ABREU, Caio Fernando - Mel & Girassóis (PDF) (Rev)
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ABREU, Caio Fernando - Mel & Girassóis (PDF) (Rev)
FLORIANÓPOLIS - SC
2009
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
FLORIANÓPOLIS – SC
2009
IVÂNIA FABIOLA DE SOUZA
Banca Examinadora:
Orientadora: ______________________________________________________
Profa. Dra. Marlene de Fáveri
FAED/UDESC
Membro: ______________________________________________________
Profa. Dra. Silvia Maria Fávero Arend
FAED/UDESC
Membro: ______________________________________________________
Profa. Dra. Marlen Batista de Martino
FAED/UDESC
CAPITULO UM
CAPITULO DOIS
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................ 35
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 37
FONTES................................................................................................................................................ 37
OBRAS DE REFERÊNCIA ....................................................................................................................... 37
INTRODUÇÃO
1
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos
Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: Artmed, 2001.p.
luzes entre o real e o imaginado não levou em conta que o mundo
interior humano é uma realidade vivida ainda que não materialmente
palpável. A literatura na forma física dos livros é o legado do mundo
interior, do imaginário do autor, mas não só dele, e sim da cultura em
que ele está imerso.2
2
KRIEGER, Ana Luisa Pereira; Universidade do Estado de Santa Catarina. Entre piolhos e fadas:
amor, casamento e adultério nos romances as Brumas de Avalon e as crônicas de Artur. 2008. 68 p.
TCC (Graduação em História ) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências
Humanas e da Educação - FAED, Curso de História, Florianópolis, 2008.p.14.
3
Correspondência de Abelardo e Heloisa/ texto apresentado por Paul Zumthor; [tradução Lúcia
Santana Martins]. – 2ª ed. – São Paulo; Martins Fontes, 2000. – (Gandhara).p.01
através dos inúmeros romances publicados, ou através do cinema, com o filme Em
Nome de Deus produzido em 1988.4
Porém o que estas histórias modernas contam são visões romanceadas do
medievo, olhares contemporâneos trajados de uma idade média e que de forma
alguma remete a uma realidade possível. A Heloísa dos romances modernos e do
cinema é uma Heloísa de sonhos, uma campeã do amor livre como mencionada por
Duby,5 ela não leva em conta as dificuldades reais da moral e da conduta medieval.
Essa Heloísa que luta diretamente contra os códigos morais impostos e é totalmente
deslocada do século XII, surge para nós como heroína contra uma dominação
simbólica e ao mesmo tempo prática, que ainda persiste no imaginário ocidental,
mesmo que modificada e atrelada a novas formas de legitimação.
Portanto, a Correspondência de Abelardo e Heloísa vem nos mostrar
personagens menos heróicos e mais abafados pelas regras sociais vigentes no
século XII, especialmente no que diz respeito à mulher e seu lugar na sociedade
deste tempo. A resistência de Heloísa para nós soa silenciosa, mas ainda sim uma
forma de oposição dada às possibilidades existentes em seu meio.
Dessa forma propondo um estudo atentando para a naturalização das
diferenças entre os sexos através do pensamento medieval, especialmente no
século XII, tido por muitos como uma época de mudanças significativas da condição
feminina, e onde fazer parte de uma sociedade era, assim como hoje, carregar o
fardo normativo vigente.
Assim sendo, este trabalho procura de forma breve investigar as relações e
utilizações de fontes literárias e historiográficas, para a análise das representações
do feminino e daquilo que se esperava das mulheres do século XII, seja como
modelo de conduta para as outras mulheres, ou como instrumento de legitimação
daquilo que se caracterizava por um comportamento naturalmente feminino.
No primeiro capítulo deste trabalho buscamos investigar as relações entre
história e literatura, as raízes epistemológicas, e práticas de uma e de outra
disciplina, visando desta forma identificar relações e empregos possíveis,
respeitando as particularidades de cada área. Também analisamos a
4
EM NOME de Deus. Direção: Clive Donner. 1988. 1DVD(115 min.). Grupo Paris Filmes. DVD.
Color. Legendado. Port. NTSC
5
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.p.58.
Correspondência como documento histórico e parte da produção literária no
medievo, destacando as suposições a respeito de sua autoria e objetivo como obra
escrita, analisando suas possibilidades como um romance epistolar de caráter
exemplar, e os aspectos que atentam para o exercício de uma escrita e para um
adestramento de si.
No segundo capítulo, procuramos delinear as mudanças ocorridas nos
discursos sobre as diferenças entre os sexos a partir do renascimento do século XII,
observando as mudanças ocorridas no pensamento do ocidente medieval e as
conseqüências percebidas através das fontes. Igualmente na segunda parte do
capítulo tentamos identificar os exemplos que confirmam ou que transgridem os
códigos de conduta feminino expostos na primeira parte. Revelando através dos
discursos tanto de Abelardo quanto de Heloísa os papéis e os personagens na
Correspondência e nas representações dos sexos na França do século XII.
CAPITULO UM
6
ARISTÓTELES. Arte Poética. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: 3
fev. 2009, p.14.
7
COMTE, Auguste. Discurso Preliminar sobre o Espírito Positivo. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000028.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2009.
ou ausência de fontes verificáveis. Segundo o glossário de termos literários,8 a
linguagem literária se distingue pela preocupação estética e a produção de uma
realidade própria e independente da realidade exterior à obra, isso não torna
impossível à utilização e os entrelaçamentos de componentes reais na produção do
enredo, porém anula as investidas a fim de considerarem a história como parte de
uma literatura, afinal a história depende diretamente da realidade exterior e é a partir
dela que se forma a narrativa histórica.
Conforme afirma Hayden White as narrativas históricas são “ficções verbais,
cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos.” 9Essa afirmação exclui a
oposição radical entre literatura e história e também destaca os elementos literários
na narrativa histórica, como a própria imaginação construtiva fator que
10
necessariamente compõe o fazer historiográfico.
Dessa forma o texto surge, não como carimbo de uma verdade irrefutável ou
como uma verdadeira história, mas como aquilo que através de dados e de regras
literárias invariavelmente se supõe.
Duby também reforça essa limitação do historiador perante sua produção.
Segundo ele, é presente em seus trabalhos a preocupação e consciência da
incapacidade de atingir em um todo a realidade obrigando-se necessariamente a
preencher os espaços vazios de acordo com a sua imaginação.11 Porém, desta
afirmação é importante destacar, que a imaginação histórica não se dá sem provas
documentais, ou seja, a imaginação histórica ou construtiva é uma ferramenta de
ligação entre as fontes e as constatações do historiador.
Quanto à autoridade da história e ou da literatura, ainda encontramos no
pensamento aristotélico a elevação da poesia em relação à história quando ele
coloca que por seu estilo a poesia pertence a um caráter mais elevado que a
história, pois a poesia permanece no universal enquanto a história estuda apenas o
particular, sendo que, por universal Aristóteles define àquilo que tal categoria de
homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil ou o
8
COSTA, Luísa; BORGES, Maria João; CORREIA, Rosa. Glossário de termos literários.
Disponível em: <http://faroldasletras.no.sapo.pt/glossario.html#imagem>. Acesso em: 14 abr. 2009.
9
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: editora da
Universidade de São Paulo, 2001. p.98.
10
Ibid., p. 100.
11
DUBY, 1977 apud VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo; ESSUS, Ana Maria Mauad de Sousa Andrade.
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p 146.
necessário. Deste modo, a Arte Poética coloca a poesia não somente como uma
oposição ao concreto, mas também como algo que vai além do personagem a que
se refere, como o produto de uma sociedade e cultura.
Na historiografia moderna, historiografia essa fruto dos Annales e da história
nova, interdisciplinar e que tem por objetivo não revelar uma verdade cientifica, mas
sim, uma aproximação verossímil dos acontecimentos e das manifestações
humanas, uma história que dialoga com as demais disciplinas, a fim de entender e
estudar não somente a vida de grandes personalidades, também estas, mas,
sobretudo a vida e cultura dos anônimos. Sobre esta história, constataremos que a
definição de Aristóteles do que cabe a história e à poesia, bem como, a
característica fundamental de ambas tornou-se profundamente obsoleta.
Discursando ainda sobre a definição de realidade e existência sob a
perspectiva da história, podemos citar a obra Artur da historiadora Adriana Zierer, na
qual ela define a existência sob o ponto de vista historiográfico como sendo a
“explicação e o entendimento dos motivos da propagação e preservação de um
mito,”12 no caso o mito arturiano. Se ponderarmos por esta linha, não só a história
narra o que poderia ter acontecido, como ela também perde seu caráter particular
como concebida por Aristóteles. Embora o livro escrito por Zierer seja voltado ao
público infanto-juvenil, e não ao acadêmico, ele define com clareza a mudança na
historiografia se comparada ao pensamento aristotélico e ao pensamento positivista
do século XIX, revelando-se herança da crise nas ciências sociais do inicio do século
XX.
No âmbito das relações entre narrativa literária e história, ainda encontramos
obras de ficção que pretendem abarcar propriedades de ambas, ou que de fato sem
pretender, absorvem características das duas áreas como os romances históricos de
Walter Scott e Alexandre Dumas, ou romances que utilizam elementos da
investigação histórica para adquirir um aspecto realista como o Morgado de
Ballantrae de Robert Louis Stevenson. Os exemplos levantados são simples e
envolvem mais o leitor do que o historiador, porém as relações e influências dos
elementos da investigação histórica neste modelo literário são inegáveis.
No caminho da relação narrativa histórica e elemento literário, ainda
12
ZIERER, Adriana; PAES FILHO, Orlando. Artur. 1. ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2004. -
(Universo Angus), p.2.
permanecem aquelas que a principio representam uma narrativa verídica, mas que
após um estudo cuidadoso prova-se o predomínio do fictício sobre o verídico. Este
caso pode ser exemplificado, novamente através da temática arturiana, e da análise
da historiografia do medievo, por meio da obra Historia Brittonum de Nennius,13
escrita aproximadamente no século VIII. Nesta obra Nennius descreve Artur como
sendo um dux bellorum, ou seja, um chefe guerreiro, personagem importante na luta
contra os saxões. Normalmente citada por ser a primeira obra em língua latina a
mencionar a existência do personagem Artur, notório como rei dos bretões, a
Historia Brittonum traz em sua narrativa o forte apelo ao real, baseada em
acontecimentos e personagens reais, porém remetendo a locais imaginários.
Paul Zumthor nos informa que os primeiros romances constituem-se nas
mais antigas ficções, que embora sejam admitidas como tal, possuem uma
indiscutível relação de pretensa historicidade, e de fato a literatura no medievo
principalmente no século XV, servirá inevitavelmente ao Estado e a uma
manutenção da ordem.14
Novamente aqui podemos perceber um usufruto da idéia aristotélica de
história como narração de acontecimentos verídicos, além da união ao fardo
historiográfico de uma nova e importante função, a responsabilidade pela busca de
origens, no desejo de pertencimento, e posteriormente pela fundação de uma
identidade nacional. Desta forma, em sua obra Nennius tenta criar uma história do
povo da Bretanha fundamentando-a nos valores cristãos.15
A contribuição da história e da literatura, na construção de uma identidade
nacional é discutida por Sandra Pesavento quando coloca que, embora a narrativa
literária não possua a intenção de provar que os fatos narrados são verídicos, a
narrativa comporta uma explicação do real, traduzindo assim uma sensibilidade
diante do mundo que é recuperada pelo autor.16 Pesavento sugere que embora seja
comum o uso da literatura como fonte alternativa no fazer historiográfico ou ainda,
na contextualização histórica no discurso literário, ela nos convida a analisar as
13
NENNIUS. História dos Bretões. Tradução de Adriana Zierer. Disponível em:
<http://www.ricardocosta.com/>. Acesso em: 8 mar. 2009.
14
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz : a “literatura” medieval. São Paulo: Cia das Letras, 1993. p.268-
284.
15
ZIERER, op cit.,p.5.
16
PESAVENTO, Sandra. Contribuição da história e da literatura para construção do cidadão: a
abordagem da identidade nacional. In: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra (org). Discurso
histórico e narrativa literária. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1998, p.22.
possibilidades de se pensar a história como uma forma de literatura e a literatura
como uma forma de história,17 sugeridos pela noção de representação nos moldes
da Nova História Cultural.
Essa História Cultural, definida por Chartier como uma história que tem por
objetivo, identificar as construções de uma realidade social em um determinado lugar
e momento,18 é uma história que trabalha com a idéia de uma representação em
oposição a uma verdade cientifica dos fatos, possibilitando a utilização da literatura
como documento, como registro de uma época assim como tantas outras fontes,
anteriormente descartadas pela historiografia tradicional.
Danielle Régnier-Bohler nos alerta para as limitações do uso da literatura
como fonte histórica. Segundo ela, a literatura é cercada por códigos lingüísticos que
modificam seu sentido, uma linguagem metafórica que muitas vezes pode ser
interpretada de forma equivocada por aqueles que interpretam um passado através
dessa linguagem.19
Dessa forma, a conexão direta entre história e literatura é sedutora, porém é
preciso ter cuidado no sentido de não gerar vulgarizações, e conflitos no que cabe a
esta ou aquela disciplina. Pesavento faz essa abordagem com muita cautela, no
sentido de não proporcionar uma transdisciplinaridade, mas sim à
interdisciplinaridade, e deixando claro que essa união só pode existir no âmbito das
representações e na construção de um imaginário.
Nesta discussão infinita de possibilidades, e do que cabe a história ou a
literatura, podemos afirmar que diferentemente do pensamento antigo, atualmente é
possível história e literatura manterem não somente uma relação harmônica como
também de cumplicidade, afinal há muito, a história perdeu suas limitações que
faziam-na, não somente uma disciplina que estudava o particular, no sentido
colocado por Aristóteles, como uma disciplina responsável por uma verdade
científica, assim também como a literatura, que sendo objeto fundamental na escrita
de uma história da cultura também possui sua parcela de verdade.
17
Ibid., p.19.
18
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil; Lisboa[Portugal]: Difel, 1990. p.25.
19
RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In: DUBY, Georges; ARIES, Philippe. História da vida
privada, 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
1.2 O Espaço literário medieval e o caso da Correspondência
20
ZUMTHOR, op.cit.,p.282.
21
Pequenas Fábulas Medievais: Fabliaux dos séculos XIII e XIV / estabelecimento do texto,
tradução para o francês moderno e seleção Nora Scott; tradução Rosemary Costhek Abílio. – São
Paulo: Martins Fontes, 1995. – (Coleção Gandhara) p. 10.
período expressa através das diferenças estilísticas de uma pré-literatura, enquanto
na linguagem cortês observamos a destilação de um amor perfeito, o amor educado,
cercado por regras, nos fabliaux observamos a satisfação do desejo, o escárnio e a
obscenidade, porém, não sem um fim moral que visa também, a seu modo uma
didática nas cortês onde eram reproduzidos, ou seja, constituem-se basicamente de
uma literatura exemplar dedicada a formação do individuo.
Essa literatura de exemplos, como não poderia deixar de ser, também é
fortemente guiada pelo oral, seu destino final é sua vocalização e exposição, seja
nas cortês, ou nos conventos. No caso da poesia religiosa ou vida de santos, a
exposição destes textos objetiva principalmente a educação de nobres e
eclesiásticos, ou seja, é uma literatura exemplar de moralização dos indivíduos das
classes abastadas da sociedade.
Michel Zink, compara o escrito às notações musicais que funcionam como
um auxílio para memória, segundo ele esse auxílio à memória é quase a função
primeira da escrita, pois ela surge como o registro daquilo que se quer vocalizar.22
Assim, a literatura surgiria como pouco mais que uma nota, uma composição em
socorro da oralidade.
Ainda sobre o predomínio do oral sobre o escrito, percebemos na própria
correspondência traços desta prática. Heloísa diversas vezes refere-se a si, e às
irmãs, como um conjunto indissociável, fazendo-nos crer que houvera uma leitura
pública da carta. “Levaste às lágrimas daquelas mesmas que devias apaziguar. Qual
de nós poderia, com efeito, ler com olhos secos, no final de tua carta[...]”.23
Georges Duby de fato revela-nos, que existiam cartas destinadas a leituras
públicas e que funcionavam como romances epistolares de fins morais. Essas
correspondências, eram lidas e comentadas servindo à educação moral de jovens e
de senhoras recolhidas na vida monástica, elogiando-as, dando-lhes exemplos e
força para que continuassem seus caminhos na vida religiosa.24
Assim, os motivos que contribuem para a teoria de que a Correspondência de
Abelardo e Heloísa é uma espécie de romance epistolar, como os mostrados por
22
ZINK, Michel. Literatura. In: LE GOFF, Jacques,; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do
ocidente medieval.vol 2. Baurú: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2002.
23
Correspondência de Abelardo e Heloisa, op cit.,p.111.
24
DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
p.75.
Duby, vão além dos textos, pois se seguem pelos exemplos de Nora Scott onde ela
revela o forte caráter exemplar e moral da literatura medieval como um todo25.
No entanto, conforme descreve-nos Paul Zumthor no prefácio da
Correspondência, há uma grande dificuldade tanto da classificação, quanto do
desígnio de uma autoria para esse conjunto de pretensas epistolas.26 A ambigüidade
dos textos contidos na Correspondência, embora característica da literatura
medieval, não nos traz resposta ou facilita a ocupação de um lugar literário, porém
sua indiscutível coerência interna, nos ajuda a refutar as possibilidades de uma
falsificação e uma coletânea simples de cartas.
No prefácio da Correspondência, Zumthor destaca ainda outras três teorias
acerca origem da obra. Duas destas teses remontam a uma coletânea de cartas
autênticas, corrigidas posteriormente, diferenciando-se somente pelo seu compilador
e corretor, que poderia, ou não ser Heloísa posteriormente à morte de Abelardo. A
outra teoria lança-se como sendo um dossiê construído, com bases em documentos
autênticos ou relatos, com o objetivo de justificar os costumes na ordem do
Paracleto fundado por Abelardo. De qualquer forma independentemente da autoria
e objetivo do texto, ele claramente funciona como documento legitimador da
fundação de Abelardo, possuindo ainda, um conteúdo moral e abrindo espaços para
um novo conceito na condição feminina.27
Dentre todas essas incertezas acerca da Correspondência, o que sabemos
dela enquanto obra na medida que foi organizada e estruturada para publicação, e
que chega até nós através desta, elas constituem-se de cópias de um mesmo texto
encontrado em vários manuscritos e cujo modelo principal remete ao manuscrito 802
da biblioteca de Troyes, copiado em fins do século XII. Estes manuscritos são
compostos de oito cartas, das quais apenas as primeiras cinco foram selecionadas
para a publicação da Correspondência.
Observamos nos textos da Correspondência uma forte característica de
retrospecção, que serve tanto para exposição dos acontecimentos, quanto reflexão e
formulação de um ideário moral. Ainda mais que Heloísa, Abelardo se descreve,
descreve os episódios, medita e conforma-se, afinal os eventos foram
25
Pequenas Fábulas Medievais...op cit..,p.12.
26
Correspondência de Abelardo e Heloisa, op.cit.,01.
27
Ibid.,p.04.
conseqüências de suas ações, “[...]o orgulho e o espírito da luxuria me haviam
invadido. Apesar de mim mesmo, a graça divina soube me curar de um e de outro:
primeiro da luxúria, depois do orgulho”.28
Abelardo promove um adestramento de si como colocado por Foucault.29 A
escrita neste caso promove a confissão, um exame de consciência, reprimenda e
resignação por parte de Abelardo. Neste momento, novamente somos convidados a
acreditar na autenticidade da obra pelo menos naquilo que diz respeito à
verossimilhança, Abelardo tinha conhecimento da filosofia antiga, bem como das
escrituras, e demonstra claramente os ensinamentos não só expostos na maneira
como é conduzida a escrita das cartas, de forma reflexiva, mas nas próprias
referências que serão expostas também por Heloísa mais adiante.
Estas mesmas cartas de Sêneca, tratadas por Heloísa como uma forma de
garantir a presença de um ente querido, também são utilizadas por Foucault em sua
obra como exemplos de uma escrita de si a serviço da meditação.31 Relacionando
as conclusões trazidas a nós por Foucault, e o conteúdo da Correspondência,
percebemos uma incrível semelhança no teor de uma e no objetivo da outra. Deste
modo, o texto das cartas também se equipara a hypomnemata, na medida em que
proporciona um modelo de conduta, e contribui para a constituição de si, assim
como é uma correspondência não apenas pela sua denominação, mas pelas
características de conselho, admoestação e consolo. Foucault ainda nos mostra que
à medida que o escritor vai alcançando o seu objetivo no texto, ele vai igualmente se
capacitando para situações futuras, tornando a correspondência uma ferramenta no
adestramento de si.32
Encontramos facilmente na Correspondência de Abelardo e Heloísa as
características de ambas as situações. No texto das cartas, é claro o modelo de
28
Ibid.,p.38.
29
FOUCAULT, Michel,. O que é um autor?. 4. ed. Alpiarça: Vega, 2000.p.132.
30
Correspondência de Abelardo e Heloisa. op.cit.,p.91.
31
FOUCAULT, op. cit.,p.133.
32
Ibid.,149.
conduta e a criação de uma espécie de escrito moral do período, que trabalha
diretamente para a constituição moral do individuo, bem como, as características de
consolo e de censura, que visam um adestramento de si, condizente com aquilo que
se esperava das mulheres que habitavam o Paracleto. Desta forma, a
correspondência habita nos dois modelos sem situar-se predominantemente sobre
nenhum. Ao mesmo tempo hypomnemata e correspondência, manual de conduta e
romance, contendo o sagrado e o profano esse é o caráter e o espaço ocupado
pelos textos reunidos sob o título de Correspondência de Abelardo e Heloísa.
CAPITULO DOIS
33
DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. – São Paulo:
Companhia das letras, 1989. p.143
34
SAMARA, E.; SOIHET, R.; MATOS, M. I. (org). Gênero em debate: trajetórias e perspectivas na
historiografia contemporânea. São Paulo:EDUC, 1997.p. 97.
manter as práticas de dominação sobre o feminino, e de assimilação de um modelo
de masculino.
Neste contexto, o próprio amor cortês surge como um jogo, um canalizador de
tensões na adaptação de uma sociedade, onde o foco militar já demonstra ares de
decadência. Os chamados jovens, termo que nada tinha a ver com a idade destes,
mas sim com o fato de não haverem conquistado uma esposa, precisavam ser
controlados, desta forma a mulher nos moldes do amor cortês ocupa seu espaço
como mestre, ela domestica. O jogo do amor acalma estes jovens que deveriam ser
instintivamente selvagens e “naturalmente” violentos.35
A manipulação e controle de outros indivíduos de mesmo nível, faz parte das
novas formas de convivência. Essa imagem das cortes, onde o público invade o
privado, e no qual se completam, os impulsos masculinos devem ser controlados,
mas isso é a norma apenas para aqueles que não são dignos de uma dama. Já para
as mulheres casadas, ou não, o modelo é de austeridade, a obrigação está para
com àqueles que às mantêm, sejam eles maridos, pais, ou irmãos, e o que
permanece do feminino, ou seja, seu espírito, ainda deve pertencer à Deus, este
indiscutivelmente do sexo masculino.
Essas relações de dominação, e aparente submissão, são registradas
exaustivamente na literatura medieval, através do discurso masculino da época,
dessa forma, a idéia do que concerne à mulher não pode ser desvinculada da idéia
que se tem do próprio masculino, já que neste período um e outro, ocupam pólos
necessariamente opostos.
Para a análise da Correspondência, é importante ressaltar que os discursos
que regem as condutas têm um caráter normatizador, tanto do feminino quanto do
masculino, assim aquilo que define um, ou outro personagem, e o comportamento
representado como modelo varia de acordo com o conteúdo da carta e momento em
que é escrita.
Tendo estes pressupostos, é necessário que se faça a pergunta: Afinal, o que
se observa das relações de gênero na Correspondência? Definido por Margareth
Rago36 como a construção social e cultural das diferenças sexuais, o gênero como
35
DUBY, 1989.op cit., p. 38.
36
RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu (11)1998. Disponível
em: < http://www.pagu.unicamp.br/files/cadpagu/Cad11/pagu11.08.pdf>. Acesso em 28 maio 2009.
categoria de análise histórica, nos auxilia na compreensão desse cenário medieval,
onde as vozes masculinas sobrepõem-se as femininas, e qualificam as mulheres de
seu ponto de vista unilateral, percebendo assim, as construções históricas da
diferenças entre os sexos, e da produção de um saber que legitima e perpetua a
desigualdade e dominação de um sobre o outro.
Segundo Cristina Klapish-Zuber,37 na Idade Média não se concebe ordem
sem hierarquia, assim a construção de uma “natureza” tipicamente feminina, bem
como de uma masculina, segue essa noção polarizada, de contrariedade e
necessariamente de inferioridade do feminino na relação com o masculino. Apesar
da predominância de um pensamento caracteristicamente misógino no medievo,
marcado sobretudo nas obras de Agostinho e Tomas de Aquino, houve aqueles que
mesmo se apropriando do discurso dos teóricos cristãos, pretendiam dar um aspecto
de igualdade e culpabilidade masculina na interpretação das escrituras, ou ainda de
menoridade feminina, intelectual e espiritual, na questão do pecado, como podemos
observar no discurso do próprio Abelardo na Historia Calamitatum, “As mulheres,
vista sua fraqueza, comovem mais quando caem na indigência, e sua virtude é mais
do que a nossa agradável a Deus e aos homens”.38
Apesar de se apropriar dos discursos comuns do período, Abelardo acredita
que as mulheres têm tanto uma culpa atenuada, quanto mais valorosa é sua
castidade diante da sua fraqueza e da debilidade de seu sexo, tornado a mulher
uma vitima de sua condição, embora esse discurso ainda reforce a inferioridade
feminina, não será esse tipo de pensamento que compartilham Agostinho ou Tomas
de Aquino, para eles a mulher é tanto culpada quando débil e uma coisa não
atenuaria de forma alguma a outra, a mulher é a pecadora aquela que atrai os
homens ao pecado, indiscutivelmente, a Eva responsável pela queda, assim eles
pregam um domínio e não a tutela como nos sugere os escritos de Abelardo.
Haja vista, o discurso misógino e o imaginário a cerca de uma natureza
perversa da mulher, afeta diretamente a inserção feminina nas letras. Assim, os
estudos trazidos a nós sobre uma história da mulher no medievo, atestam sobre a
p.01.
37
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/Feminino. In: LE GOFF, Jacques,; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário temático do ocidente medieval vol 2. Baurú: EDUSC; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2002. p.136.
38
Correspondência de Abelardo e Heloisa. op.cit.,p.77.
dificuldade de instrução do denominado “belo sexo”.
Chartier39 nos fala que no século XVII é provável que o número de leitores
fosse maior do que aquele que se acredita, pois a quantidade de leitores era
calculada através dos registros de assinaturas, porém o número de assinantes, ou
seja, daqueles que escreviam era inferior ao daqueles que só sabiam ler. Quando
voltamos essa relação para a instrução das mulheres, sabemos que estas condições
eram ainda mais significativas, pois a instrução era considerada um instrumento
perigoso de independência, pois a jovem letrada teria mais facilidade de se
corresponder com um amante. Se este quadro esboça um cotidiano do século XVII,
não temos motivos para pensar que no século XII as condições e o que se pensava
sobre as mulheres eram muito diferentes, no que se trata da educação. Chiara40
Frugoni em seu artigo sobre as mulheres nas imagens revela que a instrução
feminina nas letras é provavelmente mais comum do que se costuma admitir,
através de Duby41 também sabemos que as crianças meninos e meninas ficavam
sob a tutela materna até os sete anos, deste modo seria de se esperar que
aprendessem as primeiras letras com as mães e que estas fossem instruídas pelo
menos na leitura senão na escrita, é claro que esses dados referem-se à nobreza, e
pode ser até mesmo relacionado a uma burguesia ascendente, porém as mulheres
das camadas populares ainda ficavam a margem da cultura erudita.
Sabemos de inúmeras mulheres, que não apenas sabiam ler e escrever,
como possuíam conhecimentos que superavam os da maioria dos homens,
exemplos podem ser dados através da religiosa Hildergarda de Bigen, ou de leigas
como Cristina de Pisan, e da própria Heloísa como descreve Abelardo.
39
CHARTIER, Roger,. Práticas da leitura. 2.ed. rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.p.80
40
FRUGONI, Chiara. A Mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, Georges; PERROT,
Michelle. História das mulheres no ocidente. vol 2. A Idade média. Porto: Afrontamento,
1990.p.494.
41
DUBY, 2001. op cit.,p.24.
42
Correspondência de Abelardo e Heloisa. op.cit.,p.39.
correspondência, podemos observar também uma valorização da instrução feminina,
já que Fulbert, tio de Heloísa, deu-lhe boa educação a fim de arranjar-lhe um bom
casamento, logo sob o olhar do século XII, uma mulher culta começava a ter valor na
sociedade, fato denunciado pela descrição que Abelardo faz do tio de Heloísa. “Não
apenas Fulbert era dos mais cúpidos, mas ainda se mostrava muito preocupado em
facilitar os progressos de sua sobrinha nas belas-letras”.43
A ambição de Fulbert contava assim, com a exibição de sua sobrinha, ela era
admirada pelo amplo conhecimento que possuía, mas é necessário ressaltar, que o
contato com as letras era só considerado como um encanto a mais, uma soma aos
atributos da dama, cujo objetivo último era o casamento, portanto, não era realmente
encorajado, mesmo assim os conhecimentos que Heloisa demonstrava, eram
motivos de orgulho e engrandecimento para seu tio que desejava estabelecer
vínculos favoráveis através de um bom casamento.
Com o que diz respeito ao casamento, sabemos que este era um assunto
entre homens, isto fica claro na carta de Abelardo quando ele e Fulbert decidem a
união em oposição à vontade de Heloísa, mesmo no século XII quando o
consentimento da mulher foi tornado obrigatório para união, a pressão familiar
imperava na decisão, assim Heloísa obedece a Abelardo e conforma-se com o
destino que ele e Fulbert determinaram para ela. Heloísa está subordinada a
decisão dos homens, assim como outras tantas mulheres de seu tempo, sua voz não
é ouvida nem mesmo quando as regras parecem mudar, elas transformam-se nos
discursos, mas nas práticas permanece o que até então era comum.
Apesar de todas as mudanças observadas nos escritos sobre a mulher no
século XII, não podemos falar de uma melhoria efetiva na condição feminina,
sabemos que estas mudanças suscitaram uma visibilidade maior das suas práticas
de resistências, como a entrada em conventos, e a rejeição de um casamento
indesejado, também observamos uma ampliação dos escritos femininos,
possibilitados pelo próprio florescimento de uma literatura no medievo, assim
também podem ser levantadas as mudanças ocorridas em face das novas imagens
de feminino, como da própria Virgem Maria, embora ela seja a única de seu sexo
para alguns poucos intelectuais da igreja ela era um modelo que poderia ser seguido
43
Ibid.,p.40.
pelas demais, elevando seu caráter e tornando-as exemplos de conduta.
Heloísa coloca-se no plural, junto com suas irmãs ela reivindica sua parcela,
ela é serva de Abelardo, apenas para segui-lo, ela encerrou-se na vida ascética, por
44
Correspondência de Abelardo e Heloisa. op.cit.,p.92.
ele se uniu ao Cristo, mais do que a Deus, Heloísa louva Abelardo como fundador
da congregação ele é o líder e deve terminar a obra de sua conversão.
Heloísa recrimina Abelardo, enquanto ele arrisca sua vida pregando aqueles
que não lhe dão ouvidos, sua esposa pena a distancia e sem noticias, ele deve
voltar para junto de suas servas e ajudá-las na salvação de suas almas, como se
espera de um marido ou de um companheiro zeloso.
A ausência de Abelardo sentida por Heloísa é discutida por Roland Barthes45
que a revela como sendo um discurso predominantemente feminino na historiografia.
Segundo a leitura de Barthes a mulher é sedentária, é aquela que espera, o homem
pela clara construção cultural é o inconstante, o infiel, novamente se instala uma
questão de gênero, o papel de cada individuo nesta ocasião, é o que detêm
Abelardo, segundo ele próprio, é a moral e a confiança que ele tem em Heloísa. A
ausência se esboça pela conduta moral e não pelo desejo desenfreado do macho.
Mesmo assim Heloísa cobra o débito que Abelardo tem para com ela, seja
como homem da igreja seja como marido, ela aproveita-se do discurso empregado
na Historia Calamitatum.
45
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p.36.
46
Correspondência de Abelardo e Heloisa.op.cit.,p.82-83.
47
KLAPISCH-ZUBER, op cit,p.136.
valorosa que a de um homem, por causa de sua inferioridade. Deste modo não se
deve utilizar o mesmo peso, nem elas devem ter as mesmas responsabilidades, as
mulheres para Abelardo eram seres delicados, que careciam de cuidados e
acompanhamento constante. Embora não pareça uma visão lisonjeira, em um
período que as mulheres eram tanto culpadas quanto inferiores essa concepção do
feminino torna-se quase admirável.
Destarte Heloísa se apropria do discurso que visa encerrá-las sob o comando
constante do masculino. Para o bem dela e de suas irmãs, Abelardo deve retornar
ao Paracleto e cuidar para suas almas.
Nesta parte o leitor se pergunta, Heloísa está falando da ordem fundada por
Abelardo ou de si mesma? Ela parece subverter o discurso mantendo seu
significado, mas utilizando-o em proveito de si para obter a presença de Abelardo, e
ao mesmo tempo livrá-lo dos inimigos e da região hostil em que vive. Seria então
Heloísa uma transgressora utilizando o discurso a seu bel prazer? Ainda que seja
tentadora a idéia encontrar uma mulher que utiliza-se do discurso que a oprime
fazendo-o seguir sua vontade, essa é uma visão anacrônica e que não obtém
respaldo nos estudos acadêmicos. Sabemos como foi citado no capitulo um deste
trabalho que obras como a Correspondência exibiam modelos de conduta, assim
como sabemos que a imagem que Heloisa passava após a morte de Abelardo, era a
de uma mulher sábia e de conduta exemplar, deste modo à compilação das cartas
que deram origem à obra utilizada neste trabalho, visava reforçar a imagem deixada
por Heloísa e impelir as jovens religiosas a seguirem-lhe na devoção diligente.
O modelo que se esboça na primeira carta de Heloísa dirigida a Abelardo,
reflete uma cobrança, ela sabe que se ela e suas irmãs necessitam de cuidados
ninguém seria mais indicado que o fundador da sua ordem, e anteriormente seu
marido, e isto ela faz questão de deixar claro. Abelardo é seu marido e o seu dever
para com ela persiste mesmo após terem tirado-lhe a virilidade, agora seu dever
48
Correspondência de Abelardo e Heloisa, op.cit.,p.93.
como esposo se reflete na orientação e encaminhamento para a vida em Cristo.
No texto da primeira carta de Heloísa, ela questiona a função que Abelardo
designa para ela. Heloísa ainda mantém os laços que os uniu, ela ainda ama em
todos os sentidos da palavra seja no desejo ou na afeição comum do casamento
medieval, mas e Abelardo? Uniu-se a ela pela concupiscência? Ela exige uma
resposta, ela procura descobrir o motivo do abandono.
49
Correspondência de Abelardo e Heloisa, op.cit.,p.100.
50
BARTHES, op. cit.,p.46.
51
DUBY,1989,op. cit.,p. 34.
52
Ibid.,p.30.
53
Correspondência de Abelardo e Heloisa, op.cit.,p.132.
Nós professamos formalmente que é proibido a um bispo[...]
dispensar a si mesmo, sob pretexto de religião, dos cuidados que ele
deve à sua esposa. Ele é obrigado a lhe assegurar a comida e as
vestes; basta que ele interrompa as relações sexuais.54
Dessa forma Heloísa faz uso de seus direitos, se o dever os uniu uma vez
deverá uni-los novamente.
Em outro momento na mesma, carta Abelardo parece evocar a imagem de
Heloísa como da mulher que serviu ao seu propósito, nesse caso o matrimonio e a
reprodução, uma mulher que já se encaminha para velhice, uma mulher de
aproximadamente 35 anos que deve conformar-se com seu destino e unir-se ao
Cristo. Os modelos apontados são etapas da vida feminina segundo sua “natureza”
e função na sociedade medieval, quando jovem, a mulher é cortejada, a dama deve
servir ao seu propósito de selar as alianças entre as famílias e se reproduzir, quando
seu ciclo reprodutivo e as relações entre as famílias estão estabelecidas, elas devem
entregar-se à devoção ainda mais do que quando eram jovens.
Abelardo responde a sua esposa de maneira a constrangê-la, ele faz uso do
afeto que ela nutre por ele molda-a conforme sua vontade. Ele retira de si a culpa e
coloca a responsabilidade sobre Heloísa, se ele não a escreveu é porque acreditava
conhecer sua esposa, pensava-a mais forte, mais sábia, esperava mais dela. Ele
intimida Heloísa forçando-a seguir o modelo que ele pretende.
Abelardo coloca Heloísa como a única capaz de interceder por ele junto ao
Cristo, para Abelardo a oração de uma mulher vale tanto ou mais do que a do
homem. A esposa diligente é capaz de redimir e salvar seu marido, ele dá exemplo
através das escrituras, Heloísa as conhece bem, através do bom comportamento,
ela é capaz de salvá-lo de seus pecados. Quanto a retornar ele não fala, uma vez
estiveram próximos em Cristo, e a calúnia os separou, “Levantou-se, bem
54
Ibid.,p.81.
55
Ibid.,p.104.
entendido,[...] um murmúrio malevolente, e aquilo que a caridade sincera me levava
a fazer, a habitual malicia de meus inimigos interpretou ignominiosamente”.56
Na primeira carta Abelardo fala que após a fundação do Paracleto, ele se
dispôs a visitar Heloísa e suas companheiras freqüentemente para auxiliá-las e lhes
assegurar a pregação, porém em virtude dessas visitas levantaram-se murmúrios
infamantes que diziam que Abelardo não suportava a ausência da antiga amante.
Dessa forma Abelardo não responde ao apelo de Heloísa, para ele é impossível o
retorno ao Paracleto, ele espera apenas que Heloísa e seu comportamento
exemplar, assim como suas orações sirvam para encaminhá-lo ao reino dos céus.
Essa terceira carta é a mais curta se compararmos as outras quatro. Na carta
Abelardo coloca sobre os ombros de Heloísa a responsabilidade pela sua salvação,
a exemplo de Mônica de Hipona mãe de Agostinho, Heloísa como tantas outras
mulheres é capaz de pela oração e comportamento, e claro pelo sofrimento, ser
instrumento da salvação de um homem, no caso, de Abelardo.
A última carta de Heloísa trazida até nós nesta compilação é a que reflete
melhor não o modelo, mas a “natureza” feminina, segundo os pensadores da igreja
católica. Paulette L’Hermitte-Leclercq descreve que é provável que a maioria das
mulheres considerava normal a submissão ao masculino e inclusive fosse
responsável pela reprodução do discurso e recondutoras do sistema hierárquico.57
Assim também coloca Chartier58 quando fala sobre a construção de uma identidade
feminina enraizada interiormente pelas próprias mulheres, e baseada nas normas
expressas pelos discursos masculinos.
Ao mesmo tempo, os séculos de afirmação da inferioridade feminina no
ideário ocidental cristão encontram ecos na fala de Heloísa, como uma característica
natural, que é perpetrada pelo senso comum e no âmbito das mentalidades. As
mentalidades aqui situadas como coloca Le Goff,59 ou seja, uma imagem
compartilhada uma sociedade em suas diferentes categorias, situando dessa forma
a fala dos filósofos cristãos medievais como promotores da diferença e
56
Ibid.,p.78.
57
L’HERMITTE-LECLERCQ, Paulette. A Ordem feudal (séculos XI – XII). In: DUBY, Georges;
PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente. vol. 2. A Idade média. Porto: Afrontamento,
1990.p.325
58
CHARTIER, 1995,op cit.,p.40
59
NORA, Pierre; LE GOFF, Jacques. História: novos objetos. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1986.
p. 71
hierarquização entre os sexos.
Abelardo ignora o pedido de Heloísa para que venha em seu auxilio, como
resultado disso, ela desespera-se, “Mas que me resta esperar, agora que te perdi?
De que adianta prosseguir essa jornada terrestre em que eras meu único apoio?”60
Ela busca incessantemente a causa de tal infelicidade. Ela é a causa ela
atraiu para seu marido o que a mulher adúltera atrai para seu amante. Heloísa busca
as referências nas escrituras que justifiquem tal destino. Ela chega à conclusão, ela
é a causa, a mulher só pode atrair a ruína daquele que ama. Heloísa invoca a
imagem de Eva pecadora, mas justifica-a através de outras mulheres julgadas
traidoras. Assim, ela atraiu o mal ao seu esposo, em vista de fazer o bem, a dor que
ela sofre é a pena pela lascívia, nas palavras da própria Heloísa: “Nada termina mal
que não tenha sido mal desde o inicio”.61
Segundo Heloísa, Abelardo é mais feliz ele ficou livre dos desejos através da
pena que Deus lhe infligiu. Heloísa não consegue arrepender-se, sua condição de
mulher a impede, torna-a fraca, débil e ela é susceptível as volúpias. Os méritos
louvados sobre sua pessoa nada mais são que inverdades, pois não se conhece o
que lha vai no intimo, sua castidade é hipócrita. Heloísa não seguiu por vocação, a
vida de castidade foi imposta apenas para agradar Abelardo, ela necessita dele para
sua conversão sincera.
60
Correspondência de Abelardo e Heloisa. op.cit.,p.114.
61
Ibid.,p.117.
62
Ibid.,121.
semelhantes o óbvio é o mais provável, novamente o pecado é relacionado
diretamente ao feminino, se levarmos em conta que a obra tinha fins morais e era
destinada a leitura pública para instrução63 seja nos mosteiros, ou nas cortes a
interpretação mais provável era que as jovens que ouvissem a leitura se
identificassem com a figura de Heloísa e tão certo como Heloísa ouviria os
conselhos de Abelardo, elas seguiriam o exemplo da sábia e notória abadessa.
Na última carta de Abelardo descreve-se resignado com a justiça divina ele
percebe os desígnios divinos, e os aceita como um castigo paterno, ele envia as
palavras das escrituras a fim de Heloísa medite a respeito, “‘Deus corrige aqueles
que ama. Ele castiga todos aqueles que adota como filhos”.[...] “Quem poupa a vara
não ama seu filho’”.64
Agora em virtude da aproximação da morte de Abelardo, Heloísa deve se
juntar a seu esposo verdadeiro, o único que realmente amou. Abelardo não a amava
apenas cedia aos seus desejos masculinos, realmente ela estava certa era
concupiscência que os unia. Ela não deve voltar-se contra Deus, ele seu verdadeiro
e único apoio. Os acontecimentos só vieram em beneficio de Heloísa, seu esposo
mortal a atraia para perdição enquanto nesta nova união ela encontrará o verdadeiro
amor.
Feliz mudança do teu estado conjugal: outrora esposa de um ser
miserável, foste elevada até o leito do Rei dos reis, este privilegio
honroso te colocou acima, não apenas do teu esposo humano, mas
de todos os demais servidores desse Rei.65
63
DUBY, 1989, op cit.,p. 75.
64
Correspondência de Abelardo e Heloisa. op. cit.p.,144.
65
Ibid.,p.126.
freqüente, não porque eu suspeite de ti: não duvido de tua
humildade. Limito-me a refrear teus excessos de linguagem,
temendo que pareças, aos que te conhecem mal, “buscar glória
enquanto foges dela” [...].66
66
Ibid.,p.136.
67
Ibid.,p.142.
68
BARTHES,op. cit.,.p.30.
69
DUBY, 1995, op cit.p.57.
veneráve,l70 ou seja, a imagem de Heloísa como a mulher filósofa e modelo de
abadessa, as interpretações tornam-se um tanto conflitantes com a imagem que
Heloísa evoca para nós.
Isso demonstra nada mais do que as múltiplas faces de um mesmo
personagem que é revistado e reinventado constantemente, e que ao longo dos
anos vem sendo carregado de um fardo interpretativo indissociável assim como o
texto que lhe é atribuído.
De tal modo a imagem de uma Heloísa resignada e dedicada à vida ascética
é estranha para nós. Essa representação de Heloísa é exatamente oposta àquela
que vemos nos primeiros minutos do filme de Clive Donner,71 uma Heloísa que
renega e culpa Deus e que serve somente a Abelardo. Qual dessas imagens se
aproxima mais com a da verdadeira Heloísa? Qual delas revela melhor o
pensamento e realidade feminina? Nunca poderemos saber ao certo, mas é provável
que a Heloísa real bem como as suas companheiras possuísse um pouco de cada
uma dessas figuras.
70
DUBY, 1995, loc cit.
71
EM NOME de Deus, op cit.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Heloísa que encontramos aqui não é aquela que queremos, àquela que
vence o discurso misógino do medievo e lança-se a novas possibilidades. Essa não
é uma questão de realidade ou ficção, é apenas a interpretação e a representação
fazendo de seu papel. A imagem atual de Heloísa como àquela que celebra o amor
livre, como colocado Duby,72 é aquela que toca os corações e que mantém a história
viva, porém essa da qual falamos aqui, como exemplo de conduta feminina no
medievo, também ilustra mudanças, talvez aparentemente muito menos
significativas para nós, e para o imaginário que temos de revoluções e finais felizes,
mas ainda assim uma mudança. Também sabemos que a escrita é regida por
normas, e muitas vezes para podermos nos expressar é necessário que se sigam às
regras e que se reprimam os sentimentos. Assim Heloísa se faz ouvir, ou pelo
menos seu modelo se faz, através daquilo que lhe é permitido, aquilo que é possível.
A Heloísa libertadora e romântica fica reservada ao imaginário
contemporâneo, ao cinema, ao discurso que se modifica através dos tempos. Como
coloca Harlan73 é impossível que se faça à interpretação de algo despido daquilo
que já foi escrito, então é provável que se encontre aqui vestígios da Heloísa que
queremos fazer existir a qualquer custo, daquela que faz sentido para nós e que foi
sendo carregada de significados.
A história de Abelardo e Heloisa que conhecemos, é aquela não exatamente
com final feliz, mas na qual o amor triunfa, o amor sobrevive mesmo após os anos
de separação e sofrimento. Essa história é a que motiva enamorados do mundo
inteiro a visitarem o túmulo dos amantes medievais, e que levanta lendas sobre o
abraço fúnebre de Abelardo. Essa é que faz sentido no campo de uma história
fictícia, em que o amor triunfa sobre as regras e diferenças impostas. Porém no
campo da história acadêmica e dos estudos de gênero, nos interessa os papéis que
72
DUBY, 1995, op cit.p.58.
73
HARLAN, David. A história intelectual e o retorno da literatura. In: RAGO, Margareth; Oliveira
Gimenez, Renato Aloizio de. (org). Narrar o Passado, Repensar a História. Campinas: Unicamp,
2000. p.27.
ambos cumpriram na sustentação ou na perpetuação do discurso de naturalização e
distinção dos sexos. Discursos estes que ecoam e que reproduzem em linhas gerais,
a inferioridade feminina discutida no medievo.
REFERÊNCIAS
Fontes
Obras de referência
______. Práticas da leitura. 2.ed. rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
______. Heloísa, Isolda e outras damas no seculo XII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
______. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. – São Paulo:
Companhia das letras, 1989.
EM NOME de Deus. Direção: Clive Donner. 1988. 1DVD(115 min.). Grupo Paris
Filmes. DVD. Color. Legendado. Port. NTSC.
FRUGONI, Chiara. A Mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, Georges;
PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente. vol 2. A Idade média.
Porto: Afrontamento, 1990.
ZIERER, Adriana; PAES FILHO, Orlando. Artur. 1. ed. São Paulo: Planeta do Brasil,
2004. - (Universo Angus).