Melanie Klein
Melanie Klein
Se serve de conforto para Josephs, ele não é o único a ter tais problemas para lidar
com narcisistas, e não são apenas os narcisistas que dão aos terapeutas tais
problemas. O narcisismo é apenas uma de 10 condições que se enquadram no
diagnóstico de transtornos de personalidade, e segundo a maioria dos relatos, os
narcisistas estão entre as nozes mais difíceis dos psicólogos quebrarem. Terapia de
conversação geralmente não os sensibiliza; terapia com medicamentos funciona
igualmente pouco. Os pesquisadores sabem o motivo.
Desta forma, cada vez mais pesquisadores estão à procura de novas formas para
tratar tais condições explorando tanto as raízes genéticas quanto ambientais,
buscando tanto curas químicas quanto terapêuticas. E é bom que estejam. "Os
custos sociais de desordens de personalidade são imensos", disse o dr. John
Gunderson diretor do Serviço de Transtornos de Personalidade do Hospital McLean,
em Belmont, Massachusetts. "Estas pessoas estão envolvidas em muitos males da
sociedade -divórcio, abuso infantil, violência. O problema é tremendo".
Antes que os cientistas possam imaginar como tratar estas condições, precisam
determinar o que há por trás delas. Poucos pesquisadores duvidam que quando os
transtornos estão tão entrelaçadas no temperamento, parte do que os causa está
escrito nos genes. Um estudo norueguês, publicado em 2000, examinou gêmeos
idênticos e fraternos e descobriu que pares idênticos -com suas plantas genéticas
idênticas- apresentavam maior probabilidade de compartilhar transtornos de
personalidade do que pares não idênticos. A personalidade fronteiriça apresentou
um nível de hereditariedade de 69%. Isto confirma as observações de campo dos
médicos, que perceberam taxas maiores de transtornos entre os descendentes de
pessoas com transtornos de personalidade. "Quase certamente há múltiplos genes
envolvidos na predisposição das pessoas aos transtornos de personalidade", disse
Gunderson.
Mas genes não são tudo. Terapeutas que trabalham com narcisistas geralmente
descobrem abuso na infância ou algum outro trauma que leva à baixa auto-estima
ou ao ódio-próprio -exatamente o tipo de buraco emocional que a grandiosidade
patológica busca preencher. O transtorno de personalidade fronteiriço afeta mais
mulheres do que homens, e algumas pesquisas mostraram que até 70% das
mulheres fronteiriças sofreram abuso físico ou sexual em certa altura de suas vidas.
É difícil atribuir tais maus tratos aos genes. O transtorno bipolar ou dificuldades de
aprendizado quando são lidadas de forma indevida também podem evoluir em
transtornos de personalidade. O dr. Larry Siever, professor de Psiquiatria da Escola
de Medicina Mount Sinai em Nova York, acredita que parte do aumento dos
transtornos de personalidade pode estar vinculada à perda dos grupos naturais de
apoio, à medida que os indivíduos, em uma cultura cada vez mais móvel, migram
cada vez mais para mais longe de casa. "No passado", disse ele, "nós vivíamos
perto de nossas famílias estendidas em comunidades altamente estruturadas. As
pessoas podiam cuidar dos seus e refreá-los".
Sejam quais forem as raízes específicas das condições, assim que estes dados
ambientais e genéticos são lançados, o resultado já está consumado para a pessoa
com transtorno de personalidade? Resumindo, a resposta triste é: freqüentemente
sim -pelo menos enquanto os pacientes com transtorno de personalidade resistirem
ao reconhecimento do problema. Transtornos de ansiedade como fobias geralmente
são tratadas como males ego-distônicos: o doente reconhece o problema e deseja
fazer algo a respeito. Desordens de personalidade são ego-sintônicas: os indivíduos
acreditam que o drama, a concentração em si mesmos e outras características que
marcam sua condição são respostas razoáveis para a forma como o mundo os
trata. Este é um paciente difícil de curar, mas há esperança, e parte dela começa
no laboratório farmacêutico.
Resultados mais imediatos podem ser obtidos por meio de terapia cognitiva e
comportamental, que ensina alterações de comportamento. Um novo tratamento
conhecido como terapia de comportamento dialético, desenvolvido pela psicóloga
clínica Marsha Linehan, da Universidade de Washington, pode ensinar aos pacientes
fronteiriços a reconhecer situações que provocam sentimentos explosivos, os
ajudando a conter uma reação antes que ela irrompa. "A primeira coisa que
ensinamos é a assumir o controle do comportamento", disse Linehan. "Depois
disso, nós trabalhamos em como se sentir melhor".
CONSIDERAÇÕES GERAIS:
FORÇA DE EGO E NIVEIS DE
DEFESA
Força de ego refere-se a uma noção freudiana clássica de que o
funcionamento psicológico dos pacientes pode ser avaliado de acordo com
quão bem ou quão insatisfatoriamente eles lidam com o conjunto de
estressores que os afetam. Defesa do ego refere-se ao conjunto de
comportamentos e mecanismos psicológicos (p. ex., afeto depressivo,
ansiedade, pânico) que os pacientes utilizam para evitar dor psíquica. Visto
que a dor psíquica varia de acordo com os estados mentais como atenção, a
alteração do estado mental da pessoa por meio de desatenção seletiva, use
de droga ou dissociação diminui a gravidade da dor imediata. Algumas
manobras e estilos defensivos, como humor e presença de espírito, mantêm
o ego relativamente intacto; outras, como divisão e dissociação,
desorganizam a personalidade de forma importante e dão origem a graves
patologias de caráter.
A noção clássica de defesa do ego encontrou expressão no estudo de
Anna Freud no qual ela formalizava os conceitos implícitos de seu pai.
Fenichel resumiu a teoria clássica, diferenciando entre defesas bem-
sucedidas (sublimação) e defesas patogênicas
(negação,projeção,introjeção,repressão,formação,reativa,anulação,
isolamento e regressão). Os estudos de E. H. Erikson do desenvolvimento
da personalidade e tipo de caráter transmitiram a teoria psicanalítica de
caráter para gerações de indivíduos, mesmo quando eles frustraram os
pesquisadores de laboratório. Mais recentemente, Vaillant e seus colegas
conduziram estudos longitudinais e empíricos extensivos do conceito de
"níveis de defesa" no que diz respeito a funcionamento global da
personalidade e curso de vida: indivíduos cujos especialistas julgaram
"bem-sucedidos" e livres de sintomas maiores tendiam a manifestar defesas
maduras, enquanto aqueles com incidência significativamente alta de
doença psiquiátrica e outras medidas de dificuldades correlacionavam-se
com defesas imaturas (Tabela 4-2).
Categoria Defesas
Antecipação
Supressão
Altruísmo
Defesas maduras
Sublimação
Humor
Ascetismo
Intelectualização
Repressão
Defesas intrmediárias e Formação reativa
neuróticas Deslocamento
Externalização (incluindo sexualização, somatização,
racionalização)
Passivo-agressivas (caráter masoquista)
Hipocondria
Atuação
Defesas imaturas Dissociação
Projeção
Fantasia esquizóide
Bloqueio
O Mito de Narciso.
Narciso era um belo rapaz indiferente ao amor, filho do deus do rio Céfiso e
da ninfa Liríope. Por ocasião de seu nascimento os pais perguntaram ao adivinho
Tirésias qual seria o destino do menino, pois ficaram muito assustados com a sua
beleza rara e jamais vista. A resposta foi que ele teria vida longa se não visse a
própria face. Muitas moças e ninfas apaixonaram-se por Narciso quando ele chegou
à fase adulta, mas o belo jovem não se interessou por nenhuma delas. A ninfa Eco,
uma das apaixonadas, não se conformando com a indiferença de Narciso, afastou-
se amargurada para um lugar deserto onde definhou até a morte e restaram
somente seus gemidos. As moças desprezadas pediram aos deuses que a vingasse.
Nêmesis apiedou-se delas e induziu Narciso, depois de uma caçada num dia muito
quente, a se debruçar na fonte de Téspias para beber água. Nessa posição ele viu
seu rosto refletido na água e se apaixonou pela própria imagem. Descuidando-se de
tudo o mais, ele permaneceu imóvel na contemplação ininterrupta de sua face
refletida e assim morreu. No local de sua morte apareceu uma flor que recebeu seu
nome, dotada também de uma beleza singular, porém narcótica e estéril.
Esse personagem também pode ser visto por outro ângulo, pois até
aqui parece ser doentio. Todos têm um Narciso em si e isso leva a que cada
um procure cuidar do próprio corpo; arrumar-se, enfeitar-se para agradar a
si e aos outros demais. Isso não significa que esteja voltando sua
capacidade de amar e ser amado só para si mesmo, mas tem a finalidade
de encontrar alguém, ir em busca do outro e do mundo.
OUTRAS TÉCNICAS
PSICOTERÁPICAS
Princípios, técnica, indicações e limitações da psicoterapia complexa de Jung. -
Estrutura da psique. - Os arquétipos. - Fases da individuação etc.
Se a psicologia individual adleriana pode ser criticada por não ser propriamente
individual (ainda que de todas as escolas psicológicas modernas seja a que leva
mais em conta a pressão que a comunidade social exerce sobre o indivíduo e
construa a caracterologia deste de acordo com normas excessivamente simplistas e
rígidas), o que nao impede seja manejável e atrativa quando enfrentamos casos de
pouca complicação psicológica; a psicologia complexa de Jung - e ao sistema
psicoterápico que dela deriva - não podemos fazer-lhe a censura de não
corresponder em seu conteúdo ao que no título promete: é não só complexa, mas
também confusa. Mais útil seria, como veremos, saber escolher e selecionar
devidamente os casos a que devemos aplicá-la.
Vamos tentar uma síntese de tal sistema, ajudando-nos com alguns esquemas
elaborados por uma das discípulas prediletas do mestre de Zurique, a Dra. Jacobi:
Para Jung, a psique tem tanta realidade quanto o soma (corpo) e apresenta
uma "estrutura" não menos complexa que a deste, ainda que suas dimensões
sejam virtuais. A psique (termo com que Jung designa o aparelho psíquico
freudiano) acha-se dividida em zonas ou estratos, dos quais,
a maior parte corresponde a processos que não tem a propriedade de refletir-se
sobre si e, portanto, são inconscientes, ao passo que a outra parte possui tal
característica.
Jung volta a sua originalidade quando admite, além disso, que o processo de
individuação a uma síntese de contrários, e que em sua dinâmica intervem (como
ocorre na física) a lei de entropia, porém a diferencia do mundo inanimado, no da
alma (que a uma realidade independente ou coisa em si para Jung), existindo a
possibilidade de uma transformação reversível (consciência-inconsciente) graças ao
eixo das chamadas funções auxiliares. No curso da vida individual - e nisto coincide
agora a psicologia complexa com as idéias de Kretschmer - observa-se, geralmente
entre os 40 e 50 anos, isto e, em tome da crise involutiva, a inversão da fórmula do
equilíbrio psico-individual, em virtude da qual o introvertido se extroverte e vice-
versa, ao mesmo tempo que a função reprimida passa a ser guia.
Os "complexos" - cujo estudo designa ou qualifica esta psicologia - são partes
desprendidas da personalidade psíquica, grupos de conteúdos mentais que se
fizeram independentes da ação do eu e funcionam autônoma e intencionalmente,
com um núcleo submerso no inconsciente e uma parte secundária que emerge na
consciência. Quando desce o nível desta a possível que se mostre também a parte
oculta, mas então o indivíduo experimenta sua aparição como algo alheio a ele,
como um corpo estranho, perturbador de sua liberdade e de seus propósitos
voluntários. Jung sustenta que nem todos os complexos são patológicos nem
tampouco derivam de uma regressão inicial da libido (como pensa Freud) e que às
vezes são formações primitivamente inconscientes (talvez pré-individuais, isto é,
provenientes do inconsciente herdado ou coletivo-ancestral) que não chegaram a
escalar totalmente o pináculo da zona claramente consciente.
OS ARQUÉTIPOS JUNGUIANOS
Muito escreveu Jung acerca de tais arquétipos (talvez demasiado, pois com
freqüência incorre em contradições sobre eles); o certo é que sua delimitação
conceptual constitui um dos pontos mais obscuros dessa doutrina. Em sua
conhecida obra "A integração da personalidade" dedica um extenso capitulo, de 43
paginas, a sua descrição sem que em nossa modesta opinião consiga esclarece-la.
Afirma em tal trabalho que seus arquétipos constituem uma paráfrase do eidos
(idéias) platônico e são les eternelles incrées, determinados formalmente e não em
conteúdo material. O arquétipo é tão imanente como o sistema axial que
potencialmente determina a formação de um cristal, sem ter uma existência
concreta. Constitui uma "presença eterna que pode ou não ser percebida pelo
conhecimento" e apresentar-se ante ele sob diversas formas concretas. Levy Bruhl
designa algo parecido com suas "representations collectives", que concernem a
sucessos e vivências típicas, primitivas, que mais tarde serão a base de fábulas e
mitos tradicionais. Jung denominou os primeiros "imagens arcaicas" porem preferiu
depois tomar o termo arquétipo (de Stº. Agostinho) por não prejulgar a natureza
de sua representação concreta. A soma dos arquétipos constitui a soma de todas as
possibilidades latentes da psique humana.
(*) A tarefa de autoformação da individualidade é chamada por Jung "processo de individuação", enquanto que
ao esforço para conseguir destacá-la de entre as demais que integram o corpo social, é por ele designado como
"trabalho de individualização".
Acerca dele e de suas formas expressivas é muito mais explícito que a respeito
do anterior, que a verdadeiramente apenas esboçado em suas descrições. A anima
corresponde à imagem da mãe primitiva ou ancestral e simboliza quanto de
feminino tem o individuo. Não deve identificar-se com a alma, se bem que pareça
formar parte dela. Constitui "uma fonte de vida por trás da consciência, que não
pode ser integrada nesta e que contudo a condiciona" (Jung, ob. cit.) ; esse caráter
vital ou energético - fons et origo da criação psíquica - que se atribui ao dito
arquétipo, explica a multiformidade e complexidade das imagens que utiliza para
mostrar-se ante o indivíduo - Vênus ou uma bruxa, frágil donzela, ou enérgica
amazona, anjo ou demônio, mãe ou prostituta... Em qualquer dessas formas
contraditórias é capaz de aparecer nas visões e sonhos. Na literatura e Kundry
(Parsifal) ou Andrómeda (Perseu), Beatriz (Divina Comédia) ou "Ella" (R. Haggard),
Antinea (Atlântida) ou Helena de Tróia (Erskine)... como mãe, inspira nosso
primeiro sopro e recolhe o nosso último alento; como a vida, é, ao mesmo tempo,
absurda (irracional) e significativa (lógica). Note-se, além disso, que Jung se
compraz em destacar a cada passo esse caráter ambivalente e antinômico de todos
os produtos e fatos psíquicos; nesse arquétipo encontra uma das melhores ocasiões
para desenvolver tal gosto a critério. Na terceira fase desta viagem as
profundidades do inconsciente coletivo aparece o arquétipo de saber primitivo, isto
a do mago, que no sexo masculino pode apresentar-se sob a forma de profeta,
caudilho etc., e no sexo feminino o faz com magna mater sob a aparência de deusa
da fecundidade, pitonisa, sibila, sacerdotisa etc. Em Nietzsche esse setor da
individualidade personifica-se em Zaratustra. Essas imagens são designadas por
Jung com o comum qualificativo de personalidade maná e seu descobrimento
coloca o indivíduo em frente a um núcleo de forças que lhe injeta confiança em seu
saber e lhe permite tornar-se independente da influência que sobre ele exerciam as
imagens de seus progenitores. Em suma, esse velho homem sábio, espécie de
Jeová, Júpiter, Wotan, Grande Espírito ou Mago, a uma figura híbrida que possui
todos os segredos e arcanos do mundo: à medida que o indivíduo se deixa levar
por ela, sente-se seguro e onipotente. Em alguns delírios de grandeza e estados
oniróides da esquizofrenia vemo-la em ação, dirigindo todo o pensamento do
indivíduo que adquire categoria de homo divinans.
Daí, diz Jung, o prestigio universal da Cruz, dos pontos cardiais, do carbono
(quadrivalente) ...
Pelo exposto acerca das idéias que presidem a concepção atual de Jung sobre a
individualidade humana concebe-se sua afirmação de que seu sistema curativo não
é tanto de ordem terapêutica (medica) quanto de natureza mística (religiosa) : não
se trata tanto de curar o indivíduo de sua relativa miséria existencial, fazendo-o
subir de seu miópico estado psíquico e descobrir o manancial inesgotável de
reservas que encerra, em potência, o seu inconsciente ancestral ou coletivo. Ao
incorporar ao seu núcleo egótico estas forças propulsoras e criar assim uma robusta
mesmidade - que tenha em conta suficientemente a vocação (voz interior)
individual - obtém-se uma síntese psíquica que permite ao indivíduo individuado,
isto é, ao indivíduo que terminou o seu processo de individuação, superar todos os
conflitos, tanto internos como externos e gozar de uma paz e de uma satisfação ate
então desconhecidas dele.
Com isto já se deduz que pessoas que possam ser submetidas a essa
terapêutica deverão ter não escassa cultura e uma rica vida interior; não podem ser
imaginativamente secas e deverão estar propensas a submergir em qualquer
momento nesse particular estado de divagação ou devaneio que e a chave de
exploração psicanalítica.
É incompreensível, porém certo, que Jung conceda cada vez menos importância
a sua prova das associações condicionadas na exploração de seus enfermos; sem
dúvida, a isso devido à nova orientação de suas concepções.
Se agora nos perguntamos que tipo de doentes a mais tributário de seguir esse
Heilweg (caminho da cura) que constitui a psicoterapia junguiana, dar-nos-emos
conta de que são antes de tudo, os que, chegando a idade madura, sofrem ao ver o
insucesso de suas vidas: tratam de reviver suas existências e se compenetram de
que é demasiado tarde para isso; procuram consolar-se com a promessa de um
venturoso alem e falta-lhes a fé religiosa, tentam resignar-se vivendo como até
então e não tem a energia para conformar-se. Tudo isso os leva ao suicídio, à
neurose ou à perversão, mas em todo caso os desvia progressivamente e os priva
de paz e de satisfação. Em tais condições, ao psicoterapeuta resta proporcionar-
lhes uma doutrina que tenha encanto de alguma bela criação artística, força
sugestiva de uma tese religiosa e o poder de convicção persuasiva de uma obra
científica. - Que importa que tudo isso não seja verdade, se o indivíduo chega a
aceitá-lo como coisa real, que se lhe impõe como um ato de fé?
Isso explica a escassa difusão que logrou esta escola existem poucos
psicoterapeutas junguianos nos países latinos, quase nenhum na América do Norte,
e também o próprio autor do sistema parece interessar-se hoje muito mais em
resolver problemas relacionados com a astrologia, alquimia, arte, religião e
cosmologia, do que com a prática médica.
Espinosa.
A vida de Espinosa não foi muito fácil. Sua família era judia e fugiu de Portugal para escapar
da inquisição. Chegando na Holanda, ele cresceu dentro da comunidade judaica; era muito
inteligente, mas não pode continuar seus estudos devido à morte de seu irmão mais velho. Foi
Sua inteligência e ousadia lhe deram um amargo caminho: foi excomungado aos 24 anos,
pensamento religioso.
Em todos os momentos, até o resto da vida, Espinosa esforçou-se para livrar a si e aos outros
da superstição religiosa, dos medos irracionais que brotam das inseguranças do homem e da
ignorância que os mantêm escravos. Por não conhecerem como o mundo funciona, por não
entenderem, os homens caem vítimas das explicações sagradas onde Deus tem todas as
Nesta busca para livrar a si e aos homens de sua própria servidão, Espinosa trilhou o único
caminho seguro que conhecia: a filosofia. Em seu mais importante livro, Ética, publicado
depois de morto, o filósofo traça uma linha reta através de axiomas e proposições que levam
do conhecimento à liberdade. Começando por Deus, passando pelos afetos, Espinosa ensina
como transformar a servidão em liberdade. Para ele, a filosofia e o conhecimento têm essa
capacidade, retirar as algemas que prendem o ser humano em medos irracionais e opressões
políticas e religiosas.
Abrindo o livro, Espinosa explica que Deus não é um legislador, nem um ditador e muito menos
céu e quem é condenado ao inferno. Não, para Espinosa, Deus é a própria natureza, nem mais
nem menos. Deus é todas as coisas e não há nada fora dele. Então, ele não está separado de
sua criação, ele próprio é a sua criação e todas as coisas estão nele, nós também.
Já em seu Tratado Teológico Político, anterior à Ética, Espinosa alertara para os perigos da
religião que começa oferecendo explicações do mundo mas termina impondo sua fé e forçando
os outros a obedecerem o que suas crenças mandam. Não, Deus não quer obediência
seguem de sua própria essência. Ele causou tudo, inclusive a si mesmo; divina é a substância
infinita, ela é pura necessidade, essência e potência de criação. Deus é o criador eterno, pois
Dentre os atributos de Deus, diz Espinosa, está a matéria e o pensamento. Nós, seres
humanos, somos parte destes dois atributos. Nosso corpo é feito de várias partes, cada vez
menores, que se movimentam ora mais rápida e ora mais lentamente. E nossa mente é
composta de ideias. Temos a capacidade de nos mover e de pensar. Somos apenas uma
pequena amostra desta potência infinita, que Espinosa chama de modo, sendo assim, estamos
incluídos na cadeia de causa e efeitos tanto dos corpos quanto das ideias. Mas, mesmo que
pequena, somos uma parte desta potência do ser que gerou todas as coisas e permanece
imanente à sua criação; ou seja, somos capazes de, nas condições certas, criar e pensar
corretamente.
As ações do corpo são diretamente sentidas pela mente, ou alma. Não há uma relação de
hierarquia, os dois são a mesma coisa, dois lados de uma moeda (veja aqui). Tudo que
fazemos se reflete em nossos pensamentos e tudo que pensamos se reflete em nosso corpo.
Para pensar corretamente é preciso viver corretamente e o contrário também é verdade: para
viver corretamente é preciso pensar corretamente. A alma é a ideia do corpo, um corpo que
sofre diariamente, que sente dores, que sente-se oprimido, terminará por ter ideias horríveis da
vida, do mundo e de si mesmo. Mas um corpo levado a viver cada vez mais segundo sua
para Espinosa, é o caminho mais rápido para quebrar o peso dos idealismos e romper com as
Mas como pensar melhor e viver melhor? Nas relações, é claro (veja aqui). Nossos corpos são
pequenas partes de matéria e pensamento que entram em relação com o resto do mundo.
Viver é a arte dos encontros, viver bem é aprender a escolher estes encontros. Quando ocorre
um bom encontro, minha potência aumenta, e eu me torno mais feliz. Contudo, quando ocorre
um mau encontro eu me torno mais triste, e minha potência diminui. Nosso corpo e mente
procuram sempre efetuar bons encontros para aumentar a potência de existir, Espinosa chama
isso de conatus. Não queremos apenas existir, isso é muito pouco, queremos nos aproximar
de Deus; ele tem a potência infinita de agir e de ser afetado pelas coisas, quando mais
verdadeiramente livres; para isso ele usa da principal ferramenta do ser humano: a razão. Mas
o mundo é tão vasto, suas forças são tão grandes e opressoras, como é possível ser
verdadeiramente livre? Somos levados de um lado a outro como folhas ao vento: temos medo,
frio, fome, dor, é possível realmente ser livre? A servidão humana é a fraqueza do conatus, a
impotência para regular nossos afetos internos e de resistir às afecções do mundo à nossa
volta. Somos colonizados pelo mundo exterior. Desta forma, não só apenas nos deixamos
dominar como passamos a desejar o que nos impõe. Mas o conatus quer não apenas existir,
quer resistir e expandir-se. Com a razão somos capazes de escolher nossos encontros, a
virtude do pensamento nos mostra a melhor maneira de ser afetado para aumentar nossa
potência de agir.
A virtude é a força para agir segundo nossa própria natureza. Liberdade, para Espinosa, não é
agir segundo possibilidades, é agir segundo nossa natureza. Somos uma parte da potência
infinita de Deus, lembram-se? Não estamos fora do mundo, mas somos uma parte ativa dele.
Sendo assim, basta uma pequena felicidade e nos tornamos mais parecidos com Deus (que é
totalmente livre). Quanto mais somos felizes, melhor conseguimos pensar. Ninguém pensa
bem quando está triste, somente a felicidade é capaz de nos levar cada vez mais longe.
agir de modo a sempre contentar-se com nossos atos. O desejo de alegria do conatus é a força
que nos impulsiona rumo à liberdade. Juntos, razão e emoção são capazes de fortalecerem-se
e tornarem-se mais capazes de agir. É preciso que o pensamento se torne uma emoção tão
estou sentindo? Sou realmente a causa de mim mesmo? Estou agindo segundo minha
virtuoso e feliz. Não porque haja uma recompensa após a vida para isso, mas sim porque a
própria felicidade de filosofar já é uma recompensa. Espinosa foi o grande discípulo de sua
própria filosofia. Vivendo feliz, trocando cartas com seus amigos, recebendo outros em sua
casa para conversar. O filósofo sempre escolheu os melhores lugares para ter uma vida boa,
simples em posses mas rica em pensamento e bons momentos. Soube muito bem evitar
problemas com os intolerantes religiosos de seu tempo e os ignorantes que não entendiam sua
Para que serve a filosofia? Ora, responderia Espinosa, para tornar-se livre, virtuoso, feliz,
potente, autor de sua própria história, senhor de si mesmo. Tudo isso, para Espinosa, é a
mesma coisa, são sinônimos. Quanto mais filosofamos, mais nos afastamos das tristezas e
inseguranças da vida. Filosofar é deixar o medo e a esperança de lado para confiar na razão e
em si mesmo. Claro que é difícil, mas através da Ética, podemos dar os primeiros passos para
mais do que pensar filosoficamente, viver filosoficamente. Que caminho belo, quanto mais
contentes, melhor agimos e mais próximos ficamos de Deus. Quanto mais filosofamos, mais
queremos filosofar.
Na Ética, razão e emoção se unem para libertar o homem de todas as superstições e fazê-lo
ser o mais livre que pode. O homem deixa de se submeter a qualquer poder moral e religioso,
supersticioso ou autoritário, sua lógica agora é a da potência dos encontros. Tudo que causa
tristeza é afastado, o filósofo não é mais alguém sisudo e taciturno, ele é aquele que age em
vista de sua felicidade e dos outros, de acordo com a razão. Talvez por isso Espinosa tenha
sido tão odiado, ele apostava na felicidade, na alegria, na satisfação, no prazer, no bom humor,
como Espinosa.
pergunta. Espinosa, durante toda sua obra, esforçou-se para entender a natureza
humana, sem idealizá-la, sem julgá-la. Ele se inclinou sobre a fragilidade humana,
vulnerável da existência. Nós sofremos, nos iludimos, ficamos doentes, nos irritamos,
ficamos confusos, choramos, não encontramos saídas mesmo para nossos problemas
mais simples; enfim, somos uma parte muito impotente da realidade. Mas uma
nojo.
Por isso Espinosa jamais caiu na tentação de idealizar a natureza humana. Para não
afetos. Não estamos doentes, não somos maus por natureza, não somos imperfeitos,
não cabe nem mesmo usar a palavra cura, porque não se trata de um corpo doente,
apenas de um corpo afastado do que pode. Esta clínica buscará construir mapas
encontros não dão conta de explicar uma essência pois fornecem apenas um
constante para sermos felizes em ato, ele não subestima este importante fato. Outro
cuidado que ele toma, a diferença sutil entre as alegrias tristes e as tristezas alegres.
Partimos do simples fato de que o homem pode conhecer seus afetos. Esta é
Parece pouco, mas é uma revolução, ao tornar mente e corpo atributos de uma
mesma substância, abre-se o caminho para pensar sua relação em paralelo, não
Desde Platão, passando pelo cristianismo, Descartes e outros, o corpo deve se render
à mente, um deve ser mais forte que o outro. Com Espinosa, isso muda, quanto mais
o corpo é capaz de afetar e ser afetado, quanto mais o corpo age, maior a força da
mente para pensar. A mente é ideia do corpo, um não manda no outro, um é reflexo
Sendo assim, quanto mais um corpo vive, exprime sua essência, é afetado por outros
falar de uma psicologia espinosista sem mencioná-los porque eles são o que há de
mais real em nós. Só podemos erigir uma psicologia se nos debruçarmos sobre os
causando uma variação na nossa potência. Não se trata de uma comparação entre um
entre, no meio. O afeto é a passagem para uma perfeição maior ou menor, ele mostra
capaz de entender o que se passa em seu corpo, ela percebe estas variações e pode
pensar sobre elas, pode compreendê-las (veja aqui). Quanto mais a mente estabelece
conexões com o mundo ao seu redor, mais ela é capaz de formar ideias adequadas de
como o mundo se relaciona com ela. O corpo se abre, como um mapa, para os
campos afetivos dos quais pode ser afetado. Existem regiões que não queremos ir,
terrenos íngremes, perigosos, selvagens, onde podemos nos perder. Já outros são
tristeza e a alegria medem nossos afetos, são o termômetro que nos ensina como nos
apropriar da existência.
direção à liberdade: precisamos de uma pedra segura para nos agarrar e subir,
mesmo que tenhamos que nos esticar muito para alcançá-la. Esta é a dinâmica
A tarefa da razão, que procura estabelecer estes bons encontros e evitar os maus
que há de bom e mau em cada um: a arte dos encontros e desencontros. A razão nos
Podemos pensar a psicologia espinosista com uma pergunta simples: quais encontros
convêm e quais não convêm? Quais são úteis e quais nos afastam daquilo que é útil?
dos encontros?
Quanto mais composições um corpo é capaz de estabelecer com outros corpos, mais
convém e não convém com sua essência. Encontramos aqui as bases para uma
pelas vicissitudes da vida, levados pela fortuna, conduzidos pelas paixões; então
conhecer os afetos nos permitirá sair da servidão e encontrar a liberdade. O trabalho
de um psicólogo está traçado, cabe a ele perguntar: o que pode um corpo? De quais
afetos ele é capaz? A potência de um corpo, o que convém com sua natureza é a sua
definição de liberdade.
entender seus afetos, o homem é capaz de uma existência ética. Espinosa procura
pequenos pontos de apoio, pequenos pontos minimamente fixos para dar um norte,
para garantir um empuxo. Por que o homem luta por sua servidão imaginando
lutar por sua liberdade? Pergunta clínica, resposta espinosista: porque não conhece
de quais afetos é capaz, porque faz escolhas confusas, porque não se conhece, o
A possibilidade de uma vida virtuosa, sábia, livre, que em Espinosa estão diretamente
relacionados, envolve se juntar e se relacionar não pelo que enfraquece, mas pelo que
fortalece, pelo que há em comum, naquilo que cada um é capaz. Precisamos criar
uma rede de conexões intensivas. A razão, que agora está intimamente conectada
com os afetos é o caminho de Espinosa para lidar com o acaso dos maus encontros
Atravessar o mar da fortuna com o barco da razão, mesmo que frágil, é a maneira
mais certa de alcançarmos novas terras. Um novo lugar, com novos modos de nos
relacionar, com possibilidades subjetivas nunca antes imaginadas. Eis o convite ético-
mesmo tempo.
vivemos porque este nos preenche de tristeza quase o tempo todo. E pior, de alegrias
reativas, alegrias tristes, nos ensina a alegramos com a tristeza alheia. Nosso objetivo
clínico, como leitores de Espinosa é cada vez mais aumentar nossa mapa de
encontros, realizar uma cartografia de si, abrir nosso leque de possibilidades, viver em
ato, ser feliz em ato, um corpo que se concentra na vida de modo a esquecer quase
completamente da morte.
são (bio)políticos, um corpo que não entende seus afetos e como se relacionar com
eles, não pode se relacionar de maneira saudável com os outros. O cuidado que
Espinosa diz, juntamente com vários outros pensadores, que a liberdade se conjuga
sempre no plural, ela não acaba quando começa a liberdade do outros, uma aumenta
vida impotente, triste; a clínica espinosista quer livrar o homem destes pequenos
consolos que não libertam, muito pelo contrário, criam a ilusão de liberdade em meio à
servidão.
Uma psicologia que fala em nome da liberdade, uma psicologia que integre
pensamento e ação. São grandes apostas para esta psicologia! Sim, Espinosa está
convicto de que a vida pode ser melhor do que é agora. Uma vida alegre, potente,
liberdade é fazer o que está sob domínio da nossa potência, a psicologia deve no
mostrar o caminho para encontrarmos a nós mesmos, qual a nossa potência? Uma
psicologia espinosista parece nos indicar as direções para responder a esta pergunta.
Espinosa fez bem de não publicar seus livros em vida, as pessoas ainda não estavam
preparadas para aquilo que tinha a dizer. Prova disso são as três principais acusações
que fizeram a ele depois que suas ideias foram publicadas postumamente.
Espinosismo era uma acusação séria, muitos tinham que tomar cuidado para não
Materialismo, imoralismo e ateísmo, são estas as três acusações ao nosso filósofo tão
mal compreendido e tão pouco lido. Não que sejam inteiramente mentiras, mas a
forma como são expressas retiram toda a beleza da vida e da obra deste grande
pensador. Façamos justiça com a memória de Espinosa, expliquemos melhor por que
tempo. Enquanto todos falavam de espírito, mente, razão, glândula pineal, ele nos diz:
“mas nós nem sabemos ainda o que pode o corpo!” (ver aqui). Quanta ignorância, não
sabemos nem ao menos o que fazer com este objeto tão caluniado que carregamos
de um lado para o outro e fingimos não ser nós. O corpo é a base de tudo, o corpo é o
chão de onde brotam os pensamentos. Não há mais um modelo filosófico onde a alma
deve dominar os instintos e comandar as pulsões; agora o corpo pensa, reflete, julga.
com este domínio é deixar de lado o primeiro objeto metafísico que nos aprisiona. A
elogio?
um cruel facínora, um perigoso delinquente? Espinosa não acusa… talvez por isso o
tenham chamado de imoral; ele quer compreender para poder agir, não para julgar e
condenar. A Ética desarticula todos os sistemas morais ao fazer uma matemática dos
afetos. Como eles funcionam? Como fazê-los funcionar de modo que gerem muito
mais felicidades e bons encontros ao invés de tristezas e maus-encontros? (veja
aqui)Espinosa não escreve para instituir a Lei: não há linha que não possa ser
cruzada. Há apenas o bom-jeito e o mau-jeito. “Se você fizer isso é provável que
aconteça isso“, tudo está resumido no modo como você se relaciona. O ignorante
age. Se exite uma Lei, esta é a de Deus, não dos homens, mas Deus confunde-se
com a natureza (veja aqui), então não há como desobedecê-lo, tudo que fazemos é
Ateu: Espinosa não era ateu, ou era, isso depende do ponto de vista. Em toda sua
trono. Deus age por sua mais absoluta vontade, extrema firmeza, sem a mínima
hesitação, mas ele é a própria natureza se manifestando, inclusive em nós! Espinosa
Espinosa se afasta de todos aqueles que tiram Deus deste mundo, pois só assim é
possível julgar esta realidade que se manifesta completamente. Sua ética é um refletir
sobre a felicidade, como alcançar a satisfação? Como viver bem? Certamente não é
Espinosa é um grande filósofo que nos quer ver agir, compreender para agir. Sua
filosofia nos joga no mundo, mas ao mesmo tempo nos prepara para vivê-lo em toda
sua plenitude, em toda sua potência; nos faz afirmar o aqui e agora, como apenas um
verdadeiro filósofo faria. Existem muito padres que fingem ser filósofos, e é muito fácil
Pense em algo, pense em qualquer coisa, ela é possível de existir? Digo, ela tem
contradições internas que impedem sua existência? Não? Então ela existe? A
resposta é: não necessariamente, isso apenas faz com que esta coisa tenha
Mas o que faz algo efetivamente existir? Ou ela é produzida por si própria ou por outra
coisa. A potência de uma coisa existir está em si mesma ou vem de fora. No nosso
caso, somos versões reduzidas desta potência de existir, somos causados por forças
exteriores que nos engendraram e, ao mesmo tempo, temos em nós parte destas
forças que nos permitem existir. O finito reflete o infinito, ou seja, somos parte de um
chamá-lo-emos Deus.
para além de sua existência. Deus écausa sui, ou seja, ele é definido por sua potência
de ser, existir e produzir. Isso significa que a unidade de Deus se manifesta através da
Estamos indo muito rápido? Deus é a causa de todas as coisas que existem. Ele é a
causa imanente, não transitória; ele não cria o mundo e vai embora, muito pelo
contrário, o mundo é ele mesmo, ele se manifesta através do mundo. Cada essência,
eu, você, todas as coisas, cada modo afirmar-se em Deus, em maior ou menor grau. E
Certo, podemos passar adiante. Como essa potência se manifesta? Através do poder
de existir, de afetar e ser afetado. Como parte da potência infinita de Deus, eu tenho
força ativa que se esforça (tal como Deus), para produzir. E mais, esta potência que
existe em ato, ativamente, tem características singulares de afetar e ser afetado (veja
aqui). Já falamos sobre tudo isso em outros textos, por isso não nos alongaremos
duração, modos, como diria Espinosa, mas os modos estão em Deus. Isso significa
que afirmar a minha potência é afirmar o que há de divino em mim. Tomar parte
do universo que gera bons encontros. A questão ética é então efetuar sua potência, da
uma determinada harmonia. Estas forças se conjugam de forma que mantém a sua
corpo manter a sua forma. O que pode um corpo? Ele pode o quanto ele tem
potência. Um moralista define o corpo pelo que ele deve; mas nós, imoralistas
convictos, definimos o corpo pelo que ele pode. Não sou um escravo aqui com um
lugar garantido no céu, isso é pura ilusão para aguentar o sofrimento. Eu sou o que eu
posso, eu sou minha potência, que é a minha essência em ato. Eu sou tão perfeito
Mas então eu posso matar? Posso, eu provavelmente tenho potência para isso. Então
eu posso estuprar? Posso também, se eu tiver potência para tanto. Mas isso será um
necessariamente agir para gerar bons encontros, ou seja, compor com o mundo.
estiver nervoso, eu posso tocar fora do tom e arruinar a música. Eu posso também
tocar isolado de outros instrumentos, e neste caso nada aconteceria. Ou este ato de
vibrar as cordas do meu violino pode ser compor com a harmonia da música que está
sendo tocada pelos meus companheiros. Neste caso, as cordas ressoam entre si, isto
música por sua vez também se alegra (ela efetuou um bom encontro). Quando eu
coloco um fone de ouvido e danço no ritmo, a música se alegra tanto quanto eu.
Tudo isso se dá para além da consciência. Eu chego em casa e digo para um amigo,
“tal música é muito boa“, ainda estou efetuando bons encontros. Quando faço uma
Agir é agir pela potência, agir é sempre ir em direção da liberdade. Potência e Ética
estão muito próximas, assim como Moral e Poder. A afirmação do ser é uma abertura
para o infinito, ele multiplica as relações, aumenta nossa capacidade de afetar e ser
afetado. Nós somos uma composição de partes em relação. Estas partes mantêm uma
um timbre, podemos pensar no corpo como uma caixa de ressonância; certas forças
ético. A potência do meu ser se expressa através destas relações de proporção entre
velocidade e repouso. Tal como a música, tal como a dança, a potência do ser é sua
capacidade de gerar bons encontros e suportar maus encontros sem perder suas
Disse Zaratustra: “para vos revelar inteiramente meu coração, meus amigos: caso
houvesse deuses, como suportaria eu não ser deus? Portanto, não há deuses”
(Nietzsche, Assim Falou Zaratustra). Temos uma resposta lindíssima que podemos
Espinosa pode estruturar, juntamente com sua noção de Deus, toda sua Ética. Este
Bergson e Deleuze.
Se a essência de Deus é a de ser a causa de si, então ele necessariamente existe e
ao mesmo tempo é causa de tudo que existe (ver aqui). Nós não temos essa sorte,
não somos causas de nós mesmos, somos parte de uma cadeia infinita de
acontecimentos que nos trouxeram até aqui. Mas ao menos temos a sorte de existir
em Deus, ser uma parte de sua existência infinita, da potência do ser. Sendo assim,
coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser“ ( Espinosa,
Ética III, prop. 6). Não somos seres infinitos como Deus, mas também temos a
capacidade de ser causa de nós mesmos e de agir para preservar nossos ser. É
importante notar aqui que Ser é no sentido de uma parcela finita da potência infinita de
Deus; o Ser é uma potência ativa de afetar e ser afetado (ver aqui). Temos interesse
em tudo que contribui para manter nossa forma e nossas relações. O Conatus é a
essência atual de um ser. Temos a potência que parte de nós mesmos, de nossa
possuímosconatus, somos conatus, assim como tudo que existe, porque tudo realiza
afetado juntamente com essa mobilidade de suas partes que o constituem sem levá-lo
a se desfazer. Essa característica é que permite que o corpo mude, amplie, os afetos
Não que haja uma finalidade (Espinosa toma esse cuidado), mas simplesmente
porque tudo resiste em si até que uma causa maior a separe. Sendo assim, podemos
dizer que não desejamos aquilo que é bom, mas é bom aquilo que desejamos. Ou
seja, aquilo que nos constitui é desejo, não como desejo a algo exterior, mas sim no
sentido em que Deleuze abordou posteriormente (ver aqui). Desejo e conatus estão
diferentes.
alguma forma é constrangido pelo exterior, Espinosa chama isso de tristeza. Estes
dois afetos são os geradores de todos os outros que sentimos: amor, ódio, inveja,
contentamento, etc., mas é importante notar que eles não são causa de nossos
Muito diferente de Freud, que o afirmou pelo conceito de pulsão de morte, Espinosa
não acredita que trazemos qualquer impulso destrutivo dentro de nós; muito pelo
contrário, somos pura positividade, uma vontade que se afirma plenamente em nome
da vida. Como poderíamos trazer em nós uma pulsão de morte se somos parte da
substância divina? Podemos dizer que nem mesmo Nietzsche entendeu inteiramente
condições para aumentar sua potência pois isso aumenta sua capacidade de existir. O
capacidade de afetar e ser afetado. Foi necessário que Deleuze aparecesse para pôr
também não é inércia! A inércia daria provas de um mundo onde Deus não seria o
produtor de si mesmo como a realidade que vemos. Deus existe, logo, o conatus pode
agimos. E quando agimos, realizamos nossa essência e buscamos por afetos que
que lhe falte. O ser humano não é um vazio a ser preenchido, ele é uma vida que quer
realidade ao seu redor. Deste modo, cabe ao homem selecionar dentre as milhares de
possibilidades aquelas que mais contribuam para perseverar no seu ser. O desejo do
homem é o tempo todo preenchido, mesmo que seja por tristeza, cabe então ele
Sendo assim, bom é tudo que aumenta a força de nosso conatus e mau tudo o que
diminui, as coisas não são boas em si. Mas, pela imaginação, podemos ser
mostraria que na verdade ele diminui. Somos facilmente enganados. Esta é a marca
da servidão, buscar nossa servidão como se fosse nossa liberdade. Mesmo
corpo afetado de maneira tal age de maneira tal, de acordo com o que pode, de
acordo com sua essência. O corpo tem uma história, ele passa por variadas
indivíduo significa, conforme a potência aumenta, ser cada vez menos egoísta, cada
vez mais ligada À sua própria capacidade de existir e agir. Assim, o conatus não
aumenta por eliminar as paixões da equação, mas sim por fazer um bom uso delas.
Uma teoria dos afetos é essencial no projeto ético de Espinosa, ainda mais se
Bom, não é de surpreender, deixamos uma questão tão importante para ser
Sim, uma palavra sobre esta grande figura. Sua intenção é clara: mortificar os afetos,
natureza de seu curso certo, como se o homem fosse um erro da criação divina, uma
abominação da natureza.
Àqueles que veem o homem como algo que deturpa a natureza, só interessa uma
coisa: que ele esteja fraco! O sacerdote ascético maldiz os afetos e imagina que o
vez. Nietzsche também notou que osideias ascéticos eram administrados contra a
vida e não poderiam de forma alguma levar a uma vida melhor. Maldizer o homem só
pode levá-lo a se sentir cada vez mais impotente, afastado do que pode, culpado.
Quem maldiz a natureza humana quer apenas torná-la fraca para subjugá-la!
e maldizem, mas no fundo não passam de ignorantes, eles não sabem o que pode um
afeto. Em todo juiz há uma vontade de poder, não de conhecer. Ou seja, muitos
Não estamos aqui para maldizer a natureza humana, não estamos aqui para
moral que pretenda por fim às paixões deriva de uma impotência de pensar. Sabemos
disso porque é impossível alcançar a imperturbabilidade, a natureza espinosista é
Saímos da retórica dos ressentidos e niilistas para entrar na ciência dos afetos.
afetos.
Ou seja, os afetos são naturais, fazem parte da natureza humana, são modos com os
quais nossa potência varia. O afeto é uma experiência vivida, é uma transição, ele é
uma passagem de um estado para o outro no próprio ser! Todos que escreveram até
agora sobre os afetos não os entenderam realmente porque os trataram como coisas
que não deveria existir e eram erradas. Espinosa quer corrigir este grande erro na
história da filosofia.
Conhecer é conhecer pela causa. O que causa a minha alegria ou a minha tristeza?
Elas têm causas diretas, quais são? A constituição de um corpo que entra em contato
entra em relação com as partículas que me constituem, ela propicia que eu seja
afetado de maneira positiva ou negativa? Cada afeto tem uma natureza determinada e
uma origem (veja aqui), ele afirma, fortalece ou nega, enfraquece a minha capacidade
potência com o mundo, é um devir que ganha mais força, mais mobilidade, mais
natureza.
Da alegria derivam afetos alegres, da tristeza, afetos tristes. Medo, esperança: tristeza
alegria de algo que está certo de acontecer. Amor, ódio: alegria ou tristeza
acompanhados da ideia de uma causa exterior. Simpatia, antipatia: amor ou ódio por
similaridade. Glória, pudor: alegria ou tristeza de si mesmo por afetar o outro com
alegria ou tristeza. Humildade, tristeza por contemplar a sua impotência. Inveja: ódio
da alegria que parece ser causa de outra pessoa. A lista é enorme e se multiplica com
Ou seja, os afetos se desdobram e devem ser estudados (muito mais que as simples
as noções comuns. O que seria mais digno de conhecimento que o homem e suas
grau maior de felicidade. O homem pode moderar suas paixões sem mortificar-se, sem
O homem não está acima da natureza para sentir-se superior ou dominador, sabemos
constante estado de servidão. Mas isso não significa que devemos desistir, somos
uma pequena parcela de potência, mas podemos agir para melhor escolher os
Espinosa, inclusive, na quinta parte da Ética, nos prescreve cinco remédios para os
afetos. Assim nos tornamos donos de nós mesmos, encontramos uma autonomia
ética, sem afastar os afetos, nem dominá-los, mas usando-os em suas medidas
constante variação, para uma maior ou menor perfeição. Essas mudanças constituem
nosso corpo, e indicam caminhos que o homem pode seguir. Nossa vida é um mapa
ensina que uma ética só é possível com e no interior dos afetos, sem negá-los ou
reprimi-los, não foi à toa que o filósofo se propôs então a estudá-los a fundo, ao ponto
de propor uma ciência para melhor entendê-los (veja aqui). Fortalecer os afetos
alegres e enfraquecer os afetos tristes, é aqui onde a Ética de Espinosa se torna uma
ode à alegria.
Mas como sair da servidão e encontrar a liberdade? Como tornar-se causa adequada
desejar e agir. Somos uma parte tão pequena da natureza, ela nos carrega de um lado
Diríamos então que o primeiro passo é entender. Ao invés de maldizer a vida, o corpo,
tolo, o ignorante, acham que é por livre-arbítrio que se deseja o que se deseja, mas
em sua impotência apenas não conseguem vislumbrar as causas de seu desejo, e por
determinada maneira. A razão pede que busquemos o que é útil, que convém com
nossa natureza, o que é bom, para enfim encontrarmos a liberdade. Nossa mente é
que nos convém, aquilo que há em comum entre nós e o mundo, só pode nos tornar
cada vez menos submissos às causas externas. Conhecimento é poder. Mas o que
pode a razão contra as paixões? Se, diz Espinosa, um afeto só pode ser reprimido por
outro afeto, então a razão precisa propor afetos que sejam mais fortes que as paixões
dos afetos são resultado de uma mente internamente disposta e potente o bastante
Tudo se resume em como nossas ações podem se tornar mais fortes que as paixões.
uma dosagem e uma moderação dos afetos pela razão. E só queremos moderar as
paixões com a razão porque ela possui um conhecimento maior das noções comuns e,
potência, alegria, beatitude são, para Espinosa, a mesma coisa. Por isso nada o
irritava mais do que aqueles que exaltavam a ignorância como uma bênção! Só o tolo
Intelecto e extensão são expressão de uma única e mesma substância, Deus. Sendo
assim, a conexão das ideias é a mesma dos corpos. A mente percebe os corpos que o
afetam, a mente é a ideia de um corpo que é afetado, e alguns corpos estão mais em
concordância que outros corpos. Aquilo que existe de comum entre um corpo e outro
distinto entre o que existe de comum (as relações de movimento e repouso, o ritmo, a
vibração) entre um corpo que a afeta e seu próprio corpo. O conhecimento parte do
comum, daquilo que compartilhamos e por ressonância, por afetos de alegria, pode
afetos.
pensamentos, mais adequados. O amor e o ódio, por exemplo, que são afetos com
imaginativas. Não se ama algo ou alguém, se ama uma relação, uma composição.
Quanto mais conhecemos um afeto, mais ele está sob nosso poder.
provêm da razão se tornem mais potentes do que aqueles que são apenas paixões.
Quando não estamos tomados por afetos que são contrários à nós, há um esforço
desimpedido da mente para compreender. Isso porque a mente sempre se esforça por
Uma alegria é sempre mais forte que uma tristeza e um bom encontro é aquele que
faz durar. É um trabalho ininterrupto e incansável o de ser feliz em ato. Por isso, com o
tempo, o conhecimento mais seguro e certo das noções comuns que formamos tende
Um corpo capaz de muitas coisas é igualmente uma mente capaz de pensar muitas
coisas. A mente padece com afetos que a levem a pensar menos ou apenas em um
objeto. Espinosa nos quer fazer entender sobre as várias causas exteriores que
esta potência para o múltiplo, isso significa que precisa igualmente raciocinar sobre o
o fazem agir.
mais útil que um afeto que fixe a mente em apenas uma ideia. Esforço de ampliação,
vontade de superação, como tentáculos que se estendem sobre a vida, para melhor
senti-la. Esses encontros permitem ao homem agir sobre grande quantidade de coisas
ao seu redor.
O corpo é uma potência de ser, uma capacidade de afetar e ser afetado, uma
alma dotada de virtude, força, pode ordenar estes afetos de forma a refrear os
estratégias para estarmos mais preparados para buscar o que é bom e evitar o
Espinosa buscava viver com virtude, virtus: força, potência. Para quem está
chegando agora talvez seja difícil perceber, mas, segundo uma comprida
(veja aqui). O sábio trilha caminhos que o tornam cada vez mais sábio, isso o
mesmo.
mesma moeda, este é o tesouro do sábio: um saber que não é abstrato nem
especulativo, mas sim uma sabedoria prática (como tão bem disse Deleuze),
sala de universidade, pelo homem e pela mulher, pelo novo e pelo velho, e
ele é mais, porque é um esforço por realizar bons encontros, é um esforço de agir e de
passivo, ele é um ser que age e que busca existir em ato, muito mais que apenas
viver, ele quer viver bem, mais que existir, ele quer ser feliz. Isso é a virtude, o que
Espinosa, na quarta parte da ética (veja aqui), nos traz aquilo que a razão nos mostra
ser útil para viver bem, aquilo que o pensamento racional concluiu ser o caminho
correto para os afetos. Há uma reconciliação entre mente e corpo, razão e emoção
passam a ser entendidos como uma única voz da Substância que se diz de várias
maus encontros. Não é fácil ser livre, mas é possível, Espinosa já nos mostrou os
Morte
Epicuro ensina a não temer a morte porque quando ela está lá, nós não estamos (veja
aqui). É aí que encontra-se o sábio, ele se preenche tanto da vida, ele está tão
tomado pela sua potência de existir que simplesmente não há medo da morte. Sábio é
aquele que realiza bons encontros, livre é aquele que age, deseja aquilo que é bom,
aquilo que lhe faz bem. Se estes pensamentos ocupam a mente, não há como ser
diferente, o homem fica tomado pelo prazer que é viver. Integra-se à natureza de tal
forma que, quando morre, é quase como se nada tivesse acontecido, porque na
Coragem
O homem livre não busca a admiração alheia, sua coragem não é para os outros, é
uma virtude que é útil para si. O homem livre não é soberbo e não se arrisca
virtude, o homem livre buscará o bem e evitará o mal, e evitará um bem no presente
que lhe cause um mal maior no futuro. Ele sabe que não tem poder absoluto sobre as
quais nada pode fazer. Sendo assim, o sábio foge com a mesma certeza de que está
fazendo a coisa correta do que se ficasse caso fosse possível. Ele é firme em sua
Gratidão
Os ignorantes vivem ao sabor das paixões que os levam à discórdia, o sábio evita cair
nestas situações. Inveja, ciúmes, raiva, tristeza, ressentimento são paixões tristes que
impedem a gratidão. O sábio se une pelos laços de amizade, não pela retribuição de
favores. O homem livre sabe conduzir e moderar seus afetos, ele entende da arte dos
encontros, por isso não precisa ficar de negócios mesquinhos e oportunismo. Vive em
modo que não poderia ser diferente. Não há porque deixar-se consumir pelo ódio, ele
é um afeto triste. Somente o sábio pode retribuir com amor e generosidade àqueles
Boa-fé
Ser virtuoso não é ser impassível, nem indiferente. O sábio busca agir para ajudar
aqueles que estão ao seu redor. Ora, por que? Porque, como disse Nietzsche,
a virtude é dadivosa. Nada é mais útil ao homem que desejar aos outros homens um
bem que pode ser desfrutado por todos. Sua liberdade é que o faz combater o ódio
com o amor, a razão assim o instruiu, ele vê que os bons encontros são mais
produtivos que os maus encontros. A potência lhe aconselha que não há nada melhor
que conduzir-se pela razão. Ele não pega em armas para resolver seus problemas,
não precisa, Ele não é desdenhoso nem arrogante com ninguém. Virtude é força,
potência, razão, coerência consigo mesmo, para encontrar caminhos que aumentem a
Sociedade
Espinosa nos fala mais de uma vez sobre Ajuda Mútua, por meio dela os homens
todos que os fazem querer viver em grupo, somos seres sociais, e isso é bom e
nos beneficia. Costuma-se dizer que juntos somos menos livres e temos mais
sábio viver em sociedade, ele não quer isolar-se, ele quer viver em concórdia e
em escólio, chega até seu ponto máximo ao encontrar as virtudes do sábio, aquele
mente e corpo, as definições dos afetos, o homem reúne todas as condições de sair
Essa possibilidade repousa na confiança que o filósofo possui na razão, que filtra o
conhecimento confuso e dá novas possibilidades de vida. Deus não mais existe para
punir ou julgar suas criaturas, ele age de acordo com sua necessidade divina, sem
Mau perdem sua conotação moral para adentrar em uma Ética (veja aqui). O Sábio
conjuga potência, bem e útil num mesmo verbo. A potência de conduzir a si mesmo
em direção àquilo que conclui como bem e útil é o que chamaremos a partir de então
de Virtude.
Virtude é sempre uma ação alegre (em oposição às paixões tristes) e, portanto,
sempre guiada pela razão. Não que ela possa eliminar a contingência, isso nenhum
ser finito pode, mas pode ao menos agir sobre ela. Por isso podemos entender a
virtude como a potência que um ser tem de afirmar-se, que está ligado ao que pode,
mudando sua relação com o mundo, passando a existir também como causa
Espinosa mostra como o homem não é livre apesar do mundo, mas como parte
interdependente. Por isso mesmo a virtude pode agir sobre ele, porque o conhece e
Nos esforçamos o máximo possível para ter bons encontros, que aumentem nossa
para formar noções comuns, primeiro mais particulares e, depois, gerais. Tudo é uma
quanto de nós é ativo, capaz de organizar seus encontros e ter alegrias ativas? Das
noções comuns formamos uma alegria ativa e um amor ativo à Natureza, ou Deus.
O sábio, diferentemente do tolo, passa de uma potência menor para uma potência
maior. Com isso, toda proporção de afetos passivos e ativos muda. O sábio pensa
causa adequada. Na virtude, o homem está mais próximo da liberdade, pois sua
potente dos afetos, mas também expressiva, imanente, em ato, porque age no
indivíduo, seu grande objetivo e principal meio de comungar com Deus, fonte de
alegria durável e constante. Estas alegrias ativas são o que Espinosa chama
mundo? Uma habilidade nova, uma língua nova? Como não alegrar-se ao colocar
agir sobre ele é aprender a estar nele com mais convicção e segurança! Espinosa
preza por aqueles momentos em que simplesmente se está lá, e surge uma alegria
sincera por isso, porque percebemos que estamos completamente preenchidos por
O sábio não teme a morte, só teme a morte aquele que, com ela, tem muito a perder.
Uma pequena digressão, é engraçado perceber que para Espinosa, a salvação ainda
é possível, mas ela é totalmente diferente do que prega a tradição cristã e outros
monoteísmos. A mente não dura, porque ela é ideia do corpo, logo ela perece assim
Espinosa conclui: a virtude une forças com o que nos torna mais potentes. A virtude
permite ao corpo desejar o que lhe é próprio e aumenta sua potência. A razão é essa
estado, sentimos que é o próprio divino que fala em nós, nos tornamos partes ativas
da criação. Assim, quando morremos, apenas uma parte mínima de nós perece,
extensivas de nosso corpo deixam de nos constituir e entram em outras relações, mas
que pode o corpo?”. Essa pergunta não foi diretamente formulada pelo filósofo, mas
Esta é o grito de guerra de Espinosa, retornar ao corpo, repensar nossa relação com
dada esta estrutura, o que está em seu poder? Se ele não é passivo, se ele não é
instrumento da alma nem mero objeto negligenciável, então cabe a nós refletir sobre
Esta pergunta precisa ser levada até suas últimas consequências: o que pode
Ou até mesmo o exemplo clássico da mãe que levanta um ônibus para salvar seu
bebê.
Tudo isso mostra que somos máquinas incríveis. Como costumam dizer que usamos
porque simplesmente não sabemos ainda o que pode um corpo. Enquanto você lê, por
exemplo, suas células se dividem, seu coração bate, seu pulmão se enche de ar. Há
uma força em nós que está para muito além da mente consciente, tudo acontece em
Nosso corpo dança um movimento ritmado. Mesmo o corpo parado dança: as veias
não é ouvida porque passamos a vida inteira imersos em sua sinfonia. E talvez esse
seja o problema, nos esquecemos de nós mesmos. Não está na hora de nos
procurarmos?
Este corpo que se esforça para tornar-se mais forte, mais apto à regenerar suas
mundo externo. A pele é limite que separa o homem do mundo que o cerca, mas
vivemos desta troca com o mundo que nos cerca. Quanto mais amplo seus modos de
agir, quanto mais complexo movimentos, maior serão suas afecções. Por ser muito
complexo, o corpo humano é capaz de muitas coisas, por ser composto por várias
partes ele é capaz de ser afetado de muitas formas e agir de muitas formas. O corpo é
A pergunta pode ser ainda mais específica: o que pode o teu corpo? Que sensações
você já experimentou, já que você mexe tanto com seu corpo? Ou será que já
para tentar!
esconder-se do que nos acontece, não virar a cara. Saber experimentar não acontece
quando reapropriar-nos de nós mesmos. Muitos morrem sem jamais saber do que são
capazes, sem jamais se surpreenderem com seu próprio corpo. “Então eu sabia/podia
de si.
Valorizar o corpo significa valorizar a vida que trago em mim, ele não é suporte para
outras coisas, ele é tudo que temos. Podemos defini-lo quantitativamente: ele vale o
quanto pode. Exatamente, ele é definido exclusivamente por sua potência, conatus, e
sempre efetua suas possibilidades ao máximo. Você não consegue, não tem coragem,
não tem capacidade? Não podemos julgar, não podemos culpar, cada um sabe de si,
suas partes entram em relação centrífuga e centrípeta, mas ele mantém suas
de ser uma unidade isolado, muito pelo contrário, ele depende das partes exteriores
para manter-se, há uma intercoporeidade entre suas partes internas e outras partes
externas.
favorável, uma companhia que lhe convém, refeições que lhe façam bem.
A potência é o que define seu corpo, este é constantemente afetado e estes afetos
Por exemplo: a semente cresce na relação com a terra, ela cresce com o sol, ela troca
gases com o ar. Se ela não brota, a culpa não é da semente, nem do solo. A relação é
a base de tudo. Por que a semente não se compõe com a terra? Não sabemos, não
cabe a n[os julgar ou procurar culpados porque certamente é algo que aconteceu na
relação, podemos apenas dizer que esta relação não floresceu. Mas quando dá certo,
a semente passa a ser um canal, uma porta pela qual a terra e água se transformam
em uma majestosa árvore. As relações que a semente estabelece com a terra criam
nossa essência, porque não somos causa dela, somos apenas o resultado de algo que
nos acontece. Ou seja, paixões tristes não dizem nada sobre nossa essência. Já as
paixões alegres dizem algo, falam do que há de comum entre os corpos. Tristes
estamos separados de nossa essência, somos o que não somos; alegres tornamo-nos
As possibilidades são infinitas, ainda que o corpo seja passivo em muitas coisas e
muitas coisas superem sua potência (veja mais aqui). Há apenas dois problemas:
estamos submetidos aos fatores externos, quase sempre morais, que nos coagem e
enfraquecem.
Criar um corpo ético, não moral (ver aqui). Criar um corpo que experimenta e pode
cada vez mais, um corpo que escolhe tudo o que lhe convém sempre da melhor
despreza, tem nojo, medo, vergonha. É possível abrir todo um novo plano de
O corpo visto como geografia, não como história. O corpo que experimenta, não que
interpreta. Isso torna as possibilidades infinitas, cada nova experiência abre uma porta
Só quem está cansado do corpo, ou tem um corpo (ou uma mente) doente, pode
inventar outros mundos ou falar de espíritos (veja aqui). Para se esquecer do corpo,
ou menosprezá-lo, muitos se fingiram de filósofos e compactuaram para denegri-
lo. Será então que a Ética de Espinosa não é toda uma maneira nova de pensar o
que volta a experienciar o real é aquele também que pode libertar-se! Muitos filósofos
palavra sidero, que significa “relativo aos astros”, ou também “conjunto de estrelas”
antiguidade eram o elo de ligação entre os homens e os deuses então desejar significa
ficar à deriva, à mercê, nas rodas da fortuna, deixar de guiar-se pelas mensagens
divinas.
Apesar da bela origem, suas repercussões em nosso mundo são as mais nocivas.
Desejo como falta, doença, incômodo, defeito, carência, vazio que busca
definição do conceito de desejo, pode ser considerada uma das mais cruéis heranças
Por isso a importância de redefinir este conceito. O desejo como falta é uma
mistificação nociva. Espinosa afirma que para nos tornarmos humanos temos que
afirmar nossa natureza desejante. Mas como? Isso com certeza não significa ser
inconsequente, os ignorantes tem uma visão errada do que significa desejar e dar
vazão ao desejo, eles pensam que significa apenas não ter medidas. Mas este desejo
riquezas. Esta forma de desejar não é nada mais que a expressão da impotência do
homem. Este desejo de ideais vira desejo de futuro, um futuro que nunca chega. E
Nos acostumamos a ver o mundo a partir da perspectiva da falta, parece mais fácil ao
impotente negar ao invés de afirmar. Para Espinosa, o desejo é mais que uma ideia, é
uma força. O desejo é uma força que cria. Então a natureza, criando-se e
nós. Por isso o homem deve apropriar-se do desejo, porque, no sentido espinosano,
ele é revolucionário. É através dele que a mudança efetiva do real acontece, é mais
que uma simples conservação, é uma força de expansão que ocorre impregnando a
Esta é a grande lição de Espinosa: desejo é o esforço, a inclinação, por algo que
julgamos útil para nossa conservação, ele é determinado com o fim de preservar o
corpo e a mente. Não agimos por vontade, mas sim pela necessidade do desejo! Ele é
modificado pelos encontros que ele faz. Ao se jogar no mundo, um ser não pode
se debruça sobre vários objetos, de acordo com a tristeza ou alegria que causam.
Nessa busca pelo que é melhor, é impossível que a vida não nos
preencha. O conatus é nossa essência que se atualiza, ele está sempre sendo
e assim é sempre a expressão máxima de nossa potência atual. Nada falta ao desejo
Vemos como Espinosa segue no sentido oposto: desejar não é estar doente, mas é a
própria definição de saúde. O filósofo holandês também nega esta oposição entre a
razão e a emoção. Para ele não pode haver concorrência entre razão e emoção, um
parar de desejar, pelo contrário, ele sempre se dá no e pelo desejo. A razão não nos
retira do mundo nem nega o corpo, é o oposto, o toma como objeto de conhecimento
Espinosa nos mostra, na Ética, como tomamos parte de nossa produção desejante:
1. Tristezas, vindas de fora, impõem desejos que não são nossos, e nos
pensar e de agir;
3. A Alegria ativa explica-se por si mesma, porque entende a correta conexão das
coisas com o corpo, trata-se de uma ideia adequada, que se explica através da
livres; se ele for determinado de fora, então nossa ação não é livre. Isso nos leva a
pensar: quantos desejos não são nossos! Quantas vezes desejamos de maneira
impotente, buscando aquilo que não queremos por termos ideias confusas e estarmos
impotentes.
O desejo seleciona o melhor que pode estas paixões que aumentam sua potência, até
chegar ao ponto onde ele se torna sua própria causa, liga-se a objetos e pessoas que
quase sempre geram bons encontros. Esta é a virtude: potência de desejar o que lhe é
Esta pergunta é muito importante, porque se não sabemos o que pode o corpo,
também não sabemos o que deseja o corpo! Apenas o desejo potente é capaz de
do conatus.
A grande beleza desta ideia é que o desejo ao se tornar mais forte torna-se também
mais inteligente. Ele pode agir de maneira mais adequada. A razão não pode oferecer
objetos ao desejo sem que este esteja disposto, forte, potente, para aceitá-los e se
deixar afetar por eles. Quando isso torna-se possível, razão e desejo fundem-se,
Espinosa nos ensina o caminho para uma razão corporal, afetiva, virtuosa, fruto das
noções comuns entre o corpo e o mundo. Claro que com isso não suprimimos as
paixões, mas elas passam a ser uma parte menor de nós mesmos, não deixamos
nosso desejo flutuar ao acaso, nos tornamos parte ativa dos encontros e da vida.
Para concluir: o desejo não tem objeto porque ele é nossa essência, zona múltipla que
quanto mais se desdobra, mais dobras cria em si mesmo, e mais amplia sua
capacidade de afetar e ser afetado. A partir daí podemos dizer que o desejo busca sua
identidade consigo mesmo, e sua auto-expansão. Seu fim não é exterior, o fim do
desejo é ele mesmo. Um verbo intransitivo, sem objeto, que busca não apenas a sua
Houve uma época em que espinosismo era sinônimo de ateísmo, mas em vão
acusaremos Espinosa de ateu (veja aqui). Sua principal obra, Ética, dedica toda a
primeira parte na definição do que é Deus e qual sua essência. Contudo, a natureza
divina para Espinosa é muito particular e difere absolutamente das definições judaico-
Deus não está separado do mundo como um grande legislador. Não existe uma
seu destino final. Até hoje não conseguimos definir a natureza de Deus porque sempre
também os filósofos. Não surpreende pois o objetivo dos teólogos sempre foi a
corporais.
entender a essência das coisas. Por uma visão utilitarista, somos levados a crer que a
natureza, e nós mesmos, temos um objetivo a ser cumprido, e concluímos que fomos
criados com um destino a se cumprir. Sendo assim, achamos que um ser que nos
criou à sua imagem e semelhança tem certo desígnios para nós. Mas Espinosa
argumenta que se fosse dada a um triângulo a chance de definir Deus, este o faria
dizendo que Ele possui três lados e a soma de seus ângulos internos resultam em 180
graus. E assim o homem, por ignorar as causas de seu conhecimento, o faz: Deus vê
tudo, ouve tudo, sabe tudo, pode tudo e nos deu mandamentos que não podem ser
quebrados.
Isto está de todo errado. Deus é o mundo, Deus é a Natureza. São dois nomes para
uma única e mesma coisa. É preciso conhecer a natureza, o máximo que pudermos,
se quisermos conhecer Deus. Ele não é exterior, ele é a causa interior de tudo que
ou seja, agindo em nós. Deus não gera o mundo por livre vontade, ele é o mundo por
pura necessidade de sua essência. “Deus não produz porque quer, mas porque é”
infinito e nada mais. O ser, a existência, é puro ato de sua afirmação. O infinito, em
todas as suas modalidades é o que constitui sua essência. A causa incausada, origem
de si mesmo. Deus é o único que existe em virtude de seu próprio ser, é o único que
existe necessariamente numa relação intrínseca com sua essência. Tudo devém de
Deus, tudo está em Deus, nós também. Ele não criou o mundo, ele existe por sua
coisas. Como a substância é infinitamente infinita, isso significa ela possui infinitos
atributos, que em si mesmo são infinitos. Os atributos são expressões, não apenas
uma coisa passiva, muito pelo contrário, o atributo é atribuidor; como verbos, a
Como Deus é infinito, nada pode existir fora dele. Portanto fazemos parte de sua
natureza. Somos modos da substância divina, limitados por extensão e tempo. Nos
atributos encontramos os modos, que são uma parcela dos atributos, uma modificação
deste. Um modo depende do seu atributo correspondente para existir. Uma pedra
depende da pedra para existir. Nós também somos modos, mas em uma
complexidade muito maior que a pedra. A essência é um grau de potência, ela
também é atuante, ou seja, produz efeitos decorrentes de sua própria essência. Assim
como uma ponte que se sustenta por si mesma, achamos que existimos por conta
própria; mas Deus é o conjunto de leis e a própria matéria que nos sustenta.
finitude. Não como marionetes que são conduzidos por cordas divinas ligadas ao céu,
isso seria uma visão simplista. Um ‘mestre de marionetes’ dirige fantoches de fora e é
assim a ‘causa exterior’. Jostein Gaarder, no Mundo de Sofia, nos compara como
“dedos de Deus”, ou seja, parte ativa dele, no cerne do finito e há uma continuidade do
finito no infinito.
Nossos atos individuais não são nada mais que a expressão em ato da potência da
é ingênua: Deus não pode escolher a seu bel prazer entre esta ou aquela disposição,
ele age necessariamente e de apenas uma maneira que reflete sua perfeição.
mundo e a nós mesmos. Somos perfeitos porque um ser sumamente perfeito faria a si
não poderia ser de outro modo. Não falta nada ao mundo, nem ele está buscando
perfeição. Isso vale para nós: não há pecados nem imperfeições, bem nem mal,
pecado nem mérito; cabe então, dentro de nossa natureza finita, encontrar outras
Espinosa quer entender Deus, sua definição real, para dele poder concluir o que se
exprime diretamente dele porque tudo decorre de sua essência. Com sua definição de
Deus, Espinosa conquista um objetivo de grande relevância para a filosofia, pôr fim ao
afirmação ontológica.
Vivendo de acordo com a potência em nós, agimos de acordo com as leis de Deus.
Somos parte da causa ativa de uma entidade divina, esta afirmação é Seu ato criador.
Daí vê-se a incoerência de acusar Espinosa de ateísmo (entre outras coisas). Seu
panteísmo expande Deus a todos os cantos. Sua perfeição pode ser encontrada em
suas ideias. Apenas uma visão ignorante da correta natureza de Deus descartaria tal
era maior que as leis de sua sinagoga. Mas isso não é de surpreender, seu
pensamento ia de encontro a tudo que se passava em sua época, suas ideias viram
conhecimento, o medo da morte, e funciona mais como uma arma política que como
uma porta para verdades ocultas. Deus não é um velho barbudo, nem nada com
Antes de Espinosa, podemos citar dois filósofos que julgaram responder à questão
dando preferência para a alma que devia guiar o corpo. Aristóteles definia o corpo
esse pensamento. A alma como guia do corpo, sua mestra, condutora. O corpo como
“morada da alma”, algo perecível, até mesmo sujo, descartável, pecador, inferior.
Desta forma a consciência estava salva, a religião cristã também. Ainda hoje estas
Para Espinosa, isso não passa de um pretexto para julgar as paixões e o corpo como
coisas que tiram a natureza de seu curso natural, desequilibrando-a (veja aqui). Não,
única e mesma coisa. Mente e corpo são um só: modificações de uma mesma
substância que se mostra ora como mental, ora como material. A filosofia de Espinosa
Espinosa pretende responder à pergunta “o que pode o corpo?” (veja aqui), mas nós
aqui nos perguntamos: o que pode a mente? Como é possível e para que serve a
aparentemente separado dela através da pele) e procura manter sua forma própria.
Cada corpo é singular e define sua causa interna de existência, rompendo com causas
exteriores ou finalismos de qualquer tipo. A mente consciente também é conatus,
Vemos então que a alma, ou mente, não está acima do corpo, como previra Platão e
cristãos; mas sim é parte e busca existir, a mente é a potência de pensar de um corpo
que tem uma potência de agir. Cada um expressando um atributo determinado. Esta
A potência de Deus é igual à sua potência de pensar. O mesmo pode ser dito de nós,
Todas as informações que a mente recebe vêm dos estímulos corporais. Tudo que a
mente sabe, ela sabe através de um corpo que é afetado, que existe em ato. Ou seja,
mente é ideia do corpo, o pensamento só acontece se estiver por força dos corpos que
nos afetam. Não poderíamos ser, como gostariam alguns, cabeças flutuantes, almas
A mente conhece seu corpo através das ideias das afecções dele. E tem ao mesmo
tempo em que tem ideias deste corpo, tem simultaneamente ideias destas ideias. Mas
estas ideias envolvem a natureza do nosso corpo e do corpo externo. Por isso não
podemos conhecer adequadamente os corpos exteriores, suas essências, porque
sabemos apenas dos efeitos que estes corpos nos causam. O conhecimento que
seu corpo, ou seja, o conhecimento dos objetos se mistura com o estado de nosso
próprio corpo.
Conforme a Ética de Espinosa se desenvolve, ele nos indica o modo mais adequado
confusas para entrar nas ideias que exprimam o máximo possível nossa essência. O
corpos que nos cercam, e com isso por fim à ignorância, à miséria humana, sua
encontros que convém e que nos preenchem de alegria. A união mente corpo se torna
clara quando o corpo não é mais afetado de tristeza. Quanto mais triste estamos, pior
nossa capacidade de pensar e pior nossa capacidade de agir. Podemos concluir que a
mente pode pensar tanto quanto o corpo pode agir, um vale tanto quanto o outro.
Espinosa não foi o primeiro a tratar da servidão humana, nem mesmo da servidão
Espinosa é o primeiro a fazer uma ciência dos afetos para compreender melhor a
decorrente da força dos afetos. O homem submetido aos afetos é aquele impotente
para regulá-los, ele está ao sabor do vento, incapaz de dosar, ordenar os afetos aos
impotência para moderar os afetos. Eles, como já vimos, não são bons nem ruins, são
dos encontros que o ser humano faz, trocas diretas de potência: divisão, oposição,
O homem submetido à força dos afetos, “vê o que é melhor e aprova, mas segue
fazendo o pior” (E IV, P17, Esc). Ou seja, os afetos são mais fortes que o
imaginativo em face das forças que nos ultrapassam. Por isso, servidão é literalmente
estar possuído pela exterioridade, ver o melhor mas não conseguir fazê-lo.
A razão pela qual somos submetidos à servidão resulta de sermos uma parte finita da
substância infinita. Sendo assim, é impossível que não sejamos afetados pelo mundo
à nossa volta, a realidade nos atravessa constantemente e é impossível que, dada sua
infinita potência, ela não nos submeta. Sim, somos ínfimos, mas ainda somos uma
Deus.
Então uma condição está clara: o mundo é muito superior a nós e pode nos arrastar
para qualquer lado sem que possamos resistir. Perdemos nossa autonomia, que, por
mais paradoxal que seja, é estar no meio das relações que nos afetam positivamente,
para tornarmo-nos heterônomos, submetidos aos encontros do acaso, que podem ser
bons ou ruins. Esta relação de poder são prova de nossos limites, deixam clara nossa
como entende que seria mais útil, que lhe faria bem, vê-se coagido.
vezes sofre a violência dos afetos e dos encontros que indesejavelmente faz.
Para escapar das garras da fortuna somos capazes de nos agarrar a qualquer coisa.
superiores que nos criaram devem estar muito bravos com a gente. Vivemos confusos,
sendo levados a acreditar nas coisas mais absurdas como uma maneira de encontrar
Mas se Deus é a natureza, então deixar na mão de Deus significa simplesmente estar
ao acaso dos encontros, ser passivo com relação ao devir. Isto é um prato cheio para
erro dos homens tristes, ao “entregarem nas mãos de Deus”, eles nada mais fazem
que “lutar por sua servidão como se fosse sua liberdade“. A servidão humana é a
privação da parte que lhe cabe da potência infinita do ser, é deixar de agir para ser
agido. Servidão é o estado de entrega total, é ser possuído pelo nosso entorno, sem a
O servo tem sua subjetividade dilacerada pelas forças exteriores (uma clivagem?). Ele
experimenta uma fraqueza sem igual, que é imaginada como isolamento. O exterior é
visto como algo perigoso, ameaçador. E não é pra menos, o homem impotente
realmente está à mercê de forças que desconhece e por isso teme. Resultado: nos
Chame de Deus, Fortuna, ou mundo, nem tudo que nele acontece nos convém. Sendo
assim, somos convidados por Espinosa a nos depararmos com nossa fragilidade e
tomar uma atitude com relação a ela. O que nos é bom? O que aumenta nossa
potência de agir? O que convém com nossa natureza? O que é útil para nós? Como
podemos tomar parte na realidade? Se nada é bom em si, mas apenas em relação a
alguma coisa, então precisamos descobrir o que podemos, aquilo que somos capazes,
que convém com nossa essência. Aquilo que é bom é aquilo que nos é útil para
aumentar nossa potência de agir e também nossa capacidade de ser afetado (veja
Mas se o mundo é este mar de forças, então, inevitavelmente seremos mastigado pelo
acaso, engolidos pela fortuna, digeridos pelo caos, não? Não, aqui o jogo se inverte.
Deus não age por vontade, mas por necessidade de sua própria essência. O mundo é
ordenado e necessário, mas nós, partes ínfimas, muitas vezes não temos a
ignorância daquilo que nos é bom e mau. A parte quatro da Ética é a conclusão da
Aqui começa a luta de Espinosa contra as paixões tristes. Uma verdadeira guerra
onde cada superfície do corpo é um campo de batalha (veja aqui). Para livrar-se da
servidão é imperativo que o homem deixe de ser invadido pelas paixões tristes que o
potência de agir é baixa, sua perfeição foi diminuída ao mínimo. Ele efetua apenas
outras vidas, outros lugares. A imaginação é a janela da cadeia, com barras de ferro
para que não fuja. Mas também é lá que se encontra a possibilidade de fuga. Que ele
imagine uma felicidade mínima e realize um pequeno bom encontro que seja, estas
Nos alimentamos da felicidade, ela retroalimenta nosso desejo, nossa potência, nosso
conhecer. A virtude é a capacidade de efetuar cada vez mais bons encontros. Por isso
dizemos que a Ética é um livro que leva diretamente à prática. A plena realização de
nossa potência não pode ser relegada ao destino das estrelas, muito pelo contrário,
cabe a nós tomar as rédeas de nossa vida e atuar para que ela aconteça segundo
compreender o que é bom e mau para nós, não em si, mas nas possibilidades de
encontros. A razão não domina o corpo, não controla o corpo, ela guia, conduz,
caminhos potentes.
pensar e compreender melhor o mundo. A análise dos afetos oferece ao corpo novos
valores, novos modos de vida, não mais submetidos às forças exteriores, mas criados
pois permite ao homem experimentar cada vez mais bons encontros. A mente se
próprio campo da fortuna. Sair da causa parcial, onde somos causa inadequada de
pensamento, as relações necessárias que nos convêm. Queremos ter parte, não
apenas ser parte passiva dos acontecimentos que nos rodeiam. A inversão é total
A razão, a potência, a virtude nos mostram os caminhos para sair do medo da fortuna
e atingir o amor intelectual à necessidade; deixar de ser parte para finalmente tomar
Espinosa faz, ao longo da Ética, o caminho que vai de Deus, que é a substância
quais somos afetados (veja aqui). E por último, faz o caminho que leva o homem da
servidão à liberdade. Na verdade, para Espinosa, a filosofia tem este único propósito
(veja aqui). Toda a sua questão é investigar em que condições pode haver liberdade.
Se foi necessário percorrer um caminho tão comprido, é porque nada é tão raro
Antes, foi necessário definir o conceito de servidão. Toda vez que o homem não age
por sua natureza, ele está sendo conduzido por forças de fora. É impossível que o
homem não seja afetado e muitas vezes levado por estas forças que o contrariam; isto
acontece porque ele é apenas uma parte reduzida do mundo, com uma potência
limitada em face de forças externas. Por isso, tal como Ovídio diz, o homem “vê o
melhor, mas segue fazendo o pior“. Sua fraqueza de agir reflete sua fraqueza de
pensar, este homem é cheio de superstições e conhecimentos imaginativos. A
liberdade vem quando a razão começa a pesar os afetos e aprende a refrear, medir e
moderar; diferente dos impotente que, em sua ilusão, acha necessário extinguir ou
Espinosa nunca fala contra a felicidade ou a tristeza, contra o amor ou o ódio, eles
compreender, o homem livre é a causa ativa de seus afetos, eles provêm de sua
natureza. Por isso o sábio é mais potente que o ignorante, porque através de uma
análise de sua capacidade atual de afetar e ser afetado, ele aprendeu interagir com o
que o conhecimento é o mais potente dos afetos, porque a mente tem a força de
afirmar e negar certas ideias, e este conhecimento é o caminho mais curto para a
liberdade.
entramos na parte comum, onde temos parte na existência. É aqui que a ética nasce,
em uma rede que se tece nas relações de modo que todos cresçam mutuamente e
adequadamente com ele. Não queremos ser passivos com relação aos nosso
encontros alegres, isso pode até ser bom, mas é pouco, a potência é potência de agir,
que Espinosa nos dá uma terapia para os afetos. A força maior da vida é o
conhecimento, logo nos tornamos contrários uns aos outros. Lembrando que a razão
não comanda! Ela não pode ser colocada no lugar de um general em nossa cabeça
A força que tem um indivíduo é sua capacidade de compreender, com a força da razão
para realizar bons encontros e ser causa de sua própria potência de existir. Quanto
mais efetuamos bons encontros, mais nossa potência aumenta. E, finalmente, quanto
mais cresce nosso conatus, mais nos tornamos capazes de afetar e ser
afetados. Liberdade é ter um corpo cada vez mais disposto a agir de múltiplas
maneiras e ser afetado pelo mundo de múltiplas maneiras; assim, ele se torna
vários, cada vez mais ativo, cada vez mais artista de si mesmo. O homem é apenas
uma parte ínfima da potência infinita de Deus, mas quanto mais ele aumenta sua
É impossível o homem ser totalmente livre, ele sempre estará submetido ao acaso dos
encontros. Apenas Deus é absolutamente livre, porque nada o constrange, ele tem
constrangimento, é totalmente livre somente aquele que não é constrangido por nada
no ato de criar. Mas nós também temos uma parte na essência divina, ela se define
por nossa potência atual, que varia de acordo com os encontros e esta abertura tende
ao infinito.
Nossa liberdade está em fazer coincidir a atualização da potência de nosso ser com
nossa a natureza de nossa essência. Quando ser, fazer e desejar se tornam a mesma
produzir a nós mesmos. Constituir-se o mais plenamente possível segundo sua própria
existir e agir.
Podemos facilmente ver como as ideias de Espinosa são revolucionárias! Com sua
Ética, ele se contrapõe a Descartes, não é possível um domínio completo dos afetos;
interna, que é a essência do ser. Os homens em geral acham que são livres porque
escolhem entre possíveis, mas desconhecem as causas pelas quais são levados a
escolher, e por isso lutam por sua servidão como se fosse por sua liberdade.
torna livre agindo no mundo segundo sua própria natureza, que não é outra coisa
senão parte da natureza divina, parte da potência do ser. Espinosa erige uma
mergulhados nesta substância, somos parte dela. Dos infinitos atributos de Deus nós
razão e emoção.
Quanto mais nos conhecemos e descobrimos como a natureza à nossa volta interage
conosco, mais podemos escolher por aquilo que aumenta a nossa potência, mais
encontrar o que é útil nas relações necessárias. Desta forma, entendendo a natureza
divina, e agindo segundo nossa essência, nos tornamos cada vez mais livres.
Estas novas formas de agir e de pensar se provam muito melhores que as anteriores.
uma transcendência, nós próprios somos parte da eternidade. Deus não é mais um ser
que muda constantemente de ânimo, que pune e cria um inferno reservado para
aqueles que não o obedecem. Deus não é mais um tirano cruel e impiedoso. Deus
conhecimento. Não há mais uma causa final, um objetivo divino. A ignorância, mãe do
medo e da esperança, se torna cada vez mais fraca, isto porque encontramos os
motivos de nossas ações em uma causa segura e certa: nós mesmos. Fazemos ao
na terra, não porque extinguimos os afetos, mas exatamente pelo contrário, porque
finalmente aprendemos a lidar com eles de modo a gerar sempre e cada vez mais
Somos o modo mais potente dentro da natureza, porque somos incrivelmente capazes
de inumeráveis afetos e criação de modos novos de agir. Não há ninguém mais livre
nem mais ativo que o homem, e dentre eles, não há ninguém mais livre nem mais feliz
com sua própria existência que o filósofo, o sábio. O homem livre sabe melhor do que
ninguém que, tal como tantas religiões afirmam, ele e Deus são um só.