LACAN - Os Nomes Do Pai PDF
LACAN - Os Nomes Do Pai PDF
LACAN - Os Nomes Do Pai PDF
Jacques Lacan
OS NÃO-TOLOS ERRAM
/ OS NOMES DO PAI
Seminário entre 1973-1974
Tradução e Organização:
Frederico Denez
Gustavo Capobianco Volaco
φ
Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni
http://www.abecbrasil.org.br
275 p.
ISBN - 978-85-5696-292-8
CDD-100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário
Apresentação ................................................................................................................9
Le langage l’engage.
Jean Tardieu
Frederico Denez
Gustavo Capobianco Volaco
Aula 1
13 de Novembro de 1973
1
Como na edição staferla não estão todos os esquemas que Lacan produziu no quadro procuramos
essas imagens em outros lugares. A maioria delas encontramos em
http://gaogoa.free.fr/SeminaireS.htm
Jacques Lacan | 17
ele resulta de uma não errância mas de um erro. A saber, que para
tudo o que tem a ver com a vida e, ao mesmo tempo, com a morte,
há uma imaginação que só podem suportar todos aqueles que, da
estrutura, se querem não-tolos, e é isso: que sua vida não é mais
que uma viagem. A vida é a do viator. Aqueles que, neste
submundo, como eles dizem, estão como se estivessem no exterior.
A única coisa que não percebem é que apenas fazem
ressurgir essa função no exterior, fazem ressurgir ao mesmo
tempo o terceiro termo, a terceira dimensão, essa, graças a qual, as
relações desta vida, não saldam jamais, a não ser sendo então mais
tolos do que os outros, desse lugar do Outro, no entanto, que com
seu imaginário constituem como tal...
A ideia de γένησις, de desenvolvimento, como se costuma
dizer, de algo que seria de não sei que norma, pelo qual um ser que
não se especifica senão por ser falante, em tudo o que tem a ver
com seus afetos, seria regido, precisamente, por não sei o que,
conforme o que seja incapaz de definir, que se chama
desenvolvimento. E para o qual, querendo reduzir a análise, faz
falta (manque), produz o erro completo, o erro radical quanto ao
que tem a ver com o fato de que eu descubro o inconsciente.
Se Freud nos diz algo é, de forma inequívoca: Und - no
último parágrafo da Traumdeutung -der Wert des Traumes für die
Kenntnis der Zukunft? - E o valor do sonho para o conhecimento
do futuro? - E é essa a beleza. Por um lado se acredita que, ao
escrever isso, Freud faz alusão ao valor adivinhatório dos sonhos.
Mas não podemos lê-lo de outra forma? Ou seja, dizermos: e o
valor de sonho, para o conhecimento de que irá resultar, no
mundo, a descoberta do inconsciente, a saber, se, por acaso, um
discurso feito de uma forma cada vez mais comum é conhecido - é
conhecido - o que no final do parágrafo Freud diz, a saber: que o
futuro que o sonhador tem como presente, é gestaltet, está
estruturado pela demanda indestrutível enquanto ela é sempre a
mesma: zum EbenbiId – contra.
Ou seja, que - se querem ponho alguma coisa aqui:
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Nascimento Morte
do mal, ele é, e assim vai a coisa, quanto pior, melhor. Então, por
isso, há que ser tolo. Há de ser tolo, é dizer, ajustar-se a estrutura.
Bem, escutem: estou farto.
(Risos)
Aula 2
20 de Novembro de 1973
Se é uma questão de ser tolo, não é, neste caso, ser tolo das
minhas ideias, porque essas quatro pequenas letras não são ideias.
Mesmo, não são ideias em absoluto, prova disso é que resulta
28 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
noção neste artigo, nesta conclusão que vem a ser aqui como o
ponto que arremata tudo o que, na Traumdeutung, nunca se
enunciou sobre o sonho: sua noção está aqui. Efetivamente, o que
disso retroage é - conforme explicado a propósito do sonho, não é?
- é que: há inconsciente, e o inconsciente é isso; ele podia dizer,
neste caso, que o inconsciente é racional, mas isso simplesmente
significa que a sua racionalidade deve ser construída, mesmo se o
princípio de contradição, o sim e não, não jogam nele o papel que
crê a lógica clássica, e como a lógica clássica está superada há
muito tempo, neste momento precisamos construir-lhe uma outra
... Bem ...
Pessoalmente, suspeito que se Die Grenzen der Deutbarkeit,
os limites da interpretação - é isso o que quer dizer - não saíram na
edição seguinte de A Interpretação dos Sonhos, não foi
simplesmente porque estava muito perto do oculto, senão porque,
isso - die Grenzen - ... isso era demais. Isso excedia um pouco a
afirmação de que o desejo é indestrutível, e mostrava nesta
estruturação do mesmo desejo algo que justamente havia
permitido matematizar de outra forma sua natureza. Pois ele é,
com tudo, vale a pena que lhes dê isso - é claro que, com uma tal
concorrência, não é possível comentar vinte e cinco páginas de
Freud, não são mais, elas são ainda menos - mas, no entanto,
poderia abordar o primeiro parágrafo , o qual os incitará a ir ao
seu encontro, porque, de fato, isso acabou por ser publicado, como
me fez notar minha querida amiga Nicole Sels, a quem depois da
última aula lancei a coisa dizendo-lhe: mas no final das contas,
onde diabos está essa história?, essa história que, no entanto, nos
Gesammelte Schriften é indicada imediatamente após o ponto em
que eu terminei, o do desejo indestrutível e invariável, porque é
disso que se trata.
Nos Gesammelte Schriften há imediatamente depois - nem
sequer uma nota - depois do ponto, o último ponto, a última linha,
está escrito: Zusatz Kapitel C, que significa, apêndice C, mais ou
menos, como é geralmente traduzida. É, e é para o próximo
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2
Não conseguimos, quer na versão staferla, quer em outras, encontrar a imagem que Lacan utilizou
nesta aula. Mas como suas descrições são precisas, eis um desenho que representa uma abóbada com
suas alças ou tirantes. As setas mostram o efeito, destacado por Lacan, de puxar para fora, de puxar
para o exterior.
Jacques Lacan | 35
ferne wie die der Vorbereitung einer Mitteilung an einen anderen. Wenn
sich der Traum mit einer Aufgabe des Lebens beschäftigt, löst er sie so,
wie es einem irrationellen Wunsch, und nicht so, wie es einer
verständigen Überlegung entspricht. Nur eine nützliche Absicht, eine
Funktion, muß man dem Traum zusprechen, er soll die Störung des
Schlafes verhüten. Der Traum kann beschrieben werden als ein Stück
Phantasieren im Dienste der Erhaltung des Schlafes.
11 de Dezembro de 1973
Bem, podem dizer que se falo é porque vocês estão aí. Não
me fatiguem, pois, porque se não, eu me vou!
Aqui está uma pequena coisa que me dei ao trabalho de
construir, para mostrar a vocês. É um nó borromeu. Lhes advirto
de que hoje não falarei sobre outra coisa. Então, se alguém se
incomoda com isso, que saia, me parecerá melhor.
É um nó borromeu. Isso quer dizer que - em seguida, se
retirarmos um desses, o azul - que vocês vêem aqui, se o azul é
removido, o resultado,é que os outros dois ficam livres. Vocês
viram que eu não precisei desmontá-lo para que se liberarem. É
isso!
Daqui a pouco Glória pode lhes entregar um. Mas, enfim,
eu penso que isso já é suficientemente demonstrativo. Às vezes,
isso é feito com cubos e se nos adverte que é preciso que haja três
de largura e cinco de comprimento para um nó borromeu mínimo.
Bem.
Evidentemente, a ideia é fazer algo que responda à três
planos. Quer dizer, que esteja fabricado como as coordenadas
cartesianas. Quando querem fabricar isso, vocês vão se aperceber,
bem, vocês ainda têm dificuldades. Têm dificuldades, não é de todo
verdade, para darem-se conta,de imediato, de onde terminará isso,
quer vocês os ponham primeiro em um sentido e depois em outro.
Tentem vocês mesmos. Tentem especialmente.
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Havia outra coisa que não lhes trouxe, que respondia não
ao nó borromeu, que tem a característica de que cada um dos dois
círculos que isso constitui, é como se fosse, os dois círculos que isso
constitui, se liberam, se vocês querem, se vocês cortam um deles.
Se tem também o conhecido sistema, que não reproduzo no
quadro, porque, enfim, o tenho aqui, mas estou cansado, não se
tem mais que pensar a não ser nos três círculos que servem de
emblema às Olimpíadas.
Podem comprovar que está feito de forma diferente, ou seja,
que não somente dois destes círculos estão enodados, senão que o
terceiro os amarra, não com um só dos dois, isso não faz três que
formam cadeia, senão com os dois. Bem, tentem. Tentem fazer
uma montagem de cubos de tal forma que a sua continuidade,
tomando o amarelo, o vermelho e o azul, seja possível montá-los
em três planos. A segurança de que se trata de planos é dada pela
forma cúbica, precisamente, vocês estão obrigados a fazê-los em
três planos. Experimentem.
Certamente não verão, em seguida, neste caso, é necessário
que o lado, por assim dizer, o lado que se vai montar, seja de
quatro cubos, pelo menos. Mas esses quatro cubos são também
encontrados na outra dimensão. Quer dizer, no lugar de ter duas
vezes cinco mais dois, como neste caso, que dá doze, vocês tem
duas vezes quatro mais duas vezes, o que também dá doze, o que é
curioso.Mas vejam a dificuldade que terão para fazer esta pequena
construção. Será para vocês uma boa experiência disto pelo que
começo. Ficarão advertidos até que ponto não conseguimos
perceber o volume, uma vez que, por exemplo, a partir de 3 séries
simples de 4, quando as tenham compostas de maneira tal que isso
possa constituir os famosos 3 eixos que servem para a construção
cartesiana, não verão senão quatro, por um momento. Terão a
sensação de que isto poderia se afivelar, por exemplo, como aqui,
como se houvesse apenas 4, e depois de 3 de largura. Vocês terão
essa sensação.É uma maneira de fazê-los experimentar o seguinte:
Jacques Lacan | 51
inclusive para isso que contam comigo Com a ressalva de que, tal
demanda, faz parte da estupidez.
Portanto, mais uma vez cedo a essa demanda. E saibam que
não é porque vosso número é grande que vou pôr-me a fazer
semblante. Não é porque seja grande, senão porque é número.
Com o que me entrego a abjeção, devo dizer, com a qual, neste
lugar, eu me confundi. Há uma coisa que chamei de passe (la
passe), que é praticado em minha escola, só porque eu queria
tentar obter alguma demonstração. É preciso estar onde estou,
para saber hoje, para que eu veja bem o que é dedicar-se a
responder a não importa quem, a não importa o que, mas
responder a quê? O que responde ao discurso analítico é isso, que
vocês fazem tudo o que vocês fazem por sua natureza, pode-se
dizer, pela sua estrutura, para ser mais preciso, contrariamente a
tudo o que se pensou até agora entre os especialistas - eles se
chamam filósofos - não por ignorância, a ignorância natural, como
Pascal se expressa. Agradeço a alguém que, enquanto eu
trabalhava no último domingo, enfim, teve o cuidado de me
chamar a atenção, também, que me fez esse serviço ... mas, voltarei
a isso daqui à pouco... sob a forma de uma pequena sugestão, sua,
relativa a Pascal.Eu lhe havia encarregado de verificar em Pascal
todo esse escalonamento que vai da ignorância natural para a
verdadeira ciência, como ele a designa, na sua garatuja, como os
semi-qualificados. Esta é pessoa que me fez este serviço. Enfim,
que tem esmerilhado um pouco com Pascal me evitando de ter de
fazê-lo, porque eu estava me batendo: ele pensou que poderia
identificar os semi-habilitados com os não-tolos. Espero que com
este esforço poderei começar a fazer-lhes sentir que ... não é isso,
não é isso, não é nada disso o que quero dizer. Não que os semi-
habilitados não sejam, talvez, e certamente, não-tolos, acho que são
tão tolos como os outros, mas, ao contrário do que vocês podem
imaginar, não basta ser tolo para não errar!
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o chinês que ponho em causa, bem, eu não posso falar com ele na
minha língua, ou seja, se ele me compreende, é que já na sua, ele
está fodido.
O que é terrível é que, quando distinguimos uma ordem,
fazemos dela um ser. O termo modo, neste caso. Isso fica claro se
damos verdadeiro alcance a expressão modo de ser. Entretanto,
não há nenhum outro ser senão de modo, justamente. E o modo
imaginário tem dado suas provas, naquilo que concerne ao ser do
simbólico. Tanto que bem poderíamos arriscara... a tratar de ver se
o modo simbólico não alcançaria o ser do imaginário. Foi isso o
que eu tentei fazer, sintam vocês ou não. Tentei fazer, eu diria,
nesta terceira aula do ano, em que consiste seu lugar no seminário
e em seu programa. E é por isso que, desde o início, o enunciei a
partir do nó borromeu. O nó borromeu que eu vi surgir, - enfim,
quero dizer, que de certa forma me invadiu – o nó borromeu não
tem nenhuma espécie de ser.
célula vazia
- Isto é, escrita
- Isto é, que ela não é suspensível, como verdade, senão de
axiomas.
60 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
O anel de fio é algo que lhes permite a teoria do nó. Para que
se o rompa, é preciso que se o corte. A culpa. É o que se distingue -
talvez haja ocorrido isso a alguns aqui - é uma topologia. Uma anel
de fio, é um toro. E é o único que permite elaborar o nó. Não se
atam juntas duas esferas. Mas o interessante deste assunto é que
não se atam dois anéis de barbante, se atam três, mas de tal forma
que o terceiro só enoda os outros dois.
Há em algum lugar um artigo que diz, Da Causalidade
Psíquica, um lugar em torno do qual algumas pessoas tem se
esgrimido, um lugar onde eu ato, já que é disto que se trata, a
liberdade e a loucura, onde digo que uma não se concebe sem a
outra... o que, desde sempre, perturba porque pensam que eu digo
que a liberdade é a loucura... tenho que não me fazer compreender,
porque não, eu me entendo... Nesta ocasião desejo que observem
que o interesse de juntar, assim, no nó borromeu, o simbólico, o
imaginário e o real, é que disso resulta, não apenas resulta disso
senão que deve resultar disso, quer dizer que se o caso é bom, me
permitam essa abreviação dada a hora, se o caso é bom, basta que,
bastam dois, basta que cortem qualquer um desses anéis de
barbante para que os outros fiquem livres, um do outro.
Em outras palavras, se o caso é bom - deixem-me re-
enfatizar que este é o resultado de uma boa pedagogia, a saber, que
não se tenha falhado em seu enodamento primitivo - se o caso é
bom, quando a vocês falta um desses anéis de barbante, vocês
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18 de Dezembro de 1973
2 = 1 v 3 ⇔2 v 1 = 2 v 3
Que é uma fórmula que vocês ... bem, vocês podem utilizar
assim, que é dada pelas premissas da lógica proposicional.
Façam com isto o que quiserem, a deixo a vosso cuidado. A
deixo a vosso cuidado porque é preciso que eu avence, nas... nas
propriedades, nas propriedades do triplo, do triplo com que
acabamos por nos enfrentar. Sim, nessas propriedades do triplo há
isso: posto que cada um dos termos dos três do nó borromeu libera
os outros dois, se bem que há uma relação, uma relação real - em
todo caso, simbolizável - com esse meio, esse meio que deixa os
extremos bem esvaziados de toda sua potência. Mas no caso do nó
borromeu, os dois extremos tem a mesma potência. Então,
podemos considerar sob esse ângulo, sob esse angulo de fazer, de
cada um deles, um meio...
- o corpo,
- e aquele outro, o Real da morte.
Tudo isso quer dizer que cada um tece seu nó. Há algo que
quero lhes mostrar para lhes fazer ver como se produz o fracasso.
Porque, igualmente, há um inverso. Eu apareci para você, cantar
λόσις de amor, sim...Há um inverso e vocês verão como... Se o
amor se torna realmente o meio pelo qual a morte se une ao gozo,
o homem à mulher, o ser com o saber, realmente o meio, o amor
não se define, já, como fracasso. Porque verdadeiramente ele como
meio pode desenodar um do outro.
E isso se produz da maneira que vou lhes mostrar, que é a
seguinte. O nó borromeu - uma encantadora pessoa que me escuta
me enviou toda uma página sobre isso - o nó borromeu foi
abordado pelas vias matemáticas, como vocês bem sabem - já lhes
disse, a teoria dos nós ainda está no bê-á-bá - o curioso é que não
se descobriu isso tomando as coisas ao nível dos nós, senão ao
nível da trança. Mas o que é uma trança?
Ah! O que é uma trança? Em primeiro lugar, ela tem relação
com três, sem o que não se chamaria trança ... 1, 2, 3 ... Como é
que faço uma trança? Quem quer que tenha se ocupado do cabelo
de uma mulher pode saber o que é uma trança. Mas, naturalmente,
vocês não o sabem porque, atualmente, as mulheres tem cabelo
curto. Uma trança se faz assim, não é? a saber, vocês mudam o
lugar de 2 no lugar de 1... e o 3 fica no seu canto.
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05 de Janeiro de 1974
como que ela se funda, a coisa, a coisa do amor, que ela se funda -
pois que somente se trata de sua possibilidade - como disse, no
que cessa de se escrever. Quer dizer, naquilo que resta de que ela
cessa de se escrever.O que resta...é isso que eu venho articulando
desde um tempo quase infinito, estou me repetindo, a saber, a letra
de (a)muro (lettre d’(a)mur). A carta de (a)muro (lettre d’(a)mur))
enquanto não constitui outra coisa senão um monturo, um
pequeno a, hábitos, não muito mais. Isso é, ao menos, como tenho
traduzido em italiano, o meu famoso objeto pequeno a das letras
de (a)muro não mantendo, desde sempre, senão a mais fina
relação.
Tudo isso não me impede de dizer coisas que seguem um ar
de seriedade, o que eu traduzo a partir do serial. É um fato,
também, que eu troco a ordem da série que se repete, ou seja, o
que se chama o ordinário. Tudo está lá, em meu dizer, a trocar a
ordem do ordinário? É sobre isto quero argumentar hoje. Lhes
trazer o argumento adequado para dar sentido a funções mais
puramente cardinais.É o que eu tento fazer com meu nó
borromeu. Vocês o sabem, essa distinção do cardeal e ordinal ...
esse passo só foi franqueado graças à teoria dos conjuntos, quer
dizer, graças a Cantor. Para que nos pode servir à exploração de
um novo discurso? - vocês sabem, é assim como designo o discurso
analítico - discurso que se anunciou por uma decantação de
sentido.
3
Na edição staferla está education, o que nos parece um erro próprio da transcrição já que, tendo em
conta uma outra versão, que se pode encontrar em
https://archive.org/details/LES_NON_DUPES_ERRENT encontramos edupation e que, cá entre nós,
se encaixa muito melhor naquilo que Lacan desenvolve em seguida.
Jacques Lacan | 93
então que isso é óbvio, e por esta razão que talvez lhes faltaria: que
este não é o privilégio do Imaginário. Porque o Simbólico, o que
mais eu tenho que tentar para fazê-los imaginar? Deixem-me
acreditar que o consigo. Quanto ao Real, bem, é disso que se trata
este ano. É para ver exatamente o que há de Real no nó
borromeu.E por isso comecei pela minha segunda articulação
diante de vocês, no meu segundo seminário, assim o chamam,
comecei por dizer que não há iniciação. Não há iniciação, quero
dizer:
preciso ver ele, porque o que não paro de sustentar toda hora é, a
saber, que a ordem não é aqui essencial: este é o ponto importante.
É preciso que sintam bem isso: é que dispondo-os em três,
enquanto número cardinal - lhes peço perdão pela aridez do que
hoje tenho que lhes dizer - isto, o que é próprio de três, não implica
nenhuma ordenação, mesmo que pareça o contrário.A saber, que 1,
2, 3 começa em 1 qualquer coisa que vocês considerem. Não é
possível bem ordenar 1, 2, 3, a não ser com a condição de que isto
se repita. E isto é o que se produz no nó borromeu. Mas não só
por causa do nó borromeu, senão a causa do número cardinal 1, 2,
3, estejam eles enodados ou não.
O que quer dizer o que acabo disser? É que com o três,
cardinal, vocês não podem fazer - e com a única condição de que
não haja dois dos mesmos em seguida - não se pode fazer, ao
escrevê-los, como seriam pensáveis por uma
combinatória.Escrevam no quadro 1, 2, 3 - 1, 2, 3. Nada os impede
de lê-los, com a única condição de tomá-los na ordem
palindrômica, quer dizer a inversa, da esquerda para a direita em
vez da direita para a esquerda... em vez da esquerda para a direita.
1, 3, 2. Isso quer dizer, à partir do nó, do nó borromeu, o que vou
tratar de colocar no quadro - deem-me um giz - aqui está como
simplifico o nó borromeu:
quem marcam como se sustenta o nó. Contorno este nó.O que dará
isso? O próprio de um nó, quando é posto de forma plana,
dimensão essencial, porque o nó borromeu, penso tê-los feito notar
quando mostrei uma pequena construção em cubo que lhes trouxe
nem sei mais quando, na última vez, ou melhor, na penúltima. É
feito assim:
Vejam bem que pode haver outro sentido, este, que seria
destro, quer dizer, o sentido dos ponteiros de um relógio.
4
Lacan não explicita mas é lícito lembrar que Yadlun ( em hebraico )ידלןsignifica “nós modelamos”
e remete diretamente ao Breshit bíblico.
Jacques Lacan | 99
15 de Janeiro de 1974
- O segundo o secunda;
- E terceiro resulta de sua adição, simplesmente.
e não porque ele seja terceiro, senão por isso: que todos eles fazem
três. E que é tudo o que eles têm de Real, nada mais. Quero dizer:
todos e cada um. É tudo o que eles têm de Real. Isto parece pouco,
mas não pouca coisa.
Não é pouca coisa já que - se sente isso desde sempre - é
justamente sobre isso que o Real estava suposto. Se trata de
desalojá-lo dessa posição, de sua posição que no fim das contas o
subordina ao que se imagina ou ao que se simboliza. Tudo o que
eles têm de Real é que isso faz três.Aqui, três não é uma suposição,
e graças ao fato de que, por obra da teoria dos conjuntos, se
elaborou o número cardinal como tal. É preciso ver, é preciso que
vocês suportem o seguinte: que não se trata de um modelo, o que
seria da ordem do Imaginário.Não é um modelo porque, em
relação a esse três, vocês são não seu sujeito, o que imagina ou o
que simboliza. Com relação a esses três, vocês estão encurralados:
enquanto sujeitos, vocês não são mais que os pacientes dessa
triplicidade.
E são os pacientes, em primeiro lugar, porque, porque já está
na língua. Não há língua onde o 3 não se enuncie. Está na língua, e
também no funcionamento chamado linguagem. Quer dizer, a
estrutura lógica tal que - muito ingenuamente, enfim - o primeiro
que começou lá, o primeiro em nosso conhecimento, é claro,
Aristóteles, aquele de quem justamente temos escritos, foi bem
preciso que ele manejasse a coisa com letras minúsculas, e isso não
pode manejar-se sem que haja 3.
Além disso, é claro, que lá restava qualquer coisa da
suposição do Real, e ele não acreditou poder suportar este Real de
outra coisa que do particular, o particular que Aristóteles imagina
que é o indivíduo quando, justamente, ao situá-lo em sua lógica
como particular, ele mostra que o indivíduo não constituía mais
que uma noção inteiramente imaginária, o particular é uma função
lógica, e o fato de que ele lhe tenha dado por suporte o corpo
individual é precisamente o signo de que lhe era preciso uma
suposição.
Jacques Lacan | 109
dobre o dito, haja contribuído, para que possam vocês crer que o
que faz apoio a vosso corpo é uma circulação de informações saídas
de não sei de quais lugares, em primeiro termo do DNA, como nos
dizem, ou DN, que disso vocês se apóiam, que tudo não seja, em
suma, senão uma informação da que felizmente nos advertem que
não consiste senão em violar um dos fundamentos mesmo do que,
por outra parte, se edifica como energético. Será que tudo isto é
também da ordem da cogitação?Em outros termos: acaso estamos
obrigados e tê-lo em conta quando aquilo que enfrentamos na
política é um tipo de informação cujo sentido não tem outro
alcance senão o imperativo, a saber, do significante Um? É para
mandar sobre nós, dito de outro modo, para que a ponta do nosso
nariz a siga, que toda informação, em nossa época, é vertida como
tal.
Portanto, no que lhes enuncio acerca de certo dizer, o
importante não é outra coisa que senão as conseqüências que pode
ter. Ainda é preciso, para que tenha suas conseqüências, que eu me
dê ao trabalho. Esse dizer nem é verdadeiro - aqui o digo, para o
caso mais que provável de que vocês não tenham notado - não é
verdadeiro senão enquanto que põe limite ao alcance do que nos
interessa em primeiríssimo lugar, a nós, no discurso analítico,
daquilo que pões limite ao alcance da verdade.
Em outro tempo havia algo assim como um... um garoto de
recados que lançava gritos depois de cada um de meus seminários,
gritos que se resumiam em: Porque que ele não diz o verdadeiro
sobre o verdadeiro? Este personagem é bem conhecido, lhe foi
confiado um Vocabulário...Eu não tenho que dizer o verdadeiro
sobre o verdadeiro, pela razão de que dele não posso dizer mais
que isto: que o verdadeiro é o que contradiz o falso. Mas, pelo
contrário, posso dizer, embora também fosse preciso colocar
tempo nele, pois há um tempo para tudo, posso dizer a verdade
sobre a verdade.A verdade é que não se a pode dizer, já que ela só
pode se semi-dizer. A verdade não se funda, acabo de dizer, senão
na suposição do falso: ela é contradição. Não se funda mais que no
Jacques Lacan | 111
não se pensa que ela saiba que não seja senão ao cabo de 6,
que isso aguente para constituir um nó borromeu.
Não é de todo certo que ela saiba que o 3 tem relação com o
Real, pode lhe faltar a distinção, de maneira que assim se produz
um nó, se posso dizer, ainda mais enodado, de uma unidade ainda
mais Una. No melhor dos casos, hein, no melhor dos casos é
possível que isso não constitua mais que uma corda, de anel de fio
no fim das contas.
É suficiente que vocês imaginem que o 1, 2, 3 se emenda ao
2, 3, 1. Isso fará um nó ainda mais belo, se posso me expressar
assim, não é? Quero dizer que tudo se continua em tudo, e depois
de tudo, isto não resulta menos um nó, porque se vocês fazem uma
trança isso dá forçosamente alguma coisa,
12 de Fevereiro de 1974
Todo A é B, todo B é Γ
E se deduz que
Todo Α é Γ.
seres - que resulta muito singular, que a propósito disto salta, mas
como, como uma irrupção, a seguinte passagem:
19 de Fevereiro de 1974
...verão, talvez, onde pode se colocar isso, o que não se deve fazer.
Enfim, o verão melhor quando eu diga mais à respeito. Sim...
Pelo contrário - já que todavia tenho um minutinho - pelo
contrário, há um bom exemplo, um bom exemplo do que se pode
fazer. É outro livreto. Outro livreto do mesmo Iaakko - parece que
se pronuncia Jaakko Hintikka - Jacques, portanto. Jaakko Hintikka
fez um livreto que se chama Time and Necessity, com o subtítulo:
Étude sur la théorie des modalités d’Aristote.
Não é ruim. Não é ruim e se supõe - o tenho só há alguns
dias - se supõe que alguém, o Hintikka em questão, havia se
adiantado a mim, se adiantado e desde muito tempo, pois seu
livrinho não só foi escrito senão que foi publicado, e teria me
adiantado desde há muito tempo sobre o que lhes fazia observar na
vez passada: que vale à pena ler o Organon de Aristóteles, porque o
mínimo que se pode dizer é que fará que quebrem a cabeça, e o
que o difícil é saber, em alguém que produz aberturas - assim o
chamei - como Aristóteles, porque, porque elegeu esses termos e
não outros. Assim! Elegeu esse e não outros porque, no fim das
contas, porque não é possível dizer o porquê se não começo a
articular o que hoje tenho que lhes dizer.
O que eu fiz da última vez, naturalmente, não é pouca
coisa. Isso deve ser feito! deve ser feito! Naturalmente, isso passou
despercebido por mais de uma pessoa, mas houve algumas que
acusaram o golpe. Bem. Assim, se não erro - me falta ar - como
jogar o jogo que me guia?
5
Em francês jouljeu, jouljeux e jouljeut são homofônicos.
Jacques Lacan | 139
existe, senão quando derrubada por terra! Sem dúvida, vocês não
percebem que se digo isto derruba a alma por terra, quer dizer que
se torna completamente inútil. É exatamente o mesmo o que acabo
de lhes dizer ao dizer que revelar a verdade ao mundo é revelar o
mundo a si mesmo.Isto quer dizer que não há mais mundo que
alma. E que, por consequência, enfim, cada vez que se parte de um
estado de mundo, como se diz, para apontar a verdade, alguém
mete o dedo no olho! Porque o mundo, bem, basta já de afirmá-lo,
é uma hipótese que se apodera de tudo o mais, inclusive da alma. E
isso se vê ao ler Aristóteles, Sobre a Alma. O mesmo que para
Hintikka. Lhes aconselho, muito, sua leitura.
Se há saber, se é possível levantar a questão sobre o saber,
então é muito natural que me hajam agarrado com isso, porque a
paciente de minha tese, o Caso Aimée, bem, ela sabia.
Simplesmente ela confirma aquilo que vocês compreendem do que
já comecei: ela inventava, o que não basta, claro, para assegurar,
para confirmar que o saber se inventa, porque, como se diz, ela
desvairava.Mas foi como essa suspeita me veio. Naturalmente, eu
não sabia. Precisamente por isso se há que dar um passo a mais na
lógica e perceber que o saber, contrariamente ao que sustenta a
lógica epistêmica, que parte disso: da hipótese, e nisto descansa a
varredura que ela constitui. Há que se ver no que dará isso, se
vocês escrevem - é como eles escrevem lá: saber de a, pequeno a -
não está mal escolhido esse a minúsculo, enfim, é uma casualidade
que seja a mesma letra que a minha - saber de pequeno a. Teria
que comentá-lo. Aqui designa o sujeito, certamente que eles não
sabem que o sujeito é aquele de que o pequeno a é a causa, enfim, é
um fato que eles o escrevem assim: S(a). A lógica epistêmica parte
disso: que o saber é forçosamente saber o verdadeiro.Vocês não
podem imaginar onde isso vai dar. Nas loucuras! Ainda mais nesse
em falso que inscreve o saber inconsciente: que é impossível saber
nada, supostamente verdadeiro como tal, sem o saber. Quero dizer,
saber que não se sabe.
142 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
ser inanimado quer dizer que é suposto não saber nada. Isso não
significa mais nada para quem dá à alma certo sentido equivalente.
Mas o fato de que não saiba não prova que esteja morto. Porque o
mundo inanimado seria um mundo morto? Isso não quer dizer
grande coisa, claro, mas levantar a questão tem também seu
sentido.
De qualquer forma, correlativamente a essa questão de
Mais Além do Princípio do Prazer, Freud nada em meio a algo que
está muito mais perto da questão da morte, do que ela é. Ele parte,
parte e depois abandona a coisa, o que é bem irritante. Parte do
problema do gérmen e do soma. Ele o atribui a Weismann. Eu não
posso mentir. Não é bem o que disse Weismann. Quem fez a
separação do gérmen e do soma é um tipo que viveu um pouco
antes, e que se chamava Nussbaum. Além disso, para o que vocês
fazem, podem deixar por isso mesmo, não tem grande
importância.O importante é o que Freud roçou nesta ocasião: que
não há morte senão ali onde há reprodução sexuada. É tudo.
Se usarmos o termo de Aristóteles, o ὑπάρχειν em questão,
pertence a, e o usarmos da maneira correta, da maneira como
Aristóteles o usa, quer dizer, sem saber por qual ponta pegá-lo,
vemos que o sexo ὑπάρχεινpertence a morte, a menos que a morte
não pertença ao sexo. E nós ficamos com a mão, onde a alça
precisamente pega a coisa. Sim.
Quando a falha se demonstra em suas conseqüências,
Freud a propósito disso e sob o pretexto de que algo no mundo
mostra que a vida as vezes vai em direção da morte, articula,
articula o que no entanto é difícil eliminar do sexo: o gozo, e
efetuando um deslizamento que teria sido evitado se houvesse tido
firmemente entre suas mãos o nó borromeu, designa como
masoquismo a pretendida conjunção desse gozo, gozo sexual, e a
morte. É um colapso. Sim...
Se existe um lugar onde a prática clínica mostra-nos
alguma coisa - e isso explica por que felicito, assim, de passagem,
alguém que deu errado - se há algo bastante claro é que o
144 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
6
.
6
A edição staferla fica confusa por aqui pois usa símbolos que não evocam o que Lacan está
realmente trabalhando. Ao menos desde o seminário D’um discours qui ne serait pas du semblant,
de 1971, as letras usadas são as que a reproduzimos. Na edição staferla, contudo, está assim:
: § /§ ! / ! Por essa razão lançamos mão de outras versões para chegar a essa forma.
Jacques Lacan | 147
7
Neste exato ponto a edição staferla retoma o esquema que já foi posto no quadro no início desta
aula. Nos pareceu desnecessário reapresentá-lo.
Jacques Lacan | 149
12 de Março de 1974
do que, depois que tenham feito seis vezes esse gesto, encontrarão
as três vertentes em sua ordem. E aqui, de novo, as unem.
Quer dizer, o que vocês vêem passar por aqui uma vez, no
interior dos outros dois nós, percebam que estão - por isso os
apresentei assim - livres um do outro, e o fazem, como vocês
podem ver, duas vezes. E sempre será um nó borromeu, porque
qualquer que seja aquele que rompe, os outros dois estarão livres.
Com um pouco de imaginação podem ver por que,porque, tendo
esses dois últimos, por exemplo, são tais que - digamos as coisas
com simplicidade - não se cortam, estão um por cima do outro.
Podem observar que isto é certo para cada um dos dois. Bem! E
156 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
Por meio do qual vocês vêem que aquilo que resulta é isso:
ser três, esses nós não possam ser desanodados, mas basta que
qualquer um deles falte para que os outros dois fiquem livres.
É mesmo uma das formas mais claras de representar
graficamente isto: que, se fazem passar vosso anel pelo interior do
nó que chamo, do laço que chamo de laço dobrado, se fazem passar
outro laço dobrado da mesma maneira, poderão enodar um
número indefinido desses anéis de barbante, e bastará que um seja
rompido, que um falte, que um não esteja, para que todos os
outros se liberem. Por meio do que não pode deixar de lhes ocorrer
que, já que podem agregar um número indefinido de vezes, esses
nós dobrados tomados uns nos outros, não estejam vocês forçados
a terminar aquilo que vocês vêm funcionar aqui, a saber, um
simples anel de fio. Podem enlaçar o círculo completo, de uma
maneira que inclusive faz tomar a coisa por um círculo dobrado.
Quer dizer que se tiverem mais de três, lhes seria bem fácil
imaginar que pare ele se fechar, para fechar, lhes bastaria um
desses círculos dobrados. Se vocês fecham com três, o que obtém é
justamente muito precisamente esse resultado:
ímpar, isto não carece por certo de razão. Ele se equivoca em ser
ímpar, e se regozijar por isto é uma lástima, pois ele não o é,
seguramente. Mas que seja engendrado pelos dois ímpares, um e
três, isto é, em suma, o que o nó borromeu traz à tona, por assim
dizer. Assim mesmo, vocês devem sentir a relação que tem esta
elucubração com nossa experiência analítica.
Freud é seguramente genial. É genial pelo fato de que o que
o discurso analítico traz à tona, sob sua pena, é o que eu chamaria
de termos selvagens.
Leiam Psicologia das Massa e Análise do Eu, e,
especificamente, o capítulo A Identificação, para compreender o
que pode haver de genial na distinção formulada lá, das três classes
de identificações, quer dizer:
8
Na edição staferla consta essa atteritta gravurada. Mas como Lacan não a apresenta nesta aula e
apenas a evoca, preferimos não reproduzi-la aqui. A razão para assim procedermos é bastante
simples: não queremos, de forma alguma, inserir sentido, nosso ou de qualquer outro, na fala de
Lacan. Quem quiser saber do que se trata precisará, aliás como nas outras referências desse
seminário, encontrá-la por seus próprios meios.
168 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
qualquer outra coisa. É o meu feno, que ... Assim, isto não quer
dizer que não existam coisas que mudam. Estou interrogando o
amor. E começo lendo coisas que são uma pequena aproximação,
simplesmente, não sei como isso pode acontecer... eu vou dizer um
pouco mais. Se o resultado é uma extensão do discurso
psicanalítico já que depois de tudo não faço menos que considerá-
lo, mas como um cancro! Quer dizer que isso pode estragar um
montão de coisas: se o bem-dizer não é governado senão pelo
pudor, que forçosamente choca. Isso choca, mas não viola o pudor.
Assim, tratemos de nos interrogar sobre o que poderia
ocorrer se ganhássemos seriamente, por este lado onde amor é
apaixonante, mas que implica que nele se siga a regra do jogo.
Claro, para isto há um saber. É talvez o que falta: sempre se tem
estado com isso numa profunda ignorância, quer dizer, se joga um
jogo cujas as regras não se conhecem. Então, se esse saber deve ser
inventado para que haja saber, talvez seja para isso que possa
servir o discurso psicanalítico.Só que se é verdade que o que se
ganha de um lado se perde por outro, seguramente há alguém vai
sofrer. Não é difícil encontrá-lo: quem sofre é o gozo. Porque,
nessa coisa cega, enfim, que se persegue com o nome de amor, o
gozo, isso não falta. Isso sobra! O maravilhoso é que nada se sabe
dele: mas talvez seja o próprio gozo, justamente, que dele nunca
possa se saber nada. O surpreendente, também, é isto: que não
tenha existido discurso sobre o gozo.
Se fala de tudo o que se queira, de substância extensa, de
substância pensante, mas a primeira ideia que poderia ocorrer, que
se há algo que se possa definir como o corpo, não é a vida, já que a
vida só a vemos em corpos que, depois de tudo, o que são? Coisas
da ordem das bactérias, coisas que abundam, enfim, e rapidamente
se tem três quilos quando se se tinha um miligrama, não se vê bem
que relação há entre isso e nosso corpo... mas a própria definição
de um corpo é que seja uma substância gozante, como é que
ninguém jamais o enunciou? É a única coisa, fora de um mito, que
é verdadeiramente acessível a experiência. Um corpo goza de si
Jacques Lacan | 169
mesmo, goza bem ou mal, mas está claro que este gozo o introduz
numa dialética onde, indiscutivelmente, fazem falta outros termos
para que se sustente em pé, a saber: nada menos que esse nó que
lhes sirvo, que lhes sirvo como pão coberto de geléia.
Que o gozo possa escapar a partir do momento em que o
amor se torna um pouco civilizado, quer dizer, que se saiba que se
o joga como jogo, enfim, não é certo que isso ocorra, não é certo
que ocorra, mas ao menos isso poderia nos ocorrer, se assim posso
dizer. Pode nos ocorrer tanto mais quanto que dele existem
pequenos traços, como isso.
Há ainda uma observação que eu gostaria muito de lhes
fazer, relativa a pertinência desse nó: no amor, aquele onde os
corpos tendem - e há algo picante que lhes direi depois - aquele
onde os corpos tendem a se enodar. Não conseguem,
naturalmente, porque como vocês vêem, o inaudito é que a um
corpo não ocorre nunca que se enode. Nem sequer há traço de nó
no corpo! Se algo me impressionou na época em que fazia
anatomia era isso: sempre esperava ver ao menos, assim, em um
canto, uma artéria, ou em um nervo que, que oba!, que fizesse isso.
Nada! Nunca vi nada parecido. E por isso a anatomia, devo dizer,
me apaixonou durante dois anos. Isso irrita muita gente que faz da
medicina um pesado fardo. Não a mim. Naturalmente, não me dei
conta disso rapidamente, não me dei conta de que era por isso que
me apaixonava. Só me dei conta disso depois. Nunca se sabe senão
depois. E é absolutamente certo que aquilo que eu buscava na
dissecação era encontrar um nó. Sim.
E nisso esse nó borromeu alcança ao menos o porquê desse
fato, de que o amor, no fim, não está feito para ser abordado pelo
Imaginário. Pelo simples fato de que quando gagueja, na falta de
conhecer a regra do jogo, articula os nós do amor, hein...é
engraçado que isto se detenha na metáfora, que não esclareça, que
não dê a ideia de que, pelo lado dessa coisa que espero ter-lhes
feito sentir um pouquinho, seu lado de consistência estranha, e o
fato de que se surpreende isto, que o Real, no fim das contas, não é
170 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
com o Real do gozo, não haveria aqui alguma coisa que faria o
jogo?
O gozo do real, isso faz sentido, hein? Se em alguma parte
há gozo do Real como tal, e se o Real é o que digo, a saber, para
começar, o número 3 - e vocês sabem, não é o três, hein, que
quero. Podem lhe agregar 1416 que sempre será o mesmo número,
hein, pelo fato de que me serve, e poderiam também escrevê-lo
2,718 - é um algoritmo neperiano - ele cumprirá o mesmo papel -
as únicas pessoas que gozam desse Real são os matemáticos.
Então, seria necessário que os matemáticos passem sob o
jugo do jogo do amor, que nos enunciem um ponto deste, que
trabalhem um pouco mais sobre o nó borromeu porque, devo
confessar, enfim, estou verdadeiramente embaraçado, mais do que
podem crer, passo o dia fazendo nós borromeus e enquanto isso...
tricoteio.
(Risos)
19 de Março de 1974
Assim é, até esse ponto, o que posso fazer sob sua forma
mais simples, esses nós projetados, projetados como vou lhes
mostrar, eles consistem em que, e o que aqui desenho é algo que
vocês podem imaginar, esse terceiro laço. Por instaurar-se num
trajeto, são esses nós independentes, como vocês vêem, quer dizer,
imaginam, são esses nós independentes o que faz esse nó triplo
que chamo nó borromeu, este que assim representado lhes é
imaginável no espaço - como vocês podem ver, qualquer que fosse
a maneira em que eu pudesse escrever esse nó, podem constatar
que é também uma escrita, quer dizer:
bom, bom para o serviço. Para o serviço de quê? Não creio forçar a
barra se formulo esta pergunta pois, é preciso dizer que ninguém
se aproximou, jamais, dessa pergunta sem suscitar, de alguma
forma, uma ideia de supremacia, quer dizer, de subordinação.É
verdade que o bem só pode ser chamado soberano. Não sentem
por acaso que aqui se denuncia algo como uma enfermidade?
Recorro àqueles que, justamente, têm o Imaginário desperto, à
condição de que isso não suporte neles nenhuma esperança,
porque está perfeitamente compreendido que eu não digo nada
semelhante, mas tão pouco digo o contrário, a saber: que o bem é
soberano.De maneira que, com respeito ao chamado Imaginário,
meu dizer de nossos dias opera com ele, mas não é por lá que o
ataco. Meu dizer disse só que o Imaginário é aquilo que o corpo
deixa de dizer, nada que venha se escrever de outro modo que: eu
dormi de tal a tal hora!
Tudo isso não muda o fato de que isso comicha. A verdade
comicha, inclusive a quem, sem crer muito nela, os chamo de
canalhas, por que no fim das contas basta que a verdade comiche
para que isso toque no verdadeiro por algum ângulo. Não importa
o quê, e isso tocará sempre o verdadeiro. Se não toca no vosso,
porque não tocaria no meu? Aí está, este é o princípio do discurso
analítico, e por isso eu disse em alguma parte e a alguém que tem,
assim, um lindo livrinho sobre a transferência - seu nome é Michel
Neyraut - disse a ele que começar, como ele faz, pelo que chama a
contratransferência, se com isso ele quer dizer que a verdade toca
o analista mesmo, ele está seguramente no bom caminho, porque
depois de tudo, é lá que o verdadeiro toma sua importância
primária e que, como o fiz observar faz muito tempo, não há mais
que uma transferência, a do analista, já que, afinal de contas, é ele
que é o sujeito suposto ao saber.Deveria saber bem a que se ater
acerca de sua relação com o saber, até onde é regido pela estrutura
inconsciente que o separa desse saber, que o separa ainda que
conhecendo uma ponta e, sublinho, tanto pela experiência que dele
Jacques Lacan | 179
fez em sua própria análise como por aquilo que meu dizer pode lhe
proporcionar.
Quer isto dizer que a transferência é a entrada da verdade? É
a entrada de alguma coisa que é a verdade, mas a verdade a partir
da qual, justamente, a transferência é a descoberta: verdade do
amor.A coisa é notável: o saber do inconsciente foi revelado, foi
construído - tal é o valor desse pequeno livro, seu único valor,
aliás, mas justifica a sua compra - a verdade do inconsciente, quer
dizer, a revelação do inconsciente como saber, essa revelação do
inconsciente como saber se fez de uma maneira tal que a verdade
do amor, quer dizer, a transferência, não fez mais que
irromper.Ela ficou em segundo lugar. E nunca se soube bem fazê-
la voltar a entrar, salvo sob a forma do mal-entendido, da coisa
imprevista, da coisa com a qual não se sabe o que fazer, salvo dizer
que era preciso reduzi-la, inclusive liquidá-la. Esta observação por
si só justifica um pequeno livro que saiba fazê-la valer, porque
também é necessário se introduzir nisto: que da experiência
analítica, a transferência é o que ela expulsa, o que ela não pode
suportar senão padecendo, por sua causa, de fortes dores de
estômago.
Se o amor passa por esse estreito desfiladeiro de que é a
causa, e com ele revela o caráter de sua verdadeira natureza, não
vemos que vale a pena repetir sua pergunta? Porque é difícil não
confessar que o amor ocupa um lugar, ainda que até aqui o
tenhamos reduzido, como se diz, a suas funções. Com o amor
pagamos, oferecemos um óbolo, tentamos por todos os meios
permitir que se afaste, que se dê por satisfeito.
Como então abordá-lo? Em Roma prometi, já não sei que
dia, dar uma conferência sobre o amor e a lógica. Ao prepará-la
percebi a enormidade do que sustenta meu discurso, porque não
há nada parecido com isso, no passado, que dê conta dele. Eu
percebi que, no fim das contas, não é por nada que Freud, naquilo
que eu citava na vez passada, tenha intitulado Psicologia
justamente chamada das Massas e Análise do Eu, lá, confronta a
180 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
9 de Abril de 1974
9
Aqui, a exemplo da oitava aula, a edição staferla insiste numa simbologia que não corresponde
àquilo que Lacan evoca e que não consta nas outras edições que consultamos.
188 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
- O que se chupa;
- O que se caga;
- O que faz o olhar, o que domina o olhar na realidade;
- E depois a voz.
vou avançar nisso - como essa borda do Real, situá-lo sobre essa
borda.
Para, porque é preciso, enfim, lhes dar outro alimento que
esta abstração, como vocês diriam, porque justamente o sensível
aqui é que não é abstração. É duro como ferro. Não porque uma
coisa que não é suculenta seja abstrata. É divertido que eu
experimente aqui a necessidade - sendo o desejo do homem o
desejo do Outro - que eu experimente aqui a necessidade de me
tornar uma pequena escanção-engraçada para lhes fazer notar que
é divertido, enfim, uma coisa, uma pequena amostra anedótica que
lhes vou dar, não é? É bastante curioso, por exemplo, que o saber,
uma vez que é inventado, passa como isso, como lhes direi: quando
Galileu percebeu algumas dessas invenções que transtornavam
completamente o saber relativo ao Real celeste, teve o cuidado de
fazer anotações da seguinte forma: enviou a algumas pessoas certo
número de dísticos latinos - dois versos, não mais - nos quais,
pelos quais ele podia, em certo momento, deixar a coisa datada, e
ao tomar certo número de letras, de três em três, por exemplo,
demonstrar que havia inventado a coisa impossível de fazer
engolir à sua época, que ele havia inventado já em determinada
data.
Quer dizer, que isso foi inscrito indiscutivelmente pela
maneira mesma como fez esse dísticos, cujo conteúdo pouco
importa, aliás, dado por certo que nesse gênero, enfim, é possível
escrever qualquer coisa, isto não faz nada a ninguém, tudo o que
interessa àquele que recebe a carta de um personagem como
Galileu, não é o que isso quer dizer, senão que tem um autógrafo. E
a maneira em que se abre, de certo modo, o que chamaremos de
aparente idiotia dos dois versos, estava inscrita, a data, a data de
tal coisa, a coisa de que tratava, a saber, acerca do céu e o princípio
dos trajetos que oferece para ver, e que lá não se ilustra de uma
maneira somente divertida, senão que vocês tem muitas outras
ilustrações, pois como ele fez e insistiu nisso com pés de chumbo, é
evidente que se a lógica é o que digo: a ciência do Real e não outra
Jacques Lacan | 195
10
Na edição que tomamos por base esse trecho não é encerrado por um ponto de interrogação. Mas é
bastante claro que se trata, como Lacan mesmo diz, de uma pergunta.
196 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
quando não está suportado por nada, por nada que possamos
demonstrar, é preciso que admitamos que é o escrito o que
sustenta, que há aqui uma modalidade de entidade do escrito.
Como traduziremos entidade?
- O instante de ver.
- Depois a coisa à compreender;
- E, depois, o momento de concluir.
... devo fazer que esse objeto a advenha, tenho que fazê-lo advir.
Não é o eu (je), em meu caso, quer dizer, aqui no momento em que
eu estou diante de vocês. É o a. Sim. Esse lugar de ninguém é, bem
entendido, como o nome ninguém o indica, um lugar de
classificação a ocupar, - enfim, não é? - de falso semblante: se trata
de ocupar a função do analista. E nisto eu adiantava algo, algo que
surge com a questão, sempre a mesma: Posso sê-lo?. Autorizar-se,
isso ainda pode ir - heim? - mas sê-lo, é outro caso. Aqui se forja
200 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
Quero dizer que é bem possível que uma pessoa que não
tenha o menor desejo de saber nada - não é? - igualmente se tenha
dado conta de que, na sociedade, o discurso universitário assegura
aos que sabem um bom lugar, e se o entrega para a menina, a
garota que se torna histérica - e justamente por isso - lhe repassa
que isso é um meio de poder.Naturalmente, ela recebe a coisa, ela,
sem saber que é por isso, recebe em sua primeiríssima infância, e
este é um caso bem freqüente de transmissão de desejo de saber,
mas é algo adquirido de uma maneira totalmente secundária. Em
outros termos, o que trata de lhes meter na cabeça e a propósito
desta experiência da criança que naturalmente lhes fala desses
porquês? desses porquês? que concernem a porque isso?, porque é
que as crianças nascem? etc. E tudo o que eles querem é, é ouvir
algo que dá prazer, mostrar que fazem tudo como se se
interessassem, mas quando já sabem o recalcam - vocês sabem
bem - e o recalcam imediatamente, não pensam mais nisso, enfim,
é preciso ter uma ideia um pouco mais clara do que se passa
realmente. Esse desejo de saber, na medida em que toma
substância, toma substancia do grupo social.
Na verdade, não vou me contentar com esta reposta para o
quem tem a ver com a invenção matemática, não é? Está bem claro
206 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
que existem aficionados - não é? - quero dizer, que não era uma
maneira de se fazer valer na Sorbonne resolver os problemas la
cycloïde. Houve, enfim, tempos milagrosos, tempos que gostaria de
ver se reproduzirem - não é? - sob a forma dos psicanalistas,
gostaria de ver se reproduzirem neles essa espécie de República -
não é? - que fazia Pascal se corresponder com Fermat, com
Roberval, com Carcavi, com tanta gente - não é? - vinculada entre
si por alguma coisa que não se sabe o que é, e que se havia
produzido. Isto é o que um dia gostaria de sacar da história, não se
sabe o que se havia produzido que fazia que houvesse gente que
desejava saber mais e mais a propósito dessas coisas inverossímeis
- não é? - que desenhavam isso: la cycloïde. Vocês sabem o que é -
não é? - sim, é um círculo, uma roda que gira ao redor de outra,
vejam no que pode dar isso, eu não sei, uma coisa como isso, mas
nada como o fato de que estavam aficionados por isso, e isto,
creiam-no, nesse momento não reportavam nada para nenhum
senhor - não é? – suas coisas ficavam estritamente entre eles - não
é? - não saíam dali.
Claro, dali saiu vossa televisão, essa televisão graças a qual
vocês estão definitivamente idiotizados - bom, mas enfim, eles não
o fizeram para isso. Eles forneceram o objeto a, claro, mas
justamente sem o saber, e por isso o realizaram tanto melhor
quanto o objeto era o objeto a, quer dizer, esse que vocês estão
fartos - não é? - o realizaram tanto melhor quanto, sem saber para
onde iam, passaram pela estrutura, pela estrutura que lhes disse, a
saber, essa borda do Real.
Aula 12
23 de Abril de 1974
- O tentador, heim
- E depois, a inepta - não é? - a nomeada Eva.
- E depois, o estúpido dos estúpidos -não é? - o primeiro
Adão.
- E depois o que circula, a coisa que ficou atravessada na
garganta, a maça, como se diz.
- Mas isto não é tudo, heim, há o avô que depois chega e em
seguida os toca.
Eu não sou contra ler isso, não sou contra porque está
pleno de sentido. É justamente disso seria necessário limpá-lo.
Talvez, se, se rasparmos todo o sentido, heim, teríamos uma
chance de aceder ao Real. É mesmo por isso que estou tentando
lhes ensinar. Que o que nos importa não é o sentido da queixa
senão o que poderíamos encontrar mais adiante, definível como
Real. Sim.Só que para limpar o sentido não poderíamos esquecê-lo
pois do contrário produz rejeição, heim. E em tudo isto existe
alguma coisa que se esquece: é a árvore. O que se agigante é que
não se perceba que era isso que estava interditado:
- Não é a serpente.
- Não é a maçã
- Não é a babaca
- Não é o babaca.
se lava, porque, malgrado a árvore que não se lava, isso, isso se vê,
malgrado isso, a árvore goza? Pergunta que eu chamaria de
essencial. Não se trata de que exista essência fora da pergunta, a
pergunta é a essência, não existe outra essência além da pergunta.
Como não existe pergunta sem resposta - faz tanto que o golpeio -
isto quer dizer que a essência também depende dela, da resposta.
Só que aqui, ela falta. É impossível saber se a árvore goza, ainda
que não seja menos certo que a árvore seja a vida. Sim.
Peço desculpas por ter imaginado isso, por ter imaginado
apresentar isso, assim, com a ajuda da Bíblia. A Bíblia, a mim, não
me mete medo. E digo mesmo mais: tenho uma razão para isso.
Existem pessoas que se formaram com ela, heim, os judeus, como
são geralmente chamados. Não se pode dizer que não tenham
cogitado sobre a coisa: a Bíblia. E digo mais ainda: tudo prova,
tudo prova em sua história, tudo prova que não se têm ocupado da
natureza, que talmudizaram, como se diz, essa Bíblia. E bem, devo
reconhecer que isso eles conseguiram.Em que isso me toca? Me
toca nisso, sim, que verdadeiramente contribuíram, quando estava
a seu alcance, para domínio que me interessa, ainda que seja o
meu - o meu, no sentido de domínio da análise - que
verdadeiramente contribuíram, e com particular astúcia, para o
domínio da ciência. O que quer dizer isso? Não foram eles quem a
inventaram.
A história da ciência partiu de uma interrogação sobre a -
coloquem isso entre aspas, lhes rogo - sobre a "natureza", sobre
ϕύσις, sobre o que o senhor Heidegger se contorce em
circunvoluções.O que era a natureza para os gregos?, ele se
interroga. Eles faziam uma ideia da natureza. Há que se dizer que a
ideia que faziam dela - como o mesmo Heidegger sugere - se
perdeu. Está perdida, perdida, perdida. Não vejo porque a
lamentaríamos, já que está perdida, heim? E bem, não temos que
fazer um luto tão grande, pois não se sabe o que ela é. Bem.
Não se sabe o que é porque é evidente que se a ciência
logrou, logrou surgir, não parece, aliás, que os judeus tenham
Jacques Lacan | 213
que não tem estritamente nada a ver com sua segunda aparição,
que é pura homologia - a sexualidade não é em absoluto a mesma
coisa, mas que pode estar ocasionalmente ao nível da árvore, uma
coisa ligada à infecção e a nenhuma outra, de qualquer forma, de
qualquer forma, é digno de nos reter.Claro, isto não quer dizer nos
precipitarmos, heim, não há que se precipitar sobre tudo isso
porque essa é a melhor maneira de meter o dedo no olho. Mas
enfim, é sensível. E a questão do gozo se sugere desde a infecção,
sexualidade de alcance limitado, é também digno de nos reter.
Bem. Quando digo não se precipitar, heim, também quero dizer
não se deixar conduzir pelo nariz.
Existe - faço aqui uma ruptura, tomo as coisas por outro
ângulo e pergunto: existe saber no Real? É essencial que aqui eu
rompa, pois, se não eu, ao menos vocês, até aqui tem se deixado
levar pelo nariz, quer dizer, se detêm ali onde eu mesmo me
detenho, para não me deixar de igual modo. Fazer a segunda
pergunta, a que agora faço avançar, depois de me deixar levar pela
espuma religiosa: que interesse oferece isso, que agora volto a
partir?É ainda - não é difícil sentir - não é? - que o gozo faz
irrupção no Real e haverá um momento - que será mais tarde,
porque ao menos é preciso seriar as coisas - em que a questão se
inverterá. O que o Real pode responder se o gozo o interroga? Foi
assim que eu comecei - vejam vocês a conexão - que eu comecei a
colocar a questão: o saber não é o mesmo que o gozo? Eu diria
mais: se há pouco os levei a partir desse saber que se inscreve do
inconsciente, é que, não é forçoso que o saber goze de si mesmo.
E é por isso que agora, ruptura, retomo o fio pela outra
ponta, na qual não se encontra nenhum termo do que sustentei
primeiramente. Retomo o fio por outra ponta e pergunto sobre
esse saber no Real. É bem claro que esta pergunta - como todas as
outras - só se faz à partir da resposta. Direi mesmo mais, à partir
da resposta, tal como acabo de acentuá-la: o inconsciente, no
sentido de Freud, é aquele em nome do que formulo a pergunta do
saber no Real. Mas não a faço dando ao inconsciente de Freud todo
Jacques Lacan | 217
Vocês crêem que tal surgimento tem alguma coisa que ver
com a decomposição aristotélica? Basta olhá-las para perceber que
esses potes não podem servir para nada. Mas existe uma coisa
segura, e é que brotaram - não é? - brotaram, enfim, como uma
flor. Que Aristóteles as decomponha - não é? - em co-causas, em
quatro causas - pelo menos - diferentes, por si só demonstra que
os potes são de outro lugar.
Mas porque lhes falo deles se precisamente os ponho em
outro lugar? Lhes falo deles porque se é o cliente quem finalmente
tem que julgar o pote, na falta de quem o oleiro terá de apertar o
cinto, isto demonstra alguma coisa: que o cliente não só compra o
pote senão que também o artesão, o poteiro, se posso me expressar
assim. E basta ver a consequência do vínculo que existe entre o
fato de que o pote seja tão bem feito e que o oleiro seja levado ao
pináculo, para perceber que essa velha história é exatamente a
mesma que aquele de onde surgiu a noção de Deus. Está tão bem
feito que se imagina que Deus é um oleiro, exatamente como um
artesão.O Deus em questão é - em outro tempo, meu velho amigo
André Breton acreditou pronunciar uma blasfêmia ao dizer que
Deus é um porco (porc). Não é por nada que na vez passada lhes
disse que jamais encorajei os surrealista. Não se trata em absoluto
de que eu abrevie e diga que Deus é um pote (pot), Deus é um
empotado (empoté), Deus é o oleiro, é certo, mas o oleiro também
é um emporcalhado (empoté). É o sujeito do saber suposto a sua
arte.
Mas não se trata disto quando faço a pergunta: Existe saber
no Real? Porque isso se encontrou no dia em que do Real se logrou
arrancar uma pitada, quer dizer, no momento de Newton, quando
de qualquer maneira isso aconteceu, e que lá, para que o Real
funcione, ao menos o Real da gravitação, quer dizer, não pouca
coisa, porque a essa gravitação todos estamos aparafusados, e nada
menos que por nosso corpo, até nova ordem, não que seja uma
propriedade do mesmo, como bem se demonstrou na continuação,
senão que estamos aparafusados e esse Real.E então, o que é que
Jacques Lacan | 221
14 de Maio de 1974
- Existe um universo
- Que se pode argumentar que o universo é dividido por todo
enunciado
- E que dizer o homem, e que se o diz - quero dizer, por dizê-
lo - tudo o mais se torna não-homem.
partir do que se diz, se enuncia - e as coisas para ele são tais que
não pode senão propor a ideia de universo - ela a simboliza por um
cifra, uma cifra que o convém, a cifra 1. Escreve, pois de tudo o que
se propõe como notável, notável nesse universo, escreve x - deixa
vazio esse x, já que é o princípio do uso desta letra - qualquer coisa
que seja notável no universo, Sim, x, escreve, multiplicado por 1 -
x, só pode ser igual a zero:
x (1-x) = 0
- do Real com um 3
- do Imaginário com um 2
- e do Real, justamente... e do Simbólico, justamente, com o 1.
x (1 - x) (1 + x) = 0, x - x3 = 0, x = x3
nó de que agora tento deixar claro para vocês seu uso e função. Ele
vê muito bem que para alcançar a função x = x3 - e não só x2 - vê
muito bem que o terceiro termo, o termo (1+ x) pode se escrever
de outro modo e especialmente (-1- x), quero dizer, (-1-x) tomado
entre parênteses, o que equivale, matematicamente, quero dizer,
enquanto que a escrita é que é matemática, o que pode se escrever
também por um menos antes do parênteses, e por (-1- x) colocado
no interior: - (-1- x).
Escrevo -(-1- x) e digo que isto é equivalente à adição aqui de
(1+x) e que Boole os junta para repeli-los, para repeli-los enquanto
que a lógica estaria destinada a assegurar o estatuto da verdade.
Mas, por enquanto, o que pretendemos não é dar um
estatuto para a verdade, porque a verdade, já o disse, não se
enuncia nunca senão por um meio-dizer, que é propriamente
impensável, senão no lugar do dizer, de marcar que uma
proposição não é verdadeira, e de lhes marcar com uma barra
superior que a exclui e a marca com o signo do falso.Na ordem das
coisas, enquanto que o símbolo está feito para ali ex-sistir, nessa
ordem de coisas, é propriamente - diga Boole o que diga ao estudar
ou pretender fazer o estatuto do pensamento - é justamente
impensável, impensável, clivar o que for de denominável, clivá-lo
como um puro não para designar o que não está nomeado.Quer
dizer, devíamos testar o que resulta de x3= x, seguramente já é
alguma coisa ver funcionar aí esse 3 com que marco, como tal, o
Real, e aqui retomaremos nosso nó borromeu.O nó borromeu
enquanto que:
11
Azul a
Amarelo b
Vermelho c12
12
A versão staferla não indica quem é quem.
234 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
xxxx
xxxx
13
Bom. Então o plano vem aqui, e este vai lá, ou seja: verde,
azul, vermelho14. Assim é como as coisas se apresentaram as
13
Na edição staferla está assim, “Lacan fait la démonstration sur un nœud tenu à la main” ou seja,
neste momento ele não desenha nada no quadro e apenas manipula seu nó borromeu com a mão.
Achamos, contudo, que é fundamental ter a imagem daquilo que ele fez e, portanto, fomos atrás de
uma. Encontramo-la e a reproduzimos aqui.
236 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
14
O verde é o em profundidade, o azul o plano e o vermelho o do alto.
Jacques Lacan | 237
15
Na edição staferla essa sentença não é uma questão.
238 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
Real, ele terá que bascular para obter a última figura que ela
mesmo será destrógira e será totalmente centrífuga.
É uma maneira cômoda para que vocês retenham o que
ocorre no segundo tempo do que se passa depois de dois
basculamentos, já que, como lhes mostrei, vocês devem encontrar
a todo instante no quadrante estritamente oposto, aquele de que
lhes falei quando lhes fiz esta observação, a observação do que não
havia sido encontrado, a saber, que ao passar de um quadrante ao
quadrante estritamente oposto, ao quadrante contraditório, ao
quadrante diagonal, obteremos um nó, um nó se partimos do
levógiro, obteremos um nó destrógiro. Bem.
Então, verifiquem tudo isto fazendo pequenas
manipulações como as que eu tão bem desperdicei diante de vocês
e verão o seguinte: que ao se manter o nó levógiro obteremos o
que qualifiquei ou especifiquei como tetraedro, pois vocês verão
como as coisas se passam.Vocês poderão fazer, reconstituir: por
exemplo aqui, tomando uma das faces do quadrado, vocês tirarão,
vocês reconstituirão o cubo à partir disso, de que é sempre em uma
disposição diagonal - diagonal em relação a uma das faces do cubo
- que se encontram os quadrantes cuja orientação é da mesma
espécie, e particularmente, nesta ocasião, da espécie levógira.
Apenas lhes sugerirei isto: que o que sai dele, â partir da
função do gozo, é que em alguma parte, em uma dessas
extremidades do tetraedro:
xxxx
xxxx
posso dizer, mais que diversas e, de certa maneira, uma por uma, e
que tudo isto se encontra de certa maneira dominado pela função
privilegiada deste, no entanto não existe dela não-uma a
representar o dizer que interdita, a saber, o absolutamente-não.Aí
está!
21 de Maio de 1974
pessoas, como se diz, quer dizer, dois animais situados por uma
organização política muito especificada pelo que tenho chamado
um discurso, se trata de saber que é o dizer de uma troca
ritualizada de palavras, e que é chamado... o que se supõe que está
em jogo neste exercício, quer dizer, o inconsciente.
Aqui, estou tentando lhes dizer: existe saber no Real, que
funciona, sem que possamos saber, como se faz a articulação
naquilo que estamos habituados a ver se realizar. Disto se trata e
deveríamos admiti-lo como correspondendo a um pensamento
ordenador? Tal é o partido que tomam a religião e a metafísica, e
nisto se encontram do mesmo lado, se dão as mãos nas suposições
que elas ordenam ao ser.
Então, o que eu quero dizer é que o saber inconsciente, o
que Freud supõe, se distingue desse saber no Real, de tal forma
que, qualquer que seja, mesmo a ciência chega a fazê-lo
providencial, o saber, quer dizer que alguma coisa - um sujeito - o
assegura como harmônico. O que Freud propõe - mas não é tudo,
eu aponto de passagem - é que este saber não é providencial, ele é
dramático, feito de alguma coisa que parte de um defeito em ser,
de uma desarmonia entre o pensamento e o mundo e que esse
saber está no coração dessa alguma coisa que chamamos ex-
sistência, porque insiste do exterior e é perturbador.
É neste sentido que a relação sexual se mostra, no ser - que
eu não sou o único em caracterizar como ser falante, não é? - se
mostra perturbada. Isto em contraste com tudo o que parece
passar com os outros seres. Daqui, inclusive, veio a distinção entre
a natureza e cultura. E muito precisamente, se posso dizer,
devemos caracterizá-la por não ser tão natural assim. Porque ali
onde vivemos, a natureza não se impõe. O que se nos impõe é um
outro modo, um outro modo de saber, um saber que de nenhuma
maneira é atribuível a um sujeito que ali presidiria a ordem, que ali
presidiria a harmonia e é aí que, antes de tudo, em meus primeiros
enunciados para caracterizar o inconsciente de Freud, propus uma
244 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974
11 de Junho de 1974
E bem. Eu tive que fazer alguns esforços para que esta sala
não fosse ocupada, hoje, por gente dando exames, e devo dizer que
tiveram a bondade de me cedê-la. É evidente que resulta mais que
amável da parte da Universidade de Paris I ter realizado esse
esforço já que, finalizados os cursos desse ano - o que, claro, ignoro
- esta sala deveria estar à disposição de alguma outra parte da
administração que se ocupa, ela, de vos canalizar. Aí está.
Então, igualmente, como a coisa não pode se repetir depois
de um certo limite, hoje será a última vez que lhes falo, este ano.
Isso me força, naturalmente, a mudar de direção, o que não deve
me reter já que, em suma, sempre há que terminar mudando de
direção. Não sei muito bem como estou metido aqui dentro, pois a
Universidade, se ela é o que lhes explico, talvez seja A Mulher. Mas
a mulher pré-histórica, pois vocês vêem que ele é feita de rugas.
Evidentemente ele me alberga em uma dessas pregas. Não se dá
conta disso. Quando se tem muitas pregas não se sente grande
coisa. Do contrário - quem sabe? - ela iria me encontrar talvez
como um incômodo. Bem.
Então, de outra parte, de outra parte, aposto o que vocês
quiserem que vocês jamais imaginarão onde eu tenho perdido meu
tempo - perdido, enfim, sim, perdido - onde eu tenho perdido
parte do meu tempo depois de tê-los visto aqui, reunidos. Aposto o
que quiserem: estive em Milão, em um congresso de semiótica. É
extraordinário. É extraordinário e, é claro, me deixou um pouco
256 | Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974