TORAL, André. Imagens em Desordem - A Iconografia Da Guerra Do Paraguai (1865-1870) .
TORAL, André. Imagens em Desordem - A Iconografia Da Guerra Do Paraguai (1865-1870) .
TORAL, André. Imagens em Desordem - A Iconografia Da Guerra Do Paraguai (1865-1870) .
São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
Introdução
O tema e a linguagem: as imagens de uma guerra e sobre as formas de narrar
história
“Foi isto que procurei fazer: levantar, descrever e interpretar a guerra por meio de sua
iconografia. (...) as diferentes versões sobre a guerra. (...) fazer um levantamento da
iconografia, (...) da bibliografia analítica dedicada ao tema, por meio de viagens ao
Paraguai e à Argentina e de contatos com instituições e colegas pesquisadores desses
países.” (p. 22)
Reconstituindo a história
“Considero história como um “relato de acontecimentos verdadeiros”, para usar a
expressão de Paul Veyne, como num romance, o relato histórico seleciona, simplifica,
organiza, faz que um século caiba numa página (VEYNE, 1972, p. 12). O que distingue
a história do romance é o seu compromisso com o real, com a busca daquilo que
verdadeiramente aconteceu. Ainda assim, o acontecimento é uma criação. Recriá-lo em
seu contexto implica um compromisso com uma intenção manifesta de atribuir-lhes
sentido.” (pp. 22-23)
“Todo documento é uma interpretação daquilo que ocorreu. Uma reconstituição integral
do passado, na qual o fato seria reconstruído por uma simultaneidade de enfoques ou
registros, é impossível, seja pelas lacunas e falhas dos documentos, seja pela
subjetividade dos registro ou daquele que os analisa.” (p. 23)
“O documento não é inócuo; é, antes, o resultado de uma montagem, consciente ou
inconsciente da história. Como dizia Jacques Le Goff, (1984, p. 102-103), é um produto
da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí mantinham o poder.”
(p. 23)
“Interessa-me especialmente como fontes esses documentos não escritos dos quais fez-se
uso tão restrito e, com frequência, meramente ilustrativo até o presente: gravuras em
metal, madeira e pedra, aquarelas, desenhos e charges produzidas em estúdios ou em
trincheiras etc. Toda reflexão visual sobre o conflito constitui a matéria-prima material
documental sobre a qual se baseia o presente trabalho.” (p. 23)
“O historiador francês François Furet destaca a importância do material não escrito: “(...)
dados iconográficos, fotografias de campo de cultura, podem constituir material histórico
mais importante que a eterna literatura da eterna testemunha” (1989, p. 104). Le Goff
também concorda com a utilização de outros documentos que não os escritos pelo
historiador, como o “documento iconográfico”, na medida em que são exigidos em
estudos específicos (1984, p. 104).” (p. 24)
“No dizer poético de Lucien Febvre (1949, p. 428), “na falta de suas flores habituais, os
documentos escritos, o historiador deve lançar mão de outros para produzir o seu mel”.
(...) a parte mais apaixonante do trabalho do historiador é fazer falar as coisas mudas, os
documentos não escritos, deixando-os revelar a sociedade que os conduziu.” (p. 24)
“(...) Charles Samaran (1961, p. 12) afirma que deve-se entender a palavra “documento”
de uma forma mais ampla, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem,
ou de qualquer outra maneira.” (p. 24)
Imagens do Império
“A imprensa ilustrada atuava nessa sociedade complexa e heterogênea, não se vinculando
exclusivamente, com uma ou outra tendência política.” (p. 59)
“A existência desses “jornais”, a maioria deles pequenos negócios de um só homem,
como veremos adiante, era possível pelo clima de liberdade de imprensa existente durante
o Segundo Império, permitindo-se ataques à figura do imperador, a componentes do
governo, militares e demais autoridades.” (p. 59)
“Seu público, como se deduz das matérias, era a elite culta urbana, basicamente da capital
do Império.” (p. 59)
“A pauta dos jornais ilustrados brasileiros era variada. Tinham interesse tanto na guerra
como na crítica à municipalidade, no estado das ruas, nos tropeços políticos internos do
ministério, na temporada lírica e nas fofocas sociais, na denúncia de arbitrariedades
eclesiásticas, sobretudo dos jesuítas, e na repercussão de exposições de artistas visitantes
ou radicados no Rio de Janeiro.” (p. 59)
“A guerra, contudo, apenas no início, entre 1865 e 1867, dominou a pauta. Até o final do
conflito, salvo acontecimentos espetaculares, andava em pé de igualdade com outros
assuntos.” (p. 59)
Cínicos e progressistas
“As publicações ilustradas eram negócios particulares, muitas vezes tocados pelos seus
próprios desenhistas empresários, como no caso da Semana Ilustrada (1823-1882) e A
Vida Fluminense (1868-1875), duas das mais conhecidas publicações humorísticas
ilustradas do período, entre aproximadamente uma dezena de órgãos do gênero que por
mais tempo circularam no Império.” (p. 60)
“As publicações eram “jornais de autores”. A Semana Ilustrada esteve ligada ao trabalho
de Henrique Fleiuss, artista alemão chegado ao Brasil em 1858 (SANTOS apud Cabrião,
edição fac-símile, 1982, p. 17), O Diabo Coxo (1864), Cabrião (1866-1867), O Mosquito
(1869-1875), A Vida Fluminense e a Revista Ilustrada (1876-1898) ligam-se a Ângelo
Agostini, artista italiano que chegou ao Brasil em 1858 ou 1859 (SANTOS apud Cabrião,
p. 28).” (p. 60)
“Exclusivamente para a cobertura imagística da guerra, foram criados o Paraguai
Ilustrado Semanário Panficronológico, Asneirótico, Burlesco e Galhofeiro, que teve
duração efêmera (julho a outubro de 1865), e dá uma ideia do interesse que o conflito
despertava, pelo menos no seu início.” (p. 61)
“As publicações, no entanto, que se celebrizaram por sua cobertura imagística da guerra
foram a Semana Ilustrada, A Vida Fluminense e o paulista Cabrião.” (p. 61)
“Além destes temas, foram muito reproduzidas galerias de personagens relevantes dos
países envolvidos, armamento, mapas e esquemas de locais de batalhas.” (p. 61)
“As seguidas denúncias do alistamento compulsório foram a campanha mais contínua
exercida por esses jornais durante a guerra.” (p. 61)
“Depois de cinco anos de críticas à continuidade da guerra e aos seus custos humanos
e econômicos, a imprensa ilustrada mudou radicalmente de opinião ao receber, em
triunfo, as tropas vitoriosas que voltavam do Paraguai, em 1870.” (p. 61)
“Passava-se, assim, uma borracha em tudo o que foi dito e desenhado até então. A guerra
transformou-se em passado, e os que nela serviam se tornaram exemplos de patriotismo.”
(p. 62)
“No Brasil, a mesma visão negativa das autoridades ocorre na cobertura da guerra. Os
soldados, mortes ou feridos em batalhas, eram vistos como heróis. Soldados ou oficiais,
pouco importava, a morte os igualava e os redimia. Os generais e demais autoridades,
vivos, que conduziram a guerra, contudo, eram execrados. A mensagem parecia ser algo
como “o povo é bom, o governo é que os corrompe”.” (p. 62)
“Mauro César Silveira (...) afirma que eu teria dito que a imprensa brasileira era
“antinacionalista”. Afirmei, sim, que a imprensa ilustrada era oportunista, procurando
estar em sintonia com a opinião pública sobre a guerra. Quando a guerra tornou-se
impopular, a partir de 1866, a imprensa ilustrada passou a ataca-la; quando a proximidade
da vitória fê-la popular, a imprensa mudou de opinião.” (p. 62)
“Os jornais ilustrados, finalmente, não eram baratos, apesar de seu número de páginas
reduzido. O Cabrião custava 500 réis, sendo considerado um dos mais caros jornais da
província de São Paulo (SANTOS apud Cabrião, edição fac-símile, 1892, p. 23). A Vida
Fluminense, publicado na Corte, custava exatamente o dobro, donde se conclui que não
era artigos baratos e de circulação popular.” (p. 63)
“As publicações ilustradas estavam muito distantes de outros setores da população que
não fossem as elites ilustradas urbanas e, definitivamente, longe da realidade das
trincheiras. Progressistas, navegavam em meio à opinião de setores liberais.” (p. 63)
Imagens da guerra
“Os jornais ilustrados analisados seguiam um modelo europeu, dado sobretudo pelos
consagrados La Caricature (semanário de 1830) e Le Charivari (diário), periódicos
parisienses que contavam com os trabalhos do desenhista Honoré-Victorien Daumier
(1808-1879), e pelo londrino Punch, que apresentava cenas de salão e episódios da vida
mundana e política.” (p. 74)
“Sem dúvida alguma, o modelo em que se baseou grande parte dos ilustradores aqui
abordados é o de Daumier, artista que se tornou conhecido especialmente por causa de
sua obra litográfica.” (p. 74)
“Os jornais ilustrados, no Brasil e na Argentina, estavam muito longe da realidade do
combatente. Não eram mobilizadores para enfrentar a guerra. Ao contrário, algumas de
suas charges eram francamente impatrióticas.” (p. 74)
“Eram publicações vendidas em livrarias para a elite urbana, visando o lucro. Já os jornais
paraguaios eram gratuitamente distribuídos entre as tropas, no campo e na capital, e até
aos soldados inimigos da Tríplice Aliança como propaganda.” (p. 74)
“Redatores e correspondentes paraguaios eram soldados ou oficiais de baixa patente;
desenhistas e gravuristas eram soldados, muitos dos quais haviam sido carpinteiros antes
de se alistarem no exército. Nos demais países, os autores-editores eram desenhistas
profissionais, a maior parte europeus ou com formação de desenho europeia, empresários
e donos de seus negócios.” (p. 75)
“Já os jornais ilustrados brasileiros e argentinos estavam em contato íntimo com o
material que se produzia na Europa. Os dois principais ilustradores “brasileiros”, Ângelo
Agostini e Henrique Fleiuss, um italiano e um alemão, por exemplo, tiveram formação
artística em seus países de origem e, posteriormente, radicaram-se no Brasil. (...)
Estilisticamente, reproduzia-se, de maneira singular, uma tradição gráfica europeia.” (p.
75)
“A imprensa ilustrada brasileira e argentina nos mostra, finalmente, as duas faces do
desenho de ilustração: o texto e a imagem. A gravura nos dois países era feita sobre um
texto pretensamente progressista que falava à cidadania liberal, independente das
posições de governo; a gravura paraguaia serviu de ilustração ao texto oficial e
permitido.” (p. 76)
“Hoje, mais um século depois do conflito, a gravura paraguaia da guerra tornou-se
símbolo da criatividade e engenhosidade paraguaias, ainda que se discorde das
motivações de López.” (p. 76)
“As reações à guerra determinam, ainda hoje, a relação dos nacionais com a iconografia
produzida há mais de um século.” (p. 76)
“Tmos aqui um caso em que o valor gráfico da gravura, na imprensa ilustrada, superou,
ou não, a referência textual e de contexto histórico que lhe deu origem. No caso paraguaio,
sob o discurso oficial, desenvolveu-se paradoxalmente, uma experiência original e
popular; nos demais, apesar das ideias progressistas e da crítica independente, não há nada
de novo em termos visuais.” (p. 76)
Alternativas à academia
“Pintar a “vida moderna” implicava em ir contra à tradição acadêmica, sair do estúdio e
do abrigo e temas moralmente consensuais.” (p. 101)
“Os gêneros explorados pela pintura sofreram, de forma aguda, a influência dos tempos.
Até o final da década de 1870, a pintura religiosa praticamente desaparecera. A história,
a Bíblia e o Olimpo cederam espaço à democratização e laicização da sociedade
(FERRETTI-BOUCQUILLON, 1994, p. 68). O surgimento e a afirmação do realismo
fizeram o classicismo e mesmo o romantismo, progressivamente, tornarem-se gêneros
acadêmicos. A Academia, por sua vez, tornou-se definitivamente conservadora,
representante da pintura “oficial”, oposta a tudo que fosse republicano, liberal, novo.” (p.
101)
“A Academia francesa de pintura, fundada em 1648, inspirada nas suas congêneres
italianas do século XVI, combinava um aspecto dual. (...) com os pintores de história no
alto, seguidos pelos retratistas, depois paisagistas e outros gêneros. (...) A disciplina
acadêmica valorizava o desenho preciso, a composição, a perspectiva e a cor dentro de
um conjunto de normas que pretendiam fazer da pintura uma fiel cópia de exterioridades.”
(p. 101)
“Foi durante o último quartel do século XIX, quando surgiu uma massa de artistas
excluídos do círculo acadêmico, que o conservadorismo da Academia, contrário a todas
as novas ideias, transformou-a em sinônimo de convencionalismo, privilégio oficial e
preconceito (MURRAY, 1968, p. 15).” (p. 101)
“Eram jovens antiacadêmicos, que buscavam a cor ao ar livre, a espontaneidade, a massa
popular, explorando o toque individual e influenciados pelo realismo dos trabalhos de
Courbet e Corot, e posteriormente do impressionismo por intermédio de Degas.” (p. 102)
“Ao contrário dos românticos que defendiam a teoria da arte pela arte, eles proclamavam
sua utilidade.” (p. 102)
““A verdadeira essência da arte histórica é a contemporaneidade”, afirmava Gustave
Courbet (1819-1877), o “campeão” dos realistas. (...) Charles Baudelaire que, em 1859,
escrevia: “modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja
outra metade é o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1968, p. 131).” (p. 102)
“Apesar de influenciar muitas gerações de artistas e de seu reconhecimento na época, suas
opiniões republicanas, anticlericais e socialistas, e sua amizade com o teórico socialista
Pierre Joseph Proudhon, de quem inclusive fez um retrato, causaram sua desgraça.” (p.
103)
“Argumentava-se que, para captar o momento atual, a arte deveria ser, como a ciência,
imparcial; não deveria impor ideias.” (p. 103)
“Longe da Europa, a técnica acadêmica serviu de linguagem pictórica para afirmação
imagística de nascentes nacionalidades, em situações não necessariamente
conservadoras.” (p. 105)
Pintura e litografia
“A litografia no século XIX operou uma pequena revolução no oferecimento de imagens
ao público. Por intermédio da imprensa ilustrada, ofereciam-se imagens numa profusão
antes impensável. Com a litografia, o desenho, doravante, ilustrava a atualidade cotidiana
e tornava-se íntimo colaborador da imprensa (BENJAMIN, 1983, p. 6). O “século de ouro
da litografia” trouxe ao público não só as imagens, mas imagens atuais.” (p. 105)
“A pintura do período incorporou uma série de elementos de crônica, testemunho e crítica,
já consagrados nas ilustrações da imprensa ilustrada.” (p. 105)
“Na imprensa ilustrada, Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) e toda a equipe do
Charivari cobriam de ridículo o governo de Napoleão III, espezinhando juízes e políticos
com suas caricaturas.” (p. 106)
“Diversos pintores, realistas e impressionistas, reconhecidamente receberam influência
das litografias da imprensa ilustrada e dos trabalhos de Daumier em particular.” (p. 106)
O marinheiro napolitano
“Injustamente acusado pelo capitão da fragata Ércole de ter causado seu encalhe perto de
Montevidéu, um tenente da Marinha italiana abandonou seu posto e começou a viver da
pintura em Montevidéu, Buenos Aires e Porto Alegre a partir de 1868 (ARCHIBALD,
1980, p. 153).” (p. 125)
“Edoardo Federico de Martino (1838-1912), autodidata em pintura, representava apenas
um dos muitos pintores estrangeiros que aportaram à região do Prata no final do século
passado. Sua formação em desenho foi-lhe proporcionada como parte do currículo
militar, que visava a capacidade de anotar a paisagem e realizar registros cartográficos.”
(pp. 125-126)
“A região napolitana, na época, recebia a influência de paisagistas da Escola de Posilipo,
que alargavam, à maneira romântica, a percepção do país (BELLUZO, 1988, s. p.).
Existem indícios de que Edoardo de Martino teria, também, estudado pintura com Blanes,
em Montevidéu (Idem, 1988, s. p.).” (p. 126)
“Por intermédio de sua amizade, feita quando ainda era militar, com o almirante
Tamandaré e o marquês de Alvim, foi apresentado ao imperador Pedro II e à imperatriz,
que, providencialmente, também era napolitana. Desta sua amizade (...) resultou uma
série de encomendas para a realização de pinturas em geral, e em particular sobre a
guerra.” (p. 126)
“Como Vitor Meireles, esteve no “teatro de operações”, reunindo informações para suas
pinturas, entre 1868 e 1869.” (p. 126)
“Edoardo de Martino, segundo essas versões, teria se juntado ao Quartel General de
Caxias e assistido aos combates de Curupaiti e Humaitá, a bordo do Lima Barros. (...)”
(p. 126)
“Outros convidados ilustres da Marinha, como Vitor Meireles, também ficaram a bordo
de navios de guerra da Esquadra. O roteiro das visitas dos dois pintores foi, também,
parecido: o acampamento dos aliados em Tuiuti, as trincheiras paraguaias ocupadas e os
arredores de Humaitá. A diferença é que Vitor Meireles foi ao local depois da ocupação
da fortaleza de Humaitá, e pôde registrar seu interior.” (p. 127)
“O reconhecimento acadêmico de Edoardo de Martino se deu pela sua participação nas
Exposições Gerais da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1870, 1872 e 1873.
A imprensa recebeu sempre muito bem todos os seus trabalhos. Em 1871, foi eleito
membro correspondente da Academia e retomou episódios da guerra depois de
encomendas (BELLUZO, 1988, s. p.).” (p. 127)
“Em reconhecimento aos seus trabalhos, o imperador fê-lo Cavaleiro da Ordem da Rosa,
como Vitor Meireles e Pedro Américo. (...) chegou a ser nomeado pintor da Corte, Marine
painter in ordinary, pela rainha Vitória, em 1895, graças ao reconhecimento de suas
marinhas e sua profunda amizade com os então príncipe e princesa de Gales. A imprensa
recebeu bem o seu trabalho e Times lamentava o fato de Edoardo de Martino não ser
inglês (BELLUZO, 1988, s. p.). Essa sua conexão com a Corte inglesa trouxe-lhe o
reconhecimento e o patronato de Kaiser Guilherme II e do tzar Nicolau II, entre outras
cabeças coroadas da Europa (ARCHIBALD, 1980, p. 153).” (pp. 127-128)
“O número de encomendas e vendas realizadas por Edoardo de Martino, superou, em
muito, o de qualquer pintor do período. Fazia várias versões de um mesmo quadro,
provavelmente a pedidos, como do episódio da tentativa de assalto dos encouraçados
brasileiros pelos infantes paraguaios em canoas, e da Batalha do Riachuelo. (...) Martino
bem merece ser chamado de “o pintor da Esquadra”.” (p. 128)
“(...) realizou um total de 32 telas, entre as quais estão incumbências de episódios da
Guerra da Cisplatina.” (p. 128)
“(...) realizou uma quantidade considerável de pinturas abordando temas como paisagens,
marinhas, navios e combates navais de todos os países do Cone Sul, Itália, França e
Inglaterra. Suas obras estão distribuídas em museus e coleções particulares da Europa,
especialmente na Inglaterra, e Estados Unidos, Brasil, Argentina e Uruguai.” (p. 128)
“Os principais trabalhos de Edoardo de Martino sobre a guerra são os seguintes:
Bombardeio de Curuzú (MNBA-RJ), Passagem de Humaitá (MNBA), A Batalha do
Riachuelo (MHN-RJ), A Batalha naval do Riachuelo (BGOB-EJ), Ataque aos
encouraçados por canoas paraguaias (MHN-RJ) e Abordagem dos encouraçados (2
de maio de 1868) (MHN).” (p. 128)
A pintura e a guerra
“Entre 1864 e 1870, e nos anos seguintes ao final do conflito, apenas uma meia dúzia de
pintores dedicou-se ao tema no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.” (p. 134)
“Essa escassez de trabalhos sobre o tema deve ser explicada. Em primeiro lugar, a pintura
histórica acadêmica, de grandes proporções, necessitava de estudos preliminares,
iconografia detalhada, gastos com material (como chassis, tela, tintas, pincéis, papel),
ajudantes, um local apropriado para ser executada e, mais importante, um comprador.
Nenhum pintor se lançaria a semelhante investimento de tempo e dinheiro sem um retorno
financeiro previamente estabelecido. Até o início da pintura propriamente dita, eram
gastos meses e até anos em complicadas negociações.” (p. 134)
“A segunda razão que explica a pouca produção acadêmica sobre o tema tão relevante é
que o Estado, principal consumidor do gênero e responsável pela formação dos artistas,
não pôde, no preciso momento em que os pintores deveriam receber mais apoio para a
realização de sua “missão”, subvencionar senão alguns escassos trabalhos de poucos
artistas. Colaboraram para isto a exiguidade dos recursos em tempos de guerra e a própria
demora necessária à elaboração de temas tão complexos, o que impossibilitava a produção
de muitos trabalhos.” (p. 134)
“Se o Estado era o consumidor preferencial de pintura histórica acadêmica, já retratos,
paisagens e cenas de combate naval de menores proporções, relativos à guerra, eram
adquiridos por particulares, instituições e museus.” (p. 134)
“A obra de Edoardo de Martino, também em numerosas telas de menores proporções,
demonstra a lentidão da pintura “oficial” em realizar seus trabalhos. Mesmo vivendo de
encomendas oficiais e particulares, no Brasil e no Uruguai, o autodidata Martino possuía
um ritmo de produção muito superior ao de seus colegas acadêmicos brasileiros.” (p. 135)
“Apesar de bem recebida pelo público, a pintura histórica acadêmica teve sua produção
decrescida depois da queda da monarquia.” (p. 135)
“A dificuldade da pintura em “mobilizar as massas” foi abordada por Walter
Benjamin ao comparar o limite dos quadros em relação ao cinema. As pinturas
foram pensadas para serem contempladas por uma quantidade reduzida de pessoas.
A partir do século XIX, tiveram permissão para serem exibidas a um público
considerável, o que demonstrou, segundo Benjamin, sua dificuldade em serem
absorvidas pelas “massas”. A receptividade coletiva da pintura seria contrária à sua
própria essência. (1923, p. 21).” (pp. 135-136)
“Que a elite civil e militar se identificasse com a simbologia e os temas encomendados
era explicável; pretender que o público os adotasse como parte do imaginário nacional
era outra coisa.” (p. 136)
“O investimento na criação de um imaginário nacional, por intermédio da pintura
histórica da Guerra do Paraguai, mostra que as elites brasileiras tentaram criar símbolos
cívicos, sem uma efetiva participação popular no processo político do país. Era uma
espécie de compensação desigual: o povo não participava das decisões, arcava com seus
custos, mas podia, simbolicamente, usufruir de versões de seus resultados.” (p. 136)
“Apesar de serem resultados de projeto da Casa de Bragança, de João VI a Pedro
II, os símbolos produzidos pelas monarquias portuguesa e brasileira tiveram
aceitação no Brasil, pois sobreviveram à sua queda e perduraram na república.
Entre eles, a bandeira, o hino e as telas Grito do Ipiranga e Primeira Missa. Não é o
caso das obras de pintura histórica produzidas nesse período da guerra. Nenhuma
se fixou no imaginário nacional.” (p. 136)
“O maior adversário da popularização das imagens da guerra e de sua transformação em
símbolos nacionais foi a própria guerra e a reação que causava, imediatamente após o seu
término, nas populações envolvidas.” (p. 137)
“Os militares retratados em campanha não representavam, como se supõe hoje em dia, os
interesses políticos da corporação ou um projeto militar para o país. A elite política
imperial tinha uma noção civilista do poder, com o claro predomínio da autoridade civil
sobre a militar (CARVALHO, 1990, p. 39). De acordo com esta visão, os militares que
comandavam as vitórias brasileiras nas telas eram os legítimos defensores da
nacionalidade ameaçada.” (p. 137)
Conclusão
Iconografia e nacionalismos
“A iconografia da guerra pode ser dividida em “oficial” e “independente”, se nos
preocuparmos apenas com a sua origem. Parte dela foi feita por meio de patrocínios
governamentais vindos, sobretudo, dos ministérios militares; outra parcela foi produzida
por um mercado independente, mais próximo ao gosto popular e à opinião pública.” (p.
149)
“Boa parte da iconografia produzida durante a guerra foi resultado do esforço de governos
em produzir uma versão do conflito, mediante apoio dado especialmente à pintura.” (p.
149)
“(...) uma vez resolvida a ideia de nação a presidir sua formação, os governos desses
jovens Estados passavam ao problema de como representa-los, em termos de imagem,
junto às outras nações.” (p. 149)
“É, também, a experiência do Brasil, onde a Casa de Bragança, mesmo antes da
independência, apoiava a formação de pintores por meio da Academia de Belas Artes.
Depois da turbulência do período da Regência, o apoio à elaboração de uma imagem do
Brasil volta a ser preocupação do imperador e do grupo de intelectuais ligados ao Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro e à Academia Imperial de Belas Artes.” (p. 149)
“(...) como no caso paraguaio, no Brasil, a importação e existência da pintura europeia
ocorria num contexto no qual havia escasso diálogo com a tradição anterior e autóctone.”
(p. 150)
“Interessava, aos novos governos, estabelecer representações daquilo que seria o
“nacional” em cada um desses países.” (p. 150)
“A independência do Paraguai, do Uruguai e da Argentina, em 1811, e a do Brasil,
em 1822, trouxe consigo a necessidade concreta de estabelecer iconografias
nacionais para todos esses novos países. (...) A parafernália nacionalista criada não
se limitava à iconografia: eram hinos, poemas, uniformes, frases e dísticos
patrióticos, adoção de animais, flores e plantas típicas, de heróis e de passagens
épicas para a constituição de versões de “histórias nacionais” etc.” (p. 150)
“A independência em relação à Espanha e Portugal, marca, desse modo, o início de um
esforço de criação de iconografias nacionais por parte dos governos desses países.” (p.
150)
“Esse processo de busca da kultur desses países, ocorrido simultaneamente depois da
independência, acentuando-se depois da década de 1850, explica a linguagem neoclássica
ou romântica empregada em todos eles em pintura e literatura, com suas variantes
costumbristas, nos países de colonização espanhola, e indianista, no Brasil.” (p. 151)
“Compreende-se, também, por que boa parte dos escritores e pintores do período,
sobretudo no Brasil e menos no Uruguai e Paraguai, foi pensionista do Estado ou
viveu de encomendas e empregos públicos. Produção cultural era assunto de
governo e seus produtores eram, por extensão, funcionários públicos.” (p. 151)
“A Guerra do Paraguai, ocorrida cinquenta anos depois do início desse processo de
criação e reflexão sobre símbolos, deu continuidade a um gênero de pintura bem
conhecido e preocupado em estabelecer identidades nacionais. (...) Excluindo a
tradição pictórica popular, os governos desses países esforçavam-se para estabelecer
uma imagem na qual a população se reconhecesse, na qual fossem reconhecidas, no
exterior, as novas nacionalidades.” (p. 151)
Imagens civilizadas
“Além de produzir uma imagem de nação, era preciso que isso fosse realizado de maneira
considerada apropriada. A representação das características nacionais deveria ser feita
numa linguagem pictórica específica, que projetasse modernidade e conhecimento do que
se fazia nas matrizes de pintura “culta” da época.” (p. 151)
“Como hoje, quem vence no exterior está fortemente habitado ao sucesso junto à crítica
especializada interna.” (p. 152)
“O domínio da pintura acadêmica e o reconhecimento dessa tradição “culta”, finalmente,
habilitaria a imagem dos novos países a fazer parte daquilo que, novamente, Norbert Elias
chama de “civilização”, ou a consciência que o ocidente tem de si mesmo, aquilo que o
contrapõe às sociedades mais antigas ou contemporâneas e “primitivas” (ELIAS, 1994,
pp. 23-25). Tanto D. Pedro II (...) o desejo de estabelecer uma pintura culta e moderna,
que refletisse o nacional numa linguagem pictórica internacionalmente praticada. A
pintura acadêmica teria a tarefa de projetar esta imagem para o exterior de cada país.” (p.
152)
“Qualquer que fosse a formação dos artistas, porém, o destino da pintura sobre a
guerra era um só: o Estado, que em todos os países encomendou ou terminou por
comprar a maior parte das obras. Nesse sentido, deve-se destacar o papel das forças
armadas, em especial os Ministérios da Marinha e do Exército no Brasil e na
Argentina, no mecenato exercido junto à maioria dos artistas que produziram
trabalhos sobre o conflito.” (p. 153)
“Foi o Estado, e não o público, numa época marcada pelo início das coleções
particulares, o comprador preferencial da pintura sobre a Guerra do Paraguai.
Quase a totalidade da obra dedicada ao tema pelos maiores pintores do período foi
resultante de encomendas ou de aquisições promovidas por ministérios militares
durante e depois de 1870. (...) Estamos, aqui, num campo diferente dos trabalhos
com maior circulação na época – fotografias e gravuras – que mostravam o cotidiano
e os horrores da guerra.” (p. 153)
“(...) o comprometimento institucional das forças armadas nos regimes militares do
período republicano ao longo do século XX terminou por “empurrar” toda a iconografia
militar para o campo ideológico da direita, estreitando seu alcance como representação
da totalidade da nação.” (p. 153)
Imagens em desordem
“A iconografia de guerra era feita por um mercado produtor de imagens que
experimentava, desde a década de 1850, uma notável expansão e diversificação de seus
produtos.” (p. 154)
“A imprensa ilustrada utilizava amplamente estes retratos em suas litografias sobre heróis
que ofereceram sua vida pela pátria.” (p. 154)
“A fotografia em papel e a sua utilização na litografia trouxeram a dor da memória dos
custos da guerra, de uma forma que nunca havia ocorrido antes. (...) Houve uma
democratização no conhecimento das vítimas. A guerra deixava de ser uma causa do
governo e passava a ser um problema de todos, fazendo parte da construção de imagens
de cidadania.” (p. 154)
“A litografia, sobretudo por meio da imprensa ilustrada, operava uma verdadeira
revolução ao trazer imagens de fatos contemporâneos, inaugurando a utilização da
imagem no jornalismo. Em todos os países envolvidos no conflito, a imprensa
ilustrada era, certamente, o meio de informações mais dinâmico na cobertura e
repercussão dos fatos. Os jornais ilustrados eram um termômetro da opinião pública
a respeito da guerra nesses países, posicionando-se contra ou a favor, geralmente
com independência em relação à opinião governamental.” (pp. 154-155)
“O sucesso comercial tanto da fotografia como da imprensa ilustrada possibilitou uma
certa liberdade no aproveitamento da guerra como assunto, havendo a libertação de
qualquer censura àquilo que deveria ou não ser publicado ou vendido. A única exceção,
como vimos, era o Paraguai.” (p. 155)
“Os jornais ilustrados, exclusivamente dedicados ao bom negócio de imagens da
guerra e fundados no início dela, soçobraram juntamente com a popularidade do
conflito. Alegorias à paz, no Brasil, e charges de Mitre enfiando a guerra pela
garganta do Congresso argentino demonstram o clima da guerra trazido pelos
jornais ilustrados em 1867.” (p.155)
“O surgimento e a consolidação da fotografia e da imprensa ilustrada limitaram, em
muito, o papel da pintura como fonte única de registro da guerra. Ao contrário das
muitas cenas fotográficas e dos inúmeros jornais ilustrados contemporâneos à
guerra, a pintura, acadêmica ou não, produziu um número limitado de trabalhos,
executados, na sua maioria, depois do término do conflito. Decorre daí que o
universo de imagens ao qual o público tinha acesso, entre 1864 e 1870, era composto
de materiais produzidos por litografias, xilogravuras e fotografias. As versões em
óleo da guerra apareceram, na sua maior parte, muitos anos depois de seu término.
A exceção fica por conta de alguns trabalhos de Edoardo de Martino e da Batalha
naval de Riachuelo, de Vitor Meireles.” (p. 156)
“A fotografia e a litografia, finalmente, parecem demonstrar o anacronismo da pintura
acadêmica oficial no registro do conflito. (...) O gênero histórico era praticado em escala
gigantesca e só sobreviveu sob o mecenato oficial. Ironicamente, o grande pintor da
guerra, Cándido López, vem de uma tradição marginal à esta pintura oficial.” (p. 156)
“Na Guerra do Paraguai, no entanto, a fotografia deixou de ser unicamente retrato e
referência de pintores, gravuristas, desenhistas e aquarelistas. Mostrou seu valor como
documento para a reconstituição da guerra nas mais variadas técnicas. Entre 1864 e 1870,
apareceram os primeiros trabalhos fotográficos, reunidos em álbuns, que inauguraram a
cobertura da guerra e o desenvolvimento da fotografia como linguagem no continente.”
(p. 157)
“(...) a iconografia da Guerra do Paraguai não inovou apenas ao trazer a guerra
para junto da opinião pública. A rentabilidade comercial do assunto inaugurou a
cobertura visual de conflitos, ao mesmo tempo que lançou e viabilizou as técnicas, a
fotografia e a litografia, que possibilitariam sua continuidade. A pintura, apesar de
altas taxas de visitação das exposições, esteve longe de poder acompanhar a rapidez
com que se produziam fotografias ou litografias em redações de jornais. Tornava-se
impossível, aos governos, evitar a “subversão da imagem” trazida pela fotografia e
pela imprensa ilustrada. Agora, a sociedade tinha outras imagens para contrapor à
iconografia “oficial”.” (p. 157)
“Talvez a maior herança deixada por esta “febre de imagens” do período tenha sido
a possibilidade do seu uso jornalístico, concomitantemente a uma certa “laicização”,
no sentido da sua maior independência em relação às representações quase
“oficiais” da pátria. Não eram só os governos, afinal, os responsáveis pela
formulação das características nacionais desses países.” (pp. 157-158)
“A imagem se popularizou durante a guerra, em termos de produção e consumo. As
representações da nação, por sua vez, deixaram de ser produzidas pelas monarquias e
pelos governos das repúblicas do Cone Sul, e passaram ao domínio público.” (p. 158)