Crítica A Será Possivel A Exegese Livre de Premissas - 3 - para Mesclagem
Crítica A Será Possivel A Exegese Livre de Premissas - 3 - para Mesclagem
Crítica A Será Possivel A Exegese Livre de Premissas - 3 - para Mesclagem
O grande teólogo do século XX, Rudolf Karl Bultmann, na sua famosa obra “Crer e
O texto é de 1957, mas é daqueles que costumam vencer o tempo. Escrito por Rudolf
Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão. Ao lê-lo, deparei-me com questões acerca dos
estudos de um texto – talvez por estar a vida toda lidando com textos, especialmente nesta última
década, quando laureei-me em Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Embora a
intenção do autor seja tratar dos aspectos exegéticos bíblicos, isso não impede a possibilidade
de pensarmos nossa forma de lidar com textos diversos. É importante frisar que, embora tenha
sido escrito em poucas páginas, os elementos abordados por Bultmann, no artigo que irei usar
para reflexão, são amplos e, para o tema em questão, focarei em alguns aspectos pontuais.
A primeira resposta do autor à pergunta que propõe como título é: sim e não. Quando
diz sim à pergunta sobre a possibilidade de uma exegese livre de premissas, Bultmann refere-
se à exegese feita “sem pressupor os resultados da exegese”4. A segunda resposta, por sua vez,
segue da explicação de que o exegeta não é neutro. Este, ao analisar o texto, traz “consigo
certas perguntas” e “certa noção do assunto de que trata o texto”5. Acho que, na teoria, é possível
uma exegese estar livre de premissas, mas, na prática, não, pois, até mesmo quando o exegeta
1
Ensaio válido como avaliação pela disciplina de Exegese 2 , sob a orientação do Prof. Dr. Esdras Costa Bentho, na
Faculdade Evangélica da Convenção geral das Assembleias de Deus (FAECAD).
2
Alan Francisco de Souza Lemos é professor de línguas portuguesa e grega e respectivas literaturas e
bacharelando em Teologia.
3
BULTMANN, R. K. Será possível a exegese livre de premissas? In: BULTMANN, Rudolf Karl. Crer e Compreender.
Artigos Selecionados. Editados por Walter Altmann. São Leopoldo RS: Sinodal, 1987, pp. 223-229.
4
Bultmann, p. 223.
5
Bultmann, p. 223.
2
se propõe a ser o mais imparcial possível, ele já tem em mente o objetivo de alcançar tal meta,
e isto, de alguma forma, induze-o a um fim pré-ciente ou estabelecido, ou seja, o não querer ter
premissa alguma ipso facto se torna a premissa mesma. E, quando tratamos do texto mais
interpretado em todo o mundo, a Bíblia, a isto se soma o fato de boa parte dos exegetas ser de
confissão religiosa cristã ou de alguma outra espiritualidade que se valha das Escrituras, e, como
alguém disse certa vez, ninguém é imparcial quando se aproxima da Bíblia. Será?
Como um adendo à temática, penso que, nesse aspecto, o ambiente acadêmico ainda
seja pouco compreendido. É constantemente acusado de ser rígido e fechado em suas
metodologias. Mas, a liberdade em criar sua própria capacidade especulativa e novas
concepções não cabe à Academia. Esta leva consigo a manutenção do que a humanidade nos
legou e força os alunos (ou deveria ser assim) a compreender as ideias que nos chegaram com
máximo rigor. Quando as ideias forem da melhor maneira possível compreendidas, mesmo que
os resultados sejam contrários às crenças que o intérprete carrega consigo, então, este poderá
reformular suas ideias, criar novas ou enfatizar suas concepções criticando o autor cuja leitura
foi bem compreendida. Mas, jamais, teremos uma exegese totalmente imparcial e livre de
premissas.
Se, por um lado, para Bultmann, é necessário abrir mão dos resultados que se espera ao
ler um texto – para se chegar à exegese sem premissas -, por outro, é necessário lembrar que
há certas determinações histórico-subjetivas fundamentais na hora de interpretar determinado
texto. O leitor “está determinado por sua individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos
específicos, por seus dons e seus pontos fracos”7. Isto aliado a toda história que o precedeu e
determinou seu modo de ler o “mundo”. A este respeito escreveu o poeta Fernando Pessoa: “(...)
o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas
não o texto." Para o poeta, o texto não continua, isto é, a mensagem originalmente escrita perde,
6
Bultmann, p. 224.
7
Bultmann, p. 224.
3
"Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que cada releitura de um
livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto”, afirmou Jorge Luis Boges. E, contra
toda objeção de que os textos deveriam ter uma interpretação definitiva, o autor defende que a
história não é vista objetivamente, haja vista que somos parte dela e estamos nela. Portanto, um
olhar afastado, objetivo e definitivo destoa do comprometimento com o movimento próprio da
própria história. Nisto, acerta Bultmann. Ele só erra ao considerar possível o sim à pergunta
inicial: será possível a exegese livre de premissas?
No início do seu artigo, Bultmann afirma que Filão, Paulo e o autor da Epístola de Barnabé
não “ouviram” os textos usados como fonte para suas afirmações, pois teriam eles feito o texto
dizer aquilo que eles já sabiam de antemão. A esta metodologia, Bultmann chama alegoria e
afirma que ela deve ser irrevogavelmente evitada. Percebo, não somente neste posicionamento
bultmanniano, mas também em outros de sua vasta obra, que este teólogo não crê na Divina
Inspiração, na Divina Revelação e, nem tampouco, na Divina Iluminação, pois afirmar que Paulo
acresceu a Dt 25:4 algo que não estava no texto em 1Co 9:9 é afirmar que o texto de Dt 25:4 é
um texto como outro qualquer, sem inspiração; isto, a luz da teologia cristã, é um patente
absurdo, pois sabe-se que o texto bíblico não é um texto qualquer e que guarda, em suas
8
Aqui, Bultmann comete o que Olavo de Carvalho chamaria de paralaxe cognitiva, que consiste no fato de o
proponente de uma tese não conseguir sustentá-la em seus próprios modus vivendi e modus agendi. No caso de
Bultmann, ele afirma que os exegetas imparciais podem fazer uma exegese imparcial, mas, ao mesmo tempo, ele,
que é exegeta, bem como os demais exegetas, estão todos limitados pelas características subjetivas da
personalidade e pelo contexto temporal e cultural de sua época.
4
camadas misteriosas, significados variados, como o próprio Jesus Cristo nos ensina quando cita
tantos e tantos textos veterotestamentáreos que, aparentemente, não traziam nenhuma
revelação sobre sua vinda. Certamente aqui temos assoalhado a dificuldade hermenêutico-
epistemológica constitutiva do pensamento ocidental moderno: o que está para além do
experimental não pode ser dito, nem pensado e nem tampouco questionado (R. Carnap).
Simplesmente porque esta realidade não possui uma existência empiricamente demonstrável. É
possível dizer, desta forma, que a realidade (ontologia) parece estar umbilicalmente ligada à
capacidade cognitiva de compreensão/percepção (hermenêutica) de um sujeito epistêmico. E é
justamente este o calcanhar de Aquiles da ciência moderna e modernosa. É conditio sine qua
non provar demonstravelmente; portanto, usando as palavras de Immanuel Kant, na Kritik der
reinen Vernunft, é preciso “reduzir o espaço da fé e aumentar o da razão”. E Rudolf Bultmann é
depositário fiel desta filosofia. Apesar de certo quanto à Hermenêutica, aqui, agora, Bultmann
também infringe a teologia cristã. Mais a frente, mais uma vez o faz quando acusa os intérpretes
dos evangelhos – como eu e você – de serem preconceituosos por acreditarem que a
transmissão dos relatos de João e Mateus são historicamente fiéis devido ao fato de estes terem
sido discípulos de Jesus. Ora só diz algo assim quem patentemente não crê na Divina Inspiração
das Escrituras, dogma comum a todas as denominações cristãs. Daí que, ao fim e ao cabo,
Bultmann não pode ser cristão, ao menos não na acepção mais profunda do termo. E, se
considerarmos, com os cristãos, que só há um único Deus – e que este Deus é Pai, Espírito,
mas também Jesus -, podemos, a posteriori e ipso facto afirmar que Bultmann é necessariamente
ateu (conforme nos recorda o Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr.). Se, na Bíblia, há choque de
informações (como no caso citado pelo teólogo alemão em que não se saberia ao certo em que
momento do ministério de Jesus deu-se a purificação do Templo), é porque tal livro não é um
artigo científico, que busca a exatidão o tempo todo, mas, acima de tudo, um livro de fé, e que,
portanto, exige, de todo e qualquer bom exegeta, a fé como primeiro e maior pré-requisito. E isto
parece faltar a Bultmann.
É por isto, e como consequência inevitável de sua falta de fé, que Bultmann é levado a
suspeitar se Jesus sabia, enquanto esteva aqui na Terra, que era o Messias (consciência
messiânica de Jesus).
“Será que a exegese dos evangelhos pode ser dirigida pela pressuposição
dogmática de que Jesus era o Messias e tinha consciência de o ser? Ou não
precisa ela, antes, deixar esta questão em aberto? A resposta deveria estar
clara. A eventual consciência messiânica seria um fato histórico que, nesta
qualidade, somente pode ser demonstrado pela pesquisa histórica. Caso esta
pudesse tornar provável que Jesus sabia ser o Messias, tal resultado teria
certeza apenas relativa; isto porque a pesquisa histórica jamais pode conduzir a
resultados de validade absoluta. Todo conhecimento histórico está em
5
Deus, pela sua própria natureza, de acordo com Wolfhart Pannenberg9, não é um objeto
do qual podemos dispor analiticamente do ponto de vista da abordagem científico-
fenomenológica. E a Bíblia, como portadora da Palavra de Deus, também possui tais limites.
O problema de Bultmann é que ele procura demonstrar que a Bíblia possui erros lógicos,
mas esquece que este livro, não raro, é ilógico porque de fé. Então é truisticamente óbvio que
ele achará vários erros lógicos! E não somente ele, mas eu e você também! A questão não é
essa, mas estas dificuldades sempre existirão para aqueles que não têm fé.
9
PANNENBERG, W. Teoria de la ciencia y teologia. Madrid: Livros Europa, 1981.
6
proposta do trabalho. O segundo já coligiu os materiais para começar a fazê-lo. Pergunto: por
acaso estas exegeses serão imparciais? Os estudantes, por ocasião do labor exegético, não
sofrerão a interferência de tais fatores? Ora, é sabido que a idade, a formação, a educação, o
contexto epocal e cultural e a religião e/ou a fé de uma pessoa – entre outras coisas – não apenas
pode como, de fato, afeta a sua hermenêutica particular, pois tais variáveis compõem sua
cosmovisão. Destarte, e não obstante, Bultmann parece negligenciar isto quando afirma que: a)
é possível (mesmo que somente aos exegetas “livres” de preconceitos) uma exegese sem
premissas e b) a linguagem como modus probandi. A linguagem não é somente um modo de
provar ou de demonstrar, mas também um modo de expressar nossos pensamentos, inclinações
e preconceitos. Não é possível viver sem preconceitos. É natural à estrutura psíquica a formação
de conceitos preconcebidos. Eles nos ajudam a prever e evitar erros e a nos relacionar com o
mundo.
Já Bachelard está mais errado ainda quando afirma que a verdade é um fenômeno
construível. Pois, se a verdade é um fenômeno, ela está dentro da realidade, isto é, é real. Ora,
aquilo que é real independe da minha vontade; independe do poder de construção humano. Se
uma porta estiver fechada e alguém quiser passar por ela alegando que, ao contrário, ela está
aberta, a mesma porta não passará de fechada à aberta só por que tal indivíduo quis ou desejou.
Não há como “construir” uma realidade em que uma porta fechada esteja aberta
simultaneamente. Isto é ridículo!
Outro problema de Bultmann, é que ele divide o conceito de premissa em dois tipos: as
premissas enquanto preconceitos de base religiosa e premissas outras, quaisquer. Todavia,
como vimos, na prática, não há diferença eficaz, pois tanto uma como a outra tem o poder de
persuadir e induzir o hermeneuta a tomar este ou aquele caminho exegético. Contra si mesmo,
Bultamnn acerta quando afirma que “determinado enfoque sempre constitui premissa”, pois, se
todo e qualquer enfoque pressupõe uma ou mais premissas, ele, no ato da exegese, está
limitando, focando determinado texto sob as limitações de seu intelecto, seu conhecimento, sua
visão ou intenção. Aqui, com o filósofo Olavo de Carvalho, temos que dizer que estamos diante
de uma paralaxe cognitiva.
Diversos são os aspectos que devem ser levados em conta no exercício hermenêutico
de um texto. Sobre a compreensão histórica, o autor diz:
Neste sentido, a teologia satisfaz, sim, como notifica Pannenberg (1981), o postulado da
coerência, pois suas proposições têm, outrossim, o caráter cognitivo (pois estas mantêm uma
10
Bultmann, p. 225.
11
A verdade, como realidade psico-cognitivamente alvejada de primeira grandeza, é a mais nobre tarefa
empreendida pela “atitude interpretativa” (Mesters). O termo grego alethéia, como foi exposto magistralmente por
M. Heidegger em sua hermenêutica fenomenológica, significa ‘desocultação’ ou desvelamento. Isto implica dizer
que ela (a verdade) precisa ser arrebatada do lugar em que se encontra ocultada através do discurso/linguagem
(lógos). Rudolf Karl Bultmann foi discípulo de Martin Heidegger.
8
relação de identificação com a história/realidade concreta) que torna seus artigos constitutivos
inteligíveis do ponto de vista da racionalidade epistemológica, haja vista que nela também existe
tanto o “objeto material” quanto o “sujeito epistêmico” (BOFF, 1998, p. 41-2). Ora, com base
nesse último pressuposto, não há como olvidar que a verdade, enquando doxa, é uma
condição/intenção que pode caracterizar preferencialmente a atitude interpretativa de todo
sujeito cognoscente, que deseja, outrossim, transformar sua suspeita intuitiva em certeza
epistemológica. Este procedimento marca a intencionalidade do cogito cartesiano frente a
quaisquer fenômenos ontológicos existentes e fundamentados por uma crença apriorística de
orientação tendenciosamente religioso-metafísica.12 Nesse sentido, esta postura hermenêutica
também passa a ser caracterizada pela cientificidade metódica que pretende transcender os
limites imaginários do conhecimento sensível (popularmente reconhecidos e articulados no
senso comum), convertendo-o em certeza epistemológica para o sujeito compreensivo
interpretante, mas, com isto, desperdiçando a parte metafísica da verdade/realidade. A verdade,
enquanto valor motivacional e meta alvejada do empreendimento cognitivo, deve ser identificada
no testemunho revelacional da experiência histórica; geografia epistemológica esta que demarca
o seu grau de autenticidade, bem como sua legitimidade e validação cognitivas. Porém, também,
ela deve ser identificada no testemunho revelacional da epifania da Palavra de Deus. Na teologia,
enquanto ciência da fé [atribuição que Heidegger outorga a ela] (HEIDEGGER, 1991), ela jamais
pode deixar de ser sua meta primeira e final, se consideramos como os pais da Igreja (sobretudo
Justino13) de que a verdade só é referencial da fé (ou do sujeito pístico)14 porque ela, antes de
tudo, lhe é constitutiva. Assim, ao fim e ao cabo, veremos que, se a verdade constitui a fé, só
pode haver, de fato, uma fé correta (sob pena existirem várias verdades contraditórias, que, em
última análise, acabariam sendo todas elas mentiras).
Assim sendo, o que deve haver de comum, em termos de atitude hermenêutica de todo
sujeito interpretante (sobretudo naquele que transita no e pelo reino da epistemologia bíblica), é
exatamente a honestidade intelectual, orientada para o desvelamento da verdade última
existente enquanto objetivo epistêmico do empreendimento cognitivo, e a fé, ao modo
anselmiano, necessária para a intelecção daquilo que não se capta apenas com a exegese
metódica racional (aquela mesma camada de mistério de que já falei). Assim, discordo de Pires
& Oliveira (2008) quando afirmam:
12
Esta é a sintomática conclusão a que se chega da proposta metodológica da filosofia cartesiana do cogito ergo
sum. Para melhor esclarecimento, cf. Descartes (1992).
13
Cf. o primeiro capítulo de Tillich (1980).
14
Conceito utilizado na teoria da epistemologia teológica que significa “sujeito portador da fé” (GEFFRÉ,2004).
9
Não é preciso expor, novamente, por que discordo destes autores. Eles adotam o mesmo
posicionamento de Bultmann: aceitam como real e eficaz a possibilidade de uma exegese sem
premissas. Ao modo da compreensão prévia de Bultmann, estes autores vão falar de
readequação compreensiva, indo, até, mais longe que Bultamnn quando afirmam que nem
mesmo isto pode adulterar a objetividade do resultado interpretativo.
Acredito, sim, que a exegese bíblica, quando feita com parcimônia, temperança e
honestidade intelectual, é capaz de alcançar um “maior grau de objetividade”, mas – repito – ao
modo anselmiano, isto é, sobre sua fórmula fides quaerens intellectum.
Em poucas palavras, a verdade possui uma face de objetividade (razão, ciência) e outra
de subjetividade (fé, metafísica). Isto, porém, não significa dizer que a mesma (a verdade) seja
necessariamente aprisionada e determinantemente condicionada pela ótica de seu sujeito que a
percebe para não redundarmos, assim, na sentença existencialista de orientação
kierkegaardiana quando esta afirma que a verdade é essencialmente subjetividade. O correto é
evitar estes extremos: nem apenas objetividade (Bultmann, Bachelard, Pires & Oliveira), nem
apenas subjetividade (Kierkegaard), mas a média ponderada (Santo Anselmo, Karl Barth).
Assim, tenho que discordar parcialmente de Pires & Oliveira quando afirmam:
Discordo, mais uma vez porque Pires & Oliveira, assim como Bultmann, Bachelard, Kant,
Heidegger e tantos outros modernos e pós-modernos esquecem-se da presença econômica de
10
Deus na história; esquecem-se da Divina Iluminação do Espírito Santo. Esta verdade, contudo,
não pode se ocultar sob o medo e a falta de fé dos teólogos “cristãos”. Obviamente, concordaria
com os autores se a Teologia não fosse uma ciência natural e sobrenatural, isto é, que tem como
objeto de estudo o físico e o metafísico.
Até agora, temos algumas coisas que devam ser levadas em conta. A abertura ao novo
que se toma ao lançar mão de fazer a exegese. O fato de não sermos puros historicamente em
relação ao que nos propomos estudar. Quanto a este ponto, não somente entra o histórico no
geral, ou uma espécie de consciência coletiva, mas o sujeito mesmo. Acerca disso, Bultmann diz
que a “compreensão histórica sempre pressupõe uma relação do intérprete com o objeto que se
manifesta direta ou indiretamente nos textos”15. Essa relação do intérprete está na sua relação
vivencial com o objeto e é nesse aspecto que não há possibilidade de isenção de premissas na
exegese. “Esta compreensão” diz Bultmann “é que chamo de compreensão prévia”.16
Há, desse modo, uma relação existencial com a história da qual o intérprete faz parte.
A partir dessa relação, é impossível pensar numa estrutura sujeito-objeto no qual houvesse um
olhar isento para o objeto, haja vista que temos previamente concepções que influenciarão
relevantemente a interpretação. Diante da compreensão prévia, de sermos sujeitos históricos e
carregarmos a mutabilidade dada a partir de nossa condição, Bultmann conclui que a “intuição
histórica nunca é definitiva e concluída”17.
Para Bultmann, o “evento histórico faz parte do seu futuro”18, ou seja, somente quando
o evento acontece é que ele começa a ser compreendido, e quanto mais distância o intérprete
toma do evento, maior é a compreensão de seu sentido. A esse respeito, mais a frente, Bultmann
diz que “A compreensão de um texto nunca é definitiva, mas permanece aberta, porque em cada
futuro o sentido da Escritura se manifesta de nova maneira”19. Porém, na compreensão de um
texto, há informações que podem permanecer inalteradas, pelo menos em seu cerne, como foi
15
Bultmann, p. 226.
16
Bultmann, p. 226.
17
Bultmann, p. 227.
18
Bultmann, p. 227.
19
Bultmann, p. 228.
11
e ainda é o caso da ressurreição de Cristo para os cristãos, que permanece a mesma mensagem,
inalterada em seu maior significado, e à qual pouco se pode acrescentar.
Por fim, é preciso atentar para uma coisa. O mais duro golpe dado na tese bultmanniana
de que é possível uma exegese sem premissas é desferido pelo próprio Bultmann!
Paradoxalmente, como já disse, Bultmann, neste artigo o qual criticamos (Será possível a
exegese livre de premissas?), admite ser e não ser possível uma exegese perfeita, sem mesclas
ou inserções de subjetividades do hermeneuta; isto dependerá do próprio exegeta, se ele for
preconceituoso ou não, tendencioso ou não, preso a sua religião ou não. Mas, enfim, o fato é
que Bultmann, neste ensaio, admite ser possível, ao exegeta com “E” maiúsculo, alcançar a total
imparcialidade. E é, aqui, que, talvez, é revelada a maior contradição deste autor, porque, em
outro artigo, escrito em 1950 – O problema da Hermenêutica -, Rudolf Bultmann, influenciado
pela hermenêutica fenomenológica de Heidegger, escreve dizendo que uma interpretação nunca
está isenta de uma premissa. Esta está sempre orientada por um enfoque ou por um certo rumo
configurado/estruturado naquilo que ele chama de “compreensão prévia” (BULTMANN, 2001, p.
288-92), como vimos. Nesta obra, para Bultmann, a interpretação é resultante da compreensão
da “relação vital” compartilhada, em termos de experiência existencial, entre autor e intérprete
de um mesmo assunto que se exprime em um texto específico (BULTMANN, 2001, p. 293).
Nesse sentido, Bultmann (2001) diz que a exigência de uma atitude interpretativa isenta de
elementos característicos da subjetividade engajada no mundo para se alcançar um
conhecimento objetivo acerca de alguma realidade é absurda e inimaginável.
Ora, como é possível, em Será possível a exegese livre de premissas? (1957), Bultmann
aceitar que, aos exegetas mais aperfeiçoados, é dado poder alcançar a interpretação perfeita,
objetiva e imparcial e desocultar do texto a verdade, mas, n’O problema da Hermenêutica (1950),
este mesmo Bultmann afirmar que a exigência de uma atitude interpretativa isenta de elementos
característicos da subjetividade engajada no mundo para se alcançar um conhecimento objetivo
acerca de alguma realidade é absurda e inimaginável? Teria, sete anos depois de ter escrevido
O problema da Hermenêutica, Bultmann mudado de opinião? Lembremo-nos da resposta de
Bultmann à pergunta Será possível a exegese livre de premissas? Por ele mesmo colocada:
Agora, creio que esteja mais do que clara a profunda contradição, a profunda confusão
na qual ele mesmo se lança. Para refutar Bultmann, não é sequer necessário recorrer a outros
12
pensadores; seus próprios escritos se incumbem do serviço; suas próprias ideias se contrariam.
Tirante o resto de sua obra e a brilhante capacidade especulativa que possuía, Bultmann não
mereceria o status de um dos melhores teólogos do século XX.
Até aqui, já
Agora, mantenhamos a devida cautela, pois os riscos que o exegeta bíblico cristão corre
estão nas duas pontas da tarefa. Se, como vimos, a ausência de fé incapacita todo e qualquer
exegeta da Bíblia de obter dela o mais completo aproveitamento, por outro, o excesso de
confiança pode escamotear armadilhas sorrateiras. Ao considerarmos o ideal de objetividade e
de neutralidade como valores científicos insustentáveis do ponto de vista da
pesquisa/investigação científica (PIRES & OLIVEIRA, 2008), poderemos facilmente nos incorrer
em alguns outros riscos: por exemplo, o de não apreendermos, por conta daquilo que Bachelard
(1996) chama de “obstáculo epistemológico”, o verdadeiro significado/sentido provável tratado
por um texto/realidade/linguagem justamente por acreditarmos que dele já sabemos o suficiente
a ponto de não mais precisarmos aprender. É preciso manter a humildade e deixar o Espírito
Santo nos auxiliar. Afinal, aquilo que pensamos saber, com frequência, nos impede de aprender
o que ainda não sabemos perfeitamente (Claude Bernard). O “conhecimento real é a luz que
sempre projeta algumas sombras” (BACHELARD, 1996, p. 17). Isto significa dizer que “diante do
real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber” (BACHELARD, 1996,
p. 18). Ao mesmo tempo, Nesse sentido, a atitude epistemológica exige um procedimento de
desconstrução do “eu cogito” diante daquilo que aparentemente se julga conhecer
suficientemente. Esta é a tese fundamental que aparece no epicentro da crítica de Bachelard, e,
aqui, pagamos nosso tributo a ele. Neste sentido, a proposta bachelardiana se aproxima
relativamente da atitude cartesiana frente ao ontologicamente determinado, freqüentemente
assumido como um axioma ou como uma verdade absoluta. A dúvida metódica
(instrumentalizada pelo “cogito ergo sum”) sugere uma reorganização psicopedagógica do
conhecimento sensível do sujeito epistêmico (agora portador de uma razão
inquiridora/instrumental) diante de tudo aquilo que é aceito com relativa ingenuidade racional
para obter a clareza mediante o uso do cogito. Ressalve-se somente que, esta dúvida metódica
deve servir apenas como instrumento epistemológico, e não como regra de vida, como aconteceu
com Renè Descartes, ou seja, a fé na Palavra de Deus não precisa ser descartada quando se
estiver usando a técnica do cogito ergo sum como instrumento metodológico.
Num primeiro momento, a fé, na perspectiva cartesiana, é fé no cogito orientado por uma
lógica matemática que torna possível a certeza com relação ao objeto referenciado pela razão
intuitiva. De acordo com Bachelard, a “opinião” está sempre equivocada. Pois pensa mal à
medida que traduz necessidades em conhecimento. Por esta razão, não se pode basear nada
sobre ela (BACHELARD, 1996). E, aqui, novamente uma crítica a Bultmann. Se Bachelard estiver
certo quando diz que toda opinião erra porque traduz necessidades de momento, então, como
já vimos, Bultmann jamais poderá fazer uma exegese livre de premissas, pois, no momento em
que a estiver fazendo, haverá, pelo menos, uma necessidade de momento: a de fazer uma
exegese sem premissas; e, como dissemos, de alguma forma, o caráter peremptório desta
necessidade “oprime” o exegeta coagindo-o ou pressionando-o a lastrar-se somente nisto,
renegando totalmente a possibilidade de existir um texto que necessite de uma hermenêutica
tipicamente espiritual. O espírito científico é muito mais esclarecível, do que esclarecedor; possui
um instinto “formativo”, e não “conservativo” (BACHELARD, 1996, p. 19). É como peças de um
quebra-cabeças ao modo de recortes de realidade; realidade esta que permanece sempre
fragmentada. Assim também, há textos bíblicos que, se submetidos forem ao estudo desta ou
daquela ciência, terão sua mensagem apresentada apenas em recortes limitados (como as
peças do quebra-cabeças), porém, jamais, esta mensagem será plenamente
decodificada/interpretada sem o auxílio do Espírito Santo.
Para Bachelard, todo conhecimento é fruto de uma resposta dada a uma pergunta feita,
ou como sugere Unamuno (1996), como resposta à necessidade de sobrevivência do instinto de
perpetuação no qual a pergunta feita emerge como problema. O obstáculo epistemológico se
esconde no conhecimento não questionado. Infelizmente, porém, Bachelard admite que quando
o espírito humano se apresenta à cultura científica, ele já não é tão jovem. Pois traz consigo toda
a bagagem recebida ao longo de sua experiência da vivência cotidiana. Neste sentido, a idade
de um espírito que se apresenta à cultura científica é a idade de seus preconceitos. (Grifo
nosso) Ora, de acordo com Bachelard, as crises de crescimento do pensamento implicam uma
reorganização total do sistema de saber, segundo o qual, toda cabeça bem feita deve
necessariamente ser refeita (BACHELARD, 1996). Esta postura caracteriza a verdadeira
condição do espírito humano frente ao totalmente inusitado, configurada naquilo que Boff (1998)
chama de “humildade intelectual” num sentido geral, e “humildade teológica” no sentido
estritamente acadêmico para a realidade de teólogos e teólogas. Santo Agostinho (apud BOFF,
1998), considerado como um dos maiores pensadores do Ocidente cristão (assim como Barth),
não se envergonha de rever criticamente seus 232 livros em suas Retractationes. Mas para o
educador, de acordo com Bachelard, este senso de humildade pode se encontrar praticamente
invalidado, razão pela qual ele (o educador) dificilmente terá um senso de fracasso. O educador
se vê invariavelmente como mestre, e não como aprendiz; como sujeito epistêmico maduro,e
não como uma espécie de mutante intelectual como é exigido pela cultura científica
15
(BACHELARD, 1996). No entanto, o espírito científico é um eterno itinerante, haja vista que
o discurso científico será sempre um discurso de circunstância. (Grifo nosso) Num outro
trabalho, Bachelard (1994) diz que todo pensamento científico deve mudar perante uma
experiência nova. Esta flexibilidade psico-interpretativa do sujeito epistêmico só é possível
porque a jovialidade, caracterizada pela abertura do espírito científico, não é superada pela
letargia anestésica da maturidade improdutiva de sujeitos epistemologicamente envelhecidos.
Bachelard (1996) chega fazer menção à fala de um epistemólogo irreverente que dizia serem
úteis à ciência somente homens e mulheres na primeira metade de suas vidas, pois na outra,
seriam extremamente nocivos (BACHELARD, 1996).
Dessarte, com Bachelard, podemos afirmar que os hagiógrafos bíblicos tinham sim um
discurso de circunstância, dado que, enquanto sujeitos históricos, estavam circunscritos numa
dada dinâmica de tempo e cultura, obedecendo ao Zeitgeist ora palestino, ora romano, ora grego,
ora cristão, ora dois ou mais destes simultaneamente. Mas a produção textual destes mesmos
escritores não se limita àquilo que tem procedência somente para a época de escritura dos
textos. E, nisto, se engana Rudolf Bultmann quando afirma que não merecem confiança os textos
de João e Mateus porque expõe tão-só a cosmovisão afetada e limitada destes mesmos autores.
Segundo a Sacra Teologia, porém, os textos escriturísticos possuem o que podemos chamar de
metassignificado espiritual, isto é, as mensagens veiculadas nestes textos dirigiam-se a um dado
público alvo epocal, mas também à posteridade, ou seja, ao fim e ao cabo, aos futuros leitores
cristãos (nós).
conhecimento habitual (BACHELARD, 1994). Há, portanto, uma irrefutável relação entre método
e verdade que pode não só determinar o curso do empreendimento epistemológico, como
também os resultados a serem obtidos pelo mesmo. Por conta disto, Bachelard acaba
condenado o método cartesiano de ser redutivo, e não indutivo. Pois este não só falsea o
resultado da análise, como também entrava o desenvolvimento extensivo do pensamento
objetivo (BACHELARD, 1994). De acordo com Bachelard (1994, p. 97), a “perenidade” de
métodos, infelizmente (por melhores que sejam), torna o pensamento científico absolutamente
infecundo e a nova verdade inalcançável, além do que eles acabam inviabilizando a
macrocompreensão desta última. Numa de suas citações aparece a seguinte asserção: “uma
verdade demonstrada mantém-se constantemente apoiada não na sua própria evidência, mas
em sua demonstração” (BACHELARD, 1994, p. 97).
A questão que se levanta neste instante é que o que para Bultmann se constitui fato
hermenêutico significativo de irrefutável valor cognitivo-epistemológico (a pré-compreensão),
para Bachelard constitui preconceito/obstáculo que inviabiliza a perfeita compreensão da coisa
a ser conhecida.21 O autêntico espírito científico se revela na atitude de desconstrução não
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Este é um conceito de uso sistemático na teoria hermenêutica de Schleiermacher que significa identificação
compreensiva entre um interpretante e a (intenção) do interpretado.
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Porém, como vimos, Bultmann é contraditório, pois, em algumas de suas pesagens (já estudadas por nós aqui),
Bultmann parece concordar com Bachelard quanto à dificuldade imposta pela parcialidade do escritos ao seu texto.
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Sobre esta discussão, Croatto (1984) propõe o conceito de eisegese como conceito mais apropriado para se falar
de processo hermenêutico.
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