança depositada por esses padres


na graça divina e por esses comunistas na consciência
de classe do proletariado. Mas considerar esses católicos
crentes e esses comunistas ateus é apenas uma maneira
de dizer convencional, sem mais fundamento algum:
estes ferozes antagonistas políticos, se refletirmos bem,
são feitos da mesma matéria, são movidos pelos mesmos
instintos, têm as mesmas aspirações, acreditam nos
mesmos valores, sonham com a mesma coisa: vencer na
loteria esportiva, ser rico sem trabalhar.

Ser comunista na Itália daquele período, no entanto, não era um


fato tão simples, pois muitos militantes já começavam a questionar as
diretrizes do partido e a se angustiarem diante de suas contradições,
mesmo antes das revelações de Kruschev (1956). Uma dilaceração
que Italo Calvino (2011, p. 5) já havia expressado quatro anos antes,
ao publicar Il visconte dimezzato (O visconde partido ao meio) —
“Estava interessado no problema do homem contemporâneo (do
intelectual, para ser mais preciso) partido ao meio, isto é, incompleto,
‘alienado’” —, e que se tornou mais aguda diante dos acontecimentos
da Hungria, a ponto de o escritor deixar o partido em 1957. Num
artigo de 13 de dezembro de 1980, significativamente intitulado
“Quel giorno i carri armati uccisero le nostre speranze” [Naquele dia,
os tanques mataram nossas esperanças], referindo-se à possibilidade
de transformação do universo socialista que o XX Congresso do
Partido Comunista da União Soviética havia levado a entrever,
Calvino, que havia realizado algumas viagens no Leste europeu
— Budapeste (1949), Rússia (1951) — e que, no fundo, havia tido
uma imagem positiva dos países visitados, ponderava (BARENGHI;
FALCETTO, 2011, p. XXI):

Nós, comunistas italianos, éramos esquizofrênicos. Sim,


acredito mesmo que esse seja o termo correto. Uma parte
de nossos seres era e queria ser testemunha da verdade,

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O Senhor está vendo, mas Stálin não: representação do embate ideológico no período da guerra fria na Itália | Mariarosaria Fabris

os vingadores das afrontas sofridas pelos fracos e pelos


oprimidos, os defensores da justiça contra todo e qualquer
abuso. Outra parte de nossos seres justificava as afrontas,
os abusos, a tirania do partido, Stálin, em nome da
Causa. Esquizofrênicos. Dissociados. Lembro muito bem
que, quando me acontecia de viajar por algum país do
socialismo, me sentia profundamente pouco à vontade,
alheio, hostil. Mas quando o trem me levava de volta para
a Itália, quando tornava a cruzar a fronteira, perguntava-
me: mas, aqui, na Itália, nesta Itália, o que eu poderia
ser senão um comunista? Eis por que o degelo, o fim do
stalinismo, tirava um peso terrível de nossas costas: porque
nossa imagem moral, nossa personalidade dissociada,
finalmente podia recompor-se, finalmente revolução e
verdade voltavam a coincidir. Eram estes, naqueles dias, o
sonho e a esperança de muitos de nós.

Sonho não realizado e esperança frustrada, porque os rumos da


jovem república foram outros; no entanto, não pode ser esquecida
a participação ativa das esquerdas na formulação de uma nova
constituição nem o papel que elas efetivamente desempenharam
na construção da democracia no país.

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Dossiê - História e Audiovisual

Referências

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L’entrata in guerra. Milano: Mondadori, 2011.

BORGES, A. “A eterna raiva de Pasolini”, 2008. Disponível em:


<cinequanon.art.br.>. Acesso em: 13 ago. 2013.

BRUNETTA, Gian Piero. Storia del cinema italiano dal 1945 agli
anni ottanta. Roma: Editori Riuniti, 1982.

CALVINO, I. “Apresentação”. In: CALVINO, I. O visconde partido


ao meio. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FERRAZZOLI, M. “Guareschi: e succede un ‘48”. Disponível em:


<www.radicicristiane.it.>. Acesso em: 13 ago. 2013.

JOUBERT-LAURENCIN, H. Pasolini: portrait du poète en


cinéaste. Paris: Cahiers du Cinéma, 1995.

MALTESE, C. “Il film-profezia di Pasolini: così nel ’63 raccontò


l’Italia d’oggi”. La Repubblica, 24 ago. 2008. Disponível em: <www.
cinetecadibologna.it.> Acesso em: 13 ago. 2013.

MORAVIA, A. “Guicciardini visto da via Veneto”. In: MORAVIA,


A. Cinema italiano: recensioni e interventi – 1933-1990. Milano:
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__________. “Il secondo match tra Fernandel e Cervi”. In:


MORAVIA, A. Cinema italiano: recensioni e interventi – 1933-
1990. Milano: Bompiani, 2010, p. 176-179.

__________. “In giacca rossa e parrucca beatnik”. In: MORAVIA,


A. Cinema italiano: recensioni e interventi 1933-1990. Milano:
Bompiani, 2010, p. 618-619.

__________. “Pasolini nella trappola di Guareschi”. In: MORAVIA,


A. Cinema italiano: recensioni e interventi – 1933-1990. Milano:
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PINTO, F. “Cinema neorealista e política culturale cattolica”.


Cinemasessanta, Roma, ano XVI, n. 111, set.-out. 1976.

SILONE, I. “Cronache della steppa”. In: SILONE, I. Le cose per

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O Senhor está vendo, mas Stálin não: representação do embate ideológico no período da guerra fria na Itália | Mariarosaria Fabris

cui mi batto: scritti su cultura e politica. Santa Maria Capua Vetere:


Edizioni Spartaco, 2004.

TURELLO, M. “I mondi di Pasolini e Guareschi di fronte”.


Disponível em: <www.pasolini.net.>. Acesso em: 13 ago. 2013.

submetido em: 10 ago. 2013 | aprovado em: 23 set. 2013

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Israel: Nova história e
cinema pós-sionista

Sheila Schvarzman1

1. Doutora em história social pela Universidade Estadual de Campinas.


Tem pós-doutorado na área de multimeios. É uma das coordenadoras
do grupo de pesquisa CNPq sobre Cinema Brasileiro: História e
Preservação. Professora do Programa de Mestrado em Comunicação da
Universidade Anhembi Morumbi. E-mail: [email protected]

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Resumo
O artigo aborda o movimento cultural e político que busca, através
da revisão da história da criação de Israel, repor questões como
o reconhecimento dos palestinos e a responsabilidade pelo seu
exílio/expulsão. Dever de memória e de reconhecimento no qual
o cinema israelense tem se engajado e para o qual o diretor Eyal
Sivan propõe constituir arquivo de depoimentos dos perpetradores.
Não só vítimas palestinas, mas combatentes, questionando assim,
inclusive, as formas do documentário.

Palavras-chave
História e cinema, novos historiadores israelenses, cinema pós-
sionista, Palestina, memória.

Abstract
This article discusses a cultural and political movement that
seeks, by reviewing the history of the creation of Israel, to replace
recognition of the Palestinians as well as the responsibility for their
exile/deportation. Duty of memory and duty of recognition in which
Israeli cinema is engaged, and to which filmmaker Eyal Sivan
proposes constitute an archive with testimony of the perpetrators.
Not only Palestinian victims, but especially Israeli perpetrators,
questioning, too, the forms of documentary.

Keywords
History and cinema, new Israeli historians, post zionist cinema,
Palestine, memory.

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

São pouco expressivas na mídia as exibições de manifestações


internas de descontentamento com as ações políticas dos governos
de Israel contra os palestinos. No entanto, elas existem e têm levado
à produção de filmes, sobretudo documentários, que interrogam
essa realidade. Isso é o que se pode ver por dois filmes que
concorreram ao Oscar de documentário em 2013. The gatekeepers,
do israelense Dror Moreh, com o depoimento de cinco ex-diretores
do serviço secreto, o Shin Bet, que se questionam e questionam
ações que executaram, e 5 broken cameras, do israelense Guy
Davidi e do palestino Emad Burnat, que, tendo comprado uma
câmera para registrar o nascimento do filho, busca expor, através
da violência reiterada cometida pelo exército israelense contra suas
cinco câmeras, o que é o cotidiano palestino sob ocupação.

Assim, se a violência de Estado e as reações palestinas


recrudescem, estão suscitando em parte da população israelense
o reconhecimento dos palestinos e a construção de outras formas
de Estado (binacional, dois Estados autônomos) que virão, e cuja
história é preciso preparar — afinal, é uma história comum a
ambos. Cineastas vêm se ocupando dela.

Essas preocupações, no entanto, não são novas e começaram a


tomar corpo nos anos 1980 no cinema e na televisão quando diretores
como Amos Gitai e David Perlov foram impedidos de veicular
trabalhos seus encomendados pela televisão estatal. Naquele
momento, o primeiro troca Israel pela França, e Perlov parte para
um exílio interior com os Diários, nos quais filma o seu cotidiano:
íntimo e político. Essa retração da política no espaço público, que

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Dossiê - História e Audiovisual

corresponde a acontecimentos brutais, como a intervenção de 1982


em Sabra e Chatila, ocorre também quando está tomando corpo
em Israel um forte movimento de revisão historiográfica, a partir
da abertura dos arquivos sobre a constituição do Estado, em 1948.

Os palestinos, sua existência, sua imagem passam, desde então, a


entrar para a história de Israel. E, se essa formulação parece absurda,
ela marca bem a relevância do processo atual: no entendimento
tradicional israelense, os palestinos não existem como identidade
nacional autônoma, pois, sendo árabes como os sírios, libaneses,
tunisianos, iraquianos, poderiam ser absorvidos por esses povos em
seus territórios.

Essa formulação não é nova nem apenas israelense. É


pensamento arraigado pelo colonialismo que se ocupou dessas
terras desde o fim da Primeira Guerra, marcado pelo desprezo
e desconfiança em relação aos orientais, como já mostrou
Edward Said (2007). Assim, diante do fardo do homem branco do
colonialismo inglês, as reivindicações sionistas ao território da
Palestina vão encontrar boa recepção:

As quatro grandes potências estão engajadas em relação


ao sionismo. E o sionismo, certo ou errado, bom ou mau,
está enraizado numa longa tradição, nas necessidades
atuais, nas esperanças futuras de uma importância
bem mais profunda que a vontade e os preconceitos de
700.000 árabes que vivem agora nessa terra antiga (LORD
BALFUR, 1919 apud GRESH, 2010, p. 66)2.

2. As traduções para o português


neste artigo foram feitas pela autora.
Por outro lado, se esse processo vem transformando a percepção
israelense sobre a existência dos palestinos e até mesmo levando ao
reconhecimento da sua tragédia, a Nakba, a catástrofe que marcou
a sua expulsão de territórios sobre os quais se construiu o Estado
de Israel a partir de 1948; vem alterando também a visão sobre o
que foi a chamada Guerra de Independência, quando, em maio de
1948, vários países árabes contrários a essa decisão, como o Egito,
a Síria, a Transjordânia (atual Jordânia) Iraque e Líbano, além
de grupos palestinos, invadiram o Estado nascente, que, além de
rechaçar o ataque inimigo, teria expulsado palestinos de suas terras

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

para ocupá-las (num processo de que a eliminação física dos antigos


ocupantes não foi excluída).

Esses fatos e os seus personagens históricos (como o então


primeiro ministro Ben- Gurion) estão na base da grande revisão
que vem sendo empreendida desde os anos 1980 pelo que se
convencionou chamar novos historiadores pós-sionistas. No mesmo
período, cineastas produziram documentários que foram na mesma
direção e questionaram, entre outros, a ocupação israelense, os usos
e abusos da memória do Holocausto na constituição e justificação
do Estado de Israel e da identidade israelense, até a constituição de
um arquivo virtual de depoimentos de soldados e oficiais israelenses
que participaram dessa guerra fundadora. Conforme apontou o
cineasta Eyal Sivan, responsável pela construção desse arquivo em
conjunto com o historiador Ilan Pappe, são os perpetradores da
violência nas guerras, segundo Primo Levi, suas primeiras e mais
bem situadas testemunhas. Elas devem falar.

O presente artigo pretende dedicar-se à discussão dessas


significativas mudanças que vêm se manifestando com a construção
de uma nova história e de um novo cinema em Israel, marcado
este, sobretudo, pelas críticas à construção de uma cultura que, ao
se inscrever como pioneira, civilizada e iluminista (isto é, ocidental
no Oriente Médio), e ao mesmo tempo como vítima maior da
humanidade, termina tendo como fundamento o apagamento da
história e da existência do outro, de qual decorre a naturalização
da opressão e mesmo da destruição desse outro incômodo. Tais
questões vêm sendo construídas na imagem e em suas repercussões,
com destaque para as obras de Eyal Sivan, que chamam a atenção
para uma discussão pouco conhecida no Brasil.

A velha e a nova história

Para entender essa nova configuração, marcada pelo surgimento de


revelações sobre violações israelenses na Guerra de Independência,
é preciso levar em conta a existência pouco difundida na mídia de
uma forte e contínua oposição política ao establishment. Partidos
políticos e grupos de esquerda, movimentos de militares que se

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Dossiê - História e Audiovisual

recusam a servir em regiões palestinas ocupadas, ou o Paz Agora,


buscam alternativas e, sobretudo desde os anos 1980, quando o
relacionamento acadêmico entre israelenses e palestinos tornou-se
mais intenso, permitem aos intelectuais israelenses conhecerem o
conteúdo de trabalhos palestinos que até então eram considerados
apenas como propaganda — principalmente com a abertura dos
arquivos sobre a fundação do Estado, em 1948. Tudo isso levou
ao aparecimento da nova historiografia pós-sionista, que, dispondo
de novos documentos, passa a expor e criticar os fundamentos da
constituição do Estado em que a Guerra da Independência e o
êxodo dos palestino são temas centrais.

No relato historiográfico tradicional, depois da Partilha da


Palestina decidida pela ONU em 1947, mas, sobretudo depois da
Declaração de Independência do Estado de Israel, em 19483, os
3. Independência em relação ao Estados árabes contrários à decisão invadiram Israel, que lutou
Mandato Britânico, que nesse contra várias nações bem armadas. Esses países incitaram a fuga
momento se retirava do território. dos palestinos de suas terras para que não se tornassem alvo das
batalhas, até o momento em que, vencida a guerra por eles, os
palestinos retornariam. Portanto, os palestinos — que são árabes —
abandonam suas terras e vão para outros países árabes que poderão
acolhê-los. Desse ponto de vista, não havia problema palestino, já
que se partia do entendimento de que são árabes e como tal deviam
4. Vilarejo palestino onde mais de ser acolhidos por seus irmãos. Entretanto, ainda que se soubesse que
cem pessoas foram mortas pelos
nessa fuga foram cometidas violências pelos combatentes israelenses
grupos paramilitares do Irgun e
Lehi, facções de extrema direita, que em populações como Deir Yassin4, isso foi então considerado uma
foram muito criticadas pelo governo terrível exceção. A abertura dos arquivos pelos novos historiadores,
socialista da época. como Benny Morris, que teve acesso aos diários de David Ben-
Gurion e que, em The birth of the Palestinian refugee problem
1947-1949 (1988)5, demonstrara que houve, sim, uma deliberada
5. O livro é o doutorado na
política de expulsão, certamente altera a percepção sobre os direitos
Cambridge University. Em 2004, dos palestinos. A análise da documentação e a escrita dessa história
com nova documentação israelense foram marcadas pela Guerra no Líbano e pela primeira Intifada, em
e palestina, aumentam as evidências 1987, quando começam a se acirrar em Israel as divisões ideológicas
da responsabilidade pelo êxodo
palestino tanto entre israelenses
entre nacionalistas e o campo da paz (VIDAL, 2007).
como entre os países árabes e as Para Benny Morris ou Ilan Pappe (1988), tratava-se de revisitar
autoridades palestinas.
as origens, observando como o movimento sionista, diante dos
horrores sofridos durante o Holocausto, procurou reparar a barbárie

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

através da consolidação de um lugar de proteção. Entretanto,


para que esse lugar surgisse, foi preciso desalojar outro povo. Essa
nova história é escrita de um ponto de vista e com documentação
basicamente israelense: fontes oficiais do governo, do exército,
fontes inglesas e fontes privadas. Esse é o cerne das discussões e das
novas descobertas, conforme a apresentação dos historiadores feita
por Dominique Vidal e que, traduzidos apenas em 2008 na França,
seguem inéditos no Brasil.

A Guerra da Independência foi construída na historiografia


tradicional israelense como a batalha heroica de um pequeno e
bravo povo praticamente desarmado contra um exército potente,
numeroso e bem armado de várias nações árabes, que atacou o país
de surpresa no momento em que comemorava a sua independência.
Um duelo de Davi contra Golias, em suma. No filme americano
A sombra de um gigante, de Melville Shavelson (Cast a giant
shadow), de 19666, podemos ter a mais viva expressão dessa visão.
Ali, o povo pobre e impotente recém-saído do Holocausto, portanto
6. À sombra de um gigante é um
melodrama com estrelas da época fragilizado, se transmutava em combatentes aguerridos que, apesar
como Kirk Douglas, Senta Berger, da falta de recursos, e com a ajuda de um experiente militar judeu
Angie Dickinson e John Wayne. americano, conseguem vencer a batalha.

O filme trata especificamente da liberação da estrada que liga


Tel Aviv a Jerusalém, palco de sangrentas batalhas entre israelenses
e o exército formado por vários países árabes. Se no filme
americano é a esperteza e a sagacidade de Mickey Marcos (Kirk
Douglas) e seus comandados israelenses que conseguem formular
uma estratégia para abrir caminho e religar o país para opor-se aos
ataques inimigos, segundo os novos historiadores, ao contrário, a
abertura desse caminho implicou o constrangimento, expulsões e
até massacres da população palestina. Ilan Pappe (2012, p. 18) fala,
inclusive, em limpeza étnica.

Ao contrário dessa mítica da fragilidade israelense, a


7. Haganá — do hebraico defesa — documentação levantada por Benny Morris constata que parte
designa o exército judaico ilegal, dos armamentos israelenses havia sido tomada dos ingleses pela
mas tolerado e parceiro dos ingleses
Haganá7, quando seus membros participaram em operações
durante a 2ª Guerra — antes da
criação das Forças de defesa de conjuntas durante a Segunda Guerra. Além disso, contaram
Israel, a Tsahal, em maio de 1948. também com reforços dos russos. Quanto à falta de preparo, com

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a prática militar da Haganá e sua participação no exército inglês,


se eram menos numerosos, estavam mais bem treinados e tinham
o apoio político americano e diplomático e militar dos russos. Os
árabes, ao contrário, que vinham de várias nações, não tinham
treinamento, não sabiam operar o equipamento, que não era novo,
e, sobretudo, não se entendiam.

O outro mito, decorrente do primeiro, diz respeito ao êxodo


voluntário dos palestinos entre 1947-1949. Segundo as fontes
oficiais israelenses, 500 mil palestinos abandonaram suas terras
e propriedades, atiçados pelos países árabes que lhes pediam que
abandonassem suas terras a fim de não se tornarem alvo na guerra;
eles poderiam retornar a suas casas rapidamente, uma vez que os
exércitos árabes venceriam o combate e riscariam Israel do mapa.

De acordo com a documentação levantada por Morris,


no entanto, apenas 70 mil palestinos saíram voluntariamente.
Simcha Flapan, em The birth of Israel: myths and realities (1987),
observa ainda que, entre as terras designadas inicialmente para
Israel na partilha da ONU em 1947 e as terras que Israel tomou
durante a guerra, houve um acréscimo de 1/3 sobre o que estava
designado aos palestinos.

Nesses trabalhos que dispensam o testemunho palestino,


trata-se de olhar o interior da constituição do Estado e observar
o quanto de propagandístico e ideológico havia na historiografia
que surge concomitantemente ao Estado de Israel e em seu apoio.
Ao mesmo tempo, e de maneira contraditória, pela significação
que abarca, pelo caráter de causa e justificativa humana máxima
para a obtenção de terras, de um lar, o Holocausto foi pouco
abordado, como se o questionamento visasse mais exatamente o
sionismo e a maneira como este se apropria do massacre nazista
para reforçar a existência do Estado, deixando de lado muitas
vezes a compreensão das questões que estão na imbricação trágica
de dois destinos: o judeu e o palestino.

Do ponto de vista da recepção dessas várias obras em Israel,


vale observar que todos os autores são israelenses e se graduaram
em Israel, embora a maioria dos trabalhos tenha sido escrita em
doutoramentos nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde foram

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

inicialmente publicados. Os livros desses historiadores, começando


pelo de Benny Morris, de 1988, tiveram ampla repercussão em
Israel, e, como vimos pelos títulos e pelas datas, continuam a ser
lançados, apaixonadamente criticados pelos outros historiadores,
mas encontram entre os intelectuais pacifistas, e no jornal Haaretz,
um lugar de apoio e divulgação.
A questão da responsabilidade pelo êxodo palestino, tema
do livro de Benny Morris, causou impacto e foi para os meios
de comunicação no ano mesmo de seu lançamento, 1988, que
coincidiu com o da comemoração dos 40 anos de Israel. Aliado à
declaração do Estado palestino, conduziu até mesmo a mudanças
nos livros didáticos israelenses, que começaram a tocar nessa e em
outras questões. Entretanto, com os revezes depois do assassinato
de Rabin em 1995 e da frustração com Camp David em 2000,
Ariel Sharon, em 2001, então no poder, os tirou de circulação.
Essa censura põe a nu, em primeiro lugar, o caráter controverso da
democracia israelense e, paralelamente, a persistência das narrativas
históricas tradicionais, reforçadas agora pelo recrudescimento do
campo nacionalista, que alimentou a expansão da implantação
de colônias em território ocupado, tendo na justificativa bíblica e
religiosa os seus indiscutíveis argumentos.
Em 2004, de posse de novos documentos palestinos e israelenses,
Morris lança uma nova versão do seu livro na qual reforça os
seus argumentos sobre o plano de Ben-Gurion de transferência
da população palestina para os países árabes, ação que teria se
realizado durante a Guerra de Independência. Entretanto, pelas
dificuldades de diálogo com os palestinos, que nesses anos também
retomaram ações violentas, marcadas, sobretudo, pelas posturas do
Hamas, Benny Morris mudou radicalmente suas opiniões, uma vez
que entende que os palestinos não estão interessados em um Estado
binacional, mas em um único Estado palestino que não inclui
Israel (BEN-SHIMON, 2012).
Esses questionamentos podem ser notados também no cinema
israelense, e o mesmo destino de errância também pode ser
observado entre os cineastas que, como os historiadores, mantêm
ligações fora de Israel para financiar e divulgar os filmes, já que
em seu próprio país os trabalhos são vistos com restrição e críticas
negativas — isso quando são vistos.

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O questionamento das imagens

São conhecidos no Brasil os trabalhos de Amos Gitai, cujas ficções,


como Kedma (2002), que tratam desse mesmo período, tiveram
exibição comercial, mas também muitos dos seus documentários
foram exibidos em mostras. Certamente Bait (Casa), de 1980,
encomendado e proibido pela televisão estatal, se tornou
emblemático por ter mostrado pela primeira vez a história de
uma casa em Jerusalém que era originalmente de palestinos, foi
apropriada pelo governo depois de 1948 e finalmente vendida
em 1977. Fala, portanto, ainda em 1980, da mesma história e dos
mesmos mitos que vão interessar aos novos historiadores: a Guerra
de Independência e o êxodo palestino, de uma perspectiva da
micro-história. O filme foi censurado e teve a exibição proibida.
Conforme lembra o diretor: “Em 1980 não se falava, não se
admitia, não se imaginava que as casas que os israelenses ocupavam
haviam tido uma vida anterior àquela que os judeus conheceram”
(TOUBIANA, 2004, p. 118).

O documentarista Eyal Sivan (1964) tem uma postura


política mais radical. Como Gitai, teve problemas na recepção
de seus filmes em Israel e foi para Paris, onde foi criticado
pelos antigos nouveau philosophes Alain Finkelkraut e Bernard
Henri Levi, que o acusaram de antissionista, o que ele é
realmente, e de antissemita. Mudou-se para Londres, onde é
professor universitário e produz filmes em que aprofunda os
questionamentos anteriores e percorre uma senda muito próxima
à dos novos historiadores, uma vez que trabalha com os usos
políticos do passado na conformação da identidade israelense e
do Estado de Israel. Mas também com aquilo que do passado foi
varrido pelo esquecimento, ocultado como a própria natureza da
Guerra de Independência e do êxodo palestino.

Entre 1991 e 1999, realizou dois filmes que interrogam os


usos da memória coletiva do Holocausto em Israel. Izkor: slaves
of memory (Escravos da memória), em 1991, e, em 1999, The
specialist (O especialista), sobre o julgamento de Adolf Eichman
em Israel. Ali, Sivan retomava as duras críticas de Hanna Arendt,
que, em seu livro de 1963, apontava o uso político do julgamento

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

de Eichman como um espetáculo com vistas à formação de uma


consciência judaica que parte significativa da população israelense,
composta por judeus vindos de países orientais, desconhecia.
Essa consciência deveria estar centrada no Holocausto e no seu
significado para a existência de Israel. Por seu conteúdo, o livro
de Arendt, lançado em 1963 nos Estados Unidos, só foi publicado
em Israel em 2000, um ano depois do lançamento do também
criticado filme — que interroga o uso da memória do Holocausto
na formação da consciência política israelense.

Em 2009, dirigiu Jaffa, a mecânica da laranja,8 em que desmonta


8. Disponível em: <http://www. um símbolo de Israel e do progresso que trouxe à região, as laranjas
youtube.com/watch?v=4Cgb- Jaffa, que seriam resultado das transformações modernizadoras de
VbL7dA>. Acesso em: 18 jul. 2012. sua agricultura e de seus homens novos. As imagens que Sivan
encontra mostram como a mesma laranja Jaffa vinha de uma cidade
palestina de mesmo nome, conhecida por seus laranjais. Através
de farto material iconográfico, de entrevistas com especialistas
israelenses e palestinos, além de agricultores e antigos moradores,
mostra a história da cidade palestina de Jaffo, tomada por Israel — e
junto com ela os laranjais e até mesmo a marca Jaffa, nacionalizada
pelo governo socialista então no poder. O filme faz da laranja e da
cidade palestina uma enfática metáfora da apropriação das terras,
da cultura, da economia e do símbolo palestino por Israel em 1948,
indicando o apagamento de uma história que faz retornar em suas
imagens. Mais: a documentação fotográfica e cinematográfica,
além das entrevistas, dizem respeito à cooperação entre diversos
povos em sua produção e comercialização.

A construção fílmica nessas obras incide sobre a história e


apropriação do passado como um dispositivo de poder, conforme
Foucault. Para fazê-lo em Izkor: slaves of memory de 1991, por
exemplo, ele observa práticas culturais como as comemorações,
desmontando os mecanismos que atuam através delas. Com a
participação de um intelectual de prestígio em Israel, Yeshayahu
Leibowitz, que é entrevistado e que dá o tom e, sobretudo a
autoridade às críticas feitas, o diretor produz um documentário
expositivo que registra a comemoração escolar (do maternal
ao final do segundo grau) de várias efemérides do calendário

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Dossiê - História e Audiovisual

concentradas em abril, momento em que se deve lembrar Izkor.


O filme registra as festividades nos vários graus da escola. O que
se rememora são os momentos de opressão passados pelos judeus
nas diferentes épocas históricas que as festas evocam — sem que
se busque entender as razões disso. As comemorações se somam
em sua continuidade cronológica, começando com a Páscoa, que
marca a saída de Moisés do Egito, passando pelo Holocausto e pela
Guerra de Independência, até a Declaração de Independência de
Israel, construindo nessa sobreposição de festas uma relação entre
as perseguições, o antissemistismo e a necessidade de criação de
um lugar de abrigo, um lar para os judeus. Mas servem, sobretudo,
segundo Leibowitz, para justificar as políticas e ações de Estado, na
medida em que a necessidade da existência de Israel se confunde
com os governos e políticas praticadas. Para mostrar isso, Sivan
se detém longamente na comemoração da Páscoa numa classe
do maternal, na qual as crianças escutam os relatos sobre as
perseguições, os sofrimentos e a saída do Egito. A câmera espia o
que se passa na sala de aula e em séries subsequentes com as festas
seguintes, deixa aparecer o caráter emotivo e pouco racional das
comemorações nos diferentes graus da escola e em família: num
sistema repetitivo e reiterativo em que se conforma a identidade
como povo perseguido, isolado que precisa se proteger contra os
inimigos. Ontem como hoje. A essa sucessão de emoções pouco
racionalizadas, revividas a cada ano na escola e reiteradas — a maior
delas, com a visita ao Museu do Holocausto —, segue justamente a
grande e alegre comemoração da Independência de Israel, solução
das perseguições e fecho radioso do triste destino. Portanto, o que
fica como mensagem reforçada a cada ano pelas comemorações é a
necessidade de existência do Estado com a sua política vigente que
mantenha Israel, o lugar dos perseguidos. Assim, da necessidade
justa da existência de um Estado autônomo passa-se à justificativa
da manutenção de uma política de Estado, mas também da
conformação de uma identidade pelo isolamento dos outros povos.

É em Jaffa, a mecânica da laranja, de 2009, que esse


procedimento é ainda mais intenso. A escolha do título, evocando
o filme de Stanley Kubrick, não é gratuita, pois é de violência
que se trata, como se poderá ver. O documentário é expositivo,

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

organizado a partir de vasto material de arquivo, como fotos, filmes,


propagandas, rótulos e imagens várias, que são comentados por
historiadores, pesquisadores de imagens e pintores, assim como
agricultores envolvidos com o cultivo de laranjas, sempre palestinos
e israelenses, acompanhados de músicas das épocas enfocadas.
Partindo desse vários testemunhos, que muitas vezes contrapõem
diferentes pontos de vista, Sivan reconstrói a história de Jaffo,
um importante porto palestino, e de suas perfumadas laranjas,
que eram dali exportadas para a Inglaterra9, lembrando não só o
9. Os ingleses ocupam a Palestina a colonialismo de que são parte mas também o orientalismo que
partir de 1917. recobre a imagem desse produto e desses lugares, vendidos como
exóticos desde o século XIX. Ao contrário disso, a Israel sionista
vai se constituir sobre o mito da modernidade — o Ocidente no
Oriente —,, do progresso e dos esforços que levam ao desértico
Oriente a fertilidade e o esplendor de um passado longínquo. Isso
significava dizer que até o início do século XX, quando começa
o retorno de populações judaicas, as terras eram virgens, ou que
ninguém se ocupava convenientemente delas. Assim, as laranjas
Jaffa são o resultado, a prova do sucesso desse árduo e necessário
trabalho. Corroborando essa imagem de uma terra que clamava pelo
seu resgate, desde 1840, um ano depois da invenção da fotografia,
fotógrafos europeus enquadravam paisagens supostamente bíblicas
como desérticas, mostrando assim a necessidade de conquista. As
imagens produzidas pelo sionismo décadas mais tarde vão projetar
a ideia dessa arrancada: nos filmes, as propagandas se constroem
como num western, com tratores revolvendo a terra, muitas imagens
em contra plongée, imagens próximas também à retórica dos filmes
soviéticos, caros aos sionistas trabalhistas.

No entanto, como o filme vai mostrar, o cultivo das laranjas era


anterior à instalação do Estado judeu e contou com a colaboração
de muçulmanos, cristãos e judeus que conviveram na atividade,
não sem conflitos, mas chamando a atenção para uma cooperação
que foi possível, e até mesmo para um reconhecimento mútuo que
deixa de existir a partir de 1948. E, como lembra um agricultor
10. Jaffo foi destruída na guerra
de 1948 e transformada em um palestino, “toda a Palestina exportava laranjas com o nome de Jaffa.
bairro de Tel Aviv. E hoje não há mais nenhuma laranja em Jaffo”10.

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Segundo os testemunhos de israelenses e de palestinos que


trabalhavam na atividade, a instalação do Estado judeu em 1948
coloca um ponto final na convivência. Apenas 5% dos palestinos
ficam em suas terras (os outros saíram, foram expulsos...). Os
laranjais tornam-se propriedade do Estado. Um antigo proprietário
palestino torna-se empregado nas suas próprias terras, agora
apropriadas por Israel, assim como as laranjas Jaffa, que se tornam
o emblema do novo Estado ensolarado e seu principal produto
de exportação. Nas propagandas sionistas podem-se ver homens e
mulheres jovens que colhem laranjas usando shorts e mostrando
corpos esbeltos, enquanto mulheres cobertas da cabeça aos pés —
imagem de palestinas — carregam fardos. A ideia da modernidade
contra o atraso é reforçada e viaja mundo afora junto com as laranjas
Jaffa. E a história da tragédia palestina, da Nakba, do êxodo e de sua
própria existência naquelas mesmas terras é apagada. Essa história,
essa convivência que foi possível foi enterrada. O reconhecimento
da existência do outro, negada.

Na mecânica da laranja, como se vê, houve muita violência,


uma violência que se construiu pela usurpação, mas, sobretudo
pelo apagamento da existência do outro, pela sua imagem como
negativa, atrasada. E é isso que o filme capta, ainda que se deva
chamar a atenção para certo maniqueísmo de Sivan quanto
à apresentação desprovida de conflitos entre os palestinos,
contra a violência simbólica ou concreta, sempre unívoca nos
documentos israelenses.

Assim, pode-se criticar em Eyal Sivan um partidarismo, até


mesmo pela falta de documentos palestinos que pudessem dar uma
ideia da imagem que eles construíam sobre os judeus que vinham se
instalando ali desde 1917, com o Mandato Britânico. As imagens,
assim como a história palestina, estão espalhadas, enterradas
e é justamente essa falta da imagem palestina que dá à imagem
israelense a sua força e preponderância no imaginário. Como
lembra Ilan Pappe, é justamente pela falta de arquivos palestinos
sobre a Nakba que relatos orais são indispensáveis, mas também os
próprios arquivos israelenses sobre a guerra de 1948 (2012).

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

Ora, se os arquivos israelenses contêm a história da catástrofe


palestina, como mostraram as obras dos novos historiadores,
é chegado o momento de registrar não apenas os relatos
dos palestinos que há décadas expõem, com sua errância e
segregação, as várias faces e a dolorosa progressão desse processo
mas também os combatentes israelenses que ainda estão vivos, o
Outro dessa catástrofe.

Desde 2005 Sivan vem entrevistando ex-combatentes


israelenses dessa guerra. Os perpetradores, como prefere
denominá-los. Fazendo a diferenciação proposta por Primo
Levi (2000) entre as testemunhas e os perpetradores, aqueles
que lutaram do lado vencedor, vem procurando, através deles, o
discurso do poder. As formas do conflito, as razões. A lógica que os
mobilizava. Os relatos sobre as expulsões, a violência. Em 2012,
várias dessas entrevistas constituíram o acervo Rumo a um arquivo
comum – Palestina 1948, que se configurou numa exposição em
Tel Aviv, num pacote de DVDs com esses testemunhos, e num
site na internet com parte dessas entrevistas11, cuja edição foi
11. Disponível em: <http://
financiada pela Zocrot, uma organização não governamental que
www.youtube.com/user/ trabalha em Israel pelo reconhecimento e reparação da tragédia
towardcommonarchive/videos>. palestina12, pela universidade de East London e pelo Arts and
Acesso em: 16 fev. 2013. Humanities Research Council.

Sivan ainda não se preocupa com reparações. Sabe que


fazer filmes é produzir documentos, uma memória contra o
12. Disponível em: <http://zochrot.
org/en>. Acesso em: 16 fev. 2013. esquecimento. Com isso, “quer formar uma base para a verdade,
sem a qual uma futura reconciliação não poderá ocorrer”
(SILVER, 2012).

Por isso, propõe mudar o foco. O documentário tradicionalmente


ouve a vítima e com ela salva o espectador que, ao participar desse
ritual confessional (e pactuar com ele) que Sivan define como
cristão, de fazer o outro falar, assevera ao espectador o seu papel de
alguém que está do lado certo. Essa mudança de perspectiva deve
mudar também o lugar do espectador. Interrogá-lo para saber o que
faria e saber afinal, segundo Sivan, o que você é? (SILVER, 2012).

Ouvir o perpetrador não só confirma aquilo que a vítima já


disse como mostra as ações da perspectiva de quem as praticou.

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Dossiê - História e Audiovisual

Para Sivan, não se trata de dar lugar às justificativas. Ao contrário,


trata-se de ouvir o discurso do poder e da força para que o
espectador possa entender sua mecânica. Não a dor da vítima que
sempre encontra a compaixão do espectador reiterando o aspecto
melodramático e a teatralidade do documentário testemunhal,
mas o discurso, e, podemos acrescentar, as contradições daquele
que domina pela força. É só a partir do conhecimento amplo
sobre esses testemunhos que, segundo Sivan, se poderá chegar a
um reconhecimento de ambas as partes:

Há a narrativa sionista e a narrativa palestina, como se


as duas pudessem coabitar. Para sair do conflito —
conflito de memória, o conflito sobre a história — o
único caminho é encontrar uma narração conjunta. [...]
Os depoimentos dos perpetradores serão acompanhados
pelos testemunhos dos palestinos e, assim, poderemos
chegar a uma narrativa que se baseie em uma história que
seja reconhecida como comum a ambos. Ser capaz de
concordar que uma história comum implica algo para o
futuro, como um Estado comum (SILVER, 2012).

Rumo a um arquivo comum

Nos relatos reunidos no site, estamos diante de homens de em torno


de 85 anos, nascidos em Israel ou fugidos da Europa na Segunda
Guerra. São pessoas que em sua maioria vivem em kibutzim, como
viveram na época dos fatos que vão narrar. Isso significa que em sua
maioria eram socialistas ou comunistas, e pertenciam às brigadas
armadas da Haganá e do Palmach, que vão depois constituir
o exército regular de Israel. São relatos diante de uma câmera
fixa, com o entrevistador oculto, que interpela. Os homens estão
sentados em sofás, na mesa da cozinha. Tinham em torno de 18
a 20 e poucos anos. Essas informações aparecem na tela no início
de cada depoimento e informam o nome, a data de nascimento, o
grupo armado e o lugar onde atuaram. Registram também a data
da gravação e a duração original dos depoimentos, que têm em
geral de 50 a 90 minutos, e o tempo de edição, que é de cerca
de 15 minutos, superior ao que se pode ver no site. O relato mais
interessante está na íntegra. É de Binyamin (Roski) Eshet.

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

Eles falam:
Amós Harpaz relata a saída de palestinos de uma cidade
próxima ao kibutz onde vivia. Recorda-se com pesar da
massa de gente que saía em fila. Sivan pergunta o que ele
achava daquilo:

— Eu era do Hashomer Hatzair13, que acreditava em um


Estado binacional... Ficamos com mais terras, mas não
13. Partido sionista chalutziano
foi intencional, foi um resultado da guerra.
(favorável à vida nos kibutzim), de
tendência comunista. Avir Ya´ari:

S.: — Quem disse para eles saírem?

A.: — O exército israelense.

S.: — Como foram evacuados?

A.: — Em caminhões. Entrávamos, e eles fugiam.


Fugiam de medo dos judeus por causa de Deir Yassin.
Tinham muito medo.

Dov Haklay:

— Tínhamos que limpar a área. Entramos em várias


comunidades árabes, não para conquistá-las. Passávamos
através da população, e eles não ofereciam resistência. Eu
patrulhava para ter certeza de que a área estava limpa,
limpa de árabes. Eu me lembro de um lugar onde
tivemos que usar a força para retirá-los. Não me lembro
do nome. [...] não iríamos fazer guerra com eles, mas, se
não saíssem, teríamos que atacar. Então eles saíram. Mas
eles não queriam sair. Eles explicavam que tinham terras,
culturas e não queriam abandoná-las. Era muito triste.

Shmuel e Bat Sheva Grosfeld, poloneses que fugiram da


guerra:

Shmuel: — Eu não queria essa guerra, mas aconteceu, e


eu acho que foi bom para os sobreviventes do Holocausto
em particular. Toda essa coisa do Holocausto ficou para
trás e, à frente, o futuro, a construção do nosso lar. Foi
como se tivéssemos renascido aqui.

Bat Sheva: — Aqui é a nossa casa e protegemos a nossa


casa. Não ficou nada para nós lá atrás. Perdemos tudo.

Shmuel: — Tento pensar no que aconteceu, no


significado disso.

Dubi Goldshmit:

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Dossiê - História e Audiovisual

— Ver uma caravana enorme de gente saindo não é coisa


boa de ver. É difícil. Mulheres, crianças, gente de todas as
idades, animais, e de repente eles desapareciam para um
futuro incerto. Seus irmãos não os aceitavam. O campo
de refugiados está aí até hoje. Não vamos nos meter nessa
história. Eles usam os refugiados como uma arma contra
nós. Isso é uma outra história.

Sivan pergunta a Micha Lin o que quer dizer limpar a


região:

— Tornar a coisa de uma forma que não queiram ficar ali.

S.: — Como fazer isso?

M.: — É mais fácil do que você pensa. Depois eles saíram


e não era coisa bonita de ver. Primeiro era de noite, depois
houve um tiro. Nós não atiramos. Acho que foram eles.
Depois eles se foram na direção de Jenin, e tudo acabou
para nós. Começava um novo período.

S.: —Vocês se alegraram?

M.: — Não, guerra é guerra, e nós estávamos lutando


pelas nossas vidas.

Binyamin (Roski) Eshet: — Alguém obrigou os palestinos


a cavar fossas onde depois pessoas foram mortas e
enterradas. Foi horrível, mas eu estava lá, sim. Pessoas se
apoderaram dos bens das pessoas expulsas. Mas eu não.

Lembra-se com pesar, emoção.

Os trechos das entrevistas no site têm de 4 a 15 minutos e se


detêm no testemunho sobre a responsabilidade dos combatentes,
a sua forma de participação. Os relatos, tais como estão editados,
correspondem aos momentos cruciais de que participaram. São
como confissões, ainda que poucos admitam a própria participação
em ações que descrevem atos de grande violência. Sempre foi outra
pessoa, embora por vezes afirmem que mataram pessoas e que não
se esquecem disso. Todos sem exceção se referem a limpar a área,
limpar a área de árabes, depois eles fugiram, foram expulsos e depois
as casas foram demolidas. E depois ficamos felizes, ficamos aliviados.
Começava uma nova vida para nós.

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

Sivan direciona os relatos com suas perguntas, interpela e


interrompe o fluxo das lembranças que trazem também sentimentos
contraditórios, pesar, ainda que esse não seja o afeto buscado, que
se pode ver pela edição.

Enquadrando perpetradores

Enquadrando perpetradores (framing perpetrators) é como Sivan


nomeia esse exercício de filmar o executor. E enquadrar tem mais
de um sentido, pois significa colocar em quadro numa filmagem,
mas também determinar o crime, deter para averiguações, conforme
o Houaiss, dar castigo, punir, tornar obediente, sensato; pôr nos eixos;
disciplinar. Suas imagens estão fazendo isso. Estão enquadrando os
velhos senhores como cúmplices de atos passíveis de julgamento.
Os espectadores tomam o lugar de juízes ou daqueles que
encontram justificativas para absolvê-los, para minorar o alcance
e o sentido desses crimes, até que os depoimentos tenham uso
formal e judicial. Dever de memória para com os palestinos e para
com a história israelense. É para isso que estão sendo preparados.
Entretanto, isso ainda não parece muito próximo, uma vez que, em
Israel, a exposição na qual se mostravam esses filmes teve pouca
repercussão. Na mídia14, só chamou a atenção de um repórter de
um jornal de direita, que criticou o evento e o material, o que
14. Disponível em: <http://eyalsivan.
info/index.php?p=elements1&id=4# demonstra a absoluta rejeição ao tema, a cegueira completa,
&panel1-5>. Acesso em: 16 fev. 2013. apesar dos depoimentos explosivos que contém. E a própria
noção de real é mais uma vez questionada. Diante da guerra de
memórias, da imposição e hegemonia das narrativas, de que vale
então a imagem? O testemunho? Não mudam nada?

Os opositores sempre poderão dizer — como fizeram — que os


depoimentos estão a serviço da causa e, sobretudo, da propaganda
palestina Pode-se objetar, no entanto, que estão excessivamente
editados, uma vez que esses senhores que falam de livre e espontânea
vontade estão produzindo materiais que os incriminam. Assim,
seria conveniente ter a íntegra dos depoimentos , ainda que, como
lembra Sivan, não se trata de produzir justificativas.

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Temos aqui uma ação militante em mais de um sentido. Ela


se configura como o reverso do relato da vítima. Mas é também
o caminho para o reconhecimento do outro, gesto fundamental
para algum vislumbre de paz. Para a recuperação da memória
e história palestinas, e até quem sabe para uma reparação. Um
uso deliberado e consciente de tomar o cinema como arquivo de
memórias para constituir uma outra história, quem sabe comum,
como prega Sivan.

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Israel: Nova história e cinema pós sionista | Sheila Schvarzman

Referências

BEN-SHIMON, C. “Benny Morris on why he’s written his last


word on the Israel-Arabconflict”. Haaretz, 20 set. 2012.

FLAPAN, S. The birth of Israel: myths and realities. Londres:


Croom Helm, 1987

GRESH, A. De quoi la Palestine est-elle le nom? Paris: Les liens qui


libèrent, 2010.

LEVI, P. É isso um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

MORRIS, B. The birth of the Palestinian refugee problem: 1947-


1949. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

__________. “Survival of the Fittest”. Haaretz Maganize, 9 jan. 2004.

PAPPE, I. Britain and the Arab-Israeli conflict: 1948-1951. Londres:


Taurus, 1988.

__________. “A common archive of the future”. In: Towards an


archive. Vídeo Testemonies of Zionist Fighters in 1948. Tel Aviv:
Zochrot, 2012.

SAID, E. Orientalismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

SILVER, C. “Against forgetting: an interview with Eyal Sivan”. Al


Jazeera.com, 12 nov. 2012. Disponível em: <http://www.eyalsivan.
info/index.php?p=elements2&id=26#&panel1-3>. Acesso em: 16
fev. 2013

TOUBIANA, S. Amos Gitai: percursos, exílios e territórios. São


Paulo: Cosac Naif, Mostra Internacional de Cinema de São
Paulo, 2004.

VIDAL, D.; BOUSSOIS, S. Comment Israel expulsa les palestiniens


(1947-1949). Paris: Atelier, 2007.

submetido em: 30 jul. 2013 | aprovado em: 14 out. 2013

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///////////////////
A via chilena em debate:
análise de Compañero
presidente (1971) e El
diálogo de América (1972)

Ignacio Del Valle Dávila1

Carolina Amaral de Aguiar2

1. Doutor em Cinema e mestre em artes do espetáculo e mídia, ambos


pela Université Toulouse 2. Graduado em jornalismo pela Universidad
Católica de Chile. Atualmente, realiza um pós-doutorado em História
pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

2. Doutora em história social pela Universidade de São Paulo, com estágio


doutoral realizado no Iheal (Institut des Hautes Études de l’Amérique
latine, Paris 3). Mestre em estética e história da arte e graduada em história,
também pela USP. E-mail: [email protected].

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Resumo
Compañero presidente (Miguel Littin, 1971) e El diálogo de América
(Álvaro Covacevich, 1972) oferecem visões complementares sobre
o primeiro ano do governo da Unidade Popular (1970-1973).
Nesses filmes, Allende é confrontado por dois defensores da luta
armada: Régis Debray e Fidel Castro. Embora o objetivo seja
mostrar a via armada e a via democrática como estratégias distintas,
mas confluentes, ambos deixam transparecer as tensões ideológicas
levantadas na esquerda pela experiência chilena.

Palavras-chave
Unidade Popular, documentário, revolução, Chile films,
democracia.

Abstract
Compañero president [mate president] (Miguel Littin, 1971) and El
diálogo de América [the America’s dialogue] (Álvaro Covacevich,
1972) present complementary views about the first year of the
Popular Unity’s government (1970-1973). In these films, two
defenders of the armed struggle confront Allende: Régis Debray
and Fidel Castro. Although the goal of the film is to show the via
armed and the democratic way how two different strategies, but
confluents, both let on the ideological tensions emerged in the left
after the Chilean experience.

Keywords
Popular Unity, documentary, revolution, Chile films, democracy.

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
Ignacio Del Valle Dávila e Carolina Amaral de Aguiar

O primeiro ano do governo de Salvador Allende enfrentava


dificuldades que se acirrariam cada vez mais ao longo dos três em
que a Unidade Popular3 esteve no poder no Chile. Por um lado, a
experiência chilena atraía os holofotes das esquerdas internacionais,
3. A Unidade Popular era uma
coalizão de esquerda formada vista como uma inovadora aliança entre socialismo e democracia,
pelos partidos comunista, um projeto que procurava “[...] trabajar desde el interior del aparato
socialista, radical, socialdemocrata estatal previamente existente, buscando acumular fuerzas [...]” para
e pelo Mapu.
preparar o caminho para uma revolução no Chile (MOULIAN,
2005, p. 37). Por outro, gerava descontentamento nos setores
conservadores do próprio país e também no eixo capitalista em
tempos de Guerra Fria.

Apesar desse contexto conturbado, a figura de Allende ampliava


sua visibilidade internacional em 1971. Políticos, artistas e
intelectuais de vários países visitaram o Chile para ver de perto um
processo de transformação social que se apontava como um possível
modelo para o campo da esquerda. Porém, dentro desse campo,
havia também um debate sobre se seria viável empreender uma
revolução socialista sem romper com as instituições capitalistas
instauradas, bem como se a Unidade Popular poderia se manter no
poder independente de uma política armada.

Diante desses impasses, o cinema serviu a uma tentativa de


legitimação das estratégias e das escolhas da Unidade Popular
e de seu principal líder. Apesar de esse governo não ter criado
uma instituição cinematográfica de acordo com seus objetivos
revolucionários — como havia feito a Revolução Cubana com

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o Icaic (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos)


—, delegou à empresa estatal Chile films a função de uma porta-
voz dos interesses da UP. Foi essa empresa a responsável por dois
documentários, rodados em 1971, que trouxeram entre seus
protagonistas Salvador Allende: Compañero presidente (Miguel
Littin, 1971, 70 min.) e El diálogo de América (Álvaro Covacevich,
1972, 55 min.).

Essas duas produções colocaram Salvador Allende frente a


frente com outras figuras que eram referência para as esquerdas
europeias e latino-americanas: Régis Debray e Fidel Castro. Vale
destacar, porém, que ambos haviam conseguido tal legitimidade
pela defesa — teórica e prática — da luta armada como forma
de chegar ao socialismo. Allende, por sua vez, emergia como
uma opção aos revolucionários, corroborando a tese hegemônica
nos partidos comunistas desde o final dos anos 1960 de que a via
eleitoral seria a mais segura e adequada para a transformação social.
Portanto, os dois documentários aqui analisados se propõem a ser
um veículo de legitimação do presidente chileno, ao mesmo tempo
que o submetem a um caloroso debate no interior das esquerdas.

Compañero presidente (1971, 70 min.) foi um dos primeiros


filmes da Chile films após da chegada da UP ao poder. Essa produção
foi montada a partir de uma série de entrevistas que Régis Debray
fez a Allende entre 4 a 6 de janeiro de 1971, quando o presidente
estava havia somente dois meses no cargo. Miguel Littin e a equipe
da estatal registraram as conversas com uma câmera e com um
equipamento de som direto. A autoria do filme aparece indicada no
documentário por meio de um único intertítulo, que utiliza uma
linguagem adequada à ideologia da coalizão de esquerda: “una
película realizada por los trabajadores de Chile films”.

Apesar disso, o filme não foi uma iniciativa da Chile films,


mas concebido por Allende e Debray, inserindo-se em um
projeto de promoção e discussão da Unidade Popular. Vale
recordar que, na América Latina e em países como França e
Itália, a via eleitoral seguida por essa aliança chilena começava
a consolidar-se como uma referência a ser seguida. As entrevistas
foram publicadas na forma do livro Entretiens avec Allende sur

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
Ignacio Del Valle Dávila e Carolina Amaral de Aguiar

la situation au Chili (DEBRAY, 1971); e, naquele mesmo ano,


a revista chilena Punto Final dedicou um número especial a
esse documento (Punto Final, 1971), destinado tanto ao público
chileno como ao latino-americano.4
4. Após o golpe de Estado, em O encontro de Debray com Allende reunia duas figuras de
1973, Chris Marker reeditou esquerda reconhecidas internacionalmente, que propunham
o documentário de Littin para
fazer On vous parle du Chile,
estratégias opostas para a chegada ao poder. O livro de Debray,
no qual evocava o discurso de ¿Revolución en la revolución? (1967), era — ao lado de La guerra
Allende e visava contribuir para os de guerrillas (1960) e do ensaio Crear dos, tres… muchos Vietnam
movimentos de solidariedade que se (1967), ambos de Ernesto Guevara — uma das teorizações mais
formavam na Europa.
importantes sobre o foco insurgente, que nessa época emergia como
a principal tática de luta armada na América Latina. O mesmo
Debray havia participado da experiência de Guevara na Bolívia,
onde foi preso em 1967. Uma campanha internacional conseguiu
sua libertação e sua expulsão da Bolívia, em 23 de dezembro de
1970. Em seguida, se dirigiu ao Chile, onde foi convidado por
Allende para passar o Natal e o Ano Novo em sua companhia. O
francês estava havia menos de duas semanas em liberdade quando
foi iniciada a rodagem de Compañero presidente.

O título do filme faz referência à forma com que a esquerda


começava a dirigir-se a Allende, como ele mesmo explica na
primeira sequência: “a mí me dijeron siempre el compañero
Allende, hoy me dicen el compañero presidente. Claro está que yo
peso la responsabilidad que eso significa”. Essa alcunha se referia
tanto ao seu cargo institucional como ao seu caráter revolucionário.
Procurava-se, assim, unir a solenidade da primeira magistratura da
nação com a proximidade do “companheiro” de lides políticas.

As principais locações ajudam a relacionar essas duas dimensões.


A primeira parte da entrevista desenvolve-se na residência particular
de Allende, no setor de Las Condes, cujo espaço burguês é repleto
de referências à sua militância política — livros de teóricos de
esquerda, um grande retrato de Ho Chi Minh etc. —, elementos
que o próprio Allende apresenta para Debray e para a câmera. A
segunda parte situa-se principalmente no palácio de Cerro Castillo,
em Viña del Mar, residência de veraneio dos chefes de Estado.
A passagem de um espaço a outro é representada, na metade do

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filme, em uma sequência a bordo de um helicóptero das Forças


Armadas, em que Allende, Debray e a equipe de filmagem dirigem-
se a Viña del Mar. O documentário evidencia, ao juntar esses
três espaços, não só a chegada de um marxista-leninista ao poder
senão também sua inserção nas instituições e no aparato do Estado.
A união das facetas de militante e presidente, destacada para
caracterizar Allende, sintetiza o projeto com o qual a UP iniciava
o seu governo: estabelecer as bases de uma revolução marxista no
Chile, respeitando as estruturas das democracias ocidentais. Um
projeto revolucionário que se levava a cabo sem a destruição prévia
do Estado burguês.

O encontro entre Allende e Debray esteve longe de ser uma


apologia da Unidade Popular. No filme, Debray desempenha o papel
de contraparte frente ao presidente e projeto democrático chilenos,
não só por sua função como entrevistador como também por sua
condição prévia de teórico da luta armada. O intelectual francês
— que se autodefine como um “provocador” — utiliza em suas
perguntas um tom direto, em algumas ocasiões conscientemente
polêmico. O debate caracteriza-se pela radicalidade das diferenças
de projeto expostas, o que conduz a uma tensão evidente entre a
atmosfera esperançosa que Allende procura valorizar e o ceticismo
a respeito do processo político da UP manifestado por Debray.

Na primeira sequência, já citada, Debray revela certa surpresa


diante da condição dupla de Allende como militante e chefe de
Estado. A câmera os enquadra sentados na mesa de trabalho do
mandatário, na sua residência particular. O francês, encarando-o,
sugere-lhe que sua militância pode ser incompatível com as
estruturas de uma democracia burguesa: “¿Cambia el militante
cuando es jefe de Estado?”. A resposta de Allende expressa certa
cautela: “No, yo creo que el jefe de Estado, que es socialista, sigue
pensado como tal. Eso sí que su actuación tiene que estar de
acuerdo con la realidad”. Como é possível perceber, a “realidade” à
qual ele se refere, de forma ambígua, poderia limitar a capacidade
de ação do presidente. Debray se apressa em concordar com seu
entrevistado, porém suas palavras indicam uma advertência velada:
“Yo lo creo también y creo aún que es una gran novedad eso. Que

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
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un socialista, estando en el poder, se quede [continúe] socialista


y haga socialismo”. Na seguinte sequência, o filme trata de
abafar as dúvidas que essa afirmação poderia gerar no público.
Assim, a intervenção do francês é sucedida por uma montagem
de fotos de arquivo na qual se vê o jovem Allende desfilando com
o uniforme dos milicianos do Partido Socialista, recordando os
longos anos do líder chileno como militante. As imagens são
musicalizadas com o hino desse partido, a Marsellesa socialista5.
5. Trata-se de uma adaptação da
Apenas depois disso aparece o título da produção sobre um
melodia do hino francês com uma fundo negro: “Compañero Presidente”6.
letra em espanhol.
As sequências descritas sintetizam a tensão que caracteriza
o filme. Diante da relutância do francês, o presidente buscou
6. O filme ressalta a militância legitimar a estratégia de partir do Estado a realização da revolução.
socialista do presidente em De sua parte, Littin reforça a fala de Allende por meio da introdução
detrimento do seu papel de líder da
de sequências, realizadas com material de arquivo, que matizam ou
coalizão de partidos. No entanto,
com o passar dos meses, a estratégia contradizem os aspectos mais críticos do discurso de Debray.
do Partido Socialista se distanciou
As reflexões do francês se expressam nas perguntas diretas e sob a
daquela de Allende. O presidente
acabou recebendo um maior forma de digressões que eclodem algumas vezes no documentário,
apoio do Partido Comunista, que interrompendo o diálogo entre o presidente e seu entrevistador.
defendia uma política de mudanças Nelas, Debray se interroga sobre a experiência chilena e, em
graduais, que assentariam as bases
algumas ocasiões, explica as particularidades desse processo com
para uma revolução.
uma linguagem marcadamente didática.

É interessante notar como Littin estrutura as passagens nas


quais Debray se mostra mais crítico com o processo político que
testemunha. Na primeira metade do filme, as reflexões em voz
over do entrevistador são acompanhadas por imagens em que ele
é visto sempre de costas, subindo em um automóvel e dirigindo-
se à residência de Allende. O realizador utiliza recortes de jornais
cujas manchetes mostram a agitação gerada pela recente chegada
de Debray ao Chile. Seu próprio sotaque expõe uma condição de
estrangeiro. O intelectual é descrito, assim, como um forasteiro
que vai conhecer o presidente. Apesar de seu prestígio, a validez
de seus julgamentos em over se torna relativizada, se converte em
impressões de um recém-chegado. As palavras de Debray também
são matizadas por fotografias de arquivo e da banda sonora.

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Um exemplo disso é a reflexão de Debray sobre o posicionamento


de Allende diante da luta de classes:

¿Pero quiere [Allende] que avance una revolución?


Aunque no es así que la cuestión se presenta. ¿Puede de
verdad hacer una revolución? ¿Acepta la lucha de clases
hasta lo último? ¿Aceptaría él romper todo este aparato,
estos moldes, estas instituciones que lo han llevado
a él allá donde está? Porque si es presidente es que ha
jugado las reglas del juego institucional, del juego de una
república burguesa.

Enquanto se escuta a voz de Debray, aparece na tela um exemplar


de La nación com a foto de Allende e uma manchete: “Se
nacionalizan minas de carbón de Lota-Schwager”. Em seguida,
se sucedem imagens do presidente chileno de diferentes épocas,
em comícios eleitorais, conferências e próximo às massas. Essa
passagem descreve visualmente sua trajetória política desde o
início. As fotografias foram tiradas em fábricas, zonas rurais,
edifícios públicos e luxuosos escritórios. Por meio de sucessivos
zooms in, a câmera centra-se no rosto de Allende. Sua expressão
é predominantemente séria e decidida, mostrando-o como um
homem de ação acostumado tanto às esferas do poder como à
proximidade com o povo. A sequência termina com fotos do líder
da UP dirigindo-se a uma multidão, que são acompanhadas do hino
da Central Única de Trabalhadores (principal sindicato do país),
cuja letra reivindicava de maneira explícita a luta de classes:

Yo te doy la vida entera

te la doy, te la entrego compañera,

si tu llevas la bandera,

la bandera de la CUT.

[…]

Todos juntos codo a codo a batallar

por trabajo, por la vida y por el pan,

en la lucha cotidiana y sin cuartel

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
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se concreta la unidad.

Generales y gerentes de burdel

que trafican con el hambre popular,

los bandidos de la multinacional

con el pueblo se han de ver.

[…]

Enquanto a voz over de Debray explica que Allende chegou à


presidência graças ao respeito às regras da burguesia, o hino da CUT
e a montagem de imagens fixas lançam uma mensagem oposta:
Allende havia chegado ao poder devido o apoio do proletariado, e
seu projeto se baseava em uma tradição inscrita na luta de classes.
Nesse sentido, percebe-se no decorrer do documentário uma
tentativa tanto do presidente como de Littin de mostrar a UP como
o resultado de um processo político de longa data, do qual fizeram
parte as lutas operárias do início do século XX e do governo de
Pedro Aguirre Cerda — a primeira Frente Popular do Chile (1938-
1941) —, de quem Allende foi ministro. Assim como o líder da
Unidade Popular, o governo de Aguirre Cerda é avaliado como
uma experiência válida em seu momento histórico, e que ainda
não havia sido superada pela Unidade Popular.

Além disso, Allende destaca seus vínculos pessoais com o


comando da Revolução Cubana. Enquanto a câmera recorre as
estantes de seu escritório, mostrando fotografias de Ernesto Guevara,
Raúl e Fidel Castro, o presidente relata sua visita a Cuba, em
janeiro de 1959. Ele narra seus primeiros encontros com esses três
líderes e mostra a Debray um exemplar de La guerra de guerrillas,
de Guevara, com a seguinte dedicatória: “A Salvador Allende, que
por otros medios trata de obtener lo mismo”. Essas palavras, lidas em
voz alta pelo presidente, sintetizam uma das mensagens que o filme
promove: a via chilena e a cubana não são contraditórias, e sim duas
estratégias distintas para o estabelecimento de um Estado socialista,
adequadas a contextos históricos particulares. Significativamente,
somente depois de Allende mostrar sua proximidade com essa
outra revolução, são intercaladas as imagens que mostram Debray
chegando de carro à residência do presidente e sendo recebido com

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um afetuoso abraço. A viagem do estrangeiro que vai conhecer o


mandatário revolucionário se transforma em uma metáfora da
confluência de duas vias revolucionárias.

A construção do filme difere, nesse aspecto, do livro de Debray.


Littin centrou-se na tese de que o objetivo da UP e da Revolução
Cubana eram similares, e não incluiu as perguntas mais incômodas
feitas a Allende — ou seja, aquelas em que Debray afirma que na
América Latina o presidente chileno era citado como um exemplo
para a esquerda que se opunha ao guevarismo e ao castrismo. Por
outro lado, apesar do esforço de Compañero presidente em aparar as
arestas, evidenciam-se as diferenças teóricas e a tensão estabelecida
entre Allende e seu interlocutor.

Uma boa parte das perguntas de Debray questiona o caráter


revolucionário da Unidade Popular: ele compara o socialismo de
Allende com uma social-democracia, indaga se suas medidas não
são só reformismo e duvida das diferenças reais com a experiência
da Frente Popular chilena. Durante os intercâmbios mais tensos,
Littin inclui no campo visual os fotógrafos, técnicos de som e
assistentes que rodeiam os protagonistas. Com isso, revela o caráter
“construído” da conversa, permitindo uma distância crítica maior
diante dela.

Na sequência final de Compañero presidente, Allende e Debray


caminham pelo quintal do palácio presidencial, em frente ao
oceano. Já não estão confrontados, cada um em um extremo da
mesa, mas passeiam na mesma direção. A ideia da confluência das
distintas vias volta a ser evocada por Allende, que incorpora uma
defesa da condição revolucionária da UP:

Cada pueblo tiene su propia realidad y frente a esa


realidad hay que actuar, no hay recetas. Y el caso nuestro
por ejemplo abre perspectivas, abre caminhos; hemos
llegado por los causes electorales. Aparentemente se
nos puede decir que somos reformistas, pero hemos
tomado medidas que implican que queremos hacer la
revolución, es decir, transformar nuestra sociedad, vale
decir, construir el socialismo. [...] Yo he dicho antes
de nuestra victoria que la lucha revolucionaria puede
ser el foco, el ejército armado, la guerra del pueblo, la

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
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insurgencia y el cauce electoral, depende del contenido


que se le dé. En algunos países no hay otra posibilidad
que la lucha armada, donde no hay partido, donde no
hay sindicato, donde hay dictadura, quién va a creer en
la expectativa electoral.

Apesar de Debray atenuar seu ceticismo em suas últimas


intervenções, ele não abandona sua função autodefinida de
“avaliador” do processo político chileno. “Su respuesta me
convence”, diz a Allende em um dado momento, evidenciando
claramente esse papel. Esse posicionamento do francês tece, ao
longo do filme, uma incômoda sensação de que o chefe de Estado
teve de passar por um “teste revolucionário” ante a um agente
externo particularmente crítico.

Esse incômodo fez-se presente no círculo mais próximo do


mandatário. Sua filha Beatriz Allende, que participou da rodagem,
manifestou em uma carta ao presidente do Icaic, Alfredo Guevara,
sua insatisfação em relação a Debray:

[…] creo que Littin hizo un buen trabajo, pero a la


película le encuentro algunas objeciones que, en fin,
algún día las conversaremos. Creo que Régis aparece
en forma exagerada en el papel aparente de ser juez
para decidir si éste es o no un proceso revolucionario
(GUEVARA, 2009, p. 233).

Em 1967, Debray havia escolhido para sua teoria sobre o foquismo


revolucionário o título ¿Revolución en la revolución?. Em 1971,
o intelectual francês refaz essa pergunta à experiência chilena.
Porém, o signo da interrogação deixa de ser um recurso retórico
para condensar um real questionamento: a experiência chilena é
verdadeiramente uma revolução na revolução? Trata-se, de fato, de
um presidente “companheiro”?

Essas questões seguem presentes em El diálogo de América, de


Álvaro Covacevich. Esse outro documentário retoma indagações
do filme de Littin, especialmente o debate entre a opção pelas
distintas vias ao socialismo e a relação entre um governo socialista

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e as instituições burguesas anteriormente instauradas. Se em


Compañero presidente Allende se deparava com um europeu
“provocador” e teórico do caminho insurrecional, nessa nova
produção, o presidente tem ao seu lado nada menos que
Fidel Castro. No entanto, conforme o título anunciava, a
ideia não era criar um confronto entre os dois revolucionários
latino-americanos, e sim estabelecer um “diálogo” entre eles,
procurando suas convergências.

Esse documentário foi rodado durante a visita de Fidel Castro


ao Chile, em novembro de 1971. Aproveitando a estada do então
primeiro-ministro cubano no país andino, Covacevich registrou
uma entrevista realizada pelo jornalista Augusto Olivares com o
líder cubano e com Allende, que aparecem lado a lado discutindo
questões como a via de acesso ao socialismo, a relação de seus
respectivos governos com o povo e as dificuldades encontradas
por cada um desses processos políticos7. Além da semelhança
7. Uma seleção de falas dessa entre alguns dos temas abordados, vale lembrar que El diálogo de
entrevista foi publicada em livro pela América, assim como Compañero presidente, foi uma ação da Chile
editora Nuestra América, em 2003. films8, o que lhe confere um caráter “oficial”, de acordo com os
objetivos político-institucionais do governo da Unidade Popular.

A presença de Augusto Olivares como o mediador é outro fator


que alinha o filme aos interesses estatais. Naquela época, o jornalista
8. Além da Chile Films, possuía o cargo de Diretor de Imprensa da Televisão Nacional do
participaram de El diálogo de Chile e era o assessor pessoal do presidente chileno. Essa fidelidade
América as produtoras Citelco e
iria se confirmar posteriormente com o suicídio de Olivares, em 11
Sudamericana Films.
de setembro de 1973, durante o ataque ao La Moneda, fato que lhe
concedeu o mesmo destino trágico de seu amigo Allende. Porém, é
necessário ressaltar que há um esforço no filme de Covacevich em
atribuir um distanciamento ao entrevistador, o que se percebe por
suas intervenções, que pouco interferem no debate, ao contrário da
postura de Debray em Compañero presidente.

O enquadramento predominante em El diálogo de América


reforça a caracterização de Olivares como um interventor distante.
As tomadas da entrevista são realizadas por uma câmera que se
localiza atrás dele, mostrando-o ligeiramente de perfil e em uma

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
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posição que o transforma na ponta de um triângulo constituído em


volta de uma mesa. Nas duas outras pontas estão os entrevistados,
Allende e Castro. Pode-se dizer que o ponto de vista da maior
parte das tomadas é semelhante ao do jornalista, e também ao do
público. Normalmente, a mesma pergunta é repetida para os dois
líderes, o que destaca ainda mais essa busca por um equilíbrio. O
realizador opta também por inserir pouco texto em voz over para o
entrevistador, ao contrário do que ocorria com Debray. Assim, ele
está longe de ser um protagonista.

Além dos planos da entrevista, Covacevich intercala as tomadas


dos entrevistados entre imagens de arquivo, inseridas como uma
confirmação das falas de Allende e de Castro. Predomina, no
caso chileno, material de arquivo referente à história da esquerda
desse país, enquanto no caso cubano a maior parte dos trechos
selecionados mostra a vitória de 1959 e as posteriores batalhas da
Revolução Cubana contra o imperialismo (ataque à playa Girón e
Crise dos Mísseis).

Desde seu início, o documentário é marcado pela tentativa de


unir o processo cubano e o chileno como partes de uma mesma luta
rumo ao socialismo. O filme se esforça também para reiterar um
caráter popular dessa luta, enfatizando a existência de uma base de
apoio à Revolução Cubana e à chamada “experiência chilena”. Em
seu início, são mostrados planos próximos de mineiros, operários,
camponeses, estudantes, jovens e velhos. Em seguida, passa-se em
um zoom out para uma panorâmica plongé, que permite visualizar
esses homens e mulheres como parte de uma única massa — o povo.
O título é levado à tela sobreposto a uma sequência em travelling
de Santiago vista de um helicóptero. Um corte interrompe essa
sequência com a imagem de um avião cruzando o céu (uma alusão
ao veículo que trazia Castro). O prólogo segue com uma tomada
na qual os populares correm na direção do que se revela ser a
comitiva de carros que leva Castro e Allende após a chegada do
primeiro-ministro ao Chile. Essa descrição exemplifica que há o
desejo em mostrar um amplo apoio da população ao visitante, bem
como ao presidente chileno que o recebe. O clima de festa popular
é corroborado pela trilha sonora folclórica de Los amerindios,
integrantes da Nueva Canción Chilena.

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A continuação das sequências desse prólogo, porém, é


sintomática do lugar de onde o documentário fala. O realizador
insere travellings gravados a partir dos carros da comitiva, passando
a mostrar o povo desde esse ponto de vista. Apesar do esforço em
intercalar inicialmente esse olhar “oficial” entre o da população, o
filme o faz apenas para legitimar a fala dos governantes, que darão
o tom predominante da produção. A passagem dessas tomadas
externas para o ambiente onde é registrada a entrevista — o jardim
da casa de Salvador Allende, que já havia servido de locação para
Compañero presidente — ocorre com um plano em que Castro e
Allende caminham lado a lado, que é acompanhado de uma das
poucas falas em off de Olivares, ressaltando a vontade mundial em
ver o encontro desses dois homens9.
9. O filme busca uma legitimação Como já foi destacado, ocorre uma configuração triangular da
da experiência chilena nas esquerdas
mesa usada na entrevista, “apagando” Olivares e colocando em
internacionais ao aproximar Allende
de Fidel Castro, tendo em vista evidência os dois líderes. É interessante notar que a escolha por
o impacto da Revolução Cubana esse enquadramento favorece que Castro e Allende estejam quase
nos meios artístico e intelectual sempre em campo, tendo suas reações às respostas do companheiro
latino-americanos e europeus (sobre
evidenciadas. Essa opção remete à interação com o entrevistador
esse tema, ver GILMAN, 2012). O
documentário estreou em Paris em e também entre os próprios entrevistados. O presidente chileno
1972, sendo apresentado por Pablo dirige-se diversas vezes diretamente ao seu convidado, inclusive
Neruda e Marcel Marceau. Também propondo-lhe perguntas. O contrário, no entanto, acontece com
circulou em festivais no exterior,
menos frequência: Castro prefere interagir com Olivares, fixando
ganhando um prêmio em Yoshiart,
na União Soviética. nele seu olhar — vale lembrar que o ponto de vista do jornalista
está próximo àquele da câmera.
Durante a entrevista, esse esforço em apresentar as confluências
entre a Revolução Cubana e a experiência chilena torna-se árduo
diante da emergência de contradições explícitas entre as duas
vias ao socialismo. Em detrimento das tentativas de Olivares em
aproximá-las, por meio de perguntas de conteúdo semelhante
dirigidas simetricamente aos dois líderes, há uma evidente tensão
que não pode ser apaziguada. Se é verdade que ambos enfatizam
a motivação comum entre os “povos” chileno e cubano em buscar
esse regime político, constituindo um discurso revolucionário
latino-americanista, é verdade também que cada um valoriza
suas particularidades, muitas vezes “forçando” seu companheiro a
refazer os rumos de sua fala.

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Esse mecanismo de provocar o líder ao seu lado é levado a


cabo de modo mais contundente por Fidel Castro10. Allende
10. Em alguns momentos, Allende elabora um discurso sobre a adequação da via chilena à tradição
parece reagir ao protagonismo de de seu país, assim como aos caminhos empreendidos em outras
Fidel Castro. Em uma passagem épocas pela esquerda chilena. É sintomático que as imagens de
do documentário, por exemplo, ele
arquivo inseridas em meio às suas falas se remetam aos momentos
enfatiza a impessoalidade da via
chilena, defendendo que, no caso citados pelo presidente, como a fundação dos partidos de esquerda
do Chile, a figura do líder não era (Allende destaca uma filiação a Luis Emilio Recabarren, fundador
importante. Em outro momento, do comunismo chileno) e a Frente Popular. Elas são fragmentos de
ele destaca que parte da oposição
uma história prévia, que justificaria as opções da Unidade Popular.
enfrentada pela UP seria fruto da
liberdade de imprensa preservada Castro, no entanto, questiona a possibilidade de sustentação de um
pelo seu governo. Assim, ele governo socialista sem o uso das armas, enfatizando a todo tempo
também provoca Castro, fazendo que foi o seu poderio bélico e a disposição do povo cubano para o
comparações que tocam nos pontos
confronto que garantiram o prolongamento de seu regime, apesar
mais criticados da Revolução
Cubana. das ofensivas estadunidenses. Um exemplo desse enfrentamento
velado entre os entrevistados pode ser visto no seguinte diálogo, a
respeito do imperialismo:

Castro: [...] En determinados puntos nosotros podemos


lograr una correlación de fuerzas, por lo menos en tierra,
por lo menos similar a la de un grupo de las mejores
divisiones de infantería de Estados Unidos. Eso es una
cosa clara y ellos lo saben. Pero saben que tenemos además
la solidaridad del campo socialista y las consecuencias
que podría tener una guerra de ese tipo de exterminio,
un genocidio contra Cuba. Son los factores que explican
la solidez, la fortaleza, la seguridad de nuestro pueblo en
la revolución.

Allende: En nuestra época ya no hay genocidio, eso el


mundo lo rechaza. La conciencia de los pueblos se
levantara contra cualquier amenaza de ese tipo.

Castro: Nosotros podremos levantar 600 mil hombres


sobre las armas en cuestión de horas.

O exemplo desse diálogo deixa clara a tensão que percorre o filme.


Allende enfatiza a “consciência dos povos”, a tradição chilena, o
apoio das massas, entre outros fatores que sustentariam seu governo.
Já Castro o leva a encarar a necessidade das armas como modo

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de sustentação do Estado socialista. A inserção de imagens de


arquivo na montagem, intercaladas em suas falas, corrobora esse
discurso: enquanto aquelas relativas à UP remetiam a um vínculo
com o passado chileno, aquelas cedidas pelo Icaic a Covacevich se
limitam ao momento posterior a 1959.

Diante disso, é possível concluir que El diálogo de América


traz implícitas duas tensões resultantes de divergências entre a via
insurrecional cubana e a via democrática chilena. A primeira dela diz
respeito ao modo de chegar ao socialismo e de sustentá-lo no poder.
Castro pressiona Allende por um reconhecimento da necessidade
de recorrer às armas. A segunda tensão é decorrente dessa primeira:
enquanto o presidente chileno busca uma legitimação apoiada na
tradição, o primeiro-ministro cubano enfatiza o caráter de ruptura
de sua revolução. Novamente essa diferença se traduz em uma
pressão por parte de Castro, que ressalta a todo tempo a necessidade
de criar instituições novas e verdadeiramente socialistas, destituindo
as estruturas burguesas anteriores11.
11. A fala de Fidel Castro valoriza A necessidade de renovação das instituições aparece na
a ideia de um “homem novo”,
discussão sobre as ameaças “fascistas” (nas palavras de Castro) ao
retomada por Ernesto Guevara.
Essa ideologia fazia parte de governo chileno. Ele alerta sobre a resistência empreendida pelas
uma estratégia de incentivo ao oligarquias locais e sua provável recorrência a métodos violentos.
engajamento dos trabalhadores na Em Cuba, não haveria esse problema, já que a burguesia teria
produção, associando-a a ganhos
deixado o país após a revolução. Surge na conversa o tema sobre a
coletivos do processo revolucionário.
reação da oposição à UP frente à visita do primeiro-ministro cubano.

Essa passagem do filme expõe contradições relativas ao


próprio evento histórico que documenta. Alberto Aggio (2003)
destaca que durante essa estada se radicalizou um processo
contrarrevolucionário oposto à UP, mas também se ampliou uma
divisão interna na própria esquerda chilena. Nesse segundo ponto,
dividiam-se cada vez mais aqueles que apoiavam até o fim a crença
nos caminhos legalistas e institucionais (posição predominante
no Partido Comunista e em Allende) e aqueles que passavam
a defender a resistência armada como forma de sustentação do
governo (posição do Partido Socialista e do MIR - Movimiento de
Izquierda Revolucionaria). Castro teria surpreendido ao permanecer

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
Ignacio Del Valle Dávila e Carolina Amaral de Aguiar

no Chile um tempo maior do que o previsto (24 dias), passando de


visitante ilustre a indesejado:

Sua visita pode, de fato, ser considerada como um ponto


de inflexão no desenvolvimento dos acontecimentos que
iriam marcar e definir a sorte da experiência chilena. É
claro que não corresponde a uma análise correta atribuir
à visita em si a ruptura do equilíbrio que anteriormente
havia caracterizado a vida institucional chilena. Contudo,
há que se reconhecer que a série de intervenções feitas
por Fidel ao longo da viagem acabou por produzir ou
acentuar um ambiente de confrontação entre esquerda e
direita que impediria ou impossibilitaria, a partir daquele
momento, qualquer convivência democrática. Uma
outra consequência direta da visita — de consequências
gravíssimas — foi a explicitação das diferenças no seio da
Unidade Popular (AGGIO, 2003, p. 154).

Ao final do documentário, Covacevich volta a dar ênfase ao


“diálogo” previsto no título. O discurso de uma revolução
latino-americana em curso tenta apaziguar as contradições que
emergiram durante a entrevista. Castro e Allende falam a favor da
unidade dos povos e da resistência contra o imperialismo. Ambos
destacam o papel de vanguarda que Chile e Cuba desempenhariam
no combate à pobreza e ao analfabetismo no continente. A
sequência final é exemplar dessa tentativa de união proposta
pelo realizador. Cada líder faz um discurso de fechamento, que
acompanha em off imagens emblemáticas da América Latina,
como o corpo de Guevara morto e o Aconcágua. Allende traz
cifras que denunciam a exploração dos povos latino-americanos,
justificando seu desejo pela libertação ante as oligarquias locais
e o imperialismo. Ele enfatiza que esse enfrentamento estaria
“além de nossas fronteiras”. Já as palavras de Castro entram
acompanhadas de cenas sobrepostas de sua visita ao país andino.
Ele prega uma revolução que ainda está por nascer, que teria
uma dimensão continental. O “parto”, porém, poderia dar-se de
distintas maneiras — “institucional, em um hospital, ou em uma
casa”. O tom conciliador e unitário é corroborado pela canção
Ya empieza (Patricio Castillo, Julio Numhauser e Mario Salazar)
sobre uma “América dormida” que começa a despertar.

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Dossiê - História e Audiovisual

Apesar desse fim épico, a fala de Castro que aparece em off não
foi retirada da conversa com Olivares, mas de um discurso público
feito em sua visita ao Chile. Isso mostra que, para chegar a esse final
conciliador, foi necessário buscar uma fala exterior à entrevista,
dirigida originalmente a populares, e não ao presidente chileno.
Esse fato é exemplar de como, embora haja a procura pela criação
de um “diálogo”, o documentário é uma evidência das tensões
entre distintos modelos que se configuravam como referências para
as esquerdas internacionais.

Apesar do caráter oficial de Compañero presidente e de El


diálogo de América, nos dois filmes subjaz uma tensão ideológica
entre a via armada e a via eleitoral que se mostraria prejudicial aos
interesses de Allende e de seu governo. São notórios os esforços de
Littin e Covacevich para criar um discurso audiovisual que sustente
a tese do mandatário chileno de que existem distintas opções válidas
para alcançar um Estado revolucionário. No entanto, esses esforços
não conseguem neutralizar as críticas proferidas por Debray nem as
diferenças entre Allende e Castro.

Nos documentários, a estratégia de partir das estruturas do


Estado burguês para fazer a revolução se choca com outra, mais
ortodoxa, que defende a destruição desse Estado como passo prévio
à revolução. É notória a maneira como Allende reivindica, frente
aos seus interlocutores, a ideia de que a UP finca suas raízes em
processos históricos anteriores, enquanto Castro, em El diálogo de
América, ressalta a Revolução Cubana como um “fato novo”.

Allende estava havia poucos meses no poder quando foi realizado


Compañero presidente, o que fez que suas respostas tivessem um
valor programático — ele indica o que fará e como o fará, e não
tanto o que já havia sido feito. Ao contrário, o contexto em que
se registrou o diálogo com Castro foi radicalmente diferente. O
mandatário chileno já estava havia um ano no cargo, e os conflitos
tanto com a oposição quanto no interior da coalizão estavam em
plena ebulição. Isso concedeu às discussões do segundo filme um
caráter menos teórico. Tanto Allende como Castro se encontravam
em condições de avaliar a situação de seus governos. A comparação
entre as duas vias se torna, por isso, mais explícita e factual.

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A via chilena em debate: análise de Compañero presidente (1971) e El diálogo de América (1972)
Ignacio Del Valle Dávila e Carolina Amaral de Aguiar

As dúvidas a respeito do caráter “autenticamente” revolucionário


da UP, manifestadas por Debray em Compañero presidente, não
aparecem de forma tão evidente em El diálogo de América. No
entanto, destacam-se a precariedade dessa opção e sua dificuldade
para perpetuar-se no tempo. A recusa de Allende em utilizar a via
armada no Chile e sua impossibilidade de mudar a Constituição
trazem como consequência a instabilidade de seu governo, como
comparativamente é exposto por Castro ao ressaltar o poderio
bélico do regime cubano ante a qualquer agressão.

Em Compañero presidente, a figura central é Allende, apesar


do papel de “avaliador crítico” de Debray. No documentário de
Covacevich, ao contrário, o protagonismo é dividido com Castro,
o que confere a essa produção uma dimensão latino-americanista,
conforme revela o título. Esse protagonismo contribui para
explicitar as diferenças entre as vias chilena e cubana.

As perguntas de Debray a Allende revelavam uma preferência


implícita pela via armada. Na boca de Castro, essa preferência é
mais evidente. Dessa forma, longe de conseguir que as duas vias
dialoguem e confluam — tese buscada por ambos os filmes —,
o resultado dos documentários resulta no contrário: uma tensão
evidenciada entre essas distintas estratégias políticas. Essa tensão
se manifesta no interior da Unidade Popular, tornando-se cada
vez mais aguda.

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Dossiê - História e Audiovisual

Referências

AGGIO, A. “Uma insólita visita: Fidel Castro no Chile de Allende”.


História, Franca, v. 22, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742003000200009&script=sci_
arttext>. Acesso em: 7 ago. 2013.

CASTRO, F.; ALLENDE, S. El diálogo de América. Buenos Aires:


Nuestra América, 2003.

DEBRAY, R. Entretiens avec Allende sur la situation au Chili. Paris:


Maspero, 1971.

GILMAN, C. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del


escritor revolucionario en América Latina. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2012.

GUEVARA, Al. ¿Y si fuera una huella?. Havana: Nuevo Cine


Latinoamericano, 2009.

MOULIAN, T. “La vía chilena al socialismo: Itinerario de la crisis


de los discursos estratégicos de la Unidad Poular”. In: PINTO
VALLEJOS, J. (Ed.). Cuando hicimos historia: la experiencia de la
Unidad Popular. Santiago: LOM, 2005.

PUNTO final: Allende habla con Debray, Santiago, ano 5, n. 126,


16 mar. 1971.

submetido em: 14 ago. 2013 | aprovado em: 24 out. 2013

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O filme O nome da rosa:
entre flores secretas e
risos em chamas

Arilson Oliveira1

1. Doutor em história social pela Universidade de São Paulo, pós-


doutorando em religião e sociedade pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, professor adjunto do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, indólogo e autor
de Max Weber e a Índia. E-mail: [email protected]

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Resumo
O título da obra e do filme advém da frase com a qual eles se
encerram: “a rosa antiga permanece no nome, nada temos além
do nome”. Ela, a rosa em si, para inúmeras culturas antigas,
sempre representou o segredo feminino, o silêncio, o não rir, o
não se pronunciar sobre algo, senão apenas contemplar, sentir,
viver e renascer. Para os monges cristãos de uma Europa devastada
mentalmente pela perseguição antipagã, a rosa era a sublime
tentação que poderia transubstanciar-se no místico emblema do
aspecto feminino da divindade.

Palavras-chave
Nome da rosa, riso, segredo, heresia.

Abstract
The title of the book and movie comes from the sentence with
which both end: “the ancient rose remains in the name, nothing
beyond the name have we got”. The rose itself has, for innumerous
ancient cultures, always represented the female secret, silence,
non-laughter, the non-utterance about anything, but, otherwise,
contemplation, feeling, living and being reborn. For the Christian
monks in a mind-devastated Europe by the anti-pagan persecution,
the rose was the sublime temptation that could transubstantiate
itself in a mystical emblem of the feminine aspect of the divine.

Keywords
Name of the rose, laughter, secret, heresy.

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O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas | Arilson Oliveira

Primeiras nuanças

Com o riso quase em chamas, em grandes chamas, mas não mais


as temendo, apesar de sua presença invisível que nos ronda a cada
esquina com seus discursos fundamentalistas, desencantados e
aparentemente – senão, realmente – sem apriorismos de espírito,
mas apenas de crença, assim iniciamos nossa senda em torno do
fascinante conglomerado visual presente no filme de Jean-Jacques
Annaud, O nome da rosa (1986). Homônimo transcodificado do
não menos célebre livro (1980) de metaficção historiográfica2 do
2. “Metaficção historiográfica”, crítico literário italiano Umberto Eco.
terminologia de Linda Hutcheon,
A priori, nos elucida Wellington Fiorucio (2009, p. 129) que:
ao caracterizar o romance de
Eco como autorreflexivo e que
se apropria de acontecimentos O roteiro da película transformou as quase 600 páginas do
e personagens históricos romance em menos de 170 pelas mãos dos hábeis Adrew
(HUTCHEON, 1991, p. 21). Birkin, Gerard Brach, Howard Franklin e Alain Godard.
Um “enxugamento” necessário para a transposição à tela.
O diretor francês abriu mão, por exemplo, dos diálogos
em latim e muitas das discussões teológicas que fazem do
livro um compêndio religioso, cuja assessoria histórica
estava a cargo de uma equipe capitaneada por ninguém
menos que o [historiador] medievalista Jacques Le Goff.

De imediato, sob a tentação intelectiva de confrontar os dados


medievalistas circunscritos e reconstruídos com a obra ou o filme
em si, nota-se que a figura do narrador é desempenhada em primeira
pessoa pelo jovem Adso de Melk (Christian Slater), tutorado,

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Artigos

escrivão e discípulo do racionalista, humanista e franciscano


William de Baskerville (Sean Connery), e que Melk conta aos
oitenta anos aquilo que viu com dezoito. Além disso, verifica-se
uma alusão ao famoso detetive londrino, Sherlock Holmes, que
morava na rua Baskerville,3 daí o personagem principal chamar-
3. Ver a obra The hound of the se William de Baskerville, bem como a Watson (no filme, Adso),
Baskervilles – em português, O seu fiel escudeiro.
cão dos Baskervilles – (1902),
de Arthur Conan Doyle, o qual Além de tais ensejos, Eco faz homenagem ao literato surrealista
utiliza como protagonistas argentino – que possuía uma cegueira progressiva4 — Jorge
Sherlock Holmes e Dr. Watson. Luis Borges, cuja obra abrange o “caos que governa o mundo e
o caráter de irrealidade em toda a literatura” (JOZEF, 1974, p.
4. Como ele mesmo admitiu:
43), simbolizado no personagem do venerando Jorge de Burgos,
“quando penso no que eu perdi, cenobita cego que protege a misteriosa biblioteca labiríntica do
eu pergunto: ‘quem se conhece monastério, palco central da narrativa.
melhor do que o cego?’ – pois
cada pensamento se torna uma A influência de Jorge em Eco fica evidente não apenas em
ferramenta” (BORGES, 1994). suas adaptações e preferências contextuais, tal como sua ênfase na
ficção labiríntica, mas ao afirmar que “os livros falam sempre de
outros livros e toda história conta uma história já contada” (ECO,
1985, p. 20) − como confirma Fiorucio (2009, p. 130), Eco não
poderia ter sido mais borgeano nesta afirmação.

O personagem William também nos remete, através de


Eco, a William de Ockham (1290-1349), filósofo que defende
a intuição, a exemplo do personagem, como ponto de partida
para o conhecimento do universo. Nesse sentido, e na esteira
de Duns Scot (1265-1308),5 Ockham entendia que a Filosofia
5. Criador do conceito de só deveria tratar de temas sobre os quais ela pudesse obter um
hecceidade (haecceitas), a qual conhecimento real.
valoriza a experiência, e distancia
a preocupação exclusivista da Sinteticamente, pode-se compreender seu pensamento – e aqui
filosofia com as essências universais e ligado inteiramente ao personagem William de Eco – ao inferir, diz
trancendentes. Ockham, que existindo diversas teorias e não havendo evidências
que comprovem se é mais verdadeira alguma em relação a outras,
vale a mais simples, ou se existirem dois caminhos que levem ao
mesmo resultado, usa-se o mais curto; aquele que possa ser provado
sensorialmente. Em outras palavras, não se deve aplicar a um
fenômeno nenhuma causa que não seja logicamente dedutível da
experiência sensorial, bem ao estilo do William racionalista de O

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O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas | Arilson Oliveira

nome da rosa, em especial na sua fala ao seu aprendiz Adso: “a única


prova que vejo do demônio é o desejo de todos em vê-lo atuar”.

Tudo isso representa o que Gordon Leff (1975) denominará “as


metamorfoses dos discursos escolásticos”, ou seja, um princípio pelo
qual se eliminam ou revisam-se muitos dos métodos e epistemes
com os quais pensadores escolásticos explicavam a realidade. A
lógica, assim sendo, é uma ciência derivante de um conjunto de
hábitos mentais, possuindo uma unidade de agregação composita.
Com isso, nos elucida Alessandro Ghisalberti (1997, p. 55): “é
nesse sentido que se fala de ciência com referência à metafísica,
à filosofia da natureza, à teologia ou à lógica, pelo fato de cada
uma delas resultar de numerosas proposições dispostas em uma
certa ordem”. Em outras palavras, para Ockham, assim como para
o personagem William, por ciência entende-se o conhecimento
certo de uma verdade.

Todas essas nuanças funilam-se em poucos risos e temidas rosas,


6. Uma variação de um verso do ou seja, moldam pelos bastidores o enredo da trama de O nome
longo poema hexâmetro (3.000 da rosa. Esta, que inteligentemente olha o martelo dos rebanhos
linhas em latim) De Contemptu incendidos temerem as flores e calarem os risos, em uma tentativa
Mundi [Sobre o desdém do mundo],
de manter o desencanto que a eles pela herança mosaica pertencem.
escrito em 1140 por Bernardo
Morlaix ou Bernardo de Cluny Eis nossa singela inquietude por deveras e poucas palavras que em
(1100-1156), monge beneditino alocuções e discursos seguem.
afamado por Eco a partir de sua
obra. O verso original de Bernardo
difere ligeiramente do citado por Desabrochando o segredo da “rosa”
Eco, já que a versão original é “stat
Roma pristina nomine, nomina nuda O título da obra e do filme advém da frase com a qual se encerra
tenemus” (De Contemptu Mundi, lib. a obra: “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”, ou seja,
1, v. 952), fazendo alusão à Roma
“a rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome”.6
antiga que, agora, existe só no nome.
De acordo com a historiadora do Ela, a rosa em si, ou demais flores, para inúmeras culturas antigas,
Departamento de Estudos Clássicos
sempre representaram o segredo feminino, o silêncio, o não rir, o
e Orientais do Hunter College,
Adele Haft, Bernardo era um asceta não se pronunciar sobre, apenas contemplar, sentir, viver e renascer.
radical, incentivou a realização Para os monges cristãos de uma Europa devastada mentalmente
da II Cruzada e foi canonizado pela perseguição antipagã − inquisição e fundamentalismo em série
pelo papa Alexandre III em 1174
e ascendente −, a rosa ou a flor era a sublime tentação que poderia
(HAFT et al, 1999, p. 52). Para mais
detalhes sobre a frase do poema, ver – como tudo, bastando apenas inserções míticas e nomenclaturas
CAPOZZI, 1997, p. 66. cristãs envoltas – transubstanciar-se no místico emblema do aspecto

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Artigos

feminino da divindade; como bem difundido pelo paganismo


europeu e oriental.

Todavia, no filme, fica evidente essa transubstanciação nas três


classificações dada à mulher: santa, prostituta ou bruxa. Nada mais
típico para uma religião que desqualifica a sexualidade, tendo a
mulher como a “porta do Diabo”, como bem asseverou Tertuliano
(155-222), um dos primeiros e mais importantes doutores da Igreja
(DELIMAUX, 1978, p. 311).

Nessa perspectiva, ninguém menos que um dos quatro grandes


santos da Igreja Ortodoxa e um dos maiores doutores da Igreja
Católica, João Crisóstomo (349-407), afirmará: “[...] o que mais é
uma mulher além de uma inimiga da amizade, uma inescapável
punição, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade
desejada, um perigo doméstico, um mal da natureza, pintado com
cores suaves” (PITANGUY, 1985, p. 31). Este era um dos slogans do
manual de caça às bruxas, no período medieval europeu, Malleus
Maleficarum, dos famosos inquisidores Kramer e Sprenger.

A mulher (como a camponesa acusada de ser bruxa no


filme) era indubitavelmente o depositário da “diabolização na
Idade Média ocidental, [especialmente] da carne e do corpo,
entendidos como um lugar da devassidão, como um centro de
produção do pecado” (LE GOFF, 1992, p. 153). A luxúria, termo
que abarca todos os pecados ligados à carne, considerada pelos
doutos cristãos medievais como um dos pecados capitais, era
tida como a fonte de todos os males. Tal ideia é endossada pelo
Malleus Maleficarum, o qual, na busca das fontes da bruxaria,
propõe “examinar os desejos carnais do próprio corpo, de onde
provém o mal desarrazoado da vida humana” (KRAMER;
SPRENGER, 1991, p. 119). Em outros termos, a rosa ora era a
encarnação do mal em forma sexual, ora era o segredo que devia
ser arquivado ou compartilhado entre poucos, senão nas chamas
ser lançado (como pode ser visto no final do filme).

Por outro lado, nos cultos e por meio dos símbolos orientais
e europeus pagãos, a rosa era venerada e associada aos Deuses e
Deusas. No antigo idioma persa, por exemplo, a palavra rosanan
estava ligada à rosa, significando “Os da Luz”. Vemos, em um

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O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas | Arilson Oliveira

primeiro plano, que ela encerra mensagens de luz. Daí que os


(antigos) poetas, estes como mensageiros dos Deuses, tais como
Virgílio, Cecília Meireles e Fernando Pessoa, dentre inúmeros
outros, tenham propagado a natureza da rosa como divina.

Também a encontramos nos cultos ao deus (persa, indiano e


romano) Mitra. Já o deus do sol Helios foi amado pela Ninfa de
Rodes que tinha uma rosa em uma das faces. Rodes, Ilha e Ninfa
surgem etimologicamente do grego rhodón, que significa rosa.

De acordo com a mitologia grega, Afrodite, ao nascer das


espumas do mar, tal espuma tomou forma de uma rosa branca,
transformando, assim, a rosa branca em símbolo de pureza. Além
disso, para os romanos, as rosas eram uma criação de Flora (Deusa
da primavera e das flores). Quando uma das ninfas da Deusa
morreu, por exemplo, Flora a transformou em uma flor. Ademais,
Afrodite também dera uma rosa ao seu filho Eros, o deus do amor,
transformando-a em símbolo de amor e desejo. Eros doou uma
rosa a Harpócrates,7 o deus do silêncio, para induzir a não falar
7. Deus adaptado pelos gregos sobre as indiscrições amorosas de sua mãe. Destarte, a rosa se
da representação infantil do deus tornou também um símbolo do silêncio e do segredo, como bem
Hórus do Egito. presente no filme.

Os romanos também sabiam que, ao decorar seus túmulos


com rosas, apaziguariam os Manes (espíritos dos mortos), fato
que levou os mais abastados a incluírem em seus testamentos que
jardins inteiros de rosas fossem mantidos para fornecerem flores
para suas sepulturas. A partir de então, na Roma antiga, assim
como na Europa em geral, as rosas passaram a ser colocadas sobre
os mortos, tendo a cerimônia do mês de maio chamada pelos
antigos romanos de Rosália.

A rosa é, igualmente, consagrada à Deusa egípcia Ísis, que


é retratada com uma coroa de rosas. Por tal motivo, a corola da
rosa, fechada, fez com que a flor significasse em muitas culturas o
símbolo do segredo.

Por outro lado, na simbologia indiana, as Deusas Lakshmi e


Radharani (deusas do amor), nasceram de um lótus. A simbologia
da flor de lótus (Nelumbo nucifera), sendo uma planta da família

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Artigos

das ninfeáceas (mesma família da vitória-régia) nativa de todo o


sudeste asiático, também abrange a flor de ouro da mística chinesa
(presente em inúmeros filmes), sendo um símbolo taoísta que alude
à vitória espiritual através de seu poder ontológico.

Contemplada com respeito e veneração por todos os povos


orientais, a flor de lótus também está frequentemente associada ao
Buddha histórico, por representar a pureza que emerge imaculada
de águas lodosas. Em tal contexto, o lótus é o símbolo da expansão
espiritual, do sagrado, do puro, da iluminação em si.8 Os textos
8. O significado original deste budistas nos relatam que o príncipe Siddhartha, que mais tarde se
simbolismo pode ser visto por meio tornaria o Buddha (o iluminado), ao tocar o solo e dar seus primeiros
da seguinte relação: tal como a flor sete passos, sete flores de lótus cresceram. De tal modo, cada passo
do lótus cresce da escuridão do lodo
de Buddha seria simbolicamente um ato de expansão espiritual. Ao
para a superfície da água, abrindo
suas flores exclusivamente após passo que os ícones que representam Buddha em meditação são,
ter-se erguido além da superfície, em sua maioria, representados sentados e sobre flores de lótus.
ficando imaculada de ambos, terra
e água, que a nutriram – do mesmo Apesar disso, muitas variedades de rosas foram perdidas durante
modo a mente, nascida no corpo a queda do império romano e a conquista árabe na Europa.
humano, expande suas verdadeiras Entretanto, após a conquista da Pérsia, no séc. VII, os árabes
qualidades (pétalas) após ter-se
desenvolveram o gosto pelas rosas e, à medida que seu império
erguido dos fluidos turvos da paixão
e da ignorância, e transforma o se estendia da Índia à Espanha, muitas variedades de rosas foram
poder tenebroso da profundidade no novamente introduzidas na Europa. O que tornou essa flor, na
puro néctar radiante da consciência, Idade Média europeia, muito cultivada nos mosteiros cristãos. Era
agora iluminada (bidhicitta), a
regra que pelo menos um monge fosse especialista em botânica
incomparável joia (mani) na flor
de lótus (padma). Assim, o arahant e estivesse familiarizado com as virtudes medicinais da rosa e das
(sábio iluminado) cresce além deste flores em geral. Tal fato também pode ser verificado no filme com
mundo e o ultrapassa. Pois, apesar de o monge herbolário Severinus (Elya Baskin).
suas raízes estarem na profundidade
sombria deste mundo, sua cabeça Um costume medieval, inclusive entre os clérigos, era de colocar
está erguida na totalidade da luz. Ele uma rosa no teto da sala de reuniões indicando que onde houvesse
é a síntese viva do mais profundo e
uma rosa no teto, os assuntos deveriam ser mantidos em segredo;
do mais elevado, da escuridão e da
luz, do material e do imaterial, das surgindo a rosa como representante do secretismo cristão, em
limitações da individualidade e da especial o seu interior escondido, onde está a sua essência e o néctar.
universalidade ilimitada, do formado Em relação a O nome da rosa podemos conjecturar que a rosa oculta
e do sem forma, do Samsara (ciclo
no mosteiro escondia um néctar vital: o conhecimento pagão.
de nascimentos e mortes) e do
nirvana (estado transcendente). Logo surgiu o costume de pintar rosas no teto das salas e assim
levou à decoração de muitas casas de arquitetura clássica. E não por
outro motivo, as rosáceas das catedrais góticas foram dedicadas a

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O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas | Arilson Oliveira

Maria como emblema do feminino em oposição à cruz. Os rosários


originais eram feitos com pétalas de rosa, e a palavra rosário deriva
do latim rosarium, que significa roseiral.
A rosa era o gracioso emblema de mulher, a imagem da discrição
e, portanto, o símbolo do silêncio; enquanto a cruz significava a
virilidade do sol, pois era a junção que forma a eclíptica com o
equador, com os pontos astronômicos nos símbolos Peixes e Áries
e outro no centro da Virgem. Dessa união resultaria a regeneração
universal, ponto mais alto das doutrinas secretas medievalistas
europeias e de partida para a imortalidade. Nesse aspecto, a rosa
também significa renascimento, como assim a vê a ordem Rosacruz
e os alquimistas.

O riso em chamas

Além do segredo da rosa, o filme trabalha um dos aspectos que,


segundo Paulo Góes, representa uma velha discussão histórica
e filosófica: o riso e suas virtudes, reportando-se, no filme, ao
segundo livro da Poética de Aristóteles, considerado perdido
(GÓES, 2009, p. 213).

Para adentrarmos o tema, inicialmente podemos observar que


no tratado A doutrina cristã, Agostinho estabelece que “os cristãos
podem e devem tomar da filosofia grega pagã tudo aquilo que for
importante e útil para o desenvolvimento da doutrina cristã, desde
que, ao mesmo tempo, o que for tomado seja compatível com a fé”
(MARCONDES, 1998, p. 21). Em Confissões, Agostinho também
adverte sobre o perigo de um riso efêmero, apesar de permitir o
mesmo quando este apenas tender a despertar o interesse dos
neófitos (AUGUSTIN, 1949, p. 54). Sob a justificativa de um douto
da Igreja, portanto, o riso, além de considerado ontologicamente
pagão, passou a ser incompatível com os dogmas institucionalizados.

Isso demonstra minimamente que as convenções inerentes ao


riso ganharam diferentes conotações no tempo e no espaço, ou
seja, tornou-se um fenômeno universal e variado, de acordo com
a cultura e ocupando um lugar sempre determinante na economia
dos gestos e dos atos sociais, como bem nos elucida o dramaturgo e
sociólogo francês Jean Duvignaud (1985, p. 20).

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Artigos

Um dos mais renomados doutos da Igreja cristã e um dos


primeiros cristãos a apropriar-se dos elementos da filosofia grega
(em uma época que até então os cristãos permaneciam totalmente
hostis aos intelectuais): o fundamentalista e perseguidor de pagãos
e hereges Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) afirmará em
seu tratado Paedagogus9 que os amantes do riso não podem ser
9. Para os gregos helenísticos, incluídos na comunidade cristã, já que o riso comedido é atitude do
pedagogo era um escravo ou servo sábio e o desmesurado é coisa de prostituta (DEMPF, 1958, p. 54).
que, conforme e etimologia, tinha O riso para Clemente é fruto de palavras baixas, ou seja, procede do
o dever de conduzir as crianças,
ventre ou da parte baixa do corpo.
acompanhando-as até a escola,
protegendo-as dos perigos e Le Goff nos explanará que a Regra de São Bento, inspirada na
ensinando-as a se comportarem.
Regula Magistri,10 apresenta o riso como elemento que percorre o
Estava sob sua jurisdição a conduta
moral da criança, enquanto que, ao corpo a partir das partes baixas, passando pelo peito e pela boca,
mestre, cabia a instrução. sendo o riso, portanto, uma “desonra da boca”, restando à boca a
função de “ferrolho” para tal atitude ou ação pagã (2000, p. 75).
Para Bento, em sua famosa Regula Sancti Benedicti não se deveria
10. Trata-se de um texto escrito por falar palavras vãs ou que só servissem para provocar riso ou mesmo
Bento de Núrsia (480-547) no fim dever-se-ia não gostar do riso excessivo ou ruidoso.
da sua vida, composto a partir de
530. Hoje, admite-se que Bento de
De tais preceitos beneditinos surgem as regras cenobitas ou
Núrsia utilizou uma regra anônima do ascetismo monástico cristão, a exemplo e em adaptação ao
ligeiramente anterior, a Regula ascetismo budista e em diálogo com a Instituta Monachorum Sancti
Magistri (ou Regra do mestre), cuja Basilii, mais conhecida como Regra de São Basílio, redigida no ano
redação situa-se entre 500 e 530.
365. Será com Basílio que encontraremos os primeiros argumentos
normativos e rigorosamente contrários ao riso. Complementará
Góes (2009, p. 219) a respeito:

Isso viria a se firmar nos séculos seguintes, dentro do que


se convencionou chamar paradigma monástico. A Regra,
desenvolvida em forma de diálogo, aponta certas reflexões
concernentes ao modo de conter o riso, pois ser dominado
pelo riso imoderado é sinal não só de intemperança, como
de intranquilidade, e tal atitude denota o relaxamento
espiritual. Porém, o riso sereno, por mostrar a expansão
da alma, não é por si mesmo inconveniente. O problema,
portanto, dizia respeito ao grau de intensidade das
emoções, ou seja, referia-se à demonstração de que o fiel
pode ou não ser capaz de controlá-la.

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O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas | Arilson Oliveira

Ainda nos elucida Góes que, em oposição às poucas atitudes


conciliatórias em relação ao riso no cristianismo, podemos citar
posições bem mais extremadas, tendo como protagonista de
tal extremismo o douto da Igreja João Crisóstomo. Ele tentou
demonstrar que os fundamentos da repulsa em relação ao riso
provinham diretamente da leitura dos textos evangélicos, afirmando
que a via da purificação seria através do choro, uma vez que, para
que se pudesse rir na vida eterna, era necessário chorar neste mundo
(MACEDO, 1997, p. 104).

Para tal pensador cristão, assim sendo, era preciso varrer o riso
11. Não aceitamos a ideia de uma do comportamento dos leigos e dos que integravam os diversos
Idade Média europeia não obscura,
segmentos institucionais da Igreja. No entanto, como seria
como bem se propaga entre os
doutos historiadores modernos praticamente impossível à Igreja eliminar o riso, passou-se a admiti-
– notadamente, cristãos ou lo sob certas condições e interditá-lo naquilo que pudesse afrontar
moralmente inclinados a – pois nos os dogmas estabelecidos. Surgindo a dicotomia em torno dos risos
parece mais um cômodo eruditismo
laettitia (mundano) e gaudum spirituale (espiritual).
cristão para encobrir os fatos da
inquisição e do obscurantismo O riso, desta forma, transforma-se na dissolução da disciplina
em torno das ideias combatidas
monástica ou em indisciplina passível de punição, não podendo
e dos pensadores e místicos
censurados e queimados; além de os monges ou sacerdotes utilizar-se de conversas frívolas ou
inúmeras culturas pagãs vítimas provocadoras do riso.
de um genocídio cultural sem
precedentes. Aceitamos que não
Em suma, a partir do século IV, os cristãos deixaram de rir ou
foi só obscurantismo (já que muitos foram proibidos a tal prática pagã e indisciplinar. Indisciplina que
místicos pagãos produziram grandes levaria à morte ou às chamas, como bem presente no filme.
obras), mas que ele prevalece em
boa parte da Europa nessa época, O filme em torno da chama inquisitorial apresenta um drama
isso é um fato. dividido entre a fé institucionalizada e a heresia autônoma ou
desprendida. Institucionalizada, devido ao cenário contextual
(1327, na Itália) obscuro,11 presente e atuante, do poder político,
12. O termo heresia vem do grego religioso e mental da Igreja em praticamente toda a Europa, assim
hairetikis, que significa aquele que como sob as malhas das heresias (ou aqueles que escolheram),12 as
escolhe. No entanto, na Grécia quais sempre rondaram contrárias à fé politizada ou calcada em
antiga a heresia era apenas uma
verdades inescrutáveis, independente da cultura inserida que as
escolha daquilo que o indivíduo
achava melhor para si, sem qualquer anuncia, quando a mesma engessa-se em dogmas trancafiados pelo
conotação religiosa. Na Idade Média tempo e rejeitados pela razão.
europeia, porém, a Igreja expandiu
esse conceito de tal forma que a
O mais significativo indício de heresia no filme volta-se para
heresia passou a abranger todas as os Dolcinites, do qual Salvatore fazia parte. Tais gloriosos hereges
opiniões contrárias aos seus dogmas. defendiam radicalmente a pobreza do Cristo e que todos os clérigos

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 183


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Artigos

deveriam ser pobres; por isso, matavam os ricos. No filme fica


evidente o mantra característico dos Dolcinites: penitenziagite,
aclamando ao autossacrifício da pobreza e da renúncia.

Mas tais heresias atenuadas não são apresentadas como aquelas


que aclamam o riso; apesar de algumas delas terem tal prática como
algo aceitável, já que é, na verdade, um famoso livro de Aristóteles
que fecha o ciclo do drama ao seu redor.

Em A novela de Occidente, Alberto Ascolani (2000, p. 154)


explica o fato ao delimitar que o poder despótico não suporta
o humor, porque o humor torna este um outro assunto, um
assunto inteligentemente criticado. O ato do riso mostra que
não está sujeito às relações de poder e à estrutura despótica ou
burocrática da instituição.

Cornelius Castoriadis acrescentará que aqui se apresenta uma


exclusão do exterior. Exclusão que se converte em discriminação,
desprezo, ódio, fúria e loucura assassina. Em Figuras do pensável
(2004), ele observará, sob a guia de Freud, que o ódio é mais
antigo que o amor-objeto e mais novo que o narcisismo primário
ou amor arcaico. Ainda ressalva Castoriadis que o ódio tem
duas fontes que se reforçam entre si: 1) a tendência da psique
a rechaçar (e assim, a odiar) o que não é ela mesma; 2) a quase
necessidade da clausura da instituição social e das significações
imaginárias sociais das quais a exclusão é portadora. Nesse caso,
a raiz psíquica e a raiz social constituem-se em um processo de
socialização imposto à psique. Processo pelo qual esta é forçada
a aceitar a sociedade e a realidade enquanto que a sociedade se
encarrega de satisfazer a necessidade primordial da psique: a
necessidade de sentido, já que estudar o riso é deparar-se com
a história das atitudes, dos valores mentais e da acepção da vida.

Conclusão

Observa-se e sanciona-se, portanto, a ideia de que o riso é um


fenômeno social e cultural. Em relação ao riso como fenômeno
social, vê-se a expressão de Bergson (1987, p. 13): “não desfrutaríamos
o cômico se nos sentíssemos isolados. O riso parece precisar de eco.

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O filme O nome da rosa: entre flores secretas e risos em chamas | Arilson Oliveira

O nosso riso é sempre o riso de um grupo”. Em relação ao riso


como culturalmente estabelecido, confirma-se que o riso traduz
valores, revela padrões de comportamento, expressa convenções
aceitas e estabelece o interdito de ações socialmente desaprovadas.
Assim sendo, conclui Le Goff (2000, p. 65): “Diga-me se você ri,
como ri, por que ri, de quem e do que ri, ao lado de quem e contra
quem e eu te direi quem você é”.

E fica a inquietação: até quando teremos venenos de rebanhos


em nossos livros? Até quando nos deleitaremos com línguas e
dedos manchados pela soberba de rosas em segredos, presentes nas
imundícies fundamentalistas do pensamento humano, demasiado
humano? Basta-nos rir, rir muito diante das rosas, sem toxinas de
cruzes e peixes em dedos e línguas, pois elas nada mais querem do
que se unir ao nosso riso diante de sua transitória beleza silenciosa.
Eis o motivo da rosa que insiste em rir, com Cecília Meireles (2001,
p. 470) em seu Primeiro motivo da rosa:

Vejo-te em seda e nácar,


e tão de orvalho trêmula,

que penso ver, efêmera,


toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.
Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.
Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,

serás eterna. E efêmero


o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil .

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Artigos

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submetido em: 9 jul. 2013 | aprovado em: 10 set. 2013

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// Comunicação em conflito
no cinema de Alejandro
González Iñárritu: ethos e
ficcionalidade documental

/////////////////// Cláudio Coração1

1. Doutor em comunicação: meios e processos audiovisuais pela Escola


de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em
comunicação pela Universidade Estadual Paulista. Graduado em
comunicação social/jornalismo pela Unesp. Professor dos cursos de
comunicação social da FIB (Faculdades Integradas de Bauru) e da
Universidade Paulista, campus Bauru. Coordenador auxiliar do curso
de Jornalismo da Unip, campus Bauru. Membro do grupo de pesquisa
MidiAto na ECA-USP. Autor do livro “Repórter-Cronista em confronto”
(Annablume; Fapesp, 2012). E-mail: [email protected]

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Resumo
Pretende-se, com este trabalho, identificar aspectos relacionados
ao problema da comunicação no cinema de Alejandro González
Iñárritu — fundamentalmente os filmes Amores brutos (2000),
21 gramas (2003) e Babel (2006). Por meio da interface teórica
da cultura, da comunicação e do audiovisual, categorias como
ethos, diversidade e ficcionalidade documental serão tratadas na
perspectiva estética do cinema de González Iñárritu, assim como
em sua representação da contemporaneidade.

Palavras-chave
Comunicação, conflito, González Iñárritu, ethos, ficcionalidade
documental.

Abstract
This article intends to identify aspects related to the problem
of communication in Alejandro González Iñárritu cinema —
fundamentally the movies Amores perros (2000), 21 grams (2003)
e Babel (2006). Through the theoretical interface of culture,
communication and audiovisual, cathegories like: ethos, diversity
and documental fictionality will be treated in the esthetic perspective
of González Iñárritu cinema, as well as in their representation of
contemporary.

Keywords
Communication, conflict, González Iñárritu, ethos, documental
fictionality.

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

Introdução

Nossa empreitada, com este trabalho, é evidenciar sintomas da


comunicação em conflito a partir das condições percorridas na
produção de González Iñárritu, isto é, de que maneira a tensão
midiática se finca nas proposições dos seus filmes, principalmente
no tocante às temáticas de forte aspiração social, e como esse
cinema se liga a um “espírito” de choque e brutalidade.

Essa premissa é essencial para alinhavar a ideia de conflito,


justamente pela tensão midiática. Esse traço se localiza, antes
de tudo, ao se perceber uma tendência mais abarcadora na
evidenciação da obra de Alejandro González Iñárritu. Amores brutos
(Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003) e Babel (2006)
cogitam uma trilogia do desassossego e da desordem como instância
comunicativa midiática e desempenham, paradoxalmente, a crítica
às atribuições de função da ordem também midiática.

Nessa tensividade, mostra-se outro aporte interessante, como


a representação da cidade (e do mundo) com os personagens
atrelados a uma significação de conflito e de matriz midiática. É
como se os filmes de González Iñárritu se fundamentassem numa
dialética que se dá em torno de propósitos denunciativos, críticos
e se materializassem como o sintoma temático de incomunicação
(basta percebermos o estranhamento entre os personagens,
notadamente em Babel), ou de dificuldade na organização de
fenômenos próprios da linguagem e/ou da cultura (em Babel, há
um aporte fatalista dessa ideia de cultura). Não sem sentido, essa

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 191


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Artigos

contradição de fundamento mais conceitual, digamos, é fruto quase


lógico da palavra comunicação ou do que poderíamos pensar como
tensão comunicativa, por conseguinte.

Conforme salienta Wolton (2006), o impasse configurado no


estabelecimento da comunicação como emblema pressupõe os
interesses dos atores contemporâneos em colapso, no profundo
elo de uma torre de Babel corrosiva diante das dualidades
entre a identidade e os simulacros da indústria de espetáculo,
constrangedora das autonomias. Talvez essa orientação perceptiva
de Wolton seja significativa para entender que o choque do real
contemporâneo se constrói, justamente, no entrelaçamento de
instâncias aparentemente citadas: os filtros da base de realidade
e o sintoma da tensão conflitante em escala global. Assim, em
Babel, principalmente, há rupturas de uma ordem alicerçada pela
globalização como guia. Já em 21 gramas e/ou Amores brutos, se
sustentam aspectos vindouros da representação, mais clara, da
brutalidade, do incômodo e do desconforto.

Ora, esses mesmos incômodos são proposições, na obra de


González Iñárritu, porque neles se encontram as complexidades
em torno da comunicação contemporânea. Esse descontrole de
difícil demarcação acerca do “controle do mundo” é instrumento
de linguagem e representação da diferença como validade da
tensão ou do conflito. A comunicação se mostra em conflito
porque nela se sedimentam todos os apelos de choque e de torpor
da sociedade contemporânea. A noção de identidade se configura
com forte presença nesse debate, justamente, pela apropriação
de sentimentos diante de um mundo mediado pela técnica, mais
propositadamente política, numa reconfiguração das ideias de
Benjamin (o debate do uso e da apropriação de uma nova narrativa
moderna). Estaríamos num mundo em que a identidade se
fundamenta, pois, na estruturação lógica da diferença, envolvendo
características de configuração identitária e sua orientação mais
tácita: cruel, corrosiva, descompassada, desalojada.

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

Esses aspectos são mais bem abarcados no pensamento de


Hall (2000)

O conceito de “identificação” acaba por ser um dos


conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social e
cultural, quase tão ardiloso – embora preferível – quanto
o de “identidade”. Ele não nos dá, certamente, nenhuma
garantia contra as dificuldades conceituais que têm
assolado o último [...]. Em contraste com o “naturalismo”
dessa definição, a abordagem discursiva vê a identificação
como uma construção, como um processo nunca
completado – como algo sempre em “processo” (HALL,
2000, p. 105-106).

A identidade, essencialmente, vê-se anteposta ou “preenchida”


com o estranhamento2, muitas vezes advindo das mídias, aquilo que
2. Arlindo Machado nota o diálogo Muniz Sodré chama de ethos midiático, na interpretação do hábito
entre a noção de estranhamento e de uma sociedade midiatizada, regida e alicerçada pelo costume
o processo de internacionalização da comunidade inserida em uma episteme comunicacional. Os
do cinema mundial: “Um cinema
impasses de uma sistemática de González Iñárritu como realizador/
foi considerado uma arte universal,
devido ao pressuposto (um tanto criador ganham sentido na elencagem de desconforto, a partir
equivocado) de que a linguagem de uma filiação de desajustes dos mesmos conflitos da produção
das imagens é universalmente cinematográfica recente, como um ethos: é possível localizar/
compreendida, mas esta suposta
identificar os aspectos identitários nos filmes de González Iñárritu
universalidade desaparece quando
os personagens começam a falar” a partir dos comportamentos espaciais e das funções sociais que os
(MACHADO, 2008, p. 107). personagens ocupam.

Esse filão, vamos assim dizer, permite situar Amores brutos, 21


gramas e Babel no desejo de algo mais forte, porque neles a tensão
se mostra como referencial de um momento histórico/estético/
cultural em que a comunicação de massa adquire esse estatuto
de confinamento de signos. Said (1990), ao notar os aspectos de
dualidade entre a identidade e a locução do cotidiano, estabelece
esses mesmos pontos no contato com marcas de identidade, por
exemplo, entre Ocidente e Oriente. Se o cinema contemporâneo
é entendido como um aspecto multifacetado de ação, essa
configuração sobre críticas audiovisuais contemporâneas deve ser
entendida como um esclarecimento entre o conflito e a resistência,

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Artigos

em que o comportamento se imbrica nos meios de comunicação


de massa e nas demandas sociais. No mais, o emblema a respeito
do termo genérico mídia reforça e remodela (segundo García
Canclini, Martín-Barbero e outros teóricos latino-americanos) a
comunicação como sentimento fratricida de controle e descontrole
do próprio cabedal simbólico, elucidando tanto a noção de ethos
como a de proposição estética, além da legitimação.

O problema da comunicação no cinema de González Iñárritu

O problema da comunicação está revestido de um dilema


contemporâneo, porque a espetacularização dos sinais evidencia,
mais e mais, uma lógica discursiva moldada incessantemente pelo
espetáculo. Essa ordem midiática, é bom frisarmos, não impede o
apelo apenas de veiculação, mas é, antes de tudo, uma recorrência
moldada por uma estampagem do real. É possível notarmos esse
sintoma na urgência de real em Amores brutos, na potencialidade
da morte em 21 gramas, e na diluição das identidades em Babel.

Com esse estabelecimento, o cinema de González Iñárritu


realiza uma carga enérgica das pulsões e representações no
entorno do objeto cultural do mundo — como uma descrição
dura da realidade — porque se instala uma solicitação de
sociedade midiatizada, na essência da autenticidade audiovisual.
Segundo Sodré (2009):

A sociedade midiatizada é um novo tipo de sociedade do


discurso, expressão de Foucault para designar os grupos
constituídos em função de um controle específico da fala,
quando ele se pergunta sobre o que há de tão perigoso
na fala das pessoas, sobre qual o perigo de os discursos se
multiplicarem indefinidamente. Esse conceito refere-se a
grupos específicos, que institucionalizam procedimentos
de exclusão — por meio de sistemas de interdição,
rejeição e vontade de verdade — e incidem sobre o
discurso. São os mesmos grupos que o sociólogo Pierre
Bourdieu deu o nome de “campos”, ou seja, estruturas
constituídas ao redor das pressões, assim como sanções
externas e internas (SODRÉ, 2009, p. 20).

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

A partir da colocação de Sodré, evidencia-se que o problema da


comunicação é sedimentado com os discursos das legitimações. No
nosso caso, aqui, tais apresentações são entendidas como processo
de legitimação da realidade, na medida em que se sedimenta
uma voltagem que é a comunicação em terra de desordem,
fundamentalmente os meios de comunicação de massa, o cenário
urbano, a crise identitária/existencial e o terreno da globalização. A
desordem pode ser resumida no seguinte esquema:

 Amores brutos: disparidade urbana;

 21 gramas: disparidade existencial;

 Babel: disparidade identitária.

Seguindo essa orientação, notamos que se estabelecem dois


filtros desse processo de legitimação:

 Os meios de comunicação de massa e seus discursos são


envolvidos em elocução de um mundo pasteurizado;

 A dificuldade da comunicação fundamenta-se pela


internacionalização e pelo poder simbólico da globalização.

De qualquer modo, essas premissas permitem explorar que há, de


forma reiterada, uma problemática levantada no seio da sociedade
contemporânea em torno da própria comunicação. Em outra
perspectiva, Martín-Barbero nos apresenta a noção de “ficção
da realidade”, a estancar ou a tentar entender os mecanismos
de certa massificação das representações (MARTÍN-BARBERO,
2009, p. 256-257).

Há, no apontamento de Martín-Barbero, uma verificação


de uma sociedade em desmazelo que se aproxima do valor da
mediação corrosiva, como processos de convivência pela chave
do conflito, portanto. Se juntarmos os apontamentos de Sodré
com o de Martín-Barbero, percebemos que a contemporaneidade

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Artigos

se instaura por linguagem condicionada pelas amarras de uma


comunicação conflituosa e conflitante.

Sobretudo, a questão de choque se desenvolve na frente da


legitimação do real ou dos discursos pertinentes de uma estética da
brutalidade, porque é no desconforto e na fluidez que as fronteiras
escasseiam, e o esgarçamento das relações se torna mais nítido,
como na indomável condição desalojada de Octavio (Amores
brutos), Jack (21 gramas) e Amelia (Babel).

Ora, estamos diante de uma síntese de sutilezas acerca do


problema comunicacional e do ethos de representação que nos
distingue das referências de uma sociedade regida pelo discurso.
Não deixa de ser curioso, porém, que o anseio de um mundo
globalizado embruteça as categorizações mais estanques, mas
também demonstre, principalmente pelo audiovisual, uma
resistência da representação pictórica do cinema como guia de
referendação do real, a partir da imagem mediada e técnica. Esses
impasses envoltos em complexidade devem ser entendidos como
instrumentos da própria comunicação em tempos de globalização.

Wolton vislumbra, em sua análise, a provocação de uma


materialidade chamada “sociedade da informação”. A saída para
os impasses da contradição ou da complexidade dos problemas
comunicacionais deve ser orientada pelo entendimento da questão
do outro, no exercício de alteridade desenvolvido pela coabitação.

Mais do que um conceito vago, parece haver, na coabitação


preconizada por Wolton, um estranhamento de matriz conceitual
da função da informação sedimentada em uma perspectiva teórica
balizada na pista das identidades autônomas e, portanto, situada na
polarização da comunicação com o conceito de incomunicação:

A incomunicação é um último estágio, poder-


se-ia dizer, da comunicação, no sentido que ela
legitima a irredubitibildiade das identidades na
comunicação. Comunicar não é por passar por cima
das identidades, é fazer com. Busca-se a partilha.
Troca-se. Apóia-se na incomunicação. Constrói a
coabitação (WOLTON, 2006, p. 223).

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

Ora, percebe-se que Wolton propõe algo racional na superação de


etapas do conceito de comunicação. Esse entendimento é facilitado
acerca do conflito. Na fala de Wolton e na de Sodré (sobre o ethos
midiático), verificam-se as estruturas de ordem comunicacional e
a dura tarefa de marcar o ficcional das marcas das realidades que
pulsam mais e mais em sua legitimidade: na busca da brutalidade,
na fragmentação propositiva ou na documentalidade rascante.

A ficção e o documental: presenças e convergências no cinema


de González Iñárritu

A legitimidade do real é tomada como filtro na seara da discussão em


torno da representação. Nesse sentido, os atributos de autenticidade
passam por uma operação, digamos assim, de cunho realista. Essa
chave de operação revela um modo de apropriação em torno da
cultura e da representação da obra de arte.

Quando falamos que há uma estética da brutalidade, estamos


nos referindo, evidentemente, a essa pane em torno da realidade
abrupta inserida no realismo mais avassalador. Se retomarmos
aqui o funcionamento do naturalismo, veremos as instâncias da
autonomia da imagem, por exemplo.

A obra de González Iñárritu é consequência de um


questionamento sobre a estranheza da filiação do real, ou dos
aspectos de verossimilhança, fundamentado na imagem realística.
Nesse centro, o funcionamento ficcional e a documentalidade
se chocam com as representações e se convergem para elas,
principalmente a temática da natureza indomável: tanto dos
personagens em crise quanto do espaço da tensão cultural.

Nesse sentido, o problema comunicacional da coabitação


levantado por Wolton adquire um papel maior e mais estendido
de percepção da realidade, na resistência e na autonomia, ou na
legitimidade, qual seja a documentalidade.

Essa documentalidade com “borrões ficcionais” (PEREIRA,


2007), todavia, é impactada no cânone das relações entre a
máquina e o dispositivo técnico (notemos os dilemas do cinema
contemporâneo para balizar esse estado de coisas) por se vincular

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Artigos

à verossimilhança fílmica, de um lado, e ao discurso emoldurado


pela vontade de verdade, de outro. Essa tensão e aproximação — ou
imbricação — são corrosivas na medida em que nelas se depositam
as instâncias mais “sérias” da representação contemporânea.

O audiovisual, ou a narrativa audiovisual, fundamenta-se


como um dispositivo de força e referendação visto que a imagem
se solta na sua propensão de verdade e de filtro. Ou seja, é pelas
narrativas audiovisuais de forte impacto realístico que as instâncias
de um mundo cindido pelo conflito e pela brutalidade se tornam
impassíveis da própria comunicação como salvaguarda.

Nessa direção, o suporte de mediação conflitiva das coisas


no cinema contemporâneo e todas as manifestações próximas
aos cunhos documentais, artísticos e estéticos se emolduram
numa espécie de rito da parição do real, a referendar um estado
de sentimento próprio de base documental. O documentário
(entendido como uma resenha de registro da realidade),
especificamente, deve ser pensado num percurso de fuga que é a
função de uma forma.

Se o tema duro da realidade é uma escolha estética, estamos no


impasse diante das conveniências entre uma produção audiovisual
calcada na esfera de cisão realista e um impedimento lógico da
aspiração e experiência estética diante do estranhamento. Com essa
percepção, conforme diz Jaguaribe (2007), estampa-se o choque
de realidade confinado também a certo esteticismo, tanto ficcional
como documental.

De modo que a estética da brutalidade é fruto de um caminho


de concepção do problema das representações e das buscas de uma
realidade mais aprimorada ou factível, mas também reveladora do
impasse em torno da representação da comunicação ou da função
comunicacioal alojada de suas problemáticas de concepção e de
espisteme, como salienta Sodré.

Se o documental é súmula no cenário da globalização (e suas


“realidades”), a saída é vinculada ao que Jaguaribe estabelece
como diagnóstico das estéticas do realismo e das consequências
nas narrativas audiovisuais contemporâneas, eminentemente as

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

brasileiras do cinema da retomada. Há, no pensamento de Jaguaribe,


uma preocupação de entender os rumos e as manifestações de tal
choque com a ideia de documentalidade.

A subversão de paradigmas e a superação de conceitos, na


relativização de uma premissa contemporânea, estampam as
autenticidades realistas, evocando a fabricação ficcional no
consentimento tácito da vida social. O debate em torno da ficção,
confeccionado de acordo com uma estética do acontecimento
mais impactante, transforma-se em linhagem de entendimento do
mundo mais densamente (e tensamente) calculável. Nesse sentido,
a verossimilhança se apega à veracidade como uma estética cada
vez mais presente nas temáticas do atributo da ordem do real.
Se pensarmos nas disjunções de lógica do cinema moderno e nas
transformações da afecção documental como mecanismo de busca
de controle, notaremos que o dinamismo entre a propensão do
mostrar e a do não mostrar adquire sentimento de um cinismo
cinematográfico próprio também das aspirações contemporâneas3.
3.. Inácio Araújo, em crítica sobre Assim, estamos diante de um modelo que estabelece um
Amores brutos publicada na Folha
momento sociológico de apreensão, na medida em que carrega os
de S. Paulo, — “Amores Brutos
mostra pobreza meio pernóstica” — ditames também teóricos do entendimento do que seja o cinema
nota uma característica intrínseca contemporâneo, ou o cinema a partir de bases de ruptura do cinema
no cinema de González Iñárritu: moderno e os consequentes rearranjos do cinema mundial em duas
“Trata-se de uma pobreza realista, orientações: o cinema-evento e o cinema independente.
sem charme, com pessoas se
decompondo à nossa frente. O A partir de convergências e divergências, a ficcionalidade é
charme, ao menos para quem é refém da documentalidade, num outro completivo de ordem
tocado por ele, vem da construção.
da comunicação, ou, para ficarmos em termos mais polidos, da
Que a mim, francamente, parece
apenas meio pernóstica”. Disponível. mediação. Essa enunciação de base é evidenciada na propagação
em: <http://www1.folha.uol.com.br/ da ficção no tocante à naturalização da narrativa e do discurso.
fsp/ilustrad/fq2604200723.htm>. Bulhões (2009, p. 21) nos mostra que:

O mais acertado é supor que o ficcional e o devaneio nunca


estão completamente separados da nossa experiência
com o real palpável, mas, a todo o momento – e muitas
vezes de modo astuto –, assaltam e envolvem a existência
concreta e pragmática. De maneira fundamental, é muito
difícil atribuir à nossa experiência de apreensão do que
chamamos real uma capacidade delimitativa que o torne
algo “puro”, neutro, exilado do componente ficcional.

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Artigos

Com a fala de Bulhões, estabelecem-se uma junção e uma


divisão ordenada (ou desorganizada talvez) na acepção da
resistência documental. É que o documental passa a ser o retrato
do componente da transparência. Esse estado de luta e de
condicionamento da separabilidade da subseção do documentário
como instância autócne é verificado pelo acontecimento mediado
por uma singularidade (autenticidade e legitimidade, em síntese)
na representação factual da mídia corriqueira.

A atualização do acontecimento sugere uma intensidade


das relações do nível do narrar da vida emoldurando-se por
uma excepcionalidade e por uma singularidade. A produção de
González Iñárritu se condiciona a um estado de coisas medido
pela aventura da singularidade posta em desconforto nas etapas
de fragmentação. Esses aspectos são trabalhados, não seria leviano
ponderar, em suas fatias de documentalidade, posto que esse termo
possa ser controverso, mas inserido na lógica autônoma de uma
imagem condicionada em sua própria autonomia, regida pelo “fato
consumado” no nível temporal do acontecimento.

Nesse sentido, Amores brutos evidencia uma cidade em painel,


a partir de um desconsolo; em 21 gramas, ocorre a incorporação de
um cenário fragmentado a uma ordem de cunho vital; e, finalmente,
em Babel, há a fundamentação de um documento posto em xeque
no debate acerca de uma cultura volátil pela própria realidade.

Percebe-se, logo, que a incorporação da documentalidade e o


seu eterno devir de conflito com o ficcional adquirem um posto não
apenas de separação mas também de imbricação de uma vontade
de verdade, ou, mais felizmente, de uma encenação condicionada
pelos aportes de registro do documental, circunscrito no discurso
arredio. Não sem interagir com uma encenação do mundo real — o
melodrama (de tradição mexicana das representações da sociedade
como Emílio Fernandez, por exemplo) e o naturalismo fazem esse
papel com mais parcimônia —, mas na tentativa de emoldurar uma
representação de primazia real.

É evidente, portanto, que Amores brutos, 21 gramas e Babel


operam na chave da ficcionalidade, mas neles há um dispositivo
medido pela imagem cinematográfica como filtro de sua etapa

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

de representação, porque são medidos pelo risco condicionado à


intensidade do acontecimento do aparato de documentalidade e
também alinhado ao melodrama mais solto da ficcionalidade.

Essa ambígua representação, sobretudo, dá-se em aproximação


à fala de Sodré, a partir da força da imagem solta e fruída das
resistências em torno do real: fundamentalmente os níveis de
desassossego do cotidiano, as agruras do comportamento urbano e
os difíceis elos de relação e de comunicação.

Desse modo, as orientações em torno do documentário podem


se estabelecer como um dispositivo distinto de referência estética e
de linguagem, porque o documental estampa o desconforto vívido
na autenticidade quase pueril das vozes ditadas em seus produtos
mais dogmáticos. No entanto, Nichols (2005), ao nomear as vozes
do documentário, relativiza algumas questões:

As mudanças nas estratégias do documentário guardam


uma complexa relação com a história. Estratégias
auto-reflexivas parecem ter uma relação histórica
particularmente complexa com o documentário,
uma vez que são muito menos peculiares a ele do
que a estratégia da “voz de Deus”, o cinema direto e o
filme de entrevistas [...]. Em todo o caso, as recentes
aparições de estratégias auto-reflexivas correspondem,
expressamente, a deficiências na tentativa de converter
práticas da antropologia escrita, de cunho marcadamente
ideológico, numa agenda prescritiva [...] (neutralidade,
descritividade, objetividade, “ater-se aos fatos” e assim por
diante) (NICHOLS, 2005, p. 66-67).

É evidente, portanto, que o debate acerca de um acontecimento


regido pela singularidade se localiza, neste trabalho, na discussão
sobre a legitimação, como já foi demonstrado. Nichols esclarece
que as regras da representação de objetividade são dispositivos
de conduta, sobretudo. Não precisaríamos antepor, assim, certa
conduta do signo do real no documentário aos filmes de González
Iñárritu aqui retratados.

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A essa discussão corresponde outro estado de apropriação/


apreensão da realidade pelo cinema, que se torna mais arredio com
os aspectos da modernização do audiovisual — e a consequente
crise do sujeito histórico, sua melancolia das relações com a
realidade que se sedimenta incansável.

Considerações finais: discurso do conflito como síntese de uma


estética em González Iñárritu

É muito importante salientar que as teorias do cinema, muitas


delas, apontam uma dimensão preconcebida de mundo a partir
de um esteio do impasse das questões em torno da manifestação
analítica. Desse modo, é inerente associar determinado fenômeno
cinematográfico ao estatuto teórico que o orienta, e vice-versa.

Nesse sentido, a obra de González Iñárritu (ainda em formação)


se constrói com um olhar pouco plausível de modelos teóricos já
arraigados. Porém, todo o debate teórico canonizado está próximo
desses dilemas.

Nos processos de desconstrução, a imagem se autonomiza como


resistência de um “projeto” de cinema. No entanto, a representação
da realidade é questionada no conflito e no debate acerca de um
estatuto que se estampa na estética, como o Neorrealismo.

Trata-se de características que se moldam às sensações. Porém,


o tempo fundamentado por um processo de registro e de modelo
de resistência se encara no Neorrealismo com intensidade do que
seria o mundo, por aportes técnicos e discursivos de saturação entre
transparência e opacidade (conforme XAVIER, 2008).

Essa dualidade é premente para entendermos que se intensifica


uma estética de representação do real própria do cerne de
averiguações do conflito e da dificuldade de comunicação e da
fundamentação de sensibilidades (MARTIN-BARBERO, 2007).

Entretanto, é bom frisar, o estabelecimento de uma estética


da brutalidade no cinema de González Iñárritu é envolto
numa representatividade realista e escancara as nuances em
torno da representação dos impasses entre a matriz ficcional
e o advento documental.

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

A linguagem no cinema de González Iñárritu deve ser


entendida como um meio de análise e de síntese da configuração
de uma noção multicultural, atrelada aos dispositivos de conduta
do cinema como manifestação orientada no próprio sentido.
Desse modo, a materialização do cinema se dá em sua autonomia
e força da imagem.

A partir disso, notemos o que diz França (2003), na associação


entre a experiência dos propósitos temáticos e as duras atribuições
do nível do cotidiano do cenário cinematográfico: “Práticas de
ocupação do espaço remetem [...] a formas específicas de estar, de
se situar, de fazer; trata-se de formas de espacialidades que dão lugar
a um estado de coisas, à medida que elas se insinuam “no texto
claro da cidade planejada e visível” (FRANÇA, 2003, p. 55).

Ora, a constatação de França remete às demarcações que faz


das teorias do cinema — basicamente o olhar multicultural —,
para que as representações realistas “impuras” se deem no contato
do mundo registrado com a planificação do mecanismo vital. Esse
mundo, salienta França, pode ser regido, e muitas vezes o é, pela
fascinação visual. Essas relativizações são deferidas num outro
debate. De qualquer modo, França lança mão de um aspecto
fundamental para a discussão sobre a narrativa cinematográfica,
que são a fragmentação e a consciência de um novo modelo de
apreensão na contemporaneidade:

Assim é que as novas narrativas cinematográficas, ao


investirem no realismo radical das experiências de vida
contemporâneas, podem ser atravessadas tanto por um
desejo — dissonante — de ser a “consciência” e a memória
das imagens do mundo, provocando um desacordo em
meio às imagens mediatizadas, tecnológicas e políticas,
como também pode ser atravessadas por um desejo —
consensual — de totalização e ordenamento, acentuando
uma vontade de consenso e de unificação (FRANÇA,
2003, p. 124-125).

As características do cinema de González Iñárritu situam-se no


forte apelo a essa ideia de fragmentação — como conflito de

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Artigos

“sujeitos múltiplos” (FRANÇA, 2003) e como funcionamento


da incompreensão e do estranhamento (MACHADO, 2008).
Resumindo: as forças que agem na legitimação do real se sedimentam
pelo arcabouço mais clássico da representação. Essa legitimação do
real está alicerçada, sobremaneira, no caso de González Iñárritu,
numa evidenciação do conflito que é emblema de um esteticismo
modelo.

A estética da brutalidade se empreende pela função pregada nas


etapas do tempo e do espaço e do papel que os sintomas representam
em uma narrativa. Confirma-se que as inconveniências postas no
conflito do cinema de González Iñárritu são mais posicionadas no
debate acerca do multiculturalismo e do hibridismo.

Cleber Eduardo (2008) estabelece uma orientação a respeito


da práxis de um cinema contemporâneo regido pela ideia do
transnacional. Não de outro modo, a definição de Cleber Eduardo
disputa um pouco na lógica de um cinema que ruma a certo ditame:

Alejandro González Iñárritu talvez seja o mais


influente e o mais reconhecível dos diretores latino-
americanos transnacionais. Suas narrativas com quebras
da organização cronológica, sua câmera instável, sua
enorme quantidade de cortes, assim como seus materiais
de intensidade dramática e estruturados sobre tipos
variados de perdas e traumas, com especial interesse para
o ambiente familiar, criaram uma grife para o cineasta.
É óbvio como Amores brutos, 21 Gramas e Babel são
de um mesmo diretor. Na verdade, são de um mesmo
projeto estético e dramático (CLEBER EDUARDO,
2008, p. 208-209).

Portanto, o cinema de González Iñárritu está próximo das


transformações de códigos de fusão que, antes de tudo, desenvolvem
uma transição da fragmentação multicultural do conflito. Por isso,
a mídia se formula como uma ideia também intempestiva.

Há, nesse debate, um apelo a algo que foge da estratificação


da globalização como marca indelével (o papel do México
contemporâneo em Amores brutos; a crise do sujeito em 21 gramas;

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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

a interculturalidade em Babel), e é nessa intensa luta discursiva que


a mediação se mostra como estatuto importante, ou seja, instala-se
a relativização entre uma dinâmica mais “antiga” e a crítica cultural
recente, apegada à perspectiva de um cinema transnacional
(conforme aponta Cleber Eduardo).

Esses respaldos teóricos sintetizam, de certo modo, a


transformação que se dá pelas destinações da imagem de um
cinema representativo, em várias instâncias. Para Stam (2010), o
pensamento de Deleuze adquire força nesse debate:

A transição da imagem-movimento para a imagem-tempo


é multidimensional, ao mesmo tempo narratológica,
filosófica e estilística. Enquanto a imagem-movimento
utilizada no mainstream hollywoodiano apresenta um
mundo diegético unificado transmitido pela coerência
espaço-temporal e por uma montagem racional de
causa e efeito [...] a imagem-tempo fundamenta-se na
descontinuidade, tal como promovida pelos “cortes
irracionais” dos jump-cuts de Godard ou pelas elegantes
não correspondências dos falsos raccords de Resnais
(STAM, 2010, p. 286).

Desse modo, a análise de Stam pontua uma característica de fusão


de teorias que, grosso modo, se estabelecem também como a
gênese de uma comunicação em conflito (como tema e como ethos
nos filmes de González Iñárritu). Acreditamos que o cinema de
González Iñárritu, portanto, identifica todos esses sintomas por se
permitir altivo na proporção quase ambígua entre um mundo em
desajuste e a tentadora propositura utópica de grito naturalista a
reivindicar uma densa humanidade. Há coerência nesse propósito
cinematográfico, na afirmação do mundo duro.

Essa coerência audiovisual fortalece as aspirações de um cinema


veral, de componente social e, por conseguinte, aponta um ideário
próprio da condição do mundo contemporâneo: a fragmentação, a
brutalidade e o melodrama, essencialmente. Com isso, o conflito em
González Iñárritu é escancarado na sua dificuldade comunicativa,
nos seus ambíguos incômodos e nos seus dilemas contemporâneos
inquietos e terríveis.

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Artigos

Referências

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Teoria contemporânea do cinema: documentário e narratividade
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Comunicação em conflito no cinema de Alejandro González Iñárritu: ethos e ficcionalidade documental | Cláudio Coração

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XAVIER, I. O discurso cinematográfico. São Paulo: Paz e


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submetido em: 28 mai. 2013 | aprovado em: 12 ago. 2013

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 207


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O tempo, a pintura e o
político em Passion,
de Godard
Roberta Veiga1

1. Doutora em comunicação social pela Universidade Federal de


Minas Gerais e professora do Departamento de Comunicação da
mesma instituição. Foi pesquisadora e professora visitante da University
of Texas at Austin (de 2010 a 2011). É editora da revista Devires -
Cinema e Humanidades e participa do grupo de pesquisa “Poéticas da
Experiência” (UFMG). E-mail: [email protected]

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Resumo
Neste texto, tal qual numa engenharia reversa, busco recompor o
desenho do mecanismo fílmico de Godard, em Passion (1982), a
partir de três eixos que o constitui — (1) a pintura, (2) o tempo e (3)
o político —, no intuito de demonstrar em que medida a maneira
como a junção de temas de naturezas distintas faz do filme um
acontecimento não só estético mas também político.

Palavras-chave
Godard, Passion, tempo, pintura, politica.

Abstract
As in a reverse engineering, I try to reconstruct the design of the
mechanism of Jean-Luc Godard’s Passion (1982). The analysis
proceeds by decomposing the main axes of the film: time,
painting, and politics. I aim here to demonstrate how different
themes, when combined, can make the movie both an aesthetic
and a political happening.

Keywords
Godard, Passion, time, painting, politics.

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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

Há algum tempo, em minhas pesquisas, tenho me dedicado a


procurar filmes que se ofereçam à análise como mecanismo singular
cujo desenho ou diagrama possa ser extraído. Nesse aspecto, é
inegável a expressividade do cinema de Jean-Luc Godard, que,
apesar do acento ficcional, possui um funcionamento intrincado
que se modifica a cada fase de sua filmografia e, continuamente, se
afasta das clássicas formas de narratividade e da imagem-movimento
(DELEUZE, 1983). Neste texto, tal qual numa engenharia reversa,
busco recompor o desenho do mecanismo fílmico de Godard, em
Passion (1982), a partir de três eixos que o constitui — (1) a pintura,
(2) o tempo e (3) o político — no intuito de demonstrar em que
medida a maneira como a junção de temas de naturezas distintas faz
do filme um acontecimento não só estético mas também político.

Há vários anos, Inácio Araújo escreveu um texto sobre esse


filme no qual elogiava suas belas cores e sua força em documentar
um tempo, mas, ao se indagar pela história, admitia: não se pode
ter tudo. Realmente infeliz daquele que vá procurar nos filmes de
Godard a história tal qual no cinema de narrativa tradicional. Em
Passion, a pergunta que atravessa o filme — “onde está a história?”
— e que os personagens endereçam a todo momento a Jerzy, o
diretor “do filme de dentro” (sempre transtornado por não ter ou
não querer ter a resposta), é ela mesma instituinte da história.

Antes de tudo, ainda que ela se reinvente a cada filme, Godard


está nos contando uma história há muito tempo: aquela em que
os protagonistas não são os personagens de carne e osso, mas o
próprio cinema, e junto com ele a política, a literatura, o trabalho,

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Artigos

a música, a pintura, a arte em geral. Talvez por isso seus filmes


assustem os espectadores, que pisam num terreno escorregadio ao
procurar a verossimilhança. É sabido que Godard quer explorar
cinematograficamente uma outra relação com a imagem, que não
seja tributária da narratividade ou do literário como programa, mas
que faça uso da literatura, do texto, das palavras como matéria de um
cinema que pensa. Alain Bergala diz que a relação de Godard com
o texto passa longe da história e está no significante, no impacto de
uma frase “Godard tem uma espécie de estoque de frases, de textos.
Ele não para. Ele tem muitas coleções... é como um colecionar de
frases, de páginas, de imagens, uma espécie de pescador de pérolas”
(BERGALA, 2007, p. 90). É com esse homem que faz colagem de
citações e pode usar a mesma frase várias vezes em diferentes filmes
— sempre a transformando, traduzindo-a, e afastando-a de seu
contexto de origem, do livro que já jogou fora — que a subversão da
história, e do roteiro, começa. Sua escrita, como crítico e roteirista,
se realiza, conta Bergala (2007, p. 89), tal qual seu exercício de
cineasta: ensaístico, no sentido de que as ligações entre as ideias e
entre as imagens podem ser abruptas, rápidas, fracas, distantes. Há
sempre um jogo entre as palavras, as frases, entre elas e as imagens,
entre elas e a música. Como no ensaio, o método é o próprio filme,
e questiona a si próprio de diversas formas, constituindo-se sempre
num processo que vai do metafilme ao metacinema. O cinema
terá então esse lugar centrípeto, essa força de puxar tudo para si,
pra ruminar, refletir e devolver através de uma materialidade, de
uma textura cinematográfica toda ela heterogenia, composta de
diferentes camadas de significação.

A pintura animada

Em Passion não é diferente: o cinema é a célula-base do filme e


da trama porosa que este abriga. Trata-se de um filme movido pelo
trabalho e pela paixão, e, obviamente, pelos questionamentos que
o cinema encerra sobre si. É desse núcleo que outros trabalhos
e outras paixões se colocam a girar como num turbilhão. Eis a
voracidade de Godard: o cinema como uma máquina que a partir
de um eixo coloca o mundo a girar; encontros e desencontros entre

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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

mulheres e homens, patrões e empregados, amores e lutas, luzes e


sombras. O lugar do cinema é o do que perdeu a história e ficou
com as imagens, os sons, o fraseado. O lugar do cinema é o de salvar
do esquecimento os gestos, como queria Agamben (2000). O lugar
do cinema é o de fazer ver os vestígios de uma desaparição, como
diria Didi-Huberman (2011) — a desaparição de o trabalho no
fazer fílmico (naquela dimensão apontada por Jean-Louis Baudry2),
2. Conferir BAUDRY, 2003. do tempo na imagem, e da própria imagem no cinema.

Passion está realmente longe das “aproximações detalhadas


e calculadas do verossímil” que separam o filme do mundo real
(como diz um personagem que integra a equipe de filmagem). E, se
quisermos nomear essa célula-base do mecanismo godardiano que
fará reverberar o gesto pedagógico de “não mais seguir uma cadeia
ininterrupta de imagens, escravas umas das outras e das quais somos
também escravos”, como dirá Deleuze (2005, p. 217), trata-se de
um cinema-pintura. Um cinema que, para colocar a imagem em
questão de forma radical, vai, ainda seguindo Deleuze (2005, p.
217), conjurar todo cinema do Um, do Ser = é, e abrigar o método do
“e”, “e isso e aquilo”. Esse questionamento que se dá no “entre” está
na história: o cineasta polonês atormentado entre duas mulheres,
Isabele [Huppert] e Hanna [Schygulla], a luz e a sombra, entre voltar
para uma Polônia em “estado de guerra” e fazer o seu pretensioso
filme a partir de quadros dos grandes mestres da pintura. Está ainda
no movimento de uma história que só acontece em suas lacunas e
incompletudes, no processo formal de cinematização da pintura3.
3. Conferir AUMONT, 2004. Ou seja, o método “e”, “entre”, “intersticial” só existe quando
história e mecanismo cinematográfico são interdependentes. Se o
mecanismo se constitui em parte pela cinematização da pintura, é
porque Godard pretende, a partir dela, ao problematizá-la, restituir
ao cinema aquilo que lhe é próprio fazer ver: os gestos. Segundo
Agamben (2000, p. 56.7), o cinema é capaz de trazer a imagem de
volta à morada do gesto, pois ele é o sonho do gesto como o que há
de mais humano: o sentido sem finalidade, o sentido por si.

A pintura, que não requer ligações entre planos, na medida em


que não se dá numa banda horizontal, pela associação reta de cenas
umas após outras, mas que acontece num só espaço, ganha na mise-

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Artigos

en-scène do diretor polonês e/ou de Godard uma outra geografia.


O desfazer e refazer animado das cenas pictóricas em tableaux
vivants concedem não apenas movimento mas também peso e
corporeidade às imagens — daí o retorno a gestos comuns, muitas
vezes insignificantes, que a pintura canônica não pode resgatar. A
busca de Godard não é, como já disse Deleuze (1992), pela imagem
justa que se conformaria às significações dominantes e às palavras
de ordem; por isso é importante para ele que as imagens de onde
ele parte, o seu roteiro imagético, sejam um repositório das grandes
pinturas europeias, imagens já prontas e consagradas, nas quais ele
pode se imiscuir, que ele pode escrutinar, perfurar, e reinventar,
para dali e só dali fazer aparecer “justo uma imagem”. É como se
uma grande história que foi inscrita em quadros consagrados da
pintura ocidental pudesse ser habitada pelo cinema, de forma que
os personagens ganhassem vida como personagens de cinema que
buscam executar os movimentos exigidos pelo diretor em vão, pois
só conseguem, durante todo o filme, durar numa pose que nunca
está pronta ou perambular pelo set. Godard, na intensidade das
cores que verdadeiramente compõem os quadros, e Jerzy, em sua
obsessão pela reprodução das cenas que eles configuram, fazem
pensar quão próximo cinema e pintura podem chegar. Ao mesmo
tempo, a animação confusa e indecisa dos quadros faz ver uma
precariedade e uma fragilidade que reaproximam o cinema da vida,
e o distancia da pintura.

A espacialização cinematográfica da pintura permite que


cada imagem se apresente em seu arranjo interno, no que ela
traz simultaneamente — por exemplo, o capitão e o tenente e
a menina, em A ronda noturna, de Rembrandt (1642) —, e ao
mesmo tempo no que ela desconecta: o que sobra, o pedaço do
próprio quadro, o quadro inacabado, por fazer, suas peças a serem
montadas. São esses “despedaços” fragilmente ligados que retiram
a pintura do seu lugar fixo, enquadrado em definitivo, e a coloca
no lugar fatiado do cinema com sua possibilidade infinita de
sequencialidade, de serialidade. Essa dimensão em Passion, dos
grandes quadros da humanidade sempre por fazer, incompletos, faz
desconfiar da capacidade tão rigorosa do cinema de enquadrar, a
capacidade de, como diz Ishaghpour (1986), dar um golpe no fluxo

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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

contínuo do mundo, que aqui, na relação com a pintura, se torna


bem menos preciso. Isso porque cada pintura de que parte o filme
já é há muito um quadro pronto, prévio, carregado de história, um
enquadramento primordialíssimo. La Maja desnuda, de Francisco
de Goya (1815), é a grande imagem pronta, a referência clássica,
inquestionável, que no filme nunca está lá inteira, presa na
moldura, porque o cinema sempre falha em sê-la. Maja, que era
mesmo uma mulher real, caminha nua e vestida pelo set, vaza do
quadro, se junta a outras mulheres (aquelas operárias da fábrica),
volta a ser comum, justo uma mulher, cujos gestos se repetem, sem
pose, sem um objetivo final. Na pintura, as bordas do quadro são
para sempre, eternizam uma imagem. No cinema, as bordas do
quadro são provisórias no sentido que deverão sempre enquadrar
uma próxima cena, a que se segue e a outra, e a outra.

Aqui, pintura poderá ser outra coisa, um devir cinema, um


fluxo constante, que em Godard se encontra no “e”: a mulher e o
mosquete e sua baioneta, e a bandeira da França, e os mortos, e os
homem e suas armas, e a revolução: tudo acontece de forma que
essas imagens não serão juntas uma só, o uno da grande imagem-
identidade, a totalidade – de — A liberdade guiando o povo, de
Eugène Delacroix (1830) —, nem apenas fragmentos de um
todo, mas outras imagens-gestos que farão parte do novo mosaico
de pinturas que Godard inventa. Como diz alguém da equipe de
filmagem: “o que resta é uma obra cheia de buracos, espaços mal
ocupados”. Entre eles, justo uma imagem, a baioneta, após um giro
de 90 graus no cenário do quadro vivo que reproduz El tres de mayo
de 1808 (1814), de Goya, está apontada para o lugar do espectador
e ouvimos a voz do diretor Jerzy, que diz: “Vocês não fazem nada
para mudar vocês mesmos!”.

Se, na pintura, a imagem ganha justeza, no que tem nela


simultaneamente, que encaminha a atenção do espectador para
dentro do quadro, em Passion, somos obrigados a olhar o “e”, o
“entre”, o interstício, que nos é oferecido na animação das pinturas.
No ritual de refazer e refazer as cenas pictóricas, há sempre um
gesto que sobra, uma expressão que vaza, um corpo que vagueia,
um passo que titubeia, uma indecisão, uma lacuna, um temor

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Artigos

e uma outra imagem mundana que as atravessa: a do trabalho a


princípio não artístico da fábrica e do movimento a princípio de
não trabalho, o amor. Trata-se de um filme que opera no entre (uma
certa aristocracia nos trejeitos requintados das performances das
grandes telas e os campesinos esfarrapados de Goya, um empregado
que precisa receber seu pagamento e o patrão capitalista evasivo)
por contraste mas também por deslizamento; há coexistência de
mundos, valores, épocas, instituições, muito diferentes, que o
cinema pode juntar. Os quadros-pintura são prolongados pelos
quadros-cinema, ambos se atravessam, se misturam: entre os
movimentos, os corpos, e as mulheres nuas que representam as
telas moventes, está Isabelle, vestida, num dia comum, executando
seu trabalho corriqueiro na fábrica e a garçonete malabarista se
encurvando toda para anotar um pedido, e Hanna com seu casaco
de pele zanzando entre o marido-patrão e o diretor polonês.

O tempo folheado

Na medida em que o cinema espacializa a pintura, ele também a


temporaliza, do mesmo modo que a presença da pintura (re)significa
o tempo no filme. Se as cenas em uma pintura acontecem em apenas
uma tomada, num quadro, coisas acontecem concomitantemente;
portanto, há uma simultaneidade temporal. Por outro lado, as
camadas de tintas são como camadas de tempo, que, justamente
por serem feitas em momentos distintos, concedem à pintura uma
textura heterogênea e, desse modo, uma temporalidade folheada,
que a retira de uma dimensão estática e lhe dá vida. A montagem de
Godard parece buscar esse tempo folheado, ou seja, temporalidades
que coexistem espacialmente mas também se sobrepõem ou se
atravessam como camadas. O desenho do folheado é útil, pois se
trata de folhas que estão todas ali, visíveis, ao mesmo tempo em que
parte de uma é também de outra, se confunde com outra, ou seja,
há sobreposição, mas há diferença e atravessamento: a paixão pelo
trabalho e a paixão pelo homem; a mulher a trabalhar e a mulher
nua a perambular pelo set; o corpo que dança e o corpo que luta.

Na reunião das operárias na casa de Isabelle, elas decidem que


devem declarar guerra ao patrão. Numa cena, vemos a sombra de

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 215


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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

Isabelle, de perfil, assentada na cama, quando uma das operárias


pede a ela que aproxime a lâmpada. Ela sai da frente da luminária, e
a luz que ilumina a cena já é imediatamente o holofote que ilumina
o exército de Napoleão, que, com seus fuzis, mira a representação
de La Maja desnuda, que, por sua vez, olha os camponeses
trabalhadores, tristes, amedrontados e mortos também de Goya.

Num outro momento, somos jogados pela câmera no quadro


vivo, A ronda Noturna; são as faces e expressões dos homens que são
vistas num movimento de câmara que começa no capitão Cocq,
figura central do quadro de Rembrandt, e decompõe a pintura nos
personagens que começam vagarosamente a se mover. Enquanto
isso, uma voz em off (provavelmente de Raoul Coutard, fotógrafo
de Godard) fala sobre a iluminação da cena e diz que “bastaria
a explosão de uma luz acidental para desordenar todo o quadro”.
Um dos assistentes de direção, cansado daquilo, chama Jerzy. Nós,
espectadores, ainda estamos no quadro, quando uma discussão
ainda em off sobre o problema do filme tem início: “Não sou eu o
problema, é a iluminação”. A discussão se torna ainda mais calorosa,
e o volume da música, mais alto. Somos lançados abruptamente
pra fora do estúdio; vemos a paisagem correr acelerada frente aos
nossos olhos como se estivéssemos nos locomovendo. Até que Jerzy
diz bem alto: “Vou desistir agora mesmo!” Um acorde dessoante, e
é como se ele, o personagem, que não vemos, é quem tivesse saído
correndo. Mas essa imagem já é parte de outra camada da história,
elas se misturaram no tempo, num plano de interseção entre duas
imagens que fazem sentido por vias contrárias: o confinamento do
cenário escuro, onde se fala da luz no quadro, do trabalho que não
é mais suportável, e o fora, o espaço aberto, a paisagem iluminada,
que passa, correndo voraz, como uma fuga.

Nas duas sequências descritas, o plano de interseção é uma


metáfora: duas imagens se colam, uma escura, outra clara, um
acontecimento e outro acontecimento. Nesta última, depois do
lapso de tempo, da interseção, das árvores e do céu azul que correm
aos nossos olhos em plena luz do dia, já estamos no carro de Jerzy,
no momento em que Isabelle vai dizer, como que num acorde
derradeiro: “Eu fui demitida!” Foi Godard mesmo quem disse que

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Artigos

Passion poderia ter como subtítulo: “o mundo e sua metáfora” ou


“o elemento social e sua metáfora”.

Há uma sobreposição parcial, de forma que cenas acontecem


concomitantemente e ao mesmo tempo fatiadas em momentos.
Quase podemos ver um mesmo tempo em quadro diferentes, na
banda horizontal, uma cinematização da pintura. A montagem
faz as cenas se sobreporem de forma que, antes de terminar
uma célula narrativa —, uma mesma sequência organizada
espaçotemporalmente —, outra começa surgir e a desorganiza.
Intrusa, a toma até que ela se esvaneça, e resta a subsequente, e
assim por diante. Isso se dá pelo som, por elementos cenográficos,
ou pelo próprio mecanismo de atravessamento do quadro encenado
pra vida, da vida para o quadro filmado, com o que vamos sendo
familiarizados ao longo do filme.

Nessa montagem folheada, as pinturas funcionam como


vestígios de uma história que desapareceu e que Godard revive em
outro espaço. Uma camada de tempo por sobre a qual ele constrói
outra, presente, sem deixar que a primeira desapareça e, por sobre
outra (mas não totalmente), ainda outra, a imagem que virá, aquela
que ele quer alcançar sempre, que o faz permanecer filmando, que
o faz acreditar na luz que cria o cinema, que faz reascender, entre
tenentes e capitães, a menina de Rembrandt (Ronda noturna), que
faz brilhar a camisa branca do trabalhador espanhol que, de braços
abertos, enfrenta os fuzis de Napoleão [Goya] e que ilumina os
pequenos afazeres de Isabelle na máquina.

A força política

Um cineasta imerso, absorvido, transpassado pelas imagens que


está criando, inspiradas em outras imagens: assim Godard está,
no início dos anos 80, quando realizou Passion, e assim é visto
no documentário sobre o filme, ao se postar frente a tela que ora
branca reflete sua sombra, transformando-a em imagem, ora já
coberta por imagens transforma a cabeça do cineasta (de óculos e
cigarro na boca) numa tela viva. No dispositivo de Roteiro para um
filme Passion, fragmentos de cena passam, literal e fisicamente, na

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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

cabeça de Godard. Segundo Anita Leandro, ao realizar essas notas


filmadas de roteiros imagéticos4, para não ter que escrever ou ler,
4. Salve-se quem puder (a vida):
mas ver e ouvir, Godard faz
roteiro (1979), em Roteiro do
filme Paixão (1982) ou mesmo
uma passagem arriscada do autor ao artista e esta mise-
em Notas sobre o filme Je vous
en-scène de si mesmo marcará, na obra do cineasta, o
salue Marie (1983).
início de um longo caminho em direção à autobiografia,
caminho no qual ele avançará em seguida com Prénom
Carmen (1982) e que desembocará mais tarde em
História(s) do cinema (1988-1998) e, finalmente, em
JLG/JLG (1996), filme autobiográfico por excelência
(LEANDRO, 2003, p. 686).

Um Godard que segue resistindo ao cinema comercial, ao


espetáculo, aos roteiros fechados que guiam as histórias e a
vida, mas não mais denunciando o aparato com as estratégias
performáticas dos atores, ou fazendo manifesto contra a sociedade
de consumo, ou se unindo à pop arte contra os capitalismos, ou
usando anarquismos e aventuras estéticas terroristas. Godard não
mais parte de dentro desse domínio domesticado da linguagem
para que o cinema com todo seu poder possa libertá-la. O cinema
é bem menos agora. Por isso, ele parte da memória, da tela
branca, da ausência, da impotência de quem não tem um roteiro
prévio, para que o trabalho do cinema, assim ele o quer, seja um
investimento de todos (diretor, fotógrafo, atores e até mesmo
personagens) em busca da justa imagem. “A de achar não os
papéis mas os movimentos”, diz ele no documentário. E se o falso
raccord ainda persiste, ele amadureceu. Não mais a ligação frouxa
entre as imagens, mas o balanço entre elas, que se produz nesse vai
e vem — que Godard representa gestualmente no documentário
ao erguer as mãos, e reproduzir o movimento de uma onda, frente
à tela que reflete o quadro maneirista Ariadne, Venus e Baccus, de
Tintoretto (1576) —, num ritmo, num som, em outras imagens
distintas e distantes daquelas todas que já existem a nos rodear e
a nos perseguir. Que os sentimentos tragam os acontecimentos, e
não o inverso, lembra Bresson.

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Artigos

Como bem disse Mateus Araújo (2007, p. 38), o cinema sempre


ofereceu a Godard um modo de compreensão político do mundo.
Mais do que um aparelho ótico produtor de imagem e movimento,
ele era um lugar de resistência aos modos de ver dominantes. Ou
seja, o lugar do cinema era também o lugar da construção da
visibilidade, e, como já nos disse Foucault, modos de ver são formas
de poder (1987) e, como também nos ensinou Comolli (1975),
atrás de toda técnica há uma ideologia. Contra o obscurantismo
confortável da sala de cinema, Godard lançou a pedagogia do
olhar, que se constituía em nada mais do que ensinar o exercício
do ver, potencializar esse sentido já alargado aos ouvidos, para
reencontrar a experiência estética, as formas de deslocamento, a
imagem pensante.

Ao construir um campo, sempre belicoso, o cinema de Godard


evocava o extracampo contra o qual deveríamos insurgir, a
publicidade, a televisão, os clichês, o capitalismo. Essa pedagogia
do olhar amadureceu com o tempo, não se tornou menos arriscada,
porém mais centrada. Se ele continua a nos dar lições sobre o que é
e pode o cinema, elas agora aparecem sutilmente, entremeadas por
uma poesia doce, por uma fragilidade profunda dos personagens,
que não explodem carros e si mesmos, que não se prostituem pra
comprar belas roupas, que não tentam cortar o próprio filme com
uma tesoura, mas migram dos grandes feitos para pequenos atos
de resistência, nos acontecimentos pequenos da existência, da vida,
não necessariamente diretamente ligados à sociedade de consumo:
a futilidade de Hanna é bem diferente daquela de Juliette em duas
ou três coisas que sei dela. Essa potência do cinema ressurge no
inacabamento das cenas e dos desejos do cineasta, na precariedade
dos feitos, na incompletude dos quadros-pintura, dos quadros vivos,
que é também a incompletude do cinema. Para Godard, o cinema
ainda tem muito a aprender com as outras artes e com a própria
vida. Diz ele em Roteiro para o filme Passion:

Ver é um trabalho. Ver a passagem do invisível ao visível,


para poder falar depois. Antes do trabalho, já existe uma
ideia: o mundo do trabalho. Delon não pesquisa na
polícia antes de rodar um filme policial; Spielberg não

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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

pesquisa no universo antes de filmar alguma coisa com os


extraterrestres. Quanto a mim, Isabelle sendo operária, eu
tive que fazer uma pesquisa, uma pesquisa numa usina.
Eu fui ver numa usina. Eu fui ver os gestos dessa operária.

O método ensaístico do documentário está lá, dado no próprio


filme Passion, que se volta sobre si mesmo e questiona o trabalho
do cineasta, o amor pelo trabalho, a possibilidade de criar histórias
e viver imagens, a possibilidade de seguir resistindo. Se os falsos
raccords ainda existem, eles agora se oferecem de outras maneiras.

Nesse folheado de tempos, que une pintura e cinema, Godard


junta cenas, temas, cadências, vozes, frases, personagens diferentes,
que na maioria das vezes para nós só fará sentido depois — é preciso
que os vestígios se acumulem e a montagem se apresente como um
momento de trabalho para o espectador, de construção e percepção
do mecanismo. Os “es” que fazem as passagem entre esses materiais
heterogêneos de cinema opera por lógicas também heterogêneas:
a contiguidade ou a distância narrativa, o contraste visual ou
temático, a similaridade de ritmos e a diferença de intensidades nos
corpos, a analogia e alegoria histórica, por eco ou hiato.

É a partir dessas relações que é possível falar de uma força política


que não é própria das temáticas, mas das passagens entre elas, da
maneira como elas ganham visibilidade no filme. Ela, essa força
política, nasce da heterogeneidade de materiais e associações que
podem ser orquestrados por terem o mesmo peso cinematográfico
— sejam intensidades, sejam afetos, sejam sentidos. Nesse
mecanismo, o trabalho é colocado sempre em relação a. O diretor
polonês é fixidez; ele tenta sem sucesso criar o filme das pinturas,
tirar dali o movimento, e desiste em algum momento. Isabelle,
uma das mulheres que o interessa, é movimento, ama o trabalho
na fábrica, diz que os gestos do operário não aparecem na tevê,
pois são como atos de amor. Hanna não quer participar do filme,
pois, ao ficar nua, teme que o trabalho esteja muito próximo do
amor. Se ela paira de casaco de pele e guarda-chuva lilás por entre
uma floresta respingada de neve, Isabelle luta jocosamente no
estacionamento coberto de neve com o policial comprado pelo

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 220


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Artigos

patrão que tosse. Ao se encontrarem, Hanna pergunta como estão


os negócios, e a operária responde: “Você não devia fazer piada
com a classe operária”.

O pequeno movimento das operárias, o piquete (tentar


desajeitadamente impedir que o carro do patrão avance) é
atravessado pela intensidade de Goya, os camponeses que enfrentam
as armas de Napoleão. Essas mesmas operárias declaram guerra ao
patrão, enquanto outras compõem o quadro vivo de O banho turco,
e os outros nus, de Dominique Ingres (1862). As frases de manifesto
contra as condições de trabalho fazem uma das mulheres lembrar
a poesia de infância “As terríveis cinco horas da tarde”; nada mais é
dito, e uma imagem forte surge dali. Uma outra mulher pergunta
a si mesma: “Trabalhar para amar ou amar o trabalho?”. Há pouca
iluminação durante a reunião das operárias, as figuras das mulheres
são quase sombras, e dessa opacidade pode surgir uma mulher
iluminada como aquela de seios nus e vestido amarelo, que carrega
a bandeira da Revolução Francesa, em A liberdade guiando o povo,
de Eugène Delacroix. Mas o cineasta polonês não quer voltar ao seu
país, onde, por causa do sindicato Solidariedade, de Lech Walesa,
foi decretado a lei Marcial. Ele não obedece às leis do cinema e,
perdido entre um mosaico histórico, entende que é preciso viver as
histórias antes de criá-las. Já Isabelle, em sua gagueira, quer falar
por todos, se salvar, salvando o mundo, e quer ir à Polônia.

A força política, que está entre o trabalho do operário e o


trabalho do artista, é o próprio cinema, a célula-base de toda sua
obra, no qual a imagem que foi assumida integralmente não é um
manifesto, mas um vestígio. As imagens do passado, das lutas, das
grandes pinturas, dos personagens históricos não estão no filme
para que um discurso seja produzido sobre elas, mas para, como
diz Anita Leandro (2003, p. 693), “apresentar essas cenas em sua
singularidade e violência, buscando nelas vestígios de nossos gestos
perdidos, ocultados pelo discurso”, mais ainda, de nossos gestos
controlados pelo capitalismo cognitivo que define não só os lugares
e os papéis que devemos ocupar mas também o corpo que devemos
vestir. Fazer viver aquilo que está desaparecendo, as grandes telas-
pintura-da-humanidade, em seus gestos, não em seus cânones,

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 221


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O tempo, a pintura e o político em Passion, de Godard | Roberta Veiga

junto aos gestos das mulheres que caminham delicadamente pelo


set de filmagem ou que movimentam as máquinas de costura numa
fábrica, fazer durar nos lábios delas, no rosto de Hanna, inteiro,
no monitor. Aqui, Didi Huberman (2011) talvez teria dito que, ao
salvar esses gestos, o cinema faz também seu gesto, seu trabalho de
assinalar uma desaparição, uma perda.

Das grandes obras artísticas, da história de classes, do tempo que


se foi à paixão nos corpos nus das mulheres, elas que são as mesmas
mulheres da fábrica, operárias que têm corpos, belos corpos a serem
pintados cinematograficamente, a serem iluminados, em seus
gestos corriqueiros: eis o modo de tornar próximo o longínquo, sem
querer traduzi-lo, eis a força estético que é também político.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 222


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Artigos

Referências

AGAMBEN, G. Means without end: Notes on politcs. Minneapolis:


University of Minnesota Press, 2000.
ARAÚJO, M. “Godard, Glauber e o Vento do leste: alegoria de um
(des)encontro”. Revista Devires, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, 2007.
AUMONT, J. O olho interminável [cinema e pintura]. São Paulo:
Cosac & Naify, 2004.
BAUDRY, J.-L. “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo
aparelho de base”. In: XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema:
antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 2003.
BERGALA, A. “O prazer material de escrever: entrevista com
Alain Bergala, por Mário Alves Coutinho”. Revista Devires, Belo
Horizonte, v. 4, n.1, 2007.
COMOLLI, J.-L. “Técnica e ideologia”. Revista de Cinema, Porto,
n. 1. ago./set., 1975. (Textos traduzidos dos Cahiers du Cinéma n.
229, 230, e 321).
DELEUZE, Gilles. Cinema I: a imagem-movimento. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1983.
__________. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2005.
__________. Conversações. Rio de Janeiro: Ed 34, 1992.
DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões.
Petrópolis: Vozes, 1987.
ISHAGHPOUR, Y. Cinéma contemporain: de ce côté du miroir.
Paris: Éditions de la Difference, 1986.
LEANDRO, A. “Lições de roteiro, por JLG”. Educação &
Sociedade, Campinas, v. 24, n. 83, ago. 2003.

submetido em: 15 mar. 2013 | aprovado em: 13 ago. 2013

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 223


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A câmera diegética:
legibilidade narrativa
e verossimilhança
documental em falsos
found footage de horror1

Rodrigo Carreiro2

1. Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada no GT de


Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXII Encontro
Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, em Salvador,
em junho de 2013.

2. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação


da Universidade Federal de Pernambuco. Doutor e mestre em
Comunicação pela UFPE. Atua principalmente nas áreas de teoria
e história do cinema, com ênfase na análise fílmica, nos estudos
dos gêneros fílmicos e nos estudos do som. Tem interesse especial
na pesquisa da estilística cinematográfica e no cinema de horror.
E-mail: [email protected]

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 224


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Resumo
Falsos documentários de horror codificados como found footage
têm sido massivamente realizados nas últimas duas décadas. Filmar
um roteiro de ficção com a textura estilística de um documentário
exige restrições criativas, a fim de impor a imagens e sons o efeito
de real presente em material filmado de forma amadora. Este
ensaio examina padrões recorrentes de estilo usados para conjugar
legibilidade narrativa e verossimilhança documental, combinação
exigida pela presença de dispositivos de registros no diegese.

Palavras-chave
Horror, estilística, found footage, falso documentário,
câmera diegética.

Abstract
Fake found footage horror films have been massively made in
the last two decades. To shoot a fictional script and give to it the
texture of a documentary, a filmmaker has to deal with a number
of creative restrictions in order to impose to images and sounds an
effect of reality present in amateur footage. This essay examines
recurring patterns of style, in this subgenre of movies, which
have been used to combine narrative clarity and documental
verisimilitude – a combination imposed by the presence of
recording devices on the diegesis.

Keywords Horror film, stylistics, found footage, mockumentary,


diegetic camera.

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

Introdução

A produção de falsos documentários de horror codificados como


found footage, que se tornou massiva nas últimas duas décadas,
tem concretizado um fenômeno cinematográfico digno de
interesse. Esse tipo de filme, híbrido de ficção e documentário,
começou a ser explorado em meados dos anos 1970. O
formato foi cristalizado pelo longa-metragem italiano Canibal
holocausto (Cannibal holocaust, Ruggero Deodato, 1980), marco
3. Realizado ao custo de US$ 30 mil, fundamental do falso documentário no cinema (PIEDADE, 2007,
A bruxa de Blair faturou um total de
p. 376). Passou então a ser explorado, ainda de forma tímida e
US$ 246 milhões nas bilheterias, se
tornando o quarto filme de horror esparsa (BORDWELL, 2012). Quase vinte anos se passaram antes
mais visto de todos os tempos e que o falso found footage se tornasse um formato popular entre
o filme de melhor relação custo/ cineastas, o que ocorreu após a boa recepção de crítica e público
arrecadação feito até o momento.
ao filme A bruxa de Blair (The Blair witch project, Eduardo
Sánchez e Daniel Myrick, 1999)3. A partir de então, a produção
4. Alguns pesquisadores preferem de falsos found footage explodiu em quantidade, a ponto de parte
usar outros jargões, como Point da crítica jornalística dos Estados Unidos criar uma alcunha para
of view (POV) films ou discovered
footage films (termo criado por David
esse tipo de produção: found footage genre4.
Bordwell), para evitar confusões De modo geral, os filmes chamados dessa forma possuem enredos
com outro gênero fílmico também
ficcionais que utilizam deliberadamente procedimentos estilísticos
chamado de found footage, praticado
por cineastas como Péter Forgács, e/ou narrativos normalmente associados ao documentário, muitas
Harun Farocki e Martin Arnold, vezes com a intenção de enganar o espectador quanto ao caráter
e que consiste, em sua maioria, ontológico de suas imagens e sons. Pode-se afirmar, parafraseando
da produção de documentários
Fernão Pessoa Ramos (2008, p. 27), que em filmes de falso found
experimentais a partir da colagem
e da ressignificação de imagens de footage a utilização deliberada do estilo documental confunde a
arquivo preexistentes. fruição do espectador sobre a intenção do cineasta – e é na interação

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Artigos

entre esses dois pilares que se dá a percepção de um filme pelo


espectador, no que se refere ao seu discurso ontológico.

Embora não seja possível afirmar quantos filmes de found


footage codificados como documentários foram produzidos desde a
consolidação do formato, é seguro que estamos falando um número
superior a duas centenas, segundo dados obtidos em bancos de
registro cinematográfico disponíveis na internet (Internet Movie
Database, Box Office Mojo e Amazon, entre outros). Esses títulos
foram realizados em países como Austrália, Noruega, Dinamarca,
Estados Unidos, Japão, Índia, Espanha, Bélgica, França, Costa
Rica, México e Brasil, e sob modos distintos de produção. O
formato já foi utilizado também em quatro minisséries de TV e
quatro games eletrônicos5. O número de lançamentos de ficções
codificadas como documentários, vinculadas sobretudo ao gênero
5. A estatística relativa aos
lançamentos cinematográficos inclui fílmico do horror, continua aumentando.
apenas longas-metragens presentes
De fato, o interesse do público de cinema por filmes constituídos
no banco de dados do IMDb.
A compilação feita para minha parcial ou inteiramente por imagens (e sons) de textura amadora,
pesquisa contém mais de 230 falsos íntimas ou caseiras parece estar crescendo consideravelmente nas
documentários codificados como últimas duas décadas. Isso nos levar a supor que a consolidação
found footage e pode ser conferida do falso documentário de horror feito como found footage consiste
aqui: http://www.imdb.com/list/
em uma das múltiplas faces de um fenômeno mais amplo e
tagV4JrrckY/.
culturalmente significativo do que a consolidação de um subgênero
fílmico específico.

Acadêmicos de origens diferentes têm refletido sobre esse


fenômeno, a partir de múltiplas abordagens teóricas (ODIN,
1995; WEST, 2005; FELDMAN, 2008; BRASIL; MIGLIORIN,
2010; HELLER-NICHOLAS, 2011; INGLER, 2011; CÁNEPA;
FERRARAZ, 2013). A ressignificação de filmes de família, o uso
de vídeos disponíveis na Internet dentro de trabalhos audiovisuais,
a popularidade de imagens amadoras, os fenômenos midiáticos
nascidos de vídeos caseiros postados no YouTube, a forte e
crescente tendência da aceitação de erros técnicos – até mesmo a
preferência por imagens que contenham esses erros, como índices
de um realismo nem sempre verdadeiro – e a espetacularização
de imagens e sons da intimidade constituem temas que integram
um debate mais amplo sobre novos regimes de visualidade que
privilegiam imagens não profissionais.

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

Essas são algumas das razões existentes para que um cineasta


opte por fazer um filme de ficção codificado como documentário
de found footage (o baixo custo de produção, que não exige gastos
altos com equipamentos de filmagem ou atores famosos, é outra
razão importante). De qualquer forma, a decisão de filmar um
roteiro dessa forma obriga um diretor de cinema a se defrontar com
uma série de restrições criativas que ele precisará driblar, se quiser
que seu filme tenha a clareza narrativa de uma ficção tradicional
somada à aparência de realidade de um documentário.

Conjugar os dois princípios contraditórios da narração


cinematográfica – a legibilidade narrativa e a verossimilhança
documental – parece ser o maior desafio de qualquer cineasta que
deseja experimentar com o formato. Dar ao filme a aparência de
um documento histórico é parte essencial da prática criativa, pois
a textura imagética e sonora exerce papel importante na produção,
dentro da moldura ficcional, de um efeito de real (BARTHES,
1972, p. 43) necessário para incluir o produto dentro da demanda
por realismo (ainda que simulado) ao qual nos referimos. Nesse
sentido, a mimetização das convenções e códigos oriundos do
documentário constitui prática importante na produção do efeito
do real, pois esse gênero de filmes “aparenta ter a capacidade
de retratar o mundo da forma mais acurada e realista possível”
(ROSCOE; HAIGHT, 2001, p. 23).

Nos falsos found footage existe, pois, uma necessidade estilística


que desestabiliza a relação de superioridade da legibilidade sobre
a verossimilhança que existe comumente no cinema de ficção
tradicional, conforme apontado por Rick Altman (1992). Nos filmes
de ficção codificados como found footage, ambos os princípios são
igualmente importantes.

A decisão de realizar um filme de ficção com uso da estilística


do documentário de found footage não é tão simples quanto parece.
Não se pode transformar um roteiro planejado como uma ficção
tradicional numa produção deste tipo. Uma série de restrições de
ordem narrativa e estilística, especialmente quanto à representação
visual e sonora do espaço físico e geográfico, dos pontos de vista
visual e narrativo e do ponto de escuta, se impõe. Essas restrições

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estão, em geral, relacionadas direta ou indiretamente ao conflito


entre legibilidade e verossimilhança, cujo equilíbrio é bastante
diferente do almejado numa ficção tradicional. O objetivo deste
ensaio consiste em identificar e analisar essas restrições, examinando
como os diretores dos falsos found footage têm lidado com elas.

A câmera diegética

A mais destacada característica do falso found footage de horror


– aquela que influencia e define todos os padrões recorrentes de
estilo associados a este ciclo de produção – tem relação direta com
o citado conflito entre legibilidade e verossimilhança, e consiste na
presença de um aparato de captação de imagem e sons dentro da
diegese. Daqui em diante, vamos chamar esse aparato de câmera
diegética. Bill Nichols descreve assim o impacto da presença da
câmera na audiência de um documentário:

A presença da câmera “na cena” atesta sua presença


no mundo histórico. Isso confirma a sensação
de comprometimento, ou engajamento, com o
imediato, o íntimo, o pessoal, no momento em
que ele ocorre. Essa presença também confirma a
sensação de fidelidade ao que acontece e que pode
nos ser transmitida pelos acontecimentos, como se
eles simplesmente tivessem acontecido, quando, na
verdade, foram construídos para terem exatamente
aquela aparência (NICHOLS, 2005, p. 150).

A câmera diegética demarca a principal diferença narrativa do


subgênero em relação à ficção tradicional, na qual os personagens
não percebem a existência de dispositivos de registro de imagens
e sons. Na tradição narrativa do cinema ficcional, este aparato
costuma ter o dom da ubiquidade: o cineasta é capaz de narrar
a progressão dramática do enredo a partir de múltiplos pontos de
vista, tanto objetivos quanto subjetivos, de acordo com os desejos e
necessidades da instância narradora.

A presença da câmera diegética, obrigatória para imprimir à


narração o efeito de real pretendido, impõe uma série de restrições

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

ao ato narrativo, tendo inclusive implicações no desenvolvimento


dramatúrgico. Na ficção tradicional, por exemplo, a ubiquidade do
narrador oculto implica este “poder mover” livremente o dispositivo
de registro, escolhendo a todo tempo o posicionamento de câmera
mais favorável, em termos de geografia, perspectiva e ponto de
vista, para que o espectador compreenda mais rapidamente a
progressão do enredo. A câmera pode ser posicionada inclusive
em lugares fisicamente inacessíveis da diegese, já que ela existe e
é operada em uma dimensão puramente narrativa, onipresente e
não sensível aos eventos diegéticos. A mesma afirmação vale para
o gravador de sons.

Já no falso filme de found footage, a seleção da localização


espacial e do ponto de vista de registro das ações é limitada pela
fisicalidade do dispositivo fílmico. Em geral, um (ou mais de um)
personagem precisa operar o equipamento. Mas, mesmo nos casos
em que a câmera funciona sem ser manuseada por alguém – caso,
por exemplo, dos sistemas de vigilância usados nos quatro filmes
da série Atividade paranormal, produzida entre 2007 e 2012 nos
Estados Unidos – o ângulo de visão (e, em muitos casos, o ponto de
vista narrativo) não pode ser alterado a cada plano, à livre escolha do
narrador. É precisamente por isso que o sistema plano/contraplano
para o registro de diálogos, tão comum na ficção tradicional, só
pode existir num falso found footage se houver mais de uma câmera
presente na cena.

Além disso, a consciência da presença do dispositivo de registro


dentro da diegese influencia, como se sabe, o comportamento das
pessoas que estão sendo filmadas. Nesse sentido, eles se tornam
duplamente atores, pois mesmo dentro da diegese sabem que
estão representando versões de si próprios para a câmera, algo
que não ocorre na narração tradicional, em que a câmera oculta
aos personagens impõe uma qualidade voyeur ao registro (os
personagens não sabem que estão sendo filmados). Este tópico tem
sido problematizado por muitos cineastas, como Werner Herzog
em O homem urso (Grizzly man, 2005) e Eduardo Coutinho em
Jogo de cena (2007), apenas para citar dois exemplos, e também por
teóricos (NICHOLS, 2005; RAMOS, 2008; GAULTIER, 2011).

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Alguns falsos found footage de horror, como Diário dos mortos


(Diary of the dead, George Romero 2007), também discutem
a questão da representação (e da autorrepresentação) numa
sociedade cada vez mais midiática. Essas questões, contudo,
escapam ao objetivo deste ensaio.

Do ponto de vista estilístico, a presença na diegese de


dispositivos de registro possui implicações que interferem de modo
bastante sensível no conflito entre os princípios da legibilidade e
da verossimilhança. Em primeiro lugar, existe a obrigatoriedade
de que pelo menos um personagem opere a câmera. Mesmo
que este personagem não esteja com o equipamento nas mãos o
tempo inteiro, ele ainda precisa ligá-lo, desligá-lo e cuidar para
que ele esteja em funcionamento nos momentos dramaticamente
relevantes, para que o espectador não seja privado de nenhuma
informação essencial para a compreensão do enredo.

De fato, a câmera (e também o gravador de sons, se este for um


dispositivo autônomo) cria uma conexão oculta entre as dimensões
diegética e narrativa, ou entre determinados personagens e a
instância narradora. Em outras palavras, o personagem que opera a
câmera deverá, na maior parte do tempo, obedecer a necessidades
que não são verdadeiramente dele, mas sim do narrador. Em cada
cena, este personagem terá que estar mais ou menos próximo do
(e com a câmera apontada para o) lugar onde se concentra o foco
principal de interesse dramatúrgico, a fim de garantir a legibilidade
daquela ação pelo espectador. Por outro lado, o personagem em
questão não pode agir de modo excessivamente mecânico, não
natural, assumindo uma preocupação exclusivamente narradora,
pois sua presença na diegese o torna sensível aos eventos que
ameaçam a estabilidade dramática.

Tomemos como exemplo o filme costa-riquenho El sanatorio


(Miguel Alejandro Gomez, 2010) em que uma equipe de
cineastas investiga aparições sobrenaturais num prédio de hospital
abandonado. Quando os fantasmas surgem, o operador de câmera
não pode permanecer registrando a ação de modo impassível. Isso
seria normal numa ficção tradicional, em que a câmera não existe na
diegese e, portanto, seu operador não está ameaçado pelos fantasmas,

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

podendo se preocupar exclusivamente com a legibilidade da ação.


Num falso found footage, o personagem com a câmera precisa reagir
como alguém que sofreria consequências físicas se não fugisse. Por
isso, em El sanatorio, o operador de câmera corre aos tropeções,
grita e se desespera. Ele sacode a câmera, a imagem treme, perde
o foco, sofre com interferências elétricas, passa por regiões sem luz;
ou seja, torna-se instável – é essa instabilidade, afinal, que introduz
e garante a aparência de registro documental, produzindo o efeito
de real que dá o aspecto de um documentário ao filme (RAMOS,
2008, p. 25) e, por consequência, providencia a verossimilhança
necessária ao registro, aproximando sua estética daquela oriunda de
um documento histórico. Este exemplo se aplica a, virtualmente,
todos os falsos documentários codificados como found footage de
horror, cuja estilística busca intencionalmente reproduzir, por
meio de uma variedade de técnicas de manipulação de imagem e
som, os padrões de estilo de um documentário real.

A porção mais facilmente reconhecível das técnicas que


garantem a impressão de instabilidade da tomada na banda
imagética dos falsos found footage está na reprodução intencional
de erros técnicos, supostamente oriundos da impossibilidade de
manuseio da câmera de maneira tecnicamente correta. Em um
documentário real, especialmente quando os eventos registrados
são ocasionais e impossíveis de repetir, não existe a possibilidade de
corrigir movimentos de câmera, iluminação deficiente e detalhes
técnicos em geral. Daí a câmera tremida, riscos na imagem e
tomadas em completa escuridão que podemos ver em filmes
como Apollo 18 (Gonzalo López-Gallego, 2011), A bruxa de Blair,
Desaparecidos (David Schürmann, 2011), O caçador de Troll
(Trolljegeren, André Øvredal, 2010), The Poughkeepsie tapes (John
Erick Dowdle, 2007) e tantos outros.

A verossimilhança, portanto, ganha importância dentro da


estilística desse tipo de filme, mas não a ponto de eliminar a
legibilidade do enredo. Essa necessidade continua a existir. O diretor
precisa encontrar maneiras de criar o efeito de real necessário sem
perder totalmente a legibilidade. Se o cameraman de El sanatorio
largasse a câmera quando fosse atacado por um fantasma (algo

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normal se estivéssemos falando de um documentário verdadeiro,


no qual a preocupação do operador de câmera em garantir a
própria sobrevivência seria evidentemente maior do que com
realizar o registro do fato), estaria agindo de modo perfeitamente
coerente, mas o espectador não saberia o que aconteceu com ele
e com os demais personagens do filme. A plateia seria privada de
informações essenciais à progressão do enredo, algo que não pode
ocorrer, especialmente num filme de ficção.

Uma das maneiras de garantir a impressão de verossimilhança


sem que se perca a legibilidade da imagem consiste na organização
cuidadosa da mise-en-scène, sem que, no entanto, essa organização
seja claramente perceptível pelo espectador. Assim, quando um
personagem de um falso found footage começa a correr para fugir
de um monstro, fantasma ou psicopata, por exemplo, ele nunca
desliga ou abandona o equipamento de filmagem. Continua a fazer
o registro. Dessa forma, são os erros técnicos sensíveis ao espectador,
na imagem e no som, que garantem a impressão de verossimilhança:
a câmera balança, desenquadra a imagem, aponta para lugares sem
luz. Essas técnicas introduzem áreas de ilegibilidade imagética que
normalmente não são aceitas na ficção cinematográfica tradicional,
mas se mostram fundamentais em falsos documentários codificados
como found footage.

Assim, um dos desafios narrativos mais básicos do cineasta


consiste em providenciar maneiras de prover a plateia continuamente
com informações sobre a progressão dramática, equilibrando o
encadeamento narrativo incessante com a instabilidade da tomada
que garante a aparência documental. Muitas vezes a câmera
reenquadra a ação apenas por alguns instantes, o suficiente para que
o espectador reconheça o que ocorre (em filmes estadunidenses, em
particular, é bastante comum que mortes e ações violentas sejam
eliminadas do filme justamente nas lacunas narrativas geradas pelo
uso dessa técnica, que poderíamos chamar de mostra-e-esconde).

O final de A bruxa de Blair, quando a câmera permanece jogada


no chão sem que se possa ver o que ocorre com os personagens fora
do quadro, antes que o aparelho quebre e pare de registrar imagens,
é um exemplo clássico dessa técnica. No filme espanhol [Rec],

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

dirigido em 2007 por Paco Plaza e Jaume Balagueró, a mesma


técnica é repetida em dois momentos distintos, sendo o primeiro
no meio do filme (a câmera é largada no chão por alguns instantes
pelo cameraman), e o segundo na sequência final, quando falta
luz no prédio onde ocorre a ação. Nos dois casos, durante alguns
minutos, o espectador continua acompanhando o desenrolar da
ação dramática exclusivamente por meio do som (diálogos e ruídos),
cuidadosamente planejado – e devidamente sujo, incluindo erros
técnicos como saturação do sinal do microfone, para prover a
verossimilhança necessária (TARRAGÓ, 2010).

A estratégia de organizar a mise-en-scène de forma a mostrar parte


da ação dramática e esconder outra tem sido historicamente muito
eficaz no cinema de horror. Nos falsos found footage, ela tem sido
utilizada com ênfase ainda maior. Além de gerar tensão e mistério,
essa técnica também pode garantir a verossimilhança documental
sem que a legibilidade narrativa seja perdida. Um dos exemplos
mais claros e criativos do uso dessa estratégia aparece em Atividade
paranormal 3 (Paranormal activity 3, Henry Joost e Ariel Schulman,
2011). Em certo ponto do filme, quando as assombrações começam
a chamar a atenção do dono da casa onde se passa a ação dramática,
este decide investigar melhor o caso. Como possui uma produtora
de vídeo (protagonistas que possuem profissões ligadas ao cinema
são muito frequentes nesse tipo de filme, como veremos adiante,
porque ajudam a justificar para a plateia o uso intermitente e a
operação tecnicamente adequada de equipamentos de filmagem),
ele decide instalar câmeras em toda a casa.

Para cobrir os dois ambientes da sala, o protagonista instala


uma das câmeras disponíveis sobre a base de um ventilador,
que é mantido girando em elipses de 180 graus durante toda
a noite. Esse movimento de câmera proporciona ao diretor do
filme a oportunidade de pregar dois ou três sustos no espectador,
mantendo-o em constante estado de expectativa e tensão sempre
que as imagens fornecidas por essa câmera aparecem – afinal,
nunca é possível antecipar o que invadirá o quadro no instante
seguinte, quando a câmera desvela uma parte da imagem antes
inacessível. A técnica se mostra altamente eficaz para gerar o afeto

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do horror, fundamental em filmes do gênero, sem que se perca


a verossimilhança documental necessária. Como nos exemplos
anteriores, o uso dessa técnica é imposto e moldado pelo princípio
da câmera diegética.

Esse jogo de mostra-e-esconde também pode incluir o uso da


escuridão como forma de realçar a tensão de certas cenas sem que
a verossimilhança seja perdida. Muitos filmes incluem momentos
dramáticos em que a luz é repentinamente cortada ou reduzida por
circunstâncias diegéticas extraordinárias (como explosões e curtos-
circuitos elétricos), de modo que a visão da plateia é interrompida.
Momentos de escuridão absoluta, sem que se possa enxergar nada,
aparecem em A bruxa de Blair e The tunnel (Carlo Ledesma, 2011),
por exemplo. Em muitos filmes, como Cloverfield (Matt Reeves,
2008), [Rec] e O caçador de Troll, câmeras especiais com visão
infravermelha são manipuladas pelos personagens. Esse recurso
garante que o espectador seja capaz de continuar recebendo
informações narrativas por meio da banda de imagem do filme, em
particular nos casos em que o som não pode, sozinho, garantir a
legibilidade de toda a ação dramática.

Outro padrão recorrente ligado ao princípio da câmera


diegética está na aparência amadora de muitas imagens. Quando
os personagens dos filmes não têm acesso fácil a equipamentos
profissionais de captação de imagens (câmeras digital de alta
definição ou de 35 mm), muitas vezes registram os acontecimentos
através de dispositivos amadores: câmeras de VHS (Atividade
paranormal 3, The Poughkeepsie tapes, Alien abduction: incident in
Lake County, dirigido por Dean Alioto em 1998), câmeras de vídeo
digital de baixa resolução (como Cloverfield e Poder sem limites –
Chronicle, feito em 2012 por Josh Trank), câmeras de telefones
celulares (Diário dos mortos e Ragini MMS, filme indiano dirigido
em 2011 por Pawan Kripalani), câmeras de vigilância (Atividade
paranormal 2, Tod Williams, 2010) e assim por diante. A antologia
V/H/S (2012), que reúne seis histórias curtas dirigidas por diferentes
diretores, recebeu até mesmo o nome de um formato de imagens
em movimento de qualidade técnica inferior. Esses formatos
amadores possuem, em muitos casos, textura sem profundidade,

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

falta de definição de contornos, cores gastas. A aparência amadora


também reforça, por meio da instabilidade da tomada, o senso
de verossimilhança e o efeito de real (BARTHES, 1972, p. 43)
pretendido pelos cineastas.

Do ponto de vista narrativo, a presença do aparato de registro


de imagens e sons na diegese provoca o surgimento de outros
padrões recorrentes. Um deles é a existência obrigatória de um (ou
mais) personagem que manuseia a câmera. Por razões de ordem
narrativa, esse personagem costuma configurar aquilo que alguns
pesquisadores do cinema de horror, como Carol J. Clover (1992),
apontam como elemento importante para garantir a indexação do
filme como exemplar do gênero: a existência de pelo menos um
personagem sobrevivente, que presencia de perto os fatos trágicos
narrados no enredo e consegue permanecer vivo no final, tendo
seu ponto de vista, na maioria das vezes, utilizado pela instância
narrativa para gerar empatia entre público e personagens. Como
forma de justificar a boa qualidade de imagens e sons capturados
por esse sobrevivente, em muitos filmes de found footage eles
são profissionais que atuam na indústria audiovisual: operadores
de câmera, técnicos de áudio e editores de som e imagem têm
presença constante em filmes como [Rec], A bruxa de Blair, Diário
dos mortos, O caçador de Trolls, The tunnel, Fenômenos paranormais
e O sanatório, entre outros.

David Bordwell (2012) observa que a necessidade de evitar a


ubiquidade da câmera, tradicional na ficção cinematográfica, leva
muitos diretores de filmes de found footage a transformar equipes
de filmagem em protagonistas dos enredos. Todos os filmes
citados no parágrafo anterior se enquadram nessa observação. Esse
padrão narrativo serve não apenas para justificar a boa qualidade
de imagens e sons, mas também para oferecer uma explicação
crível (parcialmente, pelo menos) para o fato de os personagens
permanecerem registrando os eventos ocorridos na diegese, mesmo
quando têm suas próprias vidas ameaçadas.

Por outro lado, como os personagens que operam diretamente


o aparato de filmagem não podem ser mostrados com frequência
(a não ser que exista uma segunda câmera, o que de fato ocorre

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 236


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em alguns filmes, como A bruxa de Blair e Atividade paranormal


2), esse padrão traz consigo um problema: sem poder registrar
visualmente as reações afetivas do operador de câmera na maior
parte do tempo, o espectador tem dificuldade em criar empatia
com seus desejos, emoções e medos. É por isso que em muitos
filmes – entre os quais O sanatório, O caçador de Trolls, [Rec]
e The tunnel – o cameraman é um sobrevivente, mas não um
personagem importante para a narrativa.

No que se refere à estilística praticada pelos diretores desses


filmes, alguns dos padrões que mais chamam a atenção contrariam
tendências do cinema contemporâneo praticado em Hollywood,
como o uso massivo de planos-sequência (em contraposição à
montagem acelerada que vemos em filmes mainstream) e o baixo
número de planos em close-up de rostos. De modo geral, os falsos
found footage de horror compartilham entre si uma série de escolhas
estilísticas mais ou menos comuns, relacionadas à mise-en-scène:
tomadas longas e sem cortes, encenação em profundidade (a ação
ocorre predominantemente num eixo perpendicular, e não paralelo
à câmera) e predomínio de planos gerais, ao invés de close-ups.
Todas essas ferramentas de estilo são usadas com frequência maior
nos falsos documentários do que em enredos de ficção filmados da
forma tradicional.

A predominância de planos gerais induz os filmes a apresentar,


como característica associada, um baixo número de close-ups de
rostos. Os dois padrões visuais advêm de uma terceira característica: a
montagem visual dos falsos found footage tende a ser mais lenta, com
planos de maior duração do que em filmes de narrativa tradicional.
Pode-se comprovar esse padrão recorrendo à pesquisa de Barry
Salt (2009), que registra em estatísticas a tendência de aceleração
progressiva da montagem visual ocorrida a partir da virada entre os
anos 1950 e 1960, quando a média de duração de um plano estava
entre oito e nove segundos, e o final dos anos 1990, momento em
que a média caiu para quatro segundos por plano (SALT, 2009, p.
358). Essa média tende a ser muito mais alta em filmes de found
footage, e a explicação para isso tem origem também no princípio
da câmera diegética: como a maior parte dos filmes possui apenas

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

um aparato registrando a ação dramática, o diretor não pode variar


o enquadramento ao longo da cena, procedimento que destruiria a
verossimilhança documental. [Rec], por exemplo, contém apenas
72 tomadas, o que resulta numa média de 57 segundos por plano
(há um plano com 17 minutos e 51 segundos de duração). Mesmo
A bruxa de Blair, que tem duas equipes autônomas registrando
os eventos com aparatos distintos, tem média de 15 segundos por
plano, duração quase quatro vezes mais alta do que a média de
plano de um filme de ficção tradicional.

Pelo mesmo motivo, o número de close-ups de rostos é muito


menor em falsos documentários de found footage. Num longa-
metragem contemporâneo, o número de tomadas que focalizam
um rosto humano em primeiro plano costuma girar em torno
de 50% (CARREIRO, 2011, p. 209), seguindo uma tendência
da poética da continuidade intensificada (BORDWELL, 2005,
p. 119). Porém, se o filme é construído com tomadas longas nas
quais a câmera toma parte da ação e não para de mexer, é natural
que haja poucos close-ups. Bordwell (2012) nota que as conversas
entre dois personagens, que na ficção tradicional são filmadas
normalmente no clássico sistema plano/contraplano, em falsos
found footage de horror são enquadradas quase sempre através de
um único plano geral ou médio que reúne os dois personagens com
falas. Uma alternativa a essa estratégia consiste em filmar todo o
diálogo num plano médio, sem cortes, em que um dos personagens
é enquadrado sozinho, da cintura para cima, enquanto o segundo
ator permanece fora do quadro, às vezes operando a câmera. Esse
tipo de enquadramento lembra uma entrevista filmada para a
TV e aparece com certa constância, porque boa parte dos falsos
documentários de found footage, não custa lembrar, mostra equipes
de TV filmando reportagens ou documentários.

Mais um padrão de estilo relacionado à presença da câmera


na cena é a tendência para a encenação em profundidade, que
consiste no estabelecimento de um eixo de ação física, para os
atores, perpendicular ao eixo da câmera, de forma que a ação
física dos personagens tende a se concentrar mais sobre esse eixo
vertical e menos no eixo paralelo (e horizontal) à câmera. Esse

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tipo de encenação, chamada de “recessiva” por David Bordwell


(2008, p. 219), remonta às décadas de 1930 e 1940, quando foi
popularizada por diretores como Jean Renoir, Kenji Mizoguchi
e Orson Welles. Quando realizada de modo cuidadoso, como
em [Rec] e A bruxa de Blair, a encenação recessiva reduz a
necessidade de movimento lateral da câmera, que produz
muitas vezes borrões de imagem quase ilegíveis, conhecidos no
jargão cinematográfico como chicotes. Desse modo, a encenação
em profundidade torna a imagem mais estável, ampliando sua
legibilidade sem afetar a verossimilhança.

No que se refere ao uso do som nesses filmes, o princípio da


câmera diegética é igualmente decisivo para as escolhas estilísticas
efetuadas pelos cineastas. Na maioria dos falsos found footage
não há música extradiegética, procedimento comum na ficção
tradicional que reduz a verossimilhança documental. Além disso,
imperfeições oriundas da manipulação apressada na captação do
som direto (que, evidentemente, não pode ser sanada como em
uma ficção, já que as cenas de um documentário não podem
ser repetidas) são valorizadas: sinal saturado do microfone, vozes
sobrepostas, rangidos, chiados, microfonias, sons de respiração dos
atores etc. Muitas vezes, erros derivados de técnicas deficientes
de captação sonora são construídos cuidadosamente em estúdio,
como no caso de [Rec] (TARRAGÓ, 2010). No exemplo citado,
essa estratégia permitiu a construção de uma textura de imperfeição
sonora sem que se perdesse a clareza narrativa, já que a construção
dos defeitos de captação do som na pós-produção permitiu à equipe
de editores de som decidir em quais momentos do enredo as vozes
dos atores poderiam ficar ilegíveis sem que a plateia fosse privada de
informações dramáticas relevantes.

Conclusão

Os padrões recorrentes de estilo descritos acima derivam do conflito


entre verossimilhança documental e legibilidade narrativa. Como
vimos, é a presença de um dispositivo de registro de imagens e sons
dentro da diegese que impõe aos cineastas a necessidade de uma
abordagem estilística distinta daquela aplicada a filmes tradicionais.

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

Um falso documentário de horror codificado como found footage


precisa simular a aparência de um documentário verdadeiro, a fim
de inscrever nos sons e imagens apresentados à plateia um efeito
de real. Esse efeito de real será tão mais forte quanto mais parecida
com um documentário verdadeiro for a estilística do filme em
questão, porque “o uso de técnicas de documentário acrescenta ao
gênero do horror uma aura forte de realidade” (RHODES, 2002).

De fato, o conflito entre legibilidade e verossimilhança


atravessa todo tipo de filme, como assinala Rick Altman (1992).
Numa ficção tradicional, a ubiquidade da câmera garante que a
legibilidade leve alguma vantagem nesse conflito, pois os cineastas
têm a possibilidade de variar o ângulo de câmera, o ponto de
vista narrativo e o ponto de escuta sonoro para permitir que o
público compreenda as informações narrativas sem interrupções.
No entanto, a ubiquidade consiste em uma convenção
cinematográfica, uma ferramenta narrativa que não possui lastro
na realidade, mas cujo uso contínuo tornou-a aceitável pelo
espectador, de modo que naturalizamos o princípio de que, em
uma ficção comum, imagens e sons nos serão apresentadas do
ângulo mais favorável possível à compreensão do enredo.

Nos falsos documentários de horror, conforme pudemos


demonstrar, essa abordagem contém uma cilada. A ubiquidade do
aparato de registro de sons e imagens costuma garantir qualidade
técnica excelente, e isso pode arruinar o caráter de documento
histórico desses registros. O caráter documental é crucial para
alimentar a ilusão (ainda que consentida) do público a respeito
de estar olhando para uma janela que acessa o real. Por isso, é
natural que os profissionais que realizam esse tipo de filme
ressaltem certo grau de imperfeição técnica na apresentação das
informações visuais e sonoras. Os padrões recorrentes analisados
nesse ensaio, que constituem a estilística dos falsos found footage,
derivam dessa necessidade.

Praticamente todos os falsos documentários produzidos nos


últimos 20 anos se pretendem fazer passar por registros genuínos
de algum evento extraordinário, fruto de um modelo de produção
– muitas vezes amador ou mesmo leigo – baseado na observação

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 240


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Artigos

espontânea. O enredo da maior parte desses filmes mostra pessoas


tentando registrar algo (caso dos três estudantes de A bruxa de
Blair, por exemplo) quando algum evento inesperado se sobrepõe
ao objetivo inicial e ameaça suas vidas. O registro fílmico desse
evento (ou, em alguns casos, da reação dos personagens ao evento)
empresta o falso status de documento histórico a esse registro,
algo que remonta diretamente aos modos de representação
expositivo, observativo e participativo, conforme classificados por
Bill Nichols (2005, p. 136).

Assim, podemos afirmar que os padrões estilísticos de imagem


e som dos falsos documentários de horror são os mesmos que
constituem a estilística dos documentários em que predominam
esses modos de representação. Evidentemente, não se trata
de coincidência. Os diretores de falsos found footage de horror
desejam incluir em seus filmes, além de informações narrativas
sobre uma história de ficção, um efeito de real reforçado pela
aparência de documento histórico. Por isso, se esforçam para
emular as ferramentas de estilo presentes nos documentários
observativos e/ou participativos, cuja superfície estilística é mais
reconhecível pelos espectadores6.
6. Os documentários reflexivos, Diante dessas constatações, pode-se questionar qual o motivo
poéticos ou performáticos – outros
(ou os motivos) de os filmes de horror terem passado, nos últimos
modos de representação classificados
por Nichols – costumam apresentar anos, a usar a imperfeição técnica do registro imagético e sonoro
forte caráter autoconsciente, como uma convenção narrativa capaz de produzir um efeito de
propriedade que muitas vezes real mais potente. A questão é complexa e merece uma reflexão
obscurece o efeito de real importante
detalhada, que não cabe nesse espaço, mas algumas das respostas
para gerar na plateia o afeto do
horror. Isso pode explicar porque os possíveis passam, certamente, pelo caráter de testemunho histórico
diretores de falsos documentários de que é percebido, nas imagens produzidas de forma amadora,
horror não costumam recorrer a esses íntima ou espontânea, pelos espectadores. Este caráter é gerado
modos de representação.
ou reforçado pela existência de imperfeições técnicas simuladas a
partir do princípio da câmera diegética.

Para Alexandra Heller-Nicholas (2011), o efeito de real gerado


pela câmera diegética responde diretamente pelo resultado afetivo
mais forte, obtido por falsos documentários de horror junto às
audiências contemporâneas:

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

A sensação de emoção e perigo resultante de assistir


a um filme como A bruxa de Blair, [Rec] ou Atividade
paranormal não decorre da dúvida ou da certeza sobre
a veracidade das imagens, mas da construção formal das
próprias imagens, pois esta construção sugere que, se
houvesse imagens realmente verdadeiras nesses filmes,
elas se pareceriam exatamente como são (HELLER-
NICHOLAS, 2011, p. 29).

Em outras palavras, parte do fascínio das ficções de horror codificadas


como documentários de found footage está na estilística que simula
o aspecto histórico das imagens e sons que compõem as obras.
Para que esse fascínio se concretize, porém, é fundamental que a
estilística do documentário seja devidamente reconhecida como
tal. Daí a adesão deliberada dos cineastas à estética documental,
imposta pelo princípio da câmera diegética.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 242


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Artigos

Referências

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A câmera diegética: legibilidade narrativa e verossimilhança documental em falsos found footage de horror | Rodrigo Carreiro

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submetido em: 10 jul. 2013 | aprovado em: 5 nov. 2013

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 244


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Mise-en-abyme da cultura:
a exposição do “antecampo”
em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá
Petei Jeguatá1
André Brasil2

1. Este texto é parte da pesquisa Formas de vida na imagem: biopolítica,


perspectivismo e cinema, apoiada pela Fapemig por meio do PPM VI
(Programa Pesquisador Mineiro).

2. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em


Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Resumo
Dedicando-se à análise de dois documentários — Pi’õnhitsi e Mokoi
Tekoá Petei Jeguatá —, o artigo sugere a natureza constituinte do
antecampo em filmes indígenas. Trata-se do espaço no qual o
realizador encena um duplo e intercambiável papel: dentro da
cena, como membro da comunidade, e fora da cena, como cineasta.
Em seguida, desdobramos a hipótese de que, por meio da exposição
do antecampo, o cinema indígena expressa, em mise-en-abyme, o
engendramento entre cultura e “cultura”.

Palavras-chave
Pi’õnhitsi, Mokoi Tekoá Petei Jeguatá, cinema indígena, cultura
com aspas, reversibilidade.

Abstract
Through the analysis of two documentaries — Pi’õnhitsi e Mokoi
Tekoá Petei Jeguatá —, the article suggests the constitutive nature of
the “antecampo” (the space behind the camera) in the indigenous
films. It is the space in which the director enacts a double and
interchangeable role: within the scene, as a member of the
community, and out of the scene, as a filmmaker. Then, we unfold
the hypothesis that, through the exposition of the “antecampo”, the
indigenous cinema expresses, by mise-en-abyme, the engendering
between culture and “culture”.

Keywords
Pi’õnhitsi, Mokoi Tekoá Petei Jeguatá, indigenous cinema,
“culture”, reversibility.

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

Na primeira cena de Corumbiara (2009), Vincent Carelli comenta


as imagens do documentário A festa da moça (1986), experiência
inaugural do Projeto Vídeo nas aldeias. Naquela época, tratava-se
de filmar os índios e retornar a eles as imagens: entusiasmados com
a possibilidade de se ver na telinha, “os Nambiquara começam a
delirar, e a gente, com eles”. Eis que, provocados pelo filme, retomam
uma cerimônia há 20 anos abandonada e furam o lábio de 30 jovens.

Explicita-se ali, logo no início do projeto, a força performativa


do cinema: se, por um lado, é sabido que a câmera intervém na
situação filmada, criando a cena, por outro lado, o filme retorna
ao mundo quando é visto, instaurando desdobramentos inauditos.
Para o VNA, essa performatividade das imagens é definidora: ali, o
cinema torna-se um importante instrumento de invenção da cultura,
tal como a compreende Roy Wagner (2010): invento minha cultura
no mesmo ato de inventar a cultura do outro. Como bem mostra o
trabalho seguinte de Carelli, O espírito da TV (1990), ao ver a própria
imagem confrontada com as imagens de outras etnias, os waiãpi
situam sua cultura, estabelecendo distinções e afinidades, separações
e intercâmbios. O espírito da TV (e outros filmes dessa primeira fase)
sugere ainda uma questão que se vai tornando mais e mais importante
à medida que os filmes são realizados: a própria noção de imagem se
insinua outra, em alguma medida, diferente da acepção que forjamos
historicamente no Ocidente (ainda que saibamos o quão arriscadas
são as generalizações desse tipo). O maracá que se agita no interior
da imagem pode, quem sabe, repercutir no mundo fora do filme,
produzindo efeitos muito concretos.

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Artigos

Como já discutimos em outro artigo (BRASIL, 2012), sem


desconsiderar as enormes diferenças de propósito e de resultado
entre os filmes, o que chamamos de cinema indígena é uma rica
manifestação daquilo que Manuela Carneiro da Cunha (2009)
definiu como “cultura com aspas”, quando os índios se valem de
definições antropológicas para performar e citar reflexivamente a
própria cultura. As “aspas”, vale notar, circunscrevem — ainda que
precariamente — a experiência cultural de um grupo e, ao mesmo
tempo, colocam-na em relação com o que está fora dela: trata-se, no
caso do cinema indígena, de uma relação negociada e, tantas vezes,
conflituosa, entre a maneira como os índios concebem a imagem
da própria cultura e os conceitos metropolitanos de cultura.
Lembremos, mais uma vez, a pergunta de Carneiro da Cunha
(2009, p. 355), que, apesar de formulada em outro contexto, sugere
um rico programa de pesquisa em torno do cinema indígena: “Como
é que povos indígenas reconciliam prática e intelectualmente sua
própria imaginação com a imaginação limitada que se espera que
eles ponham em cena?”.

Ainda em diálogo com a antropologia, podemos retomar


a proposição de Sahlins (1997), para sugerir uma espécie de
indigenização do cinema, assumido aqui fortemente como prática
cultural e interétnica. Esse processo não se resume, é claro, à
tematização por meio do cinema de questões ou traços culturais
dos povos indígenas. Nem mesmo à visibilidade ou representação
das culturas indígenas para si e para outras comunidades de
espectadores. Ainda que essas demandas estejam presentes e sejam
indissociavelmente importantes, poderíamos ir mais longe, para
nos perguntar: que concepções de cinema, cultura, visibilidade,
imagem ou representação estão em jogo quando os coletivos
indígenas passam a produzir, eles próprios, os filmes? Ou ainda,
repercutindo no cinema a célebre questão antropológica de
Viveiros de Castro (2002, p. 122): “qual o ponto de vista nativo
sobre o ponto de vista?”.

Para fazer jus à concepção de “ponto de vista” ali reivindicada,


as abordagens do cinema devem estar atentas às práticas que o
constituem, em visada pragmática: qual cinema o nativo pensa e faz

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

quando se põe a fazer cinema? Mais amplamente, na prática de um


cinema nativo, como se experimentam traços de outras cosmologias,
outras concepções de imagem e de visibilidade? Como a prática
do cinema se imiscui — em mútua constituição — nas demais
práticas cotidianas e ritualísticas? Em sua dimensão pragmática e
antropológica, o cinema indígena será assim não apenas um modo
de “imaginar uma experiência”, mas principalmente uma maneira
bem concreta de “experimentar uma imaginação” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 123).

Tudo isso se complexifica se retomamos a ideia de “cultura


com aspas”: o cinema indígena é desde o início um híbrido, um
dispositivo relacional, que articula o dentro da cultura com o fora
dela, em múltiplas e variáveis dobragens. Um filme é sempre uma
negociação entre os índios consigo mesmos e com não índios:
os jovens realizadores, os professores das oficinas, os editais, as
instituições, os membros da aldeia (especialmente os velhos), as
comunidades de espectadores (a aldeia, as outras etnias, o público
dos festivais...). A realização de um filme aciona portanto uma rede
de relações que não existiria sem ele.

E, no entanto (ou portanto), há o filme: essas questões amplas


demais, essas múltiplas dobragens entre dentro e fora devem
ganhar a escala desse ou daquele filme singular. No caso específico
do artigo, interessa-nos sublinhar o fato de que, em inúmeros
filmes indígenas, essa pragmática está concretamente em cena,
materializa-se formalmente em um espaço fílmico que chamaremos
de antecampo. Trata-se do espaço atrás da câmera, com os sujeitos
que abriga (o realizador, a equipe, os equipamentos). Em certos
filmes, eles passam para a frente da câmera, implicando-se e
posicionando-se internamente à cena: atentamo-nos assim, mais
propriamente, à exposição do antecampo, na hipótese de que esse
seja um traço não apenas recorrente mas também definidor do
cinema indígena: não são raros os exemplos em que o processo de
produção do filme se explicita, em estratégia que, a princípio, guarda
semelhanças com a tradição do documentário moderno, de viés
anti-ilusionista. Mas aqui, o escopo dessa estratégia — a exposição
do antecampo — é abrangente: ela permite ao diretor implicar-se

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Artigos

na cena, simultaneamente, como diretor do filme e como membro


da aldeia; como membro da aldeia e como mediador entre a aldeia
e o que está fora dela. Se ainda se trata de “reflexividade”, ela se
endereça não apenas ao cinema, mas, reiteramos, às práticas e
processos culturais — interétnicos — mais amplos.

Como já sugerimos (BRASIL, 2013), no domínio do


documentário, a explicitação do antecampo se move
historicamente por ao menos duas demandas: de um lado, a
abertura ao dialogismo; de outro, a reflexividade crítica. Em
paralelo às transformações epistemológicas no campo das ciências
humanas e sociais, o cinema moderno se define como dispositivo
relacional, dialógico. Algo que, na teoria do documentário,
reverbera na reivindicação por Jean-Louis Comolli (2008) de
uma mise-en-scène compartilhada, aberta à automise-en-scène dos
sujeitos filmados. Digamos, em complemento, que filmar o outro
é, de uma forma ou de outra, filmar a si mesmo (estejamos ou não
em cena). No ato de filmar a vida de outrem (suas mise-en-scènes
individuais e coletivas), inventamos e expressamos nosso próprio
modo de olhar, nosso ponto de vista.

A exposição do antecampo provoca, em contrapartida, o


atravessamento (e mesmo a fratura) do dialogismo pela reflexividade.
Revelar em cena a equipe e os equipamentos de filmagem será,
no cinema, uma estratégia anti-ilusionista: expõem-se criticamente
os mecanismos e meandros da representação e dos processos de
construção de verdade. O dialogismo constrói, em relação, o ponto
de vista. A reflexividade, por sua vez, acusa o caráter artificial,
mediado e fraturado do diálogo. “O filme propõe uma relação
dialógica, não sem simultaneamente suspeitar de suas próprias
ambições” (BRASIL, 2013, p. 4).

A propiciar o posicionamento interno daquele que filma e ao


colocar em tensão processos dialógicos e reflexivos, a explicitação
do antecampo participa, mais amplamente, do abalo do regime
representativo clássico (tal como construído historicamente no
Ocidente). Nele, sabemos, ver significa objetivar (tornar objeto),
pressupondo um recuo, um ocultamento do próprio ato de olhar
(e do corpo daquele que olha). Inversamente, a exposição do

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

antecampo torna o olhar situado, participante, engajado; olhar que


não apenas contempla, mas que sofre, concretamente em cena, os
afetos do mundo. Aquele que filma compartilha com aqueles que
são filmados uma mesma mise-en-scène. “Questiona-se portanto
a enunciação clássica — assim como o lugar de verdade que ela
instaura, afastado do mundo — para misturar, em uma mesma
cena, sujeitos, processos de aproximação e de esquiva e discursos de
diferentes naturezas” (BRASIL, 2013, p. 4).

Dialogismo e reflexividade ganham novas variações no momento


em que o “outro” passa ele mesmo a se filmar, e podemos nos
questionar se esse segundo conceito é ainda capaz de explicar o que
está realmente em jogo nesse caso. Mais do que circunstancial, a
constante e consciente exposição do antecampo em filmes indígenas
é, reiteramos, estratégia fundamental dessa prática entre os índios:
afinal, estou fora da cena — não se filma totalmente de dentro; para
filmar, é preciso tomar certa distância —, mas, ao mesmo tempo,
estou dentro da cena, já que sou parte da comunidade que o filme
aborda, tornando-me também personagem. Aqui, o olho distanciado
da câmera (o espírito que se afasta para construir uma representação
do mundo) precisa se tornar, simultânea e novamente, situado, em
constante intercâmbio entre o dentro e o fora. Não raro, a produção
do filme explicita-se como espaço de negociação, seja entre os
membros da aldeia, seja entre a equipe de trabalho (formada por
indígenas e não indígenas). Expor o antecampo significa não apenas
3. Sabemos que essa é uma revelar o caráter construído e mediado da imagem cinematográfica
contradição em termos. Stricto mas também, principalmente, conceber o cinema como prática
sensu, o antecampo deve manter-se
entre outras práticas culturais, inserida na vida da aldeia (em suas
sempre fora da cena, diante dela.
Mas, aqui, nos referimos a essa relações internas e externas).
situação em que os elementos que
compõem o antecampo — a câmera Antes de abordar concretamente dois filmes específicos, vale
e o sujeito que filma — entram em ressaltar que o resultado, nesse caso, é sempre a mise-en-abyme:
cena para dela participar. Por isso, para que o antecampo3 se exponha em cena, outro antecampo
a mise-en-abyme: é preciso sempre
uma câmera a filmar, de fora, a outra precisa se manter fora dela; há sempre outra câmera a filmar aquela
câmera que agora está em cena. que se mostra, há sempre um olhar que se oculta por trás do olhar.

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Artigos

Cultura e “cultura”

Pode ser sutil, discreta, a maneira como o antecampo é convocado.


O olhar do personagem para a câmera adensa a copresença entre
quem filma e quem é filmado; convoca o fotógrafo/realizador para
dentro da cena, mesmo que ele ainda não esteja visível nela.4 A
4. Sobre esse olhar que se devolve cena, no caso, é um “mundo” instaurado pela perspectiva daquele
e interpela o sujeito que filma, ver: que endereça seu olhar para a câmera. (Fig. 1)
BRASIL, 2012.

Fig. 1: Solano olha para a câmera,


em Bicicletas de Nhanderu
(2011; frame do filme)

Quem olha, nesse caso, é menos o espírito do que o corpo, engajado


no mundo que ele habita e que contribui para forjar; corpo em
relação com a rede acionada pelo filme. O realizador indígena está
em cena e fora de cena, em um duplo movimento: ele compartilha
o mundo que se configura e que, afinal, é o dele; responde com
cumplicidade ao olhar que lhe é endereçado, compartilha uma
presença lastreada por um modo de vida. Deve, em contrapartida,
manter-se filmando, fora da cena. Trata-se assim, de habitar as
bordas, o limiar do antecampo.

Antes dessa mirada frontal que fisga, que convida ou convoca


aquele que filma a se implicar na cena, a se engajar em um mundo, o
olhar se fixou no extracampo. Para onde o personagem olha? (Fig. 2).

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

Fig. 2: O extracampo
(frame do filme)

Como tento mostrar em outro artigo (BRASIL, 2012), o filme se


abre a um extracampo mítico, cosmológico, contíguo ao mundo
cotidiano ali figurado. Esse extracampo que os espectadores não
conhecemos objetivamente permanece presente ao longo do filme,
ele “insiste” (como diria Deleuze, 1985, 1990), inscrevendo na
cena seus traços, seus lampejos, suas lascas.

De maneira mais explícita e processual, não são raros os filmes


indígenas em que o antecampo se mistura, não sem lacunas, à cena:
o espaço atrás da câmera torna-se cena, e o filme quase se confunde
com a própria feitura. No limite, não se trata de uma exposição
eventual do antecampo, circunscrita a este ou aquele momento da
narrativa, mas de um antecampo que, exposto, virado ao avesso,
torna-se ele próprio o espaço da cena.

No caso de Pi’õnhitsi, mulheres xavante sem nome (2009), o filme


em si — aquele a que se propõe o diretor — não se realiza. Feito por
Divino Tserewahú, da aldeia de Sangradouro (MT), em coautoria
com Tiago Campos Torres, da equipe do Vídeo nas aldeias, o filme
nasce da tentativa de registrar o ritual de iniciação das mulheres
(a festa Nome das mulheres), que já não se via em nenhuma das
aldeias xavante, senão em Sangradouro. O problema é que, desde
1995 (a última vez em que foi encenada integralmente), em

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Artigos

outras tentativas, o ritual é sempre interrompido em suas etapas


preliminares, por conta de inúmeros acidentes e da resistência de
parte da comunidade. Diante do fracasso em retomar o ritual, o
diretor recorre então às imagens de arquivo, de seu e de outros
acervos, para evocá-lo aos membros da comunidade.

Pi’õnhitsi se constrói assim sobre um fracasso, sobre uma


impossibilidade, sobre uma ausência: se não é possível reencenar
o ritual, retomá-lo integralmente no filme, ele será evocado,
por meio de registros de rituais passados, dos discursos e afetos
que eles suscitam, principalmente entre os velhos da aldeia.5
5. Guardadas as diferenças, Pi’õnhitsi
Essa retomada precária e entrecortada se dá no antecampo do
nos lembra Pour la suite du monde, filme, nos espaços de sua produção, ali onde se veem a equipe,
de Michel Brault, Marcel Carrière a câmera, os monitores de TV e outros equipamentos de edição.
e Pierre Perrault (1963). Em certo O antecampo expõe-se como cena na qual o realizador — Divino
sentido, um filme é o avesso do
outro: primeiro, porque é filmado
Tserewahú — está implicado: em algumas sequências, ele tenta
pelos próprios nativos. Segundo, mobilizar a aldeia para a realização do ritual; em outras, exibe
porque, diferentemente do filme imagens aos membros da comunidade; conversa com eles na
canadense, nesse caso, o “ritual” busca de subsídios para sua pesquisa (e essa busca já é, ela mesma,
acaba não se realizando.
o filme); em mais de uma sequência, Divino compartilha a ilha
de edição com o codiretor, não índio, a comentar o ritual, assim
como as lembranças que guarda dele.

Situado no extracampo, o ritual “virtual”, que nunca chega a


ser integralmente realizado, move a narrativa do filme. A ausência
é, repetimos, constituinte; é ela que faz que o filme “se lance” ao
antecampo, exibindo-se como busca e negociação permanentes.

Já na cena de início, realizada em 2003, a feitura do filme e


a tentativa de produção do ritual se misturam. Nela, jovens se
preparam para a performance e respondem às perguntas do diretor.
“Estamos começando a festa, pedindo às mulheres...”. Ao que ele
intervém, detrás da câmera: “Fala mais alto”. Adiante, um velho
comenta: “Não tem ninguém aqui com experiência para conduzir
vocês nesta dança”. Depois, ele se dirige ao diretor: “E você tem
que comprar os shorts para os wapté. Se não comprar, vou quebrar a
sua câmera”. Logo após os créditos, voltamos a Sangradouro, agora
em 2008. Acompanha as imagens a voz over de Divino. Diante
de um monitor de TV dentro de um pequeno cômodo, ele inicia

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

uma “visionagem” com os velhos da aldeia (Fig. 3). Ali, as imagens


de 2003 retornam, sob os comentários jocosos dos personagens e
demonstrações em torno do modo correto de realizar o ritual.

Fig. 3: Os velhos veem as imagens


(frame do filme)

Há, de um lado, a instância na qual o diretor se situaria fora da cena,


em um antecampo oculto, recuado, a filmar, a pensar e a montar
as imagens. Ali, ele assume com Tiago a instância enunciativa,
organizadora do filme, agenciando materiais heterogêneos,
marcados por temporalidades diversas. Mas essa instância não é
nunca soberana nem pode permanecer oculta, fora da cena. O
antecampo é constantemente interpelado, e Divino deve se expor
aos parentes e afins, às circunstâncias de filmagem, às negociações
em torno do ritual e do filme.

Quase todas as imagens e estratégias do filme são, então,


submetidas à relação, exposta, com os demais sujeitos implicados.
Antes de tudo, há as imagens de arquivo de naturezas e tempos
distintos (o filme de 67, feito pelos missionários; as imagens de 95,
realizadas por Vincent Carelli e pelo próprio Divino, aprendiz
de cineasta; as imagens feitas pelo diretor em 2003 e 2007...).

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Artigos

Notável como, ali, os arquivos são recolocados em cena, exibidos


ao coletivo, com desdobramentos inesperados para a vida na aldeia
e para o próprio filme (Figs. 4, 5 e 6).

Figs. 4, 5 e 6: Exibição do filme de


1967 (frames do filme)

Também nas entrevistas — procedimento que, no documentário,


pode resultar em distanciamento —, jovens e velhos interpelam
o entrevistador. Lembremo-nos da senhora que, ao remontar à
história do ritual, aponta o dedo para a câmera e provoca: “Não
éramos frouxos como vocês, que estão deixando a festa” (Fig. 7).

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

Fig. 7: Entrevista (frame do filme)

De fato, a realização do filme e a realização do ritual imbricam-


se, um processo intervindo no outro, a ponto de constituírem-se
mutuamente. A própria feitura do filme que exige a mobilização
da comunidade para a realização do ritual — depende desse
engajamento do diretor, compartilhando em cena as negociações
e dificuldades da empreitada. Em uma sequência emblemática,
entrecruzam-se o desejo de retomar a festa (ainda que “resumida”
para o filme); as resistências e tabus em torno do ritual; a urgência
de finalização do trabalho, e até a necessidade de prestação de
contas a um edital cinematográfico. Na reunião com membros da
comunidade, o diretor argumenta:

Se vocês decidirem fazer a festa, tudo bem. Pode ser uma


semana, três ou quatro dias, mas nós não estamos pedindo
isso para vocês. O dinheiro do projeto foi gasto no tempo
da festa. O prazo já acabou e agora tem a prestação de
contas. Estamos fazendo a edição e a finalização. Não
podemos mais gastar com outra coisa para não sujar o
nome do Vídeo nas aldeias.

Há, por fim, uma camada narrativa, de viés metalinguístico, na


qual o diretor reflete sobre a realização do filme, sobre a festa, sobre

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Artigos

os interditos na aldeia e, indiretamente, sobre a própria experiência


como cineasta, em suas relações com índios e não índios. Diante da
ilha de edição, junto ao codiretor, Divino revê as imagens, passando,
vez ou outra, ao papel de entrevistado. (Figs. 8 e 9) Se, com os
velhos da aldeia, diante da ilha de edição, a relação é interna, agora,
com Tiago, ela é interétnica, voltando-se para fora da aldeia.

Fig. 8: Diante da ilha de edição


(frame do filme)

Fig. 9: Mediador entre mundos


(frame do filme)

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

Ele é assim uma espécie de mediador entre mundos, assumindo


corpos diferentes quando passa de um a outro: faz a passagem
entre passado e presente, entre o cotidiano da aldeia e a cena
fílmica; entre índios e não índios. Participante da cena, a câmera
é dispositivo operador dessas passagens, impedindo também que
elas sejam totalmente fluentes, provocando desconcertos e cisões.
6. A linguagem ordinária, nos
O efeito que se produz, afinal, é o de mise-en-abyme. Há
diz Manuela Carneiro da Cunha
(2009, p. 373), “movimenta-se sempre uma cena dentro da cena e sempre uma câmera a filmar
sem solução de continuidade entre outra câmera. Não poderíamos conferir a esse efeito estilístico um
cultura e ‘cultura’”. A primeira é tida
sentido cultural amplo? Digamos, em primeiro lugar, que, assim
como um conjunto de “esquemas
interiorizados que organizam a como o diretor do filme, os sujeitos estão simultaneamente dentro
percepção e a ação das pessoas e da cultura — “a rede invisível na qual estamos suspensos” — e fora
que garantem um certo grau de
dela — podem tomar certa distância, para citá-la reflexivamente,
comunicação em grupos sociais”
(p. 313); como “um complexo colocá-la entre aspas e em relação com outras culturas.
unitário de pressupostos, modos
de pensamento, hábitos e estilos Poderíamos então nos perguntar: o cinema indígena, não
que interagem entre si, conectados nos permite ele experimentar, muito concretamente, essa mútua
por caminhos secretos e explícitos contaminação e constituição entre a cultura e a “cultura”?6 Como
com os arranjos práticos de uma
sociedade, e que, por não aflorarem prática reflexiva da “cultura”, o cinema teria “efeitos dinâmicos
à consciência, não encontram tanto sobre aquilo que [ele] reflete – cultura, no caso – quanto
resistência à sua influência sobre as sobre as próprias metacategorias” utilizadas para definir e pensar
mentes dos homens” (TRILLING,
L. apud CARNEIRO DA CUNHA, a cultura. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 363) Ou seja, ao
2009, p. 357). Ou ainda, de se dedicar a um fato cultural – a festa – Pi’õnhitsi é um filme
modo mais conciso, como a “rede que não apenas tematiza esse fato cultural mas também intervém
invisível na qual estamos suspensos”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009, nas próprias formas como ele pode ser pensado, reconfigura
p. 373). A segunda — “cultura”, as próprias categorias que o permitem pensar. É profunda a
com aspas — “tem a propriedade de performatividade nesse caso: o filme confere visibilidade e devolve
uma metalinguagem: é uma noção
reflexiva que de certo modo fala problematicamente à comunidade as negociações não apenas em
de si mesma” (p. 356). Trata-se da torno da cultura mas também em torno da “cultura” (as categorias
maneira como um grupo performa e coletivas da autorreflexão). A mise-en-abyme cinematográfica pode
cita reflexivamente a própria cultura,
utilizando-a “como recurso e como ser assim desenhada: trata-se da cena da “cultura” (com aspas)
arma para afirmar identidade, sobre a cena da cultura (sem aspas), que por sua vez se volta sobre
dignidade e poder diante de Estados a cena da “cultura” (com aspas), em transformações sucessivas: o
nacionais ou da comunidade
internacional” (CARNEIRO DA cinema filma o ritual, que é visto pela comunidade, via cinema.
CUNHA, 2009, p. 373) Ela por sua vez tece comentários sobre o ritual, mas também

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Artigos

sobre a maneira como o ritual é percebido, definido e mesmo


filmado. Esse comentário retorna e incorpora-se ao filme, que será
novamente exibido à comunidade7 (Figs. 10, 11, 12).
7. Estamos muito próximos do que
Ian Hacking (citado por Carneiro da
Cunha) chamou de “efeito looping”:
quer seja, o fato de que os tipos
humanos têm consciência sobre o
modo como são classificados. A essa
consciência se responde, na prática,
com comportamentos que podem
ser diferentes do que se espera do
tipo humano em questão. Essa
diferença retorna então, como novo
conhecimento, alterando a maneira
de compreender e definir o tipo, e
assim por diante.

Figs. 10, 11 e 12: cultura e “cultura”


(frames do filme)

Câmera reversa

Ainda que indique relações com o mundo dos brancos (o VNA, a


coautoria, os editais e festivais de cinema...), Pi’õnhitsi é um filme
relativamente centrípeto, cuja circunscrição se define pela aldeia,
da qual o diretor faz parte. Em outro trabalho de nosso interesse, a
relação da cultura com o fora dela é mais enfática. No rico domínio
do cinema indígena, a produção do Coletivo Mbyá-Guarani prima

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

por usar a mediação do cinema como dispositivo duplo, espécie


de dobradiça, que tem uma face voltada para a própria cultura e a
outra, para a cultura do branco; uma face voltada aos espectadores
da aldeia e outra, aos espectadores não índios. Os filmes instauram
efetivos processos de reversibilidade (WAGNER, 2010), voltando-
se simetricamente para a cultura do branco e colocando-se em
relação com ela. Mokoi Tekoá Petei Jeguatá (Duas aldeias, uma
caminhada, 2008), trabalho realizado pelos Mbyá-Guarani, mostra
o cotidiano de duas aldeias, premidas pela vida urbana, cujos
membros, impedidos de plantar, caçar e pescar (dadas as condições
de escassez e degradação ambiental), vivem da venda de artesanato
nas cidades vizinhas. Não são raras as aparições da equipe e dos
equipamentos de filmagem, e o antecampo está constantemente em
cena: escapando do formato habitual da entrevista, os realizadores
conversam entre si e com outros membros da aldeia, sobre a história
e atual situação do grupo; sobre o próprio trabalho do cinema.
Em uma curta, mas bela sequência, imagens feitas para o filme
— antecipadas ao espectador pela montagem — são exibidas, em
uma pequena televisão, à comunidade. Ao enquadrar o rosto das
crianças, jovens e velhos a assistir atentamente às imagens, produz-
se a coincidência entre a comunidade indígena e a comunidade de
espectadores: assim como no filme xavante, mas de outra maneira,
o cinema se mistura à vida na aldeia, seja quando de sua feitura, seja
quando de sua exibição.

Mas, como em outros filmes dos Mbyá-Guarani, o cinema é


um dispositivo nômade, ligado à experiência de perambulação
desse povo tantas vezes expulso das suas terras. A câmera
transita, acompanha o percurso dos personagens (muitas
vezes, crianças), atravessa os limites da aldeia, visita as cidades
vizinhas (Fig. 13, 14 e 15).

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Artigos

Figs. 13, 14 e 15: Cinema nômade


(frames do filme)

Quando, portanto, a equipe do filme deixa a aldeia para viajar


até as ruínas das Missões em São Miguel Arcanjo, local onde os
guaranis vendem seu artesanato, o antecampo torna-se espaço
polêmico, expondo fortemente a relação conflituosa com o mundo
dos brancos. A sequência inicia-se com a câmera a acompanhar
a indiferença consumista dos turistas, que misturam perguntas
banais sobre a cultura dos índios (por cuja resposta, afinal, não
se interessam muito) a perguntas sobre o preço dos objetos (que
acabam por não comprar). Segue-se a sequência com um grupo
ciceroneado pelas guias de turismo local. Nesse momento, o
antecampo é convocado, senão “açulado”, por um dos turistas, que
brinca ao tirar uma fotografia do diretor, atrás da câmera.

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

A sequência se desenvolve com registros do discurso dos guias


Fig. 16: Câmera contra câmera
sobre a história das Missões e dos guaranis. Em um gesto reverso,
(frame do filme)
a câmera passa a se dedicar, mais enfaticamente, ao imaginário
que os brancos construíram sobre os índios, que, como vemos,
avança pouco para além do sentimento de comiseração. Corta-se
para o enquadramento frontal de um professor/turista, que dá seu
depoimento para a câmera. Ele diz que os alunos ficam tristes ao ver
os índios sujos, e até pedindo dinheiro para ser fotografados. Ainda
fora de cena, Ariel Ortega, um dos diretores do filme, sobressalta-
se: “Sujos?” Nesse momento, ele adentra a cena, e o procedimento
da entrevista é acirrado. Uma relação se impõe, superando a
indiferença e instaurando o embate: “Você acha que os índios estão
vendendo sua imagem, é isso?” A câmera dobradiça mantém-se
firme, voltada ao próprio imaginário dos brancos, e o comentário
do turista sobre os índios retorna reversamente (Fig. 17).

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Artigos

Sugere-se aí uma inversão circunstancial de perspectivas: no início


Fig. 17: “Sujos?” (frame do filme)
desta sequência, os índios parecem incomodamente habitar o
mundo do turismo; agora, é o turista que se vê “capturado” pela
perspectiva dos índios: ele se desconcerta diante da resposta que lhe
é devolvida, revelando-se o equívoco de seu comentário. Para Ruben
Caixeta de Queiroz (2008, p. 116), o filme é “um olhar certeiro do
índio sobre o olhar colonizador do branco para o índio: são os índios
que enquadram o ‘olhar do branco’ e revelam não só a sua dimensão
histórica, mas sua presença real no mundo de hoje”. Aquele que
sempre foi objeto do olhar, agora olha, firmemente, o olhar de que
era objeto. Provocado pela câmera, sustentada por um indígena, o
branco se vê — a si próprio — a enunciar sua visão limitada sobre
os índios. A câmera produz relação, na medida em que ressalta uma
diferença — uma diferença não apenas de opinião, mas de mundo.

A sequência continua, e um dos parentes, protagonista do filme,


conta parte da história daquelas ruínas sob a perspectiva indígena:
sobre fotografias do acervo do museu, documentos da história, ele
inicia a narrativa da cobra grande, atingida por um raio enviado por

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

Tupã. Mostra depois as paredes da ruína manchadas de sangue e


gordura da cobra, paredes que foram construídas pelos antepassados.

Evidencia-se, quem sabe, o equívoco que reside e que resiste


Fig. 18: Paredes manchadas de
ao fundo do encontro entre brancos e indígenas: não se trata
sangue e gordura (frame do filme)
estritamente de narrativas ou interpretações diferentes para a
mesma história; explicita-se, mais profundamente, como os
próprios objetos da história, o mundo sobre o qual ela se constrói,
são diferentes, distantes. Como sugere Eduardo Viveiros de Castro,
em sua formulação sobre o equívoco na antropologia, trata-se antes
de uma radical alteridade referencial, de natureza ontológica, e
não apenas representacional: não são a mesma coisa a ruína das
missões jesuíticas transformadas em museu e as paredes manchadas
de sangue e gordura que o índio faz questão de nos indicar. Os
afetos, as memórias e os gestos que produzem são bem diferentes
quando são os índios que as atravessam, ou quando são os turistas
que passeiam por elas.

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Artigos

Essas sequências fazem do filme um dispositivo fortemente


relacional: colocada em cena, a câmera produz relação, não sem
provocar a transformação de seus termos. É em sentido amplo que
a estratégia é dialógica e reflexiva. De um lado, a dialogia é cindida
pelos equívocos que a constituem. De outro lado, a reflexividade
não se endereça apenas ao cinema, mas ao imaginário do qual ele
participa e que ajuda a forjar. Posto em relação, esse imaginário é
transformado por dentro, como as paredes da ruína tomadas pelo
sangue e pela gordura da cobra.

A hipótese que trouxemos por meio do comentário ainda inicial


sobre esses filmes é relativamente simples: ela sugere a natureza
constituinte do antecampo em filmes indígenas. Do ponto de
vista endógeno, o antecampo é o lugar onde o realizador encena
esse duplo e intercambiável papel: dentro da cena, como parente,
membro da comunidade, e fora da cena, como cineasta. Como
vimos, o cinema expressa, em mise-en-abyme, o engendramento
entre cultura e “cultura”. Do ponto de vista exógeno, o antecampo
permite performar e citar reflexivamente aspectos da própria
cultura, tendo em vista as relações interétnicas. Expõe-se como um
antecampo cindido, já que fundado por um equívoco que caberia
ao filme menos desfazer do que revelar.

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Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá | André Brasil

Referências

BRASIL, A. “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo”.


Revista Devires – Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 9,
n. 1, jan./jun. 2012.

__________. “Formas do antecampo: notas sobre a performatividade


no documentário brasileiro contemporâneo”. In: XXII
ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, Salvador, jun. 2013.

__________. “O olho do mito: perspectivismo em Histórias de


Mawary”. Revista Eco Pós, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, 2012b.

CAIXETA DE QUEIROZ, R. “Cineastas indígenas e pensamento


selvagem”. Revista Devires, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, jul./dez. 2008.

CARNEIRO DA CUNHA, M. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos


tradicionais e direitos intelectuais”. In: CARNEIRO DA CUNHA,
M. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

COMOLLI, J-L. “Aqueles que filmamos: notas sobre a mise-en-


scène documentária”. In: COMOLLI, J-L. Ver e poder. A inocência
perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2008.

__________. DELEUZE, G. Cinema I: A imagem-movimento.


São Paulo: Brasiliense, 1985.

__________. Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

SAHLINS, M. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência


etnográfica: por que a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção
(parte I)”. Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 1997.

VIVEIROS DE CASTRO, E. “O nativo relativo”. Mana, Rio de


Janeiro, v. 8, n. 1, 2002.

__________. “Perspectivismo e multinaturalismo na América


indígena”. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da
alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002b.

WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

submetido em: 15 ago. 2013 | aprovado em: 24 out. 2013

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Visões da Câmara clara
Reuben da Cunha Rocha1

Resenha

BATCHEN, G.(Ed.).
Photography degree zero.
Reflections on Roland
Barthes’s Camera lucida.
Cambridge: MIT Press, 2009.

1. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos


Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo. E-mail: [email protected]

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Resumo
Cerca de 30 anos após o aparecimento de Câmara clara, Geoffrey
Batchen, professor de fotografia da City University of New York,
oferece uma visão panorâmica da história da recepção dessa
obra em contextos de língua inglesa. Compilação de 14 artigos
previamente publicados em livros e periódicos anglo-americanos,
Photography degree zero é um passeio pelas linhas interpretativas
que se enredaram na leitura da obra de Roland Barthes desde o
início dos anos 80, logo em seguida à morte do autor.

Palavras-chave
Fotografia, Câmara clara, Roland Barthes.

Abstract
About 30 years after the appearance of Camera lucida, Geoffrey
Batchen, professor at the City University of New York, offers an
overview of the history of this book’s reception in English language
contexts. Compiling 14 articles previously published in Anglo-
American books and journals, Photography degree zero conduces a
trip through the interpretive fields tangled at the reading of Roland
Barthes’s work since the early 80s, shortly after the author’s death.

Keywords
Photography, Camera lucida, Roland Barthes.

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Visões da Câmara clara | Reuben da Cunha Rocha

“Este livro vai decepcionar os fotógrafos”: Roland Barthes avisa


numa entrevista, meses antes da publicação de Câmara clara. A
razão disso é ele tomar “o fenômeno foto em sua novidade absoluta
na história do mundo”, assumindo a posição de um homem
“ingênuo, não cultural, um pouco selvagem, que não parasse de se
espantar com a fotografia” (BARTHES, 2004, p. 499). Nesse livro,
ele se desvincula de todos os instrumentos que costumeiramente
poderiam esclarecer o medium fotográfico (técnica, estética,
história, cultura) e se lança numa fenomenologia desejante, uma
ontologia do afeto, ou uma autoanálise semiótica.

Vê algumas poucas fotos, algo ocorre, ele é movido: o que


ocorre? Por que algumas o tocam, ao contrário da maioria, e de
que modo o afetam? Desse “ingênuo” ponto de partida (como um
primeiro homem sobre a Terra observando a Lua), não se valendo
de saber fotográfico, mas de sensações conceituais, ele começa a
explorar o mecanismo do desejo, concentrado nos efeitos que uma
fotografia possa ter sobre a percepção. “A foto me toca se a retiro
de seu blablablá costumeiro: ‘Técnica’, ‘Realidade’, ‘Reportagem’,
‘Arte’ etc.: nada a dizer, fechar os olhos, deixar o detalhe remontar
sozinho à consciência afetiva” (BARTHES, 1984, p. 84-85).
Especulativo e experimental, o pensamento se constrói nas reações
sentidas pelo corpo, apostando numa “transparência do meio”
ou na inexistência de um código fotográfico, que permitisse unir
diretamente o olhar à presença ausente do objeto.

A suspensão da linguagem no vínculo amoroso com o referente


é a hipótese afetiva motivada pela morte recente de sua mãe, e

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Resenhas

o livro tem parte no trabalho de luto. Coloca-se um paradigma


idiossincrático, temperamental, pelo qual Roland Barthes almeja
uma “ciência dos corpos desejáveis ou detestáveis” (1984, p. 34),
para culminar no conceito de punctum, que captura o olhar
sendo por ele criado: o contingente contra o codificado, duplo
desvio, da cultura e da intenção do fotógrafo como princípios
organizadores da imagem.

A coletânea organizada por Geoffrey Batchen mapeia o


impacto imediato e longevo que Câmara clara teve e continua a
ter no debate anglo-americano. Com contribuições de professores
norte-americanos e britânicos de teoria literária, história da
fotografia, artes visuais e outros campos das humanidades, estão em
Photography degree zero os indícios e tendências da repercussão do
pensamento fotográfico de Roland Barthes em ambientes de língua
inglesa, compilando 14 artigos, a maioria anteriormente publicada
em livros e periódicos, a partir de 1982, dois anos após a aparição
francesa de Câmara clara.

A maioria dos artigos, portanto, não foi pensada para esse


volume, o que faz com que se repitam na apresentação de conceitos
e contexto da obra. Ainda assim, é interessante perceber como
operam em função de diferentes problemas e as sutis variações
conceituais que emergem da simples mudança no foco de interesse.
Outro aspecto de destaque é a discussão da tradução de Câmara
clara enquanto problema teórico, uma vez que afeta o desempenho
conceitual do livro.

Alguns caminhos interpretativos se fazem notar como


tendências, coincidindo entre os trabalhos e revelando focos de
interesse da recepção. O primeiro deles busca recuperar conexões
eludidas (ou desviadas) pelo próprio Barthes, fazendo remissões
a campos de saber que o autor havia rejeitado. A psicanálise, em
especial, protagoniza essa vertente — algumas vezes dando lugar a
uma psicanálise da pessoa de Barthes.

Victor Burgin (“Re-reading Camera lucida”) ensaia uma


totalização do pensamento do autor, buscando “resolver” tendências
conflitantes entre as suas obras e com relação às suas fontes
conceituais. Em particular, mira o gesto contraditório de Câmara

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Visões da Câmara clara | Reuben da Cunha Rocha

clara recorrer ao mesmo tempo a Lacan e à fenomenologia, uma


vez que esta última rejeita o conceito de inconsciente. Burgin
pretende sanar a “lacuna”, inserindo no raciocínio do livro a noção
de inconsciente trabalhada por Barthes em “O terceiro sentido”,
texto de 1970 em que discute alguns fotogramas de Eisenstein.

Ainda em nome da psicanálise, aparece a leitura de Gordon


Hughes (“Camera lucida, circa 1980”), que toma o livro como
interpretação do conto “The sandman”, de E.T.A. Hoffman, a
partir do qual se desenha o tema da “loucura da fotografia”. Na
verdade, uma interpretação da leitura que Freud realiza do conto,
em “O estranho”, que forneceria um princípio estrutural às
ideias de Roland Barthes. Por sua vez, Margaret Iversen (“What
is a photograph?”) entende a mesma obra de Barthes como seu
comentário velado ao seminário “Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise”, de Jacques Lacan. Iversen interpreta a partir de
Lacan o “encontro com o real” sugerido por Barthes na experiência
fotográfica, segundo o qual a essência da fotografia está naquilo que
ocorreu, e a arte fotográfica seria a capacidade de anular-se como
mídia, “não ser mais um signo, mas a coisa mesma” (BARTHES,
1984, p. 73), emanação persistente do real a partir do ocorrido.

É certamente útil esclarecer as propriedades de conceitos que


Barthes, sempre evasivo, costuma descarnar de seus ambientes de
origem. No entanto, tais leituras “regressivas” desconsideram que
essa mesma prática terminológica do autor é fundamental em sua
obra, uma tática semiótica, cujos efeitos têm a ver com a insistência
de Barthes em que a produção de heterodoxia é a política da
escrita, a política do intelectual. Não apenas sua obra é evasiva de si
mesma, abrindo flancos de ação a cada vez surpreendentes, como
também seu uso dos conceitos alheios é desviado ou de superfície,
não remete ao campo original, mas produz derivações ao sabor da
ocasião. Falta às tentativas de esclarecimento conceitual um esforço
no sentido de demonstrar como funcionam os desvios do autor, ou
seja, como ele impede que os conceitos permaneçam idênticos às
suas proposições iniciais.

Esse primeiro modo de interpretação é modulado por outro


tipo de experiência associativa, em que Câmara clara é aproximado

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 272


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Resenhas

pontualmente de outras obras do autor, não em tentativas de dar


coerência a uma trajetória descontínua, mas criando conexões que
não estão dadas em seu trabalho.

Jane Gallop (“The pleasure of phototext”) pensa o erotismo


da fotografia a partir da noção barthesiana de “prazer do texto”.
Presta atenção ao vocabulário de Barthes, que, tomando a
fotografia enquanto emanação direta de um corpo, abre espaço
para metáforas relacionadas a carne, pele, toque. Percebe ainda o
punctum como o erótico na foto, uma vez que revela o desejo de
quem olha e ao mesmo tempo penetra o olhar, animando-o e sendo
por ele animado.

Jay Prosser (“Buddha Barthes”) identifica e diferencia as fases


do pensamento do autor em relação à imagem, com atenção à sua
descontinuidade. Do mitólogo analista da ideologia nas imagens ao
semiólogo dedicado à sua retórica, ele em seguida trata de despistar
o sentido da fotografia, fazendo-a exceder como puro significante
em Roland Barthes por Roland Barthes e O império dos signos.
Prosser então analisa esse último momento, estabelecendo relações
entre ideias do autor e os conceitos do budismo que aparecem no
livro sobre o Japão e em Câmara Clara, pensando o punctum em
correspondência com uma definição de satori, “ao mesmo tempo o
passado e o real” (BATCHEN, 2011, p. 95).

Eduardo Cadava e Paola Cortés-Rocca (“Notes on love and


photography”) entendem o livro sobre a fotografia enquanto
discurso amoroso, a partir do subtexto sobre a mãe que perpassa
toda a reflexão. Também há destaque para o vocabulário em seu
uso específico por Barthes. Os “barthemas” (jogando com os
biografemas criados pelo autor) são a linguagem herética inventada
por ele a partir de termos como “sujeito”, “imagem”, “referente”,
dissolvendo paradigmas de análise numa teoria do devir fotográfico:
“modelos se tornam imagens, imagens se tornam sujeitos, e
sujeitos se tornam fotografias” (BATCHEN, 2011, p. 109). Barthes,
assim, tornaria impossível sustentar “a abstração que chamamos
de referente”, uma vez que o próprio objeto representado passa
a existir somente no instante em que se deixa fotografar. O artigo
deriva daí uma definição do punctum como aquilo que não pode

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 273


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Visões da Câmara clara | Reuben da Cunha Rocha

ser visto previamente, e que irá perturbar a legibilidade da foto a


partir do temperamento afetivo daquele que vê. Isso ocorre por
uma rede de substituições que impede mesmo o punctum de
ser aquilo que é: se ele é o que está na foto e ao mesmo tempo
é acrescentado pelo olhar, então não existe uma única forma de
ler a “indexicalidade” da fotografia. Barthes, desse modo, operaria
uma inversão da “violência ontológica” da tecnologia fotográfica,
que retira do mundo um fragmento. O punctum é o fragmento
criado no olhar, nomeia os efeitos da imagem no corpo do sujeito
observado e do observador (p. 122).

Outra tendência entre os artigos, curiosamente minoritária, é


a aproximação com repertórios fotográficos diferentes dos retratos
preferidos por Barthes. Michael Fried (“Barthes’s punctum”)
busca testar os conceitos propostos em Câmara clara, deslocando-
os para experiências fotográficas excluídas da análise no livro. Em
especial a de pessoas que não sabem que estão sendo fotografadas,
e portanto oferecem expressões privadas ao olhar, irredutíveis à que
oferecemos conscientemente à câmera, as quais Barthes privilegia
em seu livro.

Aqui aparecem problemas de forçar uma teoria geral da


fotografia na qual existe um trabalho de temperamento e arbítrio,
em que as fotos, como o próprio Barthes afirma, servem mais
para provar uma tese, têm valor “essencialmente argumentativo”
(2004, p. 501). As escolhas de Fried apenas confirmam as do
próprio Barthes, o que suscita um artigo-resposta de James Elkins
(“What do we want photography to be? A response to Michael
Fried”), reagindo contra a recusa conveniente de toda uma série
de experiências fotográficas que poderiam arruinar o conceito de
punctum (BATCHEN, 2011, p. 174-175).

Para Elkins, a tentativa de um engajamento absolutamente


pessoal nas fotos produz uma ideia frágil do que é a fotografia.
A escolha de Barthes seria pela “fotografia vernacular”, que se
sustenta nas figuras, cenas reconhecíveis, nas quais a memória
do espectador encontra um espelho mais fácil (p. 176). Eis um
ponto crucial do debate, pois, para “preservar” o punctum, Michael
Fried chega a criticar a fotografia digital porque ela facilitaria

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 274


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Resenhas

o descolamento do referente, abolindo a transparência da foto.


Elkins explica de que modo é possível deslocar o punctum mesmo
em contexto analógico, dependendo do processo empregado, e, ao
contrário, como é possível, em fotografias digitais, fazer funcionar
o punctum, que além do mais é um hábito perceptivo e pode se
estender a imagens não figurativas, mesmo que sejam um território
não familiar ao pensamento de Barthes.

O artigo também detalha alguns procedimentos digitais de


fabricação de imagens, especialmente no campo da ciência,
raciocinando a partir de processos de representação dos átomos.
É o único texto que aproxima o pensamento de Roland Barthes
da produção contemporânea, optando por repertórios que não
apenas confirmam as formulações do autor. E também o único que
descreve e raciocina os processos técnicos fotográficos, rompendo
com a generalidade “Fotografia” que Barthes mantém, ainda que
a declare insustentável: embora diferente em cada foto, o punctum
possui uma estrutura estável na percepção. Acompanhando
os exemplos de Elkins, nota-se de que modo saber diferenciar
as diversas experiências fotográficas (algo somente possível na
diferença técnica) enriquece a percepção, não a oblitera.

Por fim, uma série dos trabalhos, situada nos estudos culturais,
problematiza uma das análises mais emblemáticas de Câmara
clara, sugerindo que é racista a leitura da foto da família negra
americana feita por James Van Der Zee em 1926. Barthes (1984,
p. 71) fala mesmo “do conformismo, do endomingamento, um
esforço de promoção social para enfeitar-se com os atributos do
Branco (esforço comovente, na medida em que é ingênuo)”. Carol
Mavor (“Black and blue. The shadows of Camera lucida”) se lança
contra essa descrição, ela sim ingênua, pois estereotipada, e a partir
disso conecta a história da fotografia à história do colonialismo e
da modernidade, considerando que os códigos de iluminação se
desenvolveram em função do rosto branco. Shawn Michelle Smith
(“Race and reproduction in Camera lucida”) faz um esforço no
sentido de “salvar” o livro dessa condição, e tenta argumentar que
suas formulações podem ser ativadas “sem que se reproduzam
os impulsos raciais e sexuais que o texto apresenta”, ou seja, seu

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 275


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Visões da Câmara clara | Reuben da Cunha Rocha

“paternalismo racista, que negligencia a autorrepresentação da


mulher afro-americana” (BATCHEN, 2011, p. 243-245).

Margaret Olin (“Touching photographs: Roland Barthes’s


‘mistaken’ identification”) discute a mesma questão, talvez de
forma mais complexa, especulando ricamente em torno do erro de
identificação do punctum nessa fotografia. Como se sabe, Barthes
sugere o punctum da foto da família americana primeiro nos
“sapatos de presilhas da negra endomingada”, para mais tarde no
livro escrever que o verdadeiro punctum é o colar que ela traz no
pescoço, um “fino cordão de ouro trançado” também usado por uma
tia sua (de Barthes) em foto da sua própria família. Mas é o segundo
punctum que constitui o erro, pois a mulher na fotografia traja um
colar de pérolas, não esse cordão de ouro. A autora relaciona a falsa
identificação à leitura de Barthes para a foto do jardim de inverno,
onde estariam a sua mãe e um tio, crianças, e para a qual culmina
Câmara clara, sem contudo ser revelada ao leitor.

Ela argumenta que na verdade não existiria a foto da mãe, mas


a reminiscência de uma fotografia de Kafka aos seis anos de idade,
descrita por Walter Benjamin em sua “Breve história da fotografia”,
ensaio publicado na mesma edição de Le nouvel observateur da qual
Roland Barthes extrairia as fotos para seu livro. A imagem de Kafka
tampouco aparece na edição, é a descrição feita por Benjamin
que inspira o semiólogo a deslocar a mãe de outra foto — esta sim
reproduzida em Câmara clara (BARTHES, 1984, p. 155) —, em
que ela apareceria, com o tio infante, na companhia do avô, e que
Barthes apresenta como sendo de seu pai quando criança, e não
de sua mãe. A figura grave do avô é quem articula o ilusionismo,
uma vez que traja um “chapéu grande demais”, assim como Kafka
descrito por Benjamin. É uma brilhante argumentação em torno
de pistas falsas, entrando no jogo de detetive proposto pelo livro,
afinal descrito por Barthes (2004, p. 500) como um “suspense
intelectivo”. Por livre associação, e pelo gosto de despistar, ele
teria realocado a imagem da mãe, com intercessão da imagem de
Kafka, na inexistente foto do jardim de inverno. Jogos de presença
e ausência nesse livro sobre a perda, ligando ainda o punctum à
definição de Sartre (a quem o livro é dedicado) para a imagem

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 276


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Resenhas

mental, “um modo que o objeto tem de estar ausente em sua


própria presença” (BATCHEN, 2011, p. 83).

Tudo isso para demonstrar de que modo o caráter indicial


pode se perder da fotografia. Que algo tenha “estado ali” não é
mais necessariamente a fonte de sua atração: a foto do jardim de
inverno é forte o bastante para sobreviver à possível inexistência,
por causa das relações estabelecidas entre as fotografias do afeto de
Barthes, seus entes queridos e completos desconhecidos. A leitura
da família negra é unilateral, equivocada, assimila a diferença no
desejo imperial do olhar, que não está de modo algum fora da
cultura. Mas nas substituições criadoras que engendra também é
capaz de deslocar o índice fotográfico, que não mais funciona entre
a imagem e o referente, mas entre a imagem e o olhar, “índice
performativo” ou de identificação.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 277


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Visões da Câmara clara | Reuben da Cunha Rocha

Referências

BARTHES, R. A Câmara clara. Nota sobre a fotografia. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

__________. “Sobre a fotografia”. In: BARTHES, R. O grão da voz.


São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BATCHEN, G. (Ed.). Photography degree zero. Reflections on


Roland Barthes’s Camera lucida. Cambridge: MIT Press, 2009.

submetido em: 10 jan. 2013 | aprovado em: 8 maio 2013z

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 278


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O rosto e a vida da sala
de cinema na Lisboa do
século XX
Talitha Ferraz11 e João Luiz Vieira22

Resenha

ACCIAIUOLI, Margarida.
Os cinemas de Lisboa: um
fenômeno urbano do século
XX. Lisboa: Bizâncio, 2012.

1. Doutoranda da Escola de Comunicação da Universidade Federal


do Rio de Janeiro, com estágio doutoral na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Professora do
departamento de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá –
Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

2. Professor doutor do Departamento de Cinema da Universidade


Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 279


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Resumo
No livro Os cinemas de Lisboa: um fenômeno do século
XX, Margarida Acciaiuoli discorre sobre a relação entre
os equipamentos coletivos de lazer cinematográficos e as
configurações urbanas da capital portuguesa, sinalizando como
a sala de exibição se engendrou nos processos de produção do
espaço social e de sociabilidades da cidade, ao longo do século
passado. Nossa resenha ressalta os aspectos levantados pela autora,
no que concerne à trajetória do cinema como edifício-símbolo de
um tempo moderno.

Palavras-chave
Sala de cinema (Lisboa), espectação cinematográfica, sociabilidades,
espaço urbano, modernidade.

Abstract
In the book Os cinemas de Lisboa: um fenômeno do século XX
[Movie theaters in Lisbon: a 20th century phenomenon], Margarida
Acciaiuoli makes a discuss about the relationship between collective
equipment of cinema leisure and urban settings of the Portuguese
capital, signaling as the exhibition was engendered in the processes
of production of social space and sociabilities of the city, over the
past century. Our review highlights the issues raised by the author,
about the history of cinema-building as a symbol of modern time.

Keywords
Movie theaters (Lisbon), film spectatorship, sociabilities, urban
space, modernity.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 280


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O rosto e a vida da sala de cinema na Lisboa do século XX | Talitha Ferraz e João Luiz Vieira

As práticas de lazer ligadas às experiências do olhar associam-se, com


força, desde o século XIX, a determinados espaços construídos das
cidades, cujas edificações arquitetônicas mais perenes, ou mesmo
arranjos físicos temporários, serviram, desde então, à acolhida de
observadores e espectadores urbanos.

Os exames acerca do aparecimento de equipamentos coletivos


de lazer destinados à exibição de imagem em movimento, assim
como da emergência de circuitos exibidores em metrópoles e
pequenas cidades, parecem, agora, ganhar um fôlego especial. O
tema é colocado em discussão e observado justamente no contexto
contemporâneo de profundas mudanças nas formas de mostrar e
ver filmes. Publicações, que podemos considerar bem recentes,
remontam à trajetória das intensas relações entre as salas de cinema
e a configuração dos espaços urbanos de cidades como Rio de
Janeiro, Niterói, São Paulo, Berlim, Bruxelas, Paris etc. (BIVER,
2009; BUSCHMANN, 2013; CAIAFA, FERRAZ, 2012; CLADEL,
2001; FERRAZ, 2009; 2012; FREIRE, 2012).

A cidade de Lisboa não ficou despercebida em meio às


investigações sobre as historicidades dos cinemas citadinos
enquanto estruturas físicas e locais de produção de subjetividade
e de relações entre as gentes, “escuro anônimo” onde as pessoas
trabalham o brilho de seus desejos (BARTHES, 1980).

O livro “Os cinemas de Lisboa: um fenômeno urbano do século


XX”, editado pela Bizâncio em novembro de 2012, de autoria da
professora catedrática do Departamento de História da Arte da

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Resenhas

Universidade Nova de Lisboa Margarida Acciaiuoli, é um trabalho


vigoroso nesse sentido. A obra não apenas coloca em foco a história
dos cinemas da capital portuguesa mas também articula a vida e a
morte dessas salas exibidoras com o desenvolvimento e organizações
espacial e sociocultural da cidade e arredores.

Em 384 páginas, divididas em seis capítulos, a autora mostra


como o cinema — e seus prédios facilmente reconhecíveis,
destacados na paisagem construída através de suas fachadas
(rostos) — agiu na configuração da urbe lisboeta, marcando os
traçados físicos das ruas, os trajetos e afetos das pessoas, os laços de
sociabilidade, os imaginários e as identidades da região. Margarida
Acciaiuoli recorre a dados de arquivos, reportagens de época e
fotografias coletados por ela a partir de 1982, quando uma primeira
versão da investigação foi pensada para um trabalho de mestrado. O
recorte temporal do estudo é de um século.

A autora segue das seminais experiências de espectatorialidade


de imagens animadas e filmes, passando pelo auge das “grandes
catedrais” — como Acciaiuoli chama os movie palaces lisboetas —,
até chegar à atual era do multiplex (ou multissalas). Nessa fase, a
escritora constata ter havido uma mudança no estatuto do espectador,
que, segundo afirma, se tornou mero público, despontando daí uma
completa alteração do que é a “ida ao cinema”.

Notando que o ato de “ir ao cinema” não se circunscreve apenas


a “ir ver um filme”, a pesquisadora busca em alguns momentos
da obra apresentar a mais-valia dos equipamentos de exibição, os
quais, conjugados com o filme, produzem efeitos que ressoarão nas
pessoas durante gerações inteiras. Margarida Acciaiuoli defende
que a sala de cinema é muito mais do que um espaço neutro.
Mostra, ao longo do livro, ao contar os meandros dos processos
de construção das salas exibidoras lisboetas, que rapidamente os
arquitetos perceberam que a estrutura do cinema poderia se tornar
um prolongamento do filme. O movimento do cinema não se
esgota na projeção e na tela animada; ele transborda e se coaduna
com os ambientes arquiteturais e seus elementos físicos.

Com foco no final do século XIX e no início do século XX,


épocas marcadas pelo aparecimento de uma vida citadina mais

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O rosto e a vida da sala de cinema na Lisboa do século XX | Talitha Ferraz e João Luiz Vieira

pujante na Europa, a primeira parte do livro debruça-se sobre os


pormenores do surgimento das experiências de espectatorialidade
em Lisboa. O leitor é situado de forma que perceba a relação
estreita da cidade com as experimentações de um pré-cinema e
com a subsequente consolidação do cinema de moldes comerciais.
A autora expõe como, pouco a pouco, os equipamentos coletivos de
lazer cinematográficos se sedentarizaram em Lisboa.

Na figura de edifícios adequados àquela nova arte do final


de século XIX, o cinema passou a ter um rosto específico: suas
fachadas. Margarida demonstra que foi por meio desses rostos
diversos — ora lapidados ao estilo art déco, ora arrumados
segundo estéticas art nouveau — que o prédio do cinema, para
ela, o edifício-símbolo do século XX, começou a ser reconhecido
por quem percorria trajetos nas ruas.

Os circos também são destacados pela autora como importantes


locais de tessituras dos lazeres modernos e sociabilidades lisboetas
à época. Não é arriscado dizer, após a leitura, que os cinemas de
Lisboa nasceram no circo, a exemplo do Real Coliseu, de 1887,
e o Coliseu dos Recreios, de 1890. Para além das companhias de
palhaços, os circos traziam para o público os chamados “fenômenos”
e as novidades técnicas — entre elas, as imagens em movimento.
O Real Coliseu e o Coliseu dos Recreios foram espaços versáteis e
estabilizaram-se como teatros-circos, uma invenção genuinamente
portuguesa, segundo a pesquisadora.

As páginas seguintes se lançam a partir de uma metodologia


meticulosa alicerçada pelo manejo de dados coletados em
periódicos, catálogos de exposições e anuários comerciais, cruzados
com uma vasta bibliografia especializada nas áreas de urbanismo,
cinema, artes e história. Logo a atenção se volta para os cinemas da
primeira metade do século XX e o seu funcionamento fortemente
integrado à vida moderna em sociedade. A professora mostra que os
seminais equipamentos exibidores lisboetas foram também peças
fundamentais de uma urbanização protuberante.

Ao mesmo passo que viu nascer o lazer cinematográfico,


expressão de uma novidade pujante, de presença ativa nas ruas,
a cidade inaugurou as suas grandes artérias de circulação, a

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 283


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Resenhas

exemplo da marcante, e então recentíssima, avenida da Liberdade.


Nas quatro primeiras décadas do século passado, em Lisboa, foi
evidente a escalada de uma diversidade urbana apanhada de cafés,
vida noturna, espaços de convivência e, logicamente, cinemas.
Entre eles, Tivoli, Capitólio e Parque Mayer, além de várias salas
de bairro, remetiam-se a noções que a autora chama de “templo” e
“fábrica”. Templos do espetáculo, fábricas de sonhos e ilusões.

Contando em pormenores o funcionamento do mercado


exibidor lisboeta das primeiras décadas do século passado, a autora
fala a respeito das fachadas publicitárias e dos cartazes pintados à
mão, que faziam menção a cenas de filmes literalmente “em cartaz”.
Margarida coloca em evidência as relações intrínsecas que existiam
nesse tempo entre arquitetura, desenhistas e publicidade. O Éden-
Teatro é o caso de destaque. Por anos, antes das padronizações
impostas por empresas distribuidoras, conta Acciaiuoli, um pintor
contratado assistia aos filmes principais da programação do Éden,
sempre antes da estreia oficial e geralmente ao lado do dono da sala.
Em seguida, ambos, capitalista e artista, decidiam como o cartaz
poderia evocar as cenas e os personagens da película.

Formação de plateia, mudança nos estatutos das salas perante os


diferentes pedaços da cidade e até mesmo a intervenção das revistas
de cinema na complementação do gosto do público e na construção
de sua experiência de espectador são contextualizadas pela autora
como marcas indeléveis da primeira metade do século XX.

Discorrendo acerca dos fenômenos socioculturais da década


de 1950, o livro detém-se na análise do aparecimento do modelo
movie palace em Lisboa. Um dos exponentes foi o Cinema São
Jorge, que até hoje se mantém em funcionamento com diversas
mostras e festivais cinematográficos, sessões de peças de teatro e
eventos musicais.

Surgia, assim, nos anos 40 e 50, a era das “catedrais”: época na


qual a cidade foi dotada de cinemas grandiosos, isto é, verdadeiros
marcos referenciais que ingressaram na produção de uma Lisboa
cosmopolita. Se nos anos 20 e 30 o cinema era pensando segundo
os modelos do “templo” e da “fábrica”, com o fim da Segunda
Guerra Mundial, a partir de 1945, para a escritora, essas analogias

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O rosto e a vida da sala de cinema na Lisboa do século XX | Talitha Ferraz e João Luiz Vieira

já não fariam mais sentido. Ao contrário, nessa fase seriam as


“catedrais” que pontuariam Lisboa nos eixos de desenvolvimento
urbano. Avenida da Liberdade, com o São Jorge. Praça do
Saldanha, com o Monumental, entre tantos outros cinemas
citados por Margarida Acciaiuoli.

Já no dorso mais contemporâneo dentro do recorte histórico


do livro, o exame se volta para o cenário de mudanças efetivadas
pelo avanço da TV, por alterações na legislação sobre a frequência
etária dos cinemas, por novas políticas de preço etc., pontos que
provocam a construção de outros costumes e práticas nas décadas
ulteriores. Tais transformações são observadas pela obra como
fatores que logo resultariam na reorientação física das salas e no
retalhamento das “catedrais”. O cinema, nos anos 60 e 70, desce
às caves dos prédios para poder utilizar outros espaços, e deixa,
paulatinamente, de ter rosto. É então aí que o estudo mostra como
essa torção abriu caminho para que os equipamentos coletivos de
lazer cinematográfico fossem tragados pelos centros comerciais —
isto é, na fala brasileira: os shopping centers —, que não tardaram
em aparecer em Lisboa.

Sempre relacionando os modelos de salas aos desenvolvimentos


citadinos de Lisboa, Acciaiuoli demonstra como cinema e cidade
se articularam de maneira profícua, o que gerou formas diversas
de usos e configuração do urbano ao longo do tempo e motivou
nuances criadoras para as práticas de lazer e sociabilidade na
capital de Portugal.

A autora ainda ressalta, na parte quase final do livro, os cinemas-


estúdios ou salas-estúdios. Estende-se no exemplo do Londres, um
cinema inaugurado em 1972, que também tinha as funções de
snack bar e pub, na avenida de Roma. Esse perfil de sala reunia
cinemas menores, que representaram os últimos lances de fôlego
de um setor de exibição já em crise. Eram apostas na tentativa de
soerguer os cinemas de rua da cidade.

Com a entrada peremptória do cinema de shopping na vida


cotidiana das pessoas e a consequente derrocada dos cinemas que
antes ocupavam trechos de grandes avenidas ou ruas dos bairros
lisboetas, foi a perda das fachadas desses equipamentos o fato cruel

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 285


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Resenhas

mais evidente, de acordo com as análises da pesquisadora. Para ela,


perderam-se, com isso, referências espaciais proeminentes, que
antes conferiam razões aos trajetos e à imagem urbana das cidades.

É nesse aspecto que Lisboa se traduz como qualquer capital ou


cidade do interior ocidental, onde os cinemas se esvaíram dentro da
profusão urbana, tal como rostos podem ser recortados ou apagados
em um álbum de família, nosso ou de desconhecidos.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 286


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O rosto e a vida da sala de cinema na Lisboa do século XX | Talitha Ferraz e João Luiz Vieira

Referências

ACCIAIUOLI, M. Os cinemas de Lisboa: um fenômeno urbano do


século XX. Lisboa: Bizâncio, 2012.

BARTHES, R. Saindo do Cinema. In: BELLOUR, R. (Orgs).


Psicanálise e cinema. São Paulo: Global, 1980.

BIVER, I. Cinéma de Bruxelles: portraits et destins. Bruxelas: CFC


Editions, 2009.

CAIAFA, J.; FERRAZ, T. “Comunicação e sociabilidade nos


cinemas de estação, cineclubes e multiplex do subúrbio carioca da
Leopoldina”. Galáxia, São Paulo, v. 12, n. 24, dez. 2012.

CLADEL, G. et al (Dir.). Le Cinéma dans la cité. Paris: Éditions


du Félin, 2001.

FERRAZ, T A segunda Cinelândia carioca: cinemas, sociabilidade


e memória na Tijuca. Rio de Janeiro: Multifoco, 2009.

__________. A segunda Cinelândia carioca. Rio de Janeiro: Mórula


Editorial, 2012.

FREIRE, R. de L. Cinematographo em Nichteroy: história das


salas de cinema de Niterói. Niterói: Niterói Livros; Rio de Janeiro:
Inepac, 2012.

GONZAGA, A. Palácios e poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de


Janeiro. Rio de Janeiro: Record; Rio de Janeiro: Funarte,1996.

SANTORO, P. F. A relação da sala de cinema com o espaço


urbano em São Paulo: do provinciano ao cosmopolita. Dissertação
(Mestrado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, São Paulo, 2004.

submetido em: 15 ago. 2013 | aprovado em: 25 set. 2013

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 287


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Convocação da mais
armada
Andrea Limberto Leite1

Resenha

PRADO, J. L. A. Convocações
biopolíticas dos dispositivos
comunicacionais. São Paulo:
Educ; São Paulo: Fapesp, 2013.

1. Andrea Limberto Leite é doutora em comunicação e pós-


doutoranda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo/Brasil (bolsista Fapesp), com o projeto Nos termos da
interdição. E-mail: [email protected]

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 288


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Resumo
O novo livro do pesquisador José Luiz Aidar Prado, Convocações
biopolíticas dos dispositivos comunicacionais, nos coloca
cruamente diante da problemática do chamado, direcionado
aos sujeitos, a integrar discursos em circulação, em que se
acomodam também especificamente circulações discursivas
com a finalidade de fazer consumir.

Palavras-chave
Dispositivos comunicacionais, comunicação, biopolítica, discursos.

Abstract
The most recent work by researcher José Luiz Aidar Prado,
Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais (freely
translated as Biopolitic convoking of communicational dispositives)
puts the reader straight in the face of the calling to enter circulating
discourses. They are directed to all subjects and also accomodate
the discourses with urgence for consumption.

Keywords
Communicative devices, communication, biopolitics, discourses.

2013 | v. 40 | nº 40 | significação | 289


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Convocação da mais armada | Andrea Limberto Leite

O novo livro do pesquisador José Luiz Aidar Prado nos coloca


cruamente diante da problemática do chamado, direcionado aos
sujeitos, a integrar discursos em circulação, em que se acomodam
também especificamente circulações discursivas com a finalidade
de fazer consumir. Entramos com o corpo e com o psiquismo,
movidos numa única pulsão que os atravessa. Se a ação incitada é
aquela de consumir, incorporar, integrar, deglutir, devorar, ela se
dirige àquele que se identifica através desse processamento. E, num
movimento de recobrimento, na medida em que esse sujeito atende
à convocação, ele igualmente identifica-se e consome de si. Visto
então que o processo se completa em consumir-se, incorporar-se,
integrar-se, deglutir-se, devorar-se.

Observando tais processos de convocação nos discursos


midiáticos, o autor faz um brilhante trabalho utilizando como
estopim especialmente pesquisa de base realizada sobre revistas
semanais, inclusive com dados que haviam sido levantados nos
trabalhos anunciados no próprio livro e intitulados A invenção do
Mesmo e do Outro na mídia semanal (PRADO, 2008) e Regimes de
visibilidade em revistas (PRADO, 2011), realizados no âmbito do
grupo Um dia, sete dias – Grupo de pesquisas em mídia impressa2.
2. http://www4.pucsp. São abordadas, entre outras, as revistas Veja, IstoÉ, Carta Capital e
br/~umdiasetedias/ Época — além do destaque para revistas segmentadas por gênero,
como Men’s Health, Nova, Claudia e Marie Claire. A mídia semanal
é observada como rico lastro para uma argumentação sobre discursos
circulantes. A análise se amplia e se aplica à verificação de discursos

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Resenhas

comunicacionais, envolvendo, assim, jornais, publicidades e vídeos,


entre outros exemplos que incrustam a obra.

Estão em questão os discursos comunicacionais como espaço


privilegiado para que se remonte uma arena de batalha, de disputa
no poder simbólico. Ela remonta a um espaço público, na medida
em que o entendimento das convocações que anunciávamos deve
ser comum e socialmente inteligível. Para além disso, chamamos
de batalha o processo argumentativo e coercitivo de que o exposto
tenha efeito de engajamento.

Chegamos à perspectiva trazida desde o título do livro, que é a de


uma determinação política. As convocações midiáticas relacionam-
se à apropriação dos corpos e à presunção de sua animação e
energização na disposição política. Os discursos midiáticos trazem
diretrizes para o comportamento dos corpos, e o que se decide
sobre eles é estratégico, no sentido de que a política é entendida
espraiadamente em todos os níveis microfísicos de poder.

Poderia enganar-se aquele que parasse nesse primeiro nível


mais superficial de leitura do livro, pressupondo exclusiva e
prioritariamente um controle dos media sobre os sujeitos, passivos
no atendimento às convocações. No entanto, o que se revela é
um procedimento ativo de identificação que implica a doação e o
envolvimento perpassado na pulsão biológica. Por isso, dizíamos,
há um recorte dos corpos em doação política da própria carne
para circulação. Ainda assim, devemos ter em mente que essa é
uma descrição do próprio processo de representação, indistinta da
possibilidade de ser. Ser, e circular, só seria possível na linguagem.

A partir disso podemos dizer que o livro todo é um enorme


gancho que fisga o leitor pelo estômago fazendo acompanhar os
movimentos das convocações comunicacionais. Quisemos dizer
pelo estômago para passar a sensação de que dos raciocínios
descritos não podem ser vistos de fora, como leitor, como sujeito.
A linguagem utilizada no livro passa da abordagem teórica aos
exemplos e volta à teoria de maneira a repetir o cerco identitário
dos sujeitos. Se o leitor não se apercebe através da recuperação
feita de teorias do discurso, da psicanálise, da antropologia, da
comunicação, deve então certamente se ver com os exemplos que
retomam questões de gênero, raça e sexualidade, principalmente.

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Convocação da mais armada | Andrea Limberto Leite

O que está privilegiado na forma com que o livro está escrito


é a ação de fazer perceber as implicações na carne do pulsar das
convocações descritas. Assim, é possível situar a “fodona” de Nova,
em seu imaginado infinito poder sedutor, alinhada à descrição
dos tipos de discurso apontados por J. Lacan e à recuperação de
elementos das teorias representacionais. Da mesma forma, a
fantasia “na lama e na cama, longe da roubada” com a ascensão de
discursos hegemônicos. E, ainda, coaduna o a mais do gozo com
um “improved tigrão”.

O livro é bem escrito e tem uma leitura fluída, ao mesmo tempo


que apresenta níveis de profundidade que podem ser acessados à
medida que o leitor conheça a remissão a densas teorias, citadas
literalmente ou não. Conceitos complexos são incorporados no
texto de maneira direta, indicam saídas e apontam caminhos para
os leitores que não os percorreram antes. Pode ser assim uma obra
densa e ao mesmo tempo reta. Assim também podemos considerar
que seja uma obra rica e original, especialmente no quesito da
costura proposta entre autores.

O autor não se retrai em trabalhar com os conceitos e se apropria


deles de maneira rica mas também complexa e direta, sofisticada
e escancarada, pontuando o que pode especificamente recuperar.
“Se alguma ênfase deve ser dada à Semiótica não é de sua pretensão
de ser a ciência das ciências e das artes, mas a de uma disciplina que
estude os novos regimes textuais de visibilidade e de interação que
regem as sociedades atuais” (PRADO, 2013, p. 103).

No livro, encontra-se favorecida a relação entre conceitos


que tentaram organizar na área dos estudos de linguagem e da
psicanálise a representação sobre o eu e a circulação discursiva.
São acionados, assim, autores como J. Lacan, G. Deleuze, J.
Derrida, P. Charaudeau, E. Laclau e C. Mouffe e J. Rancière. Mas
é na perspectiva de pensar o funcionamento da linguagem como
dispositivo de controle, informada especialmente pela obra de M.
Foucault, L. Althusser e G. Agamben, que são marcadas as referidas
representação do eu e circulação discursiva. E o apontamento
que consideramos mais relevante é a ideia de que o dispositivo
comunicacional implica um e outro numa equação de dois termos,

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Resenhas

que os aciona a ambos imaginariamente numa amarração, num


nó. A ideia de controle é viva nesse ponto, animada pelos discursos
voltados a fazer agir e emergindo das modalizações.

A sequência dos capítulos da obra é tão surpreendente quanto


bem alinhavada. Ela se abre colocando em questão diretamente a
relação entre visibilidade e convocação. Está na base do chamado à
convocação o desejo por uma circulação visível; há um desejo por
visibilidade enquanto se é tomado por uma convocação. Surgem
efeitos de quando se atende a essas convocações, e eles aparecem
nos termos de imperativos como “consuma”, “atualize”, “troque”.
Assim, o autor pôde apresentar gradações entre convocações
hegemônicas e não hegemônicas.

No segundo capítulo, Prado aborda, tendo aberto a questão


da visibilidade de um outro não hegemônico, uma situação que
chamou de um Outro invisível, um Mesmo visível. Entende-se que
o processo de invisibilidade está relacionado à politização da vida e
à marginalização de sujeito em relação ao desenho social. Reforça-
se, nesse sentido, que a vida dos sujeitos está em questão como uma
vinculação política, atrelada a preceitos de organização particulares
e de inserção dos corpos.

Como terceiro capítulo da obra, desenha-se o campo de


batalha em que as disputas políticas por visibilidade são travadas: os
dispositivos midiáticos em sua plenitude de articulação, estratégias
de representação e enquadramento do mundo. É nesse sentido que
a inserção política dos corpos mostra seu engajamento, que é de
natureza discursiva. Há também um caráter desse engajamento que
não deve ser desconsiderado, que é sua atuação como dispositivo.
Isso significa entender que as convocações de que trata o livro estão
relacionadas a procedimentos discursivos e dizer de uma vez só
sobre o político, controle e engajamento dos sujeitos no discurso,
tratando-se de um conceito caro na articulação do livro.

A partir de uma outra perspectiva implicada no olhar sobre os


discursos, aquela de uma topologia, o autor apresenta a ideia de
um mapa. Anuncia, no quarto capítulo, o mapa da mina-vidaclipe:
do pequeno truque à profanação. Tendo situado anteriormente
os discursos hegemônicos em relação aos sujeitos, a condição de

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Convocação da mais armada | Andrea Limberto Leite

invisibilidade do outro, mais o terreno de batalha dos discursos


midiáticos, o autor vai tratar da possibilidade de profanação. Trata-
se de desafiar o capitalismo como religião e o valor abstrato das
produções e produtos.

Dito de uma outra forma, esse mapa proposto só é possível


por conta de uma performatividade dos media, uma modalização
relacionada ao fazer através da argumentação no discurso. O autor
recorre especialmente a P. Ricoeur e J. Austin para pensar o conceito
de performance dos media conforme o processo argumentativo de
todo o dizer.

Nesse sentido, vai analisar especificamente a construção da


realidade em Veja, concentrando-se nos imaginários de uma
sociedade de controle, dos media como novos aparelhos de
discursivização e do reforço de um discurso que aponta e marca
diretrizes para a ação.

Um discurso específico é utilizado como exemplo privilegiado


de coalizador dos desejos de ser, aquele do poder da inteligência
como modalizador do sucesso. Num duplo reforço de discurso
hegemônico e de reforço à valorização de recursos de controle,
concentra-se sobre a inteligência dos processos de controle e na
construção das diretrizes para a vontade, atenção e disciplina.

Da mesma forma, agora como objeto de desejo eleito, um nome


aparece como o algo a mais a ser buscado, um fator privilegiado
(como um X factor), a busca do tsuj; trata-se do extra necessário
para uma circulação de sucesso. A lógica da circulação da diferença
indica que “o termo capital queima a diferença para mover-se”.

A faceta mais original do livro vem ao final, quando o autor


procura apontar as possibilidades para uma nova política ou
nova forma de exercer a política. Sob o jugo de um supereu que
incita o gozo, o efeito político é acionado através da culpa em
ver as imagens representadas. É a manifestação do sentimento
de culpa pelo prazer em concretizar a representação. Isso
repõe para os sujeitos, num movimento de retorno, e faz que
estes estejam eternamente amarrados à própria dinâmica da
representação, em todos os seus ciclos.

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Resenhas

Assim, concluímos considerando que a leitura de Convocações


biopolíticas dos dispositivos comunicacionais interessa para
pensarmos como lidar com a política das imagens e da palavra no
sentido que encarnam dispositivos de visibilidade. Podem derivar
disso também uma maior autoconsciência sobre os termos das
equações imaginárias que nos engajam e a abertura para que se
lide com a figura de um Outro ameaçador. Nessa perspectiva,
entendemos a necessidade do trabalho com as dinâmicas de
consumo, associada à lógica de circulação discursiva, em que o
“Consumo é o nome da ação de resposta pragmática às modalizações
dos dispositivos” (PRADO, 2013, p. 161).

Podemos, ainda, fechar esta resenha dizendo que durante


todo o livro o apelo subentendido das convocações é aquele
contra a morte. Narrativizamos seu apelo e o performatizamos
no sentido de talvez garantir a segurança sobre um abismo, um
buraco. Queremos citar ainda uma iniciativa inovadora: foi feito
o trabalho de preparação da versão do livro em e-book, estando
disponível no formato epub.

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Convocação da mais armada | Andrea Limberto Leite

Referências

PRADO, J. L. A. A invenção do Mesmo e do Outro na mídia semanal.


DVD. São Paulo: PUC-SP (Um dia, sete dias – Grupo de pesquisas
em mídia impressa), 2008.

__________. Regimes de visibilidades em revistas. DVD. São


Paulo: PUC-SP (Um dia, sete dias – Grupo de pesquisas em mídia
impressa), 2011.

submetido em: 10 nov. 2013 | aprovado em: 28 nov. 2013

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