Francine Iegelski - Astronomia Das Constelações Humanas - Reflexões Sobre Claude Lévi-Strauss e A História (2016, Humanitas) PDF
Francine Iegelski - Astronomia Das Constelações Humanas - Reflexões Sobre Claude Lévi-Strauss e A História (2016, Humanitas) PDF
Francine Iegelski - Astronomia Das Constelações Humanas - Reflexões Sobre Claude Lévi-Strauss e A História (2016, Humanitas) PDF
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Copyright©2016 Francine Iegelski
Iegelski, Francine.
I22 Astronomia das constelações humanas : reflexões sobre o
pensamento de Claude Lévi-Strauss e a história / Francine Iegelski. --
São Paulo : Humanitas, 2016.
422 p.
Introdução 25
Capítulo I
A antropologia estrutural é um humanismo - O encontro com o
pensamento selvagem 53
1. A descoberta da América 64
2. O terceiro humanismo lévi-straussiano 90
3. O sensível e o inteligível 100
4. O humanismo para além do homem 109
Capítulo II
As duas faces de Janus - História e Etnologia 121
1. Fundamentos teóricos e metodológicos da antropologia
estrutural 123
2. As estruturas 132
3. Braudel e as cem faces da história 146
4. Os limites da história 176
astronomia das constelações humanas
Capítulo III
O espetáculo dos outros -Formas (d)e temporalidade e crítica da
ideia de progresso 187
1. Marx e as causas das descontinuidades culturais 193
2. Crítica da ideia de progresso 215
3. Raça, história e cultura 234
4. O binômio quente-frio 249
Capítulo IV
A história reencontrada - "Quando o mito se torna história” 269
1. Apologia do Japão 272
2. Ásia, Europa, América 285
3. A história dos mitos 316
4. A outra face da lua 324
Capítulo V
Experiências do tempo - Lévi-Strauss e a historiografia contemporânea 355
1. Lévi-Strauss na historiografia 357
2. História e Etnologia (1983) 365
3. Experiências do tempo, regimes de historicidade 373
4. À guisa de conclusão ou porque Lévi-Strauss agora 399
Bibliografia 409
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Apresentação
Sara Albieri
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apresentação
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Prefácio
François Hartog
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prefácio
1 Remeto ao livro, no prelo, de Thomas Hirsch, produto de sua tese Le temps social,
Conception sociologiques du temps et représentations de l’histoire dans les sciences de
l’homme en France (1901-1945).
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prefácio
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prefácio
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Introdução1
1 Apesar dos cortes, reparos e adições substanciais, esse livro conserva as ideias e as
motivações de minha tese de doutorado, defendida em 2012 junto ao Programa de
Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. Em 2014-2015,
durante meu estágio de pós-doutorado na École des hautes études en sciences sociales,
em Paris, sob a supervisão do professor François Hartog e com financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, dei início a uma retomada
crítica das questões presentes sobretudo no último capítulo desse livro. Esse exercí-
cio resultou no artigo intitulado “Resfriamento das sociedades quentes? Crítica da
modernidade, história intelectual e história política”. No prefácio, o professor Hartog
também dialoga com as ideias apresentadas no artigo mencionado, ao qual remeto o
leitor interessado em seguir a discussão sobre o problema das experiências do tempo
nas sociedades contemporâneas, um tema que não aparece senão em germe nesse
livro.
2 Claude Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto e de longe, trad. Léa Mello e Julieta Leite.
(São Paulo: Cosac & Naify, 2005), 171.
25
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26
introdução
trutural pretende atingir tal ponto de vista voltando sua atenção para a
qualidade diacrônica e sincrônica dos fenômenos culturais. Mas como
compreender esse objetivo? Como Lévi-Strauss poderia apreender a es-
trutura sem virar as costas para a história? A explicação não é evidente.
Sobre esse problema inúmeros autores manifestaram seus pontos de
vista.
Maurice Merleau-Ponty chamou a atenção para o empenho de
Lévi-Strauss em estabelecer relações de complementaridade entre tudo
o que a filosofia e as ciências ocidentais apresentaram como pares di-
cotômicos: a sensibilidade e a razão, as coisas e a consciência, o objeto
e o sujeito, o particular e o universal e, acrescentamos nós, a história e
a estrutura, a vida cotidiana e as leis psicológicas universais. Para Mer-
leau-Ponty, essa “grande tentativa intelectual” de Lévi-Strauss deve-se à
sua determinação em tomar o homem tal “como ele é, em sua situação
efetiva de vida e de conhecimento”5. Para o filósofo francês, o objetivo final
da antropologia seria atingir “um sistema de referência geral onde podem
encontrar lugar o ponto de vista do indígena, o do homem civilizado, e os
erros de um sobre o outro”6.
Para Jean Pouillon, a antropologia estrutural tem como objetivo
principal a compreensão do outro, o que o leva a explorar aquilo que
considera a originalidade da obra lévi-straussiana: a fundação da al-
teridade como a descoberta de uma relação, não de uma barreira. A
compreensão do outro não significaria nem a simples identificação, o
que o tornaria familiar, reduzindo a diferença a uma espécie de ilusão,
nem a negação da possibilidade de apreensão, como se fosse um objeto
insondável, o que tornaria a diferença incomunicável. Nas palavras de
Pouillon, Lévi-Strauss procuraria “manter o outro na sua especificidade”7.
5 Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Lévi-Strauss”, trad. Marilena Chauí (São Paulo:
Editora Abril, 1975), 393. – (Os Pensadores, vol. XLI)
6 Idem.
7 Jean Pouillon, “A obra de Claude Lévi-Strauss”, trad. Inácia Canelas, In: Raça e histó-
ria, C. Lévi-Strauss (Lisboa: Editorial Presença), 73.
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8 Ibidem, 73-74.
9 C. Lévi-Strauss, “Estruturalismo e Ecologia”, trad. Carmem de Carvalho, In: O olhar
distanciado (Lisboa: Edições 70, 2010),155.
10 Idem.
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introdução
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que fala da integração final da cultura à natureza e da dissolução do homem: “(...) não
podemos perder de vista que se tivermos a menor crença em nossa capacidade de conhecer
alguma coisa do mundo (se não, não se pode dizer mais nada), sabemos que o homem faz
parte da vida, a vida da natureza e a natureza do cosmos. Daí minha asserção de que as
ciências do homem têm por objetivo último ‘reintegrar a cultura na natureza e, finalmente,
a vida no conjunto de suas condições físico-químicas’, cuja ‘feição voluntariamente brutal’
(...) me apressei em salientar. Para prevenir a crítica de querer explicar o superior pelo
inferior, acrescentei que se tal unificação pudesse se realizar, ela revelaria, à medida do seu
progresso, que alguma coisa que se parece com o pensamento já existe na vida, e que algu-
ma coisa que se parece com a vida já existe na matéria inorgânica. Não acredito, aliás, que
se chegue a isso daqui a séculos ou mesmo milênios, pois isso suporia que, sem contradição,
fosse possível a um sujeito pensante e vivente apreender o pensamento ou a vida enquanto
objeto”. C. Lévi-Strauss, “Voltas ao passado”, trad. Eloisa Araújo Ribeiro, Mana, [vol.]
4, 2 (1998): 110 (107-117).
14 Simone de Beauvoir, “Les Structures élémentaires de la parenté par Claude Lévi-
-Strauss”, Les Temps modernes, [vol.] 7, (1949) (943-49).
15 Idem.
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introdução
interna de cada objeto estudado. Contudo, essa lei de ordem só pode ser
encontrada quando os objetos são postos em relação. A antropologia
estrutural explora os objetos por meio das relações diferenciais que eles
mantêm uns com os outros, o que levaria sempre a compreendê-los
a partir de redes de relações. A estrutura de um objeto permaneceria
sempre aberta a novas reconfigurações, uma vez que as relações que
ela mantém com as outras estruturas deixariam lugar para essa possi-
bilidade. Esse método torna-se claro quando Lévi-Strauss realiza suas
análises dos mitos.
Os mitos, em particular os ameríndios, se assemelham a códigos
cifrados ao observador ocidental e, por isso, muitas vezes foram toma-
dos como manifestações da irracionalidade dos indígenas. Se o inves-
tigador tomasse um mito separadamente e restringisse a análise aos
dados fornecidos apenas pela sociedade da qual o mito é oriundo, seria
possível encontrar sentido para certos aspectos dos mitos, mas não para
muitos. Para ampliar seu campo de entendimento, o investigador pre-
cisaria analisar outros mitos do mesmo grupo ou de grupos vizinhos.
Esses outros mitos resolveriam alguns enigmas levantados pelo mito
inicial, mas levantariam novos problemas, o que exigiria a mobilização
de outros mitos para esclarecê-los, gerando mais problemas, e assim
por diante. Marcio Goldman lembra que esse procedimento básico da
análise dos mitos, que consiste em remeter um mito a outro para es-
clarecê-los, foi chamado por Lévi-Strauss de levantamento em rosácea:
“conforme novos mitos adensam o centro da figura que se está esboçando,
mais e mais dúvidas e confusões são criadas na periferia”16. Goldman acres-
centa que “a análise só se detém de fato – pois de direito ela é infinita –, no
momento em que o analista acredita que atingiu uma inteligibilidade sufi-
ciente ou razoável”. A análise comparativa dos mitos, procedimento de
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introdução
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introdução
23 Cf. Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas,
trad. Salma Tannus Muchail (São Paulo: Martins Fontes, 1999). – (Coleção tópicos).
Não podemos menosprezar o subtítulo do livro de Foucault, que só poderia ter sido
escrito a partir de seu próprio diagnóstico sobre o significado do estruturalismo
para o conjunto das ciências humanas. José Otávio Guimarães, em sua introdução
à entrevista que realizou com Jean-Pierre Vernant, sublinha esse aspecto do livro de
Foucault: “Vernant nunca escondeu seu desconforto com certas teses de Les mots et les
choses, livro que, segundo François Furet, sistematizou, no calor da hora, o ‘corte episte-
mológico’ representado pela etnologia estrutural face à ‘idade ideológica’. Por outro lado,
Vernant foi menos resistente ao Foucault dos últimos volumes de Histoire de la sexualité,
reconhecendo na postura do classicista neófito ecos da démarche historiográfica de sua an-
tropologia da Grécia antiga”. José Otávio Guimarães, “Experiência e método. Introdu-
ção a uma entrevista com Jean-Pierre Vernant”, In: Antigos e modernos: diálogos sobre
(a escrita da) história, org. Francisco Murari Pires (São Paulo, Alameda, 2009), 372.
No livro Structuralime et marxisme, resultado dos debates promovidos pela revista
Raison présente, às vésperas de maio de 1968, Jean-Pierre Vernant diz: “Primeiramen-
te, acredito que exista em Foucault uma recusa da historicidade e uma recusa do homem,
no sentido de que, para ele, o homem não pode ser objeto de uma ciência particular. No
campo das disciplinas científicas tal como ele o desenha, há uma psicologia que se redobra
em uma ilusão psicológica. Há uma economia política que se redobra em uma ilusão de
psicologia da necessidade. E há aquilo que ele chama de linguística, no sentido mais geral,
e que abarca a ciência dos mitos, dos ritos e de todos os fatos significativos, quer dizer,
35
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finalmente, todo o homem. Mas ele está persuadido de que uma démarche científica, não
existe um momento propriamente antropológico, onde entrariam em jogo as configurações
psicológicas e a história de suas transformações”. In: Victor Leduc (et al.) Structuralisme
et marxisme (Paris, 10/18), 306-307.
24 O. C. Sáez, op. cit., 137.
25 Idem.
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34 Ibidem, 11.
35 F. Hartog, “Historiographie”, In: Annuaire de l’École des hautes études en sciences so-
ciales. Comptes rendus des cours et conférences, 1990-1991, 128.
36 Lilia K. Moritz Schwarcz, “Questões de fronteira. Sobre uma antropologia da histó-
ria”, Novos estudos do Cebrap, [n.] 72 (julho de 2005): 119 (119-135).
37 Idem.
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38 Ibidem, 131.
39 Schwarcz se apoia nos trabalhos de Jean Pierre-Vernant e Marshall Sahlins, entre
outros historiadores, antropólogos e sociólogos para conduzir seus trabalhos de fron-
teira entre história e antropologia, via a abordagem da antropologia histórica: “Estou
me referindo a uma antropologia histórica da nossa própria sociedade, terreno onde situo
minhas investigações. Trata-se de, à semelhança do que a etno-história realiza para outras
culturas, recuperar um trabalho de ‘tradução das sociedades complexas’. Esse tipo de an-
tropologia nos levaria a ser capazes de nos espantar diante de formas de representar nossa
própria sociedade e, por que não?, o tempo e a história”. Ibidem, 134. Cf. L.M. Schwarcz,
“Questão racial e etnicidade”. In: O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), org.
Sergio Miceli (São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS; Brasília, DF: CAPES, 1999),
267-325.
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mesmo que apelos, teríamos, então, nós, já na virada do segundo para o ter-
ceiro milênio, para também louvar(mos) a história?”43
Lévi-Strauss escreveu durante quase sessenta anos. Em todo esse
tempo, seus escritos não cessaram de ser interpretados, criticados, re-
tomados e revalorados. Assim, a fortuna crítica de sua obra é enorme e
não é exagero situar seu pensamento como um dos clássicos da histó-
ria intelectual do século XX. É uma tarefa árdua retomar Lévi-Strauss
depois de tudo o que já foi dito e escrito sobre ele. Justamente por isso,
escolhemos nos somar aos esforços coletivos de compreensão da sua
obra, sem a preocupação de fazer um balanço da sua fortuna crítica
e mapear os diversos tipos de recepção, de acordo com diferentes pa-
íses ou áreas de conhecimento. As redes de autores e comentadores
evocadas no trabalho vieram, antes, a propósito dos problemas que le-
vantamos no decorrer da leitura da obra de Lévi-Strauss. Desse modo,
autores e comentadores aparecem mais como vozes que corroboram,
destoam ou relativizam a nossa própria interpretação sobre temas e pro-
blemas lévi-straussianos.
No primeiro capítulo desse livro, damos destaque para a impor-
tância da experiência americana – o encontro de Lévi-Strauss com os
indígenas brasileiros e os anos em que viveu exilado em Nova York –
no desenvolvimento ulterior de seus trabalhos antropológicos e de sua
carreira profissional, assim como colocamos em relevo a importância
do estruturalismo para as propostas teóricas da etnologia indígena con-
temporânea, a exemplo dos trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro e
Tânia Stolze Lima. Não parece exagero dizer que essa corrente da an-
tropologia brasileira, pela apropriação crítica que faz da obra de Lévi-
-Strauss, cruzada pela leitura de autores pós-estruturalistas, como Gilles
Deleuze e Félix Guattari, prolonga, com a marca da atualidade, as refle-
xões do estruturalismo. Mas esse capítulo visa também entender como
a antropologia estrutural se inscreveu na tradição humanista e é Michel
43 Idem.
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46 Fernand Braudel, “A longa duração”. In: F. Braudel, Escritos sobre a história, trad. J.
Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota (São Paulo: Perspectiva, 1969), 41-78.
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Capítulo I
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1 Vincent Debaene e Fédéric Keck, Claude Lévi-Strauss. L’homme au regard éloigné (Pa-
ris: Découvertes Gallimard Littératures, 2009), 86. Uma interpretação mais apro-
fundada da relação entre Lévi-Strauss e Aron e os acontecimentos de Maio de 68 ver
Denis Bertholet, Claude Lévi-Strauss (Paris: Odile Jacob, 2003), 305-310, passim.
2 Claude Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto e de longe, trad. Léa Mello e Julieta Leite
(São Paulo: Cosac & Naify, 2005), 135.
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5 O artigo citado de Johnson foi baseado em seu livro Claude Lévi-Strauss, The Forma-
tive Years (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), Johnson examina quatro
aspectos da construção do paradigma de Lévi-Strauss: 1) o contexto interdisciplinar
e institucional: as relações problemáticas entre a antropologia e as outras disciplinas
no interior das ciências humanas e sociais; 2) o campo teórico: a teorização dos es-
tudos sobre o parentesco e a mitologia: a importância dos modelos utilizados nesses
dois domínios; 3) o campo ideológico: as lições a tirar da antropologia, a antropolo-
gia como um novo humanismo; 4) o campo autobiográfico: a posição estratégica de
“Tristes Trópicos”, a importância da experiência norte-americana.
6 Marcio Goldman, “Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas”. In: Lévi-Strauss. Leituras
brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz [e] Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008), 45.
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Lévi-Strauss e artigos de Nicolas Ruwet, Enzo Paci, Emílio Renzi, Andrea Bonomi,
Marc Gaboriau e Paul Ricœur. Outros intelectuais brasileiros escreveram, entre as
décadas de 1960 e 1970, sobre Lévi-Strauss. Cada um deles abordou a antropologia
estrutural sob um aspecto e com uma avaliação geral diferente. Cf. Bento Prado Jr.,
“Filosofia, música e botânica: de Rousseau a Lévi-Strauss”, Tempo brasileiro, [n.]15-16
(1968); Eduardo Viveiros de Castro, “As categorias de sintagma e paradigma nas
análises míticas de Claude Lévi-Strauss”, Tempo Brasileiro, [n.] 32 (1973) (112-131).
15 L. C. Lima, “Retrospecto de uma fresta. O que devo ao estruturalismo”, 133.
16 Ao fazer essa primeira escolha de juventude pelo estruturalismo, Costa Lima disse
ter enfrentado uma tríplice dificuldade: “a da insegurança imposta por uma ditadura
que refinava a vigilância contra seus adversários, a de não contar, além de minha própria
boa vontade e da inteligência de alguns jovens alunos, com um melhor guia, e a da expec-
tativa da hostilidade que encontraria em meus examinadores uspianos (Por uma razão
que ignoro, ao passo que em Portugal, conforme o testemunho de Eduardo Prado Coelho, o
interesse pelo estruturalismo supunha oposição ao salazarismo, no Brasil, o estruturalismo
era visto como politicamente suspeito. Mas não temos tempo para a petite histoire)”. Ibi-
dem, 135.
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17 Ibidem,137.
18 Ibidem, 139.
19 Cf. Luiz Costa Lima, História. Ficção. Literatura (São Paulo: Cia das Letras, 2006).
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1. A descoberta da América
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e imprevistas como as que Max Ernst usou nas suas colagens. A influência
é perceptível em La pensée sauvage”22. Contudo, na apreciação de Lévi-
-Strauss, os surrealistas exploravam o que havia de irracional no objeto
para causar um efeito estético; enquanto que, na sua própria perspec-
tiva, aquilo que havia de irracional nas obras de arte primitivas deveria
ser submetido à análise racional, sem que o analista deixasse de ser
suscetível à sua beleza.
Guiado pelos amigos Métraux e Lowie, Lévi-Strauss descobre a
antropologia anglo-americana e conhece Franz Boas, Alfred Kroeber,
Ralph Linton, Ruth Benedict e Margaret Mead. A antropologia feita nos
Estados Unidos tinha uma longa tradição em trabalhos de campo, na
recolha de informações feitas diretamente entre as sociedades indíge-
nas. Formado pelos ensinamentos da sociologia francesa de Durkheim,
o contato de Lévi-Strauss com a escola antropológica anglo-americana
causou impacto no seu pensamento, especialmente no que diz respeito
à atenção aos dados empíricos das sociedades estudadas: “Quando eu
era estudante, no início de minha carreira, insurgi-me contra a escola... en-
fim, contra Durkheim, porque na mesma época descobria a etnologia anglo-
-americana e, é claro, eu era especialmente sensível à diferença entre o teórico
e pessoas que falavam de coisas que tinham ido ver em campo. Como eu
mesmo tinha um grande gosto pela aventura, sentia-me mais próximo deles.
Mas creio que, posteriormente, compreendi bem melhor e retornei, em grande
parte, à tradição durkheimiana”23.
Foi provavelmente em 1941 que Lévi-Strauss começou a redação
do texto La vie familiale et sociale des Indiens nambikwara. O estudo sobre
os Nambiquara teria deixado Lévi-Strauss frustrado. Ele não conseguiu,
segundo seu próprio testemunho, dar um tratamento rigoroso aos da-
dos que havia reunido, pois não sabia como classificar e compreender
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26 “Para que a sociedade exista, não é suficiente que apenas a união dos sexos e a procria-
ção estabeleçam ligações biológicas entre seus membros. É preciso, também, que em certos
pontos do tecido social esses laços não corram o risco de se distender e se romper. A socie-
dade permite às famílias se perpetuarem se colocadas nas tramas de uma rede artificial de
defesas e obrigações. Como E.B. Tylor observou contundentemente há mais de um século,
a explicação por trás dessas obrigações – graus de proibição em todos os lugares, graus de
prescrições ou preferências frequentes – se encontra provavelmente na escolha, muito cedo
imposta à nossa espécie, entre ‘either marrying out or being killed out’. Dito de outro modo,
se cada pequena unidade biológica não quer levar uma existência precária, assombrada
pelo medo, exposta ao ódio e à hostilidade de seus vizinhos, ela deve renunciar a permane-
cer voltada sobre si mesma: seria preciso sacrificar sua identidade e sua continuidade, se
abrir ao grande jogo das alianças matrimoniais. Opondo-se às tendências separatistas da
consanguinidade, a proibição do incesto consegue tecer as redes de afinidade que dá à socie-
dade sua armadura, na falta das quais nenhuma se mantém”. In: Claude Lévi-Strauss,
Prefácio a Histoire de la famille, vol.1 (Paris, Armand Colin, 1986), 11.
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32 Idem.
33 Idem.
34 Nicolas Trubetzkoy, “La phonologie actuelle”. In: Psychologie du langage (Paris: Librai-
rie Félix Alcan, 1933).
35 Lévi-Strauss, C. “A análise estrutural em linguística e antropologia”, 45. Mas,
para Lévi-Strauss, o vocabulário emprestado da linguística, é, primeiramente, um
vocabulário do pensamento racional: “A natureza e a importância dos empréstimos
que tomei da linguística não foram bem entendidas. Além de uma inspiração geral –
que, concordo, é enorme – eles se reduzem ao papel da atividade inconsciente do espírito
na produção de estruturas lógicas, destacado por Boas, que era tanto antropólogo quanto
linguista; em seguida, a esse princípio fundamental de que os elementos constitutivos não
têm significação intrínseca: esta resulta de sua posição. É verdadeiro para a linguagem,
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e é verdadeiro também para outros fatos sociais. Não creio ter pedido mais do que isso à
linguística, e Jakobson – no curso de nossas conversas – era o primeiro a reconhecer que
eu fazia, em outro domínio, um uso original dessas noções”. C. Lévi-Strauss e D. Eribon,
op. cit., 162.
36 C. Lévi-Strauss, “A análise estrutural em linguística e antropologia”, In: Antropologia
estrutural, 53.
37 Idem.
38 Idem.
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41 Idem.
42 Ibidem, 59.
43 Idem.
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44 Idem.
45 Ibidem, 60.
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46 Idem, 62.
47 C. Lévi-Strauss, “Le retour de l’oncle maternel”, In: Claude Lévi-Strauss, org. M. Izard
(Paris: L’Herne, 2004), 37.
48 C. Lévi-Strauss, “A análise estrutural em linguística e antropologia”, In: Antropologia
estrutural, 62.
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59 Fernanda Peixoto, “Lévi-Strauss à São Paulo: la ville et le terrain”. In: Claude Lévi-
Strauss, org. M. Izard (Paris: L’Herne, 2004), 90.
60 C. Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, trad. Gabinete Literário de Edições 70 (Lisboa: Edi-
ções 70, 2004), 233.
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64 Essa explicação sobre o caráter diático e triádico do pensamento indígena será re-
tomada no Capítulo IV desse livro, a propósito da história. Cf. C. Lévi-Strauss, “As
organizações dualistas existem?” In: Antropologia estrutural, 168.
65 C. Lévi-Strauss, “História e etnologia” In: Antropologia estrutural, 23.
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71 Idem.
72 E. Viveiros de Castro. “‘Transformação’ na antropologia, transformação da ‘antropo-
logia’”, Mana, [vol.] 18, 1 (2012) (151-171).
73 E. Viveiros de Castro, (et al), Tranformações indígenas – os regimes de subjetivação ame-
ríndios a prova do tempo, 11.
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fia trata de um povo chamado Yudjá”. Tania Stolze Lima, Um peixe olhou para mim. O
povo Yudjá e a perspectiva (São Paulo/Rio de Janeiro, 2005), 15.
77 Ibidem, 336.
78 Idem.
79 Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem (São Paulo: Cosac&Naify,
2011), 358.
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seu trabalho “busca restituir as ligações que o caium apresenta com diferen-
tes aspectos da vida social yudjá, oferecendo ao mesmo tempo uma análise de
um sistema sociocosmológico e um mapa da condição humana”80. Condição
marcada, como a embriaguez, pelo estado vacilante do ser.
A socialidade é entendida pela etnologia indígena como uma enor-
me rede de relações, com diversas linhas de estruturação, sem que, no
entanto, possa ser reduzida a qualquer tipo de estrutura final ou elemen-
tar. Essa natureza cromática da socialidade não poderia ser apreendida
se desconsiderada a existência dos homens na duração, como propõe
Lima. Deste ponto de vista, a duração está entranhada nas relações
engendradas pela vida social, uma vez que esta é entendida enquanto
marcada por transformações, variações intensas e contínuas81. Ao apre-
sentar esse modo de pensar a vida social e a tarefa da antropologia, os
antropólogos fazem surgir problemas interessantes para a história, pois
evidenciam o fato de que a história foi a disciplina encarregada de fun-
damentar epistemologicamente o projeto ocidental da modernidade.
Os estudos de etnologia indígena têm, assim, realizado uma relei-
tura da obra de Lévi-Strauss, apoiados sobretudo nos textos e reflexões
de Gilles Deleuze e Félix Guattari, como parte de um projeto crítico vol-
tado para a própria disciplina antropológica. Lévi-Strauss, aqui, aparece,
então, como uma figura que se escreve contra: “não no sentido polêmico
ou crítico, mas como a partir de, como figura que se desenha contra um
fundo”82, contra a paisagem (estruturalista) em que se deu a formação
dessa corrente da antropologia brasileira (hoje com forte referência pós-
-estruturalista). Esse projeto crítico, assentado no estudo do perspec-
89
astronomia das constelações humanas
90
a antropologia estrutural é um humanismo
res pelo pensamento ocidental. Os povos sem escrita, aqueles que não
utilizavam as categorias forjadas pela ciência para pensar a vida física,
social e natural, se tornaram a fonte privilegiada a partir da qual Lévi-
-Strauss pôde elaborar diversos problemas para o conjunto das ciências
sociais e humanas.
Os estudos de Lévi-Strauss são uma crítica vinda do coração eu-
ropeu a um longuíssimo período no qual o Velho Continente não foi
o mais virtuoso dos protagonistas e, ao mesmo tempo, um projeto que
visava estabelecer novas bases para o conhecimento de seu principal
objeto, o homem. Certamente esses dois movimentos estão associados.
Assentada no que o próprio Lévi-Strauss denominou de terceiro huma-
nismo, aquele que concebe que todos os homens pensam igualmente
bem, a antropologia estrutural tinha o objetivo de elaborar uma explica-
ção total da vida cultural. Em suas palavras: “A etnologia – ou a antropo-
logia, como se prefere dizer presentemente – assume o homem como objeto de
estudo, mas difere das outras ciências humanas por aspirar a compreender o
seu objeto nas suas manifestações mais diversas”85.
Em diferentes momentos de sua obra, Lévi-Strauss fala sobre a
escolha de se afastar do conjunto de referências vindo das civilizações
consideradas o berço do pensamento ocidental, a exemplo da Grécia
e Roma antigas. A Lévi-Strauss interessava, sobretudo, compreender
as sociedades que até então as ciências entendiam serem de natureza
distinta das sociedades ocidentais. Por meio do estudo das sociedades
ditas primitivas, pretendeu questionar as ideias que o homem ociden-
tal tem da sua própria história, das circunstâncias que o levaram a ser
o que é. Essa tentativa faz parte do projeto lévi-straussiano “de levar o
humanismo a alcançar a medida da humanidade”86. O empreendimento
humanista da antropologia estrutural consistia na ideia de que é neces-
91
astronomia das constelações humanas
92
a antropologia estrutural é um humanismo
93
astronomia das constelações humanas
91 Idem.
94
a antropologia estrutural é um humanismo
92 Ibidem, 280.
95
astronomia das constelações humanas
93 Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Lévi-Strauss”, trad. Marilena Chauí (São Paulo:
Editora Abril, 1975). – (Os Pensadores, vol. XLI), 393.
94 Idem.
95 C. Lévi-Strauss, “Pensamento ‘Primitivo’ e Mente ‘Civilizada’”. In: Mito e significado,
trad. António Marques Bessa (Lisboa: Edições 70, 2007), 28.
96
a antropologia estrutural é um humanismo
96 M. Foucault, “O que são as Luzes?”. In: Arqueologia das Ciências Humanas e dos Sis-
temas de Pensamento, org. e sel. de textos Manoel Barros da Motta (Rio de Janeiro:
Editora Forense Universitária: 2005) – (Ditos e escritos, vol.2), 345-347, passim.
97
astronomia das constelações humanas
98
a antropologia estrutural é um humanismo
mente para seus estudos progressivos o que, de início, era apenas seu projeto
de constituição”97, ou seja, o próprio homem.
As maiores exceções seriam, justamente, a etnologia (“terceiro hu-
manismo”) e a psicologia. Mais precisamente, para Foucault, em relação
às “ciências humanas”, onde o homem “faz e refaz a sua positividade”,
a etnologia e a psicologia, associadas agora à linguística, seriam, antes,
“contraciências” que fazem aparecer as formas limites das ciências e do
pensamento filosófico, pois elas não interrogariam o próprio homem,
mas a região que torna possível um saber sobre o homem. Esta região,
este “lugar que nós pensamos”, é justamente a epistémê moderna, lugar
onde se forma “o espaço imediato de nossa reflexão”98. Então, a etnologia e
a psicologia, ambas ciências do inconsciente, por mais que “pretendam
ter um ‘alcance’ quase universal, nem por isso se aproximam de um conceito
geral de homem: em nenhum momento elas tendem a delimitar o que nele
poderia haver de específico, de irredutível, de uniformemente válido em toda
a parte onde ele é dado à experiência”99. Foucault notou que a etnologia
dispensa um conceito de homem porque se dirige ao que constitui seus
99
astronomia das constelações humanas
3. O sensível e o inteligível
100
a antropologia estrutural é um humanismo
101
astronomia das constelações humanas
105 Idem.
102
a antropologia estrutural é um humanismo
103
astronomia das constelações humanas
106 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, trad. Tânia Pellegrini (Campinas, São Paulo:
Papirus, 1997) 26 (grifos do autor).
107 Ibidem, 291.
108 Citamos aqui um exemplo que Lévi-Strauss retira de uma fórmula terapêutica dos
indígenas para esclarecer ao leitor o que significa agrupar as coisas de acordo com
suas propriedades sensíveis: “A verdadeira questão não é saber se o contato de um bico
de picanço cura as dores de dente, mas se é possível, de um determinado ponto de vista,
fazer ‘irem juntos’ o bico do picanço e o dente do homem (congruência cuja fórmula tera-
pêutica constitui apenas uma aplicação hipotética entre outras), e, através desses agrupa-
mentos de coisas e seres, induzir um princípio de ordem no universo”. Ibidem, 24.
104
a antropologia estrutural é um humanismo
105
astronomia das constelações humanas
106
a antropologia estrutural é um humanismo
107
astronomia das constelações humanas
115 Idem.
108
a antropologia estrutural é um humanismo
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astronomia das constelações humanas
110
a antropologia estrutural é um humanismo
Lévi-Strauss, para que a vida social fosse instituída, foi necessário que
existisse uma faculdade primeira, comum a todos os homens, cujos
atributos essenciais conduziram a espécie humana a vencer os três obs-
táculos indicados por Rousseau. Essa faculdade deveria possuir, original
e primitivamente, atributos contraditórios, pois seria ao mesmo tempo
“natural e cultural, afetiva e racional, animal e humana”. Apoiado nas
ideias de Rousseau, Lévi-Strauss propôs que essa propriedade humana
– nomeada por Rousseau “piedade” – teria como base a identificação
com o outro. A noção de piedade concebe a identificação como uma
faculdade humana anterior à consciência das oposições entre meu eu
e um outro eu, entre a humanidade e a animalidade, entre os animais
segundo a espécie. A piedade seria “proveniente da identificação com um
outro que não é, só, um parente, um próximo, um compatriota, mas um
homem qualquer, a partir do fato mesmo de que é homem; mais ainda: um
ser vivo qualquer, a partir do fato de que está vivo”120.
120 C. Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”, In: An-
tropologia estrutural dois, 45. Outra definição dada por Lévi-Strauss de piedade no
mesmo texto: “A identificação, que consiste na apreensão global dos homens e dos animais
como seres sensíveis, precede a consciência das oposições: primeiro entre as propriedades
comuns; e em seguida, apenas entre humano e não humano”, Ibidem, 46. O antropó-
logo Philippe Descola consagrou boa parte de suas últimas pesquisas a entender
as diferentes formas das relações entre humanos e não humanos, concebidas por
populações localizadas em espaços e tempos diferentes. Descola traçou 4 maneiras
fundamentais das sociedades conceberem as relações entre humanos e não huma-
nos (flora e fauna). São elas: 1) a Amazônica (o animismo), em que os não humanos
possuem uma alma e uma consciência idêntica àquela dos humanos (eles se distin-
guem apenas por corpos diferentes); 2) a Ocidental (o naturalismo), em que os hu-
manos são os únicos seres dotados de razão, mas eles não se distinguem, no plano
físico, dos não humanos; 3) a Australiana (o totemismo), em que os humanos e não
humanos partilham qualidades físicas e morais idênticas, as quais se distinguem
de outros conjuntos de qualidades físicas e morais partilhadas por outros conjuntos
de humanos e não humanos; 4) a Chinesa e a Mexicana (o analogismo), em que
cada humano e cada não humano é diferente de todos os outros, mas ele é capaz de
111
astronomia das constelações humanas
manter com eles relações de analogia. Cf. P. Descola, Par-delà nature et culture (Paris:
Gallimard, 2006).
121 Oliver Herrenschmidt chama a atenção para a estreita relação entre os textos “Jean-
-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem” (1962), Totemismo hoje (1962)
e O pensamento selvagem (1962) – todos publicados em um mesmo ano – a partir
da apropriação que Lévi-Strauss faz da ideia de piedade em Rousseau. Cf. O. Her-
renschmidt, “Pitié pour Rousseau et Lévi-Strauss. Notule”, In: Lévi-Strauss, org. M.
Izard (Paris: L’Herne, 2004), 270.
112
a antropologia estrutural é um humanismo
122 C. Lévi-Strauss, Totemismo hoje, trad. José António Dias (Lisboa: Edições 70), 94.
123 Ibidem.
113
astronomia das constelações humanas
124 Stéphane Breton, “De l’illusion totémique à la fiction sociale”, L’Homme, [vol.] 39, 151
(1999) (123-149).
125 C. Lévi-Strauss, Totemismo, hoje, 129.
114
a antropologia estrutural é um humanismo
115
astronomia das constelações humanas
116
a antropologia estrutural é um humanismo
excluir da própria ideia de moralidade tudo o que não diz respeito aos
valores éticos. Para ela, a magnífica frase de Kant “O céu estrelado sobre
mim e a lei moral em meu peito”, que conclui a Crítica da razão prática
(1788) separando o céu estrelado da moral, marcou profundamente, e
por muito tempo, o pensamento ocidental. No texto “Réflexions sur la
liberté” (1976), segundo Clément, Lévi-Strauss teria procurado reunir
esses dois termos – lei moral e natureza –, ao apontar para outra con-
cepção de ética, fundada na conciliação entre o homem e a natureza. Ao
reintegrar a cultura na natureza, o homem ocidental poderia resgatar
uma nova ética, o que recolocaria, portanto, o problema da moralidade.
Em “Réflexions sur la liberté” (1976), Lévi-Strauss retoma a per-
gunta sobre a possibilidade da existência de uma lei moral universal.
Esse texto foi escrito para ser pronunciado na Assembleia Nacional
francesa, a convite de Edgar Faure. O debate sobre os fundamentos ge-
rais da liberdade estava na ordem do dia das discussões políticas na
década de 1970 na França e Lévi-Strauss foi chamado a se pronunciar
sobre o tema diante de políticos e da própria população francesa. Acei-
tando o desafio, ele conduz, contudo, o problema da liberdade para o
tema que sempre moveu suas investigações: as relações entre natureza
e cultura, colocando em xeque a ideia que os homens ocidentais pos-
suem da própria humanidade.
Lévi-Strauss considerava ser possível formular um fundamento
universal para a liberdade cuja evidência fosse tão forte a ponto de lhe
permitir dispensar o aparato complexo de demonstrações filosóficas.
Esse fundamento implicaria na substituição da compreensão do
homem como ser moral pela sua caracterização como ser vivo: “Ora,
se o homem começa por ter direitos a título de ser vivo, daqui resulta ime-
diatamente que esses direitos, reconhecidos à humanidade enquanto espécie,
encontrem os seus limites naturais nos direitos de outras espécies”131. Desse
117
astronomia das constelações humanas
132 Idem.
133 C. Lévi-Strauss, “Estruturalismo e Ecologia”, In: O olhar distanciado, 178.
134 C. Lévi-Strauss, “Reflexões sobre a liberdade”, In: O olhar distanciado, 400.
118
a antropologia estrutural é um humanismo
119
Capítulo II
121
astronomia das constelações humanas
122
as duas faces de janus
123
astronomia das constelações humanas
pressão original justamente porque decidiu “levar a sério [esse seu cará-
ter estrutural] e daí tirar imperturbavelmente todas as consequências”5. En-
tusiasmado com as conquistas da linguística estrutural, especialmente
com trabalhos de Jakobson, Lévi-Strauss acreditava que, pela primeira
vez na história das ciências, os estudiosos seriam capazes de enunciar
leis e fazer previsões sobre fatos humanos.
A linguística teria chegado à maturidade justamente quando, em
vez de se perder na multiplicidade de termos, passou a “considerar as
relações mais simples e mais inteligíveis que os unem”6. No tempo em que
seguia as aulas de Jakobson, na Escola Livre de Altos Estudos de Nova
York, Lévi-Strauss descobrira “que a etnologia do século XIX e mesmo do
princípio do século XX, se tinha contentado, como a linguística dos neogra-
máticos, em substituir ‘problemas de ordem estritamente causal aos proble-
mas dos meios e dos fins’”. Linguistas e antropólogos contentavam-se, en-
tão, em remeter os problemas às suas origens, sem conseguir entender
o seu funcionamento. Ao invés de explicar os fenômenos, a linguística e
a etnologia perdiam-se na multiplicidade esmagadora de suas variações.
Assim, as considerações gerais dos estudos fonológicos de finais do sé-
culo XIX e início do XX, descritas por Jakobson, seriam semelhantes
aos problemas enfrentados pelos etnólogos. O que Jakobson dizia da
fonética aplicar-se-ia bem à etnologia: os fenômenos abstraídos de sua
função se tornariam inclassificáveis e incompreensíveis.
Essa preocupação em buscar a origem dos fenômenos, sem ne-
cessariamente conseguir entendê-los, é compreensível, segundo Lévi-
-Strauss, “numa época em que a pesquisa linguística se baseava sobretudo
5 Jean Pouillon, “A obra de Claude Lévi-Strauss”, trad. Inácia Canelas, In: Raça e histó-
ria, C. Lévi-Strauss (Lisboa: Editorial Presença), 81-82.
6 C. Lévi-Strauss, “As lições da linguística”, In: O olhar distanciado, trad. Carmem de
Carvalho (Lisboa: Edições 70, 2010), 206.
124
as duas faces de janus
125
astronomia das constelações humanas
11 Idem.
12 Idem.
13 Marcio Goldman, “Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas”. In: Lévi-Strauss. Leituras
brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz, Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008), 61.
126
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127
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128
as duas faces de janus
18 Ibidem, 45.
19 C. Lévi-Strauss, “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Sociologia e antropologia,
Marcel Mauss, trad. Paulo Neves (São Paulo: Cosac Naify, 2003), 27.
20 Ibidem, 23.
129
astronomia das constelações humanas
vida social. Para ser atingido por meio de uma explicação totalizante, o
fato social deveria ser apreendido em uma experiência concreta, indivi-
dual (“que permita observar o comportamento de seres totais, e não divididos
em faculdades”) e, também, deveria ser encarnado em uma antropologia,
uma teoria geral das condições de existência da vida social. Esta última
consistiria em um sistema de interpretação que explicaria simultanea-
mente os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de todas as
condutas humanas. Para tanto, a análise deveria fazer coincidir um pon-
to de vista objetivo e subjetivo sobre a sociedade estudada. Em outras
palavras, a noção de fato social total está comprometida, no pensamento
de Lévi-Strauss, com a necessidade de promover uma análise que con-
siga explicar o objeto observado e, também, o próprio observador: “Que
o fato social seja total não significa apenas que tudo o que é observado faz
parte da observação; mas também e sobretudo que, numa ciência em que o
observador é da mesma natureza que seu objeto, o observador é ele próprio
uma parte de sua observação”21.
Lévi-Strauss, de fato, pretendia estabelecer uma relação de com-
plementaridade entre a análise objetiva do conjunto de fenômenos da
sociedade em estudo e sua apreensão subjetiva. O problema da explica-
ção total – aquela que lograria alcançar a estrutura própria do objeto e
explicar as funções do sujeito por meio das quais o objeto é apreendido
– deveria dizer respeito tanto às ciências humanas quanto às ciências da
natureza. Segundo Lévi-Strauss, “uma química total deveria nos explicar
não apenas a forma e a distribuição das moléculas do morango, mas de que
modo um sabor único resulta desse arranjo”22. As ciências da natureza,
contudo, teriam abdicado da explicação total para dedicarem-se à ex-
plicação de seus objetos exclusivamente por meio da análise objetiva
(externa) com mais eficácia. O procedimento que seria perfeitamente
130
as duas faces de janus
131
astronomia das constelações humanas
2. As estruturas
132
as duas faces de janus
dizer que qualquer mudança observada num ponto será remetida às circuns-
tâncias globais de seu surgimento)”. A observação supõe um olhar para a
mudança, mas sem esquecer uma perspectiva de conjunto, das relações
que possibilitaram um dado acontecimento na sociedade estudada.
Depois da observação, viria a experimentação, essa sim elaborada
pelo pesquisador por intermédio de modelos. Os dados tirados da ob-
servação feita pelo etnólogo em campo serviriam como matéria-prima
na construção de modelos, entendidos como estruturas construídas
para atingir os aspectos formais dos fenômenos sociais. Dito de outro
modo, a noção de estrutura em Lévi-Strauss não diz respeito à realidade
empírica, mas aos modelos construídos pelo investigador. Lévi-Strauss
distingue estrutura social de relações sociais da seguinte maneira:
“As relações sociais são a matéria-prima empregada para a construção de
modelos que tornam manifesta a própria estrutura social, que jamais pode,
portanto, ser reduzida ao conjunto das relações observáveis em cada socie-
dade. As pesquisas de estrutura não reivindicam um campo próprio entre os
fatos de sociedade. Constituem, antes, um método passível de ser aplicado a
diversos problemas etnológicos e se apresentam a formas de análise estrutural
utilizadas em diferentes campos”28.
Merleau-Ponty, no ensaio “De Mauss à Lévi-Strauss”, considera
que a noção de estrutura conduziria o pesquisador a conjugar, em sua
análise, o universal e o particular, pois a investigação da antropologia
estrutural se esforçaria em compatibilizar a riqueza do vivido, as par-
ticularidades de cada sociedade ou grupo social, a um quadro geral de
compreensão do homem. Lévi-Strauss se serve dos dados da vida empí-
rica das sociedades para construir modelos. Em vez de tratar a observa-
ção dos fenômenos sociais e os modelos construídos para interpretá-los
como dois movimentos contraditórios, Lévi-Strauss os colocaria como
etapas necessárias de uma mesma investigação. Uma das maiores con-
quistas da antropologia estrutural, segundo Merleau-Ponty, seria essa
28 Ibidem, 301.
133
astronomia das constelações humanas
134
as duas faces de janus
se deve reconstruir anteriormente o sistema total”. In: Totemismo, hoje, trad. José António
Dias (Lisboa: Edições 70), 28.
30 C. Lévi-Strauss, “A noção de estrutura em etnologia”, In: Antropologia estrutural, 302.
31 Ibidem, 340.
135
astronomia das constelações humanas
32 C. Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto e de longe, trad. Léa Mello e Julieta Leite (São
Paulo: Cosac & Naify, 2005),162.
33 Ibidem, 163.
136
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34 Idem.
35 C. Lévi-Strauss, “O campo da antropologia”, In: Antropologia estrutural dois, 26.
36 Idem.
137
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37 Ibidem, 24.
38 Idem.
138
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39 Idem, 14.
139
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140
as duas faces de janus
42 Idem.
43 Jocelyn Benoist, “Le dernier pas du structuralisme: Lévi-Strauss et le dépassement
du modèle linguistique”, Philosophie, [n.] 98 (2008) (54-70).
44 Ibidem, 54.
45 Ibidem, 61.
141
astronomia das constelações humanas
tural pelo próprio mito, não haveria “outro objeto ao fundo”. O mito seria,
então, “combinação e recombinação do sentido ‘por ele mesmo’”46.
Marcio Goldman também aponta uma descontinuidade nas análi-
ses da antropologia estrutural entre Les Structures élémentaires de la pa-
renté (1949) e Mythologiques (1964-1971). Para o autor, houve uma “gran-
de mudança ao longo dos quinze anos que separam essas obras”. Se, em Les
Structures élémentaires de la parenté, Lévi-Strauss procedia por uma série
de reduções, a saber, “das relações entre natureza e cultura à proibição do
incesto, desta à reciprocidade, desta ao inconsciente, mas também da redu-
ção de centenas de sistemas de parentesco a algumas regras de base”47, em
Mythologiques o método estrutural teria sido aplicado de outra maneira.
A análise dos mitos seria feita “no gerúndio”, pois “a inteligibilidade dos
mitos vai sendo revelada, vai sendo descoberta progressivamente, de forma
imanente à própria análise”. Assim, de acordo com Goldman, é como se
Lévi-Strauss transitasse “de um modelo epistemológico muito clássico – a
explicação por meio de reduções progressivas – para um modelo propria-
mente estrutural, em que não há redução de espécie alguma e o sentido se
estabelece apenas com o movimento da análise”48.
Do parentesco aos mitos, o itinerário do inconsciente perseguido
por Lévi-Strauss parece, então, ter sofrido alguns desvios. Essa descon-
tinuidade do método está relacionada à natureza do próprio objeto es-
tudado. Pois, se o estudo das relações de parentesco diz respeito às “or-
dens vividas”, isto é, às ordens que são função de uma realidade objetiva
e que se pode abordar do exterior, independente da representação que
dela têm os homens, o estudo dos mitos leva às “ordens concebidas”, ou
seja, às ordens que não correspondem a nenhuma realidade objetiva,
onde o pensamento se encontra sozinho consigo mesmo49. Evidente-
46 Ibidem, 62.
47 M. Goldman, op. cit., 73.
48 Ibidem, 74.
49 C. Lévi-Strauss, “A noção de estrutura em etnologia”, In: Antropologia estrutural, 341.
142
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143
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144
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55 Ibidem, 105.
56 Idem.
145
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57 Ibidem, 109.
58 Lilia Katri Moritz Schwarcz, “História e Etnologia. Lévi-Strauss e os embates em
região de fronteira”, Revista de Antropologia, [vol.] 42, 1 e 2 (1999): 200 (199-222).
146
as duas faces de janus
147
astronomia das constelações humanas
tal – que sempre teriam dominado os estudos da vida social. Ora, essa
mesma metodologia de classificação, embora não tenha sido nomeada
“crítica epistemológica”, fora utilizada pelo autor doze anos antes, em
“La notion de structure en ethnologie” (1952). Neste texto, ele propôs
uma caracterização do lugar da etnologia para o conjunto das ciências
sociais e humanas a partir de sua relação de oposição e complementari-
dade com a história.
No texto de 1952, antes de apresentar seu quadro classificatório
para algumas das ciências sociais e humanas, Lévi-Strauss começa per-
guntando o que distinguiria fundamentalmente a história da etnologia.
Ele nega, logo de início, que essa diferença seja marcada pela perspecti-
va temporal, comumente considerada exclusiva da história. Lévi-Strauss
estabelece duas diferenças fundamentais entre história e etnologia. A
primeira diferença diria respeito ao tratamento de documentos. En-
quanto os historiadores e etnógrafos trabalhariam, sobretudo, na coleta
e organização de documentos, os sociólogos e etnólogos se dedicariam
a elaborar e a estudar modelos a partir deles. Para Lévi-Strauss, “a et-
nografia e a história diferem primeiramente da etnologia e da sociologia na
medida em que as duas primeiras se baseiam na coleta e na organização
de documentos, ao passo que as outras duas estudam fundamentalmente os
modelos construídos a partir de – e por intermédio de – tais documentos”61.
A segunda distinção entre história e etnologia, aparentemente a
mais importante para Lévi-Strauss, estaria relacionada à escala dos fe-
nômenos tratados por ambas as disciplinas. Se, de um lado, a etnografia
e a etnologia se consagrariam à construção de modelos mecânicos, de
outro, a história e a sociologia lançariam suas pesquisas rumo à cons-
trução de modelos estatísticos. Nas sociedades com pouca densidade
demográfica, ainda seria possível divisar os fenômenos que dizem res-
peito às influências externas ou internas e produzir, assim, uma análise
qualitativa do conjunto da vida social. Os modelos elaborados pelos an-
148
as duas faces de janus
62 bidem, 306.
149
astronomia das constelações humanas
Observação empírica/ + – + –
construção de modelos
Modelos mecânicos/ – – + +
modelos estatísticos
63 Ibidem, 309.
150
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64 Idem.
65 Fernand Braudel, “A longa duração”. In: F. Braudel, Escritos sobre a história, trad. J.
Guinsburg [e] Tereza Cristina Silveira da Mota (São Paulo: Perspectiva, 1969), 42.
151
astronomia das constelações humanas
152
as duas faces de janus
afastavam-se [de um] tipo de história só factual e seriada, definida por Lévi-
-Strauss”68, escreveu Schwarcz. Em “Histoire et ethnologie”, partindo
da ideia de que deve haver uma colaboração entre os estudos feitos por
etnólogos e historiadores, Lévi-Strauss tenta traçar os itinerários gerais
das duas disciplinas, com o intuito de iniciar um processo de superação
das aporias que sempre dominaram as análises nas ciências humanas
e sociais: estrutura e acontecimento, sincronia e diacronia, particular e
geral, consciente e inconsciente. Lévi-Strauss começa por propor uma
distinção, que ele mesmo chama de sumária e provisória, para definir a
etnografia e a etnologia. A etnografia apoiar-se-ia “na observação e aná-
lise de grupos humanos tomados em sua especificidade (muitas vezes esco-
lhidos entre os mais diferentes do nosso, mas por razões teóricas e práticas
que nada têm a ver com a natureza da pesquisa)” e visaria à “restituição,
tão fiel quanto possível, do modo de vida de cada um deles”69. Já a etnologia
consagrar-se-ia à análise comparativa dos documentos elaborados pelos
etnógrafos pela via da construção de modelos.
A afinidade entre história e etnografia no tratamento de docu-
mentos diria respeito, notadamente, ao fato de ambas as disciplinas se
interessarem pelos “processos conscientes e inconscientes, traduzidos em
experiências concretas, individuais ou coletivas, pelos quais homens que não
possuíam uma instituição vieram a incorporá-la, seja por invenção, seja por
transformação de instituições anteriores, seja por tê-la recebido de fora”70.
Assim, para Lévi-Strauss, a produção intelectual de historiadores e et-
nógrafos deve ser entendida, também, como parte integrante – aliás, a
parte mais importante – dos documentos que fomentariam os estudos
sociológicos e etnológicos. Dito de outro modo, a atividade de coleta,
ordenação e análise dos documentos é também a fabricação do próprio
153
astronomia das constelações humanas
71 Idem.
154
as duas faces de janus
72 Idem.
73 Idem.
155
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156
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157
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78 Idem.
79 C. Lévi-Strauss, “História e Etnologia”, In: Antropologia estrutural, 36.
80 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit., 174. É digna de nota a história dessa expressão
de Lévi-Strauss e a sua repercussão, contada por Lévi-Strauss na entrevista a Eribon:
“Disse uma vez nos Estados Unidos – foi em 1952, na conferência de antropólogos organi-
zada pela Wenner-Gren Foundation – que éramos os catadores da história e que procurá-
vamos nossa fortuna nas latas de lixo. O que provocou reações diversas: meus colegas não
gostaram da comparação. Ao final da sessão, Margareth Mead aproximou-se e disse-me:
‘Há palavras que jamais devem ser pronunciadas’. Data desse dia nossa amizade, que
durou até a sua morte”. (Idem).
158
as duas faces de janus
81 Idem, 174.
82 C. Lévi-Strauss, “História e Etnologia”, In: Antropologia estrutural, 40.
83 Ibidem, 38.
159
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160
as duas faces de janus
res, das quais só se afastam para encará-las sob um ângulo mais rico e mais
complexo”85.
Qual um Janus de duas faces, a solidariedade entre as duas discipli-
nas permitiria ao homem um conhecimento mais completo e profundo
da sua natureza e da diversidade das suas manifestações, ao menos do
ponto de vista social e cultural. O olhar do Janus apreenderia o interior
e o exterior, o passageiro e o permanente, o consciente e o inconsciente,
o implícito e o explícito, o particular e o universal. História e etnologia
parecem ter a ferramenta inicial necessária, ao menos nesse momento
inicial dos trabalhos de Lévi-Strauss, para ultrapassar boa parte dos obs-
táculos que sempre contrapuseram o homem à sua própria realidade.
Mas, se ambas são de fato indispensáveis para um estudo totalizante e
objetivo da vida social, é inegável que, para Lévi-Strauss, a antropologia
segue assumindo um papel de destaque em relação à história, pois ela
alcança um nível de generalidade da explicação que a história jamais
poderia alcançar.
161
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162
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90 Ibidem, 45.
91 Ibidem, 76.
92 Ibidem, 49.
163
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93 Ibidem, 68.
94 F. Hartog, op. cit., 15.
95 C. Lévi-Strauss, “História e etnologia”, In: Antropologia estrutural, 32 (grifos nossos).
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99 Jacques Le Goff, Apresentação a A história nova, orgs. Jacques Le Goff, Roger Chart-
ier e Jacques Revel, trad. Eduardo Brandão (São Paulo: Martins Fontes, 1998), 20.
100 Idem, 18.
166
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astronomia das constelações humanas
procas. Concordo plenamente com Dumézil e Lévi-Strauss quando afirmam que diante de
um texto dito mítico ou lendário, uma narrativa ou texto de Hesíodo, deve-se mostrar sua
organização, mostrar como existem ressonâncias internas, como aquilo faz sentido porque
faz sistema. Estava completamente de acordo com isso, mas, talvez, não me alinhasse tanto
com a ideia de que existiria ali um espírito humano e de que, quando se tratava de apreen-
der seu funcionamento, haveria uma espécie de funcionamento. Hoje, o que diria? Diria
que, após os trabalhos de Françoise Héritier e de outros, meu problema não é somente fazer
isso. Meu problema é também de tentar verificar como esses sistemas se transformam, como
esses sistemas – não importa que sistema, em realidade – comportam níveis diferenciados:
as camadas de tempo não são as mesmas; há, portanto, dissonâncias e contradições. Isso
faz o sistema desmoronar. Uma das coisas mais interessantes é verificar como ele desmoro-
na, como qualquer coisa – algo que chamamos a visão de mundo em Hesíodo, por exemplo
– transforma-se por completo em um pensamento dos filósofos jônicos e dos filósofos eleatas,
para não falarmos no que vem depois. O que me interessa muito – e que não foi problema
para Lévi-Strauss, sendo, por vezes, problema para Dumézil – era ver como um sistema
religioso se desfazia, como as tríades divinas podiam em dado momento se esfumar, se de-
siquilibrar. Trata-se de observar como se modificam. Escolhi a Grécia precisamente porque
foi aí que as coisas se modificaram mais rapidamente, no tempo mais curto e de maneira
mais profunda. Mas já escrevi mais ou menos sobre isso, com diferentes graus de coerência”.
José Otávio Nogueira Guimarães, “Como um Barco à Deriva. Entrevista com Jean-
-Pierre Vernant”, In: Antigos e modernos: diálogos sobre (a escrita da) história, 387.
104 José Otávio Nogueira Guimarães. “Origens da antropologia da Grécia antiga: Lévi-
-Strauss, Vernant e duas viagens de 1935”, Revista de História da USP – edição espe-
cial (2010): 43 (39-49).
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rio, intitulado “La Nouvelle histoire”. Tanto mais porque a chamada his-
tória das mentalidades, que incluiria “a noção de aparelhagem mental e a
de sensibilidade” com o objetivo de “reconstruir a vida afetiva dos outros”107,
recobrava o problema da estrutura, isto é, “das forças permanentes que
atuam sobre as vontades humanas, que pesam sobre elas sem que elas disso
se apercebam, que as vergam nesta ou naquela direção”108. Assim, embora
a história das mentalidades levasse os historiadores para o quadro de
uma aparente imobilidade da vida mental, eles nunca deveriam perder
de vista que até mesmo os fenômenos que se instalam na longa ou na
longuíssima duração tinham um prazo de validade.
O verbete “L’histoire des mentalités” do dicionário foi escrito por
Philippe Ariès. O historiador aponta como precursores da história das
mentalidades “os pais fundadores”109 dos Annales, Marc Bloch e Lucien
Febvre. Além deles, “o belga Henri Pirenne, geógrafos como A. Demange-
on, sociólogos como L. Lévy-Bruhl, M. Halbwachs, etc.” Para fora do espec-
tro de influência dos Annales, Ariès lembra também dos trabalhos do
historiador holandês Huizinga, o alemão Norbert Elias e o historiador
da literatura maldita Mario Paz. Todos esses autores teriam reconhe-
cido à história um domínio diverso daquele a que estivera limitada, “o
das atividades conscientes, voluntárias, orientadas para a decisão política,
a propagação das ideias, a conduta dos homens e dos acontecimentos”110.
Os domínios da história dariam conta dos fenômenos da cultura. A in-
trodução do conceito de mentalidade implicaria, segundo Ariès, “uma
extraordinária dilatação do ‘território do historiador’”111.
Depois de fazer um balanço sobre o nascimento da história das
mentalidades nos trabalhos dos historiadores da primeira geração da
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114 Ibidem,163.
115 Ibidem, 164.
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4. Os limites da história
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130 Idem.
131 Ibidem, 288.
178
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132 Idem.
133 Ibidem, 284.
134 Idem.
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dos inúmeros outros que poderiam ter escolhido. Desse modo, enten-
deriam que aquilo que vivem “tão completamente e intensamente é um
mito”. Para Lévi-Strauss, o sentido que os homens atribuem a sua histó-
ria é um mito. Esse mito poderá também aparecer como tal aos homens
de um século próximo. Mas seria certo também que, “aos homens de um
próximo milênio, não aparecerá absolutamente”142. Os sentidos da história
são todos provisórios porque são verdades de situação, dependem da
confirmação, do consenso, de um grupo. Quando se deixa de acreditar
neles, eles também deixariam de ser verdade.
Para esquivar-se desse dilema trazido pelo pensamento de Sartre,
Lévi-Strauss propõe que a história seja entendida como “um método ao
qual não corresponde um objeto específico”143. Assim, seria possível recusar
a equivalência entre a noção de história e a de humanidade. A histó-
ria não estaria ligada ao homem nem a nenhum objeto particular. O
historiador seria um prático da história, não um filósofo. Seu trabalho
estaria todo absorvido em seu método. Se ele procura um sentido para
a história, deveria ter consciência de que esse sentido poderia revelar
uma verdade de situação, nunca uma verdade de fato. Também a totali-
dade a que chegaria o historiador seria sempre uma totalidade parcial.
A duração temporal não lhe garantiria a unidade da análise, seu saber
seria sempre descontínuo, pois o código com o qual trabalharia também
o era. Ao contrário do que afirmava Braudel, o tempo da história não
traria ao historiador a perspectiva da unidade de sua análise.
Para Lévi-Strauss, a história seria uma espécie de inventário in-
tegral dos elementos de uma estrutura qualquer, humana ou não-hu-
mana. As totalizações parciais que ela realiza seriam o ponto de partida
para uma totalização de fato científica, a qual deveria atingir um plano
formal. Esse plano, para Lévi-Strauss, a história jamais poderia alcançar.
Mas, de outro lado, o analista só chegaria ao plano formal se partisse
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iludirem, forçando as palavras, para melhor explicar as coisas – expressões perigosas : ‘his-
tória quase imóvel’ (Fernand Braudel) ou ‘história imóvel’ (Emmanuel Le Roy Ladurie).
Não, a história se move. A história nova deve, ao contrário, fazer com que a mudança seja
melhor compreendida”. (Ibidem, 45).
148 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit., 177.
149 Idem.
150 Marc Bloch, Apologia da história, ou o Ofício do Historiador, trad. André Telles (Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001), 55.
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Capítulo III
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5 C. Lévi-Strauss, “Diogène couché”, Les Temps modernes, [n.]110 (1955): 1217 (1186-
1220).
6 C. Lévi-Strauss, “La fin de la suprématie culturelle de l’Occident”, In: L’anthropologie
face aux problèmes du monde moderne (Paris: Seuil, 2011), 31. Essa mesma comparação
entre astronomia e antropologia apareceu em 1960: “Esta observação privilegiada [a
do antropólogo], porque distante, implica certamente em certas diferenças de natureza
entre essas sociedades [as primitivas] e a nossa: a astronomia não exige unicamente que
os corpos celestes estejam longínquos; é também necessário que o tempo decorra no mesmo
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ritmo, senão a Terra haveria cessado de existir, muito antes de ter a astronomia existido”.
C. Lévi-Strauss, “O campo da antropologia”, trad. Sonia Wolosker. In: Antropologia
estrutural dois (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993), 35. Em um outro texto, de
1988, Lévi-Strauss retoma o argumento: “A antropologia pode ser comparada à astro-
nomia em seu começo. Nossos ancestrais contemplavam o céu noturno sem ter o auxílio
de telescópios e de nenhum conhecimento de cosmologia. Pelo nome de constelações, eles
distinguiam grupos de estrelas privados de toda realidade física: cada conjunto de estrelas
que o olho vê sobre um mesmo plano está na verdade situado a distâncias fantasticamen-
te desiguais da Terra. O erro se explica pelo distanciamento do observador em relação
aos objetos de observação. É graças a essa distância que a regularidade do movimento
aparente dos corpos celestes foi identificada muito cedo. Durante milênios, os homens se
serviram desse conhecimento – e eles continuam a se servir – para prever o retorno das
estações, medir a passagem do tempo noturno, se guiar pelos oceanos. Nós pedimos mais à
antropologia; mas, apesar de jamais conhecer uma cultura de dentro, privilégio reservado
aos nativos, ela pode ao menos propor a eles uma visão de conjunto, reduzida a alguns
contornos esquemáticos, mas que, por eles estarem tão perto, são incapazes de obtê-la”. C.
Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la lune
(Paris : Éditions du Seuil, 2011),18-19.
7 C. Lévi-Strauss, “La fin de la suprématie culturelle de l’Occident”, In: L’anthropologie
face aux problèmes du monde moderne, 32.
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13 Raymond Aron, History and the Dialectic of Violence. An Analysis of Sartre’s Critique
de la Raison dialectique, trad. Barry Cooper (New York: Basil Blackwell, Oxford and
Harper & Row, 1975), 234.
14 Aron cita como exemplo essa acusação de Sartre contra Lévi-Strauss: “o estrutura-
lismo, de qualquer maneira o estruturalismo dos discípulos de Lévi-Strauss, se não dele
mesmo, na medida em que compreende mal a praxis, a ação de ultrapassar o dado rumo
a um novo futuro, se torna, volens nolens, na visão de Sartre, um instrumento do conser-
vadorismo a serviço da burguesia”. (Idem).
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15 Ibidem, 234-235.
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18 Ibidem,135.
19 Idem.
20 Ibidem, 150.
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apoia em Marx: “Se bem que nossa reflexão em relação a uma e outra [razão
analítica e dialética] tenha seu ponto de partida em Marx, parece-me que a
orientação marxista conduz a uma visão diferente [da de Sartre]: a oposição
entre as duas razões é relativa e não absoluta; ela corresponde a uma tensão
no âmago do pensamento humano, que talvez subsista indefinidamente de
fato mas que não está fundada no direito”21.
Aparece, então, o argumento que marca, para Lévi-Strauss, um
dos aspectos mais importantes do pensamento selvagem, da razão ana-
lítica: “para nós, a razão dialética é sempre constituinte: é a passarela inces-
santemente prolongada e melhorada que a razão analítica lança sobre um
abismo, do qual não percebe a outra borda, mesmo sabendo que ela existe e
que deve dela constantemente afastar-se”22. Veremos, no capítulo IV desse
livro, a propósito da discussão sobre a ideologia bipartite ameríndia, que
Lévi-Strauss propôs compreender o pensamento dos indígenas como a
coexistência entre duas formas de dualismo: o diametral e o concêntri-
co. Este último seria, justamente, um “mediador entre o dualismo diame-
tral e o triadismo”23.
Vinte e seis anos depois da publicação de La pensée sauvage, em
De près et de loin (1988), Didier Eribon lembra que, em 1956, Jean Pou-
illon havia anunciado um livro de Lévi-Strauss, Ethnologie et marxisme.
Eribon pergunta: “Esse livro não viu a luz do dia, mas pode-se deduzir que
o senhor foi sempre marxista?”24. Ao que Lévi-Strauss responde: “Mui-
tas vezes sonhei com livros que nunca escrevi. Quanto ao meu ‘marxismo’,
não preciso dizer mais nada: dos ensinamentos de Marx, guardo apenas
algumas lições. Sobretudo esta: que a consciência mente para si mesma. E
depois, como já lhe disse, foi através de Marx que vislumbrei Hegel, e, depois
21 Ibidem, 274.
22 Idem.
23 C. Lévi-Strauss, “As organizações dualistas existem?”, In: Antropologia estrutural,
trad. Beatriz Perrone Moisés (São Paulo: Cosac & Naify, 2008), 166.
24 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit., 156.
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30 Reconhecido pela retórica antiga como uma das formas da comparação, o paralelo
foi instrumento de excelência da história magistra. A Antiguidade o formulou e se
serviu amplamente dele, como mostrou Hartog. Foi Plutarco (46 a 120 d.C, apro-
ximadamente) quem o ilustrou e o transmitiu para os modernos – Montaigne, Ma-
quiavel, Rousseau e Voltaire são apenas alguns dos nomes que não deixaram de lhe
render homenagem –, por meio de seu livro Vidas paralelas de homens ilustres (escrito
entre 100 e 110 d.C, aproximadamente). Hartog explicita que nessa obra de Plutarco
o paralelo é apresentado como um instrumento de conhecimento e de enriqueci-
mento de si. Vidas paralelas reteria da vida de dois heróis, sempre um grego e um ro-
mano, aquilo que considera ser a característica mais importante e mais bela dos dois
homens. Hartog explica: “Concebido por Plutarco tendo em vista a imitação, o paralelo
é um espelho que traz ao leitor a imagem do que ele gostaria de ser, ou do que seria preciso
que ele fosse. Ele é então uma variedade do exemplum, mas um exemplo redobrado. Indo
do passado em direção ao presente do leitor, ele o convida a agir”. In: F. Hartog, Anciens,
modernes, sauvages (Paris: Galaade Éditions 2005), 252.
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31 Ibidem, 23.
32 Ibidem, 275.
33 Idem.
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36 Ibidem, 56.
37 C. Lévi-Strauss, “As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico”, In:
Antropologia estrutural dois, 317-318.
38 Idem.
39 Idem.
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42 Ibidem, 319.
43 Idem. Para demonstrar de onde tira essa sua interpretação a respeito de Marx, Lévi-
-Strauss cita O Capital: “Suponhamos que sejam necessárias doze horas de trabalho para
satisfazer todas as necessidades de um desses insulares; vê-se que o primeiro favor que a
natureza lhe concede é muito lazer. Para que o empregue produtivamente para si próprio,
é preciso todo um encadeamento de incidências históricas; para que o gaste em sobre-traba-
lho para outro, deve-se constrangê-lo pela força” (Marx, O Capital, II)
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44 Ibidem, 320.
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45 Idem.
46 Idem.
47 Ibidem, 321.
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51 Ibidem, 324.
52 Idem.
213
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53 Idem.
54 Ibidem, 327.
55 C. Lévi-Strauss, “La fin de la suprématie culturelle de l’Occident”, In: L’anthropologie
face aux problèmes du monde moderne, 58.
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o espetáculo dos outros
te que observa o mundo pela janela de seu trem. Esse exemplo é ainda
mais instrutivo porque é também correntemente utilizado pelos físicos
para explicar os primeiros rudimentos da teoria da relatividade.
Para um viajante sentado à janela do trem, a velocidade e o com-
primento dos outros trens variam conforme estes se deslocam no mes-
mo sentido ou em sentido inverso em relação ao seu próprio trem. Esse
fato demonstra que a percepção da velocidade do deslocamento dos cor-
pos não é um valor absoluto, mas função da posição do observador. O
mesmo aconteceria com o analista que pretendesse julgar as culturas
humanas. O ritmo do progresso das culturas dependeria do quadro de
referência que guia o próprio analista. Para Lévi-Strauss, não poderia
ser de outro modo, pois os membros de uma cultura permaneceriam
sempre solidários ao seu sistema de referência: “deslocamo-nos literal-
mente com este sistema de referências, e as realidades culturais de fora só são
observáveis através das deformações por ele impostas, quando ele não nos
coloca mesmo na impossibilidade de aperceber delas o que quer que seja”58.
Lévi-Strauss se serve da teoria da relatividade de Einstein para es-
clarecer que a distinção entre história estacionária (culturas que não se
movem) e história cumulativa (culturas que se movem) também não
possui um valor absoluto. Essa distinção teórica dependeria exclusiva-
mente da posição do observador em relação à cultura observada. Mas a
teoria da relatividade, aplicada às ciências sociais, deveria funcionar de
maneira simetricamente inversa à teoria concebida por Einstein para
explicar fenômenos no campo das ciências físicas: “Para o observador
do mundo físico (tal como o mostra o exemplo do viajante) são os sistemas
que evoluem no mesmo sentido que o seu que parecem imóveis, enquanto os
mais rápidos são aqueles que evoluem em sentidos diferentes. Com as cultu-
sem se dar conta que ela continua de todos os pontos de vista solidamente instalada em sua
particularidade, e que seu pseudodiscurso científico se degrada rapidamente em verdadeira
ideologia”. Pierre Clastres, La Société contre l’État (Paris: Minuit, 2011), 16.
58 C. Lévi-Strauss, Raça e história, 35.
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ras passa-se o contrário, uma vez que estas nos parecem tanto mais ativas
quanto mais se deslocam no sentido da nossa e estacionárias quando a sua
orientação é divergente”59.
Assim, a teoria da relatividade aplicada à explicação das diferenças
culturais mostraria que uma cultura que se desenvolve em sentido aná-
logo ao nosso nos pareceria cumulativa, ao passo que as outras culturas,
aquelas que seguem outras direções, nos pareceriam estacionárias não
porque elas o sejam, mas porque sua linha de desenvolvimento não
significaria nada para nós, isto é, ela não seria “mensurável nos termos do
sistema de referência que nós utilizamos”. Assim, todas as vezes que uma
cultura humana for qualificada como atrasada, inerte ou estacionária,
seria preciso questionar, primeiro, se esta qualificação “não resulta da
nossa ignorância sobre os seus verdadeiros interesses, conscientes ou incons-
cientes, e se, tendo critérios diferentes dos nossos, esta cultura não é, em rela-
ção a nós, vítima da mesma ilusão”60.
O progresso científico e tecnológico parece ter sido o critério que
as sociedades ocidentais escolheram para situar a si mesmas e as ou-
tras sociedades em uma escala comparativa e hierárquica, ao menos
nos últimos dois ou três séculos. Porém, se adotássemos esse mesmo
critério para estabelecer uma hierarquia de desenvolvimento entre as
sociedades, a civilização ocidental em sua forma norte-americana ocu-
paria o lugar de vanguarda. Em seguida viriam “as sociedades europeias,
arrastando atrás de si uma massa de sociedades asiáticas e africanas que
rapidamente se tornariam indistintas”61. Porém, se utilizássemos outro
critério para medir o progresso das sociedades chegaríamos certamen-
te a classificações diferentes: “se o critério adotado tivesse sido o grau de
aptidão para triunfar nos meios geográficos mais hostis, não havia qualquer
dúvida de que os esquimós, por um lado, e os beduínos por outro, levariam
59 Ibidem, 36.
60 Idem.
61 Ibidem, 37.
218
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219
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dos biólogos, por mutações: “estes saltos não consistem em ir sempre mais
longe na mesma direção; são acompanhados por mudanças de orientação,
um pouco à maneira dos cavalos do xadrez que têm sempre à sua disposição
várias progressões mas nunca no mesmo sentido”64.
O progresso da humanidade não poderia ser explicado por meio da
imagem de um homem subindo uma escada, “acrescentando, para cada
um dos seus movimentos, um novo degrau a todos aqueles já anteriormente
conquistados”65. A humanidade em progresso evocaria, na imagem es-
colhida por Lévi-Strauss, “o jogador cuja sorte é repartida por vários dados
e que, cada vez que os lança, os vê espalharem-se no tabuleiro formando
outras tantas somas diferentes”. Apenas de tempos em tempos a história
se tornaria cumulativa, somente em certos momentos um conjunto de
acontecimentos “se adiciona para formar uma combinação favorável”. Se
em determinado plano uma cultura poderia parecer estacionária ou re-
gressiva, em outro, poderia ser o berço de importantes transformações.
Também a história cumulativa, mesmo se for analisada sob o critério do
desenvolvimento tecnológico e científico, não seria privilégio de uma
única civilização, ou de um período específico da história.
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69 Ibidem, 47.
222
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71 Ibidem, 50. Mais uma vez, para estabelecer esse quadro relativo dos progressos técni-
cos e científicos das culturas humanas, Lévi-Strauss cita Leslie A. White The science
of culture (New York, 1949), 196.
72 C. Lévi-Strauss, Raça e história, 50.
224
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73 Ibidem, 51.
74 Ibidem, 53.
225
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75 Ibidem, 58.
76 Idem.
226
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78 Idem.
79 C. Lévi-Strauss, Raça e história, 52.
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não dependeu do gênio de uma raça ou de uma cultura, mas de condições tão
gerais que se situam fora da consciência dos homens”.
Desse modo, para Lévi-Strauss, o aparecimento da escrita somen-
te teria sido possível graças à revolução neolítica, porque o homem pôde
dispor do capital conquistado por meio do conhecimento e das sínteses
técnicas do neolítico. É como se a escrita tivesse vindo a reboque da
revolução neolítica. A primeira seria um prolongamento dessa última.
Por essa razão, Lévi-Strauss sustenta que as maiores conquistas que
antecederam a segunda revolução da história da humanidade, a revolu-
ção industrial, aconteceram independentemente da escrita. Esta última
não seria o elemento condicionante para a reunião e o aperfeiçoamento
de técnicas e de conhecimentos em uma sociedade. Por isso, para Lévi-
-Strauss, a evolução das técnicas e conhecimentos seria perfeitamente
realizável sem o auxílio da escrita, como acontece entre as sociedades
ditas selvagens. O fato de não possuírem escrita não deixaria as socieda-
des indígenas em uma posição de inferioridade.
Então, o que essencialmente teria se produzido graças à invenção
da escrita nos séculos que antecederam a revolução industrial? O que
a acompanhou? Para Lévi-Strauss, o “fenômeno que parece sempre e por
todos os lugares ligado ao aparecimento da escrita”, não somente no Medi-
terrâneo oriental, mas na China proto-histórica e mesmo nas regiões da
América onde os esboços da escrita apareceram antes da conquista, é o
da constituição de sociedades hierarquizadas. Estas se encontram “com-
postas por senhores e escravos, sociedades que utilizam uma certa parte de
sua população para trabalhar em proveito de uma outra parte”80: “Quando
olhamos para quais foram os primeiros usos da escrita, parece nitidamente
que eles tenham sido primeiro aqueles do poder: inventários, catálogos, re-
censeamentos, leis e mandamentos; em todos os casos, seja para o controle de
229
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***
81 Ibidem, 33.
82 Marcio Goldman, “Lévi-Strauss e os Sentidos da História”, Revista de Antropologia,
[vol.] 42, 1 e 2 (1999): 233 (223-238).
230
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87 Idem.
88 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit.,193.
89 Pierre Clastres, op.cit., 11.
90 Ibidem, 19.
232
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mentou, existe poder nas sociedades ameríndias e este poder está “total-
mente separado da violência”, é “exterior à toda hierarquia”, o que o levaria
a três conclusões: “o poder político é universal, imanente ao social (...) mas
ele se realiza em dois modos principais: poder coercitivo, poder não coerciti-
vo”; o poder político como coerção é “simplesmente um caso particular”
de certas culturas, a exemplo das ocidentais; “pode-se pensar a política
sem violência, não se pode pensar o social sem a política”91.
O fundamento da política, então, não seria a violência, a coerção.
Em Clastres, o fundamento do poder coercitivo é a inovação, mas esta
não é o fundamento de todo o poder, não é, portanto, fundamento do po-
der não-coercitivo. Assim, propôs: “sociedades com poder político não-coer-
citivo são sociedades sem história, as sociedades com poder político coercitivo
são sociedades históricas”92. As perguntas que doravante se colocariam
para a antropologia política seriam estas duas perguntas fundamentais:
1) “O que é o poder político?”; 2) “Como e por que passamos do poder político
não coercitivo para o poder político coercitivo? Isto é: o que é a história?”.
O problema do que seria a política para os selvagens obriga, Clastres
havia previsto, a uma virada completa de perspectiva do pensamento
moderno. Em vez de seguir Durkheim, para quem “o poder político su-
poria diferenciação social”, Clastres propõe que o poder político constitui
“a diferença absoluta da sociedade”: “Não teríamos aqui a cisão radical en-
quanto raiz do social, o corte inaugural de todo movimento e de toda história,
o desenvolvimento original como matriz de todas as diferenças?”93.
Segundo o próprio Clastres, a obra de Lévi-Strauss lhe indicou o
caminho para a reflexão sobre o poder entre os selvagens. Esse pro-
blema seria uma verdadeira revolução copernicana para o pensamento
moderno (que sempre girou em torno de si mesmo), pois a conversão
para os selvagens, uma conversão heliocêntrica, ocasionaria uma me-
91 Ibidem, 20-21.
92 Ibidem, 22.
93 Ibidem, 23.
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astronomia das constelações humanas
lhor compreensão “[d]o mundo dos outros e, por contragolpe, [d]o nosso”94.
Assim, não há como discordar de Overing e Goldman: para além dos
estudos clássicos das relações de parentesco ou de mitologia, as refle-
xões de Lévi-Strauss sobre a história têm um lugar fundamental para as
formulações de antropologia política de Clastres. Sociedades contra a
história, sociedades contra o Estado: “é preciso aceitar que a negação não
significa ausência”95.
94 Idem.
95 Ibidem, 18.
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103 Idem.
104 Ibidem, 42.
105 Ibidem, 43.
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Lévi-Strauss e a UNESCO
106 Emmanuel Terray é antropólogo, professor da EHESS. Transcrevemos seu relato: “no
fim dos anos 1950, quando eu era, ao mesmo tempo, um etnólogo em formação e um mi-
litante contra a guerra da Argélia, eu me senti diretamente envolvido pela luta contra o
racismo. A leitura de Raça e história foi para mim mais do que um enriquecimento: foi
uma iluminação. Em um domínio em que nossas referências marxistas restavam quase to-
talmente mudas, Lévi-Strauss, em menos de uma centena de páginas admiráveis de clareza
e solidez, produziu uma crítica radical contra o preconceito racista e seus engodos pseu-
docientíficos, atrás dos quais ele tenta à vezes se esconder”. E. Terray, “Face au racisme”,
Magazine Littéraire, [n.] 223 (octobre 1985): 54 (54-55).
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gist, [vol.] 53, 1 (1951) (142-145). Esse documento foi redigido após alguns encontros
de especialistas em Paris que tinham a missão de reunir dados científicos sobre a
questão das raças para sustentar a campanha educativa da UNESCO contra o ra-
cismo e a discriminação. Entre os especialistas presentes naquelas reuniões estava
Claude Lévi-Strauss. In: Wiktor Stoczkowski, Anthropologies rédemptrices. Le monde
selon Lévi-Strauss (Paris: Hermann Éditeurs, 2008). Ver especialmente o primeiro
capítulo do livro, “Race, histoire et UNESCO” (23-41).
110 Ibidem, 36.
111 W. Stoczkowski, “Claude Lévi-Strauss et l’Unesco”, 6.
112 C. Lévi-Strauss, Prefácio ao livro O olhar distanciado, In: O olhar distanciado, 4.
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119 C. Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, trad. Gabinete Literário de Edições 70 (Lisboa : Edi-
ções 70, 2004) 135-136 (grifos nossos).
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122 Alexandre Pajon analisou a trajetória política de Lévi-Strauss entre os anos 1930 e
1950, ou seja, do seu engajamento como militante da SFIO (Seção Francesa da Inter-
nacional Operária) até sua conversão para a antropologia e entrada na UNESCO. Cf.
Alexandre Pajon, Lévi-Strauss politique. De la SFIO à l’UNESCO (Toulouse: Privat,
2011).
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4. O binômio quente-frio
123 Philippe Descola, Diversité des natures, diversités des cultures (Montrouge: Bayard,
2010), 62.
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124 C. Lévi-Strauss, “História e Etnologia” (1983), trad. Wanda Caldeira Brant, Textos
didáticos, [n.] 24 (2004): 9 (7-38).
125 C. Lévi-Strauss, Raça a história, 62.
126 G. Charbonnier, Entretiens avec Claude Lévi-Strauss, 38.
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127 Idem.
128 Ibidem, 47.
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sentimentos, a má vontade, a tristeza de não ter sido seguido, agiriam como uma força
quase mágica para comprometer o resultado obtido. Por essa razão, quando, em algumas
sociedades – penso em exemplos da Oceania –, uma decisão importante deve ser tomada,
primeiro – na véspera ou na ante-véspera – se organiza uma espécie de combate ritual, no
curso do qual todas as velhas querelas são liquidadas em combates mais ou menos simula-
dos, em que algumas vezes, ainda, há feridos – apesar do esforço para que os riscos sejam
limitados. A sociedade começa então a evitar todos os motivos de dissensão, e, somente
depois que o grupo está resfriado, rejuvenescido, tendo eliminado todas os desacordos, toma
uma decisão que poderá ser unânime, e manifesta, assim, a boa vontade comum”. (Ibi-
dem, 40-41).
132 Ibidem, 47.
133 Ibidem, 48 e C. Lévi-Strauss, “O campo da antropologia”, In: Antropologia estrutural
dois, 37.
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como elas exploram o meio garante, ao mesmo tempo, um nível de vida mo-
desto e a proteção dos recursos naturais. Apesar de sua diversidade, as regras
de casamento que aplicam apresentam, para os demógrafos, um caráter co-
mum, qual seja, o de limitar ao extremo e de manter a taxa de natalidade em
nível constante. Enfim, uma vida política baseada no consentimento, e não
admitindo outras decisões senão as tomadas por unanimidade, parece ter
sido concebida para excluir o uso deste motor da vida coletiva que utiliza os
desvios diferenciais entre poder e oposição, maioria e minoria, exploradores
e explorados”142.
As sociedades ditas primitivas poderiam ser chamadas de socieda-
des frias porque seu meio interno estaria “próximo do grau zero de tem-
peratura histórica”. Assim, elas se distinguiriam das sociedades quentes
“por seu efetivo restrito e por seu modo mecânico de funcionamento”. Mas,
como as sociedades quentes, elas teriam passado por todos os tipos de
transformações, teriam atravessado períodos de crise e de prosperidade
e conhecido “guerras, migrações, aventura”.
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poderia explicar a ausência desse tipo de instituição nas sociedades quentes. Esse
problema do “vazio totêmico” vem a propósito da explicação das relações entre
sincronia e diacronia operadas pelas sociedades frias e quentes. Para as sociedades
frias: “As classificações totêmicas sem dúvida dividem seus grupos em uma série original
e uma série derivada; a primeira compreende as espécies zoológicas e botânicas em seu
aspecto sobrenatural, a segunda, os grupos humanos em seu aspecto cultural; e afirma-se
que a primeira existia antes da segunda, tendo-a, de alguma forma, engendrado. Não
obstante, a série original continua a viver na diacronia através das espécies animais e ve-
getais, paralelamente à série humana. As duas séries existem no tempo, mas aí usufruem
de um regime atemporal, pois, ambas reais, permanecem em conserva, tais como eram
no instante da separação. A série original está sempre lá, pronta a servir de sistema de
referência para interpretar ou retificar as mudanças que se produzem na série derivada.
Teórica senão praticamente, a história está subordinada ao sistema”. Para as sociedades
quentes: “Quando uma sociedade toma o partido da história, a classificação em grupos
finitos torna-se impossível, porque a série derivada, ao invés de reproduzir uma série origi-
nal, confunde-se com ela para formar uma série única da qual cada termo é derivado em
relação ao anterior e original em relação ao posterior. Ao invés de uma homologia dada
de uma vez por todas entre as duas séries, cada uma, finita e descontínua por sua conta,
postula-se uma evolução contínua no interior de uma única série que acolhe termos em
número limitado”. (Ibidem, 258-259).
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152 Immanuel Kant, Antropologia de um ponto de vista pragmático, trad. Clélia Aparecida
Martins (São Paulo: Iluminuras, 2006), 130 (grifo nosso).
153 Ele mesmo o admite em sua entrevista a Charbonnier: “Quando tento aplicar para a
análise da minha própria sociedade o que eu sei das outras que estudo com uma imensa
simpatia, quase afeição, me defronto com algumas contradições; algumas decisões ou al-
guns modos de ação, quando os testemunho em minha própria sociedade, me indignam e
me revoltam, enquanto que, se eu observo atitudes análogas, ou relativamente próximas,
nas sociedades ditas ‘primitivas’, não há de minha parte nenhum esboço de julgamento de
valor. Eu tento compreender por que as coisas são assim, e parto do postulado que estipula
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astronomia das constelações humanas
que, desde que esses modos de ação, essas atitudes existem, deve haver alguma razão que os
explique”. In: G. Charbonnier, Entretiens avec Claude Lévi-Strauss, 17.
154 Hartog, F. “O olhar distanciado. Lévi-Strauss e a história”, trad. Temístocles Cezar,
Topoi, [vol.] 7, 12 (2006):16 (9-24).
155 Idem.
156 R. Koselleck, Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos, trad. Wil-
ma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira (Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-
-Rio, 2006), 317.
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Capítulo IV
A história reencontrada
“Quando o mito se torna história”
1 Claude Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto e de longe, trad. Léa Mello e Julieta Leite
(São Paulo: Cosac & Naify, 2005),188.
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2 C. Lévi-Strauss, O cru e o cozido, trad. Beatriz Perrone Moisés (São Paulo: Cosac&Naify,
2004), 30.
3 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit., 191-192.
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4 Denis Bertholet, Claude Lévi-Strauss (Paris: Odile Jacob, 2003), 321. Existe uma
extensa e relevante lista de autores que trataram do problema dos mitos em Lévi-
Strauss. Em relação às publicações mais recentes, podemos mencionar o capítulo
de livro de Mauro William Barbosa de Almeida e os livros de Ivan Domingues e
Maurice Godelier. Cf. Mauro William Barbosa de Almeida, “A fórmula canônica do
mito”, In: Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz, Renarde
Freire Nobre (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), p.147-182; Ivan Domingues,
Lévi-Strauss e as américas: análise estrutural dos mitos (São Paulo: Edições Loyola,
2012); Maurice Godelier, Lévi-Strauss (Paris: Seuil, 2013).
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1. Apologia do Japão
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***
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18 Idem.
19 C. Lévi-Strauss, “La face cachée de la lune”, In: L’autre face de la lune, 74.
20 C. Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la
lune, 51.
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se pensam uns em relação aos outros”. Ele encontraria sua realidade “no
limiar onde todas as suas causas aparecem refletidas”. Essa maneira de con-
ceber o sujeito por meio do que está fora dele, situá-lo no final de um
longo percurso, não no início de todo e qualquer processo, como fazem
os ocidentais, investiria o pensamento japonês do que Lévi-Strauss cha-
mou de uma característica centrípeta: “a mesma tendência profunda de se
definir pelo exterior, em função do lugar que ocupa em uma família, um gru-
po social, um meio geográfico determinados, e, mais geralmente, no país e na
sociedade”21. Se a cultura japonesa imaginaria que o sujeito se constitui
por um movimento centrípeto, o movimento que melhor representaria
a elaboração do sujeito no pensamento ocidental só poderia ser, para
Lévi-Strauss, o centrífugo. Os ocidentais, por sua vez, acreditariam que
o sujeito seria o criador e gerador de todo e qualquer acontecimento.
Para explicar a relação de simetria invertida entre o Japão e o Oci-
dente, Lévi-Strauss aciona a distinção teórica entre sociedades centrífu-
gas e sociedades centrípetas em quase todos os textos que analisam a
cultura japonesa: “Em domínios tão variados quanto os da língua falada,
das técnicas artesanais, das preparações culinárias, da história das ideias,
(...) uma diferença, ou, mais exatamente, um sistema de diferenças invarian-
tes se manifesta em um nível profundo entre o que, para simplificar, eu cha-
mei de a alma ocidental e a alma japonesa. Podemos resumir essa diferença
pela oposição entre um movimento centrípeto e um movimento centrífugo.
Esse esquema servirá ao antropólogo de hipótese de trabalho para tentar com-
preender melhor a relação entre as duas civilizações”22.
Apesar da distinção teórica entre sociedades centrífugas e socie-
dades centrípetas, Lévi-Strauss também se esforça para destacar supos-
tas semelhanças entre a produção intelectual japonesa e a francesa. O
antropólogo parte do período Heian (794 a 1185), que seria concebido,
21 Ibidem, 52.
22 C. Lévi-Strauss, “La fin de la suprématie culturelle de l’Occident”, In: L’anthropologie
face aux problèmes du monde moderne, 38-39.
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23 C. Lévi-Strauss, “La face cachée de la lune”, In: L’autre face de la lune, 63-64.
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31 Ibidem, 114.
32 Ibidem, 115.
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33 Ibidem, 118.
34 Ibidem, 120.
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37 Ibidem, 125.
38 Ibidem, 126.
39 François Hartog, Anciens, modernes, sauvages (Paris: Galaade Éditions 2005), 49.
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terem conhecido esses indígenas americanos: “foi por não terem podido
imaginar uma ingenuidade tão simples que Licurgo se dedicou à legislação
e Platão à república, ambas bastante distantes daquela perfeição primeira
dos selvagens”40. O modo de vida dos selvagens seria apresentado por
Montaigne como impregnado de simplicidade, amizade e nobreza. Essa
descrição sobre a vida dos selvagens serve de preâmbulo ao problema
central de seu texto, o canibalismo. Para abordá-lo, Montaigne começa a
tratar da guerra, principal ocupação dos homens selvagens, que nada te-
ria em comum com as guerras de conquista praticadas pelos modernos.
Hartog considera que o que está em jogo no pensamento de Montaigne,
quando trata do canibalismo e da guerra entre os selvagens, “é a bravura
– no combate e depois se, por acaso, o guerreiro é capturado. A morte e a in-
gestão dos prisioneiros devem ser nela inscritas. A cena é descrita de maneira
neutra, valorizando a coragem dos prisioneiros até o último instante”41.
O que importa para os indígenas na prática do canibalismo, na
interpretação de Montaigne segundo Hartog, não é o consumo da carne
humana, mas sim a vingança. Esse ponto de vista permitiria a Montaig-
ne colocar em perspectiva os atos bárbaros dos conquistadores: “sem
contestar ‘o horror barbaresco’ de tais atos [os do canibalismo], Montaigne
queria que não fôssemos cegos para o que se pratica do lado dos conquista-
dores e mesmo entre nós”42. Assim, poderíamos chamar os canibais de
bárbaros somente se consideradas as regras da razão, mas o mesmo
não ocorreria com os modernos, estes “que os ultrapassam em toda a
sorte de barbárie”43. Para Hartog, Montaigne foi o pensador que estabe-
leceu entre os três termos, antigos, modernos e selvagens, as relações
mais inéditas: “Se, de um lado, ele se serve dos Antigos para chegar até os
Selvagens, ele não institui uma ‘redução’ sistemática do Selvagem, mas o
40 Ibidem, 50.
41 Idem.
42 Idem.
43 Ibidem, 51.
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47 C. Lévi-Strauss, História de Lince, trad. Beatriz Perrone Moisés, (São Paulo: Cia das
Letras, 1993), 192.
48 Idem.
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51 Idem.
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52 Ibidem, 169.
53 Ibidem, 166.
54 Marcio Goldman resume da seguinte maneira a distinção entre troca restrita e troca
generalizada: “grosso modo, posso dar minha irmã para alguém se casar e receber sua
irmã para eu me casar; ou posso dar minha irmã para alguém, que dá sua irmã para
alguém que dá sua irmã para alguém, até que alguém dê sua irmã para mim. Lévi-Strauss
denomina essas estruturas ‘troca restrita’ e ‘troca generalizada’ – para resumir mais de
trezentas páginas de texto!”. M. Goldman, “Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas”.
In: Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz, Renarde Freire
Nobre (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), 57.
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58 Ibidem, 166.
59 Ibidem, 168.
60 Ibidem, 169.
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61 Ibidem, 167.
62 C. Lévi-Strauss, “A estrutura dos mitos”, In: Antropologia estrutural, 242.
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63 Idem.
64 Ibidem, 243.
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65 Ibidem, 232.
66 C. Lévi-Strauss, História de Lince, 199.
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67 Ibidem, 200.
68 Eduardo Viveiros de Castro, “Xamanismo transversal. Lévi-Strauss e a cosmopolítica
amazônica”, In: Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz,
Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), 111.
69 Reproduzimos o trecho da entrevista concedida por Lévi-Strauss a Manuela Carneiro
da Cunha, em que aparece essa expressão. Carneiro da Cunha: “Queria lhe perguntar
também se há mais do que um jogo de palavras lembrando a ideologia tripartita dos indo-
europeus, posta em evidência por Dumézil, quando o Sr. fala em ideologia bipartida dos
ameríndios”. Resposta de Lévi-Strauss: “Claro, é um sorriso a Dumézil”. In: C. Lévi-
Strauss, “Sempre haverá o inacessível” [entrevista a Manuela Carneiro da Cunha].
Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 16 de novembro de 1991.
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76 Idem.
77 Idem.
78 Idem.
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79 C. Lévi-Strauss, História de Lince, trad. Beatriz Perrone Moisés, (São Paulo: Cia das
Letras, 1993), 10.
80 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit., 183.
81 C. Lévi-Strauss, “As organizações dualistas existem?”, In: Antropologia estrutural, 147.
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82 Idem.
83 Em entrevista a Eribon, Lévi-Strauss aponta o que considera ser a principal diferença
entre seu trabalho e o de Dumézil: “Dumézil e eu não tínhamos o mesmo objetivo. Ele
queria demonstrar que um sistema de representações cuja presença era atestada em vários
pontos da Ásia e da Europa tinha uma fonte comum. Para mim, ao contrário, a unidade
histórica e geográfica existia logo de saída: a América povoada por ondas sucessivas de
imigrantes que, em geral, tinham todos a mesma origem e cuja entrada no Novo Mundo
situa-se, segundo os autores, entre o septuagésimo e o décimo quinto milênio antes de
Cristo. Eu procurava, então, outra coisa: primeiro, perceber as diferenças entre mitologias
cuja unidade me era fornecida pela história; a seguir, compreender os mecanismos do
pensamento mítico, a partir de um caso particular”. C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit.,
186.
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88 Ibidem, 208.
89 Ibidem, 213.
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90 Cf. Resumo da descrição que Lévi-Strauss fez sobre as organizações dualistas nas
ilhas Ryukyu (Idem).
91 C. Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la
lune, 49.
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92 Ibidem, 45.
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103 Edward Burnett Tylor, “Remarks on Japanese Mythology”, Journal of the Royal
Anthropological Institute, [vol.] VII (1877) (55-58).
104 C. Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la
lune, 24.
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105 Idem.
106 C. Lévi-Strauss, “Le lièvre blanc d’Inaba”, In: L’autre face de la lune, 79.
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velho, o herói se vê abandonado em uma ilha deserta no meio de um lago; ele obteve ajuda
de um monstro aquático que fê-lo atravessar o lago e levou-o até a terra”. (Idem).
109 Idem.
110 Idem.
111 Ibidem, 88.
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114 C. Lévi-Strauss, “Hérodote en mer de Chine”, In: L’autre face de la lune, 102.
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muito bem ter levado para o extremo Oriente motivos vindos da Gré-
cia119. Mas poderia haver outro fator, compatível com a hipótese anterior,
para explicar a presença de traços da cultura antiga ocidental no Japão
e na Coreia. Para Lévi-Strauss, poderíamos também considerar que os
mitos que supúnhamos pertencer à cultura grega teriam, na verdade,
uma raiz asiática. Assim, a pátria de Cresus, a Lídia, poderia ser um
indício de que o tema do relato de Heródoto tenha seu ponto de origem
na Ásia, de onde ele deve ter saído para viajar nas duas direções: o Velho
Mundo e o Japão.
Sublinhar a natureza compósita dos mitos, o seu arranjo heterogê-
neo, devido também ao fato de poderem viajar longas distâncias, com-
binando aspectos diferentes de várias culturas, atravessando regiões
e tempos diferentes, parece ser o mais importante para Lévi-Strauss.
Mais do que a origem dos mitos, o que lhe interessa é colocar ênfase em
sua natureza plástica, é perceber que os mitos são elaborados, assimi-
lados, modificados e transformados de acordo com as trocas e contatos
entre os homens, de acordo com as condições de seu meio, sua história,
sua estrutura social, suas condições de existência. Os mitos são uma
espécie de patrimônio comum da humanidade que atravessou séculos,
milênios talvez, e viajou grandes distâncias. Eles são revividos de ma-
neira sempre original, retomando estruturas e temas antigos, por cada
povo que os conta.
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120 C. Lévi-Strauss e Junzo Kawada, “Entretien avec Junzo Kawada”, In: L’autre face de la
lune, 172.
121 Lévi-Strauss, C. “Reconnaissance de la diversité culturelle”, In: L’anthropologie face
aux problèmes du monde moderne, 55.
122 C. Lévi-Strauss e Junzo Kawada, “Entretien avec Junzo Kawada”, In: L’autre face de la
lune, 172.
123 Ibidem, 173.
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124 C. Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la
lune, 39.
125 Ibidem, 42.
126 Ibidem, 46.
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137 C. Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la
lune, 54.
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que o Japão parece deter algumas das chaves mestras que dão acesso ao setor
que resta o mais misterioso do passado da humanidade”138.
Lévi-Strauss lembra que o Japão esteve unido ao continente asiáti-
co. Grandes espaços de terra, com cerca de mil quilômetros, ligavam a
Ásia e a América pelo estreito de Bering. Era como se, nos tempos pré-
-históricos, o estreito funcionasse como “uma avenida terrestre que permi-
tia aos homens, aos objetos, às ideias, circular livremente desde a Indonésia
até o Alasca, passando pelas costas da China, da Coréia, Manchúria, Sibéria
do Norte...”139. Em diversos momentos da pré-história “esse vasto conjunto
deve ter sido palco de movimentos de populações nos dois sentidos”140. Os
mitos seriam, então, o testemunho da circulação dos homens nessas
vastas porções do globo terrestre que remonta a um período arcaico da
história da humanidade, do qual podemos, hoje, colher apenas peque-
nos fragmentos.
A história antiga e contemporânea da América, da Ásia e do Japão
diz respeito aos modos de existência elaborados pela maior parcela da
população do planeta, espalhada por grandes espaços do globo desde
tempos remotos. Por essa razão, os trabalhos de pesquisadores de áreas
geralmente pouco prestigiadas na academia, como história da América,
da Ásia e do Extremo-Oriente deveriam, de acordo com Lévi-Strauss,
ocupar um papel de extrema relevância para o conhecimento do ho-
mem. Afinal de contas, seria impossível estabelecer um quadro de refe-
rência histórico fiel à realidade se continuássemos a nos instruir apenas
pela história de uma metade da humanidade, motivados pelo fato de
que apenas nela somos capazes de nos reconhecer.
138 C. Lévi-Strauss, “La face cachée de la lune”, In: L’autre face de la lune, 77.
139 C. Lévi-Strauss, “Place de la culture japonaise dans le monde”, In: L’autre face de la
lune, 26.
140 Idem.
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5. Mito e história
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temporâneas, talvez ela apenas o tenha substituído”157: “Pois o que faz o his-
toriador quando evoca a Revolução Francesa? Refere-se a uma sequência de
eventos passados, cujas longínquas consequências certamente ainda se fazem
sentir, através de toda uma série, não reversível, de eventos intermediários.
Mas, para o político e para aqueles que o escutam, a Revolução Francesa
é uma realidade de outra ordem, uma sequência de eventos passados, mas
também um esquema dotado de eficácia permanente, que permite interpre-
tar a estrutura social da França contemporânea e os antagonismos que aí
se manifestam, e entrever as grandes linhas da evolução futura. Assim se
expressa Michelet, ao mesmo tempo pensador político e historiador: ‘Naquele
dia, tudo era possível (...) O futuro se fez presente (...) isto é, não mais tempo,
um lampejo de eternidade’”158
Se tomássemos dois relatos de historiadores, de “diferentes tradi-
ções intelectuais e com alinhamentos políticos diversos, de acontecimentos
como a Revolução Americana, a Revolução Franco-Inglesa no Canadá ou
a Revolução Francesa”159, poderíamos facilmente constatar que eles não
nos contam a mesma coisa. O que estaria em jogo nos relatos míticos
e históricos seria principalmente a afirmação das perspectivas de seus
autores, que geralmente também é a do grupo ao qual pertencem. Essa
possibilidade de diferentes interpretações para um acontecimento his-
tórico seria, para Lévi-Strauss, a comprovação de que não haveria inter-
pretação absoluta do passado. Todas as interpretações seriam relativas.
A história nunca poderia ser imparcial porque, como vimos, não existi-
ria a história em si, mas sempre a “história-para”. Contudo, as socieda-
des ocidentais acreditariam que, por terem escolhido o partido da histó-
ria, teriam conquistado o único modo de inteligibilidade – a consciência
histórica – que corresponderia à verdade do homem. Em “Comment
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160 C. Lévi-Strauss, “Como morrem os mitos”, In: Antropologia estrutural dois, 274.
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161 C. Lévi-Strauss, “Quando o mito se torna história”, In: Mito e significado, 51.
162 Ibidem, 53.
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163 Idem.
164 Ricardo Benzaquen de Araújo, em “Ronda Noturna”, avalia que “quando nos
aproximamos do surgimento da concepção moderna de história, o que entra em cena é
precisamente o ideal de uma verdade exata, rigorosa, que pretende se relacionar com as
ações dos homens não mais em função dos seus valores, dos debates éticos que eles propiciam,
mas apenas pela preocupação em verificar se, quando e onde elas efetivamente existiram.
Desta maneira, só para usar uma fórmula cômoda, temos uma passagem de uma verdade
que se identifica com a ética e se opõe ao erro, para uma verdade que se confunde com o
fato e deseja afastar-se de tudo aquilo que se aproxima das fronteiras da fantasia ou da
imaginação” –Ricardo Benzaquen de Araújo, “Ronda Noturna. Narrativa, crítica e
verdade em Capistrano de Abreu”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, [n.]1 (1988): 31
(28-54). Difícil não pensar no ensaio sobre “A força da Imaginação”, de Michel de
Montaigne. In: Ensaios, I, trad. Sérgio Milliet (São Paulo: Nova Cultural, 1991), 39:
“No estudo que faço de nossos costumes e paixões, os testemunhos fantasistas, desde que
possíveis, valem como verdadeiros. Ocorridos ou não, em Roma ou em Paris, com João
ou Pedro, mostram-nos sempre um aspecto que pode assumir a natureza humana e isso
basta para que os utilize nestes comentários. Imaginários ou reais, tomo conhecimento
deles e deles tiro proveito e, entre os diversos ensinamentos de uma mesma história, escolho
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para meu uso o mais notável e preciso. Há autores que procuram principalmente tornar
conhecidos os fatos; eu, se pudesse, visaria antes a deduzir deles as consequências que
porventura comportem”.
165 C. Lévi-Strauss, “Quando o mito se torna história”, In: Mito e significado, 54.
166 Ibidem, 56.
167 C. Lévi-Strauss, “A Gesta de Asdiwal”, In: Antropologia estrutural dois, 179.
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***
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171 Oscar Calavia Sáez, “A história pictográfica”, In: Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, orgs.
Ruben Caixeta de Queiroz, Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte: Editora UFMG,
2008), 123.
172 Ibidem, 140.
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“os livros de Foucault são da natureza dos mitos (em minha boca, isso não
é uma crítica) e é dos mitos engendrar suas próprias versões invertidas”177.
Ainda uma palavra sobre a relação entre mito e história em Lévi-
-Strauss. Mais do que dissolver a fronteira entre história e historiogra-
fia, como propôs Sáez, o trabalho de Lévi-Strauss em Mythologiques pa-
rece se aproximar do trabalho do historiador que tem como fonte as
obras literárias. Não porque a narrativa literária possa ser equivalente
à narrativa mítica pelo seu caráter ficcional, mas porque, como indi-
cou Ricardo Benzaquen de Araújo no artigo “História e narrativa”, as
narrativas literárias dão acesso à dimensão utópica da verdade, “uma
verdade que não é a dos fatos, é a dos valores”178. Entendemos que os mi-
tos são, assim, para Lévi-Strauss, um pouco como podem ser os textos
de alta literatura para os historiadores – Benzaquen de Araújo cita os
trabalhos experimentais de Céline e Maiakovsky como exemplo. Essa
compreensão do tratamento dos textos, escrever a história não através/
apesar das narrativas literárias, mas com elas, recoloca para a história
a possibilidade de ser um conhecimento carregado de originalidade.
Segundo Benzaquen de Araújo, “existe o tempo todo a ideia de que o his-
toriador pode nos oferecer um conhecimento até bastante sólido e confiável,
mas não temos como imaginar, por exemplo, que ele possa, minimamente,
trazer algo de novo para o mundo”179. Esse “algo de novo”, a originalida-
177 Essa foi a resposta de Lévi-Strauss, em carta pessoal a Didier Eribon, à pergunta
deste sobre as razões do “remanejamento do pensamento” de Foucault nos quinze anos
que separam suas histórias da loucura e da sexualidade. Cf. Didier Eribon, Réflexions
sur la question gay (Paris: Fayard, 1999). O trecho citado da carta, datada de 19 de abril
de 1999, foi transcrito por Eribon em seu site pessoal. Cf. “Claude Lévi-Strauss sur
Michel Foucault”, (Lettre de Claude Lévi-Strauss, 19 avril 1999), http://didiereribon.
blogspot.com.br, consultado em 20 de março de 2015.
178 Araújo, Ricardo Benzaquen de, “História e narrativa”. In: Ler e escrever para contar.
Documentação, historiografia e formação do historiador, org. Ilmar Rohloff de Mattos
(Rio de Janeiro: Access, 1998), 257.
179 Ibidem, 256.
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182 F. Hartog, “Historiographie”, In: Annuaire de l’École des hautes études en sciences
sociales. Comptes rendus des cours et conférences, 1990-1991, 128.
183 F. Hartog, “L’inquiétante étrangeté de l’histoire”, Esprit, [n.] 2 (février 2011): 76 (65-
76).
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184 Idem.
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Capítulo V
Experiências do tempo
Lévi-Strauss e a historiografia contemporânea
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foi nesse texto que Hartog usou, pela primeira vez, a expressão “regimes
de historicidade”.
Hartog mostrou o quanto o pensamento de Lévi-Strauss pode ofe-
recer um rico material para o historiador pensar a história e as experi-
ências que os grupos humanos têm do tempo. A pergunta que moveu
boa parte das investigações de Lévi-Strauss, “em quais condições e sob
quais formas o pensamento coletivo e os indivíduos se abrem para história?”4,
encontra toda a sua atualidade no trabalho de Hartog. Podemos, assim,
localizar o empreendimento historiográfico de Hartog e a própria noção
de regimes de historicidade nessa tradição do pensamento científico e
filosófico que procura mostrar a relação de complementaridade exis-
tente em uma série de oposições que constituem o campo das ciências
humanas, a exemplo das oposições entre estrutura e acontecimento,
particular e geral. Hartog retoma declaradamente a interrogação de
Lévi-Strauss sobre os modos subjetivos de historicidades produzidos e
vividos pelas sociedades, mas reformula o problema. Mais exatamente,
de acordo com Hartog, a noção de regimes de historicidade se beneficia
de um diálogo entre antropologia e história, isso graças às reflexões de
Sahlins e Lévi-Strauss, de um lado, e as de Reinhart Koselleck, de outro.
1. Lévi-Strauss na historiografia
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para encontrar “uma força modeladora” que não cessasse “de formatar,
invisivelmente, a história dos homens”8.
Em 1960, Lévi-Strauss publica “Le champ de l’anthropologie”, tex-
to escrito para sua aula inaugural no Collège de France. Nele se encon-
tra o que o autor chamou de “profissão de fé historiadora”9. Duas datas,
1949 e 1960, teriam marcado, portanto, a definição e a delimitação do
projeto lévi-straussiano. Tanto mais porque “Histoire et ethnologie” re-
aparece como introdução ao livro programático Anthropologie structurale
(1958); e “Le champ de l’anthropologie” é apresentado como introdução
de Anthropologie structurale deux (1973). Nesses dois textos, avalia Har-
tog, a história seria “mais do que simplesmente presente e mais do que uma
beneficiária”10. Hartog lança a questão: “como reagiram os historiadores
aos propósitos de um outsider que parecia saber melhor aquilo que eles mes-
mos faziam ou poderiam fazer?”.
Braudel havia se delimitado do projeto lévi-straussiano no seu tex-
to sobre a longa duração, publicado em 1958 na revista dos Annales.
Para ele, a estrutura seria um modelo que corresponderia a uma espécie
de longa duração dos fenômenos, uma “realidade que o tempo utiliza
mal e vincula mui longamente”11. Mas para encerrar os acontecimentos
pertinentes ao primeiro ato do debate entre história e antropologia, Har-
tog prefere lançar luz sobre um cenário diferente. Em 1960, a revista
dos Annales publica um excerto da aula inaugural de Lévi-Strauss no
Collège de France – já publicada integralmente nesse mesmo ano com
o título “Le champ de l’anthropologie”, mas com o título sensivelmente
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32 Ibidem, 24.
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33 Ibidem, 27.
34 Ibidem, 28.
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35 Idem.
36 Idem.
37 Ibidem, 29.
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38 Ibidem, 30.
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39 Ibidem, 33.
40 Ibidem, 32.
41 Ibidem, 9.
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47 Ibidem, 64.
48 Ibidem, 18.
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51 Ibidem, 68.
52 R. Koselleck, Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos, trad. Wil-
ma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira (Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-
-Rio, 2006), 308.
53 Ibidem, 310.
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60 Ibidem, 210.
61 Ibidem, 33.
62 Ibidem, 50.
63 M. Sahlins, Ilhas de história, trad. Barbara Sette (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990),
19.
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história e, caso ela varie, pode-se nela encontrar a mesma armadura. Para
terminar, pode-se acrescentar que o mito cósmico se encontra no ‘aconteci-
mento de todos os dias’”.65
Hartog propõe que o regime de historicidade heroico estaria ba-
seado em uma relação de reprodução do passado no presente, sem que
houvesse em seu horizonte o futuro, porque, como já havia apontado
Sahlins, essa conexão seria mediada pela ideia de descendência. Como
vimos, em La pensée sauvage, Lévi-Strauss explicou que as sociedades
frias não negariam o devir histórico, mas o admitiriam como uma for-
ma sem conteúdo. Esse modelo expressaria uma prática adotada cons-
ciente ou inconscientemente “por uma justificação repetida de cada regra,
de cada técnica e de cada costume, por meio de um argumento: aprendemos
com nossos antepassados”66. É como se o passado, para o indígena, se re-
fletisse nas imagens que ele vê do presente. Para conservar uma relação
de sentido antiga, o pensamento mítico tenderia a obliterar os dados da
mudança, observáveis no presente. Segundo Sahlins, “o universo inteiro
é, para os Maori, uma parentela compreensiva de ancestrais comuns”67. Har-
tog acrescenta que, entre os Maori, “a experiência do passado é feita no
presente”68. Hartog também compara a experiência do tempo das ilhas
do Pacífico estudadas por Sahlins à experiência vivida pelas sociedades
no regime moderno de historicidade: “O corte entre os dois [passado e
presente] que instaura a história moderna ocidental não existe aqui [no
regime de historicidade heroico]. É melhor falar em coexistência entre os
dois e de ‘reabsorção’ do passado no ‘presente’”.
Segundo Hartog, as críticas mais frequentes ao trabalho de Sahlins
se apoiam justamente no argumento da impossibilidade de se conci-
liar a análise histórica ao trabalho antropológico. Outros consideraram
65 Ibidem, 43.
66 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, 262.
67 M. Sahlins, op. cit., 88.
68 F. Hartog, op. cit., 44.
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69 Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Lévi-Strauss”, trad. Marilena Chauí (São Paulo:
Editora Abril, 1975), 394. – (Os Pensadores, vol. XLI)
70 F. Hartog, op. cit., 49.
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71 Ibidem, 117.
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72 Ibidem, 68.
73 Paul Veyne, Le pain et le Cirque (Paris : Éd. Du Seuil, 1976), 643.
74 F. Hartog, op. cit., 218.
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75 Ibidem, 28.
76 Ibidem, 117.
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83 Ibidem, 40.
84 F. Hartog, “Historicité/régimes d’historicité”, 767.
85 Tiago Almeida explica que o nascimento da História da Ciência como “gênero literá-
rio” no século XVIII foi possível graças à tomada de consciência de duas revoluções
científicas (nas Matemáticas, a geometria algébrica de Descartes e o cálculo do infi-
nito de Leibniz-Newton; em Mecânica e Cosmologia, os Principes de Descartes e os
Principia de Newton) e duas revoluções filosóficas (o inatismo cartesiano e o sensualis-
mo de Locke). Assim, ele continua, se livros como Histoire des Mathématiques (1758),
de Montucla, ou Historie de l’Astronomie (1775-1782), de Bailly, foram compostos
“sem qualquer preocupação epistemológica, compartilhavam, entretanto, [nas palavras de
Canguilhem] de ‘uma consciência de época, impessoalmente tematizada na doutrina da
perfectibilidade indefinida do espírito humano’.” Cf. Tiago Almeida. Aventuras e estra-
tégias da razão: sobre a história epistemológica das ciências (Dissertação de mestrado,
Universidade de São Paulo, 2011), 23-25, passim.
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93 Ibidem, 218.
94 Daniel Fabre, “L’histoire a changé de lieux”, In: Une histoire à soi, orgs. Alban Bensa e
Daniel Fabre (Paris: Ed. Maison des sciences de l’homme, 2001), 32.
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95 C. Lévi-Strauss, “Un autre regard”, L’Homme, [vol.] 33, 126 (1993): 9-10 (7-11).
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“De modo que é possível que a mais ingrata das buscas tenha sido
recompensada, tendo terminado, sem tê-lo buscado nem atingido, o
lugar dessa terra antigamente prometida em que seria aplacada a
tripla impaciência de um porvir que é preciso esperar, um agora que
foge e um voraz outrora que atrai para si, desfaz e derruba o futuro
nas ruínas de um presente já confundido no passado. Pois essa ordem
do tempo que o estudo dos mitos desvela não é, afinal, senão a ordem
sonhada desde sempre pelos próprios mitos: um tempo mais que re-
descoberto, suprimido. Tal como o poderia sentir alguém que, embora
tenha nascido no século XX, tivesse o sentimento profundo, ampliado
pela idade, de ter tido na juventude a chance de viver no século XIX
junto de pessoas mais velhas que dele participaram, sem sabê-lo, as-
sim como eles haviam vivido, por intermédio de pessoas próximas
que dele tinham participado, ainda no século XVIII, e que tampouco
sabiam disso. De forma que se tivéssemos juntado forças para soldar
os elos da cadeia, cada idade guardando vivo o de antes para os de
depois, o tempo teria sido realmente abolido. E se nós todos, homens,
o tivéssemos sabido, desde a origem, poderíamos nos ter unido numa
conjuração contra o tempo, de que o amor pelos livros e museus e o
gosto pelos antiquários e sebos constituem na civilização contempo-
rânea, de modo por vezes derrisório, uma tentativa persistente, certa-
fazendo uma crítica e reelaborando profundamente algumas das noções mais tradicionais
das disciplinas sociais e humanas: cultura, sociedade, indivíduo, história etc.” Goldman,
Marcio. “Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas”. In: Lévi-Strauss. Leituras brasilei-
ras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz e Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008), 45.
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99 C. Lévi-Strauss, O homem nu, trad. Beatriz Perrone Moisés (São Paulo: Cosac Naify,
2011), 584.
100 R. Koselleck, Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos, 321.
101 C. Lévi-Strauss, Raça e história, trad. Inácia Canelas (Lisboa: Editorial Presença), 30.
(grifos nossos)
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102 Octavio Paz, Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo, trad. Sebastião Uchoa
Leite (São Paulo: Editora Perspectiva, 1977), 74.
103 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, 277.
104 Phillippe Descola, L’écologie des autres : l’anthropologie et la question de la nature (Paris/
Dijon: Inra, 2007; 2008), 65.
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vazio de sentido, Lévi-Strauss esperava mostrar que havia uma alta re-
lação de afinidade entre mito, história e política105. Mais do que um co-
nhecimento objetivo do passado, a história seria a perspectiva de um
grupo, de um homem ou de uma ideologia sobre o passado que tende-
ria sempre a explicar o presente, apontando para um devir. Assim, Lévi-
-Strauss identificou para uma conivência entre a história e os discursos
ideológicos.
Lévi-Strauss tentou ultrapassar o dualismo entre estrutura e even-
to, entre antropologia e história. Para ele, manifestações humanas que
pareceriam, à primeira vista, contraditórias, poderiam receber uma ex-
plicação coerente e, desse modo, entenderíamos que mesmo a desor-
dem poderia engendrar regularidades. A busca por uma ordem, por um
sentido para as diferentes formas de manifestações humanas, não se-
ria incompatível com a análise de estratégias e de escolhas individuais.
Pois, se em ocasiões diferentes, os homens acreditam que “obedecem aos
cálculos de interesses, aos impulsos dos sentimentos e às injúrias do dever”106,
essas estratégias individuais emaranhadas, no entanto, deixariam trans-
parecer uma forma.
Os recentes trabalhos de Hartog mostram que a perspectiva lévi-
-straussiana não é contraditória com o ofício do historiador. Por meio da
noção de regimes de historicidade, Hartog mostrou que existem inúme-
ras maneiras (muitas ainda desconhecidas) das sociedades humanas
experimentarem o tempo, ontem e hoje, na Europa e além. No prefácio
a este livro, Hartog escreveu que Lévi-Strauss, “à sua maneira, já havia
‘provincializado’” a Europa. Em larga medida, pôde fazê-lo porque expli-
citou que o modo dos modernos reagirem à história, especialmente os
europeus, não corresponde a um dado da natureza humana, mas sim a
uma condição histórica específica, ou seja, à condição moderna dos eu-
105 C. Lévi-Strauss, “Como morrem os mitos”. In: Antropologia estrutural dois, trad. Ma-
ria do Carmo Pandolfo (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976), 274.
106 Lévi-Strauss, C. “História e Etnologia” (1983), 38.
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107 Eduardo Natalino dos Santos, “Além do eterno retorno: uma introdução às concep-
ções de tempo dos indígenas da Mesoamérica”, Revista USP, [n.] 81 (março/maio,
2009): 84 (82-93). Ver também: Federico Navarrete Linares, “Nahualismo y Poder:
un Viejo Binomio Mesoamericano”, In: El Héroe entre el Mito y la Historia, coords.
Federico Navarrete Linares e Guilhem Oliver (México: Instituto de Investigaciones
Históricas – Universidad Nacional Autónoma de México e Centro Francés de Estu-
dios Mexicanos y Centroamericanos, 2000) (155-79).
108 Eduardo Natalino dos Santos, Tempo, espaço e passado na Mesoamérica: o calendário,
a cosmografia e a cosmogonia nos códices e textos nahuas (São Paulo: Alameda, 2009),
41.
109 Ibidem, 42.
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110 Joanna Overing, “O mito como história: um problema de tempo, realidade e outras
questões”, Mana, [vol.] 1, 1 (1995): 109 (107-140).
111 Cf. Eduardo Viveiros de Castro, “Etnologia brasileira”. In: O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995), vol.1, Antropologia, org. Sérgio Miceli (São Paulo: Sumaré/AN-
POCS; Brasília: CAPES), 109-223.
112 Marcio Goldman já havia apontado que a historicidade em Lévi-Strauss poderia con-
duzir a problemas contemporâneos do debate sobre a história via os trabalhos de
Foucault: “Ainda que possa parecer um tanto paradoxal, creio que ao distinguir e separar
a historicidade em si dos discursos que, sob o pretexto de reconhecê-la plenamente, fazem o
possível para eliminá-la, Lévi-Strauss abriu o caminho para uma reflexão histórica afasta-
da das armadilhas de todos os evolucionismos e de todas as ideologias celebratórias. Livre
das falsas totalidades e das filosofias da história, a historicidade pode reaparecer na forma
do acontecimento e do devir, e a história pode retomar seus direitos como reflexão crítica.
406
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moderna”113, elaborou nos seguintes termos: o que nos fez ser o que
somos? Por que é preciso saber? Porque, assim sugeriu, abriríamos a
possibilidade “de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou
pensamos”. Lévi-Strauss, enfim, propôs uma explicação para a natureza
contingente de nossa relação com a história e como, a partir dessa rela-
ção, construímos uma autoimagem e a imagem que fazemos daqueles
que não são e não pensam, ou não nos parecem ser e pensar, como
nós. Talvez porque, sendo ele mesmo um moderno, a história não lhe
poderia ser senão inescapável. Lévi-Strauss, mitólogo da modernidade.
407
Bibliografia
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jourd’hui. Paris: PUF, 1962].
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Prefácio a Histoire de la famille, André Burguière (et al), vol.1 (Paris, Armand
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Ficha técnica
Formato 14 x 21 cm
Mancha 10,5 x 18,5 cm
Tipologia Scala e ScalaSansPro
Papel Miolo: Pólen Soft 80 g/m2
Capa: Supremo 250 g/m2
Número de páginas 424
Tiragem 500 exemplares
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