GASSNER, John - Mestres Do Teatro I
GASSNER, John - Mestres Do Teatro I
GASSNER, John - Mestres Do Teatro I
estudos
estudos
~\\I/~
~ ~ EDITORA PERSPECTIVA
~I\\~
- '
~.' cL::::--{:-r ~ =J~
I I I ~ I ' .." 1 1 ~~ I ,~ , •
Jt ~ L J II ,I ,l: l .'
MESTRES DO TEATRO I
~\I~~
-
~ .i EDITORA PERSPECTIVA .
. ~I\~
Título do original inglês :
Masters of the drama
2!edição
Nota introdutória.. . . IX
Prefácio à Terceira Edição Ampliada . XV
Prefácio à Segunda Edição . XVII
Prefácio à Primeira Edição . XIX
1. O primeiro dramaturgo 3
John Gassner
.Outubro de 1951
(*) .A ser inc1uido no .II volume (N. dos T.)
Prefácio à Segunda Edição
John Gassner
Junho de 1945
Prefácio à Primeira Edicão #
1. Na Fonte
2. O Dramaturgo-Sacerdote
_J:~rimitivas-formaLde
__dr~1L.!LQ....J:1ramªJgrgo se. tornou um
co~~~aJo. Ademais, a esta altura nos deparamos com um
<'Indivíduo que transcende 'qualquer profissão isolada. Encon-
trames um sacerdote, um cientista, um filósofo e um organi-
zador social - um~~ecialista multíplice agregando em .si
diversas fw:).~ões que posierTormente-se--fíieram especialida-
des. .Em outras palavras, ~lllaturgQé antes uma per-
1i...0nalidaC!-e.~bran~nte que um carpinteiro do palco. Nada há
de--.num:ude em sua profissão, e um Ésquilo ou um Ibsen
simplesmente continuaram essa nobre tradição quando abar-
caram todo um mundo.
_0é....-dramaturgo_l'rÍJ:!li.!ivo f0fll.l1.1l,a~_.fºIldllZ.-1L pªgtomi m a
desde que àforma e execução 'déssa representação exigem um
intelecto diretor. TambénLse. torna,;-é-verdad.l;;,_inventivo do
ponto de Yista mecânico, criando os primeiros --"aclereçõs"
tBili:ãís; quandõêm:pregã----em1igídos de toufo"epedaç6if'de
galho em ziguezaêleparãiD:U1àtotrovao e o-!~lâ1filragn-qlle
surgemdurante a estªçã2,··chuvosa. Contudo,-não é 1iD:iSím-
ples mecânico, mas um sacerdoteque empresta ao ato seu
conteúdo ou sentido e ensina ao homem os primeiros obje-
tivos da oração. Seus ritos, através dos quais, segundo se
afirma, ele atrela a providência, a natureza ou Deus ao serviço
da humanidade, são simplesmente uma aplicação literal do
primitivo lema cristão, segundo o qual trabalhar é orar -
laborare est orare. Pot exemplo, é significativo que a palavra
para dançar e trabalhar seja a mesma em uma língua ame-
ríndia, que quando um ancião da tribo dos Tarahumaras no
México censura um .jovem por não participar da dança,' na
realidade diga o seguinte: "Por que é que você não entra lá
e trabalha?" 4 Além disso, esse sacerdote é um poeta em
virtude da imaginação que o capacita a animar a natureza
ou personificar suas forças como espíritos; e ele se torna
simultaneamente um cientista, desde que é um fazedor de
milagres, um feiticeiro que exorcisma doenças (antecipando
assim o poder curativo ou purgativo do drama através de suas
práticas médicas literais) e um proponente da idéia de que a
humanidade pode obter o domínio da natureza. De início
pode não monopolizar esses atributos, mas por certo os exerce
mais conspícua e lucidamente que outros membros de sua
comunidade.
Para finalizar, ele é também um filósofo social, pois é
quem organiza a representação como uma atividade comuni-
tária e amplia a realidade da comuna primitiva. Sob sua lide-
rança a natureza não está sendo dominada para o indivíduo,
mas para a tribo e o teatro primitivo que serve a esse pro-
pósito é uma comunhão. Outros ritos diretamente relacionados
com a organização social primitiva, desenvolvem-se da mesma
forma sob sua tutela - a iniciação dos jovens na tribo e as
(4) Ibid., pâgs, 30-31.
o PRIMEIRO DRAMATURGO 7
3. O Dramaturgo e o Fantasma
Mas agora ela deseja por um fim ao mal: "Basta, o que foi
feito foi feito". Finalmente governa a cidade com seu amante
e promete que ambos velarão para que tudo corra bem.
Assim se encerra essa tragédia incandescente na qual,
a partir do convencional tema do mal hereditário, Ésquilo
criou um drama vivo, tridimensional. A tragédia foi precipi-
tada pela vontade dos protagonistas. Poderão falar da Até
'doméstica, mas a culpa pela arrogância, brutalidade e paixões
ilícitas é inteiramente sua. Além disso, não estamos aqui às
voltas com uma vilania convencional, simplista e ilimitada,
ainda que Clitemnestra trace seus planos cuidadosamente,
nunca se afaste deles por um só momento e não mostre
qualquer sinal de arrependimento até o fim. A intenção ori-
ginal de Egisto pode ter sido vingar o pai seduzindo a esposa
do primo, mas parece estar verdadeiramente apaixonado por
ela. Também Clitemnestra é culpada, mas Agamemnon deu-
lhe amplos motivos para buscar vingança quando procedeu
ao gratuito sacrifício de sua filha. A essa intensidade de paixão
devem ser acrescidos os gloriosos coros e as tiradas rapsódicas
de Cassandra. A peça transborda de piedade pelo gênero
humano e é transfigurada pela fulgurante certeza de que o
sofrimento tem um propósito. O visionário em Ésquilo antevê
o triunfo da razão justa e da boa vontade no mundo san-
guinário: "Gota a gota, a dor tomba e abre nossos corações
para a sabedoria e a graça de Deus".
Pequena parte dessa sabedoria atinge Clitemnestra nos
anos seguintes. Mas as conseqüências de seu feito deverão.
obscurecer seus últimos dias, e a segunda parte' da trilogia,
As Portadoras de Libações ou As Coéforas, é composta por
uma peça de vingança. Mandado embora na infância, o filho
de Agamemnon, Orestes, retorna muitos anos mais tarde aca-
lentando pensamentos vindicativos. Encontra-se em curioso
dilema: em obediência à primitiva lei da vendeta tal como é
exprimida pelo oráculo de Apolo, deve matar os assassinos
de seu pai, mas a conseqüência certa desse ato será torná-lo
culpado de matricídio. Recebe algum auxílio de sua irmã,
(9) Transposto literalmente para o português da tradução inglesa' de
Edith Hamilton.
ÉSQUILO - "O PAI DA TRAGÉDIA" 43
A acusação encontra
em troca a acusação. Não sei
quem aqui pode manter o equilíbrio.
O assassino é assassinado.
Mata - tua vida está perdida 10.
buição. Nessa árdua batalha por uma nova visão e uma nova
ética, é a sophia ou sabedoria grega que tem a última palavra.
Dois anos após a promulgação desse credo, Ésquilo es-
tava morto. Entretanto, a essa altura, já tinha notáveis su-
cessores. Sófocles e Eurípides estavam polindo e ampliando
sua arte, expressando novos pontos de vista e empregando
técnicas algo modificadas. O trabalho de pioneiro de Ésquilo
estava encerrado. Transformara o ritual em drama, trouxera
a personalidade humana para o teatro e incluíra a visão espi-
ritual no drama. Dera início à magnificente marcha da tra-
gédia. Agora a procissão podia continuar sem ele *,
I, Nota S"máriasobre o Teatro Grego: No século V, o Teatro de Dia-
nisos consistia num auditório semicircular ou em forma de ferradura (teatron),
uma área circular de danças (orcltestra) para o coro, e, atrás dela, um cenário
permanente - a construção cêníca (skene) , na qual se abriam três portas,
Este pano de fundo podia ser alterado por diversos eng mhos - talvez por
painéis móveis de madeira e, mais tarde, também por prisma! giratórios (periakti)
com diferentes cenas pintadas nos três lados.: Imediatamente em frente a essa
estrutura· ficava uma plataforma baixa (proskenion ou logeion) onde se desen-
volvia grande parte da ação, embora os atares pudessem descer para a orchesira
ou aparecer .no teta da skene, Esta também era dotada de bastidores (paraskenia)
que flanqueavam o proskeniow, de forma que a plataforma onde se dava are·
presentação era enquadrada por três lados pela fachada ou construção cênica,
Os paraskenia ou bastidores podiam representar duas construções adicionais, e
o ator, ao atravessar o palco partindo de um bastidor em direção ao outro, pro-
vavelmente poderia criar a ilusão de viajar de uma localidade para outra.
II. Nota S"mária sobre a Estrutura da Traçédia Grega: A tragédia tinha
as seguintes divisões formais: 1. Prólogo, um monólogo ou diálogo introdutório.
2. Parodos, a entrada do coro e sua primeira recitação. 3. O Episódio, uma
cena dramática representada pelos atares, similar às nossas cenas ou atas (o
texto era escrito no trímetro iâmbico, cujo correspondente mais próximo em
português seria o verso branco j no entanto, as dificuldades de uma reprodução
fiel do estilo e sons gregos para o português faz com que a maio tia dos tradu-
tores opte pela prosa). 4. Stasímon, ode coral escrita em complexos metros
(sem rima), seguida por outro episódio ou cena. Haveria 4 ou 5 episódios
separados por odes corais, e a tragédia fechava-se invariavelmente com um
coral final denominado exodos, Ocasionalmente o stasimon. seria substituído
por uma canção (um commus) cantado por um atar isolado ou acompanhado
pelo coro.
(*) Seus dois filhos também escreveram tragédias, tal como o fez seu
sobrinho Filocles, para quem Sófocles perdeu o primeiro prêmio, embora Sófocles
competisse com o Édipo Rei justamente nesse concurso.
3. Sófocles, ·0 Sereno
1. o Dramaturgo Feliz
"Abençoado foi Sófoc1es,feliz em sua longa vida, sua
fortuna, seu talento; feliz por ter escrito um tal número de
belas tragédias e por haver dado um final sereno a urna vida
que desconheceu o infortúnio". Este quadro esboçado pelo
poeta cómico Frínico tem pouco a ver com o guerreiro de
Maratona, exilado voluntário e profeta apaixonado que passou
sua tocha a Sófocles. "Sófocles é tão gentil aqui (no Mundo
Subterrâneo) quanto o foi em vida", escreveu Aristófanes,
que em todos os demais casos teria preferido abandonar a
pena a perder a oportunidade de urna pilhéria. Também este
retrato mostra pouca semelhança com Ésquilo, cuja comba-
tividade é celebrada na mesma comédia que rende tributo à
doçura de temperamento de seu sucessor.
Sófocles, nascido em 495, trinta anos após seu prede-
cessor, na "branca Colona", mais ou menos urna milha a
noroeste de Atenas, desfrutou das comodidades de filho de
um rico mercador e das vantagens de um belo corpo, bem
corno dos frutos de urna das mais civilizadas épocas da his-
tória mundial. Abrigado numa aldeia renomada por seu en-
canto e cuidadosamente treinado em música pelo famoso
musicista Lampros, cresceu na beleza do corpo e da alma.
Era tão extraordinário por sua graça física que aos dezesseis
anos foi escolhido para liderar o coro de meninos que cele-
brou a vitória de Salamina. Após doze anos mais dispendidos
no estudo e no treinamento, Sófocles estava pronto para com-
petir com os dramaturgos já em exercício, e não foi outro
senão Ésquilo quem perdeu para ele o primeiro prêmio. Se-
MESTRES DO TEATRO
46
"
gundo uma estória, as emoções estavam tão acirradas que o
Arconte da competição, ao invés de escolher os juízes por
sorteio, como era costume, encarregou da decisão a junta
de generais de Atenas.
Porém, o êxito de Sófocles provou ser mais que acidente
feliz ou manobra política. Esta primeira peça foi seguida por
outras cem ou mais, dezoito das quais receberam o primeiro
prêmio, sendo que as demais nunca ficaram abaixo do segun-
do. Afora isso, o fato de que era um gênio natural fica
comprovado quando nos inteiramos de que a composição das
peças não absorvia toda sua energia ou interesse. Tal como
tantos outros escritores de seu tempo, não se confinava à
literatura e incursionava por muitos outros campos. Ator
consumado, interpretava suas próprias peças, tendo conquis-
tado fama por sua perícia acrobática em Nausicaa, na qual
manteve o público enfeitiçado com um número de prestidigi-
tação com bolas, longamente recordado por seus contempo-
râneos. Apenas a relativa fraqueza de sua voz, que provavel-
mente o fez escolher um papel feminino em Nausicaa, levou-o
a renunciar à profissão de ator. Foi também sacerdote orde-
nado, ligado ao serviço de dois heróis locais, Alconte e Es-
culápio, o deus da Medicina. E embora, segundo tudo indica,
nunca se tenha prendido a pronunciadas convicções políticas,
foi eleito duas vezes para a Junta de Generais, que adminis-
trava os negócios civis e militares de Atenas. Em geral não
associamos prontamente os artistas às altas finanças, mas Só-
. focles foi até mesmo diretor do Departamento do Tesouro,
que controlava os fundos da associação de Estados dominados
pelo imperialismo ateniense, conhecida como a Confederação
de Delos.
Em suma, Sófocles foi o ídolo querido do povo de Ate-
nas, pertencendo à longa linhagem de escritores que negam
a teoria de que o gênio nunca pode ser reconhecido enquanto
vivo. Um leão social, conviveu com a galáxia ateniense que
era formada por seus colegas dramaturgos Ésquilo, Eurípides
e Aristófanes, pelos grandes historiadores Heródoto e Tucí-
dides, pelo mais brilhante dos estadistas gregos, Péricles, e
pelo maior de todos os escultores, Fídias. Tamanho era seu
encanto social que seus epigramas eram propriedade pública
e ele se tornou o Joseph Addison * de um clube literário
longamente recordado. Sua vida, que durou por noventa re-
dondos anos, não revelou qualquer declínio de seus poderes.
Foi sombreada apenas por um processo judicial intentado por
um de seus diversos filhos, Iofon, também um dramaturgo
de alguma importância. Iofon, Ciumento da afeição demons-
trada pelo pai em relação a um filho ilegítimo, desejava que
(*) Joseph Addison (1672-1719) - Ensaista e critico inglês de grande
talento, colaborador e fundador de importantes revistas, conheceu forte celebri-
dade e influenciou significativamente o curso da história literária inglesa pela
sua aplicação aos problemas de sua arte e pelo cuidadoso estudo que fez do
gosto e necessidades de seu tempo: (N. dos T.)
SóFOCLES, O SERENO 47
3. As Peças de Sófocles
4. Peças de Caracteres
Uma das peças tardias, As Traquinianas ou As Mulheres
de Traquis, é a mais fraca de todas. Dejanira, a mulher do
. herói nacional e semideus Héracles, perturbada pelo ciúme
quando o marido lhe envia uma cativa concubina, lembra
uma veste banhada em sangue que, segundo o vingativo
centauro Nesso, devolver-lhe-ia a afeição do marido. Ela
a envia para Héracles por meio de um Mensageiro e tarde
demais descobre que estava envenenada. Quando o filho
volta com as novas de que seu pai está agonizante, a deses-
perada mulher corre para dentro da casa e apunhala-se.
Então é trazido para a cena o atormentado heróiamaldi-
çoando-a como assassina. O erro é explicado a ele que põe
em ordem seus negócios, entrega a jovem concubina ao filho
e ordena que seu corpo seja incinerado.
As Traquinianas é enfraquecida pela falta de unidade,
desde que o interesse é dividido entre Dejanira e seu marido,
e a peça usa mais do recurso narrativo do que costumamos
encontrar na obra de Sófocles. Mas a tragédia comporta um
poderoso e comovente estudo da mulher ciumenta. Dejanira
(3) Transposto literalmente para o português .da tradução inglesa de Sir
George Young. (Edição Everyman, E. P. Dutton).
MESTRES DO TEATRO
54
é patética no amor pelo marido e no desejo de recuperar
sua afeição. Não há malícia nela, é gentil com a concubina
que lhe recorda o próprio envelhecimento e morre nobre-
mente. Héracles, embora não seja o mais atraente dos mari-
dos, é um adequado retrato de um homem de meia-idade
que se volta para a sedução da juventude, sofre por sua in-
fidelidade e finalmente é obrigado a renunciar aos sonhos
de renascimento emocional. Percebendo que a juventude
atrai a juventude, casa o filho com a menina "A flor para
quem a idade está em sua primavera". As Traquinianas, des-
provida de indagações cósmicas e sociais, deve muito de seu
interesse exclusivamente à lúcida análise das personagens de
meia-Idade.
Mais eficaz é Ajax, uma tragédia anterior, penetrante
análise de um soldado corajoso mas hipersensível, que é
destruído pelo excesso de suas melhores qualidades. Sua co-
ragem torna-se orgulho avassalador, a autoconfiança leva ao
desdém pelos outros e a sensibilidade transformá-se em
morbidez quando é ferido no amor-próprio. Quando a ar-
madura de Aquiles é oferecida em prêmio a Odisseu e não
a ele, Ajax, que tem maior direito ao prêmio em razão de
seu valor, acalenta o rancor até que se decide a matar. os
chefes gregos durante o sono. Não se pode dizer que alguns
deles, especialmente Agamemnon e Menelau, não contrí-
buam para conduzir uma personagem como Ajax ao deses-
pero. Mas as intenções criminosas bem como a extrema auto-
confiança suscitam a ira da severa deusa da razão, Palas
Atená. Levando-o à loucura, faz com que o herói dê largas
ao seu ódio sobre um inocente rebanho de ovelhas, nas quais
imagina ver os gregos. Quando recupera os sentidos, sente-
se tão humilhado que se atira sobre a sua própria espada.
.' Em suma, a peça é um estudo da falha trágica. O con-
traste é apresentado através de Odisseu, descrito como
homem moderado, clemente e relativamente humilde, e
por um razoável irmão que é bem sucedido na tarefa de
reconquistar para o irmão morto a honra que perdeu entre
os gregos. Menelau, o mesquinho intrigante, e Agamemnon,
o arrogante comandante-chefe, proporcionam uma espécie
diferente de contraste. Em comparação a eles, Ajax é nobre
a despeito de suas falhas, pois não somente inexiste perfídia
em suas ações como é capaz de dedicar afeto ao filho, aos
pais e ao irmão. Ao contrário de Agamemnon, jamais pode-
ria ter sacrificado uma criança para permitir que a armada
grega zarpasse rumo a Tróia. Se Ajax parece desumana-
mente indiferente à sua encantadora esposa-escrava, há para
ele uma desculpa: está demasiado absorvido pelos enganos e
humilhações que sofreu.
Rematando esse drama de caracteres, Sófocles cria outra
de suas bem realizadas mulheres, a escrava Tecmessa, que
. serve ao taciturno soldado sem lamentar-se, tenta conduzi-lo
SóFOCLES, O 'SERENO 55
à trilha da razão e descobre o corpo após a morte. Tal comb
Shakespeare, Moliêre e tantos outros grandes dramaturgos,
Sófocles revela terna visão e compreensão pela condição
feminina. Numa saga heróica como Ajax, essa atitude quan-
to às virtudes mais suaves é particularmente valioso, pois
enriquece o conteúdo emocional.
Mas a maior contribuição de Sófocles ao drama de ca-
racteres está em sua Electra, na qual trata o tema de As Coé-
foras de Ésquilo unicamente em termos da personalidade
humana. Para Ésquilo o problema era ético: a justeza da
vendeta. Sófocles resolve o problema moral e aceita o assas-
sinato materno colocando-o na distante antigüidade; sua lin-
guagem intencionalmente arcaica em Electra coloca clara-
mente o elemento tempo. Tendo solucionado a questão ética,
volta-se inteiro ao problema da personagem. Que espécie de
mulher era Electra, que desejava ver a mãe assassinada e
estava pessoalmente pronta para o feito? A resposta deve ser
encontrada em seu espírito intransigente. Sua irmã Crisóte-
mis ajustou-se ao assassinato do pai e ao casamento da mãe
com Egisto. Mas Electra manteve inflexível distância e, con-
seqüentemente, tornou-se objeto de maus-tratos e injúrias
que, por sua vez, só fizeram aumentar seu desejo de vingan-
ça. Personagem indobrável e orgulhosa, é uma censura viva
aos assassinos do pai, com os quais troca palavras tão cora-
josamente que convida a novas perseguições, em especial
da parte do malicioso arrivista. Egisto. Quando lhe anunciam
que o irmão, Orestes, está morto, considera-se como sua su-
sessora natural e apela para a irmã, que serve com facilidade
aos novos tempos, a fim de ajudá-la a pôr em execução a vin-
gança que, segundo o costume primitivo, deveria ter sido
prerrogativa do rapaz. Quando a mãe está prestes a ser cha-
cinada no interior do palácio, Electra responde a seus rogos
desesperados como desprezo e ordena a Orestes que não a
poupe. Entretanto, seus nervos não são inteiramente de aço
e algumas vezes a dureza pode derreter-se. Após trocar pa-
lavras ferinas com a mãe no início da peça, sente-se envergo-
nhada. Quando contam que Orestes está morto, ela o pranteia
comovedoramente. Mais tarde, no momento em que o irmão
se revela a ela, quase esquece o objetivo da visita e põe em
perigo seus planos, abraçando-o estreitamente. Após a morte
da mãe, Electra é instintivamente, vencida pelo horror de si
própria.-
V árias das outras personagens possuem atributos vivi-
damente acabados. Clítemnestra é uma mulher dinâmica que
pode ser tirânica e malévola, e no entanto comove-se sincera-
mente ao ouvir que o filho, designado pela lei primitiva para
destruí-la, está morto. O Paedagogus ou tutor que acompa-
nha Orestes é um representante simplista da lei primitiva que,
não obstante, é capaz de humor e compreensão. Ao irmão
e irmã que se estão demorando com demonstrações de afeto
ME~TRES DO TEATRO
56
5. Um Idílio Grego
Nada inaceitável ao gosto de nossos dias, entretanto,
será encontrado no drama de caracteres que aos oitenta e
seis anos de idade Sófocles molda na forma de um idílio ..
Filoctetes, que exibe o lado mais ameno de sua mestria artís-
tica é uma tragédia apenas no sentido grego (devido à exal-
tada dramaticidade); não faz uso de catástrofe ao final e o
espírito da obra é pastoral. Seu pano de fundo é uma ro-
chosa ilha deserta onde abundam os panoramas selvagens,
e o herói, que lá foi deixado pelos gregos após ter sido mor-
dido por uma serpente, mora numa caverna. O espírito idí-
lico da peça é obtido não apenas através das vívidas descri-
ções das paisagens circundantes como também por' meio da
personagem de um jovem não corrompido, enviado pelos
gregos para atrair Filoctetes ao campo de luta, pois seu arco
é indispensável para o êxito contra os troianos. Neoptólemo,
o filho mais jovem de Aquiles, dá início à tarefa, .mas a
traição vai contra sua natureza a despeito das manhosas ins-
truções de Odisseu. Embora tenha entrado em posse do arco
e enganado Filoctetes, convencendo-o a embarcar no navio
(4) Evidentemente, o grifo é meu.
SóFOCLES, O SERENO 57
1. A Formação de um Liberal
O homem barbado que vivia com seus livros numa ca-
verna na ilha de Salamina era um estranho entre os homens
de seu 'tempo. DIZia-se de Eurípides ,que passava dias inteiros
sentado, a meditar, desprezava o lugar-comum e era melan-
cólico, reservado e insociável. Um busto esculpido em Süã"
velhice revela um rostO CIT.ITSado, mas 'belo, cabelos finos e
lábios bem desenhados. A própria antítese do popular e so-
cialmente bem sucedido Sófocles, sua vida foi tudo, menos
feliz. Nos cinqüenta anos de teatro, durante os quais escreveu
noventa e duas peç1!s, conquistou apenas cinco prêmios, sendo
o quinto concedido após sua morte. Permanente alvo dos
poetas cômicos, especialmente de Aristófanes, tornou-se obje-
to das mais desenfreadas calúnias e zombarias. Nem mesmo
sua, aristocrática mãe foi poupada, pois dela disseram que
era verdureira. Sua vida privada foi invadida por acusações
segundo as quais era um marido traído.. e não conseguia su-
portar mulheres. Foi julgado por impiedaCIee deixou Atêilãs
totalmente desacreditado.
A corte macedônia do rei Arguelau honrou-o e lá en-\
centrou companheiros no exílio. Mas foi breve sua vida na
corte, durando a,p..eJlªS 11llS dezoito meses e encerrando-se por
um acidente. Diz-se que foi estuçalhado p'elos mastins do rei, .
hipótese bastante plausível na selvagem Macedônia. Seus ossos
permaneceram enterrados em solo estrangeiro, pois o rei Ar-
quelau se recusou a entregar o corpo a Atenas que subita-
mente despertou para o .fato de que perdera um grande ho-
mem, mas foi obrigada a contentar-se com a construção de
64 MES't'US DO TEATRO
.{rí",.
; O Aprofundamento do Drama Pessoal
'tfJ'"
~ \~. Eurípides começou a derramar seu novo vinho na velha
\,J '..:;
4. Euripides, o Humanista
(
\
ao ser conduzida para for"a profetiza a perdição do conquis-
tador. Como que para aprofundar a miséria que as envolve
e a ironia do destino, a única dentre elas a escapar ao sofri-
mento é Helena, a autoconfiante adúltera, legendária causa
da guerra. Mas este, de forma alguma é o fim de suas ago-
nias. A virgem Polixena, outra das filhas de Hécuba, deve
ser sacrificada no túmulo de Aquiles e Astianax, o infante
de Heitor, será atirado de uma torre para se impedir que
cresça e se transforme em vingador de seu povo. O arauto
. grego, homem comum mais humano que seus amos, declara
ter vergonha das ordens que recebe; seu portador deveria
ser um homem que não sente "nem piedade nem vergonha".
Finalmente a cidade é incendiada e as mulheres, que se ati-
raram ao chão para invocar seus mortos, visto que os deuses
lá em cima permaneceram surdos à oração, são arrastadas
\. para os navios gregos. .
Nunca antes fora lançado um grito tão angustiante pela
humanidade oprimida; jamais voltaria a ser erguido com tal
sustentação no teatro de modo tão uniforme. Embora As
Troianas sejam um longo lamento bastante estático (até mes-
mo o maior defensor modema de Eurípides, Gilbert Murray,
reconhece que, julgada por padrões comuns, "mal chega a
ser uma boa peça"), essa tragédia tem uma grandeza toda
sua.
E nem se esvaziou a aljava de Eurípedes por essa inves-
tida contra os poderes das trevas: Outra peça similar, pro-
duzida como parte do conjunto de três tragédias que incluíam
As Troianas, está perdida. Palamedes era seu título e tinha
como tema a destruição de um homem bom por um mundo
corrupto. O idealista Palamedes incorre na inimizade do hábil
político Odisseu; é falsamente acusado de traição e senten-
ciado à morte. Um fragmento de um dos coros da peça canta
um lamento por ele:
78 MESTRES DO TEATRO
5. Um Dramaturgo no Exílio
7. Sêneca e a Decadência
8. Platão, o Dramatiqgo
. 4. Um Aguerrido Conservador
Bem dúvida algucia Aristófanes foi aquinhoado com
uma. inclinação para a sátira fustigante e se soubéssemos
mais sobre sua vida poderíamos localizar algumas das fontes
de seu.dom em sua história pessoal. (Ao que parece, perdeu
os cabel.Qs .muito cedo; mas não é possível construir uma
teoriadoríso sobre um couro cabeludo um tanto desnudado.)
Ma$;épos'síveI' afirmar com muita certeza 'que era própria a
aritítesedo cínico, pois acreditava com .imensa força na Ate-
nas de Ésquilo. Não foi um. parodista ocioso de uma tarde
ociosa, pois a Atenas que caricaturava lutava pela vida e
seu riso nascia pejado de dor e apreensão. Foi, de fato, um
reformador e ardente propagandista que nem sempre escon-
dia seus argumentos particulares. Sabemos que não suportava
os estetas ante o desprezo que demonstra pelo poeta trágico
Agaton, a quem acusa de efeminamento 3. Até o fim de seus
(2) Introdução, 1820. Th. Froçs and Three Oiher Ploys of A·ristophon.s..
Edição Everyman, . .
W V. As Tlwsmotorios.
ARI,STÓFANES, o POETA DO RISO 95
5. Sátira Política
Engordar e alegrar-se
Durante o benigno verão 4.
!
6. Menandro, Plauto e
Terêncio
(.w.) 'Trata-se a primeira de uma peça anônima adaptada para o inglês por
S. L Hsiung. A segunda, narrando a vida numa pequenina cidade, é obra popu-
laríssima nos Estados Unidos, sendo até considerada um hino de amor ao homem
americano. A ação não é vivida diretamente mas apresentada de forma narrativa,
o que levou vários críticos a considerarem que' foi escrita sob influência do teatro
oriental. Gassner partilha desse ponto de vista. (N. dos T.) .
7. Os Dramaturgos
do Oriente Médio
'. ',- .
. '
"
, . , '
'"
"
. '
'.
. .
.'
....
" '
o', .
. ...
t '
"
• • . t"
lasciva Merry Play of John, Tyb and Sir John (Peça Alegre
de John, Tyb e Sir John) 7, na qual um padre se comporta
de forma que dificilmente condiz com a tonsura.
Os seis interlúdios· de Heywood estão realmente bem dis-
tantes da dramaturgia moral e religiosa dos tempos nredievaís.
Entretanto, com Heywood, já nos encontramos em meio de
uma nova era; quando faleceu no estrangeiro, depois de che-
gar à patriarcal idade de oitenta e três anos, Shakespeare, a
mais primorosa flor dessa outra época, já estava em botão.
1. Os Humanistas e a Dramaturgia
2. O Teatro Italiano
A arte da encenação teatral, por excitar a aristocracia
amante de espetáculos e gozar dos serviços dos grandes pin-
tores e arquitetos da época, não sofreu qualquer inibição.
As conquistas da Itália podem ser resumidas com brevidade
sob pois cabeçalhos gêmeos: magnificência e experimenta-
ção. Não é de forma alguma necessário um exame mais
acurado do primeiro. Basta a reflexão de que as peças eram
diluídas pelo esplendor da produção material. Quase que em
qualquer momento uma peça podia ser interrompida para
ceder lugar a um suntuoso espetáculo; segundo a frase de
Lee Simonsen, cada texto dramático se tornou um "motivo
de festa para o pintor".
No entanto, as experiências em arquitetura e cenogra-
fia são de extrema importância. A aplicação dos princípios
da perspectiva ao cenário, o astuto emprego de quadros pa-
norâmicos no palco e a gradual separação entre o auditório
e a área de representação colocaram o drama por trás de
uma moldura que tem sido raramente rompida até mesmo
em nossos dias *. Por trás do proscênio a peça romântica
podia ser apresentada com todas as nuanças de colorido que
exigia e cercada de uma aura de distância e elegância. Com
o tempo, empurrada para trás do arco do proscênio, a peça
se tornou uma pintura a ser observada pelo público, .rcomo
geralmente ocorre hoje em dia, e não uma ação comunicada
por um relacionamento direto entre o ator e o espectador,
como acontecera durante a Idade Média. Em grande parte,
isto não ocorreu na Inglaterra e na Espanha durante o fim
do século XVI e início do século XVII, pois a evolução
técnica italiana só seria gradualmente absorvida pelas outras
nações. Entretanto, não levaria muito tempo para que a forma
do teatro da: Renascença italiana predominasse em toda a
Europa.
O novo teatro em grande parte deve seu início a uma
adaptação ou ampliação da cenografia e arquitetura clássicas
baseada no texto de Vitrúvio, De Architetura que fora recen-
temente redescoberto e cuja compreensão por parte dos re-
nascentistas italianos deixou muito a desejar. Nos tempos
romanos descritos por Vitrúvio (que viveu de 70 a 15 a.C.
e cujo Manuscrito foi publicado em 1511), a parede do
palco era excessivamente decorada e estavam em uso os
periacti 1 - aqueles prismas pintados usados para mudanças
de cena. A Itália humanista acreditou que esses engenhos
correspondiam à cenografia de todo o palco, e seguindo a
declaração de Vitrúvio, segundo a qual a permanente pare-
(*) Se esta afirmação parecer estranha ao leitor acostumado com os novos
espaços cênicos, frutos do trabalho de Peter Brook, Grotowski, Julien Beck e
tantos outros que recolheram e aplicaram a herança de Artaud, Gordon Craig,
Meyerhold etc., é preciso lembrar que Gassner escrevia estas palavras em 1940,
quando a nova experimentação se encontrava em fase bem incipiente. (N. dos T.)
(1) V. periaktoi, Capítulo III deste livro.
188 MESTRES no TEATRO
e
da Inquisição, era enérgica, militante aventurosa. O Estado,
ainda que igualmente intolerante em relação a outras raças
e religiões e resolutamente autocrático, ao mesmo tempo vi-
brava de energia. Para os espanhóis, que jamais haviam co-
nhecido a liberdade política, a situação autocrática não era
particularmente incômoda. Derrotando a aristocracia feudal,
a autocracia chegou mesmo a se constituir numa aliada tem-
porária do campesinato e da classe média. Afora isso,' toda
a rigorosa pompa de reis e sacerdotes não podia prevalecer
contra o fermento de uma época voltada para a conquista .
e a aventura. .
Foi partindo dessa intensificação da vida nacional que
a literatura espanhola e o teatro espanhol atingiram alturas
que jamais voltaria a alcançar. O Século de Ouro ou EI Sigla
de Oro, nome dado ao período pelos espanhóis, testemu-
nhou extraordinários progressos na poesia, na prosa e na dra-
maturgia, culminando em dois gigantes - Cervantes no cam-
.po da ficção e Lope de Vega no teatro.
1. O Monstro da Natureza
3. As Peças de Lope
°
Belisa dá um jeito de encontrar namorado Lisardo. Acom-
panhada pela duenha, sai da igreja e o vê. A duenha a re-
preende:
4. Calderón de la Barca
1. O Laureado de Magnificência
e'
, ..
..
, .
"
...
".
.'
. . .
13.·.·Will~am Shakespeare
'. '.
1. 0. Homem de Stratiord.
cia é suplantada por sua tolice. Enquanto que ele sempre foi
o senhor de qualquer situação em Henrique IV, é agora uma
vítima constantemente lograda. O gordo cavaleiro caiu igno-
miniosamente; não é mais a incômoda personificação da in-
teligência mas sim a pesadíssima encarnação da fatuidade.
Contudo, o prazer é admiravelmente servido pelas mulheres
da classe média, Sr. a Ford e Sr." Page, que provam ser um
páreo bem duro para seu aristocrático galanteador. Sem
transformar um morrinho numa montanha afirmando que
Shakespeare fez de Falstaff um toleirão com o fito de
corroborar as pretensões "revolucionárias" da classe média,
como o faz um crítico soviético 7, é interessante observar o
dramaturgo voltar-se para a comédia da classe média. Ao
criar as espirituosas personagens da Sra. Ford e da Sra. Page,
que de modo' algum ficam impressionadas pelo fato de ser
Falstaff um cavaleiro e nunca se deixam intimidar por sua
posição quando o perseguem com suas travessuras, Shakes-
peare captou o espírito de independência que animava o
Terceiro Estado elisabetano. Os dramaturgos do período Tu-
dor de tempos em tempos voltavam sua atenção para a vida
da classe média desde que Ralph Roister ficou apaixonado e
Gammer Gurton perdeu sua agulha nos calções do empre-
gado. Mais ou menos um ano antes de As Alegres Comadres,
Thomas Dekker encenara uma espirituosa e animada celebra-
ção dos burgueses de Londres com The Shoemakers Holiday
(O Feriado'dos Sapateiros). Shakespeare simplesmente se-
guiu a moda.
No ano de As Alegres Comadres, 1600, tem início a déca-
da trágica e cínica de sua carreira da qual resultam suas
maiores obras, e essa farsa é tanto um "adeus à alegria'"
quanto um homem de teatro pode permitir-se um adeus desse
tipo. Shakespeare continuou a escrever comédias dado que
nenhum homem de teatro pode acalentar suas aflições par-
ticulares por muito tempo; mas a nota trágica era predomi-
nante. Muita especulação foi feita sobre as causas de seu
período sombrio, mas é provável que se tenham combinado
diversos fatores para produzi-lo. .
O homem de teatro reagia a um ressurgimento da tra-
gédia "sangrenta" que prevalecera durante o apogeu das imi-
tações de Sêneca no teatro, mais ou menos uma década antes
desse período. Tornavam-se novamente populares as peças
(") Anão ser que seja aceito o argumento de Leslie Hotson, segundo o
qual essa peça teria sido escrita numa' data anterior.
266 ívIESTRES DO TEATRO
1. O Pedreiro da Dramaturgia
2. Beaumont e Fletcher
Jonson era o "John Bull" .entre os dramaturgos. Mas
a época elisabetana não carecia de cavalheiros que se com-
portassem com elegância. E nenhum deles possuiu um estilo
tão elegante e. respirou a colheita de refinamento artificial
na polida atmosfera do reino de Jaime I num grau tão ele-
vado quanto Francis Beaumont e John Fletcher. Fletcher,
nascido em 1579, mais ou menos' quinze anos depois de
Shakespeare, era filho de um homem que mais tarde se
tornou bispo de Londres. Coriseqüentemente circulou pelos
mais refinados ambientes até que seu pai morreu e o deixou
em apuros financeiros. Beaumont, cinco anos mais novo
que ele, era o filho de um próspero juiz e estava destinado
às leis até. que caiu sob a. influência de. Jonson e uniu-se à
boêmia irmandade de escritores. Os dois filhos de cavalhei-
ros rapidamente consolidaram sua amizade, ocuparam os
286 MESTRES no TEATRO
O mim
That lie upon your death-beds and are haunted
With howling wives. Ne'er trust them! they'll remarry
Ere the worm pierce your winding shect; ere the spider
Make a thin curtain for your epitaphs",
Por Ben Jonson: The Staple of News (A Base das Notícias), 1626,
sátira sobre a avareza e a credulidade; A Tale of a Tub (Estória dé-
um Barril), 1633, -cbmédia realista repleta de frescor.
Por Beaumont e Fletcher: A King and No King (Rei e Não Rei),
1611, romance e sátira.
Por John Fletcher: (provavelmente sozinho): Wít Without Mo-
ney (Inteligência sem Dinheiro), c. 1614, uma boa comédia; The
Loyal Subject (O Súdito Leal), 1618, outra boa comédia; The Wild -
Goose Chase (A Caça ao Pato Selvagem), 1621, comédia romântica;
The Woman's Prize (O Orgulho da Mulher), antes de 1625, uma co-
média na qual Petruchio é domado; Rule a Wife, .Have a Wije (Go-
verne uma Mulher, Tenha uma Mulher), 1624, sua comédia mais.alta-
mente considerada.
Por Philip Massinger: The City Madam (A Dama da Cidade),
1632, comédia realista de costumes; O Grão-Duque de Florença, 1627,
alegre comédia romântica.
Por John Ford: The Chronicle History of Perkin. Warbeck (A
Crônica Histórica de Perkin Werbeck), 1634, considerada a melhor
peça histórica elisabetana depois de Shakespeare; The Witch of Edmon-
ton. (A Feiticeira de Edmonton), depois de 1621, em colaboração com
Dekker e Rowley, eficiente drama doméstico.
Por James Shirley (1596-1666): Hyde Park, 1632, comédia
sobre a Londres da moda; The Gamester (O Jogador), 1633, co-
média realista e lasciva; The Lady of Pleasure (A Dama do Prazer),
1635, comédia de intriga com eficaz sátira; The Cardinal (O Car-
deal), 1641, tragédia bem escrita.
Parte VI.
OS DRAMATURGOS
POLIDOS
3. A Segunda Florada
No entanto os perigos do formalismo de Racine eram
grandes e a frigidez tornou-se a maldição de seus contempo-
râneos e sucessores. Pradon, Thomas Corneille (irmão de
Pierre), Campistron, La Fosse e outros são agora simples
nomes. Paul Scarron é lembrado por suas brincadeiras, nada
condizentes com. a posição de um abade, ou. por sua bela
esposa que se tornou depois a Madame de Maintenon, e não
por sua tragédia em prosa. Zénobie ou mesmo por sua ampla
comédia J odelet, que antecipava o espirituoso diálogo de Mo-
liêre." Apenas Crebillon, o Velho e Lamotte-Houdart, no
início do século xvrn, ainda conservam o direito a uma
pequena parcela de atenção - o primeiro com Rhadamiste
e Zénobie, o segundo com Inês de Castro.
A fama de Voltaire como ensaísta e figura pública nos
faz lembrar as tragédias do século xvrn Oedipe, Brutus,
La Mort de César, Zaire, Mahomet e Mérope. Essas tragédias
escritas entre 1718 e 1732 revelam considerável sentido tea-
tral, e algumas delas contêm desafiantes pitadas de livre pen-
samento e sátira características de Voltaire, o filósofo liberal,
bem como do fermento geral que culminaria com a Revo-
lução Francesa. "Os padres são apenas o que o estúpido
povo faz deles; nossa credulidade fornece toda a sua ciência
(notre crédulité [ait toui leur science)", de Oedipe, é um
típico verso "filosófico" do século xvm. O Brutus de V 01-
taire glorifica um herói republicano e seu M ahomet é um
ataque tão vigoroso à intolerância religiosa que uma de suas
personagens, Séide, passou para a língua francesa corno si-
nônimo da palavra fanático. Mas a dramaturgia de Voltaire,
em sua maior parte, permanece forçada e fria. Aquele que
chamara Shakespeare de um esplêndido bárbaro poderia ter
usado algo da barbárie elisabetana em si mesmo.
Os próprios franceses começavam a mostrar-se insatis-.
feitos com suas convenções dramáticas. Voltaire lançou um
olhar saudoso para Shakespeare e mais tarde o dramaturgo
(*) Scarron (1610-60) deixou também um romance, La Roman Comiqae,
de mérito reconhecido. Inspirando-se nos romances picarescos espanhóis,.. narra
as aventuras de uma companhia de atores ambulantes. A obra fixa as condições
de trabalho da gente de teatro no século XVII. Sua influência pode ser mesmo
traçada em 1904, no Brasil, quando Arthur Azevedo a cita como uma das
fontes de inspiração para seu Mambembe. (N. dos T.)
326 MESTRES· DO TEATRO
(') A reverência de Garrick por Shakespeare parece ter sido tão grande
que usava um volume. de suas peças ao invés de uma Bíblia sempre que fazia
um juramento a. um amigo. Entretanto, isso não impediu o atar de cometer
lesões no texto do autor. Omitiu os coveiros no Hamlet e O Bufão em Rei Lear
- sem dúvida para assegurar a unidade de ação e de estado de espíríto,
Deu a Romeu. e Julieta uma cena na tumba. Mudava e acrescentava versos
livremente. Garrick pessoalmente escreveu 21 peças· entre 1740 e 1745. Uma
destas, The Clanâestine Marriage (O Casamento Clandestino) de 1766, era
uma vivaz colaboração com George Colman, O Velho (1732-94). David Garrlck
(1717-79) foi uma das maiores figuras da época.
16. Moliêre e a Comédia
de', Sociedade'.'
"
. '
"
. . . . ',.' .
" É da 'ê~mplexidade' do homem e
limá' curiosa-indicação
.r seu mundo 'que a era' de' Corneille 'e Racine tenha sido tam-
o
seante que mesmo Sganarelle fica enojado.. Inclusive criado
prefere o franco cinismo à untuosa devoção:
. Ademais, não
.é difícil ver no-imoral hidálgo um idea-
lista pervertido que investe contrà os moinhos de vento da
, ' convenção e' não. tem a habilidade de se ajustar a Uma vida
prosaica. No coração -,de todas as SUqS depredações da virtude
feminina há 'Um. desejo de êxtase perfeito, e: isso ele sócon-
.segue achar na excitação da caça. "Uma 'vez tendo conse-'
guido o que desejamos", declara, "nada mais 'resta a desejar.
Todo atrativo :do amor acaba, e poderíamos adormecer na
" mansuetúde de uma tal .paixão".' ..
'. : , Não é der espantar que Don Juan; obra que ocupa. seu
'lugar ao lado das maiores 'concebidas por Moliêre, também
fosse violentamente denunciada como licenciosa e atéia. No
entanto; mais' uma 'vez' 'o dramaturgo em desenvolvimento
recusou-se a ser desviado de seus· objetivos. Embora seu tra- '
'balho seguinte.va comédia-balé U'AmourMédecin {OAmor
'·MédiCo)., escrita' em 1665, fosse uma peça menor destinada
a divertir o rei, desferia alguns', dardos afiados aos preten-
siosos médicos profissionais da época. Os médicos formavam
uma guilda, poderosa' e ciosa que nada, podia fazer ,exceto
., ranger 'os .dentes .de raiva enquanto Molíêre denunciava seu
jargão' pseudocientífico e sU,a .incompetêncía cuidadosamente c
. oculta, Uma jovem totalmente 'apaixonada fiUgé'estar doente'
e Sganarelle, seu .C:r~ado, chama quatro .médicos que' discor-
dam violentamente. Um pouco 'depois onamoràdo aparece
disfarçado de 'médico ~ .cura' a paciente casando-se com ela
sob .o nariz' do -próprio pai. o' Amor Médico foi rapidamente
, . seguido por uma soberba sátira' social, 'Misanthrope (O Mi-
, santropo) , que -muitos dos .admiradores de Moliêre colo-
cam acertadamente acima. de 'todas .as outras peças de sua
.autoria. . ,. .'... .. . .', . , . '
.'oApiesentado no teatro do Palais-Royal em 1666" O Mi-,
santropo não logrou rápida popularidade. Prescindia da ação
vigorosa ou espetacular ~ apelava' para a inteligência. Na
verdade, éa mais fria e- olímpica de suas comédias.' Trata-se
de uma exposição-pura e simples.. a ação p'ermaneç:e escru-
pulosamepte sem solução ao final e as personagens continuam
a ser em grande parte aquilo que já eram no· início. A peça·
simplesmente gira aõ redor de Alceste, um homem reto cujo
desgosto' para c0!llas .loucuras; afetações ·e corrupção da
épocachega às raias da obsessão. O mundo social que adeja
à sua volta é uma coleção de almofadinhas,' :bajuladores,
intrigantes e namoradores. . Julga 'impossível, conviver com
'eles, ainda que seu leal amigo Philinte lhe aconselhe cautela.
Prefere perder seu. processo .asubornar a corte e transformar
, os cortesões em inimigos a lisonjear sua estupidez. O ponto
fraco em sua couraça é '0 amor que sente por. uma mulher
incuravelmente flertadora,à 'qual - como acontecia com
o próprio Moliêre - ' ama, em oposição ao que lhe diz o me- '
MESTRES DO TEATRO
344
4. De Etherege a Sheridan
a
den, chegou mesmo beijar o báculo do Reverendo Collier·
numa orgia de auto-humilhação.
George Farquhar, a última das celebridades da Restau-
ração cujas primeiras peças foram bastante licenciosas, tor-
nou-se moderado e relativamente puro de espírito. Seu mérito
está na introdução de alguns novos tipos de personagens em
The .Recruiting Oiiicer (O Oficial Recrutador) e em The
Beaux'<Stratagem (O Estratagema do Galanteador), abando-
nando o pano de fundo londrino em favor do campo, e na evo-
lução fluente de seus temas cômicos. Além disso, em pouco
tempo o teatro ficou coalhado de peças sentimentais e mora-
listas. A transição já tivera início em 1696 com o ator-dra-
. maturgo Colley Cibber em 'Love's Last Shift (O último Ardil
do Amor), comédia que tratava da recuperação de um ma-
rido vagabundo o qual lembrava o realista Relapso de' Van-
brugh, e que teve continuação no século seguinte. Então o
cativante ensaísta Richard Steele achou por bem proteger seu
próprio comportamento irregular com uma série de comédias
absolutamente sentimentais como The Tender Husband (O
Terno Marido) e The Conscious Lovers (Os Amantes Culpa-
dos) que são quase tão divertidas quanto um sermão da
Sexta-Feira Santa. Recomendam-se principalmente ao histo-
riador que encontra nelas mais provas de que a classe média
estava moldando o gosto público na era da Revolução In-
dustrial' iniciada na Inglaterra. O novo estilo provocou uma .
controvérsia literária, na' qual o crítico Dennis afirmou em .
vão que uma comédia sem ridículo é impensável e que obvia-
mente a comédia deve tratar de tolices e VÍcios se deseja ser
engraçada. .
Apenas o irrefreável John Gay conseguiu escapai da
camisa-de-força moral da nova moda durante a primeira
parte do novo século. Trabalhando a partir de uma sugestão
feita por Dean Swift para que escrevesse uma. "Pastoral (da
Prisão) de Newgate", Gay enriqueceu o mundo com sua
Beggar's Opera (6pera dos Mendigos) em 1728, e com a
seqüência desta, Polly, da mesma forma que com algumas
obras menores como Achilles (Aquiles) e The Distressed
Wiie (A Esposa Desesperada). Na jovial ópera-balada A Ope-
ra dos Mendigos, composta com base nos julgamentos do polí-
gamo e bandido Macheath, Gay escreveu uma sátira ao
submundo a qual era mais que aplicável à corrupta admi-
nistração do primeiro ministro da Inglaterra, Robert Walpole.
A maior parte das complicações surge do fato de que Pea-
chum,: que tem a dupla profissão de "dedo-duro" e receptador
de mercadorias roubadas, fica ofendido pelo casamento de
sua filha com Macheath. Isto é desvantajoso, pois um tal
genro pode facilmente denunciá-lo; sem dúvida um casamento
não é aconselhável. Um caso amoroso com Macheath estaria
totalmente dentro das regras; é o casamento "que estraga
tudo". Destarte, Peachum tenta fazer com que enforquem o
MOLH:RE E A ÇOMÉDIA DE SOCIEDADE 361
. marido de Polly e quase consegue. Em Polly a heroína aven-
tura-se no mundo distante por seu marido, que agora virou
pirata, e suas aventuras na nova profissão mais uma vez
comportam paralelos com as depredações ainda maiores leva- .
das. a cabo pelo alto gabinete. Condimentadas com encanta-
dores versos escritos. para velhas canções, as óperas de Gay
constituíam um bem-vindo alívio em face das solenes pompas
de Steele e sua escola.
Mas Gay não operava 'nos canais regulares da comédia
de costumes. Tampouco o fazia o mestre novelista da, Ingla-
terra, Henry Fieldíng quando escreveu obras tão tumultuadas
quanto sua burlesca ouJiercína tragédia Tom Thumb the
Great (Pequeno Polegar, o Grande) uma gloriosa brincadeira
com versos herói-côrnicos como a fala de abertura de Doodle:
. ....
'. '
r.
".
. "
Parte VII.
A· D.RAM~TU·.RGIA·
.IIMO'DE·RNA.~I
... "
- '
..
.'
gem .ou .de crítica .i.: que' distingue larga parcela da drama-.
turgia do, começo. de L88ü até hoje., Uma abordagem multi-
fàcetadamente modificada surge das condições da vida mo-
derna e uma variedade de. concepções geralmente novas. do
homem ·e da: sociedade' aparecem no teatro, Uma vida vasta' .
e conturbadajinseparável das Iidas .e . aspirações da moderni- .
dade, desdobra-se .ante osdramaturgos da Europa e da Amé-
rica; Muitosdeles tentam enfrentá-labrava e inteligentemente.
Ademais, tentando projetá-la efetivamente a partir do palco,
os dramaturgos experimentam estilos que também. os levam
rúu.to além do realismo. .. .
o teatro moderno,' do qual :o Romantismo é. 'a ·semeú~·
teira, se converte assim num empreendimento ricãmente va-
. 366 M~STR~S DO. TEA.TRO
.. .'
..•.
.,. .'
-,
•
17. Goethe e :Q,Espír.ito
Hornântico
"
,;
. ...
.
'
.'
: ;
"
2. A Difusão do Romantismo
Nature's polluted,
There's man in every secret comer of her. *
mas desafiam qualquer tentativa de montagem.
5. Scribe e Sardou