WEIL Simone - A Ilíada Ou o Poema Da Força
WEIL Simone - A Ilíada Ou o Poema Da Força
WEIL Simone - A Ilíada Ou o Poema Da Força
* A tradução das passagens é nova. Cada linha traduz um verso grego. reproduzin-
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o herói é uma coisa arrastada pela poeira, atrás de um carro;
"Em toda a roda os cabelos h . uma coisa que tem uma al-
' ma coisa. Ser estran o. ., uanto lhe custa, a
110 entanto, :s~anho para a alma. Quem d~~~r~se sobre si mesma?
Negros estavam espalhados, a cabeça toda na poeira
I1W; estado conformar-se, torcer-s~, do do é constrangida,
Jazia, Outrora encantadora; agora Zeus a seus inimigos 'lida momento., . r numa coisa; quan
" foi feita para vive
Permitira que o aviltassem em sua terra natal. "
1~lu nao de violência. I dirige uma arma
A amargura de um quadro como esse nos penetra pura, sem ILidot7~ah~~de~e desarmado e .nduc~i~tgr~~ d~~n~t~vamente. Por um
que venha alterá-Ia nenhuma ficção reconfortante, nenhuma imor- dá ntes de ter SI o a
talidade consoladora, nenhuma auréola frouxa de glória ou de pá- t ma-se ca .aver ai se esforça, age, espera:
tria. momento ainda e e
. , I O outro se aproxima,
"Ele pensava, tmovet. . inteiramente
"
"Sua alma fora de seus membros se evolou, foi-se para o
Hades,
arrebatado,
. de tocar . lhos . Ele queria no seu coracao
seus Joe
Chorando
ue.
à " seu destino, deixando a maturidade e a iuveniu. AnsIOSO , o destino negro...
Escapar à morte ma, a. suplicante, seus joelhos,
Mais pungente ainda, tão doloroso é o contraste, é a súbita E
Comcomo um braço
outro ele ele e~t~elta7~nça
mantin a a em riste sem deixá-Ia
evocação, imediatamente apagada, de um outro mundo, o mundo
longínquo, precário e comovente da paz, da família, esse mundo no cair.:"
qual cada homem é o que mais Conta para quem o rodeia. I ue a arma na"o se desviaria, e, res-
. Mas ele
. da , ele é só matena, a inda pensando não pode pensar
d o am compreendeu ~g? q
piran
"Ela gritava com SUasservas de belos cabelos pela demora
De armar junto ao fogo um grande tripé, onde se fizesse mais nada: ." brilhante de Príamo .
Para Heitor um banho quente na volta do combate. "Assim falou esse fllh.o tao Ele ouviu uma palavra tn-
Ingênua! Não sabia que muito longe dos banhos quentes Em palavras que suplicavam.
O braço de Aquiles já o submetera, por causa de Atena de flexível: "
olhos verdes."
(... ) os ioelhos e o coraçao; .
Disse' ao outro desfalecem. J d. as mãos estendidas,
r:
O infeliz, é claro, estava longe dos banhos quentes. Não era o
Ele d~ixa cair a lança e cal sen;a. ~a seu gládio agudo,
único. Quase toda a Ilíada se passa longe dos banhos quentes. Qua-
se toda a vida humana se passou sempre longe dos banhos quentes.
Ambas as mãos. Aquiles asl;oço. e por inteiro
Fere na c IaVlCU
' Ia,. ao longo o pescoço,
Ele o rosto no chao "
Afunda o gládio de dOIS cortes. s~oa umedecendo a ter-
Jaz estendido, e o sangue negro e
A força que mata é uma fornJa sumária, grosseira, de força.
Quanto mais variada em seus processos, quanto mais surpreenden_
te em seus efeitos é a outra força, a que não mata; isto é, a que não
ra. .. . fraco e sem armas
Q b t m estrangeiro .
uando fora de com ~ e, ud do à morte por ISSO; ma~ um
mata ainda. Vai seguramente matar, ou vai matar, talvez, ou então
ad~~,;~:~r~~~~
' . não e con ena . ara tirar-
está apenas suspensa sobre o ser que pode matar a qualquer mo-
mento; seja como for, ela transforma o homem em pedra. Do poder
f~!:~~~e porpa~~ed~u!U:~;~~op;::a~'~;;'pried~
lhe a vida. É o bas~ante para a o de carne viva manifesta a VI
de transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede um
outro poder - prodigioso sob uma outra forma _ o de transformar principal da. c~~~av~:~~ ~o~r~~~al~o; uma pat~ ~~ r:~~obu~~h~~i~~
em coisa um homem que continua vivo. Está vivo, tem uma alma; antes de mais. to róximo ou o con ~ de nervos
elétrico, salta, ,oe~}~;~ob::ssaltar qualquer no d: ~a:i~~'a não tem
horrível ou terrív . t ão estremece, na , d
do-se escrupulosamente os encadeamentos; a ordem das palavras gregas no inte-
rior de cada verso é respeitada tanto quanto possível. (Nota de S. Weil.) e de músculos. Só t::~s~sup~~can :~ o objeto para ele mais carrega o
320 mais licença; seus lábios vao toe
de horror: 321
"1
"Não viram entrar o grande Priamo. Ele parou,
Estreitou os joelhos de A quites, beijou suas mãos, . nsamento de erguê-Ios. Mas. final-
sar pela I!l~nte de algu~m °o!: palavras cordiais, nem pensam em
Terríveis, aniquitadoras de homens, que lhe tinham massa- mente erguidos, honra os.c _ rimir um desejo: uma voz
crado tantos filhos ." tomar a sério essa ressurreiçao, ousar exp. A '.
amemnon,
u Imo, e es, eles fugiam. " Que eles se esforçam, recompensàs ordinárias da corrida;
_ No decorrer da tarde Heitor r . É por uma vida que eles correm, a de Heitor domador de ca-
poe os gregos em debandada d e~o~a a dianteira, recua ainda valos."
s~,as tropas postas para descadsa;P~~~ e ~ec~açado por Pátroclo ~ Ferido de morte, aumenta o triunfo do vencedor com súplicas
a em de suas forças acaba fi' a roc o, evando sua vantagem vãs:
do, graças à espada 'de Heit~~r e ~ar e~posto,. sem armadura e feri-
o conselho prudente de P I·d' e norte, Heitor vitorioso enfrenta .,Eu te imploro por tua vida, por teus joelhos, por teus pais ... "
.. . o I amas com d uras reprImendas.
.
Agora que eu recebi d filh . Mas os ouvintes da Ilíada sabiam que a morte de Heitor devia
A glória junto às naves o I ~ de Cronos astuto dar uma alegria breve a Aquiles, e a morte de Aquiles uma alegria
Imbecil! não proponhas' t~~:an o ~%ntrao mar os Gregos, breve aos troianos, e o aniquilamento de Tróia uma alegria breve
Nenhum Troiano te escutar:' ~onse os ~nte o povo. aos aqueus.
Assim falou Heitor e os Ta,. eu, eu nao o permitiria.' Assim a violência esmaga aqueles que toca. Acaba por apare-
.. ' ~rotanos o aclamaram ... "
No dl~ ~eguInte Heitor está erdid . cer como exterior tanto ao que a maneja quanto ao que sofre com
toda a plamcle e vai matá-Io Se p o. Aquiles o fez recuar por ela; nasce, então, a idéia de um destino sob o qual algozes e vítimas
luta; quanto mais depojj, de· ernpre ele fOI o mais forte dos dois na sejam igualmente inocentes, os vencedores e os vencidos irmãos na
I . Varias semana d mesma miséria. O vencido é uma causa de infelicidade para o ven-
pe a vmgança e pela vitória contra .. s . e repouso, arrastado
tor SOZInho diante dos mur~s de T ,~m InImigo esgotado! Eis Hei- cedor, como o vencedor para o vencido.
do a morte e tentando decido rOIai' completamente só, esperan- "Um só filho lhe nasceu, para uma vida curta; e assim mes-
.. . Ir sua a ma a enfrentá-Ia.
AI de mim! se eu passasse por detrâ d. mo,
Polidamas logo me bumtthan. as a porta e da muralha, Ele envelhece sem meus cuidados,já que bem longe da pátria,
Ag arta... Eu fico diante de Trôia entristecendo a ti e a teus filhos."
Te:::a: ~~e{er~i os meus por minha loucura
rotanos e as Troiana de vé ' Um uso moderado da força, o único que permitiria escapar da
E temos que ouvir dizer d s e veus arrastados engrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana, tão rara
.. . e menos bravos do que eu.
Heitor, confiante demais em su .. quanto uma dignidade contínua na fraqueza. Aliás, a moderação
Se, entretanto, eu pousas a força, perdeu a pátria." tampouco existe sempre sem perigo; pois o prestígio, que constitui
Meu bom capacete e a s~ ~eu escudo encurvado, mais de três quartos da força, é feito, antes de mais nada, pela so-
Se eu fosse até o ilu;tr:~an
Mas por que meu coração
tminha lança no muro,
;::1 ::",ao. seu encontro? ..
berba indiferança do forte em relação aos fracos, indiferança tão
contagiosa que se comunica aos que lhe estão sujeitos. Mas, nor-
Eu não . e a tais conselhos? malmente, não é um pensamento político que aconselha o excesso.
Ne me. aprox!marei; ele não teria piedade . É a tentação do excesso que é quase irresistível. Palavras razoáveis
m respeito; ele me mataria .'
Como a uma mulher ... " ' se eu estivesse assim nu, são proferidas às vezes na I1íada: as de Térsites o são ao máximo.
330 As de Aquiles irritado também o são:
331
-
"N d.
Co;te~ 'n~o~~/~~id:;~ ~~; ;~~;;~.~~os os bens que dizem ferentes; o heroísmo é uma pose de teatro manchado de gabolice.
e Se, além disso, por um momento, um fluxo de vida vier multiplicar
PUOIS Po.dde-sh
conquistar os bois, os gordos carneiros
ma VI a umana uma ~ 'd. ~ ... o poder de agir, junto com a reação vem a crença de ser irresistível
mais. .. ,ez parti a, nao se reconquista em virtude de uma ajuda divina que dê garantias contra a derrota e
contra a morte. Nesse momento a guerra é fácil e amada indigna-
Mas as palavras razoáveis caem . S . . mente.
pronuncia, é castigado e se cala' se for ~~ ~~~}~. : um I~fenor as Mas na maioria esse estado não perdura. Chega um dia em que
com elas. E sempre se acha u ' d ' nao age e acordo
aconselhar o desatino No fim m e~s n.a ?o,~a da necessidade para o medo, a derrota, a morte dos companheiros queridos dobra a
alma do combatente sob a necessidade. A guerra deixa, então, de
rer fugir à ocupação r~cebida ~aa::r~fJ~l: á~e~~~~n~u: s~ ==;qu;- ser um jogo ou um sonho; o guerreiro compreende, afinal, que ela
matar e de morrer, desaparece do espírito: ,cupaçao e realmente existe. É uma realidade dura, infinitamente dura para po-
"... nós a quem Zeus der ser suportada, pois encerra a morte. O pensamento da morte
~esde a juventude assinalou, até a velhive para sofrer não pode ser sustentado senão por relances, assim que se sente que
. as dolorosas guerras, até que pereçamos ~ompletamente." a morte é realmente possível. É verdade que todo homem está desti-
nado a morrer, e que um soldado pode envelhecer dentro de com-
Ja esses combatentes, como os de.
se sentiam "todos condenados". e raonne tanto tempo depois, bates; mas para aqueles cuja alma está submetida ao jugo da guer-
ra, a relação entre a morte e o futuro não é a mesma que para os ou-
tros homens. Para os outros a morte é um limite imposto previa-
mente ao futuro; para eles, ela é o próprio futuro, o futuro que sua
Ca~ram nessa situação pela mais simples das ciladas Ao partir
o coraçao es~ava leve, como sempre que se tem a favor urna for a ~ profissão Ihes assinala. Terem os homens por futuro a morte é con-
contra o vazio. As armas estão nas mãos; o inimigo ausente A não tra a natureza. Desde que a prática da guerra torna sensível a possi-
ser .quan~o a reputação do inimigo abate a coragem sempre se é bilidade de morte que cada minuto contém, o pensamento se torna
muito ma.ls forte do que um ausente. Um ausente não impõe o ·0 o incapaz de passar de um dia ao que se segue sem atravessar a ima-
J gem da morte. O espírito fica então tenso, de uma forma que ele
da nece~sldad~. Nenhu~a necessidade surge ainda no espírito d~s
não agüenta senão por pouco tempo; mas cada nova alvorada traz
que se rn f a~slm, e por ISSO,eles vão como que para um jogo como
para um eriado, para fora da coação quotidiana. . , a mesma necessidade; os dias acrescentados aos dias formam anos.
A alma sofre violência todos os dias. Cada manhã a alma se mutila
"Aonc:e se foram nossas vanglórias, quando nós nos dizía- de toda aspiração, porque o pensamento não pode viajar no tempo
mos tao bravos, sem passar pela morte. Assim a guerra apaga toda e qualquer idéia
As que em Lemnos vaidosamente vós decantáveis de finalidade, até mesmo as finalidades da guerra. Apaga até o pen-
Em vos forrando das carnes dos bois de cornos r~tos samento de acabar com a guerra. A possibilidade de uma situação
Bebendo nas copas que transbordavam de vinho? ' tão violenta é inconcebível enquanto não se passou por ela; o fim é
Que cem ?U duzentos desses Troianos cada um inconcebível quando se está nela. Então, não se faz nada para che-
Enfrentaria no combate· e eis que um só é d.
nós!" '
.
etnats para gar a esse fim. Os braços não podem parar de segurar e de manejar
armas em presença de um inimigo armado; o espírito deveria traba-
I
logo ~e~~~c~~~s~i~~~ experimentada um~ vez, a guerra não deixa
lhar para encontrar uma saída; perdeu toda capacidade de traba- I
lhar seja o que for para isso. Está inteiramente ocupado em forçar-
terrível, diferentíssima ~m Jog~. !"- necessidade própria da guerra é se a si próprio. Sempre, entre os homens, as desgraças intoleráveis-
alma só se lhe b a que e !manente a?s trabalhos da paz; a
. su .mete quando nao pode mais fugir; e enquanto f _ servidão ou guerra - duram por seu próprio peso, e vistas de fora
parecem fáceis de agüentar; duram porque esgotam os recursos ne-
~i~t:~~:e~::~ ~a~~~~g~e~ec~~sidade, dbias de Logo, de. sonho, arbitr~- cessários para que se saia deles.
troem ~ . en ao uma a stração, as Vidas que se des-
332 sao como bnnquedos quebrados por uma criança e tão indi- No entanto, a alma submetida à guerra brada pela libertação;
mas a própria libertação lhe aparece sob uma forma trágica, extre-
333
ma, sob a forma da destruição. Um fim moderado, razoável, deixu
ria a nu para o pensamento uma desgraça tão violenta que é inSII 11\ a posse das armas, por um lado, a privaçã~ de ar~as,.p~lo ou~~,
portável mesmo à lembrança. O terror, a dor, o esgotamento, , riram a uma vida ameaçada quase toda a lmportancl~, e ,câoce'
massacres, os companheiros mortos, impossível acreditar que todas quem destruiu em si mest?0 o pe~sament?? de que ver a uz e ,
estas coisas possam deixar de morder a alma se a embriaguez dn Iria respeitá-Io nesta queixa humilde e va.
força não as tiver vindo afogar. Dói a idéia de que um esforço ilimi- "Estou a teus pés, Aquiles; tem respeito, tem piedade de
tado só teria obtido um êxito nulo ou limitado.
mim; estou como um suplicante, o, fil ho d e Zeus, ditgno de
Aqui
"O quê? Deixaremos Priamo, os Troianos, vangloriar-se
Da Argiva Helena, ela pela qual tantos Gregos consideração. . . _ d D mé-
Pois em tua casa fui o pnmeiro que comeu o pao e e
Diante de Tróia pereceram longe da terra natal?...
O quê? Tu desejas que a cidade de Tróia de largas ruas, ~~quele dia em que tu me apanhaste no meu pomar bem
Nós a abandonemos, a ela pela qual sofremos tantas misé-
rias? cultivado. d ie
E tu me vendeste, mandando-me para longe e meu pa
Que importa Helena para Ulisses? Que importa, .mesmo, dos meus, b .
Tróia, cheia de riquezas que não compensarão a ruína de Ítaca? À Lemnos santa; deram-te por mim cem OIS., .
Tróia e Helena só importam como causas que são do sangue e das Fui resgatado por três vezes mais; ~sta ~urora e para mim
lágrimas dos gregos; apoderando-se delas é que se podem dominar Hoje a duodécima, desde que voltei a llion, _
as horríveis lembranças. Essa alma, com o que a natureza nela ha- Após tantas dores. Eis-me ainda entre tuas maos .
via posto, e que a existência de um inimigo obrigou a destruir den- Por um destino funesto. Devo ser odioso a ~eus ? pat _
tro de si, essa alma acha que só se poderá curar destruindo o inimi- Que de novo me entrega a ti; para pouca VI~?minha mae
go. Ao mesmo tempo, a morte dos companheiros bem-amados sus- Me engedrou, Laothoé, filha do velho Altos.
cita uma sombria emulação para morrer:
Que resposta acolhe essa fraca esperança! .
"Ah! morrer logo, se meu amigo acabou
Sucumbindo sem minha ajuda! Bem longe da pátria "Vamos, amigo, morre também, tu! Por que te queixas
Ele pereceu, e não me teve para afastar a morte ... tanto? . .
Agora eu parto para encontrar o assassino de uma cabeça Ele também morreu, Pátroc/o, e valia bem mais do que tu
tão cara, E eu não vês como eu sou belo e grande? _
Heitor; a morte, eu a receberei no momento Eu s~u de nobre raça, uma deusa é minha mae; .
Em que Zeus quiser cumpri-Ia, e todos os outros deuses." Mas também sobre mim pairam a mor~e e o 1uro destino.
Será na aurora, ou de noite, ou no meto do dia, . "
Então é o mesmo desespero que leva a morrer e a matar: Quando a mim também pelas armas se arrancara a Vida...
"Eu sei bem que meu destino é perecer aqui,
Para respeitar a vida em outrem, quando foi preciso uma auto-
Longe de meu pai e de minha mãe amados; mas entretanto
mutilação de toda aspiração à vida, é preciso um esforço de gene~o-
Eu não me deterei enquanto os Troianos não se embriaga-
rem de guerra." sidade de arrebentar o coração. Não se pode supor qu~ nenhu~ os
guerreiros de Homero seja capaz de tal esforço, a nao ser, ~,~ez,
O homem habitado por esta dupla necessidade de morte, per- aquele que, de uma certa maneira, está no centro d? poe~a, a ro-
tence, enquanto não se tiver tornado outro, a uma raça diferente da cio que "soube ser doce com todos", e que na filada nao c?mete
raça dos vivos.
nada de brutal e cruel. Mas, quantos homens conhecemos nos, em
Que eco pode encontrar em tais corações a tímida aspiração à vários milhares de anos de história, que tenham dado prova ~e .uma
vida, quando o vencido suplica que lhe permitam ver ainda o dia? generosidade tão divina? É duvidoso que se possam nom,ear OIS ou
334 três. Por falta dessa generosidade o soldado vencedor e como ~~
imaginação dos homens. Seja como for, esta dupla propriedade de
flagelo da natureza; dominado pela guerra, tanto quanto o escravo,
petrificação é essencial à força e uma alma colocada em contato
e,!l1bora de outra maneira, ele se tornou uma coisa e as palavras não
com a força só lhe escapa por uma espécie de milagre. Esses mila-
tem poder sobre ele, bem como sobre a matéria. Um e outro, em
contato com a força, sofrem a conseqüência infalível, que é a de gres são raros e curtos.
converter os que s-ão tocados por ela em mudos ou surdos. A leviandade dos que manejam sem respeito os homens e as
coisas que têm ou julgam ter à sua mercê, o desespero que força o
Tal a natureza da força. O poder que ela possui de transfor-
é
soldado a destruir, o esmagamento do escravo e do vencido, os
mar os ho~ens e'!l coisas é duplo, e se exerce no sentido de ambos os massacres, tudo contribui para constituir um quadro uniforme de
lados; petrifica dlferente~ente, mas igualmente, as almas dos que a horror. A força é o único herói. Tudo terminaria numa tíbia mono-
sofrem e d~s que a manejam. Esta propriedade atinge o mais alto tonia se não houvesse, espalhados por aqui e ali, momentos lumino-
grau no ~elO das armas, a partir do momento em que uma batalha sos; breves momentos divinos durante os quais os homens têm uma
se encaminha para uma decisão. As batalhas não são decididas en- alma. A alma que acorda assim, por um instante, para se perder
tre os homens que calculam, trabalham, tomam uma resolução e a logo depois pelo domínio da força, acorda pura e intacta; nenhum
executam, mas entre homens despojados dessas faculdades trans- sentimento ambíguo, complicado ou turvo surge; só há lugar para a
formados, caídos nas alas, ou da matéria inerte que é só passivida- coragem e o amor. Às vezes um homem encontra assim a sua alma,
de, ou das forças cegas que são apenas impulso. Este é o último se- falando-se a si mesmo, quando tenta, como Heitor diante de Tróia,
gredo da guerr~ e a llíada o exprime em suas comparações, nas enfrentar sozinho o destino, sem o auxílio dos deuses ou dos ho-
9uals os}uerrelros aparecem como os símiles seja do incêndio, da mens. Os outros momentos durante os quais os homens encontram
inundação, do .vento, d~s a~imais ferozes, de qualquer causa cega sua alma são os do amor; quase nenhuma forma pura do amor en-
de ?esastre, seja dos animais medrosos, das árvores, da água, da tre os homens está ausente na I1íada.
areia, de tud.o o que é movido pela violência das forças exteriores. A tradição da hospitalidade, mesmo depois de várias gerações,
Gregos e troianos, d~ um dia para outro, às vezes de uma hora para supera a cegueira da luta:
outra, sofrem sucessivamente uma e outra transmutação.. "Assim eu sou para ti um hóspede amado no seio de Ar-
"Como por um leão que quer matar vacas são assaltadas gOL.
Quando num prado alagadiço e vasto pastam Evitemos as lanças um do outro. mesmo na confusão da lu-
Aos "!i~hares ... ; todas tremem; assim então os Aqueus ta.
De. pantco foram postos em fuga por Heitor e por Zeus o O amor do filho pelos pais; dos pais, da mãe pelo filho está in-
pai, cessantemente indicado de uma forma tão breve como comovedo-
Todos (... ) ra:
Como quando o fogo destruidor cai sobre a espessura de
um bosque; "Ela respondeu, Tétis, vertendo lágrimas:
"Tu me nasceste para uma curta vida, meu filho. como tu
Por toda a parte remoinhando o vento o leva; então os fus-
tes dizes .;"
Caem, arrancados, sob a pressão do fogo violento Igualmente o amor fraterno:
Assim o A trida Agamêmnon fazia cair as cabeças "Meus três irmãos, que me concebera uma só mãe,
Dos Troianos que fugiam .....
Tão queridos ..':
O amor conjugal, condenado à infelicidade, é de uma sur-
_ A arte da .guerra é apenas a arte de provocar tais transforma- preendente pureza. O esposo, evocando as hu~ilhações da esc~avi-
çoes~ e o material, ?S processos, a própria morte inflingida ao inimi- dão que esperam por sua mulher amada, omite aquela que,. so. no
go, sa? apenas meios para esse fim; o verdadeiro objetivo dela é a pensar, mancharia por antecipação a sua ternura. Nada ~als sim-
propna al.m~ ~os combatentes. Mas essas transformações são sem- ples do que as palavras dirigidas pela esposa ao que vai morrer:
pre um rmsteno, e os deuses são os seus autores, eles, que tangem a
337
336
Mais me valeria,
Se eu te perder, estar embaixo da terra; nada terei, zes até por um corte de verso, por um encadeamento. Nisso é que a
Quando tu tiveres chegado a teu destino lIíada é uma obra única, por essa amargura que procede da ternura,.
Nada se não males.:" ' e que se estende sobre todos os humanos, do mesmo modo que a luz
do sol. Nunca o tom deixa de estar impregnado de amargura, nun-
Não menos comoventes são as palavras dirigidas ao esposo
morto: ca, tampouco se rebaixa até a queixa. A justiça e o amor, que não
podem entrar nesse quadro de extremos e de violências injustas, ba-
"Me~ esposo, morreste antes do tempo, tão jovem; a mim nham-no com sua luz, e só pela intlexão, pelo tom, se fazem sentir.
tua vtuva, ' Nunca de outra forma. Nada de precioso, destinado ou não a mor-
Tu me deixas só em minha casa; nosso filho ainda pequeni- rer, é desprezado, a miséria de todos é exposta sem dissimulação
no nem desdém, nenhum homem é colocado acima ou abaixo da con-
Que tivemos, tu e eu, infelizes. E eu não imagino dição comum a todos os homens, tudo o que é destruido é chorado.
Que ele um dia fique grande ... Vencedores e vencidos estão igualmente próximos, são igualmente
Pois ~u, morr~ndo, de teu leito não me estendeste as mãos, os semelhantes do poeta e do ouvinte. Se alguma diferença existe, é
Tu nao me disseste uma palavra sábia, para que sempre que a desgraça dos inimigos será, talvez, sentida mais dolorosamen-
Nela eu pensasse dia e noite derramando lágrimas." te:
A mais bela das amizades, entre companheiros de combates é
o tema dos últimos cantos: ' "Assim ele caiu lá, adormecido por um sono de bronze
O infeliz, longe de sua esposa, defendendo os seus ... "
..... Mas Aquiles
Que tom, para evocar o destino do adolescente vendido por
C~orava, pensando no companheiro bem-amado; o sono
Não o veneta, que tudo doma; ele se revirava cá e lá ..;" Aquiles a Lemnos!
"Onze dias ele alegrou seu coração entre os que amava,.,
. ~as o triunfo mais puro do amor, a graça suprema das guerras
Voltando de Lemnos, no duodécimo de novo
e a amizade que sobe ao coração dos inimigos mortais. Ela faz desa-
às mãos de Aquiles Deus o entregou, a ele que devia
parecer a fome c;le vingança pelo filho morto, pelo amigo morto
Enviâ-lo até o Hades, embora não quisesse partir."
apaga por um milagre ainda maior a distância entre benfeitor e su-
pltcante, entre vencedor e vencido:
E o destino de Eufórbio, o que só viu um dia de guerra:
"M~s quando .? ~esej~ de bebe~ e comer foi aplacado,
..O sangue banha seus cabelos aos das Graças semelhan-
Entao o Dardânio Priamo se pos a admirar A quiles,
tes"
O quanto ele era grande e belo; tinha a face de um deus.
E, por sua vesz, o Dardânio Príamo foi admirado de Aqui- Quando Heitor é chorado:
les
..... guardião das esposas castas e dos pequeninos."
Que olhava sua bela face e escutava sua palavra.
E quan~o eles ficaram saciados de se contemplar um ao estas palavras bastam para fazer surgirem a castidade manchada à
outro ... força e as crianças entregues às armas. A fonte, às portas de Tróia,
se torna um objeto de lamentação pungente, quando Heitor passa
Essesmomentos de graça são raros na Iliada, mas bastam para
por ela correndo para salvar a sua vida condenada:
fazer sentir com um desgosto extremo o que a violência faz e fará
perecer. .. Lá se encontravam largos lavadouros, bem próximos,
_ No entanto, ~al acúmulo de violências seria frio sem uma intle- Belos, todos de pedra, onde as vestes resplandecentes
xa~ de amargu:a .Inc~rável que se faz sentir continuamente, embora Eram lavadas pelas mulheres de Trôta e pelas jovens tão
muitas vezes seja indicada apenas por uma única palavra, outras ve- belas
338 Outrora, durante a paz, antes que viessem os Aqueus.
339
Foi I?,orlá que eles correram, fugindo, e o outro perseguin-
do... Talvez a extraordinária eqüidade que inspira a Ilíada tenha
exemplos desconhecidos por nós, mas não teve imitadores. Mal se
Toda a Iliada está à sombra da maior desgraça que pode existir sente que o poeta é grego e não troiano. O tom do poema parece
e~tre os ho~.ens: a destruição de uma cidade. Se o poeta tivesse nas- testemunhar diretamente a origem das partes mais antigas; a histó-
cido em Tróia essa desgraça não pareceria mais dilacerante. Mas o ria talvez nunca nos esclareça a esse respeito. Se dermos crédito a
tom ~ã<:>muda quando se trata dos aqueus que perecem bem longe Tucídides de que, oitenta anos depois da destruição de Tróia, os
da patria. aqueus sofreram por sua vez uma conquista, é o caso de se pergun-
tar se esses cantos, nos quais raramente se fala de ferro, não serão
AS.breves evo~ações do mundo da paz doem, de tanto que essa cantos desses vencidos dentre os quais alguns, talvez, se tenham exi-
outra vida, essa vida dos vivos, aparece calma e plena: lado. Obrigado a viver e a morrer "bem longe da pátria", como os
.,Logo que veio a aurora e o dia subiu gregos que caíram diante de Tróia; tendo perdido, como os troia-
Dos dois lados vieram os dardos, os h~mens caíram. nos, suas cidades, reencontravam-se a si mesmos tanto nos vence-
Mas na hora em que o lenhador vai preparar sua refeição dores, que eram seus pais, quanto nos vencidos, cuja miséria era pa-
Nos vales das montanhas, quando seus braços estão cansa- recida com a deles; a verdade dessa guerra ainda próxima podia
dos aparecer-lhes através dos anos, não estando encoberta nem pela
De :ortar as grandes árvores, e um desgosto lhe sobe ao co- embriaguez do orgulho nem pela humilhação. Podiam imaginá-Ia
racao, ao mesmo tempo como vencidos e como vencedores, e conhecer as-
E o desejo do doce alimento o toma nas entranhas sim o que nunca vencedor nem vencido conheceram, por serem am-
a
Nessa hora, por seu valor, os Danaus irromperam fren-
te.::
bos cegos.
pode sonhar.
É apenas um sonho, com tempos tão longínquos só se
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