ÁVILA, M. Dupla Consciência e Parataxe Como Conceitos Críticos PDF
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ÁVILA, M. Dupla Consciência e Parataxe Como Conceitos Críticos PDF
2008 189
Este texto se originou de um convite da Unicamp para falar aos alunos de pós-
graduação em Letras sobre linguagem e estudos culturais. O próprio tema já sugere uma
conjunção não muito comum na produção acadêmica onde, há até bem pouco tempo,
chegou a reinar certa animosidade entre os defensores da perspectiva cultural de abordagem
do texto de criação e os adeptos dos – a partir dessa clivagem – chamados estudos
literários. Estes últimos se aproximariam mais de uma leitura imanente do texto literário,
afim aos procedimentos formalistas e estruturalistas. Como jamais me convenci da
oposição entre as duas abordagens, talvez por uma questão de formação e, em parte, por
um hábito de reflexão não-opositiva, o debate que se estabeleceu a respeito parece-me,
muitas vezes, ocioso e – de todo modo – pouco produtivo. A prática do close reading –
“leitura cerrada” – propugnada pelo new criticism e outras linhas de filiação formalista,
surgiu na primeira metade do século vinte em parte como conseqüência do extraordinário
desenvolvimento da lingüística nesse período, e em parte como reação ao impressionismo
e frouxidão de critérios que dominavam então o exercício crítico. Tal procedimento de
leitura pautava-se fortemente pela noção de norma e seus corolários – a agramaticalidade
e o estranhamento. Esses pressupostos conceituais abrem-se naturalmente para uma visão
cultural do fenômeno literário, se pensarmos a cultura e a sociedade, como sua
fomentadora, em termos de estabelecimento de padrões de normalidade e desvio. No
entanto, a visão do texto literário como uma entidade em si, a ser entendido a partir de
suas próprias relações internas, impediu que se fizesse a passagem do formal ao cultural,
a qual, temiam alguns, acabaria por fazer da literatura uma mera expressão entre outras
da cultura, imersa na contingência (portanto, desprovida de universalidade).
Os estudos culturais, por outro lado, ao reagirem contra os critérios de canonização
e o privilégio do “propriamente literário” de textos que sobrepunham o rigor de construção
e invenção às questões contextuais, tenderam a abandonar a idéia do ciframento do
social no formal. (O que Adorno entende como “a antítese social da sociedade” [1988, p.
19]). Consequentemente, tenderam a explorar o dado externo na leitura do texto,
reservando a este um papel meramente corroborativo de suas condições de produção – a
meu ver, empobrecendo tanto o texto quanto a própria compreensão do contexto, pré-
fixado às vezes a partir de generalizações questionáveis. Extremamente produtivos, os
estudos culturais já mostraram ser capazes de buscar muito mais do que a simples
exemplificação de uma configuração social nos textos em que se debruçam. Muito se
ganharia, entretanto, com o abandono das posições defensivas de um e outro lado, com a
aceitação de que cada aspecto que cada cego percebe em sua investigação do elefante
faz parte em última análise de um mesmo inabarcável objeto.
O distanciamento entre lingüística e estudos de literatura que se observa hoje no
cenário acadêmico é ainda mais profundo do que o mencionado acima. Se lembrarmos o
grande avanço nos estudos literários proporcionado pelos lingüistas russos e do grupo de
190 ÁVILA – Dupla consciência e parataxe como...
Praga nas primeiras décadas do século XX, é de estranhar que no último quartel do
mesmo século as duas disciplinas se encontrassem tão apartadas nos seus objetivos como
em seus métodos. Maria Antonieta Borba, em seu texto “Lingüística e teoria da literatura:
relações e limites”,1 faz uma boa revisão do impulso dado por uma disciplina à outra. No
entanto, deixa de apontar para os motivos de sua posterior diferenciação. De fato, como
lembra Antoine Compagnon em O demônio da teoria, a lingüística tinha uma grande
contribuição a dar à leitura do texto literário. Porém, o texto deixou, em certo momento,
de ser a única ou mesmo a principal consideração da teoria, que se voltou para os outros
elementos do fenômeno literário – o autor (produção), o leitor (recepção) e o mundo
(contexto). Entrou em foco também a própria instituição literatura como objeto de pesquisa
e de desconstrução.
Os motivos do hiato que se criou entre as disciplinas não podem, no entanto,
apagar o papel que a semiótica e o estruturalismo tiveram na formação dos teóricos da
literatura em atividade no cenário nacional hoje. No meu caso, tendo estudado, no
doutorado na Alemanha, com um semioticista2, essa formação não está tão distante no
tempo quanto a de outros, que se desligaram dela após a graduação. No entanto, minha
fixação no conceito de parataxe, ocorrida há quatro anos, deveu alguma coisa ao acaso.
Já tendo tido a atenção chamada para o termo por Décio Pignatari, a leitura de Notas de
Literatura de Theodor Adorno ofereceu-me, no ensaio intitulado justamente Parataxis,
uma nova dimensão do seu uso. De fato, Adorno, ao rastrear procedimentos paratáticos
na poesia de Hölderlin, na intenção de demonstrar a fragilidade da leitura do poeta por
Heidegger, vai bem além de sua compreensão sintática como coordenação ou assíndeto.
Considerado um texto difícil sobre uma poesia altamente complexa, o ensaio de
Adorno vai à raiz da construção poética – em seu nível mais especificamente lingüístico
– em busca de uma postura diante da linguagem que implicaria em postura análoga frente
à realidade. Com esse objetivo, expande consideravelmente a noção de parataxe. Esta se
expressa, tradicionalmente, no texto literário, como enumeração. A justaposição de
elementos, sem qualquer esforço de encadeamento, redunda na percepção do texto como
lista, inventário, rol, etc. Pode ou não haver encadeamento semântico, mas em geral se
infiltra nessas enumerações alguma arbitrariedade associativa que lhes dá menor ou maior
feição de nonsense. Lembrem-se apenas aqui os dois exemplos citados por Foucault
(sem qualquer menção ao termo parataxe) no prefácio de As palavras e as coisas: a
classificação dos animais na “enciclopédia chinesa” de Borges (os animais se dividem
em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, etc.) e os vermes
e serpentes que Eustenes afirma estarem a salvo de sua saliva (Áspides, Anfisbenas,
Anerudutos, Abedessimões, Alartas, Amóbatas, etc.).
Foucault opõe uma lista à outra, afirmando que a subsunção dos termos
enumerados por Eustenes em uma série não ocorre em Borges. Da mesma forma, pode-
se estabelecer uma distinção entre coordenação e parataxe, palavras às vezes usadas
como sinônimos. Podemos, pelo contrário, propor inclusive uma oposição entre a idéia
de coordenação e a idéia de parataxe radical. Na coordenação, elementos de peso similar
se ordenam no mesmo nível sintático, isto é, sem estabelecer dependência entre si, mas
não excluem a idéia de submissão, não a um termo da frase, mas a um discurso que as
encampa. Em texto anterior, comparei essa formação à de soldados que se encaminham
Remate de Males – 28(2) – jul./dez. 2008 191
todos, como um batalhão, a um objetivo comum, supradeterminado. Já a parataxe radical
configura uma luta contra o senso comum, ou seja, contra o sentido corriqueiro: não
mais o exército marchando em direção a uma meta semântica, mas pessoas dividindo a
mesma rua, cada qual rumando a seu objetivo próprio, sem consenso com as demais. A
idéia de justaposição substitui a de co-ordenação.
Entretanto, a parataxe enumerativa seria para Adorno apenas um caso –
certamente o mais comum – desse procedimento construtivo. Outros, menos evidentes,
seriam a inversão, que pode atingir níveis absurdos em línguas declinativas, e a pseudo-
lógica, ou non-sequitur, caso em que as inferências ou conclusões não resultam logicamente
das premissas apresentadas. Os dois recursos se encontram na poesia de Hölderlin, objeto
de estudo de Adorno. O motivo pelo qual inversão e non-sequitur são considerados formas
de parataxe é provocarem efeito similar ao da enumeração, ao embaralhar e burlar os
nexos lógicos do pensamento linear, tornando-os inacessíveis ou ambíguos. Quando menos,
adiando a compreensão do discurso, o que, em diversas situações comunicativas, o tornaria
simplesmente ineficaz. A palavra-chave aqui é adiamento. Antes, porém, de seguir esse
fio, que, adianto, nos levará aos estudos culturais, quero deixar claro que Adorno não se
detém, ao identificar a parataxe, nos aspectos micrológicos do texto. A própria justaposição
de parágrafos, tópicos, capítulos pode ser considerada paratática. Invertendo a direção,
podemos ver como paratática até mesmo a construção de vocábulos compostos, que
funcionariam então como ideogramas à maneira chinesa.
Voltando à idéia de adiamento da compreensão, vale dizer: do consenso entre o
leitor e o lido, vejo o sentido desse adiamento na inserção do tempo como valor na
interlocução. Quanto mais demora a convergência entre a mensagem e seu alvo, maior a
reflexão envolvida e a conseqüente percepção crítica de todo o processo. Não é outro o
significado das expressões time lag [defasagem] e belatedness [atraso] na teoria de Homi
Bhabha. (Em meu trabalho, chamo a instância do atraso de “delonga na resposta”3.)
Bhabha vê aí os sintomas de uma temporalidade disjuntiva4. A partir dessa perspectiva,
podemos ver também o uso das imagens e do fragmento em Walter Benjamin como
obstáculos propositais ao raciocínio silogístico, configurando igualmente uma espécie de
parataxe. Recentemente, encontramos no polêmico livro de Wladimir Safatle, Cinismo e
falência da crítica, formulação similar quanto à função do tempo como instância crítica:
A tarefa filosófica atual pede o demorar-se diante do esgotamento dos esquemas conceituais
que visam orientar a ação e o julgamento. A todo momento, o pensamento encontra-se
diante da pressão de questões como: “Que fazer?”. Questões dessa natureza não devem e
não podem ser respondidas. Não devem porque a resposta é apenas uma defesa contra o
trabalho de desarticulação, que só pode ser efetuado pela pulsação demorada da questão.
(SAFATLE, 2008, p. 204)
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-
ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore
impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta
conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. (DELEUZE e GUATTARI,
1995, p. 35)
...um dia que [...] me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra
líquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu kodak infantil, que
ficou sendo para mim o eterno clichê do mar. Somente por baixo dela poderia eu escrever:
Thalassa! Thalassa!
1
http://www.filologia.org.br/vcnlf/anais%20v/civ5_08.htm.
2
O professor Winfried Nöth, da Universidade de Kassel.
3
A idéia que subjaz à expressão é a de que o discurso da dominação coloca perguntas cujas respostas já são
previstas e devem se seguir imediatamente. A delonga na resposta indica um movimento de resistência do
dominado.
4
O local da cultura, passim.
5
Bhabha fala também do sentencial e da enunciação “fora da sentença”. (Capítulo IX de O local da cultura.)
6
A noção de paragrama exposta em Anagrammes. Apud Kristeva, 1974.
7
A referência é à carnavalização como descrita por Bakhtin.
8
Ambas financiadas pelo CNPq, por meio de Bolsa de Produtividade.
9
O livro foi pelo menos uma vez selecionado como tema de vestibular.
10
Cícero Arpino Caldeira Brant, que publica suas Memórias de um estudante com o pseudônimo de Ciro Arno. Só
décadas mais tarde um membro da mesma família assumirá o sobrenome verdadeiro em suas memórias, Vera
Brant (Ensolarando sombras).
11
Vendo-a desprezar os pretendentes locais, as amigas comentam, profeticamente, que ela está à espera de um
dos primos ricos que estudam no Rio e São Paulo.
Bibliografia
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Trad. Arthur Morão. SP, Martins Fontes, 1988.
_______. Notas de literatura. Trad. C.A.Galeão e I. Azevedo da Silva. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1991.
ARNO, Ciro. [Cícero Arpino Caldeira Brant] Memórias de um estudante. 2ª edição. 1885- 1906.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana L. dos Reis e Glaucia R.Gonçalves. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
BRANT, Vera. Ensolarando sombras. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
DELEUZE, G. e GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia.V.1. Trad. Aurélio Guerra Neto
e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed.34, 1995.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade
Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.
MORLEY, Helena. [Alice Brant]. Minha vida de menina. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
SAFATLE, Wladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SOUZA, Eneida M. de. Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
WEINRICH, Heinrich. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.
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