Crítica A Será Possivel A Exegese Livre de Premissas - 3 - para Mesclagem

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1

Crer para compreender

O grande teólogo do século XX, Rudolf Karl Bultmann, na sua famosa obra “Crer e

compreender”, examina se é possível a exegese livre de premissas. Abaixo, segue

minha crítica ao ensaio “Será possível a exegese livre de premissas?”.1

Alan Francisco de Souza Lemos2

O texto é de 1957, mas é daqueles que costumam vencer o tempo. Escrito por Rudolf
Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão. Ao lê-lo, deparei-me com questões acerca dos
estudos de um texto – talvez por estar a vida toda lidando com textos, especialmente nesta última
década, quando laureei-me em Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Embora a
intenção do autor seja tratar dos aspectos exegéticos bíblicos, isso não impede a possibilidade
de pensarmos nossa forma de lidar com textos diversos. É importante frisar que, embora tenha
sido escrito em poucas páginas, os elementos abordados por Bultmann, no artigo que irei usar
para reflexão, são amplos e, para o tema em questão, focarei em alguns aspectos pontuais.

Qual é a distância compreensiva entre um sujeito interpretante e uma realidade


interpretada? A verdade, enquanto meta hermenêutico-cognitiva, pode ser considerada uma
possibilidade atingível à atitude compreensiva de um sujeito interpretante? O título da obra é
Será possível a exegese livre de premissas?3, o que nos remete a questões relevantes para
qualquer estudioso que tem como objeto textos em geral. O que pretendo refletir, nos parágrafos
a seguir, é sobre as implicações que residem no ato de estudar um texto a fundo.

A primeira resposta do autor à pergunta que propõe como título é: sim e não. Quando
diz sim à pergunta sobre a possibilidade de uma exegese livre de premissas, Bultmann refere-
se à exegese feita “sem pressupor os resultados da exegese”4. A segunda resposta, por sua vez,
segue da explicação de que o exegeta não é neutro. Este, ao analisar o texto, traz “consigo
certas perguntas” e “certa noção do assunto de que trata o texto”5. Acho que, na teoria, é possível
uma exegese estar livre de premissas, mas, na prática, não, pois, até mesmo quando o exegeta

1
Ensaio válido como avaliação pela disciplina de Exegese 2 , sob a orientação do Prof. Dr. Esdras Costa Bentho, na
Faculdade Evangélica da Convenção geral das Assembleias de Deus (FAECAD).
2
Alan Francisco de Souza Lemos é professor de línguas portuguesa e grega e respectivas literaturas e
bacharelando em Teologia.
3
BULTMANN, R. K. Será possível a exegese livre de premissas? In: BULTMANN, Rudolf Karl. Crer e Compreender.
Artigos Selecionados. Editados por Walter Altmann. São Leopoldo RS: Sinodal, 1987, pp. 223-229.
4
Bultmann, p. 223.
5
Bultmann, p. 223.
2

se propõe a ser o mais imparcial possível, ele já tem em mente o objetivo de alcançar tal meta,
e isto, de alguma forma, induze-o a um fim pré-ciente ou estabelecido, ou seja, o não querer ter
premissa alguma ipso facto se torna a premissa mesma. E, quando tratamos do texto mais
interpretado em todo o mundo, a Bíblia, a isto se soma o fato de boa parte dos exegetas ser de
confissão religiosa cristã ou de alguma outra espiritualidade que se valha das Escrituras, e, como
alguém disse certa vez, ninguém é imparcial quando se aproxima da Bíblia. Será?

Em relação aos resultados pré-concebidos no exercício exegético, Bultmann diz: “Toda


exegese dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo, mas fá-lo
dizer o que ela quer ouvir”6. Assim, Bultmann estaria afirmando que o exegeta que não possua
“preconceitos dogmáticos” é o único capaz de fazer a mais isenta exegese. Aqui, volto a reiterar
que até mesmo o exegeta que não se valha de premissas dogmáticas, ao fim e ao cabo, também
não se abstém de alguma premissa, mesmo que esta não seja dogmática; como já disse, em
última análise, por mais profissional e imparcial que seja o exegeta, sempre terá sua premissa,
mesmo que ela seja o próprio objetivo de fazer uma exegese sem premissa. Afinal, com o físico
Werner Heisemberg, lembramos que “a observação do observador afeta o observado”.

Como um adendo à temática, penso que, nesse aspecto, o ambiente acadêmico ainda
seja pouco compreendido. É constantemente acusado de ser rígido e fechado em suas
metodologias. Mas, a liberdade em criar sua própria capacidade especulativa e novas
concepções não cabe à Academia. Esta leva consigo a manutenção do que a humanidade nos
legou e força os alunos (ou deveria ser assim) a compreender as ideias que nos chegaram com
máximo rigor. Quando as ideias forem da melhor maneira possível compreendidas, mesmo que
os resultados sejam contrários às crenças que o intérprete carrega consigo, então, este poderá
reformular suas ideias, criar novas ou enfatizar suas concepções criticando o autor cuja leitura
foi bem compreendida. Mas, jamais, teremos uma exegese totalmente imparcial e livre de
premissas.

Se, por um lado, para Bultmann, é necessário abrir mão dos resultados que se espera ao
ler um texto – para se chegar à exegese sem premissas -, por outro, é necessário lembrar que
há certas determinações histórico-subjetivas fundamentais na hora de interpretar determinado
texto. O leitor “está determinado por sua individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos
específicos, por seus dons e seus pontos fracos”7. Isto aliado a toda história que o precedeu e
determinou seu modo de ler o “mundo”. A este respeito escreveu o poeta Fernando Pessoa: “(...)
o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas
não o texto." Para o poeta, o texto não continua, isto é, a mensagem originalmente escrita perde,

6
Bultmann, p. 224.
7
Bultmann, p. 224.
3

necessária e indelevelmente, o todo de sua compreensão, e isto porque mudam os parâmetros


do tempo e da história. Para Bultmann, no caso da Bíblia, cada época a lerá segundo o momento
histórico em que vive. E, aqui, talvez esteja a maior fragilidade da afirmação de Bultmann de que
é possível, ao exegeta livre de amarras dogmáticas, alcançar a exegese pura, sem mesclas,
tendências ou premissas: se, como acabo de mostrar, para Bultmann, o leitor da Bíblia sempre
terá sua leitura ressignificada pelo momento histórico pelo qual passa, por acaso isto também
não se aplicaria a ele próprio, Bultmann? É claro que sim! E, se mesmo ele teve a sua leitura
bíblica afetada pelo momento histórico em que viveu, isto não seria a prova mais cabal de que o
próprio Bultmann também não conseguiu atingir a sonhada exegese perfeita? Aqui, Bultmann
infringe a coerência e a lógica.8 E, se nem os mais nobres exegetas podem alcançar a
interpretação imparcial, quem poderia? Afinal de contas, como conhecer o todo da compreensão
de um texto, se não há ninguém que possa interpretá-lo sem que, para isto, precise
necessariamente se valer – ao modo kantiano – das categorias mentais? Para os cristãos, no
que tange ao texto bíblico, só há um único Ser que possa atingir a exegese perfeita: o Espírito
Santo! Para eles, de modo geral, aquilo que a razão humana não alcança é esclarecido justa e
integralmente pela Divina Revelação e pela Divina Inspiração.

"Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que cada releitura de um
livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto”, afirmou Jorge Luis Boges. E, contra
toda objeção de que os textos deveriam ter uma interpretação definitiva, o autor defende que a
história não é vista objetivamente, haja vista que somos parte dela e estamos nela. Portanto, um
olhar afastado, objetivo e definitivo destoa do comprometimento com o movimento próprio da
própria história. Nisto, acerta Bultmann. Ele só erra ao considerar possível o sim à pergunta
inicial: será possível a exegese livre de premissas?

No início do seu artigo, Bultmann afirma que Filão, Paulo e o autor da Epístola de Barnabé
não “ouviram” os textos usados como fonte para suas afirmações, pois teriam eles feito o texto
dizer aquilo que eles já sabiam de antemão. A esta metodologia, Bultmann chama alegoria e
afirma que ela deve ser irrevogavelmente evitada. Percebo, não somente neste posicionamento
bultmanniano, mas também em outros de sua vasta obra, que este teólogo não crê na Divina
Inspiração, na Divina Revelação e, nem tampouco, na Divina Iluminação, pois afirmar que Paulo
acresceu a Dt 25:4 algo que não estava no texto em 1Co 9:9 é afirmar que o texto de Dt 25:4 é
um texto como outro qualquer, sem inspiração; isto, a luz da teologia cristã, é um patente
absurdo, pois sabe-se que o texto bíblico não é um texto qualquer e que guarda, em suas

8
Aqui, Bultmann comete o que Olavo de Carvalho chamaria de paralaxe cognitiva, que consiste no fato de o
proponente de uma tese não conseguir sustentá-la em seus próprios modus vivendi e modus agendi. No caso de
Bultmann, ele afirma que os exegetas imparciais podem fazer uma exegese imparcial, mas, ao mesmo tempo, ele,
que é exegeta, bem como os demais exegetas, estão todos limitados pelas características subjetivas da
personalidade e pelo contexto temporal e cultural de sua época.
4

camadas misteriosas, significados variados, como o próprio Jesus Cristo nos ensina quando cita
tantos e tantos textos veterotestamentáreos que, aparentemente, não traziam nenhuma
revelação sobre sua vinda. Certamente aqui temos assoalhado a dificuldade hermenêutico-
epistemológica constitutiva do pensamento ocidental moderno: o que está para além do
experimental não pode ser dito, nem pensado e nem tampouco questionado (R. Carnap).
Simplesmente porque esta realidade não possui uma existência empiricamente demonstrável. É
possível dizer, desta forma, que a realidade (ontologia) parece estar umbilicalmente ligada à
capacidade cognitiva de compreensão/percepção (hermenêutica) de um sujeito epistêmico. E é
justamente este o calcanhar de Aquiles da ciência moderna e modernosa. É conditio sine qua
non provar demonstravelmente; portanto, usando as palavras de Immanuel Kant, na Kritik der
reinen Vernunft, é preciso “reduzir o espaço da fé e aumentar o da razão”. E Rudolf Bultmann é
depositário fiel desta filosofia. Apesar de certo quanto à Hermenêutica, aqui, agora, Bultmann
também infringe a teologia cristã. Mais a frente, mais uma vez o faz quando acusa os intérpretes
dos evangelhos – como eu e você – de serem preconceituosos por acreditarem que a
transmissão dos relatos de João e Mateus são historicamente fiéis devido ao fato de estes terem
sido discípulos de Jesus. Ora só diz algo assim quem patentemente não crê na Divina Inspiração
das Escrituras, dogma comum a todas as denominações cristãs. Daí que, ao fim e ao cabo,
Bultmann não pode ser cristão, ao menos não na acepção mais profunda do termo. E, se
considerarmos, com os cristãos, que só há um único Deus – e que este Deus é Pai, Espírito,
mas também Jesus -, podemos, a posteriori e ipso facto afirmar que Bultmann é necessariamente
ateu (conforme nos recorda o Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr.). Se, na Bíblia, há choque de
informações (como no caso citado pelo teólogo alemão em que não se saberia ao certo em que
momento do ministério de Jesus deu-se a purificação do Templo), é porque tal livro não é um
artigo científico, que busca a exatidão o tempo todo, mas, acima de tudo, um livro de fé, e que,
portanto, exige, de todo e qualquer bom exegeta, a fé como primeiro e maior pré-requisito. E isto
parece faltar a Bultmann.

É por isto, e como consequência inevitável de sua falta de fé, que Bultmann é levado a
suspeitar se Jesus sabia, enquanto esteva aqui na Terra, que era o Messias (consciência
messiânica de Jesus).

“Será que a exegese dos evangelhos pode ser dirigida pela pressuposição
dogmática de que Jesus era o Messias e tinha consciência de o ser? Ou não
precisa ela, antes, deixar esta questão em aberto? A resposta deveria estar
clara. A eventual consciência messiânica seria um fato histórico que, nesta
qualidade, somente pode ser demonstrado pela pesquisa histórica. Caso esta
pudesse tornar provável que Jesus sabia ser o Messias, tal resultado teria
certeza apenas relativa; isto porque a pesquisa histórica jamais pode conduzir a
resultados de validade absoluta. Todo conhecimento histórico está em
5

discussão; a questão se Jesus tinha ciência de ser o Messias, portanto,


permanece aberta dentro da exegese.”

Deus, pela sua própria natureza, de acordo com Wolfhart Pannenberg9, não é um objeto
do qual podemos dispor analiticamente do ponto de vista da abordagem científico-
fenomenológica. E a Bíblia, como portadora da Palavra de Deus, também possui tais limites.

O problema de Bultmann é que ele procura demonstrar que a Bíblia possui erros lógicos,
mas esquece que este livro, não raro, é ilógico porque de fé. Então é truisticamente óbvio que
ele achará vários erros lógicos! E não somente ele, mas eu e você também! A questão não é
essa, mas estas dificuldades sempre existirão para aqueles que não têm fé.

Para Bultmann – e demais pensadores modernosos -, é a capacidade perceptivo-


compreensiva acerca de uma dada realidade que deverá ser entificada, enquanto a linguagem
deverá ser compreendida, expressis verbis, como modus probandi, isto é, como método/modo
de ‘demonstrabilidade interpretativa’, sem a pretensão de assumir, com isso, nenhum tipo de
vocação epistemológica que seja totalizadora da verdade. Haja vista que esta última, como nos
sugere Bachelard, está relacionada à dinamicidade metodológica que se dá entre um sujeito
epistêmico e um objeto cognoscível e, por isso mesmo, é um fenômeno aberto e construível, e
não pronto e, dogmaticamente, inalterável. Ocorre, porém, que Bachelard e Bultmann estão,
neste ponto, totalmente errados! A linguagem não pode sustentar-se na imparcialidade fria e no
rigorismo acadêmico. Não há imparcialidade humana! Pois, para que houvesse, seria mister nós
não termos sentidos. O caleidoscópio imenso de informações que nos penetram pelos sentidos
marcam irrefragável e indelevelmente nosso modus agendi, nosso modus operandi, nosso
modus faciendi e nosso modus vivendi! Portanto não há como ser imparcial diante de uma
exegese.

Para exemplificar, imaginemos que dois estudantes de Teologia recebem a proposta de


elaborar a exegese de um texto bíblico. O primeiro, antes de entrar no curso, nunca havia
sentado na cadeira de uma faculdade. O segundo já é formado em Direito e é pós-graduado
também. O primeiro nasceu e cresceu em uma comunidade carente e enfrentou toda sorte de
dificuldades para aprender, além de não contar com um ensino de qualidade em sua formação.
O segundo nasceu e cresceu em uma família de classe média alta, não teve tantas dificuldades
assim e estudou em boas escolas. O primeiro, por uma série de motivos que não convém
detalhar, assiste a programas de televisão populescos, não tem o hábito da leitura e convive com
pessoas simples e incautas. O segundo assiste a programas culturalmente edificantes, tem o
hábito da leitura e convive no meio de pessoas bem formadas. O primeiro não entendeu bem a

9
PANNENBERG, W. Teoria de la ciencia y teologia. Madrid: Livros Europa, 1981.
6

proposta do trabalho. O segundo já coligiu os materiais para começar a fazê-lo. Pergunto: por
acaso estas exegeses serão imparciais? Os estudantes, por ocasião do labor exegético, não
sofrerão a interferência de tais fatores? Ora, é sabido que a idade, a formação, a educação, o
contexto epocal e cultural e a religião e/ou a fé de uma pessoa – entre outras coisas – não apenas
pode como, de fato, afeta a sua hermenêutica particular, pois tais variáveis compõem sua
cosmovisão. Destarte, e não obstante, Bultmann parece negligenciar isto quando afirma que: a)
é possível (mesmo que somente aos exegetas “livres” de preconceitos) uma exegese sem
premissas e b) a linguagem como modus probandi. A linguagem não é somente um modo de
provar ou de demonstrar, mas também um modo de expressar nossos pensamentos, inclinações
e preconceitos. Não é possível viver sem preconceitos. É natural à estrutura psíquica a formação
de conceitos preconcebidos. Eles nos ajudam a prever e evitar erros e a nos relacionar com o
mundo.

Já Bachelard está mais errado ainda quando afirma que a verdade é um fenômeno
construível. Pois, se a verdade é um fenômeno, ela está dentro da realidade, isto é, é real. Ora,
aquilo que é real independe da minha vontade; independe do poder de construção humano. Se
uma porta estiver fechada e alguém quiser passar por ela alegando que, ao contrário, ela está
aberta, a mesma porta não passará de fechada à aberta só por que tal indivíduo quis ou desejou.
Não há como “construir” uma realidade em que uma porta fechada esteja aberta
simultaneamente. Isto é ridículo!

Outro problema de Bultmann, é que ele divide o conceito de premissa em dois tipos: as
premissas enquanto preconceitos de base religiosa e premissas outras, quaisquer. Todavia,
como vimos, na prática, não há diferença eficaz, pois tanto uma como a outra tem o poder de
persuadir e induzir o hermeneuta a tomar este ou aquele caminho exegético. Contra si mesmo,
Bultamnn acerta quando afirma que “determinado enfoque sempre constitui premissa”, pois, se
todo e qualquer enfoque pressupõe uma ou mais premissas, ele, no ato da exegese, está
limitando, focando determinado texto sob as limitações de seu intelecto, seu conhecimento, sua
visão ou intenção. Aqui, com o filósofo Olavo de Carvalho, temos que dizer que estamos diante
de uma paralaxe cognitiva.

Diversos são os aspectos que devem ser levados em conta no exercício hermenêutico
de um texto. Sobre a compreensão histórica, o autor diz:

“A compreensão da história como contextura de efeitos pressupõe a


compreensão das forças atuantes a concatenarem os fenômenos individuais.
Essas forças são as necessidades econômicas, os problemas sociais, a ambição
de poder na política, paixões, ideias e ideais humanos. Os historiadores diferem
no peso que dão a esses fatores, e apesar de todo o empenho em chegar a uma
7

visão uniforme, no caso de cada historiador individual sempre preponderará


determinado enfoque, determinada perspectiva”.10 – grifo nosso

Esta estrofe de Bultmann é suficiente para condená-lo ao modo de paradoxo, já que


contraria sua postura adotada no texto de que é possível um exegeta ser livre de premissas.
Bultmann é enfático quando defende que o enfoque do historiador (englobo nessa reflexão o
filósofo, o teólogo, o cientista, o sociólogo, o psicólogo, etc.) é sempre unilateral. Isso não é um
desmerecimento do olhar humano, mas a constatação da limitação humana frente a seu “objeto”
de estudo. Podemos, nesse ponto, acrescentar a concepção nietzscheana na qual diversos
pontos de vista enriquecem a compreensão do ente. Diante disso, Bultmann não desmerece o
acúmulo de conhecimento para as gerações futuras, mas enfatiza a possibilidade de sempre
retomar o que nos foi legado por meio de olhar crítico. Todavia, Bultmann abstém o exegeta-
livre-de-dogmas das posturas a priori que atribui aos outros, ou seja, em minhas palavras,
segundo Bultmann, há uma classe de seres humanos, chamada de exegetas-sem-rabo-preso-
com-dogmas, que não deixam, miraculosamente, suas ideias ou categorias a priori interferirem
na sua produção textual acadêmica (exegese). Bultmann parece supor que somente tal exegeta
(como ele) pode alcançar a máxima imparcialidade na análise e, com isso, desocultar a
verdade.11 A mesma verdade que é ocultada ou mascarada pela análise preconceituosa dos
leitores, hermeneutas ou exegetas “inescrupulosamente” religiosos demais. A verdade não pode
ser reduzida às categorias racionais da cientificidade moderna – que exigem a verificação e o
controle em termos de demonstração e repetição como critério de normatização do fenômeno
compreendido e interpretado cientificamente pelo sujeito epistêmico – justamente porque não
podemos desconectá-la (a verdade) da dimensão geo-histórica que tanto a determina como
possibilita sua melhor compreensão (isso de alguma forma já inviabiliza a crença no dogma
“científico” do universalismo dedutivista, tanto do positivismo quanto do cientismo). A
pretensão de que a ciência, com seus respectivos métodos apropriados, pode atingir a realidade
como um todo e ser considerada como o “único lugar da verdade” (LAMBERT, 2002, p. 28) já se
constitui um pseudodiscurso frente às atitudes epistemológicas mais sóbrias nos dias de hoje.
Toda e qualquer ciência apenas apresenta um recorte da realidade, ao contrário da Teologia e
de sua ancilla principal, a Filosofia.

Neste sentido, a teologia satisfaz, sim, como notifica Pannenberg (1981), o postulado da
coerência, pois suas proposições têm, outrossim, o caráter cognitivo (pois estas mantêm uma

10
Bultmann, p. 225.
11
A verdade, como realidade psico-cognitivamente alvejada de primeira grandeza, é a mais nobre tarefa
empreendida pela “atitude interpretativa” (Mesters). O termo grego alethéia, como foi exposto magistralmente por
M. Heidegger em sua hermenêutica fenomenológica, significa ‘desocultação’ ou desvelamento. Isto implica dizer
que ela (a verdade) precisa ser arrebatada do lugar em que se encontra ocultada através do discurso/linguagem
(lógos). Rudolf Karl Bultmann foi discípulo de Martin Heidegger.
8

relação de identificação com a história/realidade concreta) que torna seus artigos constitutivos
inteligíveis do ponto de vista da racionalidade epistemológica, haja vista que nela também existe
tanto o “objeto material” quanto o “sujeito epistêmico” (BOFF, 1998, p. 41-2). Ora, com base
nesse último pressuposto, não há como olvidar que a verdade, enquando doxa, é uma
condição/intenção que pode caracterizar preferencialmente a atitude interpretativa de todo
sujeito cognoscente, que deseja, outrossim, transformar sua suspeita intuitiva em certeza
epistemológica. Este procedimento marca a intencionalidade do cogito cartesiano frente a
quaisquer fenômenos ontológicos existentes e fundamentados por uma crença apriorística de
orientação tendenciosamente religioso-metafísica.12 Nesse sentido, esta postura hermenêutica
também passa a ser caracterizada pela cientificidade metódica que pretende transcender os
limites imaginários do conhecimento sensível (popularmente reconhecidos e articulados no
senso comum), convertendo-o em certeza epistemológica para o sujeito compreensivo
interpretante, mas, com isto, desperdiçando a parte metafísica da verdade/realidade. A verdade,
enquanto valor motivacional e meta alvejada do empreendimento cognitivo, deve ser identificada
no testemunho revelacional da experiência histórica; geografia epistemológica esta que demarca
o seu grau de autenticidade, bem como sua legitimidade e validação cognitivas. Porém, também,
ela deve ser identificada no testemunho revelacional da epifania da Palavra de Deus. Na teologia,
enquanto ciência da fé [atribuição que Heidegger outorga a ela] (HEIDEGGER, 1991), ela jamais
pode deixar de ser sua meta primeira e final, se consideramos como os pais da Igreja (sobretudo
Justino13) de que a verdade só é referencial da fé (ou do sujeito pístico)14 porque ela, antes de
tudo, lhe é constitutiva. Assim, ao fim e ao cabo, veremos que, se a verdade constitui a fé, só
pode haver, de fato, uma fé correta (sob pena existirem várias verdades contraditórias, que, em
última análise, acabariam sendo todas elas mentiras).

Assim sendo, o que deve haver de comum, em termos de atitude hermenêutica de todo
sujeito interpretante (sobretudo naquele que transita no e pelo reino da epistemologia bíblica), é
exatamente a honestidade intelectual, orientada para o desvelamento da verdade última
existente enquanto objetivo epistêmico do empreendimento cognitivo, e a fé, ao modo
anselmiano, necessária para a intelecção daquilo que não se capta apenas com a exegese
metódica racional (aquela mesma camada de mistério de que já falei). Assim, discordo de Pires
& Oliveira (2008) quando afirmam:

Neste sentido, a natureza heurística de todo esforço cognitivo numa atitude


interpretativa serena jamais poderá direcionar, para determinados interesses
secundários não especificados aprioristicamente (ideológicos), os significados

12
Esta é a sintomática conclusão a que se chega da proposta metodológica da filosofia cartesiana do cogito ergo
sum. Para melhor esclarecimento, cf. Descartes (1992).
13
Cf. o primeiro capítulo de Tillich (1980).
14
Conceito utilizado na teoria da epistemologia teológica que significa “sujeito portador da fé” (GEFFRÉ,2004).
9

possíveis (e os não possíveis) de uma verdade encontrada em um determinado


texto/discurso/realidade. – grifo nosso

Não é preciso expor, novamente, por que discordo destes autores. Eles adotam o mesmo
posicionamento de Bultmann: aceitam como real e eficaz a possibilidade de uma exegese sem
premissas. Ao modo da compreensão prévia de Bultmann, estes autores vão falar de
readequação compreensiva, indo, até, mais longe que Bultamnn quando afirmam que nem
mesmo isto pode adulterar a objetividade do resultado interpretativo.

Esta compreensão nos permite alcançar maior grau de objetividade na


percepção/apreensão de uma realidade/verdade pesquisada mesmo
considerando que, na própria tarefa hermenêutica, já exista uma “readequação
compreensiva” que é apreendida e comunicada por um interpretante, o que não
implicaria, inevitavelmente, num tipo modal de pseudo-objetividade. – grifo
nosso

Acredito, sim, que a exegese bíblica, quando feita com parcimônia, temperança e
honestidade intelectual, é capaz de alcançar um “maior grau de objetividade”, mas – repito – ao
modo anselmiano, isto é, sobre sua fórmula fides quaerens intellectum.

Em poucas palavras, a verdade possui uma face de objetividade (razão, ciência) e outra
de subjetividade (fé, metafísica). Isto, porém, não significa dizer que a mesma (a verdade) seja
necessariamente aprisionada e determinantemente condicionada pela ótica de seu sujeito que a
percebe para não redundarmos, assim, na sentença existencialista de orientação
kierkegaardiana quando esta afirma que a verdade é essencialmente subjetividade. O correto é
evitar estes extremos: nem apenas objetividade (Bultmann, Bachelard, Pires & Oliveira), nem
apenas subjetividade (Kierkegaard), mas a média ponderada (Santo Anselmo, Karl Barth).
Assim, tenho que discordar parcialmente de Pires & Oliveira quando afirmam:

Se a verdade, enquanto fenômeno factível de uma percepção/apreensão


hermenêutica, torna-se inalcançável e ininteligível sem a necessária utilização
dos ‘óculos’ fabricados (ideológicos) por um topos epistêmico/subjetivo, então
jamais poderemos considerar que ela (verdade) seja vicejada no horizonte
cognitivo-hermenêutico da fenomenologia da compreensão (muito embora se
fala que esta está preocupada não com a verdade em si, mas com o sentido que
a ela damos na Dasein), o que poderia ser compreendido, grosso modo, como
um obstáculo epistemológico primário para as ciências interpretativas em geral,
na qual se inclui aqui a teologia como ciência hermenêutica.

Discordo, mais uma vez porque Pires & Oliveira, assim como Bultmann, Bachelard, Kant,
Heidegger e tantos outros modernos e pós-modernos esquecem-se da presença econômica de
10

Deus na história; esquecem-se da Divina Iluminação do Espírito Santo. Esta verdade, contudo,
não pode se ocultar sob o medo e a falta de fé dos teólogos “cristãos”. Obviamente, concordaria
com os autores se a Teologia não fosse uma ciência natural e sobrenatural, isto é, que tem como
objeto de estudo o físico e o metafísico.

Bultmann, no entanto, acerta quando fala da importância do conhecimento da língua


original para se fazer uma boa exegese. Quanto a isto, juntamente com Haroldo de Campos,
costumo dizer que “A tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica. Logo, a tradução dos
textos bíblicos têm a sua importância, mesmo nas línguas que já possuam uma ou mais versões
deles”.

Até agora, temos algumas coisas que devam ser levadas em conta. A abertura ao novo
que se toma ao lançar mão de fazer a exegese. O fato de não sermos puros historicamente em
relação ao que nos propomos estudar. Quanto a este ponto, não somente entra o histórico no
geral, ou uma espécie de consciência coletiva, mas o sujeito mesmo. Acerca disso, Bultmann diz
que a “compreensão histórica sempre pressupõe uma relação do intérprete com o objeto que se
manifesta direta ou indiretamente nos textos”15. Essa relação do intérprete está na sua relação
vivencial com o objeto e é nesse aspecto que não há possibilidade de isenção de premissas na
exegese. “Esta compreensão” diz Bultmann “é que chamo de compreensão prévia”.16

Há, desse modo, uma relação existencial com a história da qual o intérprete faz parte.
A partir dessa relação, é impossível pensar numa estrutura sujeito-objeto no qual houvesse um
olhar isento para o objeto, haja vista que temos previamente concepções que influenciarão
relevantemente a interpretação. Diante da compreensão prévia, de sermos sujeitos históricos e
carregarmos a mutabilidade dada a partir de nossa condição, Bultmann conclui que a “intuição
histórica nunca é definitiva e concluída”17.

Para Bultmann, o “evento histórico faz parte do seu futuro”18, ou seja, somente quando
o evento acontece é que ele começa a ser compreendido, e quanto mais distância o intérprete
toma do evento, maior é a compreensão de seu sentido. A esse respeito, mais a frente, Bultmann
diz que “A compreensão de um texto nunca é definitiva, mas permanece aberta, porque em cada
futuro o sentido da Escritura se manifesta de nova maneira”19. Porém, na compreensão de um
texto, há informações que podem permanecer inalteradas, pelo menos em seu cerne, como foi

15
Bultmann, p. 226.
16
Bultmann, p. 226.
17
Bultmann, p. 227.
18
Bultmann, p. 227.
19
Bultmann, p. 228.
11

e ainda é o caso da ressurreição de Cristo para os cristãos, que permanece a mesma mensagem,
inalterada em seu maior significado, e à qual pouco se pode acrescentar.

Por fim, é preciso atentar para uma coisa. O mais duro golpe dado na tese bultmanniana
de que é possível uma exegese sem premissas é desferido pelo próprio Bultmann!
Paradoxalmente, como já disse, Bultmann, neste artigo o qual criticamos (Será possível a
exegese livre de premissas?), admite ser e não ser possível uma exegese perfeita, sem mesclas
ou inserções de subjetividades do hermeneuta; isto dependerá do próprio exegeta, se ele for
preconceituoso ou não, tendencioso ou não, preso a sua religião ou não. Mas, enfim, o fato é
que Bultmann, neste ensaio, admite ser possível, ao exegeta com “E” maiúsculo, alcançar a total
imparcialidade. E é, aqui, que, talvez, é revelada a maior contradição deste autor, porque, em
outro artigo, escrito em 1950 – O problema da Hermenêutica -, Rudolf Bultmann, influenciado
pela hermenêutica fenomenológica de Heidegger, escreve dizendo que uma interpretação nunca
está isenta de uma premissa. Esta está sempre orientada por um enfoque ou por um certo rumo
configurado/estruturado naquilo que ele chama de “compreensão prévia” (BULTMANN, 2001, p.
288-92), como vimos. Nesta obra, para Bultmann, a interpretação é resultante da compreensão
da “relação vital” compartilhada, em termos de experiência existencial, entre autor e intérprete
de um mesmo assunto que se exprime em um texto específico (BULTMANN, 2001, p. 293).
Nesse sentido, Bultmann (2001) diz que a exigência de uma atitude interpretativa isenta de
elementos característicos da subjetividade engajada no mundo para se alcançar um
conhecimento objetivo acerca de alguma realidade é absurda e inimaginável.

Ora, como é possível, em Será possível a exegese livre de premissas? (1957), Bultmann
aceitar que, aos exegetas mais aperfeiçoados, é dado poder alcançar a interpretação perfeita,
objetiva e imparcial e desocultar do texto a verdade, mas, n’O problema da Hermenêutica (1950),
este mesmo Bultmann afirmar que a exigência de uma atitude interpretativa isenta de elementos
característicos da subjetividade engajada no mundo para se alcançar um conhecimento objetivo
acerca de alguma realidade é absurda e inimaginável? Teria, sete anos depois de ter escrevido
O problema da Hermenêutica, Bultmann mudado de opinião? Lembremo-nos da resposta de
Bultmann à pergunta Será possível a exegese livre de premissas? Por ele mesmo colocada:

“É preciso responder “sim” a esta pergunta se ”livre de premissas” significar: sem


pressupor os resultados da exegese. Neste sentido, a exegese livre de
premissas não é só possível, mas até constitui uma exigência. Em qualquer
outro sentido, todavia, nenhuma exegese está livre de premissas, uma vez que
o exegeta não é nenhuma tabula rasa (...)”

Agora, creio que esteja mais do que clara a profunda contradição, a profunda confusão
na qual ele mesmo se lança. Para refutar Bultmann, não é sequer necessário recorrer a outros
12

pensadores; seus próprios escritos se incumbem do serviço; suas próprias ideias se contrariam.
Tirante o resto de sua obra e a brilhante capacidade especulativa que possuía, Bultmann não
mereceria o status de um dos melhores teólogos do século XX.

Até aqui, já

a) apresentamos o artigo de Bultmann – intitulado Será possível a exegese livre de


premissas?,
b) mostramos que tal autor acerta (quanto ao “não”) quando afirma a parcialidade de
todo e qualquer falante/escritor/ouvinte/leitor de todo e qualquer texto, mas que erra,
quando relega somente aos exegetas não-preconceituosos, a exclusividade de um
trabalho hermenêutico isento de tendências, pois que tais exegetas, para Bultmann,
conseguem evitar que suas cosmovisões e informações acabem penetrando e
interferindo no texto e em sua interpretação,
c) evidenciamos que, desta maneira, Bultmann comete dois erros, um teórico-lógico e
outro teológico. Quanto ao primeiro, Bultmann comete uma paralaxe cognitiva (Olavo
de Carvalho), na qual, ele, Bultmann, afirmando ser possível uma exegese sem
premissas, descura do fato de que o exegeta (como ele), ao alvitrar para si o anseio
de construir uma obra puramente objetiva, acaba impondo tal premissa ao seu labor
exegético, o que, de algum modo, interfere naquela tão desejada imparcialidade.
Quanto ao segundo erro, Bultmann infringe pelo menos três dos principais dogmas
comuns a toda cristandade: a Divina Inspiração das Escrituras, a Dinvina Revelação
de Deus e a Divina Iluminação do Espírito Santo. Tudo isto quando acusa Paulo,
Mateus e João de não relatarem a verdade em seus textos, pois estariam apenas
apresentando um enfoque incompleto e falseado pelas suas subjetividades. Ora, se
assim fosse, não se poderia crer em uma só palavra deles. É claro que, enquanto
sujeitos históricos e narrativos, tais apóstolos tinham suas subjetividades e as
passavam para seus escritos, mas isto não quer dizer que a presença de tais
subjetividades falseiam a verdade. Então, como que ao modus probandi, Bultmann,
citando dois textos aparentemente contraditórios e não harmonizáveis, afirma não
merecem total crédito os evangelhos de Mateus e João. Assim, Bultmann negligencia
a doutrina da Divina Inspiração das Escrituras, colocando a verdade de tais textos sob
suspeita e
d) que, justamente por não haver em conta o papel do Espírito Santo na dinâmica do
labor hermenêutico, Bultmann rejeita a genuína fé cristã, e, assim, rejeita Cristo, e, se
rejeita Cristo, rejeita o único Deus; logo, Bultmann é um ateu, portanto não poderia
sequer fazer teologia.
13

Agora, mantenhamos a devida cautela, pois os riscos que o exegeta bíblico cristão corre
estão nas duas pontas da tarefa. Se, como vimos, a ausência de fé incapacita todo e qualquer
exegeta da Bíblia de obter dela o mais completo aproveitamento, por outro, o excesso de
confiança pode escamotear armadilhas sorrateiras. Ao considerarmos o ideal de objetividade e
de neutralidade como valores científicos insustentáveis do ponto de vista da
pesquisa/investigação científica (PIRES & OLIVEIRA, 2008), poderemos facilmente nos incorrer
em alguns outros riscos: por exemplo, o de não apreendermos, por conta daquilo que Bachelard
(1996) chama de “obstáculo epistemológico”, o verdadeiro significado/sentido provável tratado
por um texto/realidade/linguagem justamente por acreditarmos que dele já sabemos o suficiente
a ponto de não mais precisarmos aprender. É preciso manter a humildade e deixar o Espírito
Santo nos auxiliar. Afinal, aquilo que pensamos saber, com frequência, nos impede de aprender
o que ainda não sabemos perfeitamente (Claude Bernard). O “conhecimento real é a luz que
sempre projeta algumas sombras” (BACHELARD, 1996, p. 17). Isto significa dizer que “diante do
real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber” (BACHELARD, 1996,
p. 18). Ao mesmo tempo, Nesse sentido, a atitude epistemológica exige um procedimento de
desconstrução do “eu cogito” diante daquilo que aparentemente se julga conhecer
suficientemente. Esta é a tese fundamental que aparece no epicentro da crítica de Bachelard, e,
aqui, pagamos nosso tributo a ele. Neste sentido, a proposta bachelardiana se aproxima
relativamente da atitude cartesiana frente ao ontologicamente determinado, freqüentemente
assumido como um axioma ou como uma verdade absoluta. A dúvida metódica
(instrumentalizada pelo “cogito ergo sum”) sugere uma reorganização psicopedagógica do
conhecimento sensível do sujeito epistêmico (agora portador de uma razão
inquiridora/instrumental) diante de tudo aquilo que é aceito com relativa ingenuidade racional
para obter a clareza mediante o uso do cogito. Ressalve-se somente que, esta dúvida metódica
deve servir apenas como instrumento epistemológico, e não como regra de vida, como aconteceu
com Renè Descartes, ou seja, a fé na Palavra de Deus não precisa ser descartada quando se
estiver usando a técnica do cogito ergo sum como instrumento metodológico.

Neste sentido, a proposta bachelardiana se aproxima relativamente da atitude cartesiana


frente ao ontologicamente determinado, frequentemente assumido como um axioma ou como
uma verdade absoluta. A dúvida metódica (instrumentalizada pelo “cogito ergo sum”) sugere uma
reorganização psicopedagógica do conhecimento sensível do sujeito epistêmico (agora portador
de uma razão inquiridora/instrumental) diante de tudo aquilo que é aceito com relativa
ingenuidade racional para obter a clareza mediante o uso do cogito. Todavia entendamos que
“ingenuidade racional” para Bachelard (e também para Bultmann) é também o acatamento
irrefletido dos dogmas e doutrinas da Igreja Cristã. Portanto, adaptemos sua exposição ao
contexto teológico, que não pode, jamais, abdicar da fé.
14

Num primeiro momento, a fé, na perspectiva cartesiana, é fé no cogito orientado por uma
lógica matemática que torna possível a certeza com relação ao objeto referenciado pela razão
intuitiva. De acordo com Bachelard, a “opinião” está sempre equivocada. Pois pensa mal à
medida que traduz necessidades em conhecimento. Por esta razão, não se pode basear nada
sobre ela (BACHELARD, 1996). E, aqui, novamente uma crítica a Bultmann. Se Bachelard estiver
certo quando diz que toda opinião erra porque traduz necessidades de momento, então, como
já vimos, Bultmann jamais poderá fazer uma exegese livre de premissas, pois, no momento em
que a estiver fazendo, haverá, pelo menos, uma necessidade de momento: a de fazer uma
exegese sem premissas; e, como dissemos, de alguma forma, o caráter peremptório desta
necessidade “oprime” o exegeta coagindo-o ou pressionando-o a lastrar-se somente nisto,
renegando totalmente a possibilidade de existir um texto que necessite de uma hermenêutica
tipicamente espiritual. O espírito científico é muito mais esclarecível, do que esclarecedor; possui
um instinto “formativo”, e não “conservativo” (BACHELARD, 1996, p. 19). É como peças de um
quebra-cabeças ao modo de recortes de realidade; realidade esta que permanece sempre
fragmentada. Assim também, há textos bíblicos que, se submetidos forem ao estudo desta ou
daquela ciência, terão sua mensagem apresentada apenas em recortes limitados (como as
peças do quebra-cabeças), porém, jamais, esta mensagem será plenamente
decodificada/interpretada sem o auxílio do Espírito Santo.

Para Bachelard, todo conhecimento é fruto de uma resposta dada a uma pergunta feita,
ou como sugere Unamuno (1996), como resposta à necessidade de sobrevivência do instinto de
perpetuação no qual a pergunta feita emerge como problema. O obstáculo epistemológico se
esconde no conhecimento não questionado. Infelizmente, porém, Bachelard admite que quando
o espírito humano se apresenta à cultura científica, ele já não é tão jovem. Pois traz consigo toda
a bagagem recebida ao longo de sua experiência da vivência cotidiana. Neste sentido, a idade
de um espírito que se apresenta à cultura científica é a idade de seus preconceitos. (Grifo
nosso) Ora, de acordo com Bachelard, as crises de crescimento do pensamento implicam uma
reorganização total do sistema de saber, segundo o qual, toda cabeça bem feita deve
necessariamente ser refeita (BACHELARD, 1996). Esta postura caracteriza a verdadeira
condição do espírito humano frente ao totalmente inusitado, configurada naquilo que Boff (1998)
chama de “humildade intelectual” num sentido geral, e “humildade teológica” no sentido
estritamente acadêmico para a realidade de teólogos e teólogas. Santo Agostinho (apud BOFF,
1998), considerado como um dos maiores pensadores do Ocidente cristão (assim como Barth),
não se envergonha de rever criticamente seus 232 livros em suas Retractationes. Mas para o
educador, de acordo com Bachelard, este senso de humildade pode se encontrar praticamente
invalidado, razão pela qual ele (o educador) dificilmente terá um senso de fracasso. O educador
se vê invariavelmente como mestre, e não como aprendiz; como sujeito epistêmico maduro,e
não como uma espécie de mutante intelectual como é exigido pela cultura científica
15

(BACHELARD, 1996). No entanto, o espírito científico é um eterno itinerante, haja vista que
o discurso científico será sempre um discurso de circunstância. (Grifo nosso) Num outro
trabalho, Bachelard (1994) diz que todo pensamento científico deve mudar perante uma
experiência nova. Esta flexibilidade psico-interpretativa do sujeito epistêmico só é possível
porque a jovialidade, caracterizada pela abertura do espírito científico, não é superada pela
letargia anestésica da maturidade improdutiva de sujeitos epistemologicamente envelhecidos.
Bachelard (1996) chega fazer menção à fala de um epistemólogo irreverente que dizia serem
úteis à ciência somente homens e mulheres na primeira metade de suas vidas, pois na outra,
seriam extremamente nocivos (BACHELARD, 1996).

Dessarte, com Bachelard, podemos afirmar que os hagiógrafos bíblicos tinham sim um
discurso de circunstância, dado que, enquanto sujeitos históricos, estavam circunscritos numa
dada dinâmica de tempo e cultura, obedecendo ao Zeitgeist ora palestino, ora romano, ora grego,
ora cristão, ora dois ou mais destes simultaneamente. Mas a produção textual destes mesmos
escritores não se limita àquilo que tem procedência somente para a época de escritura dos
textos. E, nisto, se engana Rudolf Bultmann quando afirma que não merecem confiança os textos
de João e Mateus porque expõe tão-só a cosmovisão afetada e limitada destes mesmos autores.
Segundo a Sacra Teologia, porém, os textos escriturísticos possuem o que podemos chamar de
metassignificado espiritual, isto é, as mensagens veiculadas nestes textos dirigiam-se a um dado
público alvo epocal, mas também à posteridade, ou seja, ao fim e ao cabo, aos futuros leitores
cristãos (nós).

Não obstante tais pontos de dessemelhança com Bultmann, a doutrina de Bachelard


guarda ainda alguns aspectos corroborantes. Com Bachelard, aprendemos que a atitude
hermeneuticamente correta é aquela que traz a pergunta antes de incorporar quaisquer
pressupostos, sejam eles de ordem hermenêutico-filosóficos, sejam eles oriundos da experiência
comum. Esta pergunta sugere muito mais a ingenuidade de um espírito que ainda não sabe (e
por isso pergunta para aprender algo novo, e nisso consiste o “conhecimento científico” para
Bachelard), do que a perspicácia de quem pergunta para cristalizar a diferença epistemológica
estabelecida no diálogo intersubjetivo. Todavia, vale insistir, este ensinamento bachelardiano
não pode se aplicar totalmente ao texto bíblico, pois, como vimos, não daria conta de explicar a
camada de mistério que jaz na Bíblia e que somente a Divina Revelação é capaz de interpretar.
A atitude objetiva do espírito científico é neutra à medida que ela assume a inocência de uma
consensual convicção de que o conhecimento humano é fragmentário e estruturalmente
microdimensionado (portanto, essencialmente limitado), contendo em si deficiências
constitutivas, podendo, desta forma, perceber a verdade somente de muito longe. A pedagogia
de ruptura incide sobre e no sujeito epistêmico na medida em que ele elege um novo método de
apreensão de uma verdade ainda desconhecida para romper com o convencionado
16

conhecimento habitual (BACHELARD, 1994). Há, portanto, uma irrefutável relação entre método
e verdade que pode não só determinar o curso do empreendimento epistemológico, como
também os resultados a serem obtidos pelo mesmo. Por conta disto, Bachelard acaba
condenado o método cartesiano de ser redutivo, e não indutivo. Pois este não só falsea o
resultado da análise, como também entrava o desenvolvimento extensivo do pensamento
objetivo (BACHELARD, 1994). De acordo com Bachelard (1994, p. 97), a “perenidade” de
métodos, infelizmente (por melhores que sejam), torna o pensamento científico absolutamente
infecundo e a nova verdade inalcançável, além do que eles acabam inviabilizando a
macrocompreensão desta última. Numa de suas citações aparece a seguinte asserção: “uma
verdade demonstrada mantém-se constantemente apoiada não na sua própria evidência, mas
em sua demonstração” (BACHELARD, 1994, p. 97).

O conflito configurado na atitude hermenêutica revela uma aporia de difícil superação


epistemológica. A psicologia da pertença ontológico histórica revelada na “relação existencial”
estabelecida entre sujeito interpretante e coisa interpretada (configurada na estrutura daquilo que
Bultmann compreende por “premissa”), acaba se constituindo, por um lado, em recurso
hermenêutico de “compreensão da própria história” (BULTMANN, 2001, p. 368), figurada na
relação sujeito epistêmico/interpretante e a “coisa do texto” (usando a terminologia de Ricoeur)
e, por outro, e simultaneamente, em obstáculo epistemológico à luz da proposta de orientação
bachelardiana que vimos até agora. Neste sentido, longe de se falar de neutralidade
epistemológica da postura hermenêutica de um interpretante, o que se pressupõe a partir da
proposta hermenêutica bultmanniana acaba se convertendo em engenharia da
“congenialidade”20 (identificação entre sujeito interpretante e a intenção subjetiva da coisa
interpretada construída e configurada no ato interpretativo). Ou seja, em Bachelard, tem
Bultmann um correligionário e um opositor ao mesmo tempo.

As premissas de um exegeta são, para Bultmann, uma forma de conhecer o entendimento


que o exegeta tem do fato, mas não o fato mesmo. Sobre isto Ricoeur (apud HELENO, 2001, p.
182) “enfatiza a noção de pertença e o facto (sic) de aquele que interroga fazer parte da própria
coisa sobre a qual interroga”.

A questão que se levanta neste instante é que o que para Bultmann se constitui fato
hermenêutico significativo de irrefutável valor cognitivo-epistemológico (a pré-compreensão),
para Bachelard constitui preconceito/obstáculo que inviabiliza a perfeita compreensão da coisa
a ser conhecida.21 O autêntico espírito científico se revela na atitude de desconstrução não

20
Este é um conceito de uso sistemático na teoria hermenêutica de Schleiermacher que significa identificação
compreensiva entre um interpretante e a (intenção) do interpretado.
21
Porém, como vimos, Bultmann é contraditório, pois, em algumas de suas pesagens (já estudadas por nós aqui),
Bultmann parece concordar com Bachelard quanto à dificuldade imposta pela parcialidade do escritos ao seu texto.
17

somente de um tu-cognoscível (texto/linguagem/realidade), mas também e, sobretudo, de um


preconceituoso eu-cogito interpretante. É a partir deste axioma hermenêutico que o
distanciamento tornar-se-á modus operandi daquilo que Ricoeur (1989, p. 137) chama de
“hermenêutica da apropriação” da coisa/realidade interpretada (ou “coisa do texto”). A postura
interpretativa de um sujeito interpretante deve se configurar como aquiescente “submissão
cognitiva” diante de uma realidade nova a ser revelada como verdade desejada. Em termos
hermenêutico-teológicos, o diálogo entre o intérprete e o texto/realidade interpretada pressupõe
uma condição prévia: a “atitude de fé” (GEFFRÉ, 2005, p. 35), que na lógica de uma engenharia
cognitiva, significa assumir a condição de um “inveterado aprendiz”, como nos sugeriu Bachelard
(1996). A objetividade intencionada pela correta postura hermenêutica acaba constrangendo o
sujeito cognoscente/interpretante a assumir, do ponto de vista da percepção cognitiva, sua
finidade gnosiológica figurada na gramática da ‘humildade intelectiva’ (tapeinophrôsýne) frente a
uma sempre ‘nova verdade/realidade’ (cognoscível) a ser revelada (apokalyfthênai) de maneira
processual. A verdade, muitas vezes, é-nos revelada através de um processo temporal – como
ocorre amiúde nas Escrituras. Por esta razão, ela (a verdade) é considerada, stricto sensu, um
fenômeno hermeneuticamente inexaurível em sua ontologia. Em teologia, de acordo com Geffré
(2005, p. 39), “a manifestação da verdade é sempre manifestação do devir” (herança de
Heráclito), e compete, ao sujeito interpretante, resignar-se diante da imponderabilidade deste
fato hermenêutico. A cada nova descoberta se instaura sempre uma nova releitura (que compõe
cada camada interpretativa do processo hermenêutico)22, que desembocará, outrossim, em uma
nova necessidade cognitiva. Esta circularidade hermenêutico-cognoscitiva produz no sujeito
interpretante a necessidade de se entregar à descoberta de uma sempre nova verdade, de
maneira completamente infantil (no sentido bachelardiano). E, nisto, confirma-se a condição de
objetividade interpretativa da postura hermenêutica frente a uma realidade/verdade a ser
conhecida e interpretada, mas que não descura ou olvida da Divina Iluminação do Espírito Santo.

22
Sobre esta discussão, Croatto (1984) propõe o conceito de eisegese como conceito mais apropriado para se falar
de processo hermenêutico.
18

FONTES BIBLIOGRÁFICAS E VIRTUAIS

BACHELARD, G. O novo espírito científico. Lisboa: Ed. 70, 1994.


BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BOFF, C. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.
BULTMANN, Rudolf Karl. Crer e Compreender. Artigos Selecionados. Editados por
Walter Altmann. São Leopoldo RS: Sinodal, 1987.
DESCARTES, R. Discurso do método. Lisboa: Edições 70, 1992.
GADAMER, H.-G. Verdade e Método II: complementos e índices. Petrópolis: Vozes,
2002.
GEFFRÉ, C. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes,
2004.
HELENO, J. M. M. Hermenêutica e ontologia em Paul Ricoeur. Lisboa. Instituto Piaget,
2001. (Coleção Pensamento e Filosofia).
LAMBERT, D. Ciências e teologia: figuras de um diálogo. São Paulo: Loyola, 2002.
19

PIRES, Anderson Clayton & OLIVEIRA, Cláudio Ivan de. A hermenêutica da


compreensão: uma reflexão sobre o sentido aletológico da intellectus fidei. In:
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RICOEUR, P. El lenguaje de la fé. Buenos Aires: Megápolis, 1978.
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