Os Ava - Guarani No Oeste Do Parana Re Ex PDF

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COORD.

CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO


CLARISSA BUENO WANDSCHEER

ORG.
FLAVIA DONINI ROSSITO

MINERAÇÃO
E POVOS INDÍGENAS
BRASIL
COLÔMBIA
BOLÍVIA
PERU
EQUADOR

LETRA DA LEI
CURITIBA-PR
2016
Coordenação científica
Carlos Frederico Marés de Souza Filho

Organização
Danielle de Ouro Mamed
Manuel Munhoz Caleiro
Raul Cezar Bergold

Diagramação
Letra da Lei

Capa
Daniel Conrade

Revisão
Danielle de Ouro Mamed
Manuel Munhoz Caleiro
Raul Cezar Bergold

A945
Os Avá-guarani no oeste do Paraná : (re) existência em Tekoha Guasu Guavi-
ra / coordenação de Carlos Frederico Marés de Souza Filho ; organização de
Daniele de Ouro Mamed ; Manuel Munhoz Caleiro e Raul Cezar Bergold.
– Letra da Lei, 2016.
432 p.

ISBN 978-85-61651-21-3

1. População indígena no Paraná. 2. Tribo Avá-guarani. 3. Territórios indíge-


nas. I. Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. II. Mamed, Daniele de Ouro.
III. Caleiro, Manuel Munhoz. IV. Bergold, Raul Cezar. V. Título.

CDU 314.1/502

Al. Dom PedroII, 44. Batel. Curitiba-PR.


CEP 80.250-210 - Fone: (41) 3223-5302.
[email protected]

www.direitosocioambiental.org
CONSELHO EDITORIAL:

Antônio Carlos Wolkmer


Bruce Gilbert
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Caroline Barbosa Contente Nogueira
Clarissa Bueno Wandscheer
Danielle de Ouro Mamed
David Sanchez Rubio
Edson Damas da Silveira
Eduardo Viveiros de Castro
Fernando Antônio de Carvalho Dantas
Heline Sivini Ferreira
Jesús Antonio de la Torre Rangel.
Joaquim Shiraishi Neto
José Luis Quadros de Magalhães
José Maurício Arruti
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
Milka Castro
Raquel Yrigoyen Fajardo
Rosembert Ariza Santamaria
Walter Antillon Montealegre
AGRADECIMENTOS

Às comunidades Avá-Guarani que (re)existem no oeste paranaense, por nos rece-


berem, aceitarem compartilhar momentos e proporcionarem precioso aprendizado, que
se deu em vários locais, datas e situações. Foram conversas, rezas, viagens, congressos,
seminários e oficinas. Convivemos e tivemos profundas lições, que moldaram e conti-
nuarão moldando o destino acadêmico e pessoal de alguns de nós.
A Carlos Frederico Marés de Souza Filho, nosso chamoi, pelo incentivo e apoio
para a realização desta pesquisa, por nos inspirar diariamente com suas idéias e atitudes,
por sua trajetória de vida e compromisso com os povos, trazendo para academia um
espaço que busca contribuir com suas lutas.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
por viabilizar a realização desta pesquisa.
À Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em especial ao Programa
de Pós-Graduação em Direito (PPGD), pelo apoio em todos os momentos da pesquisa,
desde sua concepção à sua conclusão.
À Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e Terra de Direitos, por pos-
sibilitarem nossa inscursão em atividades além daquelas acadêmicas que inicialmente
nos propusemos a realizar, que nasceram de demandas das comunidades, extrapolando
nossos objetivos iniciais.
À Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) pela concen-
tração de esforços para viabilizar um encontro entre lideranças Guarani e acadêmicos,
assim como à Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), que generosa-
mente cedeu seu espaço em Foz do Iguaçu para este encontro.
Às pessoas que, atendendo nosso chamado, deixaram seus lares e afazeres para
estarem conosco, compartilhando seus conhecimentos sobre o povo Guarani: Bartomeu
Melià, Bruno Morais, Camila Salles de Faria, Diogo Oliveira, Maria Inês Ladeira, Maria
Lúcia Brant de Carvalho e Spensy Pimentel.
Aos convidados que, mesmo não integrando a equipe do projeto de pesquisa,
contribuíram na forma de textos que nos ensinaram sobre questões que estavam além de
nossos conhecimentos.
À Coordenação Técnica Local de Guaíra, da Fundação Nacional do Índio (FU-
NAI), especialmente na pessoa de Ferdinando Nesso Neto, pela atenção que sempre nos
dispensou, explicando os contextos da região oeste paranaense e pela persistência em
colaborar com os Guarani, mesmo com as restrições cada vez maiores a que o órgão vem
sendo submetido.
Às pessoas que generosamente nos acolheram em algumas de nossas idas ao oeste
paranaense, Cláudia Regina de Oliveira, Thaiz Diniz e Thiago Piemontez.
A Daniel Conrade, por contribuir com a sensibilidade de sua arte para esta obra.
A todos vocês, o nosso mais sincero agradecimento.
A gente sabe pelo que a gente está lutando, e porque, tudo que a gente está lutando
hoje é por um direito nosso, é pela memória, é pela origem, pela nossa origem.
E até mesmo por isso, a gente sabe, a terra é, sempre foi, de habitação Guarani, uma
terra tradicional. A nossa luta vai continuar, nós lideranças podemos até perder as nossas
vidas, mas sempre terá alguém que dará continuidade as nossas lutas, a nossa luta não vai
acabar, enquanto os indígenas não acabarem, a luta não vai acabar.
Nós vamos continuar resistindo porque agora é resistir pra existir. Nós temos direito
a ter direito. Nós temos direito a existir. A nossa existência veio sendo negada, quando se diz
que não existem índios no Oeste do Paraná.
A luta continua até o último índio.

Ilson Soares, liderança da Tekoha Y’Hovy


Foz do Iguaçu, 25 de novembro de 2014
SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................................................................9

CAPÍTULO 1 - OS POVOS.................................................................................................19

ÑANDERU ORE MBOGUATAVÉ


(ÑANDERU NOS FAZ SEGUIR EM FRENTE)................................................................20
OPAMBA'E ÑANDERU REMBIAPO MEME
(TUDO FOI ÑANDERU QUEM FEZ).............................................................................24
ENTREVISTA COM BARTOMEU MELIÀ SJ...................................................................33
TERRITÓRIO GUARANI: UM ESPAÇO DE RESISTÊNCIA
Manuel Munhoz Caleiro.........................................................................................................42
OS AVA-GUARANI EM YVY MBYTE, CENTRO DA TERRA
E OS PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO DE SEU TERRITÓRIO
Maria Inês Ladeira e Camila Salles de Faria............................................................................51
AS MISSÕES JESUÍTICAS E O HISTÓRICO DE ESCRAVIDÃO
INDÍGENA NA AMÉRICA DO SUL
Priscila Lini.............................................................................................................................86

CAPÍTULO 2 - AS TERRAS..............................................................................................101

DAS SESMARIAS À LEI DE TERRAS DE 1850:


POVOS INDÍGENAS, O DIREITO E A TERRA MERCADORIA NO BRASIL
Fernando Gallardo Vieira Prioste...........................................................................................102
VIDAS AMARGAS: INDÍGENAS EXPLORADOS PELAS OBRAGES (1860-1950)
Jefferson de Oliveira Salles, Raul Cezar Bergold e Ener Vaneski Filho...................................119
O CONTEXTO, A IDEOLOGIA E A PRÁTICA DA MARCHA
PARA O OESTE NO PARANÁ
Raul Cezar Bergold...............................................................................................................139

BAGATELAS E BEDENGÓS: EMPRESAS COLONIZADORAS


NA FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA NO PARANÁ 1940-1960
Jefferson de Oliveira Salles.....................................................................................................194
TERRAS INDÍGENAS EM ZONA DE PODER: DETERMINAÇÃO LEGAL E PRÁTICA
INSTITUCIONAL NO BRASIL - I
Marcia Lucia Brant de Carvalho.............................................................................................225

8
CAPÍTULO 3 - AS ÁGUAS....................................................................................................255

O CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO (1930-1984) E A OPÇÃO DO GOVERNO


BRASILEIRO PELA CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE ITAIPU
Bruna Balbi Gonçalves................................................................................................................256
IMPACTOS AMBIENTAIS DA HIDRELÉTRICA DE ITAIPU
Diogo Andreola Serraglio............................................................................................................273
IMPACTOS SOCIAIS DA IMPLEMENTAÇÃO DA USINA DE ITAIPU
Danielle de Ouro Mamed, Angelaine Lemos e Flavia Donini Rossito..........................................297

CAPÍTULO 4 - AS LUTAS.....................................................................................................319

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO AOS AVÁ GUARANI:


A NECESSÁRIA POLÍTICA DE REPARAÇÕES E RESTITUIÇÃO
DE TERRAS PELAS VIOLAÇÕES COMETIDAS DURANTE A DITADURA MILITAR
Liana Amin Lima da Silva...........................................................................................................320
SÍNTESE DAS GRAVES VIOLAÇÕES AOS POVOS INDÍGENAS
CONSTANTES NO RELATÓRIO DA COMISSÃO ESTADUAL
DA VERDADE DO PARANÁ – TERESA URBAN
Olympio de Sá Sotto Maior Neto, Jefferson de Oliveira Salles,
Raquel de Souza Ferreira Osowski e Edilene Coffaci Lima..........................................................360
RESISTÊNCIA AVÁ-GUARANI NO OESTE DO PARANÁ
SOB CONSTANTE VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Adriele Fernanda Andrade Précoma, Caroline Barbosa Contente Nogueira
e Elis Cristina Alves Pereira............................................................................................392
GESTÃO TERRITORIAL, ETNODESENVOLVIMENTO E AGROECOLOGIA
– ELEMENTOS PARA SE REFLETIR SOBRE A TERRA INDÍGENA AVÁ-GUARANI
Roberto dos Anjos Dias e Luciano Egídio Palagano......................................................................412
PREFÁCIO

Este livro nasce como resultado de trabalhos realizados pelo grupo de pesquisa
“Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica”, vinculado ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito Econômico e Socioambiental da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Paraná. Os estudos foram desenvolvidos no âmbito Projeto “A
Questão Indígena no Oeste do Paraná e a Reconstrução do Território Avá-Guarani”,
coordenado por Carlos Frederico Marés de Souza Filho e aprovado no processo número
486916/2012-0, da Chamada Universal MCTI/CNPq número 14/2012, do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A construção do projeto foi motivada por um acirramento ou pela ampliação da
divulgação dos conflitos entre ruralistas e povos indígenas em todo o país nos últimos
anos. Dentre os vários e trágicos casos ocorridos, teve imensa repercussão a carta dos
Kaiwoá do Mato Grosso do Sul, anunciando um suicídio coletivo diante da violên-
cia constante a que foram submetidos, com a eliminação de seus territórios em favor
principalmente da produção agrícola de larga escala, que tem como base a produção de
redundantes commodities transgênicas conduzidas por altas cargas de produtos quími-
cos, para então alimentar um modelo de existência que confronta, viola e inviabiliza a
cosmovisão indígena.
Sem o mesmo eco, mais invisibilizados ou um tanto menos nítidos, gritam os
Avá-Guarani da região oeste do Paraná, condenados que estiveram a irrisórias reservas
dadas a título de mitigação de impactos, não por acordos justos e menos ainda por
respeito à legislação, mas por conta de uma sofrida e sufocada resistência, pouco co-
nhecida ou reproduzida, apesar de haver muito material sobre ela, pois a correlação de
fatos e circunstâncias com a questão indígena é raramente estabelecida. Gritam, lutam e
resistem pela demarcação do território, entre Guaíra e Terra Roxa, que chamam Tekoha
Guasu Guavira.
Mas no limiar de cada momento histórico que o agora representa, os indígenas
vivem como restaram dos recentes séculos, décadas ou anos de contato. Um contato
ainda de fluxos e refluxos, hostil, desrespeitoso, agressivo em sua forma mais constante

11
e abrangente, mas que tem as suas expressões de comunhão, de partilha, de reciprocida-
de verdadeira, que se perpetuam e se esforçam para prevalecer através da fertilidade da
coexistência.
Assim é que, em 2012, em um momento de severa articulação contrária a qual-
quer tipo de concessão aos Avá-Guarani, como que surpresa por não terem sido ainda
exterminados, vislumbramos a possibilidade e a necessidade de analisar os efeitos da
colonização do oeste paranaense e da construção da hidrelétrica de Itaipu sobre o povo
Avá-Guarani, considerando as relações territoriais e sociais próprias dos indígenas, bem
como avaliar, sob uma perspectiva jurídica, o tratamento que têm recebido do Poder Pú-
blico e de Itaipu para o atendimento de suas demandas, objetivando identificar as condi-
ções de o Direito contemplar de forma efetiva os interesses dessa população diferenciada.
Dessa pretensão geral derivaram objetivos específicos e metas que têm como sín-
tese o registro desta publicação, fruto de cerca de quatro anos de pesquisas bibliográficas
e documentais; de visitas técnicas nas comunidades; de congressos e seminários; produ-
ção de artigos e apresentações; oficina, encontros e reuniões; conversas e reflexões.
Todo acervo produzido, sempre que disponível, pode ser encontrado no sítio eletrô-
nico http://www.direitosocioambiental.org/projeto-ava-guarani/. Nele podem ser visuali-
zados e reproduzidos artigos, vídeos de eventos e seus anais, outras obras relacionadas com
o tema e todo material audiovisual coletado ao longo das pesquisas junto aos Avá.
Quanto a esta obra, pensamos a sua divisão em grandes eixos temáticos, que
originaram capítulos. Cada capítulo, por sua vez, é composto por artigos que devem se
complementar entre si para proporcionar uma ampla compreensão histórica e das diver-
sas questões que se relacionam com a luta dos Avá-Guarani pelo seu reconhecimento e
pela retomada de seu território.
Os artigos têm seu sentido completo dentro da obra, sendo que qualquer reprodução
individualizada merece essa observação, porque certos conceitos ou fatos poderão carecer
de maiores explicações que os autores deixaram de apresentar por conta da divisão proposta
para a obra. Apesar desse caráter de complementariedade, respeitamos a visão de cada autor
e a forma de referência ou a omissão na indicação dessas conexões, não sem que houvesse
discussões em reuniões, encontros e caminhadas, ou em revisões de texto.
As versões disponibilizadas são o resultado do que foi alcançado até o momento em
que se fechou a lente pela qual atravessaram imagens, vozes, cheiros, gostos, toques e pensa-
mentos, convertidos em caracteres carimbados nessas páginas, marcando compreensões que
seguirão em construção e desconstrução, contorcendo-se por todas nossas vidas.
Apesar de buscarmos alguma coerência e evitarmos contradições, também respei-
tamos a individualidade dos trabalhos e dos(as) autores(as), que podem gerar questiona-
mentos internos e externos que alimentarão futuras pesquisas e debates, além de oferecer
distintas possibilidades dentre as inesgotáveis abordagens já produzidas. A observância
de diretrizes eleitas ou existentes, como regras ortográficas e gramaticais, além de normas

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de padronização, foi exigida até o limite delineado pela estética de cada pesquisador, em
seu mister artístico de harmonização entre o conteúdo e a forma. A tradição oral guarani
revelou para alguns e reforçou para outros as limitações da nossa escrita.
Eventual determinação quanto à qualidade dos trabalhos igualmente não resisti-
ria à fragilidade da subjetividade que carrega e que nem mesmo o rigor científico afasta.
De modo que, a partir do uso das possibilidades de pesquisa oportunizadas pelo projeto,
cada autor alcançou expressar o que lemos, como resultado do exercício realizado com
fim intrínseco de desenvolvimento do conhecimento, sem deixar de lado a indispensável
contribuição à sociedade plural em que vivemos, com as suas gentes não hegemônicas e
por vezes invisibilizadas.
E para tanto, partimos da necessidade de iniciar com uma compreensão sobre
quem são os Avá-Guarani, o que compõe o capítulo de abertura da obra, que é contem-
plada por seis textos para que sejam conhecidos “Os Povos”.
O primeiro deles brota da fala dos próprios Guarani, guiados por Ñanderu, re-
presentando a conformação que existe na Tekoha Guarani, localizada no município de
Guaíra. Aí revelou-se a crueldade fundamental que é imposta aos indígenas, eternamen-
te colocados sob as dúvidas primordiais: “Quem somos nós? E quem sou eu?” Enquanto
têm os seus direitos negados como seres humanos, condição que, passados quinhentos
anos de colonização europeia, somente lhes é precariamente reconhecida quando sujei-
tados a determinados requisitos civilizatórios.
O segundo também nasce da fala dos Guarani, desta vez da Tekoha Y’Hovy, com
a mostra de um pequeno e grandioso fragmento de sua cultura e dos impactos que nós,
da sociedade nacional - ou jurua1, como dizem - causamos à ela, seja pelo alagamento
de seus locais sagrados, pela usurpação de suas terras ou pela destruição da natureza. Da
narrativa de sua religiosidade é possível entender o porquê deste povo estar sempre ali,
num barraco montado perto dos poucos espaços de mato que restaram o oeste para-
naense. Nos mostram que nada do que foi covardemente feito com eles até o momento
é suficiente para parar sua luta política, mas também espiritual, para a reconquista de
suas terras e caminhada para sua terra sem mal.
Depois, Bartomeu Melià compartilha sua sabedoria de décadas de estudo e vi-
vência junto aos Guarani do Paraguai, Argentina e Brasil, com destaque para as Missões
Jesuítas, em uma entrevista concedida à Priscila Lini.
Em seguida, Manuel Munhoz Caleiro contribui com a demonstração de um dos
pilares que sustentam o projeto e desta obra, a demonstração de que o espaço de mundo
do oeste paranaense constitui historicamente o território Guarani, assim como introduz
sucintamente as principais ondas de impactos que acarretaram na usurpação territorial
1
O termo jurua, na língua Guarani, é sinônimo de karaí e ambos significam “não índio”, utilizado para se referir às pes-
soas das sociedades nacionais. O primeiro é mais utilizado pelos Mbya e o segundo pelos Avá. Seu uso nas comunidades
varia de acordo com as origens de seus membros.

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a que este povo foi submetido, impactos estes que detalhados em trabalhos seguintes.
Logo após, Maria Inês Ladeira e Camila Salles trazem uma preciosa contribuição sobre
os Avá-Guarani do oeste do Paraná, baseando seu trabalho na oralidade deste povo e no co-
nhecimento acumulado com a ampla vivência e vínculos que possuem com as comunidades.
No quinto artigo do capítulo, Priscila Lini apresenta uma compreensão quanto às
relações de trabalho existentes dentro das missões jesuítas, que envolveram um conjunto
de situações, inclusive a alternativa à eliminação física e espiritual imposta por adelanta-
dos e bandeirantes. Esse conjunto representa as formas iniciais de contato com os euro-
peus, mas que iriam se reproduzir com suas nuances, repetindo as violações praticadas
ou consentidas pela sociedade hegemônica de cada época.
O segundo capítulo buscou concentrar-se na identificação dos elementos que
configuram “As Terras”. Não se trata propriamente de explicações sobre o território Avá-
Guarani, o que se encontra como aspecto de caracterização do próprio povo desenvolvi-
da no primeiro capítulo. Busca-se, então, uma apresentação sobre as circunstâncias que
conformaram o território, evidenciando a legislação envolvida, os interesses políticos e o
papel da sociedade envolvente na espoliação sofrida pelos Avá-Guarani.
No primeiro artigo desse capítulo, o advogado popular Fernando Prioste trata
da evolução da legislação que repercutiu sobre os territórios indígenas desde o início da
colonização até principalmente a Primeira República.
Após, Jefferson de Oliveira Salles, Raul Cezar Bergold e Ener Vaneski Filho apre-
sentam artigo sobre as obrages, empreendimentos de capital argentino, sobre terras bra-
sileiras e, com uso de mão de obra indígena, chamada paraguaia, nação guarani para
onde foram empurrados os Guaranis encontrados no Oeste paranaense. As empresas
operaram por aproximadamente cem anos, a partir de meados do século XIX, tendo
como principal produto a erva-mate, cujo ciclo oportunizou a emancipação da Província
do Paraná e formou as bases para o ciclo da madeira.
A presença argentina em terras brasileiras foi contida e depois eliminada pela
Marcha para o Oeste, um movimento migratório de grande envergadura sobre o territó-
rio brasileiro nos tempos do Estado Novo de Getúlio Vargas. Tratou-se da expansão de
uma ideologia sulista, gaúcho-europeia, que decorreu da conjuntura política e econômi-
ca nacional e também internacional, ignorando-se nesses contextos a existência dos in-
dígenas, pulverizados da história pela concepção do vazio demográfico. Os pormenores
desse movimento são encontrados em segundo artigo assinado por Raul Cezar Bergold.
Em seguida, Jefferson de Oliveira Salles apresenta outro artigo, agora para tratar de
empresas colonizadoras que atuaram sobre o território paranaense no século XX, acessan-
do e dispondo suas terras em barganhas, promovidas pelo uso do Estado como instrumen-
to de enriquecimento das oligarquias políticas e econômicas, em seu proveito próprio, em
detrimento de camponeses e indígenas, insistindo em um modus operandi da colonização
que definiu a ilegal, ilegítima, injusta e violenta estrutura fundiária paranaense.

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Encerrando o segundo capitulo, Maria Lucia Brant de Carvalho utiliza algumas
de suas amplas fontes de pesquisa e vivencia na região, ao demonstrar como o governo
brasileiro, ao buscar a proteção das fronteiras geopolíticas do oeste paranaense na Trípli-
ce Fronteira, investiu no desenvolvimento econômico da região, e, para tanto, promoveu
verdadeira desconstrução do território Guarani, entre os anos 40 e 80 do século XX.
Discorre sobre o histórico de perdas de terras dos Avá-Guarani, nas quais as instituições
estatais estiveram envolvidas, fundamentalmente e não só na ditadura militar, como
atores principais do processo de colonização, período no qual todo o arcabouço existen-
te, referente a legislação indigenista, jamais foi cumprido pelo próprio governo, o qual
tutelava os indígenas, muito pelo contrário. Aponta que se o Executivo descumpriu a lei
no passado, o Judiciário mantém o status quo adquirido no presente.
O terceiro capítulo buscou uma interpretação mais aprofundada de um dos em-
preendimentos mais recentes e impactantes sobre o território Avá-Guarani: a hidrelétrica
binacional de Itaipu, concebida na década de 1970 e concluída na década seguinte,
inundando ao menos 32 aldeias guarani que sobreviveram aos anos anteriores de intensa
exploração e destruição. A usina representou uma tragédia para os Avá-Guarani não
apenas pela quantidade de terras alagadas, das quais também foram expulsos campo-
neses, mas principalmente pelas relações que passou a estabelecer com os indígenas, de
manifesto esbulho territorial e de sujeição a uma tutela ilegal e insustentável sob aspectos
econômicos ou culturais. “As Águas”, que sempre atraíram os Guarani, de onde sempre
brotou a vida, foram mortas para serem postas contra esse povo.
Inicia a advogada popular Bruna Balbi Gonçalves, que trata dos aspectos que
envolveram a opção pela construção da usina como projeto econômico e geopolítico
brasileiro, trazendo uma análise de Itaipu e o contexto que a precedeu, nacional e in-
ternacional. O nacional como reflexo das relações internacionais do Brasil, a submissão
aos Estados Unidos, à ditadura militar, à autocracia burguesa que assegurou crescimento
às elites e ampliou as desigualdades sociais. As disputas com os países vizinhos, com a
Argentina pela hegemonia regional e com o Paraguai pelo território e exploração das
riquezas. Itaipu como território de exceção, em que as moedas e as leis brasileiras e pa-
raguaias não são aplicáveis.
O segundo artigo do capítulo é de Diogo Andreola Serraglio, no qual são abor-
dados os impactos ambientais da usina hidrelétrica, sendo eles apresentados a partir de
uma aprofundada análise desse tipo de empreendimento e de Itaipu, a partir das suas
condições particulares, destacando-se a vasta área alagada, a repercussão para a fauna e
as modificações no microclima, que desafiam os propagandeados rendimentos econô-
micos proporcionados pela binacional, que são acessados apenas de maneira irrisória por
alguns indígenas sujeitados às imposições da empresa.
Os impactos sociais da hidrelétrica são apresentados no último artigo do capítulo,
sob a autoria de Danielle de Ouro Mamed, Angelaine Lemos e Flavia Donini Rossito.

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Ao abordar os impactos sociais de Itaipu, trazem primeiro as várias dificuldades enfren-
tadas pelos agricultores, para só então falar do problema trazido por Itaipu. O texto
revela o que enfrentaram os colonos, os pioneiros, que também foram massacrados e
explorados, perderam suas terras, não foram indenizados, para gerar concentração fun-
diária, concentração de recursos naturais, ainda que na mão da Itaipu, que se posiciona
como a grande benevolência da região, fonte de recursos a projetos e etc, quando na
verdade é a gestora de uma riqueza que deveria ser comum. Poucos anos depois de os
colonos desterrarem os indígenas, Itaipu desalojava os colonos, como um peixe grande
que come o peixe pequeno, mas depois é comido por outro maior.
O quarto e último capítulo apresenta a resistência, o povo Avá-Guarani neste
século XXI. “As Lutas” contempla as ações pela retomada das terras, as mobilizações
dentro do próprio Estado, que via de regra contribuiu e incentivou as marchas contra
os indígenas, para agora favorecer o reconhecimento dos Avá-Guarani, que ainda assim
sofrem para acessar os mais fundamentais direitos, mas que também vislumbram novas
políticas que podem favorecer a gestão de seus territórios.
Liana Amin Lima da Silva, ao tratar das violações dos direitos dos povos indíge-
nas durante a ditadura militar, especialmente a remoção forçada dos Avá Guarani com
a construção da Itaipu Binacional, defende a necessidade de uma justiça de transição
aos povos indígenas. Contextualiza o período de transição democrática, com o reco-
nhecimento dos direitos originários na Constituição de 1988, a atual conjuntura de
ameaças de retrocessos com a PEC 215 e o inconsistente critério do “marco temporal”.
Nos aponta as lições da Comissão Nacional da Verdade e a necessidade de se concretizar
medidas de reparação de danos morais coletivos, materiais e espirituais, garantias de
não repetição, inseridas numa política de reconhecimento e restituição de terras, com a
urgente conclusão do processo de demarcação da Tekoha Guasu Guavira.
Por sua vez, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, Raquel de Souza Ferreira Osowski,
Jefferson de Oliveira Salles e Edilene Coffaci Lima contribuem com uma síntese do Re-
latório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban. Tal comissão se in-
sere num contexto nacional (estimulado pela Comissão Nacional da Verdade) de tenta-
tivas de providências de justiça transicional do Estado brasileiro, com a documentação e
reconhecimento dos Estados das violações que seus agentes cometeram historicamente.
No texto de Adriele Fernanda Andrade Précoma, Caroline Barbosa Contente
Nogueira e Elis Cristina Alves Pereira, encontra-se descrito o processo de resistência
do povo Avá-Guarani diante de tamanha violência cultural, explorações e etnocídio,
além da notável pilhagem de seu território. Neste artigo é relatada a difícil caminhada
deste povo em busca da manutenção dos elementos mais fundamentais à sua sobrevi-
vência física e cultural, demonstrando que o desrespeito aos indígenas enquanto pessoas
não é um fato pretérito, mas, ao contrário, muito mais atual do que se poderia supor.
Além das marcas históricas impostas pela colonização, observa-se um discurso violento,

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carregado de ódio, dirigido a um povo pela sociedade atual diante de infundados argu-
mentos de que os indígenas pretendem expoliar as terras de todos, quando se sabe que
foi justamente o oposto que sempre ocorreu. Além disso, vê-se de maneira muito clara,
a total inefetividade dos direitos indígenas, arduamente constitucionalizados na Carta
Magna brasileira de 1988. Apesar dela, dos tratados internacionais e de toda a legislação
relacionada, a situação dos guarani no Oeste do Paraná demonstra que ainda estamos
muito distantes de tornar reais direitos tão lindamente desenhados nos documentos le-
gais: a começar pela falta de demarcação das terras, os indígenas permanecem alijados de
quaisquer direitos sociais, com precário ou nenhum acesso a direitos básicos como água
potável, luz elétrica, educação, alimentação e saúde.
Já Roberto dos Anjos Dias e Luciano Egídio Palagano encaram o desafio de propor
prospecções diante de uma futura e necessária demarcação da área em estudo. Os autores
defendem que a situação de extrema pobreza em que vivem os indígenas em muito se apóia
na exclusão territorial que sofrem. Porém, uma vez demarcado o território, se a demarcação
considerar um tamanho adequado ao desenvolvimento da população indígena local, ob-
serva-se que será necessária certa organização para a gestão do território, seja em relação aos
bens materiais quanto aos imateriais. Deste modo, os autores propõem uma reflexão acerca
de alternativas de gestão territorial através de premissas do etnodesenvolvimento, visando
fornecer aos povos indígenas a autonomia e protagonismo, valorizando as decisões a serem
tomadas pelos próprios povos em quanto ao seu território.
Assim vemos os Guarani no século XXI, depois de passarem por espanhóis e por-
tugueses, jesuítas, bandeirantes e adelantados, obrages, marcha para o oeste, colonizadoras,
Itaipu e até mesmo pela hostilidade atual da população não-indígena vizinha: permanece
a resistência. E o que poderiam ser depois de tudo isso que foi vivido, senão o fruto de um
processo colonizador destrutivo, que lhes outorga alguns pesquisadores que buscam se eman-
cipar com a mesma dedicação com que procuram compreendê-los, mas que não estão menos
sujeitos às mesmas concepções historicamente construídas e reforçadas?
Esse sufocante interesse que não pode oferecer mais do que uma tradução distor-
cida, equivocada, que sustenta a ideia do diálogo mediado e até constrangedor, porque
dependente de uma conversa que talvez fosse encerrada com perguntas sem qualquer
resposta. Sucessivos “o quê?”, “como?”, “por quê?”, quando?”, “quem?”, “onde?” tam-
bém não parecem ser o caminho para a compreensão, mas as vezes é difícil resistir à
tentação, e é talvez aí que se encontram grandes ensinamentos ou constrangimentos.

- O que é baecha?
- Como.
- O quê?
- Baecha.
- Sim, o que é baecha?

17
- Como.
- Como?
- Sim.
- Ah! E o que vocês respondem?
- Porã.
- Bonito!
- Não. Bom.
- Mas não tem cunhá porã?
- Sim. Cunhá porã, mulher bonita.
- E feia, como é?
- O quê?
- Feia, feio, como se diz?
- Como assim?
- Como se diz “cunhá feia”?
- Não tem mulher feia, só cunha porã!

Devem se cansar desses diálogos, então também os tornam divertidos, mesmo


que seja necessário envergonhar o curioso. Nas conversas mal entendidas em guarani, é
possível observar uma inegável falta de unanimidade e de consenso. Mas onde haveria?
Como em qualquer lugar, disputam as opiniões, os entendimentos a eloquência. E se
percebe a pergunta que ressoa entre eles: “quem são vocês?”. Seria como manter o ka-
raí (não-índio) aprisionado no consultório de psicanálise. Queremos que respondam a
grande pergunta de nossas vidas, pois buscar a resposta é tentar acompanhar de alguma
forma seu caminhar sob a luz. As diferentes versões para o que é um povo representam as
diferentes visões de cada ser humano quanto ao seu grupo e quanto a si próprio. Afinal,
como responderias se lhe perguntasse: “quem é você”? Crueldade maior, somente quan-
do a dúvida e o interesse diante da diferença são ignorados pela acusação: “vocês são...!”.
Para explicar ao karaí aquilo que um povo levou séculos para estabelecer, que pas-
sou do outro lado do espelho da história, o guarani apropria-se de outras línguas, do por-
tuguês e do espanhol, encerrando em poucas ou em apenas uma palavra a complexidade
de sua existência. E se sujeita a conformar ao discurso cristão a sua cosmovisão, para
possibilitar ao branco percorrer o seu próprio caminho seguro, mas encontrando nele o
indígena como próximo, como irmão. Mas quem se abre para compreender e conhecer
também se abre para se transformar, permite-se a conversão desejada por uma narrativa
nova, rebuscada com os velhos elementos que trazem alento, intuindo o entendimento
e a assimilação pela empatia e pelo partilhar.
Os karaikuera (os brancos, não índios), por sua vez, fizeram-se estabelecendo um
lugar e um tempo para o indígena em sua sociedade, com o que conformaram o outro e
a si próprios. Daí porque quando o indígena se revela da forma como ele se vê, karaí se

18
sente violado ou ao menos angustiado diante da desestruturação de seu mundo, o que o
leva às violentas e injustificáveis reações. É por isso que a edição da recente Lei número
13.178/2015, pela qual se bisca a ratificação sumária das ilegalidades praticadas na des-
tinação de terras públicas do oeste paranaense, contou com a negociação entre os mes-
mos agentes históricos das violações aos direitos indígenas, preterindo-se a participação
destes e dos camponeses, para em seguida, em sistemática ação política encampada por
grandes veículos de comunicação, passarem a proclamar a necessidade de se autorizar
a alienação das terras brasileiras a estrangeiros, como se isso fosse uma novidade que
incrementaria os índices de desenvolvimento nacional. Note-se a contrariedade desta
medida, defendida pelos mesmos que denunciam o que chamam de ‘invasão paraguaia’
ou sulmatogrossense praticadas por indígenas e sem terra ao Paraná.
De qualquer forma, depois de todo o esforço e com a autorização dos indígenas,
desejamos que este livro seja valioso pelo seu conteúdo, assim como pela circulação que
pretendemos promover com o intuito de que chegue ao máximo de pessoas essa tentati-
va de apresentar o histórico e a conjuntura do que é um massacre desavergonhado, um
genocídio, em que o indígena é sufocado e morto, sem ser percebido por uma sociedade
que prefere tapar os olhos e os ouvidos para não compreendê-los, angustiada que se en-
contra na pretensão de atender o que impôs a si mesma como desenvolvimento. Mas ao
mesmo tempo, é inegável que os Guarani, como fizeram nestes cinco séculos de invasão
de seus territórios, levantam-se e se fortalecem, resistem.
Por fim, vale destacar que pouco valor terá este trabalho se não houver (e ele não
contribuir, ainda que minimamente, dentro dos seus limites e do que se propõe) a de-
marcação das terras indígenas tradicionais dos Guarani do oeste do Paraná, nas quais eles
possam continuar sendo o povo que são. Como defendeu o cacique Anatálio Ortis, da
Tekoha Jevi, cansado das visitas de estudiosos: “Guarani não quer papel, não quer livro!
O único papel que o Guarani quer é o da demarcação de suas terras!”.

Curitiba, outubro de 2016.

Raul Cezar Bergold


Danielle de Ouro Mamed
Manuel Munhoz Caleiro

19
CAPÍTULO 1 - OS POVOS

Antigamente era o povo Guarani, não só um, era bastante, milhares


de Guaranis viviam aqui na América do Sul. Não era Brasil, nem Pa-
raguai, e nem Bolívia, nem Argentina. Agora vem Brasil e Paraguai e
proíbem a nossa cultura, proíbe de passar pra lá e pra cá.

Libório Garcia, liderança da Tekoha Nhemboetê


Foz do Iguaçu, 25 de novembro de 2014

Na realidade, foram tiradas a inocência, cultura, tradições e, por fim,


suas terras, ou seja, tiraram tudo e nada deram em troca. Mesmo as-
sim continuamos os nossos movimentos migratórios, que nada mais é
do que uma característica dos Avá Guarani. E também, até hoje, essa
procura pela Terra Sem Mal, uma terra estruturada nos nossos pen-
samentos. A Terra Sem Mal é uma síntese histórica e prática de uma
economia vivida profeticamente e de uma profecia realística, com os
pés no chão. A tradição, para nós, é uma profecia viva, a procura da
Terra sem Mal. Representamos a estrutura do nosso modo de pensar,
modo de ser, e de uma religião viva. Mesmo assim, hoje não somos
vistos como indígenas, muito menos como Avá Guarani, mas sim como
paraguaios. Com que direito os brancos podem dizer o que bem enten-
der ou fazer o que bem quiser?

Paulina Cunha Takua Rocay Ponhy Martines, liderança da Tekoha Y’Hovy


Foz do Iguaçu, 24 de novembro de 2014

21
ÑANDERU ORE MBOGUATAVÉ (Ñanderu nos faz seguir em frente)1

O guarani vive com seus irmãos em lugares onde pode encontrar o alimento,
caçar animais. Quando não podia mais encontrar alimento neste lugar, que foi quando
a Mate Laranjeira chegou, tentou fugir. O pai e o irmão da Teodora, que é nossa charyi
e que está com 89 anos, trabalhavam na Mate Laranjeira, que depois matou seus pais.
Então ela e seu irmão fugiram. Mas seus parentes estão na terra. Nem sempre sabemos
onde nascemos, mas sempre sabemos onde morremos.
Onde hoje é a Vila Guarani era uma aldeia, havia uma casa de reza e nossas
charyi e chamoi rezavam e batizavam as crianças. Essas crianças foram pegas, amarradas e
queimadas pela Mate Laranjeira. Somente depois é que se formou a vila e se instalaram
as casas e um posto de gasolina. Sob o asfalto da estrada que passa por ali está o osso
indígena. E são os nossos pais, em seu cemitério, que asseguram a terra. É aí que encon-
tramos a coragem para voltar para a nossa terra. Os espíritos deles vivem aqui e falam
com Ñanderu e nos ajudam a entender o que devemos fazer para ficar na terra. Então,
enquanto os espíritos conversam, nós voltamos com a guerra, com a força. E agora há
estudo para ver que essa terra é nossa.
No tempo da erva-mate aqui era tudo mato, não tinha cidade e plantação. O
branco entrava nas terras e corria atrás dos índios. Se ele pegasse os índios, segurava-os
para que trabalhassem de graça para a Mate. Foi aí que o irmão da Teodora fugiu com
ela, quando tudo ainda era mato. O irmão de Teodora trabalhava na Mate Laranjeira,
mas não recebia por isso e era ameaçado de morte sempre que exigia o pagamento. Ele
dizia que queria fazer um acerto, mas o patrão dizia que mataria ele. Nessa época o rio
Paraná era um riozinho. Somente depois que a Itaipu foi construída é que a água cresceu
e as aldeias que estavam nas margens do rio Paraná e as Sete Quedas, que chamávamos
de Paraguá, ficaram debaixo da água.
No ano de 2012, nós voltamos ao nosso antigo lugar guarani. Com muitos sofri-
mentos, nós alcançamos e nós vivemos num pedacinho de terra que as autoridades nos
deixaram utilizar. Os karaikuera, que são os brancos, chamaram o lugar de Vila Guarani,
onde que os nossos chamoi e nossas charyi rezavam e batizavam crianças e adultos.

1
O texto foi produzido a partir de conversas dos Avá-Guarani da Tekoha Guarani, no município de Guaíra, Paraná,
realizadas nos dias 20 e 21 de maio de 2016. Essas conversas partiram de um trabalho feito com os alunos da escola
indígena da aldeia, sendo mediadas, traduzidas e sistematizadas pelo cacique Teresio Ortega e pelo professor indíge-
na Adriano Benites, e depois transcritas pelos pesquisadores Bruna Balbi e Raul Cezar Bergold. A Tekoha Guarani
atualmente tem 19 famílias e 96 moradores, instalados ao longo da divisa de duas grandes fazendas no município de
Guaíra. A área ocupada pela aldeia é de aproximadamente 110 hectares, dos quais 80 hectares representam um dos
maiores remanescentes florestais de toda a região, espremido entre grandes lavouras de monocultura do agronegócio.
Nos municípios de Terras Roxa e Guaíra, onde se localizam 13 aldeias guarani, restaram menos de 4,14% do bioma da
Mata Atlântica, que cobria toda a região, conforme dados da Fundação SOS Mata Atlântica (Disponível em: <http://
mapas.sosma.org.br/>. Acesso em: 09 jun. 2016).

22
Agora, os karaí não querem nos ouvir. E fizeram um papel que chamam de “político”.

E fizeram para nós um documento, chamado “registros pessoais”.


Porque tem uma regra, que chamam de “lei”.
Têm autoridade responsável, chamada de “governo federal”.
Eles querem que nós, família indígena, ensinemos como o branco.
E chamaram de “educação escolar”.

Antes, não havia educação escolar. Chamoi e charyi eram professores, que ensi-
navam falando e vivendo. Uma criança de 6º ano, hoje, sabe escrever e ler em portu-
guês, mas não consegue escrever e ler em guarani, porque a educação escolar doutrina
a criança no mundo dos karaikuera, que falam português e que precisam escrever o que
falam. Por isso, quando nós falamos os karaikuera não nos ouvem, não nos entendem.
Para tudo o que precisamos fazer é preciso que nós assinemos, que nós escrevamos. Não
basta falar, menos ainda falar em guarani. Se um guarani não sabe assinar, outro guarani
não pode assinar por ele, mesmo que isso seja falado e acordado na frente do karaí, que
exigirá um documento que ele chama de “procuração”. A gente pode falar em guarani.
Mas ninguém entende. O chamoi Belino não poderia falar em guarani com o juiz, mas
ele não sabe português, já tem mais de oitenta anos. Explicamos que foi o karaí que
nos ensinou o português, que não sabíamos, então o juiz foi obrigado a aceitar que ele
falasse em guarani e fosse traduzido por outro indígena. Nossas crianças todas falam o
português, porque são ensinadas em português na escola obrigatória. Mesmo assim, na
aldeia só falam em guarani. Ninguém fala em português na tekoha. Mas na cidade, há
lugares em que não podem falar em guarani, como na escola. Há paraguaios na escola,
que preferem falar em guarani e por isso conversam com os indígenas. Então, os profes-
sores advertem que não podem falar em guarani, somente em português. É como se não
deixássemos os karaikuera que vêm à tekoha falar em português, somente em guarani.
Agora já temos quatro anos de sofrimentos com as nossas famílias em nossa terra,
porque os fazendeiros usam máquinas e venenos, que produzem doenças, constrangen-
do-nos a todo momento e para sempre. Há redes de fios de eletricidade que passam pela
aldeia e que destruíram remédios, rios e o mato. Debaixo das linhas de transmissão não
é possível construir moradias nem fazer plantios. Também, os karaikuera dificultaram
a instalação e o funcionamento de uma escola estadual na aldeia Guarani. Até agora,
não temos nada para a criança indígena. Não há transporte escolar dentro da aldeia. As
crianças precisam caminhar até quatro quilômetros para pegar o ônibus para a cidade de
Guaíra. Não podemos ter a terra, mas nossas crianças precisam ir à escola dos karaikuera,
onde são desrespeitadas e humilhadas, onde a sua cultura é folclore.
A Constituição fala que é direito dos indígenas a saúde, a educação e a cultura,
todos juntos. Mas na aldeia, não há saúde nem educação. E sem saúde e sem educação,

23
nem o índio nem o branco vivem. Sem cultura, o índio não vive, assim com o karaí não
vive sem a sua igreja, sem a sua bíblia. As nossas charyi e os nossos chamoi têm a sua
bíblia também, só que no seu sentimento. Eles rezam para conversar com Ñanderu, que
nos orienta, que nos faz seguir em frente. Foram os chamoi e as charyi que receberam a
mensagem de Ñanderu dizendo para nós voltarmos para essa terra:

– Têm que voltar para o seu lugar. Lá é o seu lugar e lá vocês devem ficar.

Esse é o sistema do guarani, orientado por Ñanderu. Assim nós vivemos na casa aldeia
Guarani. Temos um rio chamado Forquilha, onde nós pegamos água e tomamos banho. No
rio há peixes e um lugar para pescar. Outro rio que passa pela aldeia é o Água do Bugre, que
deságua no rio Forquilha. Há também o ka’aguy, o mato, onde encontramos todos os remé-
dios que precisamos. Um dos remédios nós chamamos yvyra’rapoju, que é a espinheira santa,
usado para dores de barriga, feridas, dores de coluna. Utilizamos a raiz descascada colocada
na água. Outro se chama yvyra’ryaguã, que é o olho-pardo, que é bom para as doenças que o
médico karaí não consegue diagnosticar, sendo prescrito pelos chamoi e pelas charyi. Outro
remédio é o yvyra’pepẽ, o alecrim, usado para tosses secas. Além disso, seus galhos são utiliza-
dos para fazer a ponta das flechas. E temos vários outros remédios.
Há macaúbas, um tipo de palmeira cujas folhas servem para fazer linhas e cordas,
as quais são usadas em colares, amarrações, arcos e armadilhas. O tronco deixado no
mato cria o coró, que é gostoso de comer e cujo óleo é ministrado aos recém-nascidos,
para curar feridas. A erva-mate, que trouxe os karaiquera para cá, foi toda cortada, não
sobrou nenhum pé. Hoje, para tomarmos um tererê ou um chimarrão temos que com-
prar a erva. Há coqueiros, que fornecem tronco para a parede das casas, palmito e folhas,
estas utilizadas para a cobertura das casas e para fazer armadilhas. No seu tronco cortado
também se criam corós. Os galhos das folhas podem ser utilizados para fazer fogo. Com
o fruto do coqueiro fazemos um tipo de chicha, a bebida sagrada. O uso da chicha não é
um costume ou um hábito, não diz respeito às pessoas. A chicha é de Ñanderu, ele que
diz quando e por que prepará-la, pois é sagrada.
As doenças dos indígenas são diferentes das doenças dos brancos e para serem
curadas necessitam da consulta do chamoi ou charyi, que falam que existem várias doen-
ças que os médicos karaí ou que os doentes não sabem explicar. Somente Ñanderu sabe
e orienta charyi sobre o que fazer, mesmo sem dar um nome para a doença ou para o
remédio, porque é feita uma cura espiritual.
Nós chamamos uns aos outros de parente ou de irmão. Todos são irmãos. Antes a
gente se visitava bastante, andava de uma aldeia para outra, morando por um tempo em
lugares diferentes. Nós chegávamos e conversávamos com os chamoi para que nos autorizas-
sem ficar. Os chamoi dominam pela cultura, não pela força. São os líderes espirituais. Mas
depois que iniciou a educação escolar, isso acabou, porque a mãe recebe o Bolsa Família e as

24
crianças não podem deixar de ir a escola. Existe uma intervenção dos karaikuera no modo de
nós cuidarmos de nossas crianças, mas é difícil para entendermos como eles querem que nós
façamos isso, porque nós não aprendemos como os brancos, nós aprendemos outras coisas.
Os karaikuera exigem que a gente siga as suas leis, que as crianças têm que estudar,
com ou sem demarcação de terras. Mas não cumprem a lei de demarcação das terras
e de proteção dos nossos costumes. A Constituição não é cumprida pelo branco, que
inventou ela. O indígena não tem direito à educação, à saúde e à moradia como os ka-
raikuera. Querem que respeitemos as leis dos brancos, mas não querem sequer conhecer
as nossas leis, as leis dos indígenas, quanto menos respeitar as nossas leis. Os karaikuera
não querem entender como vivem os indígenas, então não poderiam querer mandar nos
indígenas. E não cumprem a sua própria lei que inventaram para proteger o indígena da
forma como eles pensaram ser necessária.
Se a Constituição fosse colocada em prática, se fosse respeitada, já seria bom para
nós. Mas os indígenas não sabem quais direitos inventaram para eles. Os karaikuera
colocaram no papel as leis, em português, para que a gente tivesse que ler. Em 1974
para 1975 começou a escola para ensinar os indígenas, inclusive jovens e adultos, a ler e
escrever como os brancos, mas somente ensinavam até a 4ª série. Ensinam a gente não
para o que queremos, mas para aquilo que os brancos querem que sejamos e façamos.
Teodora explicou que o registro do indígena, o seu carimbo de nascimento, é o
batismo realizado pelos chamoi e pelas charyi, que concedem o nome dado por Ñande-
ru, após rezar por sete dias. Os pais rezam juntos, para receber o nome e dar autoridade
à charyi e ao chamoi. O batismo é feito somente após a meia-noite. A bandeira indígena
não é mesma do Brasil, dos karaí. Nossa bandeira é yvyrakatu, uma árvore rara cuja
casca e folhas são combinadas com o yary, que é o cedro, no preparo de remédio para o
batismo das crianças guarani. Para o batismo, é acesa araity, uma vela feita com cera de
jateí. O akanguaá, que é o cocar, a mbaraka, e a takua são instrumentos utilizados nas
rezas para falar com Ñanderu. Em algumas rezas é fumado o pety, um charuto de tabaco.
Os nomes não são colocados no papel, mas no coração.
Como não nasceram guarani, ainda que os karaikuera estudem trinta anos, não
vão entender a cultura guarani. Não vão entender o que os chamoi e as charyi estão fa-
zendo, porque nem os outros guarani compreendem a relação de seus mestres espirituais
com Ñanderu.
As demais aldeias de Guaíra e Terra Roxa, que conosco formam o que chamamos de
Tekoha Guasu Guavira, mantêm a mesma cultura guarani, com as suas características que
nos diferenciam e justificam a existência de aldeias separadas. Passamos todos pela mesma
situação, de não podermos mais viver nas terras em que nosso povo viveu, onde nascemos,
onde convivemos uns com os outros, onde morremos. Enfim, onde somos guarani, apesar da
imposição de leis e da negação de direitos. Essas são as nossas palavras pelas quais passamos a
verdade recebida em nossas rezas, para caminharmos juntos e sermos guarani.

25
OPAMBA’E ÑANDERU REMBIAPO MEME (Tudo foi Ñanderu quem fez) 2

A nossa luta, além da luta física pela terra, é uma luta espiritual. Hoje, esse lugar
entre Guaíra e Terra Roxa é o ponto ideal para vivermos, pois é território Guarani, onde
sempre vivemos, ainda que espalhados em grupos. No passado éramos organizados em
uma aldeia central, onde tinha uma casa de reza grande, e em outros grupos menores,
onde tinham casas de reza também. Hoje em Guaíra as coisas não são mais assim, a falta
da terra demarcada é uma cerca, uma barreira, que nos impede de viver de acordo com
nossa cultura como antigamente. O certo era ser como no passado, mas hoje não dá mais
pra ser assim. Mas ainda sabemos como era. Os jurua dizem que não somos índios, que
estamos nos aculturando, mas não é isso.
O que acontece é que muitas vezes a falta da terra nos traz dúvidas até onde pode-
mos ocupar, pescar, caçar, de onde trazer remédio, pois o que não tem de remédio aqui
na Tekoha Y’Hovy pode ter em outro pedaço de mata, mas não podemos sair para buscar
porque o jurua (branco, não indígena) não deixa. Antigamente existia o Tape Marãe’y,
caminho que Ñanderu (Deus) percorreu quando estava na terra, que o jurua chama de
caminho do Peabiru, ele passava aqui nesta região. Os Guarani tinham encontrado o
caminho para Yvy Marãe’y (Terra Sem Mal), que era onde ficava o Salto das Sete Quedas,
que era chamado de Pokõi Ysyry.
Lá, junto com as quedas d’água, no meio, tinha uma caverna onde os Guarani
iam para fazer as rezas. Nesse local pessoas impuras não podiam entrar, lá entrava so-
mente as pessoas de alma pura, os chamõi (rezadores) e charyi (rezadoras). Um outro
local, que era mais perto de Foz do Iguaçu, era Itaipyte, a pedra onde foi construída a
barragem de ITAIPU, ela foi construída em cima da pedra. Era outro local sagrado e que
era um outro caminho para chegar em Yvy Marãe’y. Sobre os dois locais, vem a questão
do impacto espiritual que ITAIPU nos causou pela inundação, porque naquele tempo os
rezadores e rezadoras não precisavam fazer tanto esforço para ter contato com Ñanderu.
Através destes dois lugares sagrados, a comunicação com ele era mais fácil, a sua voz era
mais fácil de ouvir. Existem raios que vem do céu e que ligam ele à terra. Com esses dois
locais visíveis era mais fácil de falar com Ñanderu. Nesses dois lugares tinha cura mais
rápida também, assim como dava pra saber o que aconteceria no futuro. Os chamõi e
charyi conseguiam captar tudo isso mais rápido, com mais facilidade.
Depois da inundação, ficou mais difícil nosso contato com Ñanderu. Antiga-
mente, quando tinha esses dois locais, tinha bastante chamõi e charyi, novos e velhos. Os
velhos conseguiam trabalhar com os dons dos jovens com mais facilidade. Hoje em dia é

2
Este texto foi transcrito por Manuel Munhoz Caleiro, nos dias 26 e 27 de outubro de 2016, na Tekoha Y’Hovy, Guaíra,
extremo oeste do Paraná. Seu conteúdo foi previamente discutido pela comunidade em reuniões anteriores, sendo então
produzido e posteriormente revisado pelas lideranças Paulina Cunha Takua Rocay Ponhy Martines, Ilson Soares, Wilfrido
Benites Espinola, Gessica Martines Tseremeywa, Vilma Vera e Gilberto Maciel.

26
difícil de ver jovem rezador, tanto menina quanto menino, pois eles têm dificuldade de
desenvolver o dom, o que é muito triste, pois precisamos muito de rezadores. A inun-
dação causou um impacto espiritual muito grande, com palavras que não conseguimos
explicar em português. Ela afeta também a questão da salvação após a morte, pois, na
nossa crença, se uma pessoa morre e é enterrada perto desse lugar sagrado, tínhamos cer-
teza absoluta que sua alma já estava num lugar onde pudesse descansar junto a Ñanderu.
Por isso até hoje, na nossa crença, se nós morremos, temos que ser enterrados
próximos do local onde nossos antepassados estão enterrados, não pode ser em qual-
quer lugar e muito menos no meio do cemitério dos brancos, tem que ser no cemitério
Guarani. Também por esta necessidade espiritual precisamos do nosso território, para
enterrar nossos parentes perto dos antepassados e de nós, para suas almas estarem com
os outros parentes em Yvy Marãe’y. Mas hoje infelizmente as leis dos jurua não nos per-
mitem fazer isso, mas fazemos. Aqui na Tekoha Y’Hovy o cacique teve que enfrentar um
processo na justiça dos jurua por ter enterrado nosso primeiro parente que faleceu aqui.
Foi complicado com as autoridades, mas enterramos aqui porque está mais perto do
local sagrado. Aqui ainda não é o ideal, seria melhor em locais mais próximos de Pokõi
Ysyry, mas aqui já está bom.
A nossa ligação com a terra é muito forte, tudo aquilo que tem nela são nossos
irmãos. As árvores e os bichos vêm de muito tempo atrás, desde nossa origem, quando
Ñanderu andava pela Terra. Não existem dois deuses, é somente um, o nosso e dos bran-
cos é o mesmo, Ñanderu. Quando ele estava na terra, tinha uma esposa e dois filhos,
que ainda estavam na barriga dela, Kuarahy (sol) e Jasy (lua). Ñanderu resolveu ir pro céu
porque a esposa não acreditou nele em certo dia. Ele havia feito a roça no dia anterior,
plantou um monte de coisas. No dia seguinte, na beira do fogo, ele disse: “vá na roça
trazer feijão, batata doce e milho”. Como ele tinha feito a roça no dia anterior, ela não
acreditou que teria algo pra colher. Ele então ficou quieto, enquanto ela foi na roça e
viu que estava tudo pronto, do jeito que ele falou. Mas quando ela voltou da roça, ele já
tinha saído de casa, tinha desmanchado o oga guasu (casa de reza) e o tataindy’y (altar),
tinha pego o mbaraka (maraca) e as penas de papagaio, para fincar por onde passava,
para traçar uma estrada estreita, qual ele mesmo chamou de Tape Marãe’y. Ela ficaria
para aqueles que no dia em que se cansar desta terra, pudesse trilhar o mesmo caminho
que ele fez para chegar a Yvy Marãe’y. Até hoje, com certeza, seria possível caminhar por
esta estrada se os jurua não tivessem vindo para este território Guarani (América do Sul).
Por que, desde de sempre, o limite para nós é o paraguasu (mar), mas para os jurua não
existem limites, nem o mar, nem o sol e nem o próprio Ñanderu.
Quando a esposa de Ñanderu voltou da roça, ele não estava mais em casa. Ele
saiu e foi para o céu, não precisou morrer para ir até lá. Ela voltou e queria saber o que
tinha acontecido, o altar estava desmanchado. Foi quando as crianças que estavam na
barriga falaram com ela. Disseram que ele tinha ido embora. As crianças mostraram para

27
ela por onde ele tinha ido. Mas a esposa de Ñanderu foi morta por Jaguarete Jaryi, um
espírito muito ruim, mas Kuarahy e Jasy sobreviveram. Jaguarete Jaryi e um grupo de
espíritos do mal queriam comer as duas crianças que sobreviveram. Primeiro colocaram
eles, Kuarahy e Jasy, no pilão para amassar, mas eles fugiram. Depois colocaram no fogo,
mas eles apagaram. Tentaram ainda colocar eles no espeto, mas ele não entrava neles. Aí
resolveram criar as duas crianças, Kuarahy e Jasy, que eram Guarani.
Quando eles cresceram, permaneceram no grupo dos espíritos do mal. Eles sem-
pre falavam para as crianças não entrarem numa parte do mato, que tinha muita abelha,
elas poderiam picar e eles poderiam ficar muito doentes. Mas um dia, por curiosidade,
entraram na mata e não tinha abelha, só tinha um monte de tipos de papagaio. Primeiro
entrou Jasy, atirando as flechas, mas não acertou nenhuma, os papagaios desviaram.
Então um papagaio falou com ele, disse que eles estavam cuidando e alimentando um
grupo de espíritos maus que tinham matado a mãe deles. Jasy ficou triste e chamou o
irmão, Kuarahy, e contou a história, o papagaio confirmou. Os dois se abraçaram e cho-
raram muito antes de voltar para o grupo.
Quando voltaram, um dos espítitos maus perguntou o que tinha acontecido com
eles, estavam com os olhos inchados de chorar, mas disseram que foi abelha que picou.
Então eles resolveram sair desse grupo e quase conseguiram eliminar ele, só sobrou um
espírito do mal, que até hoje existe. Quando saíram, foram criando com o poder e com
o dom as árvores e dando nomes pra elas, bichos também, rios e mais rios. No decorrer
dessa caminhada fizeram uma menina, à partir de um chocalho e um pouco de terra.
Mas o espírito mal que sobrou perseguia eles por onde eles iam, mas eles sabiam disso e
tentavam eliminar ele.
Num certo dia, era para Kuarahy ter ido no rio para virar um peixe, mas Jasy foi
no seu lugar, virou um peixe e o espírito do mal pescou ele e matou para comer. Então
Kuarahy foi obrigado a se aproximar do espírito do mal, chegou perto dele e pediu para
que ele não jogasse fora nenhum osso de peixe. O espírito do mal convidou Kuarahy pra
comer junto, mas ele só queria pegar os ossos de volta. Ele também pediu um pouco de
massa de milho. Com os ossos e a massa montou tudo de novo, fez um formato de pei-
xe, fazendo as tripas e o cérebro, ressuscitando Jasy. Depois disso, Jasy voltou a ser uma
pessoa, não ficou como um peixe. Até hoje, Jasy revive a mesma história, sendo que os
jurua dão nomes às suas fases: lua nova, minguante, crescente e cheia.
Depois de Jasy ressucitar, ele e Kuarahy fizeram uma armadilha pra pegar o espí-
rito do mal e, nessa tentativa, conseguiram. Quando pegaram ele, ele disse: “vocês estão
procurando o pai de vocês?” Aí ele disse que sabia onde estava o pai deles, sendo que os
três caminharam em busca do caminho onde o pai deles foi. O espírito do mal mostrou
o caminho, eles foram atrás de Ñanderu, a menina junto com eles. Quando eles che-
garam ao local, ainda aqui na terra, onde Ñanderu subiu pro céu, eles fincaram flechas
no céu, uma atrás da outra, para fazer um caminho. Mandaram o espírito do mal subir

28
primeiro, e ele foi, depois foi a menina. Quando ela foi subindo, numa certa altura, Jasy
tirou sarro (olhou em baixo da saia dela), ela ficou brava e desceu. Jasy subiu primeiro e
depois Kuarahy, que foi tirando as flechas e a menina ficou por não ter como ir com eles.
Quando eles chegaram ao céu, começou o surgimento de maravilhas, pois no
começo eram só as religiões indígenas. Lá do alto Ñanderu via o que estava acontecendo,
inclusive o jurua brigando um com o outro, um mais poderoso que o outro, um maltra-
tando o outro, tinha guerra e morte. Nesse momento, segundo os chamõi e charyi, Ñan-
deru, Kuarahy e Jasy pensarem na possibilidade de fazer com que as pessoas acreditassem
que havia um deus que dominava os céus e a terra, que não era o ser humano que podia
dominar tudo. Aí fizeram um boneco, no formato de um outro ser, e se perguntaram
como chamar ele. O menino, Jasy disse: “se eu me chamo Jasy, porque não chamamos
ele Jesu?”. Talvez Jesu seja o Jesus que os jurua falam. Naquele momento, surgiria uma
nova religião verdadeira, para que os jurua pudesem também conhecer o caminho que
os leva até Ñanderu.
A menina que ficou na terra por não ter conseguido subir pelo caminho de flechas
se transformou num pássaro chamado urutau. Todo dia, quando o sol está sumindo no
final da tarde, urutau começa a cantar, mas na verdade ela está chorando porque pensava
que os irmãos voltariam para buscar e não voltaramm as até hoje ela ainda tem esta espe-
rança. Essa nossa religião vem do tempo que Ñanderu andava pela terra. A casa de reza
e o altar tinham o mesmo formato que usamos hoje. Foi ele que fez tudo isso, os cantos
que temos. Hoje nós continuamos preservando e praticando essa religião que ele nos
deixou. Dessa forma, nós pedimos e agradecemos através dos cânticos, essa é a forma que
ele nos ensinou. Nada disso é uma invenção. Não é demoníaco como algumas vezes as
pessoas falam, principalmente alguns jurua. Teve a época que os indígenas subiam ao céu
sem morrer, bem antes da chegada dos jurua. Nessa época, outros Guarani caminharam
sobre o mar, são os mbya. Nós, ava, fomos os que subimos ao céu com a casa de reza.
Durante essa subida alguns, Guarani resolveram descer de novo para buscar al-
gumas coisas que tinham deixado para trás, como alguns bichos de árvore que tinham
caído, e esses Guarani se transformaram em tatu. Outros quiseram buscar água na beira
do rio e se transformaram em syryko (saracura), que vive beirando o rio. Outros voltaram
pra tirar o mel e levar de volta para o céu, mas se transformaram em eirá (gato moro).
Eles eram inocentes na época que essas coisas aconteceram, pois subiram ao céu vivos e
sem pecado, não comiam sal e nem óleo, não tinham ganância, inveja e ciúme. Tudo isso
eles não conheciam, viviam em harmonia entre eles e com a natureza. Tudo que iriam
fazer, pediam autorização pra Ñanderu.
Na nossa atualidade, tudo que os chamõi e charyi vão fazer, antes eles pedem pra
Ñanderu. Se vão derrubar uma árvore, pedem para ele e falam para a árvore o motivo
que estão derrubando ela e a pedem perdão. Se vão pegar mel, pedem perdão para as abe-
lhas. Pedem autorização pra Ñanderu para fazer tudo isso. Para caçar, ao fazer uma ar-

29
madilha, contam e pedem pra Ñanderu. Até agora, tudo o que tem na natureza, criação
de Ñanderu, é tudo parte dele, tudo coisa dele. A caça, por exemplo, não pode ser em
quantidade exagerada, tem que ser somente o necessário. Tudo que tem aqui na terra, as
florestas, os animais e os pássaros são seres como um de nós, que se transformaram. Não
podemos matar eles sem motivo e temos que explicar porque estamos matando. O reza-
dor mais forte que tem é mborevi (anta), que não tem mais por aqui. Se tivesse, a gente
não poderia matar sem antes fazer um ritual e uma purificação. Se matar mborevi, sem
antes pedir pro rezador ou rezadora fazer o ritual, em troca da alma da anta podemos
perder um de nossos filhos, pois tudo é uma troca. Não podemos fazer algo só porque
queremos, devemos pensar nas consequências, porque a gente paga de alguma forma.
O mundo é assim e sempre foi, só os jurua não percebem. Quando fazemos alguma
coisa, por consequencia, perdemos outra. Até hoje a gente tenta viver sem ganância, ela é o
pecado maior. Dinheiro não foi Ñanderu que criou, por isso a gente não faz coisas para lu-
crar, como plantar em quantidade enorme e vender. Nem pensamos nessa possibilidade, pois
não é da nossa cultura. Nesse mundo dos jurua eles não entendem: pra que apoiar o povo e
o território Guarani? Que resultado isso vai dar? O que vamos lucrar com isso? Por isso, por
não entenderem, o governo desde o passado e até hoje fala que não contribuímos economi-
camente para o país. E não contribuímos mesmo, pois não temos a idéia capitalismo. A gente
vive de acordo com o que Ñanderu ensinou, é desse jeito que tem que ser.
O que deixaremos para os filhos quando morrermos? Não vai ser herança em
dinheiro, mas deixaremos a terra onde vivemos, as nossas histórias, as nossas memórias
que se mantém vivas através dos contos que os mais velhos deixam para nós e que um dia
repassaremos para as próximas gerações. A herança em terra a gente deixa para os nossos
filhos e netos, para que eles alcancem esse descanso na Yvy Marãe’y. Por isso batalhamos
e queremos de volta nosso território, onde os nossos antepassados nasceram. Queremos
que nossos filhos e netos sigam pelo mesmo caminho que fomos e nós queremos seguir
o mesmo caminho dos nossos antepassados.
Nossa luta é diária, espiritual, física, política. Ela tem vários sentidos. Para que te-
mos que rezar hoje? Porque não sabemos o dia de amanhã. Temos que rezar junto com os
rezadores e rezadoras, para viver de acordo com os conselhos dos mais velhos, por isso a
gente necessita da casa de reza. No nosso caso, da Tekoha Y’Hovy, vivemos entre a cidade e
a vila, estamos no meio. Nunca temos silêncio que precisamos na casa de reza, escutamos
tiros, carro de som, barulho de moto, música de baile, microfone de igreja. Tudo se torna
uma disputa de barulhos e jurua precisa entender que Ñhanderu não é surdo, não precisa
fazer barulho para rezar. Na nossa reza, precisamos apenas de silêncio e de um cântico que
não é alto, que não incomoda ninguém. Temos só um chocalho e a taquara, é um barulho
pequeno. Esse barulho não toca o ar, toca a mãe terra. Quando socamos a taquara no chão,
quando tocamos nele ao dançar e cantar, isso bate no chão e o eco vai na floresta, que se
junta conosco. Somente à partir da mata o som vai para o céu.

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Hoje em dia não temos esse silêncio que necessitamos. A falta da demarcação de
terras é a grande barreira que nos limita, pois nas pequenas áreas de mata que temos não
tem os remédios que antigamente tínhamos. As vezes encontramos alguns em outras
aldeias e acampamentos, mas nem sempre. Hoje, aqui na região, só tem plantação de
soja, a perder de vista. Do outro lado tem a cidade e ficamos cercados. Se a terra for de-
marcada, queremos mesmo que as lavouras dos jurua fiquem dentro da área demarcada.
“Pra que vão querer? Eles não plantam, são vagabundos!” Queremos as lavouras dentro
da área demarcada para que elas virem mato. A floresta vem por si própria, ela não pre-
cisa de engenheiro florestal jurua e nada disso. Só queremos ter de volta a natureza para
que tenhamos todos os tipos de árvores que tínhamos, assim como os bichos e pássaros.
Branco fala que a fé move montanhas e é mais ou menos por aí. Temos cânticos
para cada coisa. Por exemplo, no mês de outubro mais ou menos, vem essa tempestade,
raio, vento e chuva. Jurua acha que tem a explicação climática, mas nós sabemos que
tudo isso vem em outubro pra trazer pássaros. Nessa época vêm o tuguai jetapa (tesourei-
ro, tesourinha) e mbyju’i (coitelinho, beija-flor). Para eles, a terra fornece sua comida, ysa
(sauva voadora). Queremos é que as lavouras virem mato para que os pássaros tenham
onde ficar, eles não ficam na soja. Através de nossa fé e nossos cânticos a mata vai se
recuperar, o governo não precisa trazer nada de zoológico, os bichos vêm naturalmente,
por Ñanderu, pois ele vê a necessidade dos povos indígenas, ele sabe o que precisamos.
O que está acabando com os animais são as plantações enormes com uso de vene-
no, que em Guaíra e Terra Roxa é muito forte. Os jurua não podem acabar com a mata,
ela não é deles. Jurua acha que é loucura, mas os chamoi kuera falam que na verdade
quem pede a chuva pra Ñanderu são as árvores e bichos, eles têm sede e precisam da
água. As vezes, vemos só uma árvore no meio da lavoura de soja: de onde vem água pra
ela? De lugar nenhum, se ao invés de jogar água jogam veneno, ela pede socorro e jurua
não precebe, somente Ñanderu. Se ainda chove, é pelo pedido da mata e dos animais. As
vezes nós Guarani esquecemos de pedir pela chuva, agora que temos torneira e chuveiro.
Só quem não tem essas coisas vai tomar banho no rio, corremos o risco de esquecer isso.
Se não chover mais, nada vai sobreviver. A água da chuva que desce na terra, aqui mesmo
na lavoura de soja, desce suja com veneno, não é mais pura. E isso vai pro rio, pro mato,
para as crianças que tomam banho de chuva e se misturam com veneno. De todo lado a
gente sofre com as coisas que os jurua fazem.
Nós, Guarani, não queremos que a demarcação de nossas terras sejam decisão dos
senadores e deputados, porque se depender deles nunca teremos terras demarcadas. Não
temos representantes indígenas, somente os do agronegócio estão representados no Con-
gresso Nacional. A competência para a demarcação de terras deve ser mantida na FU-
NAI, com a homologação pela Presidência da República. Se não está bom do jeito que
está hoje, ficaria muito pior se mudassem isso. Como hoje não temos mais nossas curas
totalmente com remédios da natureza, com na medicina natual que tínhamos, o governo

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dos jurua tem que manter o órgão que trabalha com a saúde indígena, pois precisamos
do atendimento deste órgão. No pouco floresta que temos não encontramos mais todos
os tipos de remédios para cura. Se destruíram a natureza que usávamos para termos
remédios, eles têm que gastar dinheiro com a nossa saúde, ela não é jogar dinheiro fora.
Jogar dinheiro fora é o que fazem com a corrupção, roubando o dinheiro do povo.
Se fosse pra reivindicar um território Guarani como era antes, ele vai muito mais
além do que Guaíra e Terra Roxa, pois os nossos antepassados vivam dos dois lados
do Rio Paraná (Paragua ou Paragua’y, os nomes que damos), eles sabiam que o rio vai
pro mar. Se fosse pra reinvincar o território era Guaíra, Terra Roxa, Toledo, Cascavel,
Marechal, Mercedes, Santa Terezinha, Santa Helena, Foz do Iguaçu, São Miguel, Mato
Grosso do Sul e por aí vai. O território Guarani não se limita, a própria palavra territó-
rio, mesmo em português, não tem limite. Desde sempre, os Guarani sempre andaram
muito. Se até hoje tivéssemos liberdade de andar e mudar de um lugar pro outro, não
saberíamos nem onde estaríamos hoje. Muito provavelmente montando um barraco e
fazendo um fogo perto de um rio, pra comer peixe assado. Território para Guarani não é
só a casa, mas onde ele andava, onde caçava, enfim, onde tivesse abundância. Tudo isso
é território. Nenhum lugar onde o Guarani viveu ficaria de fora, se fosse cumprir o que
a Constituição manda. Mas jurua não cumpre, ele faz a Constituição para não cumprir.
Até mesmo se formos visitar os parentes no Paraguai ou Mato Grosso do Sul, esses
já eram os trajetos que fazíamos no passado, no território que era do nosso povo. Mas
hoje não temos essa liberdade de falar isso para o jurua, para as autoridades. Os jurua
falam que, para demarcar a terra, tem que fazer estudo, encontrar osso, urna funerária.
Aí uns outros jurua dizem que a FUNAI trouxe osso antigo da Amazônia. A FUNAI mal
tem dinheiro para pagar a gasolina dos carros e ainda é acusada disso, chega a ser uma
piada, essas coisas não têm fundamento.
Na demarcação, quando fazem o estudo, só o que a gente fala tinha que valer, pois
nós é que sabemos a nossa história, por onde andávamos, os atalhos que pegávamos. E
dizemos mais: a urna e o osso Guarani, se o jurua achar isso amontoado num lugar só,
é porque ali era o cemitério. No passado não era como hoje, que enterramos aqui na
Tekoha Y’Hovy os que viveram aqui, e assim é em cada comunidade. No passado, quan-
do tinha a aldeia central e as outras espalhadas, tínhamos um local único pra entetrrar
os parentes mortos. Tinha que levar, ainda que fosse longe e demorasse um dia inteiro
carregando o corpo. Seria melhor ainda se fosse longe, pois carregar o corpo do parente
que morreu e andar atrás dele é um sacrifício, que Ñanderu reconhece, e isso conta pra
que a gente chegue bem em Yvy Marãe’y. Quanto maior o sacrifício, melhor. Aqui na re-
gião, isso fica visível pro lado do rio Paraná, na Tekoha Jevy, Tekoha Marangatu e Tekoha
Ñemboete, que era a velha Cidade Real do Guairá. Esses lugares são para onde levavam
os parentes mortos. Se encontrar um osso espalhado fora desse lugar, é Guarani que foi
morto pelos jurua e que não foi enterrado pelos Guarani.

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A questão da nossa língua, que os jurua julgam ser paraguaio, é uma mentira. Se
vier um paraguaio falar comigo em Guarani, eu entendo muito pouco, pois eles falam
muito rápido e não falam do jeito que os Avá-Guarani falam. Eles falam outro tipo de
Guarani, mas nós temos a nossa língua Avá-Guarani, que é diferente. E os paraguaios
que vivem nas cidades do Paraguai não são Guarani, são jurua que aprenderam falar
Guarani. E muitas palavras que eles usam nós não usamos. Eles têm nome em Guarani
para o celular, falam que é ñe’êmbyry. Chamam a televisão de ta’anga ryryi. Não temos
essas palavras, não é nossa língua, não usamos elas. Lá agora eles têm lei e obrigação de
falar e aprender a língua Guarani, mas os que vivem nas cidades são jurua.
Então, quando os jurua falam que não estamos falando na nossa lingua ma-
terna, é mentira, tem diferenças nas palavras, na forma de dizer, diferenças muito
grandes, como existem diferenças de região pra outra, mesmo sendo do mesmo povo
Guarani, assim como no português. Jurua do sul vai pra amazônia e pede alguma coisa
no mercado, não vão entender tudo não. Não podem julgar ou criticar nossa forma de
falar, somos nós que sabemos dela e isso deve ser respeitado. Nas manifestações que a
gente faz na cidade pelos nossos direitos, dizem que não somos daqui e mandam voltar
de onde viemos. Onde será nosso lugar? Seria do outro lado do mar? Claro que não,
somos daqui. E o lugar de onde eles vêm, onde será? É do outro lado do mar. Eles não
são daqui, mas daria para viver todo mundo, Guarani e jurua. A terra que Ñanderu
fez é suficiente para todos viverem, mas hoje temos que lutar para reconquistar um pe-
daço de terra. Quando Ñanderu subiu para o céu, ele dividiu as terras através do mar,
água grande, paraguasu, já pensando para cada povo viver numa terra, sem precisar
conquistar terra alheia. Até na bíblia não pode isso, não pode querer as coisas alheias,
mas nem isso os jurua respeitam.
Por exemplo, se tem jurua do Paraguai no Brasil, respeitamos isso. Mas eles não
respeitam a gente. Dizem que não sabem de onde viemos, será que não sabem mesmo?
Esse pedaço de chão aqui antigamente era Paraguai, até Curitiba, e isso aqui era habitado
pelos Guarani, esse é o nosso lugar. Para nós, não tem divisa de Paraná com São Paulo,
Santa Catarina, Mato Grosso do Sul ou Paraguai. Não precisamos ter essa atenção de
divisa e fronteira quando andamos, pois para nós elas não existem. Se um de nós for pas-
sear numa aldeia de lá, no Paraguai, continua sendo Guarani. Se um parente de lá vier
pra cá, continua sendo Guarani. Não tem Guarani paraguaio ou brasileiro, tem apenas
Guarani. A pessoa é o que é, e quem sabe disso é ela, sua comunidade e seu povo.
Definem os Guarani como índios, nós não gostamos dessa palavra, pois nos defi-
nem como um povo sem Deus, mas somos Guarani, que vivemos pela fé em Ñanderu.
A discriminação que sofremos é muito forte, sempre somos humilhados na cidade. Mas
somos o povo mais humilde que tem na terra. Não temos profissão como jurua, não por
sermos incapazes, mas porque Ñanderu nos fez assim. Se nos formamos na faculdade,
claro que continuaremos sendo Guarani, mas nossa essência de conhecimento e sabe-

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doria poderá mudar, nossa humildade pode se transformar em ganância. Não somos
vagabundos, apenas temos nosso próprio jeito de viver.
O suicídio dos jovens Guarani não é por não ter as coisas, por questões materiais,
é porque tem muita coisa que aperta nosso coração. Ñanderu deixou essa terra por sua
esposa não acreditar nele, mas ele não ficou bravo, ficou triste. E isso acontece hoje com
a gente. O Guarani que comete suicídio sentiu e chegou num ponto final de certeza
que ninguém acredita nele, é uma tristeza muito grande. E isso é muito mais forte que
uma discriminação ou agressão. O suicídio entre os Guarani é porque não acreditam na
gente, falta jurua nos tratar como gente. E essa tristeza que Guarani sente não derrama
lágrima, não tem psicólogo jurua que consegue entender ou tirar isso, saber de onde
vem. Mas quando Guarani comete suicídio, ele não vai pro céu, pois não fez a vontade
de Ñanderu, ele não nos ensinou a colocar uma corda no pescoço e acabar com a vida.
Isso é influência do espírito do mal, que instiga a pessoa que está nesse ponto de grande
tristeza, pra cometer suicídio. Quando isso acontece, permanecem na terra, entre nós.
Como nossas terras não estão demarcadas, os jurua não deixam chegar escola,
por exemplo. Mas os jovens querem estudar dentro da Tekoha, mesmo descalços e com
roupa velha podem ir à escola aqui, o que não acontece na cidade, onde sofrem discrimi-
nação quando vão assim. As crianças têm uma esperança de que a Tekoha melhore, que
possam estudar aqui de acordo com o nosso costume, com uma educação diferenciada,
na nossa língua, com ensinamento de nossas histórias, do nosso jeito.
O que estamos fazendo não é invadir a terra alheia, isso seria errado, estamos
somente retomando terras de quem tomou da gente. Quem pegou as coisas alheias não
fomos nós, foram os jurua. Quando Ñanderu deixou as terras, deixou um bom pedaço
para todo mundo viver. Quando separou um pedaço para os povos indígenas, ele não
deixou papel nenhum, que jurua chama de título de propriedade. Portanto, se eles têm
esses papéis, isso para nós não vale. Eles que pegaram nossas terras e criaram esses papéis.
Para nós, quem diz que essas terras são nossas são os espíritos de nossos antepassados.
Eles nos dão certeza de nossa força sobre nosso território. Se nos tirarem daqui, ocupare-
mos outras áreas, pois tudo o que veio depois do que Ñanderu deixou, para nós não vale.
Então, com certeza, vamos continuar resistindo. Onde estamos, onde fincamos a casa
de reza, enterramos parentes, esse é nosso título de propriedade, estamos nós mesmos
titulando e demarcando as nossas terras.
Por mais que esse caminho em busca de Yvy Marãe’y está sendo barrado pelo
jurua, nós continuaremos trilhando o caminho debaixo das casas de reza. Tudo o que
jurua faz para impedir a nossa caminhada, ele só consegue parar a gente num lugar, mas
continuamos caminhando espiritualmente, com nossa fé, para chegar em Yvy Marãe’y.
Os antepassados conseguiram chegar lá e nós conseguiremos, jurua não vai nos impedir.
Está escurecendo, escute o urutau... ele está cantando.

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ENTREVISTA COM BARTOMEU MELIÀ SJ1

Por Priscila Lini2

Em uma segunda-feira chuvosa de abril, estive com o antropólogo e etnólogo


Bartomeu Melià s.j. em seu escritório no Instituto Superior de Estudios Humanísticos y
Filosóficos na cidade de Assunção, Paraguai, para uma conversa sobre as questões da mo-
bilidade e da realidade dos grupos guarani da região. Entre um mate e outro, com toda
sua sabedoria e generosidade, o professor Melià compartilhou seus vastos conhecimentos
sobre este povo, que atualmente luta por manter sua dignidade, identidade e território.
Das anotações que tomei, com seu lápis favorito de empréstimo, resultou este diálogo
fascinante, sincero e crítico: “a colonização não terminou”.

Quem são os Guarani?

Até o início do século XX se tinha uma denominação genérica para os guarani


que eram os ‘monteses’, aqueles do mato, pelo menos para o Paraguai. Esses monteses,
somente o Padre Franz Muller, em uma publicação em alemão com tradução do mesmo
em espanhol, ele, enfim percebeu as diferenças. A diferença é de um ponto de vista que
alguns acham ridículo, mas que no fim faz a diferença, que é pela cestaria. Os povos
do minak’u são paĩ ou kaiowá, os povos cestas adjaká são mbyá, e os povos de cestaria
tipo ahó são avá guarani. Essa cestaria é muito vasta, variada, cada uma tem uma forma
e desenhos e figuras próprios, algumas mais complexas, outras mais simples e não tão
bonitas.
E assim ficou, no século XX, que os Guarani foram redescobertos, se é que se
pode usar essa palavra – que de fato não é correta – ou melhor, foram contatados de
novo, de modo que nós temos uma espécie de história da ‘descoberta’ e colonização dos
Guarani, que de fato data do século XX e se refere ao período neocolonial, que ficou in-
terrupta e sem continuidade, feita por esteios, flashes, fragmentos, por setores. A história
dos índios do Paraná está por ser escrita.
Os Missionários do Verbo Divino entraram em contato com os Mbyá do rio
Monday, e com eles formaram uma pequena comunidade, batizaram alguns, mas ela
depois foi abandonada, visitada de tarde em tarde por um antigo missionário e no final
se desfez, perdendo até as próprias terras. Já com os chamados Avá guarani então, no
1
Entrevista realizada em 20 de abril de 2015, no ISEHF de Assunção, no Paraguai.
2
Doutora em Direito Econômico e Socioambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universi-
dade Católica do Paraná. Professora de História do Direito e Direitos Humanos no Centro Universitário Dinâmica das
Cataratas e Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu. Servidora na Procuradoria Federal na Universidade Federal da
Integração Latino-Americana.

35
que agora é o departamento de Canindeyu, num lugar chamado Caruperá eles também
iniciaram uma comunidade, que não durou nem cinco anos. Com os Paĩ não passaram
além de breves contatos. Foi o padre Franz Muller, SVD, que em 1934-1935 publicou
em vários artigos a melhor das sínteses sobre os Guarani da época, com a distinção dos
três grupos étnicos, mal conhecida por enquanto.

E qual essa distinção entre os Avá, os Mbyá e os Kaiowá?

Em muitos aspectos as diferenças são notáveis. Ela vai se manifestar, na cestaria,


por exemplo, mas vai se manifestar sobretudo na língua - são verdadeiros dialetos -, vai se
manifestar nos rituais, vai se manifestar também nos instrumentos rituais como a maraca,
alguns comuns a todos, mas também com diferenças, enfim, no modo de governo, etc.
Praticamente em tudo o que nós chamamos de aspectos fundamentais, usando o
título do [Egon] Schaden, Aspectos fundamentais da Cultura Guarani (1954), ainda é a
melhor síntese para um estudo primeiro. Depois, do mesmo Egon Schaden você pode
ler outros livros como A mitologia heroica (1959) e Aculturação indígena. Com Curt Un-
kel Nimuendajú (1914) tinha-se iniciado a que pode ser chamada a etnografia guarani
científica, embora reduzida aos Apapokuva, isto é, aos Avá-Guarani.

E, especificamente, quem são os Avá gurani?

Bem, os Avá guarani - os que hoje chamamos Avá guarani - foram conhecidos
muito tempo como “chiripá”. Por que “chiripá”? Porque “chiripá” é uma peça de tela,
um pano retangular que passava entre as coxas, de uso comum entre os trabalhadores da
erva-mate. Esses índios quando saíam para o trabalho, procuravam alguma bolsa velha,
um pano qualquer e botavam o “chiripá”. Existem algumas denominações diferentes,
mais autênticas como Avá, de fato é genérica mas foi assumida como própria desta etnia.
Avá significa simplesmente ‘pessoa’. Assim todos os Guarani são Avá.
No Brasil eles gostam de ser chamados de ñandeva, que quer dizer ‘os que somos
nós’, que também é nome genérico para todos. Todos os Guarani são ñandeva, de fato.
Ñandeva também é autodenominação no Brasil para esses Guarani. Que uma dessas
denominações seja sinônimo de outra vai depender em concreto, do uso e do contexto
numa determinada época e lugar. Isso faz com que mesmo especialistas - ou mais ou me-
nos especialistas - e antropólogos caiam em confusões enormes, quando na verdade to-
das elas significam a identidade do Guarani como pessoa com um modo de ser e história
próprios, porém semanticamente foram de usos restritos conforme os autores. Para ter
clara essa distinção, recomendo de novo obra de Egon Schaden, Aspectos fundamentais
da Cultura Guarani.

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E o território Avá? Como foi ‘descoberto’, e como se deu o contato?

Falar de descobrimento dos índios é sempre uma atitude colonial, que tem como
novo o que Europa não conhecia. Mas é ainda nosso modo habitual de falar até hoje,
que continuamos sendo profundamente colonialistas. Desde este ponto de vista, os
Guarani da região que é hoje o Estado de Paraná foram contatados por Aleixo Garcia,
fazendo caminho para o Perú. Passou pelo território o ‘adelantado’ Alvar Núñez Cabeza
de Vaca. O território foi “descoberto”, em sucessivas etapas mas colocado em relevo,
sobretudo a partir das épocas em que o trabalho - o benefício como se chamava - da
erva-mate ganhou um considerável valor na economia colonial do Paraguai. A partir daí
os Avá foram atraídos e aliciados, para um trabalho quase escravo num sistema de muita
exploração grande, de cruel discriminação e muito sofrimento. Sem a erva-mate teriam
sido talvez menos conhecidos, porém mais livres.
A colonização do Paraguai ainda não terminou, ele está sendo recolonizado de
novo. Com situações que lembram perfeitamente o século XVI. Uma poetisa paraguaia,
Gladys Caramagnola deixou este verso que eu assumo como ideia geradora, que encontrei
e vou colocar como epígrafe do curso que vou ministrar: “así como hoy, otra vez, entonces
fuera”. Hoje é de novo, o que já foi muitas vezes e de muitos modos. A colônia não retorna;
ela nunca foi embora, nunca saiu de nossa casa, nem de nosso horizonte, por desgraça.

E a colonização deste território?

Acaba de sair um livro em língua alemã, que considero a primeira e única história
colonial do Paraguai. O título original é Wie schön is deine stimme, em tradução livre
“Que bonita é a sua voz”. Trata da colonização vivida por um povo do Chaco paraguaio,
os Enlhet, a partir de 1927, - testemunhada pelos que viveram essa colonização. O ‘li-
vrão’ de umas 600 páginas recolhe 102 testemunhos de pessoas que se lembram ainda
daqueles tempos, ou escutaram os relatos de seus pais e avós.
É a visão indígena, onde com muita objetividade e amabilidade, sem ódio, sem
reivindicação, que olha e faz memória da chegada dos outros, os colonos menonitas no
caso. “Nós éramos assim”, dizem, chegou a ruptura provocada por outro modo de vida
e religião, veio o conflito dos Enlhet com os novos que invadiram seu território e seu
espaço de vida em todas as suas formas. Deram-se atitudes de submissão e também de
resistência, tudo contado pela voz indígena. Aqui não é ninguém falando por eles, são
eles mesmos falando, e um povo que fala na sua língua o que tem acontecido. Veja como
são bonitos (mostra as gravuras do livro); para mim essa anciã é muito bonita, sorridente
tem um atrativo especial, pela sua sinceridade e autenticidade.
Cada capítulo é uma história diferente, de beleza, serenidade, dignidade e sofri-
mento imenso. Eles sofreram muito, ainda sofrem. Esse é o propósito dessa história, que

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possamos escutá-la. Talvez poderia se fazer uma história semelhante com testemunhos
Guarani atuais, de como foi a história deles no século XX e neste século, resgatando a
vivência de seus pais e seus avós, pessoas de idade. Provavelmente os índios que estão nas
universidades poderiam fazer isso, já começaram inclusive a contar sua história. Passam
a dizer a sua história, já têm doutores em história entre os Guarani; é um novo desafio e
a história poderia ser outra, não só a deles, mas a nossa.

E a questão da mobilidade guarani?

No século XIX tinha muitos guarani, Avá guarani, ou Ñandeva que estavam no
Brasil, concretamente no Paraná, mas também no Estado de São Paulo. [Kurt] Nimen-
dajú esteve com um grupo deles, que se autodenominavam Apapokuva, ‘Os de Arco
Comprido’. Ele escreve a primeira etnografia sistemática desse povo, dando relevo es-
pecial a um aspecto essencial dos Guarani: a Palavra. Conhece os mitos autênticos, fica
fascinado, os aprende e os conta com muita autenticidade. É a primeira vez que se tem
acesso à religião guarani autêntica expressada no que Nimuendajú publicou como As
lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Gua-
raní (São Paulo, 1987) – a primeira edição é de 1914 em alemão.
Aí estão a visão de mundo desde os Guarani, os cantos e danças, notas sobre as
migrações. Nesta obra surge como hipótese a teoria de que a migração guarani teria
sido a procura da terra-sem-mal. Olhando a história das que ele chamou de ‘hordas’, os
Guarani se mostram como povos que avançam. Mas também muitas aldeias ‘desapare-
ceram’. Um artigo recente de Diogo Oliveira recuperou a localização das aldeias guarani,
sobretudo Avá guarani no Paraná - são mais de 30 aldeias - que caíram debaixo de uma
política de esquecimento, como se elas não existissem. Mas estão lá há anos. Eles estão
lá antes de chegarem os portugueses, o alemães ou italianos.
Analisando o Atlas histórico do Paraná (1981) de J.A. Cardoso, e C.M. West-
phalen, percebe-se que são raras as populações não indígenas que têm mais de 100 anos
nessa parte do Paraná. São municípios com menos de 75 anos, Foz do Iguaçu, uma das
mais antigas, pouco mais de 100 anos. Desde a Ciudad Real de Villa Rica do Espíritu
Santo do século XVI, até o século XX tem um vácuo enorme. Com a saída dos jesuítas e
os índios das Missões que foram com eles, ficaram ainda grupos consideráveis no Guairá,
que apareceram de novo como Avá guarani. Eles marcam a continuidade da presença do
século XVII quando eles começaram a ser contatados pelos jesuítas no século XVII, mas
ficaram praticamente esquecidos até o século XX.

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Quando começa a história pessoal do professor com os Guarani?

A minha história pessoal com os Guarani começa em 1969, há 45 anos. Quando


ia para a comunidade de Mbarigui eu descia do ônibus – nunca tive carro – e logo a
poucos metros da estrada estava já no mato fechado, até chegar na aldeia. Desde o início
fui bem recebido. Não era lugar frequentado pelos não indígenas; nunca vi um juruá –
assim chamam aos brancos ou paraguaios – por lá. A aldeia ficava há apenas 225 km da
cidade de Asunción. Depois passei a visitar outras aldeias, não só mbya, mas também
dos Avá, que não tinham problema em ser tidos como Chiripá, e em 1972 cheguei até
os Paĩ-tavyterã, ou Kaiowá no Brasil.

E os Guarani no estado do Paraná, especificamente? Por que as terras Guara-


ni despertam interesse?

O Paraná teria que ser mais Avá guarani, mas em alguns pontos você encontrará
Mbyá também, até dentro de uma mesma aldeia, e eles convivem bem, mas mantém
os próprios rituais separados. Conheço avá guarani casado com mbyá, por exemplo. As
aldeias guarani se situam onde tem terra boa, pescaria, onde não tem muito mosquito,
um pouco afastados do barulho dos colonos. A terra dos Guarani foi sempre a melhor
da redondeza.
No Paraná vejo que existe uma tendência por esquecer que os colonos vieram para
esses lugares porque eram territórios guarani. E a ocupação é geralmente ilegítima; são
terras esbulhadas. Os professores Carlos Marés e Dalmo Dallari defendem a causa dos
índios porque justa; alguns procuradores também, mas não são muitos que defendem os
direitos dos povos indígenas. Precisa-se ser ‘rebelde’, para defender esses direitos porque
isso não dá dinheiro.

Um processo contínuo de “colonização”?

(O professor Melià busca um livro) Este livro é de 2014. Seu título: Escola Ibé-
rica da Paz. É bilíngue, é um livro de arte ao mesmo tempo pelas suas reproduções de
originais criados para ilustrar a obra. Um valor agregado importante dessa obra é uma
longa introdução de professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que foi durante
anos o presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e agora membro
de Tribunal Internacional de Haia, que tenho a honra de conhecer e ter tratado de perto.
Ele mostra precisamente a atualidade das questões relativas à conquista e colonização, e
o pensamento teológico-jurídico dado já nos séculos XVI e XVII, que vão de Francisco
de Vitória até o Padre Vieira, passando por António de Montesinos, Bartolomé de las
Casas, José de Acosta, Luís de Molina e Francisco Suárez e outros menos renomados,

39
mas muito importantes também, como Antônio de Santo Domingo, Cobarrubias, que
enfrentam criticamente o falso poder que sobre as terras da América tanto o Imperador
Carlos V como os Papas consideravam próprios.
Francisco de Vitória já questionava a presença dos espanhóis e o fato de se apro-
priarem do domínio dos bens e das coisas dos índios. Nem o Imperador, nem o Papa
têm direito nenhum para tirar a possessão dos bens que eles têm, mesmo que sejam
viciosos, antropófagos, adúlteros, sodomitas, ou não sei o quê. Vieira diz que tanto vale
o cocar de plumas quanto a coroa, o arco quanto o cetro.
Hoje não somos capazes de pensar isso, muito menos atuar dentro dessa norma
de justiça. De Francisco de Vitória é essa passagem: “É contra o direito natural que um
homem aborreça sem razão outro homem, pois não é o homem um lobo para o ho-
mem... se não homem.”
Os espanhóis e portugueses quando chegaram não tinham qualquer direito de
tomar as terras de outro, de nenhum outro, seja judeu, muçulmano ou índio. Tirar de
qualquer um, é o mesmo que tirar de um cristão. É roubo e esbulho. No século XVI
existia um pensamento crítico mais avançado do que agora. O direito internacional
ainda repete isso, as Constituições de nossos países proclamam esses direitos: as leis são
aceitáveis, a prática é perversa.
Os primeiros jesuítas no Paraguai estavam pensando dentro dessas categorias, um
pensamento humanista e cristão, e apesar de uma certa pressão em vistas à conversão
do gentio, pelo menos enquanto à defesa do território e às autoridades mantiveram um
sistema indígena. Nas Missões ou Reduções entrou nominalmente o sistema espanhol
e houve uma estrutura colonial municipal: corregedor, secretário, fiscal, cabildo..., mas
também mantiveram sempre, até a expulsão dos jesuítas, os caciques. Esse ‘bilinguismo’
político foi uma concessão à prática colonial, mas sem destruir o sistema indígena. Em
certo modo é a estratégia que adotaram atualmente muitos povos indígenas.
As missões em grande parte ajudaram a manter a população, os jesuítas deixaram
populações com uma boa urbanização, que não temos até hoje nos povoados rurais.
Ainda neste livro, esta passagem do padre Antônio Vieira: “Quem tem por ofício a
conversão do gentio, tem que ter duas coisas nas mãos: um livro para os doutrinar, e
uma espada para os defender. E se esta espada se tirar das mãos de Paulo e colocá-las nas
mãos de Herodes, que sucederá? Nadará toda a Belém no sangue inocente, e é isso que
queremos evitar” e ainda esta: “Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas
capas se torcessem, haviam de lançar sangue!” Aqui no Paraguai, os advogados nunca
leram Francisco de Vitória, ou coisa parecida. Eles distorcem a lei. Não querem saber de
fazer justiça, querem distorcê-la. Nisso são especialistas!

40
E a situação atual destes grupos indígenas, como seria possível definir?

Em 2012 foi feito no Paraguai o Censo de Comunidades dos Povos Indígenas e


temos resultados finais em uma síntese: quantos índios têm, quantos Guarani, quantos
Avá, Paĩ-tavyterã, Mbyá. O número dos Mbyá é grande, os Mbyá aumentaram muito,
mas estão em uma situação quase de suicídio coletivo; existe muita drogadição, muita
AIDS, e muita mendicidade. Tem guarani Ñandeva que são os guarani do Chaco, são
chanẽ outrora guaranizados distintos dos Ñandeva do Brasil. Os Avá, Mbyá, Paĩ-tavyterã
passam por dificuldades em decorrência dos recursos naturais que lhes são furtados.
Existe também a questão de aluguel de terras; colonos e empreiteiros os pressionam e
enganam; 70% das terras dos Avá estão nas mãos de gente de fora, especialmente brasi-
leiros. Os Guarani são donos dessas terras, grande parte delas até foram compradas com
dinheiro de fora, e agora eles mesmos, os próprios caciques entregam para outros, que
fazem o possível para desterrá-los do próprio território. Existem comunidades urbanas,
em bairros de Assunção, por exemplo. Os dados do Censo ilustram bem essa situação.
De todos modos essa demografia tem lacunas, é ainda uma ciência de opinião.
Mas foram registradas mais de 500 aldeias guarani no Paraguai, nas três fronteiras, mas
não tem o Paraná. Aqui no Paraguai nós tivemos uma equipe bastante boa para o Censo
no qual participaram os próprios índios. Na Argentina, os Guarani recenseados passa-
ram em dez anos de 1.500 a 7.000. O que acontece então? Exagero? Não! Os censos
anteriores estavam mal feitos numa perspectiva reducionista.
Nestes meses de fim de 2015 sairá o mapa continental da nação guarani, desde a
Bolívia, até a Costa Atlântica, trabalhado por uma equipe muito bem formada, e aí será
possível ver o aspectos globais dos Guarani de Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Os
Guarani no Brasil estão na base de 100.000 pessoas.

O que significam os Estados Nacionais e as Fronteiras para os Avá-Guarani,


atualmente?

Estados Nacionais e Fronteiras são instrumentos da desintegração. Para mim os Es-


tados Nacionais são uma peste para os Guarani no sentido de desagregação e no sentido de
destruição dos elementos essenciais dos Guarani. Não são os Guarani contra o Estado, é o
Estado contra os Guarani. Por quê? Porque precisamente atua em três áreas essenciais:
A prmeira é a língua. Elas, nas suas ortografias ‘ocidentais’, se tornaram malditas
pela divisão que promovem entre grupos do mesmo povo. Um guarani alfabetizado se
torna inimigo de outro guarani alfabetizado com outro sistema promovido por um lin-
guista de uma Universidade, um missionário de uma religião, até outro guarani de outra
escola. Isso faz com que os Kaiowá do Brasil se sintam diferentes dos Pãi-Tavyterã no
Paraguai, quando na verdade é a mesma nação, a mesma etnia, a mesma cultura. Com os

41
mesmos rituais, em princípio. Com a língua já manipulada pelo Estado chega o sistema
de educação: o sistema brasileiro, o sistema paraguaio para a mesma etnia, sistema argen-
tino, que ainda é o pior de todos. Todos esses Estados orientados a que? Que o progresso
significa deixar de ser guarani.
A segunda é o território. A política fundiária também é muito heterogênea, mas
cada dia mais opressiva. Em alguns lugares essa política progrediu, no pior sentido da
palavra. Um cidadão pode esbulhar um território guarani simplesmente com dinheiro.
A colonização de Mato Grosso no século XX foi um horror, e não sei se no Paraná
também. No Paraguai na hora de julgar os direitos indígenas sobre seus territórios, os
advogados e juízes aplicam a lei conforme o dinheiro do comprador de terras ilícitas. No
Paraguai a justiça com os povos indígenas não funciona.
Os povos indígenas no Paraguai continuamente têm que levar a sua causa para a
Costa Rica, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Lá pelo menos têm uma
porta aberta para a esperança. Estive lá em 2002, como testemunha independente num
caso. Os representantes do governo paraguaio ofereceram um triste espetáculo de igno-
rância e discurso desalinhado, fazendo o ridículo. Outro pessoal do governo esteve em
uma reunião na Suíça, coisa do PNUD (Programa das Naçoes Unidas para o Desenvol-
vimento). Se saíram melhor porque agora estão melhor informados, mais esclarecidos,
mas a nossa política atual é claramente anti-indígena; não sei se conseguem perceber a
gravidade da situação, o conhecimento sobre a realidade local, apesar do grande lucro
do agronegócio. Os sojeiros e criadores de gado, que retêm enormes latifúndios, apenas
tributam para o país. No final, o país contribui com 0,5% em favor deles, e eles não
aportam menos que nada. É um absurdo total.
Então: a língua, a questão do território, e por terceiro, a religião são claros os
sinais de desrespeito dos direitos indígenas e seu modo de ser. Sou jesuíta, mas com
os Guarani pratiquei sempre a religião guarani. Tenho vivido com os índios e aprendi
com eles. Morei por bastante tempo com os Enawene Nawé, do rio Juruena pelos anos
1977 a 1982 e me senti muito bem, com eles cantava e dançava nos rituais de 12 a 14
horas diárias, era uma beleza, uma tribo com pouquíssimo contato com o branco, isso
há 25 anos. Durante anos somente três pessoas entravam na aldeia: além de mim, uma
enfermeira e outro jesuíta, que foi assassinado em 1987 pelos sicários dos fazendeiros e
colonos do novo município de Juína, que incursionavam na região.

42
Qual o impacto dessa desagregação cultural para o guarani?

Essa praga das religiões em que as vezes a mesma religião troca de nome: um dia
é Leão de Judá, e o dia seguinte é Torre de Jericó, é terrível. E às vezes são os próprios
índios os pastores, um elemento de divisão e conflito, porque manda ao inferno todos
os seus parentes, que não estão com ele. Na Terra Indígena de Dourados seriam mais de
43 igrejas, de umas trinta e tantas confissões diferentes.
É grave também a destruição da economia indígena, que comporta também a
destruição de ecologia e leva os Guarani a situações extremas; os matos sumiram, tam-
bém não têm campo, porque está todo estragado, todo cheio de capim, por exemplo,
como em Amambai no Mato Grosso. Não conheço de perto a situação no Paraná.
O que resta é pedir esmola na cidade, o artesanato que ainda pelo menos é mais
digno, passa a ser mão de obra barata explorada, sem papéis. Mas também, sobretudo no
Brasil, têm aposentadoria, o que faz com que a partir dos 40 anos estejam aposentados,
pois é como se tivessem 65; essa é uma entrada segura e esta cesta básica que contribui
também, né? Parece uma solução, mas de fato não é. Também não me atreveria a dizer
“tirem isso deles”, porque é disso do que muitos vivem, mas não deixa de ser uma men-
dicidade dissimulada, que não propicia a dignidade da pessoa.

43
TERRITÓRIO GUARANI: UM ESPAÇO DE RESISTÊNCIA

Manuel Munhoz Caleiro1

A presença Guarani no cone sul do que hoje chamamos América Latina pode
ser observada a partir de uma vasta literatura, que é formada inicialmente por registros
ocidentais de sua presença territorial, à partir do século XVI, por escritos realizados pelos
invasores que costumeiramente são chamados de exploradores, viajantes, religiosos, ban-
deirantes ou, em suma, colonizadores. Contribui para tal literatura a recente pesquisa
antropológica e arqueológica que, com estudos desenvolvidos principalmente à partir
do final do século XIX, e mais profundamente nos séculos seguintes, contribuem para
sustentar a afirmação de que este espaço de mundo constitui historicamente o território
Guarani, confirmando nos moldes da criteriosa ciência moderna esta afirmação tão pre-
sente na oralidade deste povo e que é um dos alicerces do projeto de pesquisa que esta
obra é resultado.
O objetivo do presente trabalho, além do apontamento sucinto das principais
fontes acerca da presença Guarani em seus territórios, considerando que existem outras
referências ao longo dos outros trabalhos contidos nesta obra, é a indicação de como se
construiu a usurpação do território Guarani, que fundamenta o pleito deste povo por
um espaço que ocupou, contextualizando assim os atuais processos de retomada e recla-
mo pela terra no oeste paranaense.

PRIMEIRAS INCURSÕES OCIDENTAIS

Antes da produção de fontes ocidentais conhecidas da presença Guarani em seu


território, os povos invadores já disputavam quais seriam os espaços do ‘novo mundo’
que explorariam. Em 1494, logo no início do processo de invenção da América, foi
firmado entre os reinos de Portugal e Espanha o Tratado de Tordesilhas, que, em breve
síntese, dividia entre os dois reinos invasores o território sulamericano em duas porções:
370 léguas a oeste de Cabo Verde estaria o território que deveria ser invadido e explorado
pelos espanhóis e ao leste deste ponto até o oceano haveria o domínio português. Após
este pacto inicia-se o que se mostrou como uma dupla e dura frente de contato dos povos
originários com os invasores europeus.

1
Diretor executvo do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS). Doutorando em Direito
Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com bolsa de estudos pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestre em Direitos Coletivos e Cidadania pela
Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Advogado.

44
Em virtude do recíproco descumprimento do tratado, tal divisão de pretensos
domínios sobre territórios alheios foi reconsiderada em 1750, através da assinatura do
Tratado de Madri, havendo um alargamento nas fronteiras de exploração portuguesa
ao sentido do leste. Temos então que a maior porção do território Guarani ficou sob a
cobiça espanhola durante o período colonial, que buscava atingir o quinhão territorial
que lhe ‘cabia’ através do Rio da Prata.
Justamente na região deste rio se encontrava um dos núcleos do território Gua-
rani, que se concentrava na grande bacia do Rio Prata, abrangendo algumas regiões que
atualmente compõem o norte Argentina, o sul do Brasil, a quase totalidade do Paraguai,
o norte do Uruguai e o sul da Bolívia. Ilustra a vastidão do território Guarani a então
existência do caminho transcontinental denominado Peabiru, que era uma estrada que
ligava o oceano atlântico ao pacífico. Ainda que não haja consenso se tal caminho foi
construído pelos povos Guarani (CHMYZ, 1985), era por eles largamente utilizado,
cujo principal traçado demonstra a imagem seguinte2.

Figura número 1 – traçado principal do caminho de Peabiru


Fonte: COLAVITE e BARROS, 2009.

2
Entendemos como inadequado a divisão geopolítica atual para a demonstração de uma presença territorial pré-colom-
biana e, portanto, antes dos limites ficcionais criados pelos estados nacionais. Todavia, a apresentamos de tal forma, de
acordo com as fontes citadas, para uma compreensão da vastidão do território tradicional Guarani, ainda que emoldurada
na atual configuração geopolítica sulamericana.

45
Os traçados indicados na figura acima são os troncos principais do caminho, que
ainda contava com outros troncos secundários e terciários, sendo que em todos havia
uma grande quantidade de comunidades Guarani e, em alguns pontos, povos de outras
etnias do tronco Jê.
Justamente por este caminho, o do Peabiru, o grupo liderado por Aleixo Garcia
seguiu por terra desde o litoral catarinense até o sul da Bolívia, nas proximidades da re-
gião onde hoje é a cidade de Cochabamba (BOND, 2004, p. 31). Aleixo Garcia foi um
explorador português e em 1516 integrava a expedição marítima espanhola comandada
por Juan Diaz Solís, que navegou pelo Rio da Prata, acreditando ser possível por esta via
contornar a América pelo sul. Com a morte de Solís e parte de seu grupo ao desembar-
car no continente, a expedição inicia seu caminho de volta. Ocorre que o navio em que
estava Aleixo Garcia naufragou durante o trajeto de retorno, tendo tal fato acontecido
onde atualmente é a cidade de Florianópolis.
Juntamente com alguns dos sobreviventes ao naufrágio, Aleixo Garcia se fixou na
ilha e viveu com os Guarani, tendo integrado com eles uma caravana que seguiu pelo
caminho do Peabiru até o território inca, próximo de 1524. Quando do retorno para a
costa atlântica, em um acampamento de viagem em um local próximo de onde atual-
mente é a tríplice fronteira entre Bolívia, Brasil e Paraguai, seu grupo teria sido atacado e
Aleixo Garcia foi morto. Ocorre que ele havia enviado mensageiros por outras rotas, que
chegaram com informações sobre o povo inca e seus metais até a ilha de onde haviam
partido (BOND, 2004, p. 36).
Após o insucesso de Juan Diaz Solís em contornar a América navegando pelo sul,
outras expedições com o mesmo intuito, e visando os metais incas, ocorreram por mar e
terra. Nesta ordem, as expedições capitaneadas pelos espanhóis Sebastião Caboto (1526)
e Diego Garcia (1530), assim como a capitaneada pelo português Martim Afonso de
Sousa (1530), fracassaram (GODINHO, 1982).
Em 1541 o espanhol Álvar Nuñez Cabeza de Vaca (2002, p. 137), desembarca
na ilha onde atualmente é Florianóplois, inicialmente com a missão de resgatar alguns
compatriotas que haviam sido abandonados na região platina. Ao tomar conhecimento
da expedição de Aleixo Garcia, segue por terra acompanhado de 24 cavaleiros, cinquen-
ta atiradores, cinquenta espadachins, cem arqueiros, dois frades e centenas de Guarani
que os guiaram pelo caminho de Peabiru (MARKUN, 2009, p. 42). Em seu diário de
viagem, primeira fonte primária ocidental da presença Guarani em seu território, ele
afirma que a grande maioria étnica em toda região é deste povo, descrevendo inúmeras
aldeias em que passou durante seu trajeto, suas relações com os anfitriões e com os Gua-
rani que o acompanhavam.
Em 1552, Ulrich Schmidl, realiza através do caminho do Peabiru a mesma via-
gem que fez Cabeza de Vaca, mas em sentido contrário, partindo dos arredores de onde
hoje é Assunção, no Paraguai, até o litoral do Atlântico, onde atualmente é a cidade pau-

46
lista de São Vicente, atravessando todo o atual Estado do Paraná. Em sua viagem de explo-
ração e guerra contra os Guarani, descreve detalhadamente a presença deste povo por todo
o espaço em que viajou, com a indicação de aldeamentos por todo o caminho, constituindo
esta a segunda fonte primária ocidental da presença Guarani em seus territórios.
Destes primeiros contatos registrados, temos que se materializou perante os reinos co-
lonizadores, num processo que durou aproximadamente um século, quais eram os caminhos
para a exploração e colonização na região, iniciando-se então o processo de barbárie a que
o povo Guarani foi submetido, juntamente com os outros que viviam na região. Após este
mapeamento houve uma exponencial presença européia sobre seu território, incialmente por
encomenderos e bandeirantes, que buscavam a mão-de-obra Guarani.

TERNOS COLONIZADORES: A REDUÇÃO E A RESISTÊNCIA

Neste contexto de encomiendas e bandeiras paulistas se insere a presença jesuíta na


região. Ainda que eles estivessem presentes no continente desde a metade do século XVI,
foi na transição para o século XVII que houve uma sistematização de suas atividades de
catequização e a criação das missões jesuítas, que, no sul da América, em sua quase tota-
lidade se consolidaram sobre o território Guarani. No sul de onde atualmente é o Brasil,
inicialmente, a presença jesuíta se dava em centros urbanos onde hoje são as cidades de
São Paulo e Rio de Janeiro, mas logo adentraram ao interior do ‘novo mundo’, indo até
Assunção e retornando rumo ao atlântico com a criação de missões nos atuais estados do
Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, havendo também uma forte presença na
tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, à partir de 1609.
À partir das missões o número de fontes primárias sobre a presença dos Guarani
em seu território, sobretudo cartas neste período, é extemamente abundante e a análise de
todo este material fugiria aos objetivos e dos limites do presente trabalho. Todavia, dentre
as fontes jesuítas, destaca-se a obra “Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Com-
pañia de Jesus”, do padre Antônio Ruiz de Montoya (1639), na qual ele descreve as missões
jesuítas de sua época nas regiões das então províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape.
Os escritos de Montoya, resultado de quase três décadas de convívio missioneiro com os
Guarani, constituem um material extremamente detalhado não somente da presença deste
povo em seus territórios e missões jesuítas, mas também uma descrição de manifestações
da cultura Guarani na época, como, por exemplo, de sua religiosidade (que obviamente,
para ele, deveria ser ‘purificada’ nos moldes cristãos), constituindo a primeira fonte etno-
gráfica mais consistente deste povo dentro da literatura ocidental.
As missões jesuítas foram criadas como reduções nas quais se pretendia a criação
de uma sociedade cristã utópica, cujo componente humano eram os Guarani da região
(MELIÀ; NAGEL, 1995), que aceitavam estrategicamente viver dentro das missões para

47
se proteger primeiramente da investidas dos encomenderos, que vinham buscar ‘material’
humano para suas encomiendas, vindos prinipalmente da região onde hoje é Assunção, e
posteriormente dos bandeirantes, que vinham de onde hoje é a cidade de São Paulo em
busca de guerra para obtenção de escravos para trabalharem nas lavouras de cana. Em
ambos os casos, havia a preferência para a captura de Guarani reduzidos nas missões, em
virtude de eles estarem mais acostumados com os contatos com portugueses e espanhóis.
Sem desconsiderar que as missões pertenciam ao processo e âmbito colonial, afinal a
redução Guarani facilitava a ocupação ocidental nos territórios que estavam fora das missões,
o uso destas como escudo pelos Guarani contra a colonização mais aguda e escravocrata
das encomiendas e bandeiras paulistas não tarda por incomodar os reinos colonizadores. Em
1750, revendo o acima citado Tratado de Tordesilhas (que havia sido descumprido pelos dois
reinos), é firmado o Tratado de Madri, que alterava a divisão dos pretensos domínios sobre
territórios alheios, com a entrega da região missioneira pelos espanhóis aos portugueses e
exigência de que os Guarani da região fossem levados para seus domínios (DALCIM, 2011,
p. 128), sem que, por óbvio, houvesse consulta aos Guarani e jesuítas. Estes, por sua vez,
firmaram uma confederação missioneira armada para a resistência ao ataque conjunto dos
exércitos dos reinos (QUARLERI, 2009, p. 227), visando sua permanência em seu territó-
rio, sendo este o cenário da guerra guaranítica (GOLIN, 1998, p. 61), em que os Guarani e
jesuítas desafiaram os reinos de Portugal e Espanha.
Tal guerra, vencida pelos reinos coloniais, ainda que com grandes batalhas venci-
das pela resistência, acarreta na expulsão dos jesuítas da região (MELIÀ, 1988, p. 220),
mas, principalmente, numa dispersão dos Guarani que estavam reduzidos nas missões.
Tal dispersão, após esta derrota e conjunturada pela crescente presença ocidental na
região, tem como consequência uma outra forma de facilitação da cada vez mais aguda
usurpação territorial a eu este povo foi submetido, eis que a resistência não era mais
concentrada e articulada como nas missões.

CONSOLIDAÇÃO DA COLONIZAÇÃO E INÍCIO DA RETOMADA

Com a chegada da fronteira agrícola na virada do século XIX para o século XX, a co-
lonização da região traz grandes impactos territoriais aos Guarani. Todos eles serão objeto de
um capítulo nesta obra, mas os citamos para oferecer um panorama geral inicial. O primeiro
marco da chegada da fronteira agrícola na região do oeste paranaense foi a criação da Colônia
Militar de Foz do Iguaçu, que foi criada para evitar a presença de ervateiros e madeireiros
argentinos e paraguaios na região (MYSKIW, 2009, p. 176). A manutenção de tal colônia era
difícil em virtude de sua grande distância entre as demais, o que acarretava em uma relação
ambígua com o local, eis que soldados se relacionavam com ervateiros e madeireiros, cedendo
terras para que eles as explorassem, geralmente com mão de obra escrava Guarani.

48
Em 1877, ainda durante o império, a empresa Mate Larangeira obteve o mo-
nopólio de exploração da região, com concessões que eram renovadas já na república,
totalizando 5 milhões de hectares de terras em 1895 (PARKER, 2013, p. 17). Tal ciclo
de exploração de erva mate se consolida então no território Guarani na região do oeste
do Paraná, fazendo uso de mão de obra escrava Guarani.
Tão violenta quanto a exploração do trabalho, mas invisível antes aos olhos ocidentais,
foi a usurpação territorial Guarani consistente na criação do Parque Nacional do Iguaçu,
espaço territorial especialmente protegido pelo estado brasileiro (com uma porção criada e
protegida pela Argentina), que foi criado em 1939, sendo que se configura atualmente como
unidade de conservação de proteção integral, em que não se admite a presença humana e
que deve permanecer preservado e intocado como refúgio natural. Com a desvinculação da
cultura ocidental com a natureza, algo inconcebível para o povo Guarani, a natureza sobre
seus territórios foi reduzida a uma mercadoria chamada terra, que para se configurar como
tal, deve estar isenta de vegetação, animais e de cultura (povos).
À partir de 1940, com a abertura das estradas que ligaram as cidades de Foz do Igua-
çu, Guaíra, Guarapuava e Umuarama, foi aberto o caminho para as companhias coloniza-
doras, que se estabelecem na região e aprondundam drasticamente a lógica de colonização
através da usurpação territorial e do uso da mão de obra Guarani com o uso de jagunços,
tornando mais agudo o processo de expropriação de suas terras por colonos, posseiros e
grileiros, tudo com a complacência e colaboração corrupta do Estado, através do Serviço
de Proteção aos Índios (SPI), conforme será abordado em capítulo próprio desta obra.
Outro fato relevante e que torna mais aguda a situação fundiária na região do oes-
te paranaense, com grande impacto territorial ao povo Guarani, é a assinatura em 1973
do Tratado de Itaipu, com a posterior criação do lago da usina hidroelétrica, em 1982,
que submergiu 1.350 quilômetros quadrados, calando o sagrado canto das Sete Quedas.
Juntamente com o panorama que foi sucintamente descrito até o momento, po-
demos indicar atualmente farta produção antropológica3 e arqueológica4 que permitem
afirmar a presença Guarani na região, assim como o esbulho territorial que este povo so-
freu. Um recente fruto deste meticuloso e articulado trabalho pode ser verificado através
da ferramenta Mapa Guarani Digital5, em que foram catalogados e georreferenciados os

3
Destacamos: NIMUENDAJU, Curt Unkel. Apontamentos sobre os Guarani. (Trad. e notas de Egon Schaden).
Revista do Museu Paulista, v.8, 1954, pp. 9-57; SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São
Paulo: EPU; EDUSP, 1954; MELIÁ, Bartomeu. El Guarani conquistado y reducido. Assunción: CEADUC, 1988;
LADEIRA, Maria Inês. Espaço geográfico Guarani-Mbya: Significado, Constituição e Uso. Tese de doutorado. São
Paulo, FFLCH/USP, 2001 e; CARVALHO, Maria Lúcia Brant de. Das terras dos índios a índios sem terras - O Estado
e os Guarani do Oco’y: Violência, silêncio e luta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.
4
Destacamos: CHMYZ, Igor. Projeto Arqueológico Itaipu - Volume I. Curitiba: Convênio Itaipu/IPHAN. 197;
_____. Pesquisas arqueológicas na área brasileira de Itaipu. In: 2o Seminário da Itaipu Binacional sobre Meio-Am-
biente/Foz do Iguaçu. Curitiba: CEPA/UFPR, 1987, e ; _____. Relatório Técnico sobre Arqueologia e a Etno-His-
tória da Área do Parque Nacional do Iguaçu. Curitiba: CEPA/UFPR, 1999.
5
Disponível em <http://guarani.map.as/>. Acesso em: 15 out. 2016.

49
espaços nos quais há ou houve presença Guarani, assim como sítios arqueológicos e as
sobreposições de seu território a espaços protegidos pelo Estado brasileiro.
Em virtude do histórico esbulho, atualmente podemos verificar que o antes am-
plo e vasto território Guarani encontra-se ocupado por não índios, sendo observada a
presença territorial deste povo em espaços fragmentado e em minúsculas porções des-
contínuas de terra. Atualmente, o maior número de aldeamentos Guarani é verificado
no Paraguai, ante à exitosa política de colonização, fundamentada em uma extrema-
mente violenenta política de expropriação territorial, praticada principalmente no Brasil
e Argentina. Todavia, considerando o território brasileiro, é possível verificar presença
Guarani do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul, incluindo-se Rio de Janeiro, São Pau-
lo, Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina.
Tal presença se dá pela resistência deste povo ante as pressões da sociedade nacio-
nal, sendo possível verificar ainda, em alguns locais, processos de retomada territorial,
como no extremo oeste do Paraná.
Aos olhos do estado, a atual situação jurídica das terras em que ocupam no oeste
paranaense é de propriedade privada com registro imobiliário em nome de terceiros
(particulares, empresas e Itaipu Binacional), sendo que exercem sua posse direta após os
processos de retomada, que obviamente acarreta em conflitos. Consequente a estes pro-
cessos são os feitos judiciais, em que é demandada a reintegração de posse em favor dos
proprietários, sendo esta fonte de pressão contra as comunidades. Tramita também, pe-
rante a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) o procedimento administrativo que visa
a demarcação do território Avá-Guarani, com trâmite inicial e praticamente paralisado.
Por sua vez, a situação fática destas terras é a de terra “limpa” em que a natureza
deu espaço à monocultura do agronegócio. Portanto, as dificuldades enfrentadas por este
povo também são observadas na própria relação com o território retomado, que atual-
mente se mostra como insuficiente para suas necessidades físicas e culturais.

50
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52
OS AVA-GUARANI EM YVY MBYTE, CENTRO DA TERRA
E OS PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO DE SEU TERRITÓRIO

Maria Inês Ladeira1


Camila Salles de Faria2

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE TERRITORIALIDADE

Os Ava-Guarani que vivem na região do antigo Guairá possuem vívida certeza


de pertencimento a um território que ocupam antes da chegada dos europeus, há mais
de dois mil anos3, seguindo sistemas e princípios próprios. Reconceitualizar os preceitos
ditados por sua cosmologia sobre a permanência da vida e da terra tem sido para eles um
exercício constante. Assim, para falar sobre territorialidade indígena é preciso perpassar
outras esferas do espaço-tempo que dão suporte e atribuem sentido ao território.
Estudos sobre território e territorialidade, há muito vêm sendo desenvolvidos por
autores da Geografia que analisam as distinções entre os conceitos de espaço e território4.
Como ressalta Raffestin (1993), o espaço é anterior ao território. Assim, ao apropriar de
um espaço concreta ou abstratamente o ator “territorializa” o espaço5. Neste sentido, a
territorialização se dá consoante as diferentes expressões, técnicas, organização e critérios
de valoração dos grupos sociais na sua percepção e interação com as formas diversificadas

1
Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Antropologia Social pela Pontifícia
Universidade Católica - PUC de São Paulo, coordenadora do programa guarani do Centro de Trabalho Indigenista - CTI.
2
Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de Geografia da
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
3
Calcula-se que os Guarani passaram a ocupar as matas subtropicais do alto Paraná, do Paraguai e do médio Uruguai,
há cerca de 2.000 anos (MELIÀ,1991, p. 14). Timóteo da Silva Verá Popygua (2016) considera Yvy mbyte, região que
corresponde à tríplice fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai), “um lugar sagrado” erguido sobre “uma grande água subter-
rânea, nomeada pelos não indígenas de Aquífero Guarani”. Segundo o autor, Yvy mbyte é o “berçário” do povo guarani.
4
Entre os autores citamos Milton Santos e A natureza do espaço (2000) entre outras obras, Claude Raffestin, Augustin
Berque, Messias da Costa e Antonio Carlos R. Moraes. Ladeira realiza um brevíssimo diálogo com esses e outros autores
em tese de doutorado (2001), publicada em 2008.
5
As discussões sobre esses conceitos na Geografia estão consolidadas nas relações de poder, que não serão abordadas neste
texto. Para Raffestin (1993, p. 144), “(...) O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida
por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível (...). enquanto produção, em razão das
relações que envolve, se inscreve num campo de poder”. (...). De acordo com Costa (1988, p.18), “toda sociedade que
delimita em espaço de vivência e produção e se organiza para dominá-lo, transforma-o em seu território. Ao demarcá-lo,
ela produz uma projeção territorializada de suas próprias relações de poder”. Em relação à territorialidade, Raffestin
(1993) assim se expressa: “De acordo com a nossa perspectiva, a territorialidade adquire um valor bem particular, pois
reflete a multidimensionalidade do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os
homens ‘vivem’, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações
existenciais e/ou produtivistas. Quer se trate de relações existenciais ou produtivistas, todas são relações de poder, visto
que há interação entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais. Os
atores, sem se darem conta disso, se automodificam também. O poder é inevitável e, de modo algum, inocente. Enfim, é
impossível manter uma relação que não seja marcada por ele”.

53
de vida. De acordo com Costa (1982, p. 49-53), “a percepção do espaço é sempre uma
percepção cultural do espaço”. E enquanto “categoria da intuição o espaço pode ser per-
cebido e representado, assumindo tantas formas quantas forem as mediações culturais
dos sujeitos”.
Em se tratando da territorialidade dos povos indígenas, ainda há muito a ser ex-
plorado no diálogo entre a Geografia e a Antropologia. Há que se considerar, no entan-
to, que no âmbito do Direito, tendo em vista a intensificação da judicialização das áreas
ocupadas pelos indígenas, os estudos antropológicos têm sido relevantes por contribuir
nos processos judiciais ao proporcionar uma abordagem que contempla os modos de
vida, princípios e teorias que embasam a vida social desses povos.
No campo da Etnologia, a territorialidade dos grupos guarani tem sido analisada
a partir das várias vertentes dos deslocamentos territoriais instituídas historicamente
como forma e meio de ocupação e conservação de um amplo território que compreende
partes do Brasil, do Uruguai, da Argentina, do Paraguai e Bolívia6. Em linhas gerais, a
territorialidade guarani se manifesta em suas expressões e técnicas e em uma dinâmica
de ocupação fundamentada na cosmologia, que envolve circulação de pessoas, bens,
conhecimentos e em novas e sucessivas relações. Pode-se dizer que o território guarani é
sustentado por numerosas aldeias que se interagem por meio de dinâmicas socioculturais
o que implica em constante movimentação7.
Embora fundamental no debate atual sobre as questões fundiárias e territoriais
envolvendo povos indígenas, este diálogo não será realizado neste texto que se propõe
apenas a visibilizar fragmentos do pensamento e da cosmologia dos Ava-Guarani face
à perduração da crítica situação em que se encontram. Depoimentos colhidos recente-
mente8 entre os Avá-Guarani e o histórico do processo de colonização na região desde o
início do século passado apresentam uma série de contrastes de visões acerca da vocação
da terra e das águas9.

6
Num esforço conjunto de reunir e atualizar fontes precisas sobre a localização das aldeias Guarani foi elaborado o Mapa
Guarani Intercontinental, 2016, que integra um caderno que contempla informações sobre o povo Guarani. Esse estudo,
em fase de finalização, foi elaborado por meio de parcerias entre institutos do Brasil (CTI, CIMI, ISA, UNILA, CGY),
Paraguai (CONAPI), Argentina (ENDEPA, Univ. Nacional de Salta), Bolívia (APG, CER-DET, CIPCA, ILC-Guarani).
7
No Brasil, sobretudo nos últimos 30 anos, foram produzidos uma série de estudos que abordam fatores da mobilidade
guarani atual em seu território, tais como multilocalidade e migração. Mesmo não trazendo aqui contribuições impor-
tantes, menciono, em ordem cronológica: Ladeira (1992/2007, 2001/2008), Garlet (1997), Ciccarone (2001), Darella
(2004), Mello (2004), Pissolato (2008), Testa (2014). Curt Nimuendaju (1987), em estudos realizados em 1914 na
região da atual Reserva de Araribá no interior paulista, descreveu passagens da mitologia dos atuais Nhandeva, entre os
quais se inserem os Ava-Guarani, associando-as aos movimentos migratórios de grupos que se dirigiam à costa atlântica.
Este autor colocou em pauta yvy marã’eỹ, conceito comumente traduzido na literatura do século passado como “terra sem
mal”, que suscitou e inovou, desde então, abordagens sobre um tema clássico que continua atual entre os grupos guarani.
8
Durante trabalhos realizados para a Comissão Nacional da Verdade, pela equipe do Centro de Trabalho Indigenista
(CTI) e pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e assessores.
9
Dentre os pareceres e pesquisas sobre a dramática situação dos Guarani desterrados dos seus tapyi em Ocoy-Jacutinga,
nas proximidades do rio Iguaçu, devido à exploração das terras e do trabalho pelas frentes colonizadoras, à expulsão para
criação do Parque Nacional do Iguaçu e à inundação para construção da hidrelétrica de Itaipu, citamos o de Edgard de

54
Tal como outros povos indígenas que vivem em situação de contato sistemático
em terras fortemente disputadas, os Guarani, no que tange às relações com a sociedade
envolvente, têm que lidar com as representações que lhes imputadas com a finalidade de
destituí-los de direitos territoriais e humanos. Nesse sentido, os Ava-Guarani incluíram,
nas representações de seu mundo, referências às relações com os não indígenas, os Karai,
com quem, em razão da expropriação de suas terras, se veem destinados a compartilhar,
de forma extremamente assimétrica e desigual, uma mesma base terrestre.

Desenho na escola do Tekoha Guarani (Município de Guaíra/PR)

Assis Carvalho, Avá Guarani do Ocoi-Jacutinga (1981) e Das terras dos índios a índios sem terra, o Estado e os Guarani do
Oco’y: violência, silêncio e luta de Maria Lucia Brant de Carvalho (2013). Além da inundação das terras às margens do Rio
Paraná, quando foram fechadas as comportas da Usina Hidrelétrica de Itaipu, as “Sete Quedas”, considerado o maior em
volume d’água do mundo, desapareceram.
A mesma sorte de tragédias sofreram os Ava-Guarani paranaenses no lado paraguaio com a construção da Itaipu Bina-
cional, quando 36 comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais. A publicação Deuda Histórica de la Itaipú
binacional con los Ava Guaraní paranaenses elaborada com o apoio da ASOCIACIÓN YVY PARANÁ REMBE’YPE,
CONAPI e Pastoral Indígena de Nueva Esperanza (Asunción, Paraguay, 2011) apresenta um registro minucioso desse
fato histórico e da luta dos Ava Guaraní por seus direitos.

55
Plantação de soja bordeando parte da aldeia Tatury (Município de Guaíra),
e chegando até a casa dos Guarani. (foto: Teresa Paris, 2016, arquivo CTI)

No processo de territorialização mais recente os Ava-Guarani constituíram seus


tekoha com relativa proximidade. A formação de um complexo territorial por aldeias
interligadas por laços de afinidade e consanguinidade tem sido fundamental, pois, ainda
que as relações políticas não sejam sempre harmoniosas, funcionam como uma rede pró-
pria de amparo e proteção contra uma série de dificuldades advindas dos enfrentamentos
com a sociedade envolvente. Entrevistas recentes10, demonstram em gênero e grau os
obstáculos para exercerem seus direitos em sentido amplo. Para minimizar ou reverter
tal condição sabem ser necessário articulação entre os tekoha e esforços conjuntos, sobre-
tudo quanto aos desdobramentos das ações judiciais visando à reintegração de posse de
particulares. Reproduzimos algumas linhas transcritas:

(...) uns brancos quiseram entrar dentro da mata que fica aqui na aldeia. Eles já
tinham derrubado árvores e aberto uma picada com máquina. Não queríamos que
mexessem no mato: é nossa fonte de lenha e remédio. Não podíamos deixar que
destruíssem o nosso mato. É um mato pequeno, mas tem muita coisa de valor pra
nós. Ficamos frente a frente com eles. Tinha um policial civil com metralhadora.
(...) Dissemos que não queríamos a lavoura deles, que estávamos lá pra defender
o mato (...)

10
gravadas em diversos tekoha no âmbito do projeto “Combate às violências praticadas contra o povo indígena Avá-Gua-
rani da região de Guaíra e Terra Roxa (PR) – em busca do reconhecimento de direitos humanos e territoriais”, realizado
pela Comissão Guarani Yvyrupa entre 2015 e 2016.

56
”Os alunos são xingados. Tem um cachorro na sede (da fazenda) que fica tocando
na direção dos alunos. Falaram que os alunos indígenas são bicho, vagabundos,
invasores. Eles já correram atrás dos alunos com moto quando eles descem do
ônibus para caminhar atrás da aldeia. (...).

(...) entrou com reintegração de posse. (...) veio Polícia Federal e Força Nacional
pedir pra gente sair daqui. Falaram que a terra não é do índio, queriam tirar à
força. (...).

OS AVA-GUARANI E A REGIÃO OESTE DO PARANÁ

A classificação dos Guarani no Brasil, vigente a partir de meados do século XX,


em três grupos - Kaiowa, Nhandeva e Mbya11 - pode não equivaler às autodenominações
dos Guarani que são pautadas em relação aos lugares de origem, à consanguinidade, às
performances rituais, aos processos históricos de contato, entre outros aspectos. Todavia
explicita as distinções indicadas pelos próprios Guarani, sobretudo às relacionadas à
disposição dos lugares e das regiões que ocupam. A parcialidade Guarani Nhandeva (“os
que somos nós”) abrange os Ava-Guarani que vivem nas margens do rio Paraná, conhe-
cidos por Ava-Katu-Ete12 (autênticos e verdadeiros homens) e Chiripá no Paraguai.
A predominância dos Ava-Guarani no oeste do Paraná demonstra que o elo que
os une a essa porção do território guarani tem suas raízes numa matriz cosmológica que
a situa no centro da Terra, yvy mbyte (yvy-terra, mbyte-meio), lugar de origem da primeira
humanidade, isto é, dos Ava-Guarani. Esse fato atesta sua antiguidade comprovada por
uma continuidade histórica de permanência na região, observada na intricada rede de
relações que sucessivamente se atualizam.
Na contramão da própria historiografia sobre a colonização, marcada pelas frentes
de extermínio indígena, os Guarani que resistiram ainda são via de regra considerados
como sendo estrangeiros ou aculturados13. Negar ou evitar que sejam identificados com
os grupos nativos que historicamente constituíam a população mais numerosa na região
até início do século passado são meios sedimentados para destituí-los de direitos. Se os
Ava-Guarani atuais não pertencem à região na qual, a despeito dos massacres, permane-

11
Os estudos etnográficos realizados por Nimuendaju, Cadogan e Schaden confluem para uma classificação dos grupos
Guarani a partir de suas especificidades linguísticas, de organização social, costumes e rituais
12
BARTOLOME, 1991.
13
Em depoimento, sr. Nabor Martins, no Tekoha Marangatu (Guaíra), conta, com desconforto, que não eram chamados
por seus nomes, mas sim como cavalo, cachorro manco, macaco, nos contratos de trabalho na exploração da erva mate
e nas fazenda os eram obrigados a se identificarem como paraguaios ou bugres, jamais como indígenas (Ava-Guarani ou
Guarani). Esta forma de não identificá-los como indígenas e nativos detentores de direitos, confluiu para a exigência de
que tirassem seus documentos de identificação (RANI) na representação da Funai instalada na Reserva de Porto Lindo
(Japorã, MS), constando esta como local de nascimento. Essa história comum aos vários depoimentos dos anciões é
relatada exaustivamente no depoimento do Sr. Pivo Benites que consta deste artigo.

57
ceram ou a ela retornaram mantendo uma continuidade identitária com o lugar e com
seus antepassados que ali viveram, qual a terra que lhes cabe?

Espacialização dos grupos Guarani, 2014

58
O COMEÇO DO MUNDO E OS AVA-GUARANI
E A PRERROGATIVA DO FIM DO MUNDO

Para além dos depoimentos - alguns repletos de menções à fartura de águas limpas,
florestas e áreas onde podiam cultivar seus próprios alimentos, e outros plenos de lembran-
ças de assassinatos, torturas, explorações e humilhações14 -, fatores de ordem cosmológica
transparecem nos mitos de origem da terra e da humanidade e acrescentam matizes à histó-
ria da presença guarani. Alguns fragmentos de uma versão narrada recentemente elucidam
as razões do sentimento de pertencimento a esta região do território guarani.

No começo, primeiro nem nós Guarani morava aqui, nem nós sabíamos onde
morar, pois essa terra era tudo de água, não tem nem um pedaço de terra. E depois
Nhandejara15 veio aqui para construir a terra para nós morar. Em cima da água ele
fez a terra para nós morar. Nhandejara fazia a terra pra morar todo mundo, cada
família, todo animal, tudo. Yvyguaçu, o mundo completo, terra para todos. Aqui
onde ficou o Brasil, no Paraná, não existia o karai16. Diz que karai estava em outro
país, outro lugar. Só que aqui no Brasil já tinha índio, mas karai veio de outro país.
Não tinha divisa nem um pedaço. Aí era terra para morar todos nós. Depois, de-
pois que o branco, o karai, veio, aí depois que dividiu, fazia divisa, punha o nome
de estrada, cidade, Brasil, Paraguai...
Não existia tekoha17, aldeia, era tudo mato virgem, era tudo território do indígena.
Não tinha assim divisa, mas tinha outras tribos do guarani, do tupi.
Era tudo mato. Se acabava o alimento, ia buscar em outro lugar, no Tekoha Pohã
Renda, ou no Guaíra, onde depois ficou cidade, por exemplo, era tudo mato
naquele tempo.
(...) Antigamente, quando nossos antigos avós moravam aqui, o mato era grande.
Então Nhandejara criou terra, o mato, pra todos nós mesmos. E os remédios, os
alimentos... E ele também deu o sonho. Antes tinha um mato assim grande para
viver, mas agora parece não tem mais floresta, o mato é só esse daqui. Então, por
isso que Nhanderu escolhe o mato pra nós vir aqui morar. Ele mostra no sonho,
não pra todo mundo, é o xamõi que sonha, é o xamõi e xedjaryi18 que sonham.

Como transparece nas palavras do xamõi, a seguir, o fim do mundo19 já estava pre-
destinado, como possibilidade, nos mitos de origem do mundo. Vimos que os agravos
cometidos contra a terra edificada para os Ava, assim como os extermínios e as violências
14
Depoimento do sr. Santiago no Tekoha Yvyraty Porã (Terra Roxa), registrado em junho de 2016 e traduzido por seus netos.
15
“Nosso dono”, divindade criadora.
16
É como os Ava se referem aos “brancos”, desde a conquista, designação que perdura em toda região de Guaíra e Salto
Guaíra (no Brasil e Paraguai). Os Ava atribuíam o nome Karai aos desbravadores europeus numa analogia aos seus pró-
prios dirigentes assim nomeados, como deferência. Os Guarani Mbya rechaçam essa atribuição empregando, na lingua-
gem usual, o termo jurua (ju-boca, a-cabelo) que se generalizou como apodo a todos “brancos”.
17
Tekoha, referido aqui como reduto, como aldeia, onde se impõe limites territoriais.
18
Avôs e avós. Assim se referem também às lideranças espirituais.
19
Ver Pierri (2013) que propõe uma leitura original das concepções cosmológicas e da mitologia guarani sobre os cata-
clismas e o fim do mundo.

59
que os vitimizaram, foram incorporados na avaliação dos sintomas de “cansaço” da terra
e da necessidade de reerguê-la para que o fim do mundo continue sendo somente uma
perspectiva inserida no discurso ecológico.

Nhanderu Tenondegua20. Então, antigamente21, essa terra era tudo de água, não
tem nem um pedaço de terra. Em cima da água Nhandejara começou a fazer a
terra para nós morar. Colocou 4 mourões (esteios), um em cada canto, parecia
madeira mas não era. Só existia água e, no meio, ele fazia a terra, bem no meio.
A terra é aqui (mostra no desenho feito na terra). Isso aqui já é de terra, começou
aqui e foi crescendo, aumentando. Diz que dentro desses mourões, nos 4 cantos,
Nhanderu deixava no meio um fogo, punha no meio um fogo. E, cada vez que
Nhanderu soltava um fogo para cair na terra, caia no mar. Se o fogo acerta no
mourão onde tem fogo aí vai acender aqui, aqui, aqui e vai queimando tudo, o
mundo inteiro. É isso que Nhanderu deixava para o final do mundo22.

Em cada canto um mourão e no meio um pedaço redondo de terra surgindo no meio


da água. Desenho feito pelo xamõi Santiago no solo do Tekoha Yvyraty Porã (Terra
Roxa), em junho de 2016. (foto: Inês Ladeira, arquivo CTI)
20
Nhanderu Tenondegua (nosso pai primeiro) corresponde à Nhandejara.
21
Refere-se aos tempos primordiais.
22
Não é possível a partir da breve fala do Sr. Santiago traçar ou descartar analogias com a versão de Nimuendaju (1987)
do mito Apapocuva, que este autor meticulosamente registrou. Segundo o mito, Nhanderuvuçu fez a escora da terra (yvy
itá) com duas vigas: uma no sentido norte sul e outra no leste-oeste. No momento da destruição, Nhandery puxará a
extremidade oriental da cruz para leste, fazendo a terra perder seu suporte ocidental. Então, “um fogo subterrâneo co-
meçará a devorar o subsolo a partir do bordo ocidental da terra; um pouco adiante, suas labaredas alcançam a superfície,
e o trecho que ficou atrás desmorona com estrondo. (...) a destruição avança de oeste para leste”. Para Nimuendaju, as
caminhadas para leste, à serra do Mar (“yvytý paráry jocoa”), significariam a salvação.

60
Em longa e recente conversa com Sr. Ismael no Tekoha Karumbey (município
de Guaíra), ele contou parte de seus colóquios com os xamõi, sobretudo com aqueles
que são Nhanderu na terra, os que tem o poder de ver os sinais enviados por Nhanderu
Guassu. “Porque o xamõi fala assim: se vai acontecer isso aí, com o tempo, se vai acon-
tecer isso aí, ele vai ver o sinal”23. E continua suas reflexões:

(...) Nós estamos chegando no fim do mundo. Pra gente falar mesmo: ah! nós
vamos morrer de fogo, de água, não! Mas de sofrimento pode. Esse aí é o sinal,
ou seja, vai ter uma guerra...
Porque que o Brasil está brigando aqui dentro? Nos outros países também estão
em guerra. Por causa do dinheiro. E por aí vai acontecer o fim do mundo, e por
isso o Guarani tem que rezar. E a gente está batalhando, lutando pra conseguir a
retomada de nossa demarcação. (...).
Eu já pensei muito quando Nhanderu falou assim pra mim: agora, a partir de hoje, o fim
do mundo não vai chegar mais, somos nós, nós que vamos chegar no fim do mundo.
Quantos milhares de pessoas não morrem em todo lugar? Tanto no Brasil, como no
Paraguai, nos outros países. E, com o tempo, esse mundo vai acabar, esse vai acabar.
Eu acho que essas histórias são tudo verdade porque eu sempre conversei com
xamõi... porque o povo fala assim, diz que vai chegar o fim do mundo. E sobre
isso eu tive conversando com xamõi e ele estava explicando pra mim: ‘o fim do
mundo nunca vai chegar. Não vai ter esse fim do mundo. O fim do mundo é nós
mesmos’, ele falou, o xamõi falou. E eu acho que isso é verdade porque quantos
de nós estamos vindo em cima da terra? E quantas pessoas já estão morrendo,
estão saindo de cima da terra: milhares e milhares, e estão tudo velho.

Por sua vez Sr. Santiago contou que, antigamente, não faziam casa como agora
(“não havia ferramentas”), então iam mudando pra todos os lados. Às vezes moravam
embaixo de uma árvore caída “2 meses, 3 meses” e, aí, ele já mudavam de novo para
outro lado, e quando alguém da família morria não faziam nenhuma sepultura; “amar-
ravam o corpo no cipó, limpavam debaixo de uma árvore e colocavam lá”. O tempo
passou e, mais tarde, quando foram buscar os ossos não sabiam mais onde estava o “es-
queleto”, porque tudo já havia sido derrubado, e não podiam encontrar os ossos pois “o
trator do karai já passou por cima e misturou tudo com terra”.
Há mais de um século, Nimuendaju presenciou e reproduziu as palavras contadas
pelos “pajés” sobre as agruras os lamentos da terra:

Não é só a tribo dos Guarani que está velha e cansada, mas é toda a natureza.
Quando os pajés, em seus sonhos, vão ter com Nhanderuvuçu, ouvem muitas
vezes como a terra lhe implora: ‘devorei cadáveres demais, estou farta e cansada,
ponha um fim a isto, meu pai!’ E assim também clama a água ao criador para que

23
“Assim é que é a história do poder do Guarani, não de todos mas de alguns. Desses xamõi “ninguém se esconde, ele vê o
sofrimento, a alegria, como num aparelho de RX, ele vê o que a pessoa está pensando, se está com saúde ou doença (...)”.

61
a deixe descansar; e assim também as árvores, que fornecem a lenha e o material
de construção; e assim todo o resto da natureza. Diariamente se espera que Ñan-
deruvuçu atenda as súplicas da sua criação.

As projeções pessimistas feitas por diversos autores a partir das predestinações


apontadas pelos Guarani, contidas nos mitos de origem, não se realizaram afinal. Parece
que o lamento dos Guarani, justificado pela triste história de contato, tem servido, ao
contrário do que é apregoado muitas vezes por eles mesmos, de alento para continuarem
se imbuindo de sua responsabilidade de manter a terra.
Parece que devido às radicais transformações na porção central de seu mundo (yvy
mbyte, de onde surgiram), os Ava-Guarani adquiriram um apurado sentido de paisagem.
Uma paisagem intangível e imaginada que acoberta lugares submersos e destruídos, re-
fletidos numa memória coletiva que penetrou as novas gerações, repleta de sentidos,
aromas, sons e cores, da qual são parte. Os que submergiram com ela e com os locais
de acesso à yvy marã’eỹ (como veremos adiante no depoimento de Paulina) povoam e
historicizam suas recordações. Os que dela foram arrancados permanecem na terra com
a ideia e o sentimento de renovação.
Entretanto não se pode ignorar certa sensação de que, embora se sintam vítimas
dos processos de colonização que os obrigaram a remodelar vários aspectos de seu modo
de vida, admitem certa culpa por não terem conseguido, como seus antepassados, alcan-
çar yvy marã’eỹ embora esta possibilidade não esteja totalmente descartada.

Não tem pra todo mundo como chegar lá em yvy marã’eỹ24 porque agora existe
pecado que nós aqui da terra, gente humana, já faz todo o pecado.
Ninguém mais conseguiu, mas pode conseguir. Pra chegar lá, tem que rezar25...
nós acreditamos assim.
Nhanderu, ele mostra o caminho, mas não é assim igual como nós vemos agora.
Antes que o karai chegou já tinha a doutrina indígena do guarani: não pode rou-
bar, não pode mentir, antes do karai a gente já sabia a doutrina dos antigos.
Os antigos conseguiram, muito conseguiram. Vem um caminho, uma estrada da-
qui vem, fica um metro de altura, quem não tem pecado foi mas quem tem não
vai. Diz que xamõi rezava 3 meses, 4 meses pra chegar lá onde Nhanderu mora26.

24
yvy marã’eỹ: a Terra da eternidade, onde nada tem fim, nada se acaba ou estraga, tudo se renova periodicamente. (...)yvy
marã’eỹ é composta por elementos originais que não se esgotam em virtude da qualidade de perenidade de seus elemen-
tos. Esse pensamento define os modos de relação com o ambiente, do uso da natureza e da agricultura, em que a noção
de abundância está associada à possibilidade da renovação dos ciclos, e não ao armazenamento e comprometimento das
espécies naturais (LADEIRA, 1992, p. 96).
25
Realizar os cantos (mboraei) e danças (jeroky) Ritualísticos.
26
Explicação de Seu Santiago, expressada por seu neto. Nessa ocasião relataram brevemente uma passagem registrada na
literatura. “Nhanderu estendeu o caminho para chegarem em yvy marã’eỹ e, no caminho, tinham que pegar, bicar, a gua-
vira (gabiroba) rápido, quem vai ir pro céu. Quem ficou lá pra trás pra pegar guavira foi brincar no mato, subiu na árvore
e já esqueceu, ficou no mato virou macaco. E aí os outros já foram pro céu e ele esqueceu, virou macaco”.

62
Além das praticas rituais é necessário cuidar do corpo, tornando-o leve e sadio, para alcan-
çar a plenitude (aguyje) e alcançar yvy marã’eỹ, o que é possível com uma alimentação produzida
com seus cultivos e as espécies deixadas por Nhanderu na terra. Como explica o xamõi Ismael,

Nhandejara deixou pra gente o mato, pros guarani. Tudo o que tem no mato.
Todo remédio ele deixou no mato pra gente. Aí tem mel de abelha, jataizinho,
tem vários mel e tem vários alimentos no mato. E vários remédios no mato pros
guarani. Pra gente tomar banho com os remédios, pra gente tomar no chimarrão,
no terere, pra dor do coração pra dor de cabeça, tem tudo no mato. Porque? Nhan-
deru deixou, batizou, deixou no mato pra gente.
Antigamente caia a chuva porque existia mato e por isso a gente tinha saúde,
porque a água é a nossa vida. Não só dos índios só, de todos. Agora, porque agora
ataca muito a doença? Por causa química27. Agora, só de vez em quando a gente
vê chuva, água já está acabando. Antigamente não, onde você corta no mato você
vai achar mina boa, geladinha, vai tomar água, água é vitamina. Qualquer árvore,
cipó você corta assim, e cai aquela água, você vai tomando aquela água, água do
cipó. Não faltava, e agora? O sol esquenta demais! Porque não tem mais mato,
acabou. E acabaram com a nossa vida, nossa vida está terminada.
E por isso que a gente precisa cooperar, quem sabe, e ter de novo esse mato, um
pouquinho. O branco fala assim; os índios vai querer uma terra aí só pra campear
o mato. Vai ser bom pra nós e pra todos. Porque todas as coisas vão voltar de novo,
tudo não sei... mas vai voltar metade. Porque esse mato defende nossa natureza.

REGISTROS HISTÓRICOS DA PRESENÇA GUARANI NO SÉCULO XVI

Os registros dos viajantes e cronistas nos primeiros séculos da conquista da América do


Sul, demonstram a amplidão do território ocupado pelos Guarani nas porções meridional e
oriental da América do Sul. O português Aleixo Garcia28 teria sido o primeiro europeu a atra-
vessar o continente, a partir da Ilha de Santa Catarina, onde naufragou no ano de 1515, até
Assunção, pelo caminho Peabiru. Álvaro Nuñez Cabeza de Vaca chega à Ilha de Santa Catarina
em março do ano de 1541, permanecendo entre os indígenas durante seis meses até partir rumo
à Assunção. Durante o percurso orientado pelos guias indígenas, eram os inúmeros “povoados
de índios guaranis”, que recebiam e abasteciam com abundância sua expedição. Segundo relata
“Esses índios pertencem à tribo dos guaranis; são lavradores que semeiam o milho e a mandioca
duas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que nós na Espanha, possuem

27
Queixa-se da destruição do solo com a criação de animais, de gado, e a soja. E do veneno, “até o milho agora precisa de
veneno”. Preocupa com a demarcação porque o solo já estará pobre, quando a terra reverter pra eles.
28
Integrante da armada de João Dias de Solis, naufragou na Ilha de Santa Catarina em 1515, onde conviveu com os
Guarani Carijós. Com sua expedição formada por centenas de índios guarani e de outros náufragos, registrou os diversos
assentamentos indígenas na região oeste do atual Paraná, no ano de1522. (BOND, 1996). O Caminho de Peabiru ligava
a Capitania de São Vicente  à cidade de Cusco, no Peru, cortando o Paraná – de leste a oeste - penetrava no chaco para-
guaio, atravessava a Bolívia, a Cordilheira dos Andes e terminava no sul do Peru, onde pegava parte da costa do Pacífico.

63
muitos papagaios, ocupam uma grande extensão de terra e falam uma só língua. (...)” (CABE-
ZA DE VACA, 199, p. 157). Passou pelos rios Iguaçu29, Piqueri30, Tibagi, Taquari (hoje Ivaí),
Iguaçu novamente (próximo à foz do rio Cotegipe)31, Paraná e Paraguai, chegando a Assunção
em março de 1542. Percorrera 1.600 km em 162 dias. Ao mencionar o rio Iguaçu, próximo ao
ponto onde embarcaram rumo ao rio Paraná, descreve a fúria das águas: “(...) o rio dá uns saltos
por uns penhascos enormes e a água golpeia a terra com tanta força que de muito longe se ouve
o ruído”. Foi com muito trabalho que levaram por terras suas canoas, até “passar aqueles saltos”
e voltarem a navegar pelo Paraná. “Nas margens do rio estava postado um grande número de
índios guaranis, todos enfeitados com plumas de papagaio e muito pintados de maneira multi-
colorida, com seus arcos e flechas na mão, formando um esquadrão que era maravilhoso de se
ver” (CABEZA DE VACA, 1999, p. 168-169).

29
Esse rio Iguaçu é tão largo quanto o Guadalquivir (...). É muito povoado em toda sua ribeira, estando ali a gente mais
rica de todas essas terras. São lavradores e criadores, além de ótimos caçadores e pescadores. Entre suas caças estão os
porcos montanheses, veados, antas, faisões, perdizes e codornas. Entre suas plantações, além da mandioca, milho e batata,
figura também o amendoim. Também colhem muitas frutas e mel (Cabeza de Vaca, 1999, p. 166).
30
Ao se referir aos entornos do povoado guarani situado às margens do rio Piqueri, Cabeza de Vaca (1999, p. 167)
menciona as “grandes campinas, os excelentes rios e arroios, muitas árvores e muita sombra, sendo a terra mais fértil do
mundo, estando pronta para semear a pastagem” assim como é propícia à colocação de engenhos de açúcar. E acrescenta:
“Toda sua gente é muito amiga e com muito pouco trabalho poderão ser trazidos para a nossa santa fé católica” (idem).
31
Cabeza de Vaca (1999) relata o ataque dos índios da margem do rio Paraná aos portugueses enviados por Martim
Afonso de Souza para “descobrirem aquelas terras”. Foram mortos quando atravessavam o rio em canoas.

64
Ulrich Schmidel participou da conquista da região do Rio de la Plata a serviço
dos espanhóis fundando, em 1534, o povoado de Buenos Aires. No sentido contrário
ao de Cabeza de Vaca percorreu o caminho de Peabiru partindo de Santa Maria de As-
sunção em dezembro de 1552, com 20 nativos como carregadores. Atravessando o sul
brasileiro, alcançou São Vicente na costa atlântica, após seis meses de marcha (MAACK,
1981, p. 34). Schmidel, porém não só passou pelos povoados indígenas como participou
de várias expedições guerreiras contra os nativos. No século XVII, o jesuíta Antonio Ruiz
de Montoya, da Companhia de Jesus, descreveu a experiência de redução dos Guarani
nas Missões da antiga região do Guayrá, para evitar que fossem escravizados pelos enco-
menderos espanhóis e os bandeirantes paulistas. (MONTOYA, 1997).
Apesar de ocuparem uma enorme extensão de terra e de estarem organizados
em numerosos assentamentos, os Guarani não possuíam um poder político centrali-
zador, mantendo a autonomia dos seus núcleos familiares. Assim ocorre ainda hoje.
A existência dos caminhos e trilhas que levavam aos diversos povoados situados ao
longo dos trajetos orientados pelos guias indígenas pressupõe que já existiam relações
de parentesco e reciprocidade entre os assentamentos implicando em constantes des-
locamentos territoriais.
Os tapýi, como designam os Ava-Guarani seus núcleos residenciais familiares,
mantinham distâncias suficientes entre eles de modo a assegurar a rotatividade das ro-
ças e o não esgotamento do solo. Ainda hoje esse é o modelo ideal dos Guarani apesar
da indisponibilidade de terras que obriga diversas famílias a viverem confinados em
áreas reduzidas. A ocupação dos Guarani em seu território tradicional é notada, além
dos relatos dos cronistas, viajantes e historiadores, nas palavras dos próprios Guarani
atuais que explicam ter sido sempre assim, que por onde caminhassem sempre encon-
trariam uma aldeia.

(...) sempre, sempre foi assim: caminhando e encontrando as aldeias e os parentes,
e parando, e trabalhando, e formando outra aldeia. E, antigamente, é como hoje,
existia muitas aldeias, até muito mais, que a gente ia andando e encontrando. E
tem aldeia que não existe mais, e agora tem outras. Mas, antes, tinha mais gente,
mais aldeias e parentes nos caminhos32.

Depois de séculos de extermínio e violências buscando uma visibilidade maior


no seio das sociedades não-indígenas, os Ava-Guarani de Guaíra e Terra Roxa, têm se
manifestado publicamente na defesa de seus direitos humanos e territoriais e buscado
alianças com organizações indígenas e seus aliados.

32
Conversas com xamõi Ermenegildo, que nasceu em Misiones (Argentina), na aldeia Pindoty, Vale do Ribeira, SP, 2000.

65
A TERRITORIALIZAÇÃO DOS AVÁ-GUARANI NOS SÉCULOS XX E XXI

A territorialização dos Avá-Guarani d’oeste do Paraná, principalmente nos atuais


municípios de Guaíra e Terra Roxa, ganhou novos conteúdos ao longo dos séculos XX
e XXI. Os conteúdos eram marcados, principalmente, por uma mobilidade autônoma33
dos indígenas, a qual envolve visitas a parentes para atividades de agricultura (troca de
sementes tradicionais, por exemplo), coleta, caça, ou em função de casamentos, morte,
batismo e outros rituais. Ou ainda como recordam os xamõi dos rituais ocorridos na casa
de reza central, localizada nas imediações da atual Vila Guarani no município de Guaíra,
como um momento de encontro dos Avá-Guarani dos diversos tapyi34 e tekoha existentes
tanto na margem esquerda como do na margem direita do Rio Paraná, pois segundo Sr.
Damião Acosta35, “nesse tempo o Rio Paraná era estreito, os Guarani atravessavam com
a maroma, quem não sabia nadar, e outros atravessavam nadando”.
Os novos conteúdos se destacam pela constante e intensa violência em que os
Avá-Guarani foram submetidos, principalmente pelo processo de expropriação de suas
terras36. A expropriação dos indígenas de suas terras no século XX no oeste do Paraná
foi marcada, principalmente em Guaíra e Terra Roxa, pela Cia Matte Laranjeira, nas
primeiras décadas do século XX, pela colonização, em meados do referido século, e pela
construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1980.
As ações da Cia Matte Laranjeira iniciaram no final do século XIX, após a Guerra
do Paraguai, com a exploração dos ervais nativos nas terras dos Guarani e utilização de
intensa mão-de-obra indígena pelo sistema de obrages.
Segundo Wachowicz (1982)

A chamada obrage foi uma propriedade e/ou exploração, típica das regiões cober-
tas de matas subtropicais, em território argentino e paraguaio. O interesse fun-
damental de um obragero não era a colonização em regime de pequena ou média
propriedade, nem o povoamento de suas vastas terras. Seu objetivo precípuo era
a extração da erva-mate nativa da região, bem como de madeira em toros, abun-
dante na mata nativa subtropical. A obrage portanto, estava ligada ao binômio ex-
trativista: mate-madeira. Essa exploração, típica desde o início do século passado
na Argentina e no Paraguai, penetrou de forma natural e espontânea pelos vales
navegáveis do Paraná e Paraguai. Como controle geoeconômico da navegação do
sistema do Prata pertencia à Argentina, foram os obrageros desta nação, os princi-

33
O que Brighenti (2010) denomina de “fatores de ordem interna”.
34
Tapyi era a forma como viviam os Ava-Guarani dessa região, caraterizada por agrupamentos familiares e suas nomeações
davam-se, principalmente, de acordo com o rio que os margeava ou o mesmo com uma importante liderança espiritual. Noção
que se difere de aldeia, que segundo os Guarani mais velhos só passou a ser utilizado com a chegada dos não indígenas.
35
Depoimento colhido em 29 de março de 2014 no Tekoha Y’hovy (mun. Guaíra).
36
A expropriação das terras deve ser entendida como o processo que priva, temporariamente ou não, o sujeito de suas
terras, cerceia seus usos e está historicamente relacionada no Brasil com a constituição da propriedade privada capitalista
da terra. (FARIA, 2016)

66
pais responsáveis pela introdução desse sistema em território brasileiro, ou mais
especificamente: paranaense e matogrossense. (WACHOWICZ, 1982, p. 44)

Quando o Governo imperial concedeu terras devolutas na região da então re-


cém-constituída fronteira a Tomás Larangeira (Cia. Mate Laranjeira) para a exploração
e a comercialização de erva-mate37, as quais já eram ocupadas pelos Guarani. Segundo
Brand, Ferreira e Almeida (s/d) essa área de concessão foi ampliada sucessivamente com
o apoio de políticos influentes, assim como o período de concessão, principalmente com
a República, em que as terras devolutas passaram a ser de responsabilidade dos Gover-
nos Estaduais. Foi nesse período que a Companhia ampliou os limites de suas posses
e conseguiu o monopólio na exploração da erva-mate em toda a região abrangida pelo
arrendamento e ultrapassou os cinco milhões de hectares, tornando-se um dos maiores
arrendamentos de terras devolutas no Brasil republicano (BRAND, FERREIRA e AL-
MEIDA, s/d).
Diferentemente das concessões de terras na Província do Mato Grosso, em Guaí-
ra, n’oeste do Paraná, a Cia Matte Laranjeira as adquiriu, aproximadamente 10 mil
hectares, a preços ínfimos em 1918. Manteve a estratégia de explorar os ervais nativos
com mão de obra indígena pelo sistema de obrage, e ainda instalou e operou a estrada
de ferro Guaíra - Porto Mendes, fundamental para a transposição do trecho impróprio
para navegação do rio Paraná (os saltos da Sete Quedas), o que exitou o escoamento de
sua produção.
Assim, como ressalta o autor a Cia Matte Laranjeira de foi de suma importância,
porém não exclusiva na exploração d’oeste do Paraná38. Isto porque outros obrageros ad-
quiriram ou receberam concessões do governo paranaense a baixos preços, ou ainda, em
sua maioria, sem documentação alguma exploraram as terras ocupadas pelos Guarani e
sua mão de obra.

37
DECRETO N. 8799 - DE 9 DE DEZEMBRO DE 1882, “Attendendo ao que Me requereu Thomaz Larangeira, Hei
por bem Conceder-lhe permissão para colher herva-matte nos terrenos devolutas que demoram nos limites da Província
de Mato Grosso com a Republica do Paraguay, entre os marcos do Rincão de Julho e cabeceiras do lguatemy, partindo de
leste para o interior”. Dentre as cláusulas deste decreto estavam à concessão por 10 anos e sem direto a impedir (direta ou
indiretamente) a colheita de erva dos moradores das terras concedidas.
38
Outra obrage importante na região foi comandada por Júlio Tomas Allica e perdurou nas primeiras décadas do século
XX. Allica explorava as terras concedidas pelo governo do Paraná à Cia. Maderas del Alto Paraná e à Brazil Railway
Company, através de sua subsidiária, a Cia. Brasileira de Viação e Comércio – BRAVIACO, que faziam divisa às terras da
Cia. Mate Larangeira. No entanto, como ressalta Wachowicz (1982) apenas uma parte ínfima das terras exploradas por
Allica lhe pertenciam de fato por essa concessão, 400 alqueires na margem esquerda do Rio Paraná, as demais, centenas
de quilômetros para o interior, passando pelas margens do Rio Piquiri e se estendendo até o atual município de Campo
Mourão, ele detinha apenas o domínio da exploração dos ervais e de madeiras. Ainda segundo o autor, o “império de Alli-
ca” foi constituído com cruéis assassinatos e massacres de seus trabalhadores. Fato presente na memória dos Ava-Guarani
da região, como destacou Sr. Angelo, do Tekoha Y’Hovy, “tinha um homem branco chamado Júlio Allica, que se alegrava
vendo as arvores sendo derrubadas, e mandava matar pessoas indígenas. Acontecendo isso a minha mãe nos levou embora
pelo rio, assim passamos para o outro lado no Mato Grosso do Sul. (...) Nós fugimos do homem chamado Júlio Allica”.

67
Em poucas décadas, a costa paranaense viu-se ocupada por cerca de duas dezenas dessas
obrages, e povoada por milhares de trabalhadores. Essa numerosa mão de obra não era
brasileira, era referencialmente paraguaia, I. é., guarani. São os denominados guarani
modernos, descendentes dos índios aldeados pelos jesuítas, nas suas famosas reduções
de Mato Grosso, Paraguai, Paraná e região missioneira. (…) Em consequência, o gua-
rani moderno, que escapou dos paulistas e dos colonos paraguaios, caía novamente nas
mãos ávidas de grandes e fáceis lucros dos obrageros. (WACHOWICZ, 1982, p. 44)

Portanto, a Cia Matte Laranjeira não apenas expropriou os indígenas de sua terra,
mas os explorou por meio da utilização de sua mão de obra. Essas violências permane-
cem na memória dos Avá-Guarani e se desvelam em seus depoimentos.

“Alguns [brancos] matavam [os índios] porque não queriam pagar mão-de-obra
do índio, outros porque trabalhavam muito devagar (…). Tem o ritmo do traba-
lho, né?, então quando não acompanha aquele ritmo, ele [o índio] era morto pelo
não índio. E assim iam pressionando os índios para que todo índio que prestasse
mão-de-obra para a Cia. Mate Laranjeira seguisse aquele ritmo do patrão. Até
então não existia autoridade que fiscalizasse, então o patrão ele mesmo é que era a
autoridade ali. Ele manda sempre e o outro executa.”39
“Eu nasci aqui em Guaíra, antigamente era Salto Guaíra. Eu sou nascido aqui, meu
pai [André Vargas] é daqui e minha mãe é daqui também. [...] Eu me criei aqui e tra-
balhei para a Companhia Matte [Larangeira]. Naquele tempo tinha serviço demais
na Companhia Mate, pra puxar erva do Mato Grosso para a Argentina. Daqui eu
levava erva para Porto Mendes, em 1926 eu já ia puxar erva. [...] Aqui só trabalhava
índio e argentino, brasileiros não tinha muito. Aqui todo mundo falava castelhano.
[...] Eu morava mais pra cá um pouquinho [do Rio Taturi], na estrada de ferro que
vai até Porto Novo, onde antigamente a companhia [Matte] descarregava a erva, ti-
nha índio até o Rio Piquiri. Cada lugar tem 40, 30, 15. Aqui tem um rio que chama
Apepu, ele vai sair lá, onde que a estrada de ferro. Pra cá que eu vivia, tinha muito
bicho bravo no [Rio] Paraná. Morava há uns 50, 60 metros do rio. Pra lá era tudo
cheio de índio, até o Rio Piquiri. Onde tem a cidade era só índio. [...] Antigamente
não era assim não, aqui tinha madeira boa, tinha muito bicho, tem cateto, tem anta,
tinha paca, era mato, né? Ninguém mexia com nós. Era só plantar e agora não tem
mais. Precisamos da terra, porque temos só um pedacinho.”40
“Quando eles chegaram na aldeia para contratar o trabalho prometiam que iam dar
comida, ferramenta e roupa. Assim, eram contratados para trabalhar. No começo
não falavam que tinha que sair das terras, mas aos poucos vinha chegando o desma-
tamento, junto com o trabalho de tirar a erva perto da aldeia. Quando chegou mais
perto ficaram preocupados, mas logo chegou a notícias de que tinham que sair. Era
pra sair porque não podia mais morar aí. (..) Não deixavam ficar nas aldeias! Não
deixavam os trabalhadores pararem de trabalhar. Quando acabavam o trabalho (pelo
desmatamento) eram levados para outros lugares para tirar a erva.”41
39
Depoimento de Simião Benites colhido em julho de 2012 no Tekoha Poha Renda e traduzido por Rufino Deni.
40
Depoimento de Cláudio Barros Vargas, colhido em julho de 2012 no Tekoha Porã.
41
Depoimento de Nabor Martins, colhido em 03 de julho de 2016, traduzido por Leonardo Verá.

68
Essa violência se iniciava desde a infância indígena, como recorda Sr. Damião Acosta
que começou a trabalhar na extração da erva mate com o pai aos 6 anos de idade, e que mui-
tas vezes recebia muito pouco dinheiro ou até mesmo nada. Isto porque muitas vezes quando
o indígena cobrava seu pagamento, ele era morto. Acrescenta que “com muitas pessoas ao
invés de pagar, acertar a conta pelo trabalho deles, ele matavam e jogavam na água. Não vía-
mos o corpo do parente, não tínhamos informação para onde foi levado, e o que aconteceu
com ele”. Conta que, por isso, muitos saíram fugidos d’oeste do Paraná e atravessaram o rio
para o Paraguai. No mesmo sentido, discorreu Sr. Damásio:

“Trabalhavam todos na Cia. Mate. Nem sei quantos, toda a nossa gente trabalhava
na Mate Laranjeira, vinha todo mundo, de Foz, de Porto Mendes, vinha até Guaíra.
Muitos pais de família que vinham trabalhar na Cia. Mate, vinham trabalhar e não
voltavam. Muitos dessa época desapareceram. Muitos fugiam para o Paraguai, para a
Argentina. A gente tem direito nesse lugar porque eles que levavam a gente para outro
lugar. A nossa terra toda eles levaram, levaram a gente pro Paraguai, pra Argentina.”42

A exploração da mão de obra indígena pela Cia Matte Laranjeira perdurou até
meados do século XX, finalizando o sistema de obrage e inicializando a colonização das
terras, com a fragmentação e a comercialização do título adquirido em 192143. Pois,
como ressalta Wachowicz (1982) sobre a exploração típica de obrage,

O homem não era fixado definitivamente como povoador. Circunstancialmente


ele se instalava, como predador dos ervais e extirpador da madeira de lei e do
pinheiro. Ali obragero permanecia até o esgotamento da matéria prima. Uma vez
escassa ou esgotada a matéria prima, o homem levantava acampamento e ia em-
bora, ou procurava alongar a penetração à procura de mais erva mate ou madeira.
(WACHOWICZ, 1982, p. 63-65)

Com a exaustão das espécies de maior valor comercial das matas d’oeste do Pa-
raná, outra alternativa para obtenção de renda foi o processo de colonização das terras.
Processo que consolida a tomada das terras dos Ava-Guarani da região, trazendo novos
sujeitos para sua disputa. Isto porque a colonização d’oeste do Paraná trouxe no seu bojo
a construção discursiva da noção de um “espaço vazio” (SILVA, 2002), ou seja, “povoar
as terras ainda não ocupadas a favor do desenvolvimentismo”.
A colonização se tornou uma plataforma política no governo do estado do Para-
ná em meados do século XX. Quando Moisés Lupion, (1947/50) assumiu o discurso
de realizar a Reforma Agrária, pautada na intensificação da colonização por pequenas
propriedades agrícolas. No entanto, o Governo do Estado passou a titular terra devo-
42
Depoimento de Damásio Martines, colhido em julho de 2014 no Tekoha Y’Hovy.
43
Conforme a transcrição n° 1, do livro 3 do Registro Geral de Imóveis da Comarca de Foz de Iguaçu de 24/05/1921,
com 9.953 hectares, situado no lugar denominado “Margem Esquerda do Rio Paraná”.

69
lutas federais e estaduais, mesmo sem competência jurídica para isso; a distribuir esses
títulos às companhias colonizadoras, “aos laranjas dos mesmos e a fantasmas” 44; e a
comercializar por vezes títulos duplicados e acima de 500 hectares, limite máximo legal.
Isto contribuiu para o aumento do conflito fundiário na região e com isso “‘eliminar’
da história as populações indígenas, os posseiros e empresas paraguaias e argentinas que
exploravam as terras localizadas dentro da Faixa de Fronteira até o final da década de
1930”. (MYSKIW, 2002, p. 142)

Para os governadores Moysés Lupion (1947/50 – 1955/60) e Bento Munhoz da Rocha


Neto (1950/55) realizar a Reforma Agrária era, antes de tudo, incentivar e promover a
colonização das terras devolutas do Sudoeste, Oeste e Noroeste do Estado, por migran-
tes nacionais vindos, sobretudo, dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Para Ney Braga (1961/65) realizar a Reforma Agrária, era sanar os conflitos agrários
causados pela ‘má administração da coisa pública’ e aplicar um projeto de ‘moderni-
zação’ do Paraná tanto na área urbana como na área rural. (MYSKIW, 2002, p. 60)

Segundo o autor a colonização realizada n’oeste do Paraná ocorreu tanto por


meio do Estado do Paraná e pelas empresas colonizadoras, as quais adotaram a mesma
estratégia, o parcelamento das glebas em lotes de 25 hectares. Em Guaíra, por exemplo, a
colonização das terras ficou a cargo da Cia Matte Laranjeira, com mais de 9 mil ha; e em
Terra Roxa, pela FPCI (Fundação Paranaense de Colonização e Imigração) no imóvel
intitulado Serra do Maracaju com 96 mil ha.
Diante desta situação houve uma “limpeza” das áreas ocupadas tanto por indí-
genas como por posseiros, os quais foram sumariamente expulsos por jagunços e até
mesmo pela polícia do Estado, para que os colonos que chegassem pudessem ocupar as
terras adquiridas de forma legal ou por meio da grilagem.

As grilagens de terras eram já lugar comum. A denúncia dos crimes cometidos por
um grupo paraestatal a que Alyr Silva chamou de ‘Gang da Terra’, é que constituía
novidade (Anselmo Cordeiro, jornalista – Cascavel/PR)
Eles começaram a perturbar a região em torno de 1960. Em 1958, foram emi-
tidos os títulos, em 1959 foram registrados na comarca de Foz de Iguaçu, e dali
pra frente houve uma série de problemas na região, com mortos pela disputa de
terra. Sim, porque chegavam esses titulados que nós chamávamos de ‘colonos do
asfalto’, pessoas políticas e inclusive juízes de direito, com títulos adquiridos no
governo do Estado do Paraná (...) Depois chegavam aqui e queriam tomar a posse
da terra. Vinham com jagunços, às vezes. (Santo Zanchett, colono – Matelândia/
PR) (MYSKIW, 2002, p. 20)

44
Isso só foi possível com a conivência e a omissão do Poder Judiciário, além da cumplicidade dos cartórios municipais
com o Poder Executivo, que autenticava falsas procurações, como afirma o Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil,
p. 17. In: <http://www.incra.gov.br/media/servicos/publicacao/livros_revistas_e_cartilhas/Livro%20Branco%20da%20
Grilagem%20de%20Terras.pdf>. Acesso: jun. 2016.

70
Houve com isso um acirramento dos conflitos agrários na região. Contudo, o
governo de Ney Braga (1961/65) teve como bandeira “resolver” o conflito fundiário
instaurado. Para isso promoveu a anulação e cancelamento de títulos gerado pelo go-
verno de Lupion, assim como o aforamento de outros imóveis, como, por exemplo, de
Santa Helena, onde o governo expediu 50 títulos de propriedade, sendo a área também
ocupada por indígenas Guarani.

A desordem causada pela presença de grileiros, jagunços e outros elementos mais, no


Oeste do Paraná, dificultava a ação tanto dos órgãos do governo estadual como dos
órgãos do governo federal, na tentativa de resolverem tal ação conflituosa, principal-
mente após o início da década de 1960 quando o governo Ney Braga propôs dar fim
aos conflitos agrários no Paraná. Na medida em que os títulos eram tornados nulos,
os detentores dos títulos ou documentos que atestassem a propriedade ou a posse
de determinada área de terra entravam na justiça reclamando a posse do imóvel. Tal
ação acarretava, numa espera de anos, até ser julgada a sentença.
Na ausência de qualquer meio legal para expedir títulos de propriedade, os gri-
leiros passaram a fazer uso de suas técnicas de manipulação das leis referentes à
posse e o uso da terra. Muitos pequenos proprietários que haviam se estabelecido
em suas posses, adquiridas das empresas colonizadoras mediante pagamento ―
integral ou parcelado ―, passaram a ser ameaçados por jagunços, como sendo
intrusos e delas expulsos ou mortos.” (MYSKIW, 2002, p. 168)

Além disso, para este governo, a pequena propriedade agrícola se configurou


como um empecilho, sob o argumento de que se utilizava das formas tradicionais e com
isso obtinham pouco lucro, “não poderiam comprar sementes, fertilizantes e adubos
para ampliarem a produtividade, uma das metas-chave do projeto de desenvolvimento
da economia paranaense” (MYSKIW, 2002, p. 130). Destinou, assim, investimentos de
fundos públicos para os médios e grandes proprietários para aumento da produtividade,
os quais ampliaram cada vez mais suas terras.
Desta forma o avanço da “frente” colonizadora provocou outra expropriação dos indí-
genas de suas terras, os quais passaram ocupar locais de difícil acesso nas margens do rio Paraná
e seus afluentes em pequenos fragmentos de matas, ou foram para outras áreas no Paraguai,
Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio Grande do Sul e outras áreas no interior do
Paraná. Momento esse que permanece em suas memórias, como revelou o cacique Assunção:

Pegavam os índios com força, polícia federal, e mandava fazer a picada pras fazen-
das. Fazia a picada onde tinha posto a baliza pra fazer a fazenda. Pra dividir a terra.
Vinha a polícia e o fazendeiro. Ia dividindo. E daí quando ele faz tudo isso aí, daí
mataram todos os índios. (...) Isso foi em toda parte, toda parte é fazenda. Onde
era tekoha virou fazenda (...).. Mataram tudo! (...). Falam que agora é fazenda, ou
que a mata é reserva, mas é aldeia. Fizeram despejo!45
45
Depoimento Assunção Benites colhido em julho de 2013 no Tekoha Tajy Poty.

71
Somada à intensificação da ocupação não indígena na região houve a expropria-
ção das terras dos indígenas pela instalação da usina hidrelétrica binacional de Itaipu,
a qual jamais assumiu a responsabilidade em relação aos impactos de sua construção
sobre as populações indígenas dos municípios de Guaíra e Terra Roxa. Isto porque com
a construção da barragem e consequentemente a formação do lago de Itaipu (1982), o
nível da água subiu e inundou as margens do antigo Rio Paraná e do baixo Piquiri. Esses
locais eram fundamentais para os Ava-Guarani, pois não representavam apenas o local
da construção das suas casas, mas algo sagrado, como revela Paulina Martines46

“Os mais velhos contam, muitos sempre lembram do rio Paraná, que inclusive
entre Guaíra até Foz do Iguaçu, do lado de cá do rio Paraná e do outro também.
Dos dois lados do rio Paraná a ocupação Guarani era muito grande, porque os
Guarani acreditavam que lá era a terra sem mal. Isso pegava de Guaíra a Foz do
Iguaçu. Em Guaíra tinha as Sete Quedas. Em Foz do Iguaçu tinha um lugar que
os Guarani chamavam de ita ipy pẽ [literalmente, “pedra plana pra ficar em pé”],
onde inclusive a Itaipu fez a represa, em cima dessa pedra. A ita ipy pẽ era cha-
mado porque tinha uma pedra muito grande, acho que tinha 30 m2, parecia um
piso, mas nesse local, dos dois lados dessa pedra, tanto do lado do Paraguai quanto
do lado do Brasil, os Guarani vinham pra dançar, par fazer seu ritual, e sentiam
uma paz muito grande, porque era para eles realmente um local sagrado, todas as
coisas espiritualmente ficavam em paz naquele local. Ali tinha um barulho, muito
próximo do barulho de um takwá [instrumento percussivo de bambu]. Takwá
é um instrumento que usa na casa de reza, na opy, é um instrumento feminino,
então era muito próximo a esse barulho que se ouvia lá. Era 24h por dia. Quan-
do ia chover, quando ia ter um temporal quando vinha um vendaval, lá se ouvia
cânticos, de longe se ouvia, e muitas pessoas indígenas iam lá pra pescar, e quando
ouviam esses cânticos, tinha pessoas que dormiam e viam coisas, tipo uma visão,
via o que aconteceria amanhã ou depois. Tudo isso é o que acontecia nesse local.
Em Guaíra tinha a Sete Quedas, e debaixo da queda do meio tinha uma caverna,
onde o barulho era completo, não era só o barulho da takwa que se ouvia, não era
só o mbaraka miri [chocalho] que se ouvia, não era só o cântico, era os três juntos,
24h por dia, de dia, de noite. Se ouvia esse cântico desse ritual sagrado, esse ritual
sagrado, esse jeroky marã e ‘ỹ, mboraí marã e’’ỹ. Então ali era o local que levaria
os Guarani até o ywy mara e‘ỹ. Então as pessoas indígenas iam lá, entravam nessa
caverna não para iniciar o ritual, mas simplesmente pra acompanhar. E ali tam-
bém os rezadores, os mais velhos, recebiam mensagens de Deus (Nhanderu), e dali
eles saiam e repassavam essa mensagem pro resto do grupo, pro resto das aldeias
inclusive, então ali era contato direto com Nhanderu. Para eles era sagrado estar ali
[nas regiões mencionadas do Paraná], ali eles tinham paz, ali os Guarani se encon-
travam, acreditavam que finalmente tinham encontrado o yvy mara e’ỹ, mas depois
dos anos 70 [1970] pra cá isso mudou completamente. A Itapu participou para
que todas essas coisas maravilhosas fossem tiradas dos povos Guarani, inclusive de
todo povo indígena, porque todo povo indígena vive em busca da terra sem mal.
46
Depoimento colhido em 31 de outubro de 2014 no Tekoha Y’Hovy.

72
Como eu disse, o yvy marã e’ỹ não é física, mas existe na terra o caminho que leva
até essa yvy mara e’ , o local onde dali o indígena possa ir até esse local, até a Terra
Sem Males. E isso foi tirado dos Guarani”.

Para Paulina, com a inundação desses locais, houve uma perda para os Guarani,
uma vez que o contato com as divindades passou a se concentrar apenas nas casas de reza
(opy ou jeroky aty). Ademais, como ressalta, como o próprio rio Paraná era tido como
sagrado os Guarani enterravam seus parentes em suas margens, porém, com a formação
do lago da Itaipu, os cemitérios dos Guarani foram inundados.

Desenho das Sete Quedas feito por Paulina


conforme descrição de seus pais

73
Os Guarani guardam na memória a forma violenta de como foram avisados e de
como tiveram que deixar suas terras que foram alagadas pela formação do lago da Itaipu.

“Quando formaram Itaipu, vieram e disseram que iam dar indenização, iam arru-
mar outro lugar, mas eles só levaram a gente embora. (...) eles mandavam embora
e se não queria ir eles mandavam na marra mesmo, espancavam...eles nem coloca-
vam caminhão pros índios ir, tinha que ir de a pé mesmo”47
“Quando ele fez 13 anos, começou a construção da hidrelétrica de Itaipú no Rio
Paraná e daí ele diz que no início da construção veio um não-índio dizendo que
o índio tem que sair da beira do rio porque a área onde ele se encontra [antiga
aldeia Apepú] vai alagar, né?! Então eles foram obrigados a sair. Ao mesmo tempo,
os não-índios que chegaram ali prometeram dar outra área em troca da saída dos
índios. Alguns índios aceitaram, outros resistiram. (...) Daí começou o confronto
de índio com não-índio e acabou que alguns foram mortos, alguns conseguiram
fugir, outros saíram amarrados. (…) Ele também correu daquele local e acabou
se separando da família, do pai, da mãe, e até hoje não sabe aonde foram parar.
Conforme os antigos contam, morreram nessa região a família dele, pai e mãe.”48
“Eu nasci lá em Marangatu, em 1963. Daí eu sai depois do crescimento de água,
né, sai, com mais ou menos 10 anos por aí, eu saí de lá. Marangatu ficou debaixo
d’água. (…) Na época veio um empresário de Itaipu, pegou uma turma de lá e
levou para o Paraguai. Disse que ele pagou e comprou terra no Paraguai, né?. E daí
a gente passou pra lá e depois saiu todo mundo, por que era tudo mato, não tinha
saída pra ninguém, ninguém cuidava, né? Daí a gente passou de volta para o Mato
Grosso, né? Pra Porto Lindo [TI Yvy Katu]. (…) Ele [o Branco que os levou para
o Paraguai] ajeitou todo mundo em 3 ou 4 carros... caminhão, né? E levou pra
lá. O rapaz falou que o Presidente da República falou que é pra vocês sair daqui.
Tipo assim também, deu cesta básica pra cada família e levou pra lá e deixou lá. Eu
fiquei em Porto Lindo mais ou menos 15, 20 anos. Daí fui pra Nhemboete [Terra
Roxa] e depois passei pra cá.”49

Segundo os indígenas, em decorrência da instalação de Itaipu foram cometidas muitas


ameaças e assassinatos de seus parentes, o que fez com que muitos deles fugissem ou fossem
conduzidos à força para outros lugares. Dentre os destinos se destacaram o Paraguai, prin-
cipalmente, e outras Reservas Indígenas do Mato Grosso do Sul (Reserva Indígena de Porto
Lindo) ou da região central do Paraná (RI. do Rio das Cobras e RI. de Marrecas).
Aos que ficaram lhes foi negado o direito à documentação, isto porque para tirá-la
os Ava-Guarani precisavam ir as Reservas Indígenas e a FUNAI só passou a atuar na
região em meados da década de 1990. Portanto, como contanto os indígenas, não basta-
vam chegar em Porto Lindo e solicitar os documentos, eram obrigados a permanecerem
pelo menos 5 anos na reserva para daí terem o documento indígena (Rani). Ademais a

47
Depoimento de Damásio Martines, colhido em junho de 2013 Tekoha Y’Hovy.
48
Depoimento de Simião Benites colhido em julho de 2012 no Tekoha Poha Renda e traduzido por Rufino Deni.
49
Depoimento de Oscar Benites colhido em julho de 2012 no Tekoha Pohã Renda.

74
naturalidade era registrada a todos como Japorã, município onde se localiza a reserva,
por mais que tivesse nascido em outras regiões. Houve ainda aqueles que permaneceram
na região (na margem esquerda do rio Paraná) e ficaram sem documentação até meados
da década de 2010, como revela Sr. Pivo Benites50.

“Como eu falei né, desde quando eu nasci já fui perseguido. Aí como de lá eu vim
aqui, daqui fui pra ilha Grande, da Ilha Grande voltei e aí quando voltei pra cá aí
eu procurei a prefeitura, procurei a assistência social, porque eles exigiam, queriam
que, pra trabalhar tinha que ter documento. Aí eu ia lá na prefeitura, falava ‘eu
quero tirar o meu registro, que eu não tenho registro e preciso.’ Aí lá na prefeitura
eles me mandavam de um pra outro, de outro mandava pra outro. Aí depois me
mandavam pra assistência social. Aí, eu fui lá na assistência social e falei: ‘olha, eu
quero que vocês façam meu registro porque eu preciso e eu tenho que trabalhar’.
Porque daí eu já tinha arrumado uma companheira. Eu já precisava trabalhar pra
poder sustentar meu filho. Aí a assistência social falava pra mim ‘você é índio?’.
‘Sou’. ‘Aqui não fazemos documento pra índio, você tem que ir lá na Polícia Civil’.
Aí eu chegava lá na Polícia Civil e falei: ‘Eu quero meu registro, quero que vocês
façam meu registro, vocês são autoridade então eu preciso do registro’. Aí eles fa-
laram ‘você é índio?’ ‘Sou’, ‘Aqui não faz documento pra índio. Você tem que ir lá
na Polícia Militar’. Aí, dali eu saí na Polícia Militar. Cheguei lá, cheguei e falei ‘Eu
queria que vocês fizessem meu registro, eu preciso do meu registro’. Aí eles falavam
‘Você é índio?’ ‘Sou’ ‘Aqui não faz registro pra índio. Você tem que ir lá na Polícia
Federal’. Aí eu fui lá na Polícia Federal, cheguei lá aí eles perguntaram pra mim
‘Você é índio?’ ‘Sou’. ‘Não, aqui não faz documento pra índio, você tem que ir lá
no Fórum”. Aí eu fui lá no Fórum, cheguei lá e falei ‘Oh, eu queria meu registro,
eu preciso de ter meu registro, aí eu queria trabalhar e sem registro eu não posso
trabalhar’. ‘Você é índio?’ ‘Sou’. ‘Não, aqui não faz registro pra índio, você tem
que ir lá na FUNAI’. Aí eu perguntava, ‘onde é que tá a FUNAI?’ ‘É, eu não sei.
Eu não sei onde é que existe FUNAI, você que procure”. E naquela época FUNAI
só existia lá em Guarapuava né. E a gente se deslocar daqui pra lá, como que ia se
eu não ganhava nem pra mim sobreviver sozinho e ainda tinha que tratar minha
família e como é que eu ia arrumar dinheiro pra passagem? (...) Aí eu ia uma vez,
duas vez, passava o dia inteiro caminhando assim ó, eles me fazendo de palhaço,
me fazendo ali de bola de neve e eu desisti. Aí não, não fui mais. Eu fui mais ou
menos uma cinco vezes. Mais ou menos durante um ano, daí não fui mais”.

Desta forma, coube aos Ava-Guarani que não deixaram o oeste do Paraná e que
permaneceram sem documentação básica, como Sr. Pivo Benites e outros 260 aproxima-
damente, a ausência de direitos sociais, direitos trabalhistas e outros.
Mesmo assim, na década de 1990, em decorrência dos conflitos nas reservas do
Mato Grosso Sul e da intensificação dos laços de parentesco, muitos retornam para
Guaíra e Terra Roxa. Primeiro vinham para as aldeias existentes (Tekoha Porã e Tekoha

50
Depoimento colhido em 29 de março de 2014 no Tekoha Y’Hovy.

75
Karumbe’y em Guaíra e Tekoha Nhemboeté, em Terra Roxa), intensificando sua ocu-
pação e depois retomavam51 suas terras, e formavam outras aldeias, para que pudessem
viver enquanto Guarani (nhandereko). Pois, é na retomada de parte de suas terras que
se destaca o uso e as práticas imprescindíveis para a existência (física e espiritual) deste
povo. Dentre os quais estão a relação com os elementos da natureza e o plantio de suas
sementes tradicionais.

CULTIVANDO A TERRA E O FUTURO

Embora a relação com os elementos da natureza atualmente esteja precária, em


consequência do processo histórico de expropriação e expulsão dos Ava-Guarani de suas
terras - que sempre esteve associado ao desmatamento para implantação de atividades
agropecuárias monocultoras52 e, nas últimas décadas (sobretudo a partir de 2010), à
constante ameaça de reintegração de posse por particulares - ainda assim, os Guarani
procuram viver próximos a pequenos fragmentos florestais e manejar espécies para que
os mesmos se enriqueçam biologicamente. Conforme, ressalta Sr. Damião Acosta53:

“Os karai (não-indígenas) nunca entenderam por que queremos a mata. Nós fazemos
parte dela, precisamos dela para sobreviver. Os animais, tatus [...] são nossos parentes.
Com a autorização de Nhanderu podemos pegar eles para comer. Aí vieram e destruí-
ram a mata, tudo virou soja. Mas é possível transformar a soja em mata de novo.”

Para o Sr. Raul, com o enriquecimento dos pequenos fragmentos florestais, sentiu
“crescer sua cultura”54, porque promoveu a continuidade do uso de espécies que fazem parte
do modo de viver Guarani e aumentou a sociabilidade entre aldeias no território Ava-Gua-
rani troca de espécies. Ademais, também se apresenta no sentido de aprendizagem principal-
mente pelos jovens, que deixam de conhecê-las apenas por narrativas orais e passam a usá-las
de fato. Ao contar suas experiências e a de seus pais e avós, os mais velhos reavivam sua me-
mória projetando-a numa ideia de futuro, como vemos no relato de Sr. Ismael.

Pra nós, pra tirar toda a fruta assim no campo, a gente fala dessa guavira mirim,
baixinha... e tem guavira pytã, aquela é árvore. Tudo, tá lá no céu. E quando nha-
neramõi reza, ele conta assim, como e que tá. Se já tá no tempo, se vai virar bem o

51
Libório, cacique do Tekoha Nhemboeté, localizado em Terra Roxa, explicou que dois termos podem ser usados na língua
materna para designar essa ação da retomada: ojevyjey (que traduziu primeiro como pegar novamente e, posteriormente,
como voltar novamente) e oikejey (traduzido por ele como entrar novamente).
52
Dentre essas atividades se destaca o cultivo de soja e milho transgênicos, os quais demandam grandes quantidades de
agrotóxicos e com isso possíveis contaminações do solo, da água e das roças circunvizinhas dos Guarani.
53
Depoimento colhido em 03 de dezembro de 2014 no Tekoha Y’Hovy.
54
Depoimento colhido em 16 de março de 2016 no Tekoha Yvyraty Porã.

76
tempo, ele fala pra gente que o fruto vai ter de novo na terra. Já está tudo prepa-
rado pra vir na terra. E se a gente vai no campo vê tudo de flor de guavira mirim.
Então Nhanderu vai falar assim: ‘chegou o tempo de guavira’, então vai dar muito.
Então Nhanderu já preparou aqui na terra. E nunca acaba. Por que que não acaba?
Nunca vai acabar esse aí porque lá em cima tem muito. Então, Nhanderu dá o
sinal e nhaneramõi já conta, ele sabe de tudo e conta pra gente. Então antes, antes
mesmo, quando existia mato, a gente ia no mato assim, e a piazada já sabia se vai
cortar a flor do pindo, coqueiro, e se tem esse guembe, que a gente também come,
igual o milho tem uma espiga assim. Quando ele madura, a gente colhe esquenta
um pouco e já come, bem docinha, aquele. Então é assim: corta aquele verde leva
na casa de rezas, na opy e deixa, então, a meninada, naquela época já vai chamar
o xamõi pra rezar pra nós. Eles mesmo chamam, então xamõi vem, vem pra rezar.
Aí reza, aí xaryi..., qualquer pessoa, qualquer um, qualquer mulher já pergunta:
como é que está essa planta que está aqui. Se ele vai dar bem, xamõi já conta. Ago-
ra, a partir daí é a gente que tem que cuidar. Então os Guarani já ficam sabendo o
que que vai acontecer. Se vai vir seca, ou vai vir uma praga ou chuva.... no meio
disso aí, xamõi já conta. Porque se plantar qualquer planta milho, feijão de corda,
se você planta e chove muito não vai dar, e se vir seca, não da nada também. En-
tão é por aí que xamõi já conta. E se o tempo vai correr bem ele já vai falar ‘pode
plantar’, e vai dar bem. Porque o xamõi vê: quando o tempo está feio ele já sabe, já
chacoalha o maracá e ele escuta o Nhanderu, ele está com nós, mas a gente não vê.

Jeroky no Tekoha Y’Hovy, em 2014 (foto Inês Ladeira, arquivo CTI)

77
Jeroky no Tekoha Y’Hovy, em 2014 (foto Inês Ladeira, arquivo CTI)

O enriquecimento dos pequenos fragmentos florestais por meio do plantio e do


manejo de espécies nativas se torna, atualmente, perceptível na paisagem. Expandem-se
os pomares ao redor das casas, o que também se reflete em sombra e com isso aumentam
as espécies usadas para alimentação, remédios, artesanato e rituais.

Ambá do Jeroky aty no Tekoha Jevy, em 2016 (foto Inês Ladeira, arquivo CTI)

78
Criança no bananal plantado no Tekoha Tadjy Poty,
em 2015 (foto Teresa Paris, arquivo CTI)

O plantio das sementes tradicionais é parte intrínseca do modo de ser Guarani.


Isto porque ele, também, guarda o sentido do aprendizado, da sociabilidade com outras
aldeias Guarani, da alimentação em rituais (como a chicha55, por exemplo) ou mesmo
no dia-a-dia.
Para os Guarani há uma relação indissociável entre os elementos da natureza, a
agricultura e as demais atividades realizadas pelos indígenas. Pois, como explicou Pau-
lina56 “no entendimento do povo guarani tudo tem uma ligação, se um deles não fun-
cionar, nada funciona. Sempre tem essa ligação com a natureza”. Por isso, para iniciar o
plantio é necessária a “vinda do tapĕ (gaivota) e, consequentemente, da chuva”. As fases
da lua também influenciam no ato do plantio e da colheita, pois vão garantir a qualidade
das sementes tradicionais a serem guardadas, para que elas não mofem ou não carun-
chem, de modo a garantir a manutenção da espécie.
Nesse sentido, essas sementes tradicionais são guardadas e passadas de geração em
geração. O ato de guardar implica em reservar, mesmo que a colheita seja pouca, grãos
para serem plantados no próximo ano. Por isso, os Guarani em época de plantio rezam
para a planta crescer bem e, na colheita, para agradecer. Desta forma, os Guarani não se
mudam sem antes colher para poder levar consigo as sementes tradicionais e replantá-las.
55
Bebida fermentada de milho usada nos rituais.
56
Depoimento colhido em julho de 2014 no Tekoha Y’Hovy.

79
As principais sementes tradicionais cultivadas pelos Avá-Guarani são: o feijão,
com sete cultivares diferentes (kumanda pytã, kumanda pytã guasu, kumanda hũ, ku-
manda yvyra, kumanda arro, kumanda tupi, kumanda ingá); o milho, com seis cultivares
(avaxi moroti, avaxi sa’yju, avaxi tupi, avaxi pichinga, avati mitã e também chamado de
avati para’i, avati tupi moroti); o amendoim, com cinco cultivares (manduvi hũ, manduvi
guasu pytã, manduvi pytã, manduvi guasu moroti, manduvi guasu para); mandioca com
sete cultivares (mandi’o ju, mandi’o mita, mandi’o pomberi’i, mandi’o pomberi guasu, man-
di’o kano, mandi’o desea, mandi’o takuara). Há ainda variedades de melão (merõ), abó-
bora (anda’i) moranga (kuarãpĕpê), melancia (sa’yju, sandia pytã, sandia mirĩ), cana de
açúcar (takuare’ĕ hũ, takuare’ĕ moroti, takuare’ĕ para e takuare’ĕ mirĩ) e batata-doce (jety)

Xamõi Santiago e a secagem das sementes tradicionais de milho (avaxi ete)


(foto Teresa Paris, arq. CTI)

80
Mutirão de plantio de rama de mandioca no Tekoha Pohã Renda, em 2013.
Atrás preparo do solo do não indígena para plantio
de eucalipto (foto Camila Salles, arq. CTI)

Alimentar-se dos cultivos tradicionais que foram dados por Nhanderu para se
reproduzirem na terra é o que motiva os Ava-Guarani a plantarem em qualquer área
que lhes seja disponível. De acordo com dona Maria57, antigamente “rezador xaryi,
xamõi rezava pra cair assim no mato pro guarani, mas agora quase não acontece
mais”. Segundo ela, os rezadores perderam a força por ingerirem sal, açúcar, óleo e
não possuírem mais seus próprios alimentos. Sr. Ismael58 explica que o xamõi sabe
tudo que o que vai acontecer.

todo esse amendoim, milho, esse milho maizena é milho criança, a gente fala avaxi
para’i, avaxi mitãi), essas sementes todas que estão aqui na terra têm lá em cima. E ele
mostra pra gente. Ai o índio já planta kumanda, kumandai (feijão de corda), já planta
bastante milho, pacova, mandioca, batata, aí já planta e ele sabe que vai dar bem.
Então através de nhandeneramõi que a gente já sabe de tudo.. É só plantar, nasceu, e se
você vai plantar, se vai sair um pé, se tem quatro mudinhas e você planta aqui, aqui
nasce, e se cuida, pro fim do ano já vai dar bastante semente. Então essas coisas que o
xamõi mostra pra gente, pro guarani. Então é assim a nossa história do Guarani.
Crianças nossas tem semente. Pode ser que tem semente avaxi mitãi ou mandu-

57
Depoimento colhido no Tekoha Jevy (Terra Roxa), em maio de 2016.
58
Em conversa realizada no Tekoha Karumbe’y (Guaíra) em maio de 2016.

81
vi... Todas as crianças são assim. O xamõi, se a gente vai fazer jeroky, de verdade
mesmo, e a gente chama ou três ou quatro xamõi, que sabe que tem poder e ele
mostra pra gente.
Se ele tira essa semente, ele vai a vai falar assim pra gente plantar e a gente planta
e nasce. A semente a gente não acha assim por aí não. Semente sai de nosso corpo
mesmo. Porque eu já vi de lá do Paraguai teve duas criancinhas bem doentes ...
e ele trouxe no jeroky. Então, tinha cinco ou seis xamõi.... a gente faz chicha pra
batizar as crianças. Batiza e tira essas sementes.
Então, naquele tempo, eu vi. A criança estava com muita dor de cabeça e tiramos
semente: 100 grãozinho de milho. O xamõi chupa aqui e tira, e ele deu pra mãe e
falou assim pra mãe: ó, vc planta, pra ele que (o milho) já está querendo nascer, e
é por isso que ele está assim. Mas depois, amanhã ela (a criança) já vai brincar. E
no outro dia ficou só brincando por aí. E com a outra criança foi a mesma coisa,
mas a outra já tinha outra semente pra tirar, o amendoim.59
Assim como as pessoas, seus cultivos têm sua história. Seu Damásio conserva
sementes de avaxi etei (milho verdadeiro) que carrega consigo há mais de vinte anos, dis-
tribui e faz germinar, mantendo a integridade das variedades desse e de outros cultivos
tal como o amendoim. Aos interessados exibem com orgulho

Espigas de avaxi conservadas por Sr. Damásio, Tekoha Y’Hovy, em 2016


(foto Inês Ladeira, arquivo CTI)

59
Em conversas com outros Guarani esses fatos acontecem para dar alegria às almas das crianças, para que cresçam como
as plantas e permaneçam. Entretanto questões relacionadas à vinculação do plantio às cerimônias de atribuição dos nomes
/ almas às crianças (nhemongarai) merecem pesquisas mais densas.

82
Espigas de avaxi conservadas por Sr. Raul, Tekoha Yvyraty Porã, em 2016
(foto Inês Ladeira, arquivo CTI)

Espigas de avaxi conservadas no Tekoha Pohã Renda, em 2016


(foto Inês Ladeira, arquivo CTI)

83
Ao realizar o plantio e os rituais os Ava-Guarani projetam suas memórias num
plano de futuro atrelado à demarcação de suas terras. Ao dirigir o olhar para as diversas
variedades de takuare’ĕ (cana) em volta de sua casa, Dona Maria diz que “antes do Karai
nosso açúcar era só esse aí. Esse takuare’ĕ é do guarani mesmo. Lembra que quando havia
mato e era possível a todos “obedecer a cultura, Nhanderu punha no mundo eíra, jatai”
e, com esse mel se alimentavam. E disse acreditar que quando tiverem sua terra demar-
cada, jatai (abelha) e os outros bichinhos e guyra kuera, todos os pássaros vão voltar. “Se
rezar mesmo eles voltam e Kiringue (crianças) vai conhecer de novo”.

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87
AS MISSÕES JESUÍTICAS E O HISTÓRICO DE ESCRAVIDÃO INDÍGENA
NA AMÉRICA DO SUL

Priscila Lini1

INTRODUÇÃO

As Missões Jesuíticas dos Guaranis são, sem dúvidas, os espaços que mais desper-
taram a curiosidade nos estudos sobre a colonização ibérica na América. Consideradas
como locais de doutrinação à fé cristã, combinadas com o exercício do trabalho e da
rigorosa disciplina, a estratégia missionária realizada pela Companhia de Jesus é uma via
única do processo civilizador imposto pelo mercantilismo moderno.
Uma de suas características mais marcantes é a coexistência de apropriação par-
ticular e coletiva da terra, do trabalho e dos sítios acessórios – os ervais e invernadas –,
representando uma dinâmica singular de sistema produtivo, cujo caráter real ou hipoté-
tico de utopia dá margem a variadas abordagens e conclusões.
Na cultura oficial da América Latina contemporânea percebe-se uma tendência
à valorização acrítica e parcial das missões, consideradas como focos agregadores de vir-
tudes coletivas de civismo, fé e coragem dos padres em relação aos indígenas. De outra
parte, muitas vezes as missões são consideradas espécies de ‘feitorias’, onde o trabalho
dos neófitos era exaustivamente explorado em benefício da Companhia de Jesus.
Portanto, as discussões acerca do tema passam desde a intensa negação de seu
valor, em especial no século XIX, com o processo de construção das independências na-
cionais, quando eram um resquício inimizado do período colonial, até uma construção
ideológica utópica, de um ambiente de conforto material aliado à vida satisfatória, ainda
que regrada, em que o indígena voluntariamente abriu mão de seus costumes e crenças
em prol de um cotidiano previsível e de abundância.
Ocorre que, ainda que as missões tenham sido espaços de doutrinação e oblitera-
ção cultural, é inegável sua distinção acerca das demais formas de contato estabelecidas
com os povos tradicionais da América, em que predominaram a eliminação do elemento
nativo e sua sequente substituição, ou a exploração de sua mão de obra, tanto de ma-
neira acessória à terra concedida, como na obrigatoriedade da prestação do trabalho por
períodos determinados, nas modalidades da encomienda ou da mita.
Assim, pretende-se neste estudo analisar as dinâmicas coloniais estabelecidas entre
as Coroas Espanhola e Portuguesa, em relação às populações tradicionais da América
1
Doutora em Direito Econômico e Socioambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Paraná. Professora de História do Direito e Direitos Humanos no Centro Universitário Dinâmica das Cataratas e Centro
de Ensino Superior de Foz do Iguaçu. Servidora na Procuradoria Federal na Universidade Federal da Integração Latino-Americana.

88
conquistada, tanto nas relações com os governos provinciais, quanto em relação às Mis-
sões da Companhia de Jesus, em sua atuação complementar ao processo colonizador,
na busca da compreensão das formas de trabalho exercidas no espaço reducional e sua
inter-relação com os diferentes meios de apropriação da mão de obra indígena.

A PRESENÇA DOS JESUÍTAS NO GUAIRÁ, TAPE E ITATÍN: UMA


ESTRATÉGIA COLONIAL

Quando da colonização da América, os espaços inicialmente ocupados compreendiam


as regiões litorâneas, nas primeiras incursões portuguesas e espanholas de reconhecimento da
nova terra. As expedições ao interior foram empreendidas por aventureiros espanhóis que,
seguindo os cursos dos rios, chegaram às matas fechadas do coração do continente – o ade-
lantado Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, por exemplo, atingiu a foz do Rio Iguaçu no ano de
1542. A ocupação da parte central do continente só começou a ser interessante à Espanha,
com a finalidade de defender os limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas.
O Guairá, uma região de florestas densas permeadas por pradarias nas proxi-
midades do Rio Paraná demandava atenção, considerando-se que ali era possível abrir
caminho às minas de Potosi, encontradas na direção noroeste. Isso porque, isolada e apa-
rentemente sem grandes recursos minerais, a região do Guairá mostrava-se mais como
problema do que necessariamente como uma riqueza da Coroa espanhola, e, por não
atrair colonos, tornava difícil sua ocupação e administração.

O Paraguai se constituiu em definitivo em uma das regiões marginais do Império


espanhol, inteiramente fora do processo dinâmico e expansivo de Lima, Potosi e
Buenos Aires. Abrigava um pequeno núcleo europeu, frustrado e conformado, no
coração da América do Sul. A estagnação se agravou no século XVII com a crescen-
te hegemonia de Buenos Aires, a concorrência comercial de Tucumán, a paulatina
implantação de um sistema comercial pelos portugueses, a fundação das reduções
jesuíticas e a divisão da Província em 1617. (FREITAS, 1982, p. 22)

Os poucos colonos espanhóis formaram alguns núcleos populacionais modestos,


como Villa Rica do Espíritu Santo, Ontiveros e Ciudad Real del Guairá, incorporando
parcialmente a população local indígena na condição de mitayos, ou seja, obrigados pelo
trabalho compulsório da mita. Porém, a extensão e complexidade territorial demanda-
va muito mais presença e influência do que algumas vilas espanholas – era necessário
assegurar o espaço geográfico que já recebia algumas incursões portuguesas indesejadas,
provenientes de São Vicente.
A fim de auxiliar nesta tarefa, o governo provincial resolve se socorrer nos serviços
dos religiosos da Companhia de Jesus – ordem religiosa caracterizada pela disciplina

89
rigorosa e a atividade missionária, em franca expansão na Europa da Contrarreforma
– na tarefa de ocupar o amplo espaço do Guairá, formando paróquias e agregando a
população em vilas e doctrinas.
Assim, a organização missioneira do Paraguai principia com a demanda por reli-
giosos, clamada pelo bispo de Tucumán, no final do século XVI, entre os anos de 1587 e
1588. Chegados da cidade de Salvador, no Brasil, os três primeiros religiosos que acudi-
ram ao chamado no ano de 1589, após uma dificultosa viagem, foram os padres Manuel
Ortega, Thomas Fields e Leonardo Armini.
A atividade dos religiosos em colégios e paróquias se fez útil, e ganhou a simpatia
do governador provincial, resultando que em 1604 Hernando Arías de Saavedra solici-
tou o envio de mais dois padres de boa vontade e serviço2, chegando em 1609 os jesuítas
José Cataldino e Simón Masceta. Caberia a eles o mister de organizar as primeiras “redu-
ções”: agrupamentos de índios com a finalidade de catequização e condicionamento ao
trabalho, comandada pelos padres e chancelada pelo governo central espanhol.
Ainda em 1609 os padres Cataldino e Masceta fundam a redução de San Ignacio
Mini, na região do Guairá, o que contou com apoio expresso do governador das Províncias
do Paraguai e do Rio de la Plata, que determinava inclusive que lhes fossem facilitados os
meios de instalação, lhes fosse providenciada ajuda, pois da parte dos padres haveria recipro-
cidade. Também retirava dos índios agrupados nas reduções a obrigação da encomienda ou da
mita, estabelecendo que os nativos seriam dedicados somente ao trabalho na missão.
A partir da criação da Província do Guairá, que adquiriu autonomia em face da
província do Rio da Prata, no ano de 1610 (PASTELLS, 1912, p. 173), a atividade mis-
sionária aumenta a participação dos jesuítas na administração colonial.
O número de padres enviados pelos colégios da Europa cresce consideravelmente,
especialmente com chegada de dezoito padres na província pela comitiva do Padre Juan
Romero, com o compromisso do envio de mais de cinquenta religiosos para a dedicação
ao serviço missionário (PASTELLS, 1912, p. 175).
No ano de 1610 tem início o período missioneiro jesuítico guarani, que se esten-
deria até a segunda metade do século XVIII, com a fundação das duas primeiras redu-
ções: Nuestra Señora de Loreto e San Ignacio Guazú, em homenagem a San Ignacio de
Loyola, o padre fundador da Companhia de Jesus (CARBONELL, 1992, p. 54). A fixa-
ção no vale do rio Pirapó deu à redução de Nuestra Señora de Loreto importância estra-
tégica, tornando-a cidade central da província e domicílio do superior da Companhia.
Nos anos seguintes, próximo aos Rios Paranapanema, Iguaçu, Piquiri, Tibagi e
Ivaí outras reduções foram fundadas: San Jose, San Francisco Javier, Encarnación, San

2
“En la ciudad de Asunción hay una buena Iglesia y una casa de padres da Companhia de Jesus, solía haber en ella y en Guayrá
cuatro o cinco padres que eran de mucha utilidad y buen ejemplo; que los han ido llamando sus mayores y sólo ha quedado uno;
que hacen gran falta y si Sua Magestad mandasen fuesen algunos a dicha provincia, tiene por cierto serían de mucho efecto, por
lo que en ella han hecho en servicio de Dios Nuestro Señor” (SAAVEDRA apud Pastells, 1912. p. 110).

90
Miguel, Jesus Maria e Concepción, San Pablo, San Pedro, Nuestra Señora de Copaca-
bana, Los Angeles, San Tome e San Antonio, resultados da obra de padres como Roque
Gonzalez de Santa Cruz (CORTESÃO, 1969, p. 15), Antonio Ruiz de Montoya e Javier
Martín Urtazú.
Entre problemas e êxitos, as missões foram congregando grupos indígenas, e, já
no ano de 1610 relatos contabilizavam aproximadamente vinte mil índios nas imedia-
ções (PASTELLS, 1912, p. 176). O crescimento prossegue pela segunda década do sécu-
lo XVII, em ritmo constante de absorção das tribos nativas – ainda que em um processo
árduo e nem sempre pacífico.
Porém, com os indígenas reunidos em povoamentos relativamente estáveis, as
missões despertaram um interesse bastante prejudicial a si: a cobiça dos bandeirantes
paulistas, que adentravam os territórios na direção do Guairá em busca de índios para
apresar e comercializar nos mercados de escravos do litoral. Com as reduções, o trabalho
dos bandeirantes foi em grande parte facilitado, pois uma vez que os índios já se encon-
travam reunidos, poupava-se o trabalho de caça mata adentro.
A partir dos ataques bandeirantes, os padres reclamaram formalmente à Lima,
para que a Real Audiência de Charcas, com jurisdição nas províncias do Paraguai e Río
de la Plata, intercedesse junto ao rei e lhes garantisse ajuda militar. Entre os anos de 1629
a 1631, calcula-se que as bandeiras paulistas tenham eliminado cerca de quarenta mil
pessoas (CARBONELL, 1992, p. 82).
Em razão dos sucessivos ataques às missões jesuíticas do Guairá, foi organizada
uma grande migração em busca de territórios mais distantes, sendo a transferência rea-
lizada na direção sul, nos territórios que atualmente correspondem ao estado do Rio
Grande do Sul e noroeste argentino, na região que passou a ser denominada Tape.
Em socorro às reduções, a coroa espanhola autoriza, após diversos pedidos escritos
(CORTESÃO, 1969, p. 315-316) e até mesmo de uma viagem do padre Antonio Ruiz
de Montoya à corte (CORTESÃO, 1969, p. 295-297), que os índios empunhassem
armas para a defesa de seu território, a fim de repelir os bandeirantes tanto da conquista
da terra quanto da mão de obra para o mercado escravo.
Após a concessão da autorização, em março do ano de 1641, os campos do Tape
foram cenário da Batalha do Mbororé: o choque entre a bandeira de Pedroso de Barros –
que contava com quatrocentos homens armados e mais de dois mil e quinhentos tupis –
contra os guaranis reduzidos, armados de arcabuzes e canhões artesanais (CORTESÃO,
1969, p. 345-368).
A partir do momento em que jesuítas e guaranis das missões passam a exercer a
sua defesa, os bandeirantes cessam os ataques por um determinado tempo, possibilitan-
do a estabilidade e consolidação desta modalidade colonial. Ainda que esta paz não fosse
plena e permanente, já se fazia suficiente para o desenvolvimento dos povoados e para a
estruturação missionária.

91
A ORGANIZAÇÃO GUARANI:
A RELAÇÃO COM O TRABALHO E A TERRA

Na região do Guairá, e em boa parte do centro-sul do continente americano,


encontrava-se uma população indígena numerosa, gregária e relativamente pacífica – os
guaranis. Esta população de características peculiares foi em grande parte a responsável
pelo êxito da estratégia missionária jesuíta.
Isso porque a estrutura originária guarani possuía características altamente favo-
ráveis à dinâmica das reduções, especialmente a economia voltada à reciprocidade e ao
coletivismo agrário, a hierarquia social baseada no cacicado e a constância populacional.
Ao contrário de tribos arredias, como os minuanos, charruas e caingangues, que
evitavam o contato social com estranhos, e quando o faziam eram bastante resistentes,
os guaranis eram de trato mais pacífico com o colonizador. Como agricultores e coleto-
res, os guaranis procuravam lugares apropriados para sua instalação, buscando terras em
locais de clima ameno e próximas a bons rios.

As costas dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai, e também algumas ilhas do delta
do Rio da Prata estavam habitadas por grupos de guaranis que preferiam viver às
margens ribeirinhas, porque ali a selva se fazia menos espessa e a vida, portanto,
era mais fácil. A organização do aldeamento obedecia a um ciclo específico, mu-
dando seu sítio a cada cinco ou seis anos, o que sucedia quando a terra, esgotada
pelas semeaduras sistemáticas, perdia a fertilidade. (GALVEZ, 1995, p. 25-26)

As migrações periódicas e o caráter coletivista são características marcantes da


configuração social guarani, marcadas por um sistema agrário neolítico de uso con-
dicionado do solo, e pela busca metafísica da terra sem mal. Quando do contato com
os padres jesuítas na formação das primeiras reduções estas características se tornaram
elementos favoráveis ao estabelecimento de uma estrutura social gregária e agricultora.

A base da vida social dos guaranis era a grande família. Seus membros viviam em
casas estendidas de até cinquenta metros chamadas maloca ou tapy-guazu. Cada
uma delas podia ter como mínimo vinte e como máximo sessenta fogueiras, e
era a forma de indicar o núcleo familiar básico formado pelos pais e seus filhos.
Nessas casas compartilhadas, cada família tinha assinalado um espaço específico.
O delimitavam com pilares de madeira que também serviam para sustentar o teto.
(HEGUY, 2009, p. 19)

As relações de autoridade entre os caciques e as famílias sob sua influência, seus


agregados e compadres, seriam fundamentais ao sistema de coletivismo agrário das mis-
sões jesuíticas, o que permitiu a manutenção de parte da identidade originária, enquanto
na condição de mitayos ou submetidos à encomienda, a obrigação, além do trabalho

92
compulsório, também consistia na aculturação e assimilação religiosa cristã, como parte
da prerrogativa concedida pela Coroa ao encomendero.
Assim, ainda que no ambiente reducional a identidade originária fora significati-
vamente alterada, neste sistema, ao menos, parte das autoridades e dos costumes foram
mantidos, especialmente as estruturas e alianças determinantes ao poder. Os caciques
agiam de modo complementar à autoridade jesuíta e da própria dinâmica dos cabildos
coloniais.

O COTIDIANO DAS MISSÕES: TRABALHO E ORAÇÃO

O trabalho, no sistema originário guarani, é organizado por tarefas específicas à


participação social, baseando-se em uma rede de convites e reciprocidade, e hierarquiza-
do conforme as relações de parentesco, compadrio e de autoridade dentro do grupo.
Muito embora tenha ocorrido a substituição dos métodos e práticas agrícolas, o
sistema guarani será em parte mantido, inclusive por congregar características úteis ao
cotidiano reducional.

Não é o infantilismo do indígena que explica a ascendência do missionário, mas


a sua aceitação como novos líderes religiosos. Utilizando a sua autoridade e o seu
prestígio, estes mantiveram alguns elementos da cultura tradicional dos guara-
nis e substituíram outros por novos valores ocidentais e cristãos, transformando
uma mudança cataclísmica de desagregação tribal num processo objetivo e realista
de aculturação indígena à sociedade global espanhola e ao cristianismo. (KERN,
1982, p. 262)

Assim, a conjugação entre o trabalho executado em coletividade, o motirõ, seria


o responsável pela manutenção do tupambae, as terras comunais semeadas em coletivi-
dade e revertidas à própria missão. Por outro lado, a necessidade de cultivo do solo nas
parcelas familiares será mantida no avambae, cujos frutos revertiam-se à família de cada
índio, de maneira individualizada.

Como representantes de uma sociedade global espanhola, cuja economia era mer-
cantilista, e em cuja esfera jurídica a propriedade privada desempenha um papel
importante, os jesuítas implantaram nas Missões o abambaé, ou seja, a proprie-
dade (mbaé) particular de cada indígena (abá). Mas, de uma maneira muito mais
espontânea, pois originou-se do comunitarismo jesuítico e tribal dos Guaranis,
instalou-se também o Tupambaé, ou seja, a propriedade (mbaé) de Deus (Tupã) e
portanto da coletividade. (KERN, 1982, p. 72)

A tradição guarani da economia da reciprocidade, da produção e distribuição da
terra conforme critérios familiares e sociais, as relações de convite e auxílio foram manti-

93
das. Não somente mantidas, mas incorporadas a um modelo que, apesar de baseado em
um contexto religioso combativo e moderno, típico da reação de Contrarreforma, ainda
teria aspectos medievais marcantes, como o parcelamento do solo e a cessão compulsória
de mão de obra em terrenos comunais.

A adaptação entre o público e o particular, se deve, em parte, pela transformação


ibérica para a economia mercantilista, própria da transição da Idade Média para
a Moderna, que ainda convivia com resquícios e influências medievais, como a
propriedade coletiva dos cabildos municipais. (COLAÇO, 2008, p. 331)

Assim, o trabalho se organiza dentro de um sistema misto de coletivização e in-


dividualização, em que além do próprio espaço os meios de produção também eram
controlados e otimizados conforme a organização estabelecida pelos jesuítas: “Nos cam-
pos e nas oficinas, inspetores e seus auxiliares dirigiam e controlavam o trabalho. Eram
escolhidos entre os neófitos mais ativos e vigilantes” (LUGON, 2010, p.135).
O ambiente de vigilância, segundo os padres, tinha por finalidade manter o in-
dígena ocupado, pois o trabalho garantiria seu afastamento dos costumes considerados
licenciosos, como a poligamia, o hábito da embriaguez e as práticas da feitiçaria, que
tanto incomodavam os jesuítas, considerados como ameaças ao bom andamento da vida
reducional.

A PRERROGATIVA MISSIONÁRIA FACE À ENCOMIENDA E A MITA

Quando da fundação das primeiras doctrinas, pueblos de indios ou reduções, este esfor-
ço foi empreendido em conjunto pelos governos provinciais de Rio de la Plata e Tucumán,
pela própria Coroa espanhola e pelas autoridades eclesiásticas já instaladas na América.
A intenção primeira era a garantia territorial hispânica dentro dos limites de Tor-
desilhas, e, à complementariedade, a conversão dos nativos à fé cristã como estratégia de
aumento do número de católicos no movimento da Contrarreforma. Os demais espaços
eram dominados pelas encomiendas. Na definição de Ots Capdequi:

A encomienda era uma instituição de origem castelhana que logo adquiriu nas Índias
caracteres particulares que a fizeram diferenciar-se plenamente de seu precedente
insular. Pela encomienda, um grupo de famílias de índios, maior ou menor segundo
os casos, com seus próprios caciques, ficava submetido à autoridade de um espanhol
encomendero. Este se obrigava juridicamente a proteger aos índios que assim lhe
haviam sido encomendados e a cuidar de sua instrução religiosa com os auxílios do
cura doutrineiro. Adquiria o direito de beneficiar-se com os serviços pessoais dos ín-
dios para as distintas necessidades do trabalho e de exigir dos mesmos o pagamento
de diversas prestações econômicas. (OTIS CAPDEQUI, 1946, p. 37)

94
Já a mita era uma relação diferenciada, que envolvia somente o trabalho compul-
sório indígena, especialmente nas minas de prata, nos serviços domésticos, no desbaste
das florestas, agricultura, pastoreio, em pequenas manufaturas e tecelagens. Por virtude
desta instituição [a mita] os índios de um determinado lugar se sorteavam periodicamente
para trabalhar durante um prazo de tempo determinado ao serviço dos espanhóis, mediante
pagamento (OTS CAPDEQUI, 1946, p. 44-45).
Ocorreu que a exploração em ambos regimes de trabalho mostrava-se excessiva-
mente pesada ao indígena. Seja na exaustão da encomienda – condicionada a uma prote-
ção que não se fazia real – ou como mitayo, o indígena passou a sofrer as externalidades
da exploração mercantilista colonial.

A instituição da encomienda assumiu no Paraguai uma forma peculiar que a dis-


tinguia das demais regiões americanas conquistadas pelos espanhóis. Se os índios
resistiam à conquista, eram subjugados e reduzidos a uma completa servidão. Se
acediam a trabalhar voluntariamente, recebiam tratamento especial. Daí dois tipos
de servidão no Paraguai, os índios ianaconas ou originários, e os mitaios. (FREITAS,
1982, p. 23.)

As consequências da exploração excessiva da mão de obra, chegaram a tal ponto


que padres dominicanos como Bartolomé de las Casas (LAS CASAS, 1979, p. 101) e
Domingo de Santo Tomás (SANTO TOMÁS, 1958) – chegaram a narrar às autorida-
des da Europa como a população indígena padecia, seja pelas inúmeras doenças, pela
crueldade dos conquistadores ou pela exaustão do trabalho forçado. Este sistema era tão
intenso que acabou por gerar uma séria crise econômica e populacional nas colônias:

Nenhuma causa influenciou como esta em orientação e marcha da população in-


dígena. Todas as demais causas aduzidas puderam ocasionar em determinado mo-
mento e zona uma catástrofe momentânea, tampouco depreciável desde logo. Mas
as epidemias e fomes talvez não houvessem chegado a ocasionar uma redução tão
drástica. A causa profunda, permanente e mortal se encerrava em um sistema laboral
nascido da conquista, ainda que contasse com uma legislação protetora, pois de fato
sua aplicação prática derivava em ilegalidade. A encomienda em si não dava domínio
sobre os índios sujeitos ao tributo, mas na verdade o encomendero dispunha em
grande medida da força laboral. Esta força laboral era extenuada a ponto de ficar
muito debilitada fisicamente e sujeita a qualquer perigo de enfermidade. Como esta
situação se manteve, apesar de todas as leis que se ditaram a respeito, a sorte do índio
permaneceu a mercê de seu dono real, o encomendero. (RIVERA, 1975, p. 279-280)

Buscando resguardar os interesses do próprio governo central metropolitano, que,


em caso de manutenção deste sistema perverso perderia não somente territórios, mas
também seus súditos recém incorporados, as Ordenanças de Alfaro viriam a estabelecer
restrições às encomiendas.

95
O preâmbulo das “Ordenações” de Alfaro inicia denunciando a violência contra as
populações indígenas e a exploração do seu trabalho por parte dos espanhóis, prin-
cipalmente dos antigos encomenderos. Para isso, Francisco de Alfaro declara que a
partir da vigência daquele regimento público não poderia existir mais encomienda
e muito menos serviço pessoal indígena, e chama a responsabilidade dos gover-
nos provinciais que vigiassem pela aplicação da lei, bem como punissem aqueles
que não a cumprissem. Também repugna a escravidão indígena, atestada por ele.
(SANTOS, 2012, p.38)

Quando da chegada dos clérigos da Companhia de Jesus ao Guairá, a ocupação


conhecida como “colonização pacífica” pretendida pela Coroa para povoar e proteger as
províncias ainda não exploradas e as regiões fronteiriças foi representada pelas missões.
A fim de atrair e manter os índios à vida reducional, foi “determinado que nenhum sol-
dado ou vizinho viria a inquietá-los com achaques de que vão pela mita” (PASTELLS,
1912, p. 153).
Desta forma, as missões toravam-se atrativas aos guaranis – e ainda que em núme-
ro bem menor, a indígenas de outras tribos – pois apresentavam-se como locais de dupla
defesa ao índio: estavam tanto fora do jugo dos trabalhos exaustivos da encomienda e da
mita, e ao mesmo tempo afastavam-se do perigo bandeirante.
Contudo, há que se compreender que apesar da expressa vedação, as missões je-
suíticas não eram um espaço de plena liberdade – muito pelo contrário. A religião, o tra-
balho e a vida regrada eram parte do cotidiano, e, ainda que mantido o idioma guarani
e algumas instituições consuetudinárias originárias, a imposição cultural se fez presente.
A maior diferença em relação a este sistema é a incorporação do nativo na dinâmica co-
lonial de ocupação territorial, o que nas palavras de Bartomeu Melià pode ser definido
como uma “colônia sem colonos” (MELIÀ, 2013, p. 22).

A ESCRAVIDÃO INDÍGENA E SEUS CONTEXTOS

A escravidão dos povos indígenas americanos teve diversas formas, não obedecendo
a um modelo comum ou uniforme. As tribos do Caribe não tiveram a mesma forma de
dominação experimentada pelos povos andinos, tampouco os patagões receberam a mes-
ma abordagem colonial que os guaranis (WILDE, 2009, p. 67). Assim, pode-se afirmar
que, conforme o território e as circunstâncias, alteravam-se as estratégias de conquista.
O fato é que, dentre estas estratégias de conquista, estava tanto a submissão do
indígena, pela cessão compulsória de mão de obra nas modalidades da encomienda ou
repartimiento, em que o nativo era incluído na concessão territorial realizada pela Coroa
como complementar à terra ocupada, na mita em que o índio mitayo deveria trabalhar por
períodos específicos ao colono espanhol, ou mesmo no próprio comércio dos nativos como

96
mercadoria, no escravismo colonial majoritariamente empreendido nos domínios portu-
gueses - os bandeirantes foram os inimigos declarados das missões desde o seu princípio.
Ocorreu que, nas reduções jesuíticas, o próprio indígena foi empregado como ele-
mento colonizante, como parte da tarefa civilizadora almejada pelos Estados europeus.
Ocupar o espaço aparentemente despovoado, construído aglomerados urbanizados e
dando produtividade à terra, era uma forma de legitimação da posse pela Espanha do
territórios interioranos.
No conceito moderno de propriedade, em largo emprego nos domínios do co-
lonialismo mercantil, dar produtividade e melhoramento à terra ocupada era requisito
fundamental à legitimação do espaço concedido. Como já mencionado, o Guairá estava
em uma região de fragilidade e incerteza, consistindo a presença jesuíta para conversão e
redução do gentio uma atuação bastante incentivada e interessante.
Neste aspecto é que as missões serão consideradas tanto como espaço de explo-
ração da mão de obra indígena, e como espaço de dominação cultural e religiosa, pela
substituição dos costumes guaranis e suas práticas originárias. O autor Blas Garay, críti-
co das missões jesuíticas, assim afirmou:

Começava o trabalho dos índios ao amanhecer e durava até que escurecesse, sem
mais descanso do que duas horas, concedidas ao meio-dia para almoçar. Quando
lhes tocava ocupar-se em suas sementeiras, dirigiam-se a elas em procissão, prece-
didos pela imagem de algum santo levada em andor, com acompanhamento de
tambor e flauta, ou de orquestra mais numerosa. A imagem era logo posta ao abri-
go de uma ramada, e depois de curta oração, entregavam-se todos a seus afazeres.
(GARAY, 1921, p. 58)

A disciplina rígida e o controle sobre o trabalho, a produção e a própria rotina do


guarani reduzido despertou uma série de questionamentos, tanto por parte dos colonos
prejudicados pela diminuição do contingente de mão de obra compulsória disponível,
quanto pelas autoridades coloniais constituídas, que alegavam a construção de um cená-
rio político paralelo à autoridade metropolitana.
Porém, ao Rei da Espanha fora mais conveniente manter a proteção do indígena
reduzido em relação ao sistema externo de trabalhos, e delegar autonomia à Companhia
de Jesus na direção econômica e social interna missioneira – afinal, era mais interessante
garantir o tributo do indígena, do que assumir os riscos inerentes à perda do controle e
da centralização do poder colonial.

Na prática tratava-se de uma situação complexa para os indígenas, pois até então
conheciam o trabalho encomiendado e com ele já haviam estabelecido mecanis-
mos de controle, ao passo que a nova proposta de trabalho tributado à Corte de
Espanha era desconhecido. Além disso, havia outro fator que pesava nesse jogo
de poder, a questão das redes de famílias que se estabeleceram na região desde

97
o século XVI, o que o próprio Alfaro reconhecia ser um empecilho às propostas
governamentais. Por fim, a formatação do regimento ou as “Ordenações” definem
a tributação do trabalho indígena masculino, circunscrito entre as idades de 18 até
50 anos. Uma vez aceito o regulamento os indígenas contavam com a proteção do
Estado e da Igreja Católica, no caso a Companhia de Jesus, contra a escravidão e
serviço compulsório, tornando-se um súdito da Corte de Espanha, o que equiva-
leria às condições de cidadania na atualidade. (SANTOS, 2012, p. 38)

Assim, considerando as diversas faces da exploração do escravismo colonial in-
dígena, as missões, muito embora tenham sido um fator de modificação cultural e da
imposição de instituições típicas do Estado moderno, esta via, ao menos, garantia ao
indígena um mínimo de sobrevivência e reconhecimento, ainda que com finalidades
puramente econômicas e estratégicas: tributação, trabalho e garantia de um território em
constante processo de negociação.

O SUCESSO DAS MISSÕES E A REAÇÃO DAS METRÓPOLES

Não se pode negar que a missão católica trazida pretendeu mudança e conversão,
e em sua medida é também uma forma de colonialismo de caráter religioso. O contexto
reducional é talvez a empresa mais radical e pura, que, com o cristianismo e por seu
meio, pretendeu também estender os valores da Espanha e da modernidade ao mundo
inteiro (MELIÀ, 2013, p. 18).
O processo de transformação econômica e social mercantilista, que alterou a re-
lação com as bases materiais da produção, da terra e do trabalho, encontrava no sistema
missioneiro uma situação de imprecisão – não era moderna, tampouco permaneceu no
modelo tradicional originário.
Fato é que o sucesso das Missões Jesuíticas dos Guaranis se explica pela auto-
nomia de gestão e traços que as destacaram no conjunto do sistema colonial entre os
séculos XVII e XVIII. Estas, ao cabo de muitos esforços e contratempos, conseguiram
reunir em grandes povos as dispersas tribos indígenas, formar uma organização de vas-
ta extensão territorial, conformando um regime socioeconômico uniforme, garantindo
conforto material através da produção regulada e escalonada, agregando valiosas estrutu-
ras acessórias como as vacarias e ervais, desenvolvendo o comércio e a produção artística.

As trinta reduções, chamaram a atenção em seu tempo, e também suscitaram


receios e críticas, vistas como potenciais rivais das hierarquias e dos interesses eco-
nômicos das respectivas províncias, principalmente no Paraguai. Favorecidos pela
proteção real, os jesuítas conseguiram superar essas impugnações. Assim, alcança-
ram para seus índios a condição de não serem encomendados a particulares, colo-
cando-os sob o patrocínio real; obtiveram uma regulação do tributo em condições

98
mais favoráveis que o resto dos índios, gozaram do benefício de comercializar a
produção das Missões, e inclusive organizaram as milícias guaranis, as quais servi-
ram à defesa interior e exterior de ambas as províncias por mais de um século, sem
custo para a Real Hacienda, sob a direção dos chefes militares das ditas províncias.
(MAEDER, 2013, p. 23)

Estes benefícios concedidos às Missões Jesuíticas, somados a seu sucesso econô-


mico e comercial, suscitaram uma série de conflitos entre os jesuítas missioneiros e as
autoridades civis e eclesiásticas tanto dos domínios portugueses quanto hispânicos.
Neste tom de ressentimento, o discurso passa a um sentido de exploração por
parte dos jesuítas e da restrição dos valores liberais aos índios, que ficavam impossibili-
tados da possessão de bens particulares e do pleno controle da produção. Segundo Blas
Garay: “Os produtos da colheita tocavam à comunidade e entravam nos armazéns da
Companhia para ir satisfazendo em eles as necessidades da redução. Ao índio não restava
liberdade” (GARAY, 1921, p. 59).
As negociações territoriais em curso na segunda metade do século XVIII contri-
buíram efetivamente com o encerramento do período missioneiro. Desde o Tratado de
Madrid, de 1750, passando-se pelas tratativas de El Pardo em 1761, até o Tratado de
Santo Ildefonso, de 1768, o território dos Sete Povos das Missões, na margem oriental
do Rio Uruguai estava em uma verdadeira barganha com a Colônia do Sacramento, no
estratégico estuário do Rio da Prata.
Em 1767, o decreto do Rei Carlos III oficializa a expulsão dos religiosos da Com-
panhia de Jesus, o que o provincial Francisco de Paula Bucarelli y Ursúa se apressou a
colocar em prática. Do lado português o Marquês de Pombal agia com ainda mais afinco
e diligência para eliminar a presença da Ordem Jesuíta dos domínios portugueses, tanto
na Europa quanto nas colônias.
Somando-se a esses fatores as severas críticas dos filósofos e pensadores do Ilumi-
nismo em ascensão, e a tendência da separação formal dos poderes, bem como a coroa-
ção do liberalismo como tendência absoluta, baseada na propriedade privada, explica-se
o entorno desfavorável que enfrentaram as missões em seu período derradeiro.
Ainda que em lenta dissolução, as medidas da Coroa Espanhola não foram sufi-
cientes para a manutenção das estruturas urbanas e rurais das missões jesuíticas, muito
menos de seu sistema político e social. Isso porque a administração colonial preferiu
outorgar a administração das missões a outras ordens religiosas ou mesmo improvisou
uma burocracia administrativa local, permanecendo a comunidade guarani em uma es-
pécie de tutela.
A esse respeito é importante observar que o efeito da estratégia missionária jesuíta
– que levou os padres a entrarem no interior das sociedades nativas a fim de poder trans-
formá-las – havia deslocado o “discurso religioso” de sua dimensão acerca do homem e
do mundo, para uma dimensão propriamente civilizadora, antes do que evangelizadora

99
(AGNOLIN, 2007, p. 398-399) voltada mais ao sucesso da colonização do que ao ar-
gumento de conversão do gentio.
Neste processo, as dinâmicas internas construídas pelos padres jesuítas em com-
plementariedade ao cacicado guarani não foram levadas em consideração na nova admi-
nistração colonial. Restou ao indígena ou a submissão às autoridades estabelecidas pelos
governos provinciais ou a tentativa de retorno ao ambiente originário e os costumes
tribais.
Em ambos os aspectos, a cultura originária guarani se perdeu, tanto por aqueles
que permaneceram nos remanescentes das reduções, dependentes do dirigismo por parte
dos padres jesuítas, quanto daqueles que buscaram o retorno à mata densa, perdendo em
parte sua hierarquia tribal e seus métodos originários de coesão social.
Porém, se a região fronteiriça da América do Sul conservou, em parte, os rema-
nescentes das populações guaranis até a atualidade, em medida isto se deve aos cento e
cinquenta anos de vida reducional, que evitou a eliminação completa do nativo evitando
a escravidão completa pretendida pelos bandeirantes, dos excessos das formas de explo-
ração do trabalho da encomienda e da mita. Ainda que modificadas em parte, as popu-
lações guaranis conseguiram um mínimo de coexistência e inserção no sistema colonial
hispânico neste contexto.

CONCLUSÕES

Tratar do tema das Missões Jesuíticas dos Guaranis demanda um esforço de com-
preensão além de interpretações ideológicas e tendências organicistas do pensamento
social e jurídico, tendo em vista que, dependendo do autor, do período e das correntes
seguidas a abordagem varia consideravelmente.
Parte dos autores que se propuseram a tratar das Missões, afirma a existência de um
ambiente favorável ao indígena, que, muito embora admita a obliteração cultural e a impo-
sição religiosa, alega a proteção ao indígena em face aos bandeirantes paulistas, às crueldades
da encomienda e da mita e aos diversos abusos perpetrados pelas autoridades coloniais.
De outro lado, seguindo as tendências das vertentes iluministas, as missões jesuíticas
dos guaranis são encaradas como um cenário desfavorável, onde o indígena foi conveniente-
mente isolado e condicionado ao trabalho, em benefício dos religiosos e da própria Compa-
nhia de Jesus, que assim conseguiu desenvolver uma poderosa organização, paralela ao poder
oficialmente constituído, reduzindo o indígena à uma condição de tutela e incapacidade,
vedando-lhe os direitos fundamentais da liberdade e da propriedade privada.
Sem dúvida a estratégia colonial missionária teve imperfeições, enfrentando altos
e baixos. Esbarrou também em incompreensões e hostilidades por parte da sociedade
colonial e das autoridades da mesma, incomodando até as hierarquias eclesiásticas colo-

100
niais. As respostas da Companhia de Jesus aos problemas de ordem material, ou mesmo
da relação entre o trabalho e as imposições religiosas, nem sempre foram acertadas ou
oportunas, mas muitas vezes imprecisas entre a ação civilizadora e a ação evangelizadora.
Ocorre que, materialmente, as Missões permitiam uma sinergia maior entre a
realidade tribal e as imposições do ocidentalismo cristão, inclusive a respeito do trabalho
e da apropriação da terra segundo a hierarquia guarani. Ainda, dentro das prerrogativas
reais concedidas ao ambiente missioneiro, este aparece como um espaço de proteção face
às formas predatórias de exploração de mão de obra nativa.
Não configura, necessariamente a escravidão do indígena, pois, ao contrário das
instituições da encomienda ou da mita, na Missão ocorria a utilização específica da mão
de obra e da ocupação da terra sob o dirigismo jesuíta, enquanto nas demais formas o
indígena apenas cedia a mão de obra de maneira compulsória e acessória à regalia colo-
nial concedida.
Portanto, sem esquecer do caráter conflitante da imposição cultural, a alteração
significativa do modo de vida e o próprio choque catequético da civilização eclesiástica
da Companhia de Jesus, as Missões ainda representam espaços de resistência à moder-
nidade imposta pelo processo colonial, onde, distintamente do restante do cenário de
conquista, o indígena foi incorporado ao próprio processo civilizador.

REFERÊNCIAS

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ritual americano-tupi. São Paulo: Humanitas Editorial, 2007.

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102
CAPÍTULO 2 - AS TERRAS

Dizem que o indígena tem que viver de caça e pesca, que ele tem que viver no mato,
mas quando você olha pra qualquer lado o que você vê é lavoura, o que você vê é cidade.

Ilson Soares, liderança da Tekoha Y’Hovy


Foz do Iguaçu, 25 de novembro de 2014

Os brancos chegaram muitos anos depois, só em 1554 quando os soldados de Mar-


tinez de Yrala chegaram, e em 1610 chegaram os jesuítas para catequizar os Guarani, pois
diziam que como os Guarani andavam pelados eram satanás, eram um povo sem Deus, que
não conhecia Deus, então que precisaria catequizar os Guarani para começarem a conhecer
o Deus que de Portugal trouxeram. Só no final do século XIX, a famosa companhia Matte
Larangeira veio para colonizar a região, para escravizar, expulsar, matar os indígenas, mas
não conseguiu expulsar todos porque os Guarani resistiram e resistem em até hoje.

Paulina Cunha Takua Rocay Ponhy Martines, liderança da Tekoha Y’Hovy


Foz do Iguaçu, 24 de novembro de 2014

103
DAS SESMARIAS À LEI DE TERRAS DE 1850: POVOS INDÍGENAS,
O DIREITO E A TERRA MERCADORIA NO BRASIL

Fernando Gallardo Vieira Prioste 1

INTRODUÇÃO

Neste momento busca-se construir uma narrativa histórica crítica sobre a regu-
lação jurídica da terra no Brasil, desde o início da colonização europeia, até a edição da
Lei 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida como lei de terras de 1850. Essa análise
contextualizada tem por objetivo apresentar os principais condicionantes materiais e his-
tóricos relativos à questão da terra para, assim, viabilizar uma leitura crítica da situação
dos povos indígenas na questão da terra.
Para tanto se faz uma análise introdutória sobre a lei de sesmarias em Portugal,
haja vista a necessidade de contextualizar as origens de tal instituto, que se aplicou no
Brasil a partir do século XVI. Na sequência, se investigam a aplicação do instituto de
sesmarias no Brasil, destacando seus efeitos quanto à formação de latifúndios, suas dife-
renças de aplicação e efeitos quando comparada à aplicação em Portugal, bem como as
questões que influíram diretamente na relação dos povos indígenas com a terra.
Por fim, realiza-se uma abordagem analítica dos condicionantes históricos mate-
riais que levaram ao fim da aplicação do regime de sesmarias no Brasil, bem como dos
fatores que levaram à instituição da lei de terras de 1850 tal qual fora aprovada. Anali-
sando os dispositivos da lei de terras de 1850 destaca-se que o processo de independência
do Brasil frente a Portugal acabou por fortalecer o poder do senhoriato rural brasileiro,
tornando mais absoluta a propriedade da terra, ao passo em que esta se transmuda com
mais intensidade em mercadoria. Apesar do sistema jurídico prever direitos à terra para
os povos indígenas desde o século XVII, em geral as normativas foram solenemente des-
respeitada pelo Estado e pelo senhoriato rural, dificultando muito a sobrevivência dos
povos indígenas, principalmente daqueles que não tiveram reconhecidas ou efetivamen-
te tituladas suas terras antes do advento da lei de terras de 1850.

1
Mestrando em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, advogado
popular na organização de Direitos Humanos Terra de Direitos.

104
AS SESMARIAS EM PORTUGAL: REESTRUTURAÇÃO ECONÔMICA,
ALIMENTOS, MOUROS, CRISTÃOS E REIS

Para construir a possibilidade de realizar uma leitura crítica e contextualizada sobre a


utilização do instituto das sesmarias no Brasil, principalmente quanto a seus efeitos para os
povos indígenas, é relevante analisar, ainda que de forma breve, as origens do instituto de ses-
marias em Portugal, bem como seus principais atributos sociais e econômicos quando de sua
aplicação na Europa. Com tal análise será possível observar que os diferentes contextos fáticos
de aplicação, no Brasil e em Portugal, bem como os distintos objetivos de aplicação do insti-
tuto das sesmarias nessas regiões, determinaram efeitos diferentes para as pessoas que viviam
da terra. Assim, essa análise comparativa poderá fornecer um panorama mais aprofundado
sobre os efeitos da aplicação do instituto das sesmarias para os povos indígenas no Brasil.
Com esse intuito é necessário rememorar que quase toda a península Ibérica fora
dominada por povos muçulmanos de origem árabe a partir o ano de 711, quando o
TarikIbn-Zuiadan, ex-escravo berbere, saindo de Marrocos, no norte da África, venceu
o reino Visigodo, que dominava a região desde a queda do império Romano, e passou
a impor na Península Ibérica o domínio mouro, num contexto de expansão dos domí-
nios muçulmanos no mundo antigo. Desta data em diante, até o ano de 1492, com a
tomada de Granada pelos Reis Católicos de Aragão e Castela, ocasião da derrocada do
último bastião mouro, a Península Ibérica foi em grande parte dominada por povos e
reis árabes. A ocupação muçulmana na Península Ibérica conheceu seu apogeu e exten-
são máxima por volta do fim do século X e início do século XI, quando apenas o norte
da península não integrava os domínios mouros na região.
A resistência à dominação moura na Península Ibérica foi um fenômeno vivo des-
de o início da ocupação muçulmana na região, pois já em 718, com a revolta de Pelayo,
houve tentativa de expulsão dos mouros, tendo tomado maior fôlego as iniciativas de
reconquista apenas no século XI, com o início das cruzadas cristãs em direção a Com-
postela, no noroeste da Península Ibérica, em decorrência da suposta descoberta dos
restos mortais do apóstolo Thiago na região. Assim, no período que se segue ao século XI
tomou maior força o que se convencionou chamar de Guerra de Reconquista, a designar
o período em que os cristãos tiveram maior êxito em retomar territórios da Península
Ibérica, até a derrocada do último reino muçulmano, em Granada, já no século XV.
Durante o longo período das Guerras de Reconquista os domínios muçulmanos
na Península Ibérica foram tomados aos poucos pelos cristãos, que assim substituíam o
poder político muçulmano pelo cristão. Essa transição de poder impunha diversas tarefas
ao conquistador cristão e, entre estas, as questões que envolvem domínio e usos das terras
reconquistadas. Assim, com o avanço da Reconquista impunha-se a necessidade de opera-
cionalizar, inclusive juridicamente, o aproveitamento e colonização das terras progressiva-
mente ganhas, momento em que surge em Portugal o instituo jurídico da presúria.

105
A presúria era instituto jurídico geralmente utilizado no momento imediatamen-
te posterior à reconquista, caracterizando-se como uma autorização real à ocupação de
terras pelos cristãos que houvessem expulsado os dominadores muçulmanos. Foi, assim,
um instituto utilizado para viabilizar uma primeira relação econômica e jurídica entre
as pessoas e a terra após a expulsão moura, ainda que tumultuária, dado o contexto pós-
guerra. Assim, é possível afirmar que:

(...) foram as necessidades de defesa e de povoamento, e consequente aprovei-


tamento agrário que, durante a Reconquista, fizeram surgir a presúria. Donde é
lícito pensar que qualquer instituição deste período contém sempre em si o duplo
objectivo do povoamento e do arroteamento. (RAU, 1992, p. 36)

Logo, as presúrias eram institutos jurídicos próprios do período de reconquistas


da Península Ibérica pelos cristãos, sendo, assim, a primeira forma jurídica de concessão
das terras que paulatinamente eram tomadas dos muçulmanos na região. Dessa forma,
esse instituto jurídico esteve atrelado a esse contexto de guerra e início de uma nova co-
lonização por cristãos na Península Ibérica, conforme aponta Virginia Rau:

A presúria, como sistema de aquisição de terras, só é possível em épocas e regiões


em que as necessidades guerreiras e sociais tudo permitem ao conquistador; só é
possível, digamos, em épocas de violência e em regiões fronteiriças. Fixado o limite
territorial de um Estado, à medida que este se fortalece e organiza, tal processo de
obtenção de bens imóveis desaparece inelutavelmente. (RAU, 1992, p. 37)

Logo, o instituto das presúrias teve um contexto de aplicação muito específico no


tempo, pois absolutamente vinculado à retomada das terras da península Ibérica pelos
cristãos. À medida que a ocupação cristã se consolidava deixava de ser aplicado o institu-
to das presúrias, pois se tornavam desnecessários e de pouco proveito seus condicionan-
tes quando avançava a estabilização do domínio cristão. Foi nesse contexto de crescente
estabilização da ocupação cristã na Península Ibérica, especialmente em Portugal, e de
substituição do instituto jurídico das presúrias que surgem as sesmarias.
Nesse contexto, a ocupação por presúria foi sendo substituída pela ocupação da
terra que se pautava pelo que se convencionou chamar de instituto das sesmarias, pois:

os sesmeiros apareceram fruto da necessidade de dividir e distribuir terrenos aos


povoadores nas regiões onde se reorganizava a propriedade rural – quer a terra
pertencesse ao rei, quer aos grandes senhores, às ordens militares e monásticas. A
sua aparição deu-se a partir do momento em que a divisão tumultuária pela presú-
ria e a apropriação pelo cultivo não logravam garantir a colonização e as arroteias
das províncias conquistadas e em que a ordem social já não tolerava tal sistema”.
(RAU, 1992, p. 57)

106
Nesse sentido, o instituto da sesmaria consubstanciou-se em uma modalidade
de distribuição de terras onde a ocupação cristã já se consolidara na Península Ibérica,
sendo que:

os sesmos eram os locais destinados a prover cada povoador de uma quota-par-


te de propriedade territorial. Esgotados, eles pela vinda de novos moradores ou
pela multiplicação das famílias dos primeiros, só por compra, doação, ou outro
qualquer título legítimo, ou cerceando os baldios comunais, se poderia prover aos
problemas dos Joões-sem-terra. (RAU, 1992, p. 55)

É nesse contexto que o regime de ocupação das terras baseado no instituto das
sesmarias foi se consolidando ao longo do tempo, até que durante o reinado de D.
Fernando em Portugal (1343-1383) foi proclamada a lei de sesmarias, exatamente em
1375, de modo a dar certa unidade a um instituto jurídico que se aplicavam de diferen-
tes formas ao longo do tempo, bem como conforme a região.
A lei de sesmarias foi editada diante de um contexto de consolidação quase que
total dos cristãos na região de Portugal, escassez de cereais, carência de mão de obra no
campo, encarecimento de gêneros alimentícios e dos salários dos agricultores, oscilação
do preço da terra, falta de gado para o trabalho rural e aumento dos “ociosos e vadios”,
conforme dispositivos da própria lei de sesmarias (RAU, 1992, p. 90).
Dessa forma, para muito além da mera distribuição de terras, a lei de sesmarias
foi concebida como instrumento regulador da vida social, especialmente quanto a seu
aspecto econômico no mudo rural medieval, diante de um contexto de crise na Europa
medieval assolada também pela peste negra.
Ainda segundo Virgínia Rau, a lei de sesmaria buscava coagir os possuidores de
sesmarias a cultivar a terra; coagir as pessoas sem terra a trabalhar em terras de terceiros;
evitar o encarecimento de salários dos trabalhadores rurais; obrigar a realização de deter-
minados cultivos agrícolas em detrimento da criação de animais para consumo humano;
limitação do valor das rendas e outros tributos pagos aos proprietários das terras, entre
outros objetivos. Importante acrescentar que o descumprimento das disposições da lei
de sesmarias sujeitava o proprietário à perda da terra, multas, açoite e ao desterro (RAU,
1992, p. 91).
Como era de se esperar, o instituto jurídico das sesmarias sofreu alterações duran-
te seu longo processo de vigência em Portugal, até que no século XIX deixou de existir
no direito português. Para fins deste estudo importa reconhecer os elementos básicos do
contexto de aplicação das sesmarias em Portugal no período medieval, destacando-se
que tal instituto teve uma função histórica determinada que se atrelou com a necessi-
dade de regular a posse da terra, a vida e a economia das pessoas que viviam no campo
naquele contexto medieval específico.

107
Relevante destacar, ademais, o modo pelo qual as terras eram distribuídas no mar-
co jurídico das sesmarias medievais. Salienta-se que conforme afirmado por Virgínia Rau
(1992, p.43-47) à medida que se iniciava uma organização de características estatais após
a expulsão dos mouros, o poder real estabelecia uma espécie de administração local de-
signada de “Concelhos”, algo semelhante – guardadas as enormes diferenças de contexto
- a um pequeno município brasileiro em termos territoriais, e a um estado federativo
em termos de organização jurídica. Em cada um dos Conselhos que se formaram eram
designados pelo poder real uma ou mais pessoas, geralmente designadas de sesmeiros, a
quem incumbia distribuir as terras em sesmarias, bem como fiscalizar o cumprimento
das condicionantes impostas a quem recebia a terra em sesmaria. Relevante destacar que
“possivelmente, desde então, o que garantia a posse da terra distribuída era o seu cultivo
efectivo pelos indivíduos a quem fora distribuída, além de satisfação dos encargos que
lhes coubessem por força do costume ou do foral” (RAU, 1992, p. 57).
Como se viu, apesar das alterações que se deram ao logo de séculos, as principais
características das sesmarias atrelavam-se à obrigatoriedade de cultivo da terra e à pos-
sibilidade de retomada do sesmo em caso de não aproveitamento das terras nos moldes
determinado pelos reis, isso em um contexto de busca dos reis medievais pelo repovoa-
mento da Europa, seja no contexto da Reconquista, seja no contexto das crises medievais
alimentares e da peste negra.
Adiante se verá que o instituto das sesmarias teve aplicação muito distinta no
Brasil, seja pelo fato do interesse da coroa portuguesa ser distinto nas terras além-mar,
seja pelo fato de que o contexto fático de aplicação deste instituto nas Américas ser to-
talmente distinto daquele da Europa medieval.

AS SESMARIAS NO BRASIL: MERCANTILISMO


PRÉ-CAPITALISTA, POVOS INDÍGENAS, ESCRAVAGISMO E
COLONIZADORES EUROPEUS

Antes mesmo do início da invasão portuguesa com Pedro Álvares Cabral em


1500, e pouco depois do início da invasão espanhola de Cristóvão Colombo, em 1492,
Portugal e Espanha celebraram, em 1494, o Tratado de Tordesilhas. Esse tratado inter-
nacional foi o primeiro instrumento jurídico europeu que dividiu as terras das Américas
entre os colonizadores, em total detrimento dos povos que a habitavam a época.
Mediram-se 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo
Verde. As terras americanas a oeste deste meridiano passariam a pertencer à Espanha,
sendo que a leste de tal meridiano as terras pertenceriam a Portugal. Assim, mal haviam
portugueses e espanhóis tomado conhecimento das terras na América, bem como sequer
tinham efetiva noção dos povos que habitavam esta região, já buscavam determinar a

108
quais reinos europeus caberiam as áreas descobertas e a descobrir nas Américas.
A par das inúmeras disputas entre Portugal e Espanha pelo efetivo estabelecimen-
to de um marco territorial que representasse fisicamente o que fora acordado no tratado
de Tordesilhas, bem como a par de contestações de outros reinos europeus acerca da
legitimidade do acordo ibérico, foi apenas em 1530 que a mando do reino português
chegou às Américas Martin Afonso de Souza, com a função de apossar-se das terras em
favor de Portugal, entre outros encargos que havia recebido. Se ainda sem conhecer
minimamente as terras e os povos que habitavam as Américas Portugal já se arrogava
como dono do quanto aqui havia, não seria muito distinto o tratamento dado pela nação
europeia no repartimento, entre os próprios portugueses, das terras que estes se haviam
auto-outorgado.
Assim, não foi sem motivos que o reino português, quando do início da coloni-
zação das Américas, dividiu as terras de além-mar em apenas quinze grandes capitanias
hereditárias, cujos donatários, através de Carta de Doação e de Carta de Foral, ambos ex-
pedidos pela coroa portuguesa, detinham a posse da capitania, bem como poderes para
determinar direitos e deveres nas áreas a estes destinadas, cujos únicos limites jurídicos e
políticos impostos aos donatários derivavam da vontade real.
Os donatários recebiam, em regra, uma porção de terras pra que se apossassem di-
retamente para proveito próprio, e outra parte da capitania deveria ser por eles divididas
em sesmos para exploração de terceiros. Assim é que se pode afirmar terem exercido os
donatários poderes de chefes de Estado nas capitanias a eles cedidas, pois o que o reino
português outorgou a estes foi poder político e jurisdicional, conforme ensina Costa
Porto (PORTO, [s.d.], p. 21-23). Logo, os donatários das capitanias hereditárias teriam
poderes políticos, militares e jurisdicionais, respondendo apenas ao rei.
Fazendo uma análise comparativa entre as sesmarias da colônia e da metrópole, se
pode afirmar que “enquanto no Portugal dos fins do século 14, a prática do sesmarialis-
mo gerou, em regra, a pequena propriedade, no Brasil foi a causa principal do latifún-
dio” (PORTO,[s.d.], p. 46-47). Isto, dadas as diferenças de contexto fático, bem como
de objetivos do reino quando da aplicação do instituto das sesmarias. Relevante destacar
alguns aspectos que geraram o efeito brasileiro específico de concentração de terras na
aplicação das disposições da lei de sesmarias.
Os donatários em muitos casos continuaram a viver em Portugal, quando muito
na capital da colônia (PORTO,[s.d.], p. 46-47), situação em muito diferente da portu-
guesa, onde os sesmeiros viviam, em regra, no conselho onde distribuíam as terras. Essa
diferença importou em dificuldades de fiscalização da dada de sesmarias e de seu cum-
primento, bem como, muitas vezes, no desconhecimento da extensão, da característica
e das pessoas que vivam nas terras dadas em sesmarias.
Ao mesmo tempo, no Brasil as terras eram, sob o ponto de vista colonial, incultas
por natureza, virgens em verdade, ao passo que em Portugal “encontrando herdades

109
inaproveitadas, o sesmeiro, depois de intimar os senhorios a explorá-las procedia, se ina-
tendido, ao confisco ‘que va pera bem comum’ - efetuando, em seguida, a redistribuição
entre os lavradores sem terra” (PORTO,[s.d.], p. 48). Ou seja, o confisco da terra ina-
proveitada se dava em favor do bem comum, e pela proximidade física do sesmeiro com
a terra dada em sesmo era viável a fiscalização do aproveitamento das terras em Portugal.
Ademais, importante destacar que o contexto que determinava a quantidade de
terras a distribuir e as pessoas aptas a recebê-las em sesmo levava o sesmeiro Português a o
fazer em “courelas modestas, a fim de contemplar o maior número de necessitados” (Costa
Porto,[s.d.], p, 48). Contudo, no Brasil havia terras que sequer se podia conhecer, e pessoas
poucas que vinham do continente europeu com condições efetivas para aproveitá-las con-
forme as determinações da coroa, de forma que apenas aqui “além de receber, de uma vez,
extensões imensas, seria usual, ainda, repetirem-se as dadas, contemplando-se o mesmo
colono com sucessivas sesmarias, em épocas e lugares diferentes” (PORTO,[s.d.], p. 50).
Mas, de fato, havia também disposições que se aplicavam tanto no Brasil como
em Portugal quase que com o mesmo efeito, principalmente quanto às condições de
concessão a título resolutivo, a exemplo do “aproveitamento em prazo determinado e,
mais tarde, do pagamento de um foro, do registro, da confirmação da medição e demar-
cação” (PORTO,[s.d.], p. 50). A inobservância das disposições redundava na caducida-
de da concessão, voltando a terra à coroa como devoluta, seja em Portugal ou no Brasil.
Mas, como já fora dito, dificuldades de fiscalização no cumprimento das condicionantes
das sesmarias, entre outros fatores, influiu decisivamente para que no Brasil a perda das
terras não se desse com o mesmo rigor que em Portugal.
A par da existência de cláusulas resolutivas da concessão tanto no Brasil como em
Portugal, era certo que ao menos no Brasil, “satisfeitas as condições de lei, o colono ad-
quiria o domínio pleno” (PORTO,[s.d.], p. 51). Ou seja, passado o prazo de confirmação
das condições, aquele que recebia a sesmaria no Brasil poderia vendê-la a qualquer título,
e dada essa permissividade “toda gente vendia e comprava terras recebidas de sesmaria, ou
herdadas, pedindo e obtendo novas dadas, abusando da generosidade dos distribuidores
para fazer do sesmarialismo quase um negócio lucrativo” (PORTO,[s.d.], p. 51).
Logo, o sistema sesmarial aplicado em terras brasileiras é vetor interpretativo da
realidade que torna “fácil, assim, compreender por que houve tanto latifúndio, sobretu-
do no nordeste”. (PORTO,[s.d.], p. 53). A esse sistema de regulação da posse e do domí-
nio da terra se somou, na formação dos latifúndios, o sistema econômico mercantilista
que impunha nas terras brasileiras o plantation, que se pautava na monocultura de cana-
de-açúcar, na mão de obra escrava e em grandes extensões de terras, de modo a produzir
açúcar em grande escala voltado para o mercado europeu. De outro lado, em Portugal
as pequenas porções de terras dadas em sesmaria não se destinavam à monocultura de
exportação que alimentava o mercantilismo Português, pois era o alimento das gentes
que buscava o reino extrair de suas terras incultas no velho continente.

110
Também é digno de destaque que além da concessão de terras para o erguimento
de engenhos, as ordens religiosas também detinham grandes quinhões de terras, limi-
tando nessas áreas as dadas em sesmarias para construção de engenhos de cana. Outras
limitações havia para a dada de sesmarias que limitava o poder do donatário, como a
existência de cidades, as estradas, caminhos para chegar à água, margem dos rios onde
pudesse aportar canoas, aglomerados urbanos menores, isto pois “havia porções de terras
indistribuíveis, embora a lei silenciasse a esse respeito” (PORTO,[s.d.], p. 122).
Também chama a atenção que existiam limitações à dada de sesmos no Brasil relati-
vas a determinadas situações onde se encontrassem povoamentos indígenas. É notório que
esta limitação não estava prevista na lei de sesmarias, pois não havia índios em Portugal.
Mas relevante reconhecer, como se verá, que na colônia a limitação à dada de sesmarias
relacionada com a existência de povos indígenas não tinha outra razão que não fosse o
extermínio dos indígenas e a afirmação do modelo de exploração mercantilista na colônia.
Está aqui, nesta limitação à concessão de sesmarias, uma das origens da política
de aldeamento, cercamento e dominação cultural dos povos indígenas no Brasil. Esses
aldeamentos tinham como finalidade deixar os indígenas em “povoações exclusivas, com
terrenos suficientes para cultivar a terra, para viver à maneira do colonizador” (POR-
TO,[s.d.], p. 124). Tal medida tinha o objetivo “de evitar que, em contato com os índios
pagãos, lhes copiassem os maus costumes” (PORTO,[s.d.], p. 124).
Essa limitação de dadas de sesmarias onde houvesse aldeamento indígena aparece
já no Regimento de 1548, elaborado por Dom João III e entregue a Tomé de Souza.
Nessa oportunidade Dom João refere-se a uma situação específica de conflito havido en-
tre indígenas e colonizadores na Bahia, no ano de 1545. No regimento Dom João deter-
mina que Tomé de Souza faça aliança com grupos indígenas que tivessem ligações com
a colônia, e que se prontificassem a atacar indígenas que haviam assassinado, no conflito
de 1545, a Francisco Pereira Coutinho, então capitão-mor da Bahia. Como re-
compensa à aliança, bem como pelo reconhecimento dos indígenas ante primazia da
colônia portuguesa sobre as terras no Brasil, Dom João recomenda que sejam dadas ter-
ras aos indígenas. A transcrição da Carta Régia de 1548 é ilustrativa das condições para
a dada de terras aos indígenas nessa situação específica:

Porque sou informado que a linhagem dos tupiniquins destas capitanias são ini-
migos dos da Bahia e desejam de serem presentes ao tempo que lhe houverdes de
fazer guerra para ajudarem nela e povoarem alguma parte da terra da dita Bahia
e que para isso estão prestes escrevo também aos ditos capitães que vos enviem
alguma gente da dita linhagem e assim mesmo lhes escrevereis e lhes mandareis
dizer que vos façam saber de como a terra está e da gente armas e munições que
tem e se estão em paz ou em guerra e se tem necessidade de alguma ajuda vossa e
aos cristãos e gentios que das ditas capitanias vierem fareis bem em agasalhar e os
favorecereis de maneira que folguem de vos ajudar enquanto tiverdes deles necessi-

111
dade e porém os gentios se agasalharão em parte onde não possam fazer o que não
devem porque não é razão que vos fieis deles tanto que se disso possa seguir algum
mau recado e tanto que os puderdes escusar os expedireis e se alguns dos ditos
gentios quiserem ficar na terra da dita Bahia dar-lhe-eis terras para sua vivenda de
que sejam contentes onde vos bem parecer.

Como se vê, nessa situação específica deveriam ser concedidas terras aos indí-
genas, e a limitação de dada de sesmarias decorria do fato de que essas terras já teriam
sido dadas aos indígenas, não se tratando de limitação geral à dada de sesmarias onde
houvesse qualquer aldeamento indígena.
Como se vê, antes de uma verdadeira limitação à dada de sesmarias, como afirma
Costa Porto, a política de aldeamento indígena tinha a função de manter as sesmarias,
evitando que os indígenas vivessem conforme seus costumes em suas próprias terras.
Não havia opção ante à política de aldeamento que não fosse a guerra cruel do colo-
nizador contra os povos indígenas. O aldeamento, por sua vez, era a morte cultural do
povo indígena como tal, uma vez que qualquer povo indígena “sem o seu território, está
ameaçado de perder suas referências culturais e, perdida a referência, deixa de ser povo”
(MARÉS, 1998, p. 120).
Foi apenas no século XVII que através do Alvará Régio de 1º de abril de 1680
se reconheceu aos povos indígenas um direito abstrato e geral relacionado com a posse
imemorial de suas terras, como também a impor limitações à dada de sesmarias. Funda-
mental a transcrição do trecho específico do citado alvará:

E para que os ditos Gentios que assim decerem e os mais que ha de prezente
milhor se conservem nas Aldeas, Hei por bem que sejão senhores de suas fasen-
das como o são no Certão sem lhe poderem ser tomadas nem sobre elles se lhes
fazer molestia, e o Governador com parecer dos ditos Religiosos assignará aos que
descerem do Certão logares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem e não
poderão ser mudados dos ditos logares contra sua vontade, nem serão obrigados a
pagar foro ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmaria
a pessoas particulares por que na concessão destas se reservaria sempre o prejuiso
de terceiro, e muito mais se entende e quero se entenda ser reservado o prejuiso e
direito dos Indios primarios e naturaes Senhores dellas.

Também é necessário resgatar que no ano de 1680 a “Ley Sobre a liberdade do


gentio do Maranhão”, bem como o já citado Alvará de 1º de abril do mesmo ano tra-
taram das questões afetas à liberdade dos povos indígenas na relação com a escravidão,
além de propriamente da questão territorial.
A lei de 1680 procurou estabelecer uma espécie de abolição da escravidão indíge-
na no Maranhão, consignando que:

112
daqui em diante se não possa cativar Indio algum do dito Estado em nenhum caso
nem ainda nos exceptuados nas ditas Leys que para este fim nesta parte revogo e
hei por derrogadas como se dellas e das suas palavras e desposições figura expressa
e declarada menção ficando no mais em seu vigor.

Ademais, na mesma lei ficou consignado que os indígenas

ficarão somente prizioneiros como ficão as pessoas que se tomão nas guerras da
Europa, e somente o governador os repartirá como lhe parecer mais conveniente
ao bem e segurança do Estado pondo-os nas Aldeas dos Indios livres e catholicos
aonde se possão reduzir a fé e servir o mesmo Estado e conservarem-se na sua
liberdade e com o bom tratamento que por ordens repetidas está mandado e de
novo mando e emcomendo se lhes dê em tudo sendo severamente castigado quem
lhes fizer qualquer vexação.

Ainda no contexto das exceções, ou reservas de terras às dadas de sesmarias, afir-


ma Carlos Marés (1998, p. 126) que:

Dentro dessas terras reservadas, estavam contidas não só as que efetivamente a au-
toridade reservara para formar aldeamentos, como as congenitamente possuídas,
isto porque o termo “reservado” se referia antes aos direitos dos índios às terras que
possuíam e depois passou a designar também, nessas mutações próprias do direito
e das sociedades, aquelas que o Poder Público achava melhor para aldear os povos
indígenas, na idéia de integração cidadã. Isto explica porque até hoje se apelidam
de Reservas Indígenas.

Contudo, apesar do reconhecimento de aldeamentos específicos e do direito ori-


ginário inscrito no Alvará Régio de 1º de abril de 1680, houve situações em que os direi-
tos reconhecidos foram solenemente ignorados. O desrespeito dos direito já reconhecido
aos povos indígenas decorria do confronto com os interesses da colônia.
Ilustrativa dessa situação, bem como da crueldade com que os indígenas que
ameaçavam o sistema de sesmarias na colônia eram tratados, é o conteúdo da Carta
Régia de 5 de novembro de 1808, escrita a mando do Príncipe Regente D. João VI e en-
dereçada a Antonio José da França e Horta, então Capitão General da Capitania de São
Paulo, cujo conteúdo que se transcreve é referente a questões dos indígenas Botucudos
das regiões de Curitiba e Guarapuava:

tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios hu-


manos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzi-los
a aldeiar-se, e gosarem dos bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce,
debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos, e até mostrando a
experiencia quanto inutil é o systema de guerra defensiva: sou servido por estes

113
e outros justos motivos que ora fazem suspender os effeitos de humanidade que
com eles tinha mandado praticar ordenar-vos: Em primeiro logar que logo desde
o momento em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar como
principiada a guerra contra estes barbaros Indios.

Diante do quadro posto, é possível afirmar que a aplicação do instituto das ses-
marias no Brasil levou em conta os povos indígenas que viviam nas Américas. Não como
povos independentes com direitos e liberdades, mas como um estorvo, como mão de
obra barata que ou entrava no sistema como escravo, ou dele se excluía e tinha a morte,
o aculturamento ou a fuga para os interiores como destinos certos.
Assim, o reino português tinha para as terras e para os povos das Américas in-
tenções muito distintas daquelas que teve para seu próprio povo, na Europa, na mesma
época. A América era para Portugal um lugar para explorar pessoas e riquezas naturais no
contexto do mercantilismo europeu de além-mar, pois conforme Marés “Na realidade
não era sua pretensão colonizar o país com um eventual excedente da população, mas de
expandir o capital comercial europeu” (MARÉS, 2003, p. 61).
Logo, a lei de sesmarias não poderia ter a mesma aplicação que teve em Portugal, pois o
contexto de aplicação da norma não era aquele relacionado com a guerra de Reconquista, não
havia aqui dominação moura, nem reis, nem presúrias e quanto menos todo o contexto social
medieval da Europa. Assim, ainda que a norma fosse a mesma que se aplicava em Portugal, a
alteração do contexto de aplicação impossibilitava que esta tivesse os mesmos efeitos, pois:

elementos normativos e empíricos do nexo de aplicação e fundamentação do di-


reito que decide o caso no processo de aplicação prática do direito provam ser
multiplamente interdependentes e com isso produtores de um efeito normativo
de nível hierárquico igual. (MULLER, 2000, p. 58)

Por fim, com objetivos muito distintos daqueles que o reino português tinha para
com as sesmarias na Europa, no Brasil o principal interesse de aplicação de um instituto
jurídico de regulação da posse da terra nas Américas “teria o sentido de limitar a ocupa-
ção das terras concentrando a produção, segundo o interesse e a possibilidade do capital
mercantil, e obrigar os trabalhadores a manter-se em seus postos de trabalho, como
escravos” (MARÉS, 2003, p. 61).
O regime de sesmarias permaneceu vigente no Brasil até 17 de julho de 1822,
quando o “Príncipe Regente pôs fim ao regime de sesmarias, ficando, a partir daquela
data, proibida sua concessão no Brasil, reconhecidas como legítimas as que tivessem sido
dadas de acordo com as leis e que tivessem sido medidas, lavradas, demarcadas e confir-
madas” (MARÉS, 1998, p. 59).
Em 1822, com a declaração de independência do Brasil, e na sequência com a
Constituição Imperial de 1824, inaugurou-se um novo momento da história brasileira

114
no que diz respeito à regulação jurídica das pessoas com a terra, cujo ponto de conver-
gência da nova era é a lei de terra de 1850. Contudo, como se verá, a nova era não trou-
xe alento aos povos indígenas, pelo contrário, continuou e reforçou estratégias políticas,
sociais, jurídicas e militares de extermínio dos povos indígenas.

DAS SESMARIAS À LEI DE TERRAS DE 1850:


TUDO MUDA PARA FICAR COMO ESTÁ

O fim do regime das sesmarias se deu no Brasil junto com o crepúsculo da domi-
nação colonial portuguesa. Entretanto, a independência foi parcial e inconclusa, apro-
veitando quase que exclusivamente aos interesses de uma elite política e econômica rural
que desejava ampliar seus lucros na exploração das terras e das gentes no Brasil. Assim,
o desligamento do Brasil da metrópole portuguesa não significou a liberdade das gentes
que aqui viviam, pois estas pessoas continuaram sob o julgo do senhoriato escravagista.
A hipocrisia dessa elite que construiu a independência brasileira para manter o
povo cativo a seus interesses se manifesta na Constituição de 1824. Nesse sentido, para
Carlos Marés:

A primeira constituição brasileira, a imperial de 1824, não se referiu a negros e


índios, no pressuposto de que todos seriam livres e cidadãos, conforme o receituá-
rio da nova ordem ocidental. Era apenas discurso, como se sabe, os negros conti-
nuaram escravos e os índios jamais foram integrados como cidadãos à comunhão
nacional. A liberdade e a cidadania nunca se estenderam a todos, mesmo aos que
não eram negros nem índios, porque não alcançou as mulheres, os pobres e os tra-
balhadores em geral, não proprietários, que tiveram que esperar, em alguns casos
mais de cem anos para ver seus direitos civis reconhecidos.

Relevante observar que antes do fim do regime de sesmarias, bem como da decla-
ração de independência no Brasil, houve significativas alterações no contexto socio-eco-
nômico do século XVIII que determinaram tal cenário, como aponta Lígia Osório Silva:

Um dos fatores que contribuíram para a modificação do quando colonial foi o


crescimento da colônia. Crescimento em todos os sentidos: populacional (o fluxo
migratório da metrópole para a Colônia aumentou tão intensamente que chegou
a preocupar as autoridades); territorial (maior integração efetiva dos extremos do
território); e econômico (aumento da importância econômica que a Colônia pas-
sou a ter para a metrópole). (SILVA, 1996, p. 61)

As mudanças que se operavam no contexto socioeconômico do Brasil do século


XVIII também se materializavam na questão da terra. Em descompasso com o regime

115
jurídico de sesmarias aumentava significativamente o simples apossamento de terras, “que
por suas características mesmas se fazia de modo desordenado e espontâneo, fugindo total-
mente ao controle das autoridades” (SILVA, 1996, p. 66). Ou seja, apesar da plena vigência
do regime jurídico das sesmarias, o apossamento das terras se apresentava como situação
fática crescente que influía significativamente na apropriação privada do espaço rural.
A posse era fenômeno que ocorria desde “o pequeno lavrador sem condições de
solicitar uma sesmaria” (SILVA, 1996, p. 67) até o grande latifundiário “no intuito de
se apropriar de terras sem, necessariamente, cultivá-las” (SILVA, 1996, p. 67). É claro
que o simples apossamento de terras sem qualquer respaldo legal durante o regime de
sesmarias sempre existiu, “mas, os problemas começara a surgir quando o povoamento
começou a adensar-se ” (SILVA, 1996, p. 68), situação que causou conflitos entre a co-
roa portuguesa, sesmeiros e posseiros.
De um lado, havia sesmeiros não cumpriam com todos os requisitos do instituto para
regularizar seu domínio e, assim, tinha dificuldades em validá-las. Por outro, os posseiros,
ai inclusos também sesmeiros que alargavam suas áreas de influência para além do que lhes
fora concedido, não tinham condições jurídicas de regularizar a posse das terras. Por sua vez,
a “metrópole insista em considerar o assunto apenas do ponto de vista jurídico, sem atentar
para as condições socioeconômicas da Colônia” (SILVA, 1996, p. 80). Esse cenário de difi-
culdades para regularização das posses simples e das sesmarias acabou por criar “um campo de
interesses comuns entre uma parcela dos colonos sesmeiros e os colonos posseiros. Interesse
comum que desafiava a autoridade da metrópole” (SILVA, 1996, p. 80).
Foi diante desse quadro que em 14 de março de 1822 determinou a coroa portu-
guesa que a dada, medição e demarcação de sesmarias “deveria se dar sem que com isso
se prejudicasse o posseiro com cultura efetiva” (SILVA, 1996, p. 82) e, em 17 de julho de
1822 suspendeu-se por completo, sob o ponto de vista normativo, a dada de sesmarias
no Brasil (SILVA, 1996, p. 82).
A suspensão de dadas de sesmarias se deu em de decisão de Dom Pedro II, através
da Resolução 76 de 17 de julho e 1822, quando o então Príncipe Regente do Brasil
analisava situação específica de uma pessoa, denominada Manoel José dos Reis, que
solicitava “ser conservado na posse das terras em que vive há mais de 20 anos com a
sua numerosa família de filhos e netos, não sendo jamais as ditas terras compreendidas
na medição de algumas sesmarias que se tenha concedido posteriormente”. Quando da
análise do pleito o Príncipe Regente Dom Pedro II decidiu por manter “o suplicante na
posse das terras que tem cultivado e suspendam-se todas as sesmarias futuras até a con-
vocação da Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa”.
Assim, percebeu a colônia que o quadro caótico de ocupação territorial no Brasil
não poderia ser revertido no marco da lei de sesmarias, sem que para tanto deixasse de
atender aos interesses da metrópole em “retomar o controle do processo de apropriação
que escapara de suas mãos” (SILVA, 1996, p. 83).

116
No entender de Lígia Osório Silva “as contradições entre o senhoriato rural da
colônia e a metrópole em torno da questão da apropriação territorial contribuíram tam-
bém, significativamente, para a ruptura definitiva dos vínculos com a colônia” (SILVA,
1996, p. 85). Diante desse novo quadro político normativo afeto à questão da terra, se
pode afirmar que:

entre 1822 e 1850 a posse tornou-se a única forma de aquisição de domínio sobre
as terras, ainda que apenas de fato, e é por isso que na história da apropriação
territorial esse período ficou conhecido como ‘fase áurea do posseiro’. (SILVA,
1996, p. 90)

Logo, em resumo, se pode afirmar que o fim do regime de sesmarias esteve atre-
lado à independência do Brasil frente a Portugal, com fortes bases na oposição que o
senhoriato rural brasileiro exerceu à pretensão da coroa portuguesa em retomar as rédeas
da ocupação do solo e sua expressão jurídica. Assim, o senhoriato rural brasileiro pressio-
nou pela extinção do regime de sesmarias, bem como pela independência do Brasil frente
a Portugal para manter e estender seu poder político e econômico que, necessariamente,
guardava relação direta com a questão da terra. Esses fatores acabaram por aumentar o
poder da elite rural brasileira, que não tinha qualquer interesse efetivo em solucionar as
questões que assolavam os povos indígenas que viviam conforme suas próprias crenças.
Mas mesmo entre a classe rural dominante não havia acordo sobre o destino que
se deveria dar às terras e à regulação jurídica das mesmas no Brasil independente. O
lapso de 28 anos entre a independência e a edição de Lei de Terras de 1850 demonstra
a dificuldade em acomodar os diversos interesses do senhoriato rural, sendo muito ex-
pressivo reconhecer que “na Constituição outorgada nada foi dito sobre a terra” (SILVA,
1996, p. 93). Nesse sentido, para Ligia Osório Silva:

A solução para o problema da terra vinha sendo protelada em razão da comple-


xidade dos interesses em jogo, que opunham, como vimos, em certos aspectos, o
controle do processo e ocupação territorial por parte do estado aos interesses dos
proprietários de terras. (SILVA, 1996, p. 93)

No período compreendido entre o fim da aplicação do instituto das sesmarias e a


edição da lei de terras teve relevância, para determinar a forma com que se daria a regu-
lação do uso da terra, a expansão da cultura cafeeira e a pressão exercida pela Inglaterra
para que se abolisse a escravidão no Brasil.
Assim, de um lado a expansão cafeeira, que se deu principalmente após o fim da
aplicação do instituto de sesmarias e, portanto, sob o regime de posse simples sem reper-
cussão jurídica, contribuiu decisivamente para que a lei de terras de 1850 regularizasse
as posses de terras. Por outro, quanto à questão da ignóbil escravidão e a possibilidade

117
efetiva de sua abolição, influiu de forma decisiva nos dispositivos legais que permitiriam a
compra de terras devolutas para financiar a imigração europeia que deveria substituir a mão
de obra escrava. Ademais, a transformação das sesmarias e posses do senhoriato em proprie-
dade privada também buscava transformar a terra em mercadoria, pois “tudo aquilo que o
escravo representava como mercadoria e capital imobilizado no antigo sistema deveria, em
parte, ser substituído pela terra num futuro próximo” (SILVA, 1996, p. 136).
Assim, a lei de terras de 1850 acabou por referendar a transformação das anti-
gas sesmarias em propriedades privadas, bem como as posses do senhoriato rural que
ocorriam sem qualquer respaldo jurídico em propriedades privadas. Já as terras que não
estivessem sob o domínio do senhoriato rural, salvo pontuais exceções, foram declaradas
devolutas (SILVA, 1996, p. 154).
Diante desse novo quadro jurídico os proprietários deveriam medir e demarcar
suas terras, resolvendo-se os conflitos entre o senhoriato tendo em conta como principal
critério de solução a efetiva cultura das terras. Por sua vez, o Estado deveria prover os
“meios práticos pelos quais seria extremado o domínio público do domínio particular”
(SILVA, 1996, p. 155).
Nesse contexto, as terras devolutas foram definidas no art. 3º da lei de terras da
seguinte forma:

Art. 3º São terras devolutas:


§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial,
ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo,
nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Pro-
vincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de
medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Gover-
no, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem
em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.

Além de reconhecer e regularizar as terras do senhoriato rural, bem como deter-


minar em abstrato quais seriam as terras públicas e as devolutas, a lei de terras por um
lado tinha o objetivo de “impedir o acesso à terra dos imigrantes pobres (proibição de
posse). Por outro, havia a intenção de estabelecer colonos com alguns recursos nas terras
devolutas da Coroa, por meio da venda de lotes” (SILVA, 1996, p. 159). A proibição do
apossamento teria o objetivo de viabilizar mão de obra imigrante para o senhoriato ru-
ral. Ademais, a compra de terras devolutas por imigrantes com algum recurso financeiro
deveria viabilizar recursos para que o Estado pudesse arcar com os custos da imigração de
europeus pobres que substituiriam o trabalho escravo em uma transição longa e gradual.
Também importante mencionar que os dispositivo da lei de terras também visavam

118
impedir uma possível apropriação jurídica de terras por pessoas pobres que vivessem no
Brasil, bem como aos negros em caso de abolição da escravatura.
Por sua vez, a lei de terras de 1850, por ter como objeto o tratamento que se daria
às terras do senhoriato e do Estado, quase não tratou da questão indígena, que aparece
apenas em seu art. 12, com a seguinte redação:

Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º,
para a colonisação dos indígenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de
estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º,
para a construção naval.

Numa primeira leitura pode parecer que o Estado, a partir de 1850, iria disponibilizar
terras devolutas para a colonização indígena. Muito embora essa possa ser uma das interpre-
tações da questão da terra afeta aos indígenas, posto que o Estado de fato reservou algumas
terras devolutas para criar núcleos indígenas, como já fazia à época das sesmarias, havia outras
relações jurídicas entre os povos indígenas, suas terras e a lei de terras de 1850.
A principal característica a ser destacada é a impossibilidade de se reconhecer a
existência de terras devolutas onde houvesse povos indígenas, pois “desde o século XVII
as terras indígenas são indígenas, isto é, são respeitadas como terras indisponíveis para
a colônia, o império ou o Estado-membro” (MARÉS, 1998, p. 134). Isto, posto que
desde o Alvará de 1º de abril de 1680 as terras indígenas não podiam ser entregues em
sesmarias e, em 1822, quando findado o regime de sesmarias, as terras indígenas “não
estavam sujeitas ao regime de posse, enquanto a lei não disciplinou a aquisição originária
de terras” (MARÉS, 1998, p. 134). Assim, nos dizeres de Carlos Marés (1998, p. 134)
“na longa trajetória, as terras indígenas nunca foram devolutas, nunca foram devolvidas
ao Brasil, porque não deixaram de pertencer aos próprios índios”.
Entretanto, os impedimentos jurídicos à apropriação particular, bem como por
parte do Estado, das terras indígenas foram solenemente ignorados, como o são até
hoje, ofendendo de morte os povos indígenas que habitam nas terras brasileiras. A in-
terpretação jurídica majoritária dada à questão das terras indígena, sob o manto da lei
de terras de 1850, se atrelou a uma concepção de que “todas as terras não patrimoniais
legitimamente eram devolutas e, portanto, a eles [estados federativos] pertenciam. Dessa
forma, “não consta que tenha havido problemas com terras indígenas reconhecidas e
patrimoniadas”. Por outro lado, os povos indígenas que não contavam com algum título
de domínio tiveram suas terras classificadas como devolutas.
Dessa forma, grande parte dos povos indígenas esteve em situação de vulnerabilida-
de jurídica quanto à questão territorial com a adoção da lei de terras de 1850, uma vez que
apenas naquelas situações em que já havia um reconhecimento oficial de titulo de terras
houve efetivo respeito à dominalidade. Contudo, no mais das vezes as terras indígenas não
contavam com tal atributo jurídico e, sendo assim, poderiam ser declaradas devolutas.

119
REFERÊNCIAS

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da Terra. Porto Alegre: Fabris, 2003.

_____. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Juruá. Curitiba. 1998.

MÜLLER, Friedrich. Método de trabalho do direito constitucional. Tradução de Pe-


ter Naumann, 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2000.

PORTO, Costa. O sistema Sesmarial no Brasil. Brasília: Universidade de Brasília,


[s.d.].

SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campi-
nhas, SP: Unicamp, 2008.

RAU, Virgínea. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa: Editora Presença, 1982.

120
VIDAS AMARGAS: INDÍGENAS EXPLORADOS
PELAS OBRAGES (1860-1950)

Jefferson de Oliveira Salles1


Raul Cezar Bergold2
Ener Vaneski Filho3

INTRODUÇÃO

Na produção historiográfica sobre o Paraná predominam concepções teóricas que se


sustentam uma ideologia na qual o território somente tem significado quando estabelece
relações comerciais – seja pela preação dos guaranis pelos bandeirantes paulistas ou extra-
ção de ouro no litoral no século XVIII. Daí que o Paraná, tal qual ele é descrito, corres-
ponde a uma conformação econômica moderna, que pouco tem a ver com os contornos e
contrates territoriais que o precederam ou que ainda o mantém dinâmico e colorido.
No plano histórico o viés pautado na produção de mercadoria leva a invisibiliza-
ção de diferentes povos e etnias e sua forma de organização. Segundo historiadores como
Tomazi (2000, p. 31-105) e Mota (2008, p. 17-73) as obras clássicas da historiografia
e geografia sobre o Paraná e o discurso oficial produzido por representantes do Estado,
construíram a “ideologia do vazio demográfico”. Nesta construção o espaço habitado
por povos indígenas (Guarani, Kaingang, Xetá e Xokleng) foi retratado como um “vazio
improdutivo, pronto a ser ocupado”. Tal construção sustenta a versão hegemônica de
que ocupação da região foi pacífica, sem resistência indígena. Não obstante, a memória
da população indígena explicita o caráter violento da colonização.
Assim é que, varando e atropelando ou misturando-se às relações territoriais preexis-
tentes e recorrentemente ignoradas como ponto de partida ou extensão contínua da contem-
poraneidade, a ocupação portuguesa iniciou-se no litoral a partir do século XVI, em busca de
minérios, mesma razão que fez com que os campos do primeiro planalto paranaense fossem
alcançados, tanto pela transposição da Serra do Mar como, primeiramente, pela subida do
rio Ribeira. Os resultados desse ciclo, tanto em termos econômicos como de introdução de
novas gentes e relações, apesar de estabelecer a vila que fundou Curitiba, foi proporcional à
exígua quantidade de minérios preciosos encontrados, o que não impediu a criação da Com-
panhia de Índios das Minas, dedicada à exploração da mão de obra nativa. Nesse período os
1
Historiador, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Assessor técnico do Centro de Apoio
as Promotorias de Direitos Constitucionais do Ministério Público do Estado do Paraná.
2
Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
3
Doutorando em Meio Ambiente e Desenvolvimento na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Mestre em Desen-
volvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL) no IPPRI/UNESP no âmbito do Programa Nacional de
Educação da Reforma Agrária (PRONERA).

121
carijós (guaranis) e os coroados (kaingangs) foram contatados, para logo em seguida serem
confrontados, violados, escravizados ou desnaturados (WACHOWICZ, 1995, p. 11-12).
Mesmo que por vezes seja ignorada como ciclo econômico, a preação de índios para
serem comercializados pelos bandeirantes em São Paulo também movimentou a economia
do Brasil colônia desde seu primeiro século, abastecendo a mineração de ouro com seu prin-
cipal insumo: a mão de obra. Dessa forma, contribuiu para o avanço de novas gentes sobre
o seu território, além de esparramar os carijós pelo território nacional. Em São Paulo, dada
a quantidade de indígenas tomados no litoral paranaense, “a palavra carijó passou a ser sinô-
nimo de índio”. Nos “sertões do Araguaia”, os mesmos carijós levados a Goiás para a catação
do ouro chegariam fugidos para se tornar os avá-canoeiros (WACHOWICZ, 1995, p. 13).
No Paraná, então parte da província de São Paulo, o bandeirantismo de preação chegou
ao primeiro e ao segundo planaltos, enquanto que as bandeiras de conquista territorial sob bases
coloniais, apesar de atuarem até o Império, firmaram o seu mais distante limite paranaense nos
Campos de Palmas, alcançados definitivamente em 1839, guerreando contras os kaingangs.
Em seguida ao ciclo do ouro, o ciclo do tropeirismo moldou a ocupação do Estado,
como ponto de passagem das mulas e do gado levados do Rio Grande do Sul a São Paulo,
de onde eram comercializados para a exploração das ricas minas das Gerais. Nesse ciclo, uma
posição duplamente secundária era assumida pelo Paraná, já que representava apenas local de
passagem e porque o tráfego era desenvolvido como atividade acessória da exploração dos miné-
rios, que ocupava o protagonismo das relações econômicas nacionais. Com o tempo, os campos
do segundo e terceiros planaltos foram alcançados e passaram também a servir para a engorda e
criação de animais, atividades que sustentariam as primeiras oligarquias fundiárias paranaenses.
Após o tropeirismo, o comércio de erva-mate enriqueceu o Estado, que teve o seu
“ciclo do ouro” por conta da atividade (ORREDA, 1968). O ciclo se iniciou em 1820,
quando se formou a primeira beneficiadora de mate em Paranaguá, sob o comando do
argentino Francisco Alzagaray, com a produção exportada para a Bacia do Prata e até
o Peru (FARAH, 2012, p. 122). A prevalência ocorreu no período entre 1825 a 1925,
quando o porto de Paranaguá “foi o grande porto ervateiro do Brasil, movimentando
na safra 1856/1857 aproximadamente 8,6 milhões de quilos, quantidade equivalente a
68% da exportação brasileira [de mate] naquele ano”, em 1858 dois terços das tropas
que desceram ao litoral paranaense carregavam mate (ORREDA, 1968, p. 26-27).
A tal tempo, o tropeirismo seguia mantendo e até ampliando sua importância no
transporte das riquezas, mas incorporando o ouro florestal nativo. Conquanto os ervais te-
nham sido adentrados primeiro pelos indígenas e depois pelos caboclos4, e ainda que se
4
Segundo a historiadora Arlene Renk que tem se dedicado há décadas à pesquisa da formação social da população do interior
catarinense, nos limites com o Paraná, “Caboclo não corresponde a uma determinada fenotipia. Trata-se de condição social
atribuída àqueles que não partilhavam dos valores dos colonizadores descendentes de alemães, italianos e poloneses, os chamados
de origem [européia]. Além da condição social associa-se à experiência partilhada de colonização” (RENK, 2009, p. 297). Tal
conceituação é importante para o presente texto, pois parte significativa da população da região das obrages, especialmente os
mensus, que adiante serão tratados, era formada pelos chamados “guaranis modernos” ou caboclos brasileiros.

122
fale que a atividade propiciou a formação de uma classe intermediária de comerciantes e
proprietários de pequenos engenhos de mate, o lucro da exploração desse tesouro ficou com
as oligarquias estabelecidas, que monopolizavam o uso dos transportes que levavam a erva
do interior para Paranaguá, de onde era comercializada principalmente para Montevidéu e
Buenos Aires (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 72). Daí se dizer que a “exploração” comercial do
mate, no Paraná, teve como pioneiros os colonos europeus que se fixaram nos vales dos rios
Iguaçu e Negro na primeira metade do século XIX (ORREDA, 1968, p. 26), levando ao
mercado internacional a erva utilizada pelos indígenas ou pelos colonizadores ibéricos.
A erva-mate, classificada como Ilex paraguarienses pelo botânico francês Auguste de
Saint-Hilaire, que esteve no Brasil entre 1816 e 1822, tem ocorrência natural na região com-
preendida desde o atual Paraguai, estendendo-se pelo sul do Mato Grosso do sul, pela maior
parte do Paraná e pequenas áreas em São Paulo, além de fragmentos em Minas Gerais, en-
quanto ao sul alcançava algumas áreas da Argentina, a quase totalidade de Santa Catarina e
áreas setentrionais e altas do Rio Grande do Sul (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 72). Distri-
bui-se, assim, pela Mata Atlântica, nas florestas setentrional semidecidual e ombrófila mista,
compondo o grande bioma da floresta tropical e subtropical úmida, mas também está pre-
sentes em áreas do Chaco paraguaio e de Cerrado (OLIVEIRA; ROTTA, 1985, p. 17-19).
Esteve quase sempre acompanhada de grande quantidade de árvores de madeira no-
bre, preferindo abrigar-se sob sua irmã araucária, fato que deu ensejo ao ciclo da madeira
(MIRANDA; URBAN, 1998, p. 31), beneficiado pela revolução nos transportes iniciada
pelo ciclo do mate, que levou à substituição dos carretões de boi e do lombo das mulas pelas
carroças eslavas e depois por barcos a vapor, por trens e caminhões, estes somente na década
de 1930, quando a atividade ervateira entrava em declínio (ORREDA, 1968, p. 27-28).
Estas atividades formariam e transformariam o Paraná, com seu povo plural, en-
quanto os indígenas que nele ainda vivem foram lançados para trás do espelho, existindo
como imagem reflexa e inversa desses ciclos. Sombras. Aliás, quais seriam os seus ciclos
desde a chegada dos europeus? Da perspectiva simplista colonizadora, possível entrever
a fase inicial do contato, a subjugação, as Missões Jesuíticas, o escravismo bandeirante
e as grandes dispersões e migrações, a guerra dos Sete Povos das Missões (1750-1756)
e a Guerra do Paraguai (1864-1870), o trabalho na erva-mate e na madeira, a fixação
massiva de novas gentes sobre seus territórios e a destruição da natureza, e a derradeira
conformação do território indígenas em instáveis e limitadas ilhas.
Neste artigo, buscaremos explorar aspectos relacionados principalmente ao ciclo da er-
va-mate, mas que envolvem também a exploração da madeira e a espoliação do território in-
dígena, com a pretensão de tratar de um momento específico na ocupação na região Oeste do
Paraná. Para tanto, pretendemos apresentar referências à relação dos povos com a erva-mate, até
a sua identificação como mercadoria e a intensificação da sua exploração econômica.
O modelo de exploração desenvolvido será tratado em sua sistemática, colocado
em prática pelas chamadas obrages em uma região de domínio dos indígenas guarani,

123
por isso chamada no Brasil de “fronteira guarani” ainda em meados do século XX. A incor-
poração desses indígenas nos trabalhos de exploração dos recursos vegetais reivindica análise
tanto para compreensão das relações de exploração da mão de obra como para que seja pos-
sível identificar a forma de apropriação do território por outras gentes, ainda que de forma
transitória e sem eliminação completa da presença guarani, que se diluiu como elemento
alienígena. Então, durante todo o percurso histórico-espacial, serão feitas referências ao lugar
ocupado pelos indígenas guaranis, antecipando-se que a expropriação de seus saberes tradi-
cionais impactou-os profundamente nas conformações que assumiriam como povo.
Ainda, serão apresentadas referências à legitimação que esse modelo exploratório
recebeu dos governos imperial, republicano e estaduais como instrumento das elites eco-
nômicas e políticas que repartiam sob os seus interesses os territórios conquistados ou a
serem conquistados pelas companhias exploradoras dos recursos naturais e da mão de
obra indígena e cabocla, negociadoras de terras e especuladoras da propriedade privada.

ERVA SABOROSA, PROIBIDA, DO DIABO, MERCADORIA

As ervas não existem por si sós pois dependem de uma interação com os seres da
natureza para se revelar. A consciência que o ser humano toma dessa existência ganha a
abstração de seu conhecimento, transformando-a e tornando-a, assim, conhecida.
Cheiro, cores, textura, altura. A posição das folhas e troncos, em sintonia. Uma
planta insinuou-se a um “senhor da floresta”, um yvyrai’dja (OLIVEIRA, 2011, p. 246),
em sonho, porque intangível, até que se tornou parte e extensão, fez-se conhecida e
reconhecida, e a prova do seu amargor não causou mal, apesar da novidade ao paladar.
A caá guarani – “erva saborosa” (MIRANDA; URBAN, 1998, p. 18) ou “elixir”
(ORREDA, 1968, p. 67) –, a congonha kaingang – “que alimenta” –, cuja pronúncia
indígena a branca boca não obedece, torna o índio “‘dono das florestas’ de espírito”
(SEREJO, 1986, p. 30), concede energia para a vida, para o existir feito em movimen-
to, o caminhar, para as relações familiares e entre aldeias, para o trabalho na terra e o
compartilhar a natureza. Como dádiva em retribuição antecipada, as matas fornecem o
ímpeto para que sejam conhecidas, para que recebam os humanos e os integrem em sua
totalidade una. À chegada dos europeus, os indígenas trituravam as folhas com as mãos
e a mascavam. Depois viriam o chá, o chimarrão (caá-y), o mate frio (tereré) e o mate
queimado (caá-caiguê) (SEREJO, 1986, p. 32; AQUINO, 1986, p. 376 e 381).
Chamou-se também “erva do Paraguai” e “erva do diabo”, esta por um suposto
vício atribuído pelos espanhóis que chegavam ao continente:

O fato é que o uso do mate passou a ser visto pelos pró-homens da conquista his-
pânica como vício exercitado pelos nativos, julgados então possuídos pelo demô-

124
nio! Pressuroso e desatinado em suas modalidades de juízo, o europeu acabou co-
metendo um de seus maiores desacertos quando resolveu dar combate ao “vício”,
considerando repudiados e excomungados os que fizessem uso da bebida. Desse
modo, entre os homens e os costumes que haveriam de ser vítimas dos processos
de sanções morais adotados pelo conquistador, figuravam até espanhóis, também
contagiados pelo “vício”, e a própria bebida. (AQUINO, 1986, p. 317-318)

O termo “mate”, porém, não tem origem guarani, kaingang, espanhola ou portu-
guesa, mas que advém do vocábulo mati, dos indígenas andinos quechua, que desciam
as cordilheiras para comerciar com outros povos (MIRANDA; URBAN, 1998, p. 18;
AQUINO, 1986, p. 317-318).
Escondidos nas reduções em perambulantes para escapar dos ataques dos bandei-
rantes, num outro guata5 – mantinham consigo o vigor da erva, mesmo sob a demoniza-
ção jesuíta. Para esses cristãos, a quem Deus criou o mundo e todos os animais e plantas,
era a erva do diabo! Sob o celibato e diante de corpos seminus, vermelhos, esculpidos
pelo trabalho físico sistemático, escaldando-se no vapor quente das matas úmidas, um
gole de mate afloraria os mais terríveis vícios, pecados capitais. Incontáveis as tentações,
amaldiçoaram o ritual, seus praticantes, a força e a planta.
Entregar-se ao engano, ao pecado, implica em punição, em castigo. Conhecer o
bem e o mal leva à queda. O índio seria feito peão, deveria carregar o fardo bíblico do
trabalho. E não seria mais proibido de provar da planta. Seria, entretanto, feito o seu
escravo. A erva ganhou valor econômico, seus demônios foram expulsos e se tornou mer-
cadoria de exportação pelos próprios jesuítas, que estabeleceram ervais e a comerciaram
(AQUINO, 1986, p. 326; SEREJO, 1986, p. 32-33). Assim como o Brasil, o Paraná,
suas gentes e suas riquezas, a erva-mate se tornava descoberta, ganhava nome e valor.
Segundo Saint-Hilaire:

a cidade de Curitiba enviava ao Porto de Paranaguá, situado abaixo dela, touci-


nho, milho, feijão, trigo, fumo, carne seca e mate, sendo este último consumido
em parte no litoral e em parte despachado para as cidades de Buenos Aires e
Montevidéu, impossibilitadas de receberem esse produto do alto Paraguai devido
à situação política (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 72).

Seu consumo de difundiu entre os colonizadores e mestiços do Sul. Se as Missões


não fossem destruídas em uma luta pela mão de obra e pela apropriação de territórios,
certamente teriam sido atacadas mais tarde em uma guerra por mercados. No Paraguai,
grande território guarani, de preciosos ervais, os costumes indígenas transformavam as
novas gentes, habituavam almas e corpos, que se voltariam contra os próprios indígenas,
roubando seu conhecimento para tomar-lhes as terras.
5
O caminhar constante guarani, que pode ser lido em “Folhas ao vento a micromobilidade de grupos Mbya e Nhandéva
(Guarani) na Tríplice Fronteira”, do antropólogo Evaldo Mendes da Silva.

125
Mesmo sem a mistura de sangues, produziam-se seres híbridos, resultado do de-
siquilíbrio nas relações que se estabeleciam. O Guarani deixaria de ser índio para ser ci-
vilizado. Pela transformação de ser invisível e inaudível para ser existente, pagaria com o
seu trabalho. Uma nova língua deveria ser incorporada, mesmo que isso não significasse a
possibilidade de que fossem compreendidos. Importava apenas que compreendessem. Mas
guardaram consigo seus costumes, suas crenças, a língua sagrada e um punhado de erva.
Sob essas condições de assimilação ou conjugação, o Paraguai despontaria na Ba-
cia Platina com grande produtor dessa mercadoria que conquistava os rústicos gaúchos
e os refinados ingleses. Quando a Bacia Platina, desde o início do século XIX, se tornava
alvo de uma aproximação imperialista da Inglaterra, sendo a Argentina e o Brasil alcan-
çados pelos braços do Leviatã, que não se apresentava como o monstro faminto que é,
mas como um lord de bons modos e gentilezas, de relações capitalistas fabris e assalaria-
das, o Paraguai agia tal qual um animal arredio que não aceita trocar a sua liberdade e a
riqueza da natureza por um pote de ração servido na jaula.
O historiador e professor da Universidade de Oxford, Leslie Bethell, sustenta que
os ingleses, em sua maioria, consideravam o Paraguai “um país retrógrado, isolado e lon-
gínquo, do qual se sabia muito pouco e pelo qual se tinha apenas interesse secundário”
(BETHELL, 1995, p. 276). Havia, portanto, uma opinião formada entre os ingleses, ape-
sar de reconhecerem que pouco sabiam sobre o país, que de plano lhes era desinteressante.
Talvez por isso, ao final da guerra, o explorador e diplomata britânico Sir Richard Burton
encontrou Londres com “rostos absolutamente inexpressivos ao ouvirem mencionar a pa-
lavra Paraguai... e uma confissão generalizada de mais completa ignorância e definitiva
total falta de interesse no assunto” (BURTON apud BETHELL, 1995, p. 283), o que
Bethell utiliza para constatar que a Inglaterra não apoiou a Tríplice Aliança de Argentina,
Brasil e Uruguai contra o Paraguai: “se a Grã Bretanha de fato se envolveu profundamente
na Guerra do Paraguai, como alguns historiadores querem nos fazer acreditar, esse era um
segredo mantido a sete chaves na metrópole” (BETHELL, 1995, p. 283).
O trabalho de BETHELL é excelente fonte de dados e referências sobre a pre-
sença da Inglaterra na Bacia do Prata, reconhecendo que “o século XIX foi para a Amé-
rica Latina o século inglês” (1995, p. 271). E não vislumbra a interferência política ou
econômica da Grã-Bretanha na região, negando inclusive um “imperialismo informal”.
Mas “era a Inglaterra, e não a América Latina, que determinava as regras que regiam as
relações econômicas internacionais no século XIX” (BETHELL, 1995, p. 273).
A alegada indiferença da Inglaterra em relação ao Paraguai, que teria levado à sua
omissão em relação à guerra, contrasta com ampla participação da maior potência mun-
dial na América Latina. Assim, a ausência inglesa nas linhas de combate selava os desti-
nos da guerra desigual, travada entre um mercado isolado e economias que comerciavam
(e se endividavam) com a detentora da supremacia econômica e militar no planeta, e que
não precisaria disparara um tiro para sagrar-se vitoriosa.

126
Para o historiador uruguaio Vivian Trías a associação da Inglaterra com as oligar-
quias locais representava a sua estratégia de imposição do liberalismo. Havia, portanto,
uma intermediação na exploração dos recursos naturais e da mão de obra em troca de
favores financeiros, políticos e militares que asseguravam a manutenção das hegemonias
regionais (TRÍAS, 1975, p. 6-7).
O Paraguai de Francia “El Supremo” rompia o modelo de imperialismo liberal inglês,
promovendo uma reforma agrária que suplantou as elites proprietárias, beneficiando a imensa
maioria da população, formada por camponeses, mestiços e indígenas, que então puderam
promover um vultuoso crescimento na produção agrícola nacional (TRÍAS, 1975, p. 18-19).
Até tal tempo, na Argentina já havia exploração de mate e madeira na região de
Corrientes (WACHOWICZ, 1987, p. 18). No Brasil, havia a produção de mate nas
três províncias do Sul. No Paraná, apenas a sua porção leste, até o limite dos Campos de
Guarapuava e Palmas, propiciava rendimentos às oligarquias regionais. Em sua banda
ocidental, a erva enriquecia outros senhores. Desde o sudoeste paranaense já havia o
contrabando de erva-mate para a Argentina passando por Barracão até chegar ao porto
Esperanza, no rio Paraná (WACHOWICZ, 1987, p. 19).
Com a guerra contra o Paraguai, legitimada pelos imperativos econômicos e mer-
cadológicos, a Argentina e o Brasil abocanharam da nação derrotada territórios repletos
de ervais e estabeleceram severas punições que subordinariam os paraguaios até a atua-
lidade, em relações que se renovam, tal qual a energia das hidrelétricas. A guerra foi,
portanto, um massacre pelo controle de mercados e pretexto para conquistas territoriais.
A mão de obra indígena, dentro da economia capitalista em expansão, não pode-
ria ser legalmente escravizada. Então, foi tocada para além, espremida entre o avanço das
nações alinhadas ao comércio internacional fundado na propriedade privada dos meios
de produção e na circulação e acumulação de mercadorias. Antes, porém, seria consumi-
da em relações de escravidão por dívida.

A RIQUEZA DO MATE BROTA DA MÃO INDÍGENA

A quantidade e a condição da presença dos indígenas naquelas terras passaram a


ser o resultado de uma operação matemática trivial para a configuração da realidade a
partir das lentes econômicas, pelas quais se medem as nações, as sociedades e as pessoas,
em suas relações: produzir o máximo com os menores investimentos. Para assegurar a
mão de obra na atividade extrativa de mate Argentina e Brasil se valeram de novas formas
de bandeirantismo, os adelantados, que assumiram companhias ervateiras e madeireiras
sob uma concepção predatória de exploração da natureza e da mão de obra existente.
Destruído o Paraguai, as condições necessárias ao domínio brasileiro e argentino
no mercado internacional do mate estavam dispostas. No Paraná, em sua porção leste,

127
ocupada de forma reconhecida pelo Estado-nação, os industriais da erva transformavam
a economia, a política e o espaço (MIRANDA; URBAN, 1998, p. 31). A ocupação
territorial se redesenhava, com vapores pelo rio Iguaçu, estradas carroçáveis e estradas
de ferro. A industrialização da atividade verdadeira sertão, ao oeste, a ganância das oli-
garquias regionais não alcançava, fosse pelo custo, pelas condições precárias. Além disso,
as circunstâncias, como a Guerra do Paraguai e a Questão de Palmas ou de Misiones
(1895) dirigiam investimentos para outras regiões (WACHOWICZ, 1987, p. 13-15).
Como pagamento de dívida da guerra, como adimplemento antecipado pela
construção de ferrovias, pela colonização do território e como objeto de jogadas políticas
e econômicas foram concedidas a terra e suas riquezas. Para tanto, grandes extensões do
território indígena foram convertidas em terras públicas que, em seguida, foram desta-
cadas a empreendimentos privados que exploraram as riquezas dessas regiões, cheias de
ervais formados desde as Missões Jesuíticas e tomadas de madeiras nobres no período
das obrages (MIRANDA; URBAN, 1998, p. 31-35). Também havia o compromisso de
promover a colonização, para garantia das fronteiras e da soberania nacional, o que seria
insistentemente ignorado pelos empreendedores e pelo Poder Público.
Tão vastas eram as terras concedidas e com tamanha generosidade que estabe-
leciam-se verdadeiros Estados paralelos que funcionavam com moedas e leis próprias
sem prestar contas ao Império ou à Primeira República. A situação era agravada pela
incomunicabilidade desses empreendimentos com as instâncias de poder legitimadas. A
inexistência de vias de acesso que interligassem a região às comarcas instituídas levava ao
uso do rio Paraná para todos os fins, mas sob o controle das obrages que tinham Posadas
como “capital” daquela forma de exploração. A região tributava à Argentina, já que era
descendo o rio, passando por Posadas, Corrientes e Rosário até Buenos Aires, que seriam
encontrados os mercados para venda da produção e onde seriam buscados os suprimen-
tos essenciais (WACHOWICZ, 1987, p. 19, 38-39, 48-51 e 57-58).
Pelo caminho das águas, os argentinos ampliaram as extensões do modelo que
sustentava sua província de Corrientes até o rio Paraná a montante, valendo-se da livre
navegação às Sete Quedas, conquistada antes da Guerra do Paraguai (WACHOWICZ,
1987, p. 15). Promoveu-se um fluxo argentino de sua “frente extrativa do mate” para o
Oeste paranaense (WACHOWICZ, 1987, p. 44-45 e 51-53).
Esse ingresso argentino se deu, inicialmente sem amparo legal, alcançou a região oeste
do atual estado de Santa Catarina mediante concessões do país vizinho desde a década de
1860 (WACHOWICZ, 1987, p. 17). No oeste paranaense, a constatação da presença argen-
tina se deu com a construção da picada entre a localidade de Chagu (próxima da atual cidade
de Laranjeiras do Sul, na região Centro-Oeste do Paraná) e Foz do Iguaçu, com a finalidade
de implantação de uma colônia militar. Para abertura desta via, a primeira expedição militar
partiu de Guarapuava em 13 de setembro de 1889, sob designação imperial, chegando à foz
do rio Iguaçu em 22 de novembro do mesmo ano, estabelecendo-se em nome da República.

128
A cem quilômetros das barrancas do Paraná essa frente pioneira já encontrava
indígenas, que por falarem o guarani, como ainda se fala no país vizinho, eram cha-
mados de “paraguaios” (WACHOWICZ, 1987, p. 23). Por serem assim identificados
agentes públicos (militares, governo federal e estadual) e privados (obrageros e colonos)
consideravam que aqueles estavam no lugar errado, porque ali agora seria Brasil. Como
principais atingidos pela Guerra do Paraguai, porque os conflitos se deram sobre seus
territórios, marginais às hegemonias em formação e expansão, os indígenas pagavam sua
dívida como vencidos, sendo espoliados de sua força de trabalho.
O indígena era um mensu6, um peão que recebia por mês a mais baixa quantia en-
tre os trabalhadores. Reunidos na região de Posadas pelos comissionistas, que trabalhavam
“no escritório de alguma autoridade ou casa comercial” subordinada ou pertencente as
companhias obrageras, recebiam o antecipo – valor recebido pelo mensu em adiantamen-
to por dois ou três meses de trabalho. A partir deste momento iniciava-se um processo de
retomada do valor pago. O barco que os levava para os portos das obrages atrasava alguns
dias, de forma proposital, para que tivessem que gastar o receberam e iniciar endivida-
mento em estabelecimentos de propriedade dos obrageros (a venda, a preços abusivos,
pela caderneta, no barracón, pratica que se estenderá enquanto tivesse empregado). Na
obrage o mensu poderia exercer as tarefas de mineiro, que colhia e carregava a riqueza
desde os ervais; de uru, secando as folhas no barbaquá; ou de cancheador, que triturava
e ensacava o produto (WACHOWICZ, 1987, p. 48-49; ARRUDA, 1986, p. 264-267).
Partiam já sem dinheiro, devendo a viagem e, depois, com contas no armazém ou
barracón da obrage, único ponto em que poderiam comprar mantimentos, pois era proi-
bida a agricultura de subsistência e a atividade comercial era monopolizada pela obrage.
Mesmo que o trabalhador recebesse algum valor monetário, este era em moeda própria
da obrage, o boleto, a ser utilizado somente no local definido pelo obragero. Ao retornar,
era ao comissionista que o comandante da embarcação realizava o pagamento pela mão
de obra (WACHOWICZ, 1987, p. 49-51).
Outras formas de controle e coerção existiam simultaneamente. Em Guaíra, cidade
constituída como sede administrativa da Companhia Mate Laranjeira, atuava o sereno, um
tipo social responsável pela provocação de desavenças e intrigas entre os mensus, como forma
de desarticulá-los. O sereno também levantava informações para o capataz, o braço direito
das obrages e a autoridade máxima nos locais de trabalho, chegando também à imposição da
própria religião. O capataz costumava abusar das mulheres, fossem companheiras ou filhas
dos peões. O medo de um levante era permanente, o que envidava um tratamento brutal
contra os peões, que podiam ser mortos se reclamassem (WACHOWICZ, 1987, p. 55-57).
Este temor de rebelião vinculava-se diretamente a questões raciais cuja compreen-
são é essencial para entendimento das relações entre mensus e obrages. Segundo o soció-

6
“Etimologicamente, a expressão vem do espanhol, mensual, ou seja, mensalista” (COLODEL, 1988, p. 53).

129
logo José de Souza Martins, nas regiões de fronteira da frente de colonização nacional,
foi constante o temor (real ou imaginário) de ataques indígenas. Martins refere-se a exis-
tência de tropas de caçadores de índios (bugreiros) na década de 1930 na Alto Soroca-
bana, região paulista limítrofe ao Norte paranaense. O sociólogo constatou que, decor-
ridas poucas décadas da abolição da escravidão, os grupos dirigentes consideravam que
“mestiços e negros estavam aquém da condição humana”. Afirma ainda, que qualquer
rebeldia, coletiva ou individual confundia-se com “criminalidade” ou subversão radical
da ordem, devendo ser duramente combatida (MARTINS, 2014, p. XX-XXI e XIX).
João Cabanas, um dos principais líderes da Revolução de 1924 e da Coluna Prestes,
foi capitão da “Coluna da Morte”, que é também o nome da publicação de seu diário de
combate. Cabanas, percorreu por dez meses a região das obrages, passando pelos atuais
municípios de Guaíra, Campo Mourão e Catanduvas, e alcançando até a região Centro do
Paraná, ocasião em que fez um dos registrou mais completos da vida nas obrages.
Em seu diário, Cabanas refere-se a relatos de trabalhadores que afirmavam ser usual
a prática de açoites como punição aplicada pelas obrages. Um caso particularmente violento
descrito pelo autor trata da brutalidade com que foi tratado um grupo de trabalhadores que
rebelou-se na obrage do argentino de Julio Tomás Allica e que foi reprimido pela milícia chefiada
por Santa Cruz, seu capataz. O próprio Cabanas encontrou corpos de seis integrantes do grupo
rebelado, “aos pedaços e queimados”, em um lugar de circulação dos trabalhadores, servindo ex-
plicitamente como aviso aos demais. Ao referir-se a situação geral trabalho nas obrages, o militar
escreveu que o “trabalhador do erval é, sem dúvida alguma, um verdadeiro escravo olvidado pela lei
de 13 de maio, que dele não cogitou” (CABANAS, 2014, p. 173 e 179-181).
Em qualquer função que exercessem as condições eram degradantes, assim como
eram precárias as moradias e a alimentação. O mineiro passava desde a madrugada na
mata, colhendo a erva, sapecando-a e depois formando um fardo trançado com fitas de
couro, o qual é chamado de raído, sendo feito também com taquaras. Finalizado o dia de
trabalho no erval, cabia ao mineiro carregar até o ranchito a erva colhida, colocando-se
debaixo do raído de até 200 quilos. Não eram incomuns os acidentes, que trituravam os
corpos sob a erva. Inválidos, libertavam-se das correntes da caderneta e da vida (WA-
CHOWICZ, 1987, p. 76; DONATO apud ARRUDA, 1986, p. 264-265).
A sorte do uru não era maior que a do mineiro. Trabalhando no barbaquá, seu
corpo secava junto com a erva:

... durante seis anos, ou oito, ou dez se muito saudável (…) um uru jamais chegava
a idade madura. Vive oito ou dez anos que são oito, dez safras, ao redor do barba-
quá, virando e revirando a erva, recebendo no peito o calor e nas costas a friagem
da noite (…). Era seu trabalho, dia e noite, quarenta e oito horas seguidas. Depois
vinha um dia de descanso (…). Começa a respirar fumo e resina a ser defumado
em suor e fumaça. Primeiro a gordura, depois as carnes, a saúde, escorrem pelo
corpo dia e noite, feito suor. (DONATO apud ARRUDA, 1986, p. 266)

130
A marujada das embarcações que escoavam a erva rio abaixo também carregava o
sofrimento. O vapor F. Murtinho era chamado de “Mata Homem” por sua tripulação,
pois “desgraçava a vida de qualquer cristão, em virtude do violento calor produzido pelas
chamas”. Somente a “meio laço” era possível arrastar um empregado para o trabalho na
fornalha da embarcação, “uma vez que muitos se inutilizariam como homem, porque o fogo
fortíssimo, por mais cuidado que tivessem, queimava-lhes todos os órgãos”. O trabalhador
rebelde era castigado com o teyu-ruguay, um chicote feito com rabo de lagarto que “chega-
va a arrebentar os órgãos internos do cristão” (SEREJO, 1986, p. 80-82 e 193).
Esses trabalhos eram realizados sobretudo pelos indígenas que transitavam pela
fronteira entre o Paraguai e o Brasil, porque eram os mais “aguentadores”, capazes de
levar nas costas toda a mudança de um rancho quando se esgotavam os ervais que o
abasteciam. Até às suas crianças eram atribuídas tarefas (SEREJO, 1986, p. 70-71).
Com as obrages, os indígenas assimilados como “guaranis modernos”, caboclos
e peões. Descrevia-se, portanto, não o que eram intrinsecamente ou como povo, mas
o que representavam para o colonizador, o apropriador da mesma mão de obra que
seguiam sendo. O modelo de dominação renovava-se com a concessão da possibilidade
de consumir como um ser humano, o que também lhe era imposto como condição para
viver. Já não era, assim, uma coisa com um dono a explorar e zelar, mas um ser obrigado
a trabalhar para poder comprar o que direta ou indiretamente produzia.
Essas modalidades de relação e exploração se associam com práticas denominadas
“peonagem”, “aviamento”, “sistema de barracão” e são recorrentes nas regiões de “fron-
teira” ou “pioneiras”, fazendo-se ainda presentes na contemporaneidade. Segundo José
de Souza Martins, estas formas de superexploração do trabalho e de espoliação de terras
articulam-se diretamente com o mercado e são operadas

com critérios monopolísticos, mediados quase sempre por violentas relações de


dominação pessoal, tanto na comercialização dos produtos quanto nas relações de
trabalho (sendo aí característica a peonagem ou escravidão por dívida). […] Isso
não impede, também, que grandes empresas, dotadas de organização empresarial
e técnica moderna e sofisticada, recorram à peonagem, isto é, a escravidão por
dívida, sobretudo nas atividades de derrubada da mata e de implantação de suas
fazendas […]. É evidente que são relações produzidas no processo de reprodução
ampliada do capital, que recorre a mecanismos de acumulação primitiva em certos
momentos dessa reprodução ampliada. (MARTINS, 1996, p. 137-138).

Assim, os indígenas compartilhavam o destino com mestiços, os caboclos, que


dariam títulos aos barões proprietários de grandes engenhos de mate mecanizados, que
eram também exportadores de erva do Centro-Sul e Sul paranaense e ainda sustenta-
riam intermediários e atravessadores, fossem proprietários de terras ou comerciantes. As
tentativas de organização dos produtores em cooperativas, mesmo nas zonas de alcance

131
do Estado, foram frustradas por atuação dos industriais e exportadores da erva, somente
alcançando expressão após a decadência da atividade econômica, quando a mão de obra
seria temporariamente absorvida pelo ciclo da madeira. As regiões de ervais somente
subsistiriam como espaços de miséria (ORREDA, 1968, p. 28, 39-40, 58-61, 69).
Sem a fartura da mão de obra brutalmente explorada, os ervais não seriam riqueza
alguma para os barões. Mesmo assim, indígenas e caboclos são as sombras dos ervais,
figurantes na história alheia. Hernani Donato eternizou a vida maldita nos ervais em seu
romance “Selva Trágica”, onde anotou que a protagonista é a erva e os coadjuvantes “são
a terra, o tempo, o sonho” (DONATO apud ARRUDA, 1986, p. 269).

OBRAGES: PATRIMONIALISMO E LIBERALISMO


NAS ORIGENS DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA

Foi pela ação dos “barões do mate” que o Estado alcançou a emancipação em
1853. O poder político alcançado pelos “industriais do mate” como Ildefonso Pereira
Correia (Barão de Cerro Azul) e Manoel Antonio Guimarães (Visconde de Nácar) tive-
ram papel relevante neste processo (FARAH, 2012, p. 122). Além destes destacou-se a
figura do ervateiro Agostinho Ermelino de Leão, presidente (nome dado aos governa-
dores no período provincial) do Paraná em 1864, 1866, 1869, 1870 e 1875 – este per-
sonagem foi pai do proprietário fundador de um dos moinhos industrializados de erva
maiores e mais importantes da época e que persistiu até o início do século XX quando
era um dos maiores fornecedores de chá mate no mercado brasileiro.
A erva-mate industrializada em Curitiba seguia de trem até o porto de Paranaguá
que teve entre seus engenheiros Antonio Pereira Rebouças Filho – importante perso-
nagem negro do movimento abolicionista. André era negro, livre, abolicionista e idea-
lizador de um projeto de reforma agrária que possibilitava a incorporação do grande
contingente que deveria ser liberto com o defendido fim da escravidão. Este engenheiro
também propôs a criação de um parque nacional abrangendo as Cataratas do Iguaçu e
as Sete Quedas no rio Paraná. Além destes projetos também esteve envolvido na criação,
em 1912, do embrião que seria a Universidade Federal do Paraná, que tinha alcunha de
“Universidade do Mate” (FARAH, 2012, p. 123).
Mas se no Leste o mate era explorado por paranaenses emancipados de São Paulo,
que havia logrado controlar em alguma medida as atividades econômicas que antes preva-
leceram no Estado, no Oeste a erva seria a principal fonte de riquezas de outros senhores.
Eram os argentinos que exploravam diretamente a erva mate na região, conquanto houves-
se a participação de capital de outras nacionalidades, com destaque para os ingleses. Porém,
também oligarquias paranaenses eram dependentes dos argentinos, como financiadores da
atividade ervateira ou consumidores do mate (ORREDA, 1968, p. 47-50).

132
Não foi por acaso que, no desenvolvimento desse ciclo econômico pela bacia do rio
da Prata, a Argentina assegurou seu domínio sobre a região de Misiones em arbitramento
internacional de 1985, a chamada Questão de Palmas (ou de Misiones, conforme o lado da
fronteira em que se está), e, décadas depois, alcançou a hegemonia da produção e comercia-
lização do mate no alto rio Paraná, inclusive sobre terras brasileiras, enquanto que o volume
das exportações paranaenses do produto despencava a partir da década de 1930.
Com a República e a transferência para as províncias da competência da titula-
ção de terras, coube ao Paraná, governado pelas oligarquias industriais de mate e com
crescente exploração da madeira, entregar em concessões boa parte de seu território. Ao
Oeste, porém, deveria ser respeitada a faixa de fronteira de 66 quilômetros a partir da
fronteira com o Paraguai e a Argentina, onde permaneceu a competência da União para
a titulação das terras devolutas, assim como para a titulação da porção territorial neces-
sária à implantação de ferrovias federais, conforme artigo 64 da Constituição Federal de
1891. Várias concessões foram feitas neste período:

Nuñez e Gibaja (proprietária de Lopei), Companhia de Maderas del Alto Pa-


raná (proprietária da Fazenda Britânia), Empresa Matte Laranjeira (proprietária
de Guaíra e da estrada de ferro que ligava Porto Guaíra a Porto Mendes), Meier,
Annes e Cia Ltda. (proprietária da Colônia Doutor Affonso), Julio Thomaz Allica
(proprietária do Porto Artaza) e outras. Devem ser também particularizadas as
concessões feitas à Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, ainda ao
tempo do Império e confirmadas pelo Governo Provisório da República, com as
extensas glebas Silva Jardim e Santa Maria. A São Paulo-Rio Grande foi sucedida,
em 1920, pela Companhia Brasileira de Viação e Comércio que recebeu ainda
os terrenos Ocoy, Catanduvas, Piquiri e São Francisco. De outro lado, notável
interesse apresentam os requerimentos, do ano de 1918, de Augusto Picccoli e de
Miguel Matte, para [instalação de colonos]. (WESTPHALEN, 1987, p. 9)

Segundo Raymundo Faoro a opção do Estado Imperial e Republicano pelas con-


cessões de grandes extensões de terra para empreendimentos privados foi uma tentativa
de harmonizar o regime de propriedade da terra – “base fundamental” da “expansão
econômica” de um país agrícola – com o mercado exportador, “o verdadeiro núcleo ativo
das forças atuantes na colônia e no Império (FAORO, 2000, p. 12). As concessões, não
obstante seu caráter pretensamente inovador, estavam diretamente ligadas ao paternalis-
mo ou patrimonialismo (FAORO, 2000, p. 242 e 260).
Teria se formando, nesse período, uma nação dominada por mandatários regio-
nais com controle total de cada Estado, com a dominação alterando-se apenas pela mu-
dança da fração oligárquica dominante. A centralização do poder nos estados fazia com
que o poder do governador fosse soberano. O governador controlava o chefe regional.
Este, por sua vez, por intermédio e beneplácito do governador, nomeava inspetores de
quarteirão, agrimensores e juízes de paz, que poderiam julgar disputas de terras em pri-

133
meira instância. Neste contexto ocorreu a transferência da competência para a titulação
de terras do poder central para os Estados.
Ao tratar da bibliografia clássica sobre transição entre Império e República, Lígia
Osório Silva (1996, p. 16-17) constatou que, não obstante algumas diferenças de in-
terpretação historiográfica, há um consenso de que a “Primeira República recompôs a
unidade de classe dos proprietários de terra”. Segundo a autora, entre

1897 e 1911 o governo federal se absteve, na prática, de implementar uma política de


ocupação das terras devolutas e deixou-as nas mãos dos governos estaduais, em aten-
dimento aos anseios das oligarquias regionais. Neste período, portanto, a história da
apropriação territorial esteve fundamentalmente vinculada à história de cada uma das
antigas províncias, agora transformadas em estados. [...] Cada estado legislou, portan-
to, à sua maneira no tocante à discriminação das terras devolutas, revalidação de ses-
marias e legislação de posses, observando, porém, as normas e os princípios assentados
na lei de [Terras] de 1850 e respectivo regulamento. (SILVA, 1996, p. 269)

Analisando as concessões feitas no final do Império e no Governo Provisório de


(1889-1891), a autora afirmou que este último fez “contratos, em termos semelhantes
aos celebrados ao governo imperial”, pelos quais companhias particulares recebiam am-
plas extensões de terras devolutas devendo, em contrapartida, construir obras públicas
ou promover instalação de colonos. Entretanto,

frequentemente, os concessionários, apesar de não cumprirem a sua parte no con-


trato, registravam as terras como suas e até negociavam com elas. Quando o Esta-
do queria declarar a caducidade dos contratos, encontrava a maior dificuldade em
reaver as terras. (SILVA, 1996, p. 257).

Tal fato ocorreu no Paraná até 1930, sendo as terras cedidas em pagamento de
obras públicas ou instalação de colonos. No caso das obrages, os contratos previam insta-
lação de colonos e pagamento de rendas ao Estado. Como demonstra a bibliografia que
trata do extremo Oeste do Paraná as empresas beneficiárias pouco ou nada realizaram do
que se comprometeram nos contratos7.
Nesse contexto, o caso das obrages do Oeste paranaense era peculiar, pois, em
geral, envolvia associação direta entre mandatários locais com capitalistas estrangeiros,
particularmente platinos, mas também europeus, embora empreendimentos como a
Mate Larangeira tivesse forte presença de capital nacional.
A bibliografia consultada (ARRUDA, 1997; CARDOSO & WESTPHALEN, 1981;
WESTPHALEN, 1987; GRONDIN, 2007; WACHOWICZ, 1982 e 1987), embora com
diferente ênfase e enfoque, é unânime em destacar que as obrages tinham caráter predatório e

7
A área é equivalente a 10,5% do território do estado do Paraná.

134
especulativo, o que se desenvolvia a partir das alianças estabelecidas com o Poder Público em
esquemas políticos que confundiam interesses particulares com a apropriação da coisa pública.
Como demonstra estudo da historiadora Cecília Westphalen, os mandatários da
Secretaria da Fazenda, Agricultura e Obras Públicas – responsável por promover con-
cessão de terras e fiscalizar as terras devolutas – Francisco Gutierrez Beltrão e Marins
Camargo foram beneficiários de concessões. O engenheiro Francisco Beltrão foi res-
ponsável pela confecção de vários dos mapas de delimitação de concessões para obrages,
implicando em grande expertise (WESTPHALEN, 1987, p. 13-15).
Marins Camargo era irmão de Affonso Alves de Camargo, que foi vice-governador
(1912-1916) e governador do Paraná (1916-1920 e 1928-1930). Ambos são mencionados
como advogados e defensores da Brazil Railway Company (HELLER, 2012, p. 164, 197 e
199). Outro familiar, Natel de Camargo, primo de Marins, teria recebido glebas de terras
em concessão, de cerca de 200 léguas quadradas (WACHOWICZ, 1982, p. 116). Isto é,
a oligarquia com expertise na questão territorial, oportunizada pelo exercício do poder, re-
forçava a prática da Primeira República e se apropriava privadamente de recursos públicos
por meio da criação de “oportunidades econômicas” (FAORO, 2000 p. 273).
A obrage de maior dimensão (que se espalhava pelo Paraná e Mato Grosso) foi a
Matte Larangeira, a qual começou a formar seu “império” durante a Guerra do Para-
guai, que permitiu o avanço dos obrageiros sobre os ervais até então não conquistados,
no sul do atual estado do Mato Grosso do Sul. Terminada a guerra, foi constituída uma
comissão para a delimitação do território conquistado e incorporado pelo Brasil, a qual
era comandada pelo coronel de engenharia Rufino Eneas Gustavo Galvão, o Barão de
Maracaju. Os trabalhos da comissão eram acompanhados pelo comerciante Thomaz
Larangeira, que também serviu na Guerra do Paraguai e atuava na expedição fornecendo
alimentação. Outro empresário que participou da missão foi Francisco Mendes Gonçal-
ves (FERREIRA, 2007, p. 28-29; WACHOWICZ, 1987, p. 67).
Concluídos os trabalhos de demarcação, Thomaz Larangeira formou uma fazenda
de gado no Mato Grosso e explorou ervais paraguaios. Em 1879, o empresário enviou
carta ao governo da província com o objetivo de arrendar terras e receber pequenas con-
cessões. Tratava-se do “primeiro apadrinhamento político, de que se tem notícias em coisas
de erva” (SEREJO, 1986, p. 35-36). Quando o Barão de Maracaju se tornou presidente
da Província do Mato Grosso, Larangeira logrou receber do Império, através do Decreto
nº 8.799/1882, a concessão de extensas terras para exploração pelo prazo de dez anos
(FERREIRA, 2007, p. 29). Isso possibilitou a legalização de exploração que o empresário
já realizava (SEREJO, 1986, p. 109). A concessão foi prorrogada repetidamente, enquanto
a sua área sofreu ampliações até totalizar cinco milhões de hectares, o que se deu a partir
da proclamação da República, através de decreto e resoluções, com a proteção do primeiro
governador mato-grossense do período republicano, o general Antônio Maria Coelho, que
comandara a comissão de delimitação do território (ARRUDA, 1986, p. 215-219).

135
Francisco Mendes Gonçalves, por sua vez, instalou-se em Buenos Aires, onde colo-
cou em operação a companhia Francisco Mendes e Cia, que beneficiava e comercializava a
erva recebida da Matte Larangeira (GUILLEN apud FERREIRA, 2007, p. 29). Os irmãos
Raul e Heitor Mendes Gonçalves, este um capitão reformado do Exército, administravam
a cidade de Campanário, no Mato Grosso, onde funcionava a base de extração de erva da
companhia (SEREJO, 1986, p. 113). Um ascendente destes Mendes Gonçalves foi duas
vezes presidente da província de São Paulo (WACHOWICZ, 1987, p. 68).
Quando em 1892 o Banco Rio e Mato Grosso, da família Murtinho, obteve
concessão do Mato Grosso sob o governo de José Manoel Murtinho, rompeu-se o mo-
nopólio de Thomaz Larangeira, que se interessou em vender seus direitos ao banco (AR-
RUDA, 1986, p. 253). Porém, havia impedimento à negociação, o que fez surgir a
Companhia Matte Larangeira, com a maioria das ações sob a propriedade desse banco.
Em 1902 o banco decretou falência e a companhia ervateira foi vendida a Francisco
Mendes & Cia., sediada em Buenos Aires (GUILLEN apud FERREIRA, 2007, p. 30-
31). A empresa passou a ser controlada por capitais estrangeiros que se beneficiaram de
gigantescas e ricas extensões de terras.
Na família Murtinho destacaram-se: José Manoel Murtinho, que foi ministro do
Supremo Tribunal Federal e o primeiro governador constitucional do Mato Grosso no
período republicano, sucedendo o general Antônio Maria Coelho, para o que foi neces-
sário enfrentamento militar; Joaquim Murtinho, foi ministro de Viação e Obras Públi-
cas no governo Prudente de Morais e ministro da Fazenda no governo de Campos Sales,
quando instituiu a Guarda-Fiscal junto com o governo do Mato Grosso para possibilitar
sonegação pela companhia, além de ter sido médico particular do Marechal Deodoro da
Fonseca e engenheiro civil; e Francisco Murtinho, presidente da companhia (ARRUDA,
1986, p. 202; SEREJO, 1986, p. 80 e 118; ARRUDA, 1986, p. 252-253).
Assim, “em Cuiabá, a Empresa Mate, junto ao governo e particulares – por força
de seu assombroso crescimento industrial – mandava e não pedia, como se dizia em
qualquer roda”. Sua influência lhe conferiu grande poder eleitoral no Mato Grosso,
fazendo-a “indicar governador, vice, deputado estadual, deputado federal e senador”, in-
terferindo em toda a estrutura do Poder Público. A sua força política alcançava inclusive
São Paulo e a capital federal, Rio de Janeiro (SEREJO, 1986, p. 36-37).
Se, no Mato Grosso, a empresa formava um “Estado dentro do Estado”, no Paraná
construiu Guaíra, “a maior e mais completa” cidade pertencente a uma empresa. Esta era a
capital social da empresa, enquanto Campanário, no Mato Grosso, era a capital sertaneja.
(WACHOWICZ, 1987, p. 75-77; MARTINEZ apud WACHOWICZ, 1987, p. 78).
As demais obrages confirmam que o Oeste paranaense era o quintal de oligarquias
políticas consolidadas ou em ascensão. A Cia. Domingos Barthe teve como representante
o coronel da Guarda Nacional Domingos Manuel José da Costa Lisboa, que também era
concessionário de terras (PRIORI, 2012, p. 136). A Companhia Maderas del Alto Parana

136
adquiriu uma concessão de 250 mil hectares que havia sido dada ao coronel do Exército bra-
sileiro Jorge Schimmelpfeng, “na qualidade de ‘testa de ferro’ da companhia inglesa The Alto
Parana Development Company Ltda., com sede em Bueno Aires” (GRONDIN, 2007, p. 56).
Assim, a consolidação ideologia hegemônica em benefício de poucos sujeitou ter-
ras e gentes, conformando o Estado como seu instrumento legitimador, possibilitando
um fortalecimento exponencial das oligarquias. Com recursos naturais e mão de obra
à disposição e com poucas obrigações a observar, seria improvável que não viessem a
atingir os objetivos que traduziam como sendo de interesse coletivo e que, dessa forma,
justificavam ainda mais a sua atuação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto o ciclo da erva-mate representou um momento de grande desenvolvimento


econômico e territorial para as elites paranaenses a Leste e platinas a Oeste, para os indígenas
que aqui já habitavam esse capítulo da história representou um tempo de decadência moral,
de opressão de seu povo e de destruição da natureza. A erva sagrada, da vida, que carrega em
si o poder da integração de corpos, mentes e almas em uma grande nação para o bem viver,
foi convertida em mercadoria através do cativeiro dos indígenas e da sua desestruturação
sociocultural, provocada pelo rompimento dos fundamentos da existência guarani.
A dimensão da importância da erva-mate ficou gravada nos brasões dos estados
do Paraná e do Mato Grosso do Sul, ornados com ramos da planta. Empresas argentinas,
amparadas por capitais e interesses ingleses e articuladas com as elites brasileiras, que
conformam o Estado como instrumento da burguesia, tiraram proveito do massacre
promovido pela Tríplice Aliança contra o Paraguai, prosseguindo o genocídio do povo
guarani, para que fosse definitivamente tomado o seu território e determinado o seu
lugar na sociedade: à margem, vendo descer pelos rios e correr pelas estradas as riquezas
produzidas por suas mãos, frutos da natureza que integram.
Pela concepção dos barões, a força e a energia da caá romperiam os joelhos, casti-
gariam os ombros, esmagariam o crânio e destruíram a coluna vertebral dos mensus sob
seus pesados fardos, subvertendo a beleza natural da vitalidade conferida a quem dela
prova respeitando seu poder.
Esse modelo de exploração da natureza e de suas gentes subsistiria na região Oeste
do Paraná até meados do século XX (WACHOWICZ, 1987, p. 11), aproveitando-se
também da madeira nobre encontrada. Em seguida, quando já escasseavam essas riquezas
mais obvias, as obrages perderiam espaço e a própria terra seria transformada em mercado-
ria, a ser explorada por outra forma de associação do Estado com o capital, que se vestiu
de colonizadoras. A região, então, receberia levas de imigrantes que tornariam valioso o
território cuja natureza fora arrasada, preparando-o para novos ciclos de ambições.

137
REFERÊNCIAS

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Grande: Instituto Euvaldo Lodi, 1986, p. 311-385.

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po Grande: Instituto Euvaldo Lodi, 1986, p. 195-310.

ARRUDA, Gilmar. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte Laranjeira. Londrina,


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140
O CONTEXTO, A IDEOLOGIA E A PRÁTICA
DA MARCHA PARA O OESTE NO PARANÁ

Raul Cezar Bergold1

“A história não é cíclica como pretendiam os gregos. E aprendemos que ela não
tem um ‘sentido’. Na verdade, o que a história tem mostrado é que o homem
está condenado a repetir seus ‘erros’. E, assim, se a história tem um desígnio, se
ela serve a algum objetivo, esse é, resumindo, o alargamento, o aprofundamento,
e o exercício de nossa consciência crítica, pela ‘correção’ da memória coletiva.”

Sérgio Odilon Nadalin (2001, p. 18-19)

INTRODUÇÃO

A colonização do Oeste do Paraná é dada como iniciada sob o contexto da Marcha


para o Oeste, slogan do presidente da República Getúlio Vargas, no período do Estado
Novo (1937-1945), constando farto material bibliográfico sobre a sua execução, havendo
certa constância nas abordagens, que partem de referências à chegada dos espanhóis no
século XVI da era cristã, passando pelas missões jesuítas e depois pelas obrages. Então,
aponta-se para a passagem de revolucionários de 1924 pela região, quando haveria a toma-
da de consciência nacional de que estaria ocupada não por brasileiros, e sim por argentinos
e paraguaios, o que contribuiria significativamente para a concepção da Marcha.
Cada trabalho, entretanto, possui finalidades específicas, o que faz com que
traga detalhes de especial relevância, os quais navegam pelo texto também conforme o
objetivo da leitura. Sempre haverá a possibilidade de novas abordagens, na dimensão
em que o leitor se sinta provocado. Assim é que, para produzir um trabalho de valor
científico entre obras já devidamente reconhecidas e por isso regularmente citadas, neste
artigo pretendemos consolidar a visão até aqui alcançada em resposta aos estímulos que
recebemos, assim como desejamos instigar a produção e o aprofundamento de debates
sobre o tema, para o que, se não pudemos contribuir efetivamente com uma releitura,
tratamos de ampliar ou apenas reforçar a ênfase sobre o contexto da Marcha para o Oes-
te, aproveitando-nos desse espaço para a inserção e o enlaçamento de informações que
consideramos de grande relevância para uma compreensão do que esteve envolvido nesse
movimento de transformador.

1
Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

141
Essa mesma abordagem contextualizadora é encontrada na obra de Sérgio Odilon
Nadalin, “Paraná: ocupação do território, população e migrações”, cujas notas iniciais são
esclarecedoras sobre o papel da história e a sua construção, tal como sobre a relação entre
a migração e a colonização. Nesse aspecto, buscaremos explorar as circunstâncias políticas,
econômicas e sociais que conduziram à concepção e à prática da Marcha, conquanto não haja
fronteira tão óbvia entre planejamento e execução, extrapolando a história da região Oeste
do Paraná e também do Brasil, para trazer apontamentos sobre o cenário mundial. Afinal,
somente a partir desse contexto ampliado é possível compreender o caráter da colonização
empreendida do ponto de vista oficial do Estado2 e das colonizadoras e os impulsos migrató-
rios que embalaram as gentes envolvidas nessa corrida por terras.
O recorte histórico, então, se concentrará no período entre o golpe de 1930 e o fim do
Estado Novo, que entendemos como o tempo de concepção da Marcha, influenciada certa-
mente por diversas circunstâncias anteriores a esse período, as quais serão em alguma medida
relacionadas. Quanto à execução da colonização, seus desdobramentos seguem indefinidos
para consolidá-la ou desafiá-la e ainda conformam as interpretações sobre esse projeto. Mas
aqui, o enfoque recairá sobre as primeiras décadas após a fase de concepção, ou seja, as de
1940 à de 1960, período em que houve uma maior transformação da paisagem e que con-
centrou as modificações no regime de posse e propriedade da terra na região Oeste do Paraná.
No tópico “A Marcha para o Oeste na Prática” nos deteremos com mais demora, para que
seus detalhes permitam reflexão sobre como a execução revela a concepção, a ideologia.
Fazemos uma observação quanto à obra de Eduardo Bueno “História do Brasil”, uti-
lizada em significativa medida como referencial historiográfico, quase sempre quando suas
ideias parecerem congruentes com outros pensamentos consultados e relacionados a uma
determinada afirmação. Existe ressalva quanto ao posicionamento político e à conduta do
jornalista, que por certo influenciam a sua visão dos fatos históricos que aborda. Porém, en-
tendemos que contribuiu o fato de ser gaúcho e oferecer uma abordagem sulista, que pareceu
ponderada quanto ao típico bairrismo atribuído àquele povo. O seu abrangente trabalho,
que por isso pode ser superficial, o que por vezes foi compensado por uma precisão na lin-
guagem, está ilustrado com uma rica coleção de obras de arte históricas que o enriquecem
para muito além das palavras, que nem sempre se arriscam a fornecer-lhes uma interpretação.
Além da versão aqui oferecida da história, a partir de seus registros selecionados e apesar das
citações lançadas antes de iniciar cada tópico – a título de ilustração ou de contradição –, por se tra-
tar de um artigo produzido no âmbito de uma pesquisa sobre os indígenas Avá-Guarani do Oeste
paranaense, em todo o trabalho serão apresentados elementos suficientes para possibilitar ao leitor
formular suas próprias conclusões sobre as relações da Marcha com a questão indígena. Mesmo
assim, no último capítulo “Sob a Marcha”, reunimos referências e considerações que permitem
expressar uma interpretação sobre o local do indígena quando da conquista da fronteira guarani.
2
Utilizaremos “Estado” como sinônimo de Estado nacional ou Poder Público, enquanto que “estado”, com inicial minús-
cula, será utilizado para referir a ente federado.

142
RETIRANTES DO VELHO MUNDO

Com as mais variadas idades, com a família ou parte dela; com a perspectiva
de reunir-se novamente, algum dia; solteiros, com a perspectiva de um futuro
casamento... Na bagagem traziam as roupas de cama e de vestir, instrumentos
de trabalho, utensílios domésticos e tudo o mais que coubesse nas malas, baús e
valises. Era a parte visível de um exílio (in)voluntário. Em cada peça, em cada
objeto, lembrança de cenas e rostos familiares, resquícios de uma história de
vida cujos sonhos ocupavam agora o maior espaço.

Museu do Monumento Nacional ao Imigrante, em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul.

A Europa já experimentava as consequências do capitalismo e de seu processo de


industrialização desde o século XIX. As revoltas operárias e levantes sociais faziam irrom-
per distúrbios internos que, para serem controlados, exigiam crescimento econômico,
para o que eram necessárias inevitáveis expansões geográficas. As disputas de modelos
pela hegemonia colocaram identidades em disputa, conduzindo às duas grandes guerras
mundiais da primeira metade do século XX.
Uma massa de excluídos, de pessoas consumidas ou rejeitadas pela privatização das
terras e pela aplicação de processos industriais à agricultura, necessitava de espaço para ser
depositada. Assim, enquanto novas colônias eram procuradas, as nações europeias também
se dispunham a abrir espaços em países independentes para degredar seu excedente de gente:

Situações adversas, como excedente populacional, guerras e as crises econômicas


que geravam desigualdade social, desemprego e insatisfação, vieram a despertar,
em muitas pessoas, o interesse de partir para outra realidade, que poderia estar
disponível em países como o Brasil. (PRIORI, 2012, p. 36)

Ao Brasil chegavam os restos, camponeses expulsos de suas terras, vagabundos


urbanos e criminosos de toda sorte, externalidades, rejeitos, recursos não absorvidos,
mas que, por isso, também eram produtos do avanço econômico, frutos da acumulação
primitiva (MARX, 1996, p. 340). Não vinham sós. Estavam acompanhados de aventu-
reiros e sujeitos de posses, que buscavam ampliar seus negócios ou almejavam uma terra
em que pudessem gozar fortunas e prestígio.

Eram as massas camponesas e proletárias que emigravam, legítimos representantes


da Europa oprimida e subdesenvolvida. Era a Europa atrasada e semi-senhorial que
se manifestava, pouco conhecida do resto do mundo, pois só se exaltavam as mara-
vilhas que a revolução industrial proporcionava. Mas esta outra Europa existia e fazia
sentir sua existência, protestando através da emigração”. (PARANÁ, 2007, p. 65)

143
No exemplo dos poloneses, fugiam para buscar uma nova terra em pudessem
manter e desenvolver o que eram, pois desde o final do século XVIII a Polônia havia dei-
xado de ser uma nação soberana, sendo repartida entre Prússia, Rússia e Áustria-Hungria
(PARANÁ, 2007, p. 25).
A conjuntura mundial colaboraria para que muitos fossem recepcionados pelo
Brasil, que desenvolveu uma política para o recebimento de imigrantes, priorizando os
europeus, que participariam de um processo de branqueamento da população brasileira,
sendo absorvidos como mão de obra barata a ser explorada e também como portadores
de valores morais e de uma dedicação ao trabalho que faltariam para construir o pro-
gresso desta nação. Dita de um lado ou do outro do Atlântico, a expressão da moda caía
bem: vinham “fazer a América” (NADALIN, 2001, p. 16 e 62; BUENO, 1997, p. 177).

NOVAS CONFORMAÇÕES MUNDIAIS

Ora, como já vimos, a economia havia desenvolvido uma série de mecanismos


pelos quais a classe dirigente cafeeira lograra transferir para o conjunto da cole-
tividade o peso da carga nas quedas cíclicas anteriores. Seria de esperar, portan-
to, que se buscasse por esse lado a linha de menor resistência.

Celso Furtado (2007, p. 264), sobre a estratégia


das elites brasileiras para enfrentar a crise de 1929.

No início do século XX, a supremacia europeia passou a ser compartilhada com


nações de outros continentes, enquanto as diversas formas de organização social dos
povos eram sujeitadas à universalização de regras ditadas pela privatização da natureza,
pelo trabalho assalariado e pela competição. Novas conformações mundiais se desenha-
vam. Para operar as relações com seus súditos, consolidou-se o Estado liberal como
instrumento de uso da burguesia (DALLARI, 2009, p. 99-104; JACOBI, 2010, p. 200).
Mas o formato dessa instituição precisou ser ajustado para tratar convulsões do
sistema. O deslocamento da prevalência das relações para uma dimensão econômica
não poderia ter o Estado como coadjuvante. A sua prerrogativa de uso da força para
proteção do capital tornava-se insustentável ante o crescimento das hordas insurgentes,
tanto pela possível incapacidade de fato como pela ampliação da agressividade exigida
para o controle, também exercida diretamente por entes privados, o que escancarava a
ilegitimidade do modelo.
Como alternativa ao liberalismo, na década de 1930 surgiu o Estado bem-estar so-
cial (FRIEDMAN, 1980, p. 105). Para manter o povo à disposição do capital escreveram-
se direitos e garantias em favor de classes trabalhadoras, o que, por outro lado, reafirmava as
condições para a manutenção do sistema, legitimando as formas de exploração existentes.

144
Enquanto uma parte dos países se alinhava à doutrina do Estado de bem-estar
social, outros eram conquistados por uma proposta de rompimento ou de rejeição ao
modelo capitalista. A socialização dos meios de produção brecaria o avanço da proprie-
dade privada em vastos territórios, cujo controle, entretanto, subsistia em estruturas que
ampliavam a intervenção do Estado na organização social.
A dimensão do embate entre o capitalismo e o comunismo se estendeu de tal
forma que exigiu o alinhamento das nações a um ou outro modelo, mesmo que apenas
de forma declarada. O mundo passou por guerras físicas e por guerras frias, de ameaças e
discursos, de autoelogios e demonizações. Em cada canto elencavam-se os requisitos da
dignidade, elogiava-se a liberdade, pregava-se a virtude, conceituava-se o amor e a vida
poderia custar a morte.

O BRASIL AO SUL

Em minha vida, só tive um protetor: Solano López. Devo a ele,


que provocou a Guerra do Paraguai, a minha carreira.

Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, em agosto de 1889,


três meses antes de proclamar a República (apud BUENO, 1997, p. 159)

Enquanto isso, o Brasil era uma incógnita, sustentada pela habilidade ou contra-
dição do gaúcho Getúlio Vargas (BUENO, 1997, p. 236; WEFFORT, 2006, p. 249-
250). O presidente da República se ancorava em uma sucessão de golpes para capitanear
o Estado Novo, que substituiu a República Velha do café com leite, operada pelas oligar-
quias paulista e mineira, e devolveu o poder aos militares, que derrubaram a monarquia
em 1889, após saírem fortalecidos com a vitória na Guerra do Paraguai (1864-1870)
(BUENO, 1997, p. 224; WEFFORT, 2012, p. 223-224; SILVA, 2011, p. 22). Os ar-
ticuladores do primeiro golpe, de 1930, flertavam com os revoltosos de 1922 e 1924,
exilados na Argentina e no Uruguai, e queriam parar o “rolo compressor paulista”. Pa-
recia claro, portanto, que o país seria governado sob uma nova orientação ideológica,
ainda que mantivesse o seu caráter burguês, que fez com que Luís Carlos Prestes, um
dos principais líderes das tentativas anteriores de golpe, não apoiasse Vargas (BUENO,
1997, p. 221).
Vargas era militar, latifundiário e chegou ao poder com a carga política de seu
estado, que por anos, em diferentes momentos, esteve envolvido em revoltas contra o
Império e a Federação. Uma das razões para ter alcançado a presidência da República
é que, “entre os grupos políticos dominantes, os gaúchos eram os menos dependentes
do sistema econômico internacional e, portanto, os menos arruinados por seu colapso
– configurado pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929” (BUENO, 1997, p. 217).

145
Em 31 de outubro de 1930, o caudilho chegou à capital federal, o Rio de Janeiro,
que havia passado por um processo de urbanização à moda parisiense, com a abertura de
grandes avenidas e bulevares sobre antigos cortiços, de onde a população pobre, principal-
mente negros sem o trabalho escravo, foi expulsa para formar as primeiras favelas da cidade
(BUENO, 1997, 187). Nesse ambiente refinado, Getúlio Vargas foi recebido por estanceiros
dos pampas, que cavalgaram desde o Sul e amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida
Rio Branco, marcando a chegada de seu modelo político, “baseado no caudilhismo de in-
fluência artiguista e positivista” (BUENO, 1997, p. 217 e 223). O positivismo moralista de
Augusto Comte tinha influência no meio militar (HELLER, 2012, p. 60) e seria central no
castilhismo, linha política inspirada no governador do Rio Grande do Sul no período 1891-
1898, Júlio de Castilhos, que promulgou uma Constituição Estadual “em nome da pátria,
da família e da humanidade” e cuja atuação “feria a democracia, a liberdade e a participação
política” (PRIORI, 2012, p. 25). Sem ignorar as suas especificidades que às vezes os coloca-
vam em oposição, Borges de Medeiros, governador do Rio Grande do Sul nos períodos de
1898-1908 e 1813-1928 e que esteve envolvido na articulação do golpe de 1930, e Getúlio
Vargas eram herdeiros políticos de Castilho (RODRÍGUEZ, 2010).
Em 1932, Vargas enfrentou a Revolução Paulista, fruto da insatisfação ante suas ações
autoritárias e devido ao pouco prestígio conferido “à classe média, aos cafeicultores e aos
industrialistas paulistas” (BUENO, 1997, p. 226). Dois anos depois, promulgou a Cons-
tituição de 1934, que estabeleceu o Estado liberal, e através de um golpe dentro do golpe,
em eleição indireta, foi escolhido presidente (BUENO, 1997, p. 227). Em 1935, sufocou a
Intentona Comunista, liderada por Luís Carlos Prestes (BUENO, 1997, p. 228). Através de
um novo golpe, promovido sob a insistência no argumento da ameaça comunista, implantou
finalmente o Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, quando promulgou a Constituição
“Polaca”, redigida pelo jurista Francisco Campos, que em 1964 escreveria a primeira emenda
constitucional do regime militar (BUENO, 1997, p. 229). Vargas governava

respaldado por uma ordem jurídica fascista, manipulando os sindicatos com uma
legislação sindical corporativa (também de inspiração fascista), cultuado nas es-
colas (cujo currículo, reformado por Campos, incluía educação moral e cívica)
apoiado pelos grandes investidores e industriais, aclamado pelos trabalhadores,
venerado pelos militares golpistas, com seus inimigos presos, mortos ou no exílio
e a imprensa censurada. (BUENO, 1997, p. 229)

Com a Segunda Guerra Mundial, a habilidade de Getúlio Vargas foi novamente


testada. O presidente mantinha um governo autoritário e muitos de seus principais
cargos eram exercidos por simpatizantes e apoiadores do nazifascismo. Por outro lado,
o país mantinha boas relações com as nações democráticas. Não era por acaso que, em
1942, ano de ingresso do Brasil na guerra, seus dois maiores parceiros comerciais eram a
Alemanha e os Estados Unidos (BUENO, 1997, p. 236).

146
Osvaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores nomeado por Vargas em 1938,
estava nos Estados Unidos quando o Estado Novo foi implantado. Para aceitar o cargo,
exigiu o afastamento das teses totalitárias alemãs e o fortalecimento da União Pan-A-
mericana (BUENO, 1997, p. 230). Foi ele quem sugeriu, em 1942, que as nações inte-
grantes dessa união rompessem “relações comerciais, políticas, militares e diplomáticas”
com os países do Eixo. A proposta foi acatada e a postura brasileira foi recebida pela
Alemanha como uma declaração de guerra, que foi revidada com o afundamento de 36
navios brasileiros (BUENO, 1997, p. 236).

ÀS MARGENS DO RIO PARANÁ

No Paraná as concessões são as mais criminosas, pois se relacionam com a fronteira


ainda há pouco em litígio e sobre a qual os argentinos esperam um dia, denun-
ciando o tratado e invocando o uti possidetis, levantar novamente o litígio. Mis-
sões periga assim novamente, depois do laudo Cleveland. Compradas, arrendadas,
exploradas por argentinos, suas terras vão sendo devastadas na riqueza florestal,
quando justamente procuramos precave-la em leis especiais. Casas argentinas ocu-
pam o alto Paraná e dahi remetem diretamente toda madeira de lei que a Argen-
tina consome, sem o menor embargo legal. Da Foz do Iguassú até o Salto Guayra
os argentinos se alojam na extensão dessas terras, que são nossas; cultivando o mat-
te e extraindo madeira eles ocupam como cousa sua o Brazil!

Manifestação do deputado Maurício de Lacerda,


em sessão de 26 de novembro de 1912 (apud HELLER, 2012, p. 147).

No Oeste paranaense, as obrages que atuavam na exploração da erva-mate decaíam suas


atividades em razão da passagem da Revolução de 1924 e da Coluna Prestes, cujos combates se
desenrolaram em território obrageiro, gerando fortes impactos sobre as estruturas físicas e so-
ciais estabelecidas, e que terminou por denunciar a presença e a exploração estrangeira na região
(WACHOWICZ, 1987, p. 61, 104 e 140). Além disso, a Argentina, principal importadora de
erva-mate, havia ampliado a carga tributária sobre a produção que saía do Oeste paranaense,
com o intuito de beneficiar os produtores em seu território (SILVA, 2011, p. 33).
Durante o domínio das obrages, as empresas impunham suas concepções à re-
gião, que ficou isolada do restante do país. Assim, ainda que as concessões fossem estabe-
lecidas com a finalidade de colonização do território, as companhias obrageiras descum-
priam essa condição e sabotavam as possibilidades de colonização autônoma. Para tanto,
restringiam a possibilidade de acesso à região, impedindo a construção de estradas e
monopolizando o controle das vias de acesso existentes (WACHOWICZ, 1987, p. 75).

147
O estado do Paraná, que conquistou a sua autonomia como Província em 1853, des-
membrando-se de São Paulo, galgou pretensões políticas e econômicas sobre o território sus-
tentado pelos latifúndios pecuaristas dos Campos Gerais, de Guarapuava e de Palmas, e pela
exploração da erva-mate (WAZCHOWICZ, 1995, p. 268-269). A riqueza que produziu a
sua emancipação era obtida da sua porção oriental, observando os limites do Paraná Tradicio-
nal, enquanto que a sua porção ocidental era contrabandeada ou diretamente explorada pelos
argentinos (WACHOWICZ, 1995, p. 172; HELLER, 2012, p. 147-150).
Na segunda metade do século XIX, as potências europeias se reorganizaram para de-
senvolver uma política neocolonialista, impulsionada pela industrialização, pelo capital e pela
demografia (NADALIN, 2001, p. 53). A Inglaterra despontaria nas relações imperialistas
com o Brasil, papel que seria assumido pelos Estados Unidos no século seguinte (HELLER,
2012, p. 32). “Dívida externa, quando não se tem dinheiro paga-se com soberania, ensina
José Joffily”, o que levou o país a entregar valiosas terras do Norte do Paraná aos ingle-
ses (HELLER, 2012, p. 150-155). Os norte-americanos do poderoso Syndicato Farquhar,
“maior que a soberania do Brasil” (HELLER, 2012, p. 164), assumiriam a construção da
ferrovia de ligação entre São Paulo e Rio Grande do Sul, com ramal para o Oeste paranaense.
Essa obra foi incialmente concedida à Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande –
CEFSPRG, que recebeu como pagamento as terras a 15 quilômetros de cada lado por toda
a extensão da ferrovia, além de outras áreas compensatórias. A CEFSSPRG transferiu a con-
cessão à Brazil Railway Company, de Percival Farquhar, a qual também deixou de concluir o
projeto, apesar do que vendeu parte das terras recebidas em pagamento.
Os empreendimentos afetariam grandes extensões do estado, iniciando pela explo-
ração do que estava sobre a terra: as florestas. Ao Norte, imensas perobas, angicos e canelas
deitavam para a passagem de uma ferrovia e o loteamento da região. Ao Sul, a ferrovia-ma-
deireira de Farquhar integrava distantes ervais e abria a possibilidade de exploração da floresta
abundante em araucárias, imbuias e cedros. Esse processo, então, destruía as estruturas do
modo de vida do caboclo da região, que ocupou as áreas de mata para a sua subsistência,
tendo como fonte de renda o comércio da erva-mate, enquanto que os grandes latifúndios
de invernadas para os tropeiros se situavam nas áreas de campos (NADALIN, 2001, p. 51-
52, 70-71 e 80; HELLER, 2012, p. 84 e 160-161). Para tanto, além de contar com apoio
militar do Estado, o Syndicato Farquhar criou uma guarda policial própria, que hostilizava e
ameaçava os caboclos (WACHOWICZ, 1995, p. 193).
O resultado foi a guerra cabocla do Contestado (1912-1916), o mais violento conflito
agrário brasileiro, a maior guerra civil das Américas na opinião de Eduardo Galeano (apud
HELLER, 2012, p. 195) e cujas feridas ainda não cicatrizaram. A ferrovia não causou con-
flito apenas na região em que foi construída. A Companhia Brasileira de Viação e Comércio
S.A. – Braviaco, subsidiária da Brazil Railway Company que deveria construir o ramal Oeste
da estrada de ferro, arrendou parte do maior latifúndio do Paraná ao argentino Dom Tomas
Allica, que explorou área muito maior com a sua obrage, sujeitando milhares de trabalhado-

148
res à condição de escravos, aproveitando-se por décadas de ricos ervais e da madeira existente
(WACHOWICZ, 1987, p. 58-66; GRONDIN, 2007, p. 66-68).
Enquanto o saque das florestas ficou impune e apenas ganhou registro histórico, a
venda de terras de forma ilegal, porque foram retomadas pela União através do Decreto nº
2.073/1940, pois não foi realizada a obra pela qual foram dadas em pagamento (BRASIL,
2015), perpetua seus efeitos no tempo, gerando insegurança aos detentores dos títulos e ali-
mentando a fome dos trabalhadores rurais sem terra. A riqueza que esse modo de exploração
possibilitou, na condição de acumulação primitiva de capital, porém, subsiste em empresas e
famílias que muitas vezes seguem operando no setor madeireiro.
A Guerra do Paraguai e a Questão de Palmas (ou de Missões), esta resolvida por
arbitramento do presidente norte-americano Grover Cleveland, em 1895, já haviam apon-
tado que a região Oeste estava em disputa não apenas interna, entre classes, mas que existia
também a ameaça de que fosse tomada por outra nação. Como resultado do Contestado
entre os estados do Paraná e Santa Catarina, aquele teve uma significativa área de seu terri-
tório suprimida em favor do vizinho. A passagem dos revolucionários na década de 1920,
tanto pela repetição denúncia sobre a presença estrangeira na região como pela possibili-
dade de que esta servisse à organização de grupos revoltosos, e a Segunda Guerra Mundial
convergiam para reivindicar a efetiva tomada da posse do território.

O ESTADO NOVO, IDENTIDADE E INTEGRAÇÃO NACIONAL

O imperialismo do Brasil consiste em ampliar as suas fronteiras econômicas e


integrar um sistema coerente em que a circulação de riquezas e utilidades se faça
livre e rapidamente, baseada em meios de transporte eficientes, que aniquilarão as
forças desintegradoras da nacionalidade. O sertão, o isolamento, a falta de contato
são únicos inimigos terríveis para a integridade do país.

Getúlio Vargas (apud CARVALHO, 2013, p. 511)

As possibilidades oferecidas pelo Oeste do Paraná, onde as terras seriam “as mais
férteis e as mais completas do Brasil e entre as melhores do mundo” (REGINATO apud
GRONDIN, 2007, p. 284), e a situação periclitante em que se encontrava a região,
do ponto de vista da hegemonia brasileira, exigiram um posicionamento da República.
Getúlio Vargas buscava a integração nacional, a efetiva ocupação de seu território, a se-
gurança de suas fronteiras. Mas também desenhava um novo país, que remodelava suas
relações internas de poder, como decorrência da crise de 1929 e da formação de uma
classe média urbana, iniciando a transição de um modelo de base agrária para uma nação
urbana e industrial (WEFFORT, 2006, p. 249-251).

149
Colhiam-se os primeiros resultados, ainda sob a forma de projetos, oriundos do
exercício intelectual de compreender o país e de propor vias para torná-lo moderno.
Desde a década de 1920 surgiriam influentes obras que caracterizavam e interpretavam
os tipos sociais, a geografia, o clima e o processo de colonização do país, como “Evolução
do Povo Brasileiro”, de Oliveira Vianna, “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, e
“Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. Essas obras teriam alguma influência
do historiador norte-americano Frederick Turner, que propôs o que seria considerada
a “Tese da Fronteira”, quando lançou o texto “O significado da Fronteira na história
americana”, em 1893. Turner apresentou uma análise sobre “expansão territorial dos
Estados Unidos em direção ao Oeste em seus aspectos econômicos, políticos e sociais”,
destacando-se a sua interpretação quanto às implicações desse movimento sobre forma-
ção do povo daquele país (MYSKIW, 2008, p. 108-117).
Então, o processo de integração nacional dependeria de uma síntese, de um ele-
mento de referência, de uma identidade em que os brasileiros se enxergassem. O Estado,
“que procura unificar, tornar idêntico por todos os meios” e que “teme as diferenças”
(RAFFESTIN apud CARVALHO, 2013, p. 509), centralizaria a coordenação dessa
transformação, promovendo a harmonização entre as classes. Organizava-se um vultuo-
so processo de reorganização espacial, social e econômica do país, que acompanharia os
sucessores de Getúlio Vargas (WEFFORT, 2006, p. 249) e que teria como uma de suas
expressões a Marcha para o Oeste, pela qual a população nacional seria acomodada em
novos espaços, como forma de ocupar o território nacional e explorar suas riquezas.
Tratava-se de um verdadeiro slogan de governo lançado em 1937, que concentrava
“em si toda uma doutrina ideológica que seria concebida pelos homens que assumiram
o poder”, muitos dos quais haviam passado pelo Oeste paranaense em 1924 (WACHO-
WICZ, 1987, 140-142). Para lançar o ideário, Vargas encontraria um elemento de inte-
gração nacional, que identificava o espírito do momento vivido e que impulsionava uma
“força coletiva nacional” capaz de executar o projeto (WACHOWICZ, 1987, p. 143).
O descontentamento dos paulistas com o presidente da República expressava a
desconfiança das velhas oligarquias, o que poderia minar as propostas do Estado Novo.
Sob a assessoria de Cassiano Ricardo, jornalista nacionalista e modernista que chefiou o
poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP (ou DEIP), a Marcha para o
Oeste elegeu como símbolo o bandeirante, representante da identidade e da integração
nacional (SILVA; SILVA, 2014, p. 6), figura típica do Brasil colonial e que partia princi-
palmente das cidades paulistas de São Vicente e São Paulo para o sertão, onde preavam
indígenas. Em 1942, Cassiano Ricardo publicou a obra “Marcha para Oeste”, que reu-
niu a inspiração para o programa de governo.
Com o elogio ao espírito bandeirante, conquistavam-se os paulistas e homenageava-se
a democracia racial, fruto da síntese das três raças que formaram o povo brasileiro, em igual-
dade. Também, manifestava-se a pretensão de que, sob o impulso estatal, fossem formadas

150
as novas bandeiras, como organismos privados com hierarquia definida, cabendo a cada ele-
mento integrante um papel a ser exercido em obediência a um líder forte, que seria Getúlio
Vargas. Assim, a Marcha para o Oeste seria concebida pelo Estado, enquanto organizações
privadas e autônomas a colocariam em prática (SILVA; SILVA, 2014, p. 7-8).

COLONIZAÇÃO, POLÍTICA IMIGRATÓRIA


E CAMPANHA DE NACIONALIZAÇÃO

Se não puderam mudar o clima, esses povos mudaram os hábitos, a língua, as


formas de pensar, de agir e se alimentar; mudaram a própria imagem que o país
fazia de si mesmo. E, sim, mudaram a paisagem: no Sul, o ‘imperialismo ecológi-
co’ dos ‘povos transplantados’ fez brotar um Brasil europeizado, com outras árvores,
outros animais, outras raízes. E outras gentes: se na planície litorânea os tupis
foram mortos para dar lugar aos lusitanos, nas serrarias do Sul os caingangues
seriam exterminados para ‘liberar’ a terra para os teuto-italianos. No caldeirão
brasileiro, algumas raças são mais iguais que outras.

Eduardo Bueno (1997, p.177).

O projeto de integração estimulava e era estimulado pela definição da identidade


nacional. A miscigenação formaria o brasileiro típico, a síntese das três raças em equilí-
brio, de sangue índio, africano e europeu. Contraditoriamente ao elogio das três raças,
ressoavam discursos e políticas para o branqueamento da população, com o favoreci-
mento da imigração europeia. A brasilidade de então, portanto, não poderia mais ser a
mesma de outrora. O ingrediente branco passaria a ser adicionado em porções maiores
e bastante desproporcionais, dado o fomento ao ingresso constante de imigrantes eu-
ropeus, o extermínio ou a expulsão dos indígenas e a proibição da entrada de africanos
(SEYFERTH, 2002, p. 120, 132, 135).
A substituição da mão de obra escrava e das estruturas sociais atreladas ao escravis-
mo definiu as políticas imigratórias no século XIX. O fim do escravismo traria repercussões
sobre o sistema latifundiário, que dependia da mão de obra negra cativa. A sua substituição
exigia da vinda de agricultores diligentes, acompanhados de suas famílias, que explorariam
pequenas propriedades e colonizariam o território nacional (NADALIN, 2001, p. 69-70).
De antemão, o projeto imigratório estava associado ao processo de colonização,
o que ficou expresso com a Lei de Terras de 1850, que tratava da colonização das terras
devolutas e da imigração em um único dispositivo legal. Para a colonização do terri-
tório nacional presumia-se a necessidade da vinda de imigrantes. Também, atribuía-se
uma incapacidade da população mestiça ou de escravos livres para assumir a condução

151
das terras como agricultores (SEYFERTH, 2002, p. 118-120). Havia, assim, uma dupla
pretensão de pôr fim à escravidão (e iniciar a exploração do trabalho assalariado) e de eli-
minação dos negros, tidos como ociosos sem o trabalho escravo (NADALIN, 2001, p. 74)
e, por isso, inaptos à condição de proprietários. Daí que as terras a serem ocupadas pelo
tipo humano eleito eram tidas como devolutas e assistiriam à substituição das suas gentes.
Por outro lado, com a proibição da importação de escravos africanos em 1850,
São Paulo buscou mão de obra em outras províncias, inclusive no Paraná. Isso levou ao
escasseamento dos trabalhadores nas atividades agrícolas de subsistência, o que gerou
uma queda na produção dos itens que compunham a base da alimentação da população,
levando à alta dos preços, o que favoreceu as colônias alemãs de Blumenau e Joinville,
em Santa Catarina (WACHOWICZ, 1995, p. 143). As circunstâncias conspiravam para
fortalecer a preferência pelo imigrante europeu. Ao trabalhador nacional a propriedade
privada seguiu negada, enquanto que ao imigrante ela foi assegurada como pressuposto
para a atração (PRIORI, 2012, p. 37).
Em 1824, formou-se a colônia alemã de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul
e “até o final do século XIX, quase duas centenas de projetos coloniais foram iniciados
por imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e Santa Catarina”, sendo que a partir da
década de 1870 as imigrações seriam intensificadas com a vinda de italianos à Serra
Gaúcha, ao Sul de Santa Catarina e para próximo das colônias alemãs do Vale do Itajaí
(SEYFERTH, 2002, p. 119 e 121).
O Paraná, desde antes de sua emancipação política em 1853, destacava-se pela sua
população europeia “sem nenhuma mistura com sangue indígena”, formada majoritaria-
mente por agricultores, como observou o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que
décadas antes passou pela província e chamou os Campos Gerais, limite da colonização
àquela época, de “paraíso terrestre do Brasil”, perfeito ao povo e à agricultura europeus,
(SAINT-HILAIRE, 1978, p. 27 e 79). Por outro lado, de acordo com Romário Martins,
até a emancipação o estado possuía apenas três núcleos formados por 407 “colonos agri-
cultores” europeus: Rio Negro (1829), composto por alemães; Colônia Tereza Cristina
(1847), integrada por franceses; e Superagui (1852), onde viviam suíços, alemães e fran-
ceses. A partir da emancipação da província a vinda de imigrantes, sobretudo eslavos e
italianos, seria significativamente ampliada: de 1853 a 1929, teriam ingressado 128.546
imigrantes no Paraná (MARTINS, 1995, p. 349-351).
O papel a ser assumido pelo imigrante na sociedade nacional levava à identificação
de um tipo ideal. Buscava-se agricultores com um determinado modelo de prática agrícola
intensiva voltada à geração de excedentes significativos, o que colocava os alemães no topo
da hierarquia. Mas também havia a pretensão de que os imigrantes colaborassem com a
miscigenação, integrando-se à sociedade nacional, com a qual contribuiriam com o traba-
lho, o exemplo e a genética (NADALIN, 2001, p. 75). Sob esse aspecto da diluição na so-
ciedade nacional, os alemães acabavam sendo considerados indesejáveis, porque formavam

152
quistos, comunidades fechadas e de difícil integração. Daí passou-se a predileção aos povos
latinos, sobretudo italianos e portugueses, mas também espanhóis (SEYFERTH, 2002, p.
140-141). Por outro lado, René Gertz aponta que esse isolamento dos alemães se deveu ao
descaso do Estado brasileiro e que, tão logo houve apoio com serviços públicos às colônias
ocorreu maior integração (apud KLAUCK, 2004, p. 49-50).
Essas preferências e objeções ficaram expressas na legislação imperial, mas cons-
tavam principalmente dos contratos firmados com as companhias colonizadoras e com
os agenciadores de imigrantes (SEYFERTH, 2002, p. 121 e 126). Na República Velha,
conquanto houvesse mudanças legislativas, a concepção da colonização e da imigração
sofreu poucas alterações. Com o Estado Novo, porém, o debate sobre o tema teve novos
contornos, definidos pela construção da identidade brasileira e pela Campanha de Na-
cionalização, que se associaram à pretensão de integração da nação. A visão do imigrante
no contexto do Estado Novo está expressa na obra clássica do “paranista” Romário Mar-
tins, cuja publicação original se deu em 1937:

Conjuntamente com os descendentes dos povoadores fundamentais [portugueses


e castelhanos, índios guaranis administrados, negros africanos escravizados] essa
população por toda a parte aí está construindo a Babel de todas as raças, irmanadas
na mesma obra civilizadora, integrada no espírito novo, de cooperação e de frater-
nidade, com que marchamos para o futuro. (MARTINS, 1995, p. 352)

Apesar do elogio à diversidade da imigração, o Decreto-lei nº 7.967/1945, revo-


gado somente em 1980, pela Lei nº 6.815, deu a cor da brasilidade: “Art. 2º Atender-se
-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição
étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia,
assim como a defesa do trabalhador nacional”.
A Segunda Guerra Mundial também influenciou o processo imigratório, trazen-
do restrições sobretudo à vinda de japoneses e alemães, além de ter gerado repercussões
para aqueles que já se encontravam no Brasil (SEYFERTH, 2002, p. 139). O ingresso
do Brasil na guerra acentuou a repressão e a perseguição às comunidades que não se
abrasileiravam, deixando de adotar a identidade nacional supostamente homogênea, que
a Campanha de Nacionalização buscava promover com a obrigatoriedade do uso da
língua portuguesa nas escolas e, depois, com a proibição de uso de línguas estrangeiras
em público. Haveria medidas mais drásticas, cujas repercussões sobre as comunidades de
imigrantes alemães são fartamente estudadas.
Em terras paranaenses prevaleceram os poloneses, os ucranianos e os alemães
como grupos de imigrantes até o início do século XX, havendo casos específicos, como
da imigração japonesa no Norte do estado e holandesa em Carambeí. Até 1948, o Pa-
raná teria recebido 57 mil poloneses, 22 mil ucranianos, 20 mil alemães, 15 mil japo-
neses e 14 mil italianos (WACHOWICZ, 1995, p. 148-152). Os imigrantes tornaram

153
a “população predominante branca, com majoritária influência europeia”, e teriam sido
responsáveis pela modernização do estado, proporcionando as bases para o surgimento
da classe média urbana e rural, recuperando a dignidade social do trabalho braçal tanto
na agricultura como no meio urbano e operando uma revolução agrícola com o uso de
novas ferramentas (WACHOWICZ, 1995, p. 153).
Para concluir a abordagem, vale a descrição do Monumento Nacional ao Imi-
grante, em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, inaugurado em 1954 por Getúlio
Vargas. O monumento situa-se no topo de uma colina, no extremo oriental da rua Júlio
de Castilhos, governador gaúcho do final do século XIX, que visitou a cidade em 1897,
quando lhe qualificou como a “Pérola das Colônias”, instalada onde antes era o “Campo
dos Bugres”. Na praça em frente, o busto de Vargas. No alto, a família imigrante, porta-
dora das virtudes “cívicas e morais (...) dignos exemplos de imitação das novas gerações”
(DIÁRIO DO NORDESTE, 1954), “carrega uma mensagem de fé, heroísmo e traba-
lho” (PIONEIRO, 1954). O casal divisa o Oeste distante com determinação e firmeza
no olhar, carregado de ambições e esperança. O homem carrega sua enxada, símbolo do
seu trabalho, enquanto a mulher, mãe, carrega seu filho, deixando pender de seu bolso
um rosário, afirmando toda a sua fé, também revelada na entrega à Nossa Senhora.
Preparados para seguir em movimento, deixam para trás um tronco de árvore cortada,
representando o desbravamento das terras com suas exuberantes florestas de outrora.
Mais atrás da família um obelisco eleva três cenas que sintetizam a relação da
nação com o imigrante. Na primeira delas, no alto, cumprimentam-se um soldado e um
imigrante, como registro da amizade da nação brasileira para com os imigrantes, além
de seu pedido de desculpas após a Segunda Guerra Mundial, durante a qual houve per-
seguição às comunidades que formaram. Mas pode expressar, também, a aliança entre
militares e civis, a ordem e o progresso, sob a proteção divina do Cristo crucificado. Ali
está insculpido, com a benção sagrada, um dos lemas de Augusto Comte: “o amor por
princípio, a ordem por base e o progresso por fim” (apud BUENO, 1997, p. 158). Os
imigrantes irmanados em seu espírito solidário se expressam em uma mão sobre os om-
bros. A fé e a esperança repetem-se nos gestos da imigrante, como que em prece.
A segunda cena representa o cultivo da terra, a dignificação do homem pelo traba-
lho. Contém, ainda, a representação da constituição física do imigrante como tipo ideal,
forte, saudável, perfeito, com cada um de seus músculos cuidadosamente esculpidos. Os
seus cultivos, da uva e do trigo, preenchem o quadro. A mulher, deixada em um plano de
fundo, envolve-se em outras tarefas. A conquista da terra está contida na terceira cena,
que representaria, ainda, uma amizade do imigrante com o indígena, conquanto estejam
em dimensões diferentes, sem trocar olhares. O indígena está só e observa, contempla.
Os imigrantes, unidos, caminham, trabalham, com suas ferramentas e animais de carga.

154
DISPUTAS ENTRE O ESTADO NOVO E O ESTADO DO PARANÁ

Alegavam então as correntes paranaenses que, se era uma questão de fronteiras,


porque não se fazia um território na fronteira do Rio Grande. Alegavam, então,
que a fronteira do Rio Grande já estava conquistada. Havia sido conquistada,
segundo velha frase de João Neves, na campanha de 30, havia sido conquistada 'à
pata de cavalo e pontas de lanças'.
(A esta frase) um dos nossos humoristas (paranaense) respondia: 'E o nosso oeste,
foi conquistado com o que? (Por acaso) numa mesa de pôquer?'

Brasil Pinheiro Machado, interventor federal no Paraná


após a queda do Estado Novo (apud WACHOWICZ, 1987, p. 153-154)

Conquanto houvesse uma aproximação de interesses no que se refere à ocupação


e proteção do território e quanto ao perfil da mão de obra escolhida, havia divergências
entre oligarquias econômicas e políticas que levariam a uma corrida pelo Oeste, disputa-
da pelo governo federal de Vargas e pelo governo estadual de seu interventor nomeado,
o general Mário Tourinho (WACHOWICZ, 1987, p. 141).
A estratégia do governo federal para assegurar a prevalência de seu projeto ideo-
lógico e integracionista incluía o domínio direto sobre territórios dentro da nação, res-
tringindo a atuação das oligarquias regionais, beneficiadas pela Lei de Terras de 1850 e
pela proclamação da República em 1889, que logo outorgou aos governos provinciais a
prerrogativa de titulação de suas terras.
Mário Tourinho, por outro lado, resistiu com a edição do Decreto nº 300/1930, que se
aponta como um ato de retomada das terras concedidas às obrages do Oeste. Entretanto, esse
dispositivo legal somente atingiria as áreas da Braviaco. Seria ineficaz, vez que tais terras não
foram outrora de domínio do Estado do Paraná, porquanto foi o último ato do Império, em 9
de novembro de 1988, que as concedeu em pagamento pela construção da estrada de ferro São
Paulo-Rio Grande e seus ramais. Como a construção da obra foi incompleta, coube ao governo
federal retomá-las, o que foi justamente Getúlio Vargas quem o fez, em 1940, apesar de que,
desde 1931 essas terras já haviam retornado ao patrimônio público da União pela declaração de
caducidade, via Decreto nº 19.918, dos contratos de concessão (BRASIL, 2015).
Ainda, Tourinho nomeou para “o cargo de prefeito de Foz do Iguaçu, o enge-
nheiro Otton Mäeder, e em seguida o Tenente Gregório Rezende, da Força Pública do
Paraná, para nacionalizar a região de Guaíra” (WACHOWICZ, 1987, p. 141). Essas no-
meações pouco serviram, já que em 1937 a região ainda era dominada por estrangeiros
(WACHOWICZ, 1987, p. 130).
Enquanto Cassiano Ricardo exaltava a Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas,
com toda a envergadura das suas pretensões, o governo paranaense apoiava a apresenta-

155
ção, ao governo federal, de um plano que tornava Foz do Iguaçu um centro turístico in-
ternacional, “com cassinos, parques de diversão, navegação melhorada pelo Rio Paraná”,
sendo que “toda a arrecadação municipal, estadual e federal no município, seria aplicada
para o benefício do próprio município” (WACHOWICZ, 1987, p. 142).
Com pouco mais de um ano de governo, Tourinho renunciou ao cargo. Naquele
mesmo ano, um funcionário federal foi enviado para analisar a situação da ocupação
do Sudoeste e do Oeste paranaenses, tendo relatado dificuldades do Estado do Paraná
em colonizar a região, sendo que a situação de abandono pouco seria alterada até 1936,
quando uma missão estadual realizou trabalho similar (PRIORI, 2012, p. 66 e 81).
Então, Getúlio nomeou Manoel Ribas como interventor do estado (1932-1945).
Nascido em Ponta Grossa, no Paraná, Ribas era radicado em Santa Maria, no Rio Gran-
de do Sul. Na prática, porém, nada de novo haveria na região, mesmo com a ampliação
da faixa de fronteira para 150 quilômetros, através do artigo 165 da Constituição de
1937, que abraçou cerca de 65 mil km² do Paraná (32,61% de sua superfície total). Em
1941, porém, um terço das terras da região já estaria titulado, sendo que o remanescente
seguiria constituído de terra “virgem e inculta” (WACHOWICZ, 1987, p. 154).
Assim é que, para tomar a “fronteira guarani” (WACHOWICZ, 1987, p. 141), que
recebia ainda essa denominação, Getúlio Vargas instituiu o Território Federal do Iguaçu atra-
vés do Decreto-lei nº 5.812/1943, que abrangeria as terras do Oeste de Santa Catarina e do
Paraná. O Território levaria cerca de 45 mil km² do Paraná (22,58% do estado) e era ocu-
pado por gentes que dele seriam varridas para dar lugar ao avanço de uma nova identidade,
incorporada em diferentes elementos humanos que atenderam ao chamado para marchar.
O Paraná dava sinais de fraqueza que o tornava presa desse projeto. O estado
não teria promovido a ocupação da região, conquanto as terras consideradas devolutas
lhe tenham sido confiadas. Isso já havia colocado em risco parte do território nacional,
disputado na Questão de Palmas (PRIORI, 2012, p. 66), e agora colocava novamente
uma extensa e fértil região sob ameaça de conquista argentina pelo direito de uso. E no
conflito do Contestado, o Paraná havia perdido quase 28.000 km² de seu território para
Santa Catarina (PRIORI, 2012, p. 67; WACHOWICZ, 1987, p. 145).
Além disso, a região era asilo, mesmo que temporário, de revolucionários que co-
locavam em risco o governo central, como em 1924. A ameaça comunista explodiu em
1935 e foi seguida da Segunda Guerra Mundial, exigindo o controle pleno da ocupação
territorial e a segurança de fronteira (PRIORI, 2012, p.59). As circunstâncias possíveis e
necessárias se somavam ao governo forte e autoritário de Vargas, com o que a criação do
território federal foi colocada em prática, com o silêncio do interventor Manoel Ribas,
que paralisou a instalação das colônias de Chopim e Pato Branco, no Sudoeste, e de
Benjamin, em Foz do Iguaçu (WACHOWICZ, 1987, p. 151-152).
Com o Território Federal do Iguaçu, Vargas atendia o interesse de capitalistas
gaúchos e possibilitava o escoamento da mão de obra agrícola excedente do Rio Grande

156
do Sul (WACHOWICZ, 1995, p. 237). Tratava-se, portanto, da ampliação da zona de
atuação daquele estado em detrimento do Paraná e de Santa Catarina. Tal situação teve
ensejo pela própria atuação política paranaense, que buscou apoiar o golpe de 1930 com
o intuito de frear a influência de São Paulo sobre o seu território, a qual era chamada de
“perigo paulista” (WACHOWICZ, 1995, p. 249-251).
Na prática, essas disputas apenas tomaram a energia dos governos, sem que um ou
outro implantasse efetivamente seu projeto para a região. Por parte da União, não houve
ações concretas de titulação de terras, o que foi assumido de forma ilegal pelo Estado do
Paraná, já que, extinto o Território Federal do Iguaçu em 1946 e sendo insuficiente o
Decreto Estadual nº 300/1930, subsistia a faixa de fronteira, de 150 quilômetros, cujas
terras ficavam sob a competência titulatória da União. Tiveram grande repercussão sobre
o processo de colonização, porque gerariam disputas posteriores, o Decreto Estadual nº
300/1930 e o Decreto nº 2.073/1940, que incidiram sobre as terras concedidas à Bra-
viaco, bem como o Decreto nº 6.428/1944, pelo qual Getúlio Vargas incorporou ao pa-
trimônio da União os bens da obrage Matte Larangeira, cujas concessões se estenderam
por mais de cinco milhões de hectares (ARRUDA,1986, p. 218), abrangendo a cidade
de Guaíra, sede administrativa da empresa, a qual foi entregue ao Estado do Paraná (SIL-
VA, 2011, p. 33-34; CAMARGO apud WACHOWICZ, 1987, p. 150). A incorporação
dessa companhia representou também uma ação de disputa política-ideológica, que cul-
minou com a vitória gaúcha para a fixação de seu povo no Sul do então Mato Grosso,
onde desde o início houve uma queda-de-braço entre imigrantes sulistas e as pretensões
monopolistas da Matte Laranjeira (ARRUDA, 1986, p. 275-258).
Colocada a região em jogo por forças externas, as suas gentes tiveram que optar
por um ou outro projeto que lhes atendesse os interesses da melhor maneira. Inicialmen-
te, tenderam para apoiar o governo federal, que lhes asseguraria investimentos ignorados
pelo Estado do Paraná. Porém, com o Território Federal do Iguaçu, a população da re-
gião foi lembrada pelas oligarquias do Paraná Tradicional, cujos emissários percorreram
o Oeste para estabelecer alianças que pudessem integrar o estado em detrimento das
pretensões getulistas (MACHADO apud WACHOWICZ, 1987, p. 154-157).
Com o fim do Estado Novo, em 1945, as disputas seriam mais efetivas entre a
União e o Estado do Paraná, sendo que este, principalmente sob o governo de Moy-
sés Lupion (1947-1950 e 1956-1960), praticaria uma verdadeira “psicose titulatória”,
promovendo a sobreposição de documentos de domínio das terras e levando a graves
conflitos na região.

157
PONTO DE ENCONTRO

“Sabem onde começava a escada que subia da terra para o céu?


Era no Paraná.
Não chegava lá, não precisava, o Paraíso era aqui mesmo.”

Moysés Paciornik (1991, p. 67).



O Oeste do Paraná, a última fronteira agrícola do estado (PRIORI, 2012, p. 86), foi
o ponto de encontro de três frentes colonizadoras de maior destaque na ocupação de seu ter-
ritório a partir de meados do século XX. A região, cujas oportunidades de exploração vinham
sendo aproveitadas por uma “frente extrativa argentino-paraguaia”, que dominou os guaranis
“como mão de obra abundante e barata” (WACHOVICZ, 1987, p. 47) para estabelecer
seus empreendimentos predatórios da erva-mate e da madeira, revelava em seu relevo plano,
em sua rede de rios, de exuberantes monumentos naturais, e na fertilidade de sua terra, um
verdadeiro tesouro para a colonização. Esse precioso território não seria desperdiçado. Assim
como anteriormente havia sido disputado por nações e entre entes da federação, passou a ob-
jeto de competição entre as frentes colonizadoras que avançavam pelo território paranaense.
Com a colonização massiva iniciada alguns anos antes, a região Norte do Paraná
era ocupada de maneira cada vez mais completa por cafeicultores, recebendo o fluxo de
pessoas provenientes principalmente dos estados de São Paulo e Minas Gerais, mas tam-
bém do Espírito Santo e da região Nordeste, dando sequência à migração da atividade
cafeeira do vale do rio Paraíba para o Oeste paulista (PRIORI, 2012, p. 93). Esse fluxo
formou a corrente nortista de colonização do estado, que preponderaria também no
Noroeste paranaense, até alcançar a margem direita do Rio Piquiri.
A frente nortista representava a continuidade da República Velha e sujeitava o Nor-
te paranaense à influência política de São Paulo. Trazia o colonato como principal forma de
organização do trabalho na agricultura. Assim, conquanto se afirme que a colonização da
região se deu em pequenas e médias propriedades, essas muitas vezes eram exploradas in-
diretamente por seus proprietários e diretamente pelos colonos, que formavam os cafezais
com a possibilidade de plantar culturas de subsistência nas entrelinhas (PRIORI, 2012, p.
105-108). Os colonos ampliavam os domínios da cultura do café para exercer a posse em
favor de pessoas que sequer conheceram aquelas terras. Muitos dos que chegaram ao Oeste
paranaense eram, portanto, agricultores alijados do processo de colonização do Norte do
Paraná, que se desenvolvia rapidamente sustentado pela cafeicultura.
Desde o litoral, passando pela capital Curitiba, no primeiro planalto, e por cida-
des como Jaguariaíva, Castro, Ponta Grossa, Palmeira, Irati e União da Vitória, até Gua-
rapuava e os campos de Palmas, estes conquistados em 1839, consolidava-se o Paraná
Tradicional (NADALIN, 2001, p. 21 e 51), ocupado pelos ciclos econômicos do ouro,

158
do tropeirismo e da erva-mate, e que ao tempo da Marcha se convertia para a explora-
ção da madeira, destacando-se a araucária, o cedro e a imbuia (CARVALHO, 2010, p.
152-156, 201 e 263). A busca de novas áreas para o desenvolvimento dessas formas de
exploração, em conjunto com a agricultura trazida pelo imigrante europeu, constituiu
uma frente própria de avanço colonizador das demais terras do estado.
Do Paraná Tradicional vinham gentes de todo tipo, como imigrantes europeus que
chegavam ao estado, caboclos que ousavam buscar a terra própria e representantes da elite,
que alçavam novos domínios. Apesar dos elementos humanos, a elite oligárquica dessa frente
se consolidou sob o modelo colonial do latifúndio escravista, aqui voltado ao tropeirismo e à
exploração de grandes fazendas para a criação de gado (NADALIN, 2001, p. 52 e 64).
Do Sul, por sua vez, provinha uma frente colonizadora constituída dos chamados
colonos, que seriam sobretudo imigrantes alemães e italianos e seus descendentes, oriundos
das já saturadas colônias formadas no Rio Grande do Sul, num processo de “enxamagem dos
pioneiros” (ROCHE apud NADALIN, 2001, p. 17), e que por isso avançavam para o Oeste
de Santa Catarina e o Sudoeste paranaense, alcançando também regiões centrais e ocidentais,
ocupando pequenas propriedades em regime de exploração familiar.
Em 1920, já havia sido tentada a colonização da região com a criação de Santa
Helena, onde se fixaram imigrantes de ascendência europeia, vindos do Rio Grande do
Sul, os quais se estabeleceram com suas famílias em pequenas propriedades formadas em
meio à obrage de Domingos Barthe, que se utilizava do porto com o mesmo nome da
localidade (COLODEL, 1988, p. 67).
Era do Sul que vinha o tipo humano preferido e enaltecido, porque próprio para
pôr em prática o projeto da destinação das terras em pequenas propriedades familia-
res, além de concentrar outras virtudes exaltadas. Essa forma de ocupação demandava
práticas e culturas que não eram próprias da frente nortista, cujo elemento humano foi
chamado de “pelo duro”, como os gaúchos se referem aos animais sem raça (WACHO-
WICZ, 1987, p. 175-176) e aos caboclos3. O plantio de cereais, além das culturas de
subsistência, seria a base dessa nova agricultura, cujas práticas eram resultado das diver-
sas revoluções agrícolas que a Europa havia experimentado.
A prevalência de uma ou outra frente significaria a expansão de seus modelos, de
suas práticas, de suas ideologias. Assim, houve grande preocupação do governo federal
com a ocupação da região, porque buscava a construção de uma efetiva zona de expansão
da sua ideologia e de abertura de mercados. Getúlio Vargas, apoiado pelas oligarquias de
seu estado e desafiando a hegemonia paulista da República Velha, abriu caminho para
capitalistas, colonizadores e colonos vindos do Sul (WACHOWICZ, 1987, p. 146-147;
GRONDIN, 2007, p. 101), o que representaria a pretensão de criação de “uma espécie
de filial do Rio Grande do Sul” (WACHOWICZ, 1995, p. 272).
3
É necessário observar a diferença entre o gaúcho, fruto da miscigenação de espanhóis com indígenas, e o imigrante ítalo-
germânico, que ocupou as serras e seus arredores (RIBEIRO, 2006, p. 374-401). “Pelo duro” é o “gaúcho autêntico, puro,
crioulo”, conforme o próprio Dicionário Gaúcho Brasileiro (BOSSLE, 2002).

159
A IDEOLOGIA DA MARCHA PARA O OESTE

A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos


rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando originalíssima rede hidrográfica, correm da
costa para os sertões, como se nascessem nos mares e canalizassem as suas energias
eternas para os recessos das matas opulentas.

Euclides da Cunha, (1984, p. 4).

O caráter épico do discurso da Marcha para o Oeste é tão rico que oculta as suas
pretensões mais explícitas. A integração nacional passava pela criação do estereótipo brasi-
leiro, do povo escolhido, que seria vestido com as virtudes de uma ideologia que legitimaria
a ocupação de vazios territoriais em verdade ocupados, mas pelo elemento não escolhido
para compor a sociedade nacional e que, portanto, deveria ser deslegitimado e eliminado. A
construção de uma nação sólida, além do elemento humano, demandava seus dois elementos
adicionais: o território e a soberania. Daí que o escolhido deveria ter a ousadia de desbravar
novas áreas para abrangência da concepção hegemônica, contando com o apoio político e
econômico do Estado, ainda que indiretamente. No contexto da corrida para o Oeste, con-
cebeu-se um ser humano ideal próprio (WACHOWICZ, 1987, p. 143, 174-175).
Este texto, ao tratar da política imigratória e da sua relação com os projetos nacionais
de colonização deu pistas sobre a provável escolha do povo, a qual voltará a ser tratada nos
capítulos adiante. Com relação às virtudes dos escolhidos, que também se associam aos as-
pectos que levavam à preferência de determinadas nacionalidades para os imigrantes, houve
uma associação própria das aparentes contradições de Vargas e do sincretismo brasileiro. Os
escolhidos carregariam consigo as virtudes dos bandeirantes dos séculos anteriores, seriam
agora imigrantes-bandeirantes-colonizadores-pioneiros, o que será melhor tratado, mas ain-
da de forma ainda tangencial, no próximo capítulo, “A Bandeira como Estandarte”.
Retomemos, então, a questão do projeto de construção da nação, que demandava a
efetiva delimitação e ocupação de seu território, com as suas fronteiras resguardas para asse-
gurar a soberania nacional (PRIORI, 2012, p. 65). Além disso, era necessário definir novos
rumos para a economia, historicamente atrelada ao latifúndio voltado à exportação e que, na
região Oeste do Paraná, era representado pelas obrages (PRIORI, 2012, p. 64).
Assim, em relação ao Oeste do Paraná, buscou-se primeiramente a sua naciona-
lização, que teria compreendido a proibição de uso de outras línguas que não fossem o
português (WACHOWICZ, 1987, p. 142). Essa medida, entretanto, não parece estar
ligada à ocupação e à nacionalização da região mediante a adoção da língua portuguesa
pelos não nacionais ou por aqueles assim classificados. Haveria efetivamente uma subs-
tituição dos habitantes da região. A Campanha de Nacionalização, lançada em 1937,
tinha como destinatários os imigrantes colonizadores, pretendendo evitar a formação

160
de quistos étnicos e reduzir a sua influência em determinados aspectos, como a língua
(SEYFERTH, 2002, p. 140).
Apesar das pessoas que viviam na região, fossem indígenas ou posseiros, a mes-
ma era considerada um sertão desabitado, verdadeira antítese do litoral ocupado (WA-
COWICZ, 1987, p. 142). Sob essa tese de vazio demográfico seria desencadeado um
processo intensivo de colonização do interior de todo o Brasil (PRIORI, 2012, p. 77).
Como estavam ocupadas essas terras, promoveu-se uma substituição das suas gentes,
ignorando-se o direito dos povos originários, que já encontravam crescente proteção
jurídica. Aos caboclos, historicamente preteridos pelos processos oficiais de colonização,
e que por isso ousaram estabelecer posses nessa região isolada, foram negados direitos,
enquanto grandes empreendimentos colonizadores privados, desde as obrages, no caso
paranaense, recebiam concessões estatais (PRIORI, 2012, p. 79).
Em 1924, eram paraguaios os que trabalhavam na construção da estrada entre Guara-
puava e Foz do Iguaçu. Dois anos depois, um ministro austríaco teria dito que, entre Ponta
Grossa e Foz do Iguaçu, somente a cada 90 ou 100 quilômetros se encontrava “uma proprie-
dade de polaco ou de algum índio civilizado”. Em 1928, uma professora de Guaíra ouvia
de seu aluno: “és lindo el Brasil?”. Em Foz do Iguaçu, circulavam como dinheiro o peso
argentino e moedas próprias da prefeitura municipal e das obrages. Em 1937, falava-se por-
tuguês, guarani, castelhano, alemão e polonês nessa cidade fronteiriça. Com a Marcha, então,
pretendia-se a substituição da população da região, formada por brasileiros considerados des-
qualificados, paraguaios e argentinos (WACHOWICZ, 1987, p. 129-131).
A fronteira do Paraná com o Paraguai era uma porta aberta aos estrangeiros, que com
frequência invadiam o país e colocavam em risco a nação (WACHOWICZ, 1987, p. 145).
Então, com a Marcha, buscava-se a delimitação do território e a defesa da fronteira nacional.
A região foi conquistada do Paraguai, quando ainda era colônia espanhola, com o ataque dos
bandeirantes às missões jesuítas4, e houve disputas com a Argentina e entre o Paraná e Santa
Catarina por aquele espaço (PRIORI, 2012, p. 61-63). De fato, até 1946, quando se iniciou
a instalação do município de Toledo, os estrangeiros prevaleceram na região, sendo que 90%
da população de Foz do Iguaçu ainda era de não brasileiros (GRONDIN, 2007, p. 86).
Além das finalidades de ocupação do território, delimitação e defesa das fronteiras, a
produção econômica integrava as pretensões para o Oeste paranaense. A qualidade das suas ter-
ras e o favorecimento da agricultura familiar levou a uma ocupação em pequenas propriedades,
expressando uma nova concepção para a produção agrícola no âmbito da economia nacional.
Em substituição ao latifúndio improdutivo e que favorecia vazios populacionais, teoricamente
a pequena propriedade familiar povoaria o território, formaria uma classe média rural e posicio-
naria a agricultura como setor fornecedor e consumidor de uma estrutura urbana-industrial que
iniciava o seu desenvolvimento no país (PRIORI, 2012, p. 64-65 e p. 83).

4
Saint-Hilaire (1978, p. 17) se refere aos “antigos paulistas em suas bárbaras e aventurosas expedições contra o Paraguai”.

161
Finalmente, existia um objetivo adicional e de maior envergadura no que se refere à
Marcha para o Oeste. É que o predomínio da Argentina na bacia do Prata suscitava a sua
hegemonia continental (CARVALHO, 2013, p. 302). A possibilidade de navegação pelos rios
Paraná e Paraguai, além das ferrovias que a conectavam com o Paraguai, a Bolívia e o Chile
permitiam aos argentinos acesso do Atlântico ao Pacífico e o escoamento das riquezas da região.
Mais que isso, essa integração permitia à nação platina almejar conectar-se também à bacia
amazônica a partir da sua presença na Bolívia, o que consolidaria seu domínio em todo o con-
tinente. Essas constatações são do General Mario Travassos, que em 1931 publicou “Aspectos
Geográficos Sul-Americanos”, o qual em sua segunda edição, de 1935, teria o título “Projeção
Continental do Brasil”, em que propôs a Marcha como importante passo para o Brasil brecar
a construção da hegemonia Argentina na América do Sul (CARVALHO, 2013, p. 520-529).

A BANDEIRA COMO ESTANDARTE

Embora tenham sido heróis brasileiros, se tornaram também os maiores criminosos


de seu tempo.
Em apenas três décadas – as primeiras do século 17 – os bandeirantes e seus mamelucos
mataram ou escravizaram mais de 500 mil índios, destruindo mais de 50 reduções
jesuíticas nas regiões do Guairá, do Itatim e do Tape. […] Transformaram sua capital,
São Paulo, num dos maiores centros de escravagismo indígena de todo o continente.
Mais: fizeram dela uma cidade sem lei – reino de terror, ganância e miséria.

Eduardo Bueno (1997, p. 41).

Bandeira: “expedição armada para ir explorar os sertões ou castigar os selvagens”


(BASTOS, 1929). Essa a definição do Dicionário Etimológico, Prosódico e Ortográfico
da Língua Portuguesa daquela época. As bandeiras aprisionavam e destruíam corpos,
mas a “conquista espiritual” dos indígenas coube aos jesuítas. Em seu acordo com a
burguesia nos séculos iniciais da colônia, a doutrina religiosa amansava o espírito e os
capitalistas extraíam as riquezas materiais, formando as duas faces do mesmo processo
colonizador (CAETANO; PALHARES, 2003, p. 15). Transformados em trabalhadores,
em riquezas, os indígenas foram assim explorados.
As bandeiras foram responsáveis pelo avanço português para além da linha imaginária
de Tordesilhas, onde foram caçar os indígenas domesticados das missões jesuítas e roubar “en-
genhos, gado, trigo ou milho”, com o apoio da Coroa. O rompimento com a Igreja na Europa
levou à perseguição da Companhia de Jesus e acelerou a destruição das reduções jesuítas, no sé-
culo XVIII (CAETANO; PALHARES, 2003, p. 15-17). Avalia-se em 200 a 300 mil o número
de indígenas tomados das missões no então território do Paraguai (RIBEIRO, [s.d.], p. 92).

162
Desde o século XVI houve atuação das bandeiras, em busca de minérios, da ex-
ploração e conquista de novas terras e de indígenas (CAETANO; PALHARES, 2003, p.
16-17), com o que os bandeirantes foram tidos como “os principais responsáveis pela ex-
pansão territorial do Brasil”. No início, porém, as bandeiras eram milícias de segurança
e caça de indígenas. Somente a partir de 1641, quando foram derrotados pelos jesuítas
apoiados pelo governo espanhol, que lhes autorizou o uso de armas em uma disputa por
território, é que passou a predominar a busca pelo ouro, quando um vasto território já
havia sido anexado à colônia portuguesa (BUENO, 1997, p. 43).
Os bandeirantes, termo atribuído aos sertanistas a partir do final do século XVII,
eram “piratas do sertão (…), grupos paramilitares rasgando a mata e caçando homens
– para além da lei e das fronteiras” (BUENO, 1997, p. 41), “homens rústicos, fruto do
cruzamento de raças e culturas, […] símbolo da nova sociedade, gerado pela miscigena-
ção” (CAETANO; PALHARES, 2003, p. 16). Eram brasilíndios, mamelucos, que esta-
beleceriam uma ideologia própria, oposta à neolusitana, que enfrentavam “a odiosidade
jesuítica e a má vontade dos reinóis” (RIBEIRO, 2006, p. 99) e que “tinham muito dos
últimos guerreiros da Reconquista, agarrados a antigas noções de honra, que incluíam o
saque e a escravização do vencido” (WEFFORT, 2006, p. 124).
Funcionavam como mercenários, contratados para a captura de índios, a conquis-
ta de terras e a busca de riquezas. A própria Coroa portuguesa contratou-os para a luta
contra os holandeses, no Nordeste, para enfrentar revoltas indígenas, como na Guerra
dos Bárbaros, e para liquidar o quilombo de Palmares (BUENO, 1997, p. 41, 44 e 47).
A vila de São Paulo teve nas bandeiras a base de sua economia por mais de um
século (BUENO, 1997, p. 42). Afinal, a vila nasceu para a “defesa militar e para a con-
quista do interior”. Estava na “boca do sertão”, sendo criada como base para a partida
das bandeiras, que apesar da sua crueldade com os indígenas e das disputas com os je-
suítas, atuavam também sob o argumento de evangelização dos gentios. Daí que as vilas
militarizadas tinham colégios jesuítas e a fé nessa cruzada religiosa tornava o capelão
indispensável nas bandeiras (WEFFORT, 2006, p. 95-96).
Seria a pobreza de São Paulo que impulsionava os portugueses da vila a se aven-
turar em busca de índios para todos os fins: para uso próprio e para a venda; para re-
posição; para abrir roças; para produzir, caçar e preparar alimentos; para carregar “toda
a carga, ao longo dos mais longos e ásperos caminhos” (RIBEIRO, 2006, p. 95). Ao
morador da vila, então, cabia caçar índios como meio de vida. A miscigenação em São
Paulo, de portugueses com indígenas, ocorreu sobremaneira, tornando-se vila mamelu-
ca, onde se falava “mais a língua-geral [tupi-guarani] do que o português” (SAMPAIO
apud WEFFORT, 125).
No que é o atual Paraná, após os ataques às missões jesuítas no século XVII, as
bandeiras vindas de São Paulo estabeleciam o domínio de sua província sobre os Campos
Gerais, onde as terras eram concedidas a proprietários absentistas, que enviavam seus es-

163
cravos para as frentes colonizadoras e a exploração das terras. Assim, a influência paulista
predominaria no Norte e no Cento dos Campos Gerais, enquanto que no Sul prevaleceu
a influência de Curitiba (WACHOWICZ, 1995, p. 75-76).
A população rural dessa região era quase que totalmente constituída pela mão de
obra escrava, salvo pequenos sitiantes que abasteciam as vilas e comerciavam pelo caminho
de ligação entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, rota do tropeirismo. Enquanto uma
frente avançava para matar ou capturar indígenas e tomar terras, amparada por recursos
privados, outra frente era formada por aqueles que fugiam das áreas já colonizadas, como
era o caso de escravos e “foragidos da lei”, os quais também eram caçados (WACHO-
WICZ, 1995, p. 77-78 e 82-83). O avanço das bandeiras e da colonização sobre o territó-
rio significava, assim, desestruturar sistemas de produção autônomos ou subversivos e to-
mar terras. Despovoavam-se territórios indígenas sob o signo do “bandeirismo defensivo”,
para garantir a segurança das vilas e fazendas (BUENO, 1997, p. 42; WACHOWICZ,
1995, p. 79), o que se ampliou a partir de 1837, quando foi criada, pela Província de São
Paulo, a Companhia de Municipais Permanentes, verdadeira bandeira “armada e muni-
ciada” e que foi responsável pela conquista dos Campos de Palmas (WACHOWICZ apud
HELLER, 2012, p. 93-94 e 150-151).
Com a guerra entre Portugal e Espanha, iniciada em 1761, foi anulado o Tratado
de Madri, de 1750, que estendia o Brasil para Oeste de Tordesilhas até o rio Paraná. Os
espanhóis invadiram o Rio Grande do Sul e chegaram a Santa Catarina. Em resposta, os
portugueses planejaram atacar o Paraguai, para o que precisariam estabelecer vias de acesso
e organizar bases para consolidar a posse e possibilitar investidas. Assim, várias bandeiras
foram empreendidas na segunda metade do século XVIII, com suporte da Coroa, mas
com necessária aplicação de capital privado, e serviram à conquista dos Campos de Guara-
puava, então ocupados por indígenas kaingangs (WACHOWICZ, 1995, p. 85-93).
A bandeira que conquistou essa primeira parte do Terceiro Planalto era composta
por “homens, mulheres e crianças, todos desejosos de obterem terras gratuitamente,
como fora prometido”. E como até o início do século XIX essa conquista não havia se
firmado em definitivo, o próprio rei Dom João VI autorizou a caça e escravidão dos
indígenas para consolidar a conquista do território, “porque todos os meios humanitá-
rios utilizados para reduzi-los falharam” (WACHOWICZ,1995, p. 91-92). As bandeiras
chegaram até os Campos de Palmas, em 1839, concluindo a conformação do Paraná
Tradicional (NADALIN, 2001, p. 51).
No século XX, para seguir essa cruzada de conquista territorial, já não se dispunha mais
da Companhia de Jesus ou das bandeiras dos tempos do Império. Essas instituições estariam
reconfiguradas, chamadas ainda de companhias, ou colonizadoras, sociedades Ltdas. ou S.A.,
em busca de novas riquezas para pilhar, como o mate e a madeira, com seu corpo de guerra for-
mado por jagunços e pelas forças do Estado, repetindo a aproximação das milícias com o poder
militar colonial ou imperial, mas agora com a terra como bem a ser comercializado.

164
O comando para a formação dessas novas bandeiras se deu com a reconstrução
do bandeirante e a sua nomeação como símbolo da Marcha para o Oeste. Apesar de o
padre Antônio Vieira, referência espiritual do Brasil no século XVII, ao comentar sobre
as expedições dos bandeirantes Pedro de Teixeira e Raposo Tavares, ter considerado que
“só deixaram atrás de si exemplo de sua perversão e cobiça, não um único exemplo de
sua fé”, (VIERIA apud WEFFORT, p. 124), no século XX “a bandeira deveria ser a força
moral que inspiraria os brasileiros do século XX a defender em suas fronteiras espirituais,
combateria ideologias exóticas que funcionavam segundo tais teóricos [como Silvio Ro-
mero, Cândido Rondon, Tristão de Araripe, Paulo Prado e Cassiano Ricardo], como
verdadeiros solventes da nacionalidade. O espírito da bandeira deveria ser revificado,
para a grande obra da ‘marcha para o oeste’” (WACHOWICZ, 1987, p. 144).
Nos anos 1940, os historiadores Afonso Taunay e Alfredo Ellis Jr. “deram início
à fabricação do mito bandeirante”, altivo e galhardo, herói (BUENO, 1997, p. 41). O
historiador paranaense Ruy Wachowicz não fala sobre a transformação do bandeirante,
mas aponta como foi elevado a portador dos valores morais da Marcha para o Oeste:

Pra impulsionar um movimento de tanta envergadura, precisavam encontrar uma


força coletiva na nacionalidade, que fosse capaz de movimentar milhares de pes-
soas com o mesmo objetivo. Era preciso encontrar no sub-consciente do povo
brasileiro “um fermento instintivo dos tempos heroicos”.
Esta inspiração foi encontrada num pretenso espírito do bandeirante. A epopéia
do bandeirantismo, dominante nos primeiros séculos da nacionalidade, deveria
fornecer inspiração para um novo sentimento de fronteira.
(...) a bandeira teria estabelecido na História do Brasil, um ritmo para a nação,
para sua cultura, condicionando o comportamento da população. (WACHO-
WICZ, 1987, p. 143)

No Museu Paulista, seis estátuas representam seis bandeiras e o seis estados que
elas conquistaram para o Brasil: Minas, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina, Paraná e o
Rio Grande do Sul (BUENO, 1997, p. 47). No caso do Paraná, o serviço precisava ser
acabado em sua porção ocidental.

165
A MARCHA PARA O OESTE NA PRÁTICA

“… esse processo de colonização ocorreu no limiar entre o progresso e a violência.”

Ângelo Priori (2012, p. 84)

Quem levantou a bandeira da Marcha para o Oeste no Sul do Brasil não foram
mamelucos ou caboclos, o brasileiro típico, miscigenado. Foram os imigrantes que assu-
miram a condição de bandeirantes modernos. Cassiano Ricardo, enquanto embriagava-
se com o espírito bandeirante, queria outro corpo para investir aquela alma: o imigrante
europeu, a quem, em seu poema “Exortação”, apresenta o Brasil e suas gentes, convidan-
do-o a integrar esta nação:

O’ louro imigrante, que trazes


a enxada ao ombro e na roupa em remendos
azuis e amarelos
o mapa de todas as pátrias!
Sobe comigo a este píncaro
e olha a manhã brasileira
que vem despontando, na serra,
qual braçada de flores jogada da Terra.
(...)
O’louro imigrante,
agarra-te à enxada,
semeia o grão de ouro
na terra de esmeralda.
E – semeador –
O’ meu irmão louro,
terás a sensação, terás a graça
de um descobridor!

Apesar de experiências anteriores, como a de Santa Helena, na década de 1920,


também com imigrantes europeus, apenas anos após o lançamento do slogan da Marcha
para o Oeste a colonização da região Oeste do Paraná se iniciaria com vigor. Primeiro
chegou à região Oeste a frente colonizadora do Paraná Tradicional, que partiu dos Cam-
pos de Guarapuava, das colônias de imigrantes europeus do Terceiro Planalto e de La-
ranjeiras do Sul, beneficiando-se da ainda precária estrada Guarapuava-Foz. Alcançaram
as terras baratas de Guaraniaçu e Catanduvas, a Leste de Cascavel, e seguiram também
até Foz do Iguaçu (WACHOWICZ, 1987, p. 182).

166
Em seguida, a frente sulista alcançaria a região, exportando o seu excesso de mão
de obra agrícola a partir de meados da década de 1950, para cidades como São Miguel
do Iguaçu, Santa Helena, Marechal Cândido Rondon, Toledo e Medianeira. A tercei-
ra frente veio do Norte, da agricultura cafeeira, destacando-se a presença de paulistas,
mineiros, capixabas e nordestinos, que chegaram a Guaíra, Terra Roxa, Assis Chateu-
briand, Nova Aurora, Formosa do Oeste, Vera Cruz do Oeste e distrito de Ouro Verde,
em Toledo (WACHOWICZ, 1987, p. 183).
Houve uma prevalência dos paranaenses ao Norte e a Leste da região, bem como
em Foz do Iguaçu. A Oeste, na divisa com o Paraguai, prevaleceram os sulistas, os quais,
entretanto, tiveram menor expressão em municípios como Formosa do Oeste, Terra
Roxa, Nova Aurora, Guaíra e Assis Chateaubriand (WACHOWICZ, 1987, P. 187-188).
Mesmo assim, a colonização não foi homogênea, havendo uma mistura entre as frentes,
mas com a prevalência de uma ou outra, com diferentes intensidades, de acordo com a
região e município. A mistura dos elementos das três frentes e as dinâmicas proporcio-
nadas pelo tempo permitem que se aponte que a cidade de Guaíra, por exemplo, teve
na verdade a prevalência de imigrantes alemães e italianos (SILVA, 2011, p. 30). Além
disso, os paranaenses que chegavam à região davam continuidade a um recente processo
de imigração, tanto de europeus como de sulistas. Mesmo sem considerar esse aspecto,
os sulistas prevaleceram na região, seguidos pelos paranaenses e depois pelos nortistas.
De 1930 a 1975, o município que mais exportou gente para a região foi Santa Rosa, no
Rio Grande do Sul (WACHOWICZ, 1987, p. 189).
A explosão populacional do Oeste paranaense no contexto da Marcha ocorreu em
1953 e 1954, mas durante as décadas seguintes ainda haveria a abertura de novas áreas
para a agricultura. A migração sulista mais intensa ocorreu em 1954-1955, quando a
sua participação na região saltou de 20,8% para 52,8%, prevalecendo até 1960-1961.
Os paulistas tiveram sua maior participação em 1966-1967, com 9,3% da população,
enquanto os mineiros alcançaram 14,3% em 1970-1973, e os nordestinos 7,4% em
1972-1973 (WACHOWICZ, 1985, p. 185-187).
Dentro das frentes também não havia homogeneidade, existindo agricultores
com diferentes condições financeiras e os sem terra, além de comerciantes e prestadores
de serviços. O local para onde migrariam também era determinado de acordo com a
modalidade de colonização que foi estabelecida na prática. Aqueles que tinham mais
capital adquiriam terras de melhor qualidade para a agricultura pretendida, com melho-
res acessos e com maior segurança em relação ao domínio das áreas. Essas pessoas foram
objeto de um trabalho de prospecção de clientela, foram garimpadas em seus locais de
origem por corretores, sem a realização de propaganda para não chamar “aventureiros
e parasitas” (WACHOWICZ, 1987, p. 176-177). Isso ocorreu principalmente na re-
gião de Toledo e Marechal Cândido Rondon, como projeto da Industrial Madeireira e
Colonizadora Rio Paraná S.A. – Maripá, que adquiriu a Fazenda Britânia da argentina

167
Compañia de Maderas del Alto Parana, uma ramificação da inglesa The Alto Paraná Deve-
lopment Company Ltd., possuindo uma área total de mais de 250 mil hectares, cujo título
seria inquestionável (WACHOWICZ, 1987, p. 164 e 180-181).
Aliás, apesar do brado da Marcha para o Oeste e da criação da Fundação Para-
naense de Colonização e Imigração, a região Oeste do Paraná não tinha um projeto
concreto de ocupação, que começou a ganhar contornos mais claros somente a partir de
1946, com a criação de Toledo. Na mesma época, a cidade de Cascavel, então Encruzi-
lha, também se estruturava. Nesse processo, tiveram papel acentuado as colonizadoras
Maripá e Pinho e Terras Ltda., bandeiras modernas, ambas de capital gaúcho-europeu e
que tiveram gestão da dupla Alberto Dancanale e Alfredo Ruaro, os quais carregavam na
bagagem a colonização do Oeste catarinense (GRONDIN, 2007, p. 90-93).
O projeto sulista se expressou com clareza na atuação da Maripá, mas dentro dele
havia também uma cisão. Sob a administração de Dacanale e Ruaro, que eram peritos
na venda de madeira para os argentinos (GRONDIN, 2007, p. 92-93), a Maripá tra-
balharia na região como uma continuidade das obrages: empregava paraguaios e havia
salários pagos com vales descontáveis nos armazéns da empresa (GRONDIN, 2007, p.
160-161). Haveria pouca araucária na região, de modo que a exploração da madeira se
concentraria no cedro. O auge das suas exportações de madeira, que persistia seguindo
pelo rio Paraná abaixo, ocorreria apenas em 1964. Somente após a retirada das madeiras
dos lotes é que estes eram comercializados (WACHOWICZ, 1987, p. 171-172 e 177).
A maioria dos sócios da empresa não tinha experiência em colonização e venda de ma-
deira. Seus principais acionistas eram comerciantes e industriais que tinham atuação
nas colônias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e que pretendiam ampliar seus
negócios na região a ser colonizada (WACHOWICZ, 1987, p. 167; GRONDIN, 2007,
p. 99, 101, 106 e 224; GREGORY apud KLAUCK, 2004, p. 51). Havia “intenções de
estabelecer uma rede articulada, tanto do ponto de vista comercial e empresarial, quanto
do ponto de vista cultural e social” (KLAUCK, 2004, p. 51).
Em 1949, a Maripá passou a ser administrada por Willy Barth (GRONDIN,
2007, p. 234-235), que representaria os acionistas alemães, que detinham cerca de dois
terços da madeireira-colonizadora. A mudança na direção alterou a sua atuação, antes
determinada por seu grupo italiano. Se Toledo receberia maioria de italianos-católicos,
conquanto houvesse grande presença de alemães, Marechal Cândido Rondon seria uma
colônia para alemães-luteranos. A alteração na concepção envolvia uma disputa pelo
comércio nos mercados em formação (GRONDIN, 2007, p. 224) e era também a apli-
cação de uma ideologia étnico-cultural atribuída a Willy Barth, que executaria uma
“nova política [que] não misturava no mesmo local, descendentes de italianos e alemães,
católicos e protestantes. As comunidades deveriam aglutinar pessoas da mesma origem
étnica e religiosa. Elas deveriam conviver pacificamente, com respeito mútuo, porém
viver isoladamente” (WACHOWICZ, 1987, p. 179).

168
A colonização priorizada pela Maripá envolveu pretensões para além da venda de
terras, abraçando a venda de madeiras e o controle do comércio, como foi apontado.
Mas há referências que permitem observar que existiam ainda outros objetivos, pois
haveria um ideal (DALCANALE apud GRONDIN, 2007, p. 91), como a formação de
uma sociedade diferenciada. A colonização realizada pela madeireira-colonizadora cons-
tituiu-se em empreendimento comercial modelo (KLAUCK, 2004, p. 105 e108), o que
exigiu a seleção do imigrante apto a colocar em prática princípios eleitos pelo projeto,
como a união, a solidariedade e a dedicação ao trabalho (GRONDIN, 2007, p. 203,
242; WACHOWICZ, 1987, p. 174-178). Por outro lado, a formação de sociedades es-
truturadas teria sentido para que a madeireira-colonizadora alcançasse os mesmos objeti-
vos já elencados, porque possibilitaria exigir um preço ainda mais alto pelas terras tendo
como propaganda espaços em consolidação, como Toledo, além de constituir mercados
organizados conforme a concepção para a qual foram estabelecidos.
A colonização da Gleba dos Bispos, que mais tarde teria a sua história confundida
com a do município de Missal, do qual faz parte, foi estudada pelo historiador Samuel
Klauck em “Gleba dos Bispos: colonização do Oeste do Paraná – uma experiência cató-
lica de ação social”, obra em que oferece referências, a partir da análise do caso específi-
co, restrito a uma área de 74 km², para a intepretação de como se deu a construção da
memória e da identidade de toda a região. No início da colonização, posta em prática
pela Maripá, houve “uma ‘limpeza’, mais do que ocupação. Limpar as regiões onde não
se registrava presença de habitantes que fossem capazes de promover o desenvolvimento,
a integração e a afirmação política local e estadual”, o que exigiu a seleção de elementos
humanos de um determinado tipo (KLAUCK, 2004, p. 105).
O caso da Gleba dos Bispos tem muito mais a contar sobre a colonização do Oes-
te. Trata-se de um processo de colonização coordenado pela Igreja Católica, que recebeu
terras doadas pelo Estado do Paraná de maneira ilegal, porque inseridas na faixa de fron-
teira. A doação teve como finalidade auxiliar dioceses na formação de seu patrimônio,
conforme Lei Estadual nº 2.672/1956. A diocese de Jacarezinho, uma das beneficiárias,
era dirigida por Dom Geraldo de Proença Sigaud, que foi ativo no enfrentamento da
proposta de reforma agrária da esquerda brasileira, na década de 1960, sendo defensor
da tradição, da família e da propriedade privada e coautor da obra “Reforma Agrária:
Questão de Consciência”, que pautou a posição da ala conservadora da Igreja Católica
em relação à questão agrária brasileira naquele período e propunha a “manutenção do
direito à propriedade privada, da família e do trabalho humano como fontes de bem
estar e harmonia” (KLAUCK, 2004, p. 20-22, 31-32, 109).
Efetivamente, a Igreja teve importante papel na desarticulação dos trabalhado-
res rurais excluídos desse processo que lhes foi hostil, tendo fundado, com apoio dos
proprietários rurais, a Frente Agrária Paranaense – FAP, em 13 de agosto de 1961, na
cidade de Maringá, durante uma missa campal celebrada em frente a sua imponente

169
catedral. Na mesma data e na mesma cidade se iniciava o II Congresso de Lavradores e
Trabalhadores Rurais do Paraná, como preparação para o histórico I Congresso da União
dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), que seria realizado dois meses
depois em Belo Horizonte (PRIORI, 2012, p. 180-198). No processo de conformação das
comunidades na colonização do Oeste paranaense, tanto a Igreja Católica como a Igreja
Luterana tiveram grande participação (YOSHIDA apud KLAUCK, 2004, p. 21), contri-
buindo também para a resolução de conflitos agrários (KLAUCK, 2004, p. 22). E dentro
da Igreja, a ordem dos jesuítas acompanharia os núcleos de colonização (KLAUCK, 2004,
p. 53), restabelecendo sua presença na região mais de três séculos depois.
Em Missal, porém, a Igreja Católica aparece como agente comercial da coloniza-
ção, tendo se integrado à Sociedade de Incremento a Propriedade Agrícola Ltda. – Sipal
Colonizadora, que teve intensa atuação do Padre José Pascoalino Backes, seu primeiro
diretor (KLAUCK, 2004, p. 21, 95 e 108-110), tendo como diretrizes para a colonização
o “‘regime da pequena propriedade rural’, apoiado numa sistemática cooperativista, capaz
de assistir os colonos e suas famílias em suas necessidades sociais, recreativas, educacionais,
religiosas e cívicas” (INDA apud KLAUCK, 2004, p. 23). Como cláusula dos contratos de
compra e venda dos lotes os colonos deveriam aderir à Cooperativa Mista Agrícola Sipal
Ltda. – Camisil, que regeria as relações sociais e daria suporte à instalação das famílias de
imigrantes e ao seu desenvolvimento produtivo e reafirmaria a contribuição dos imigrantes
alemães à introdução do cooperativismo no Brasil. Não por acaso, o Padre Backes também
foi o primeiro presidente da cooperativa (KLAUCK, 2004, p. 24-25, 36, 84 e 90).
Assim, na Gleba dos Bispos seria realizada uma reforma agrária com base nos
princípios cristãos da propriedade privada, da família, do trabalho e da solidariedade.
Era a oportunidade de a Igreja Católica, apoiada pelo Estado e unida com uma empre-
sa comercial, colocar em prática a sua “verdade agrária” como resposta aos problemas
sociais do campo (KLAUCK, 2004, p. 32-34 e 109; FOLHA DE LONDRINA apud
PRIORI, 2012, p. 180). Para que o projeto desse certo, então, foram elencadas exigên-
cias excludentes e que por vezes estiveram expressas: ser alemão, católico e trabalhador
(KLAUCK, 2004, p. 68-69).
A Colonizadora Pinho e Terras Ltda., criada em 1946, também favoreceu a coloni-
zação sulista, inclusive repassando terras a colonizadoras menores, como a Colonizadora
Gaúcha Ltda., a Colonizadora Matelândia Ltda. e a Industrial Agrícola Bento Gonçalves
Ltda., das quais se mantinha como principal acionista, concentrando as maiores extensões
de terras na região, principalmente no eixo Cascavel-Foz do Iguaçu, onde fundou cidades
como São Miguel do Iguaçu e Matelândia, esta uma homenagem ao seu “pioneiro”, o
obrageiro Miguel Matte (RUARO apud GRONDIN, 2007, p. 270-271). São Miguel do
Iguaçu teve preferência de elementos sulistas, mas também foram levados paulistas para o
cultivo de café. A vizinha Santa Terezinha do Itaipu, em 1960, tinha 90% da população
composta por descendentes de italianos (GRONDIN, 2007, p. 269 e 278).

170
Os agricultores com menos recursos buscavam terras mais baratas, em regiões de
terras menos férteis e mais acidentadas, como nos municípios de Catanduvas, Ibema e
Guaraniaçu. Outros optavam por realizar negócios duvidosos em relação à propriedade
da terra, que por essa razão era mais barata. Assim, ocupavam áreas por conta própria,
na condição de posseiros, ou compravam posses ou frações de terras griladas. A omissão
da União, que demorava para conceder as terras devolutas sob a sua competência, e a
articulação entre o Estado do Paraná e as colonizadoras levaram a disputas judiciais que
subsistem décadas depois, expondo gerações a incertezas e os agricultores, proprietários
ou posseiros, à violência de grileiros, jagunços e forças policiais, repetindo episódios co-
muns à ocupação da terra no país (PRIORI, 2012, p. 84-88). Tal fato é reconhecido pela
Justiça Federal, em decisão que resume o histórico da colonização da região:

A problemática das terras no Estado do Paraná iniciou-se quando, na década de


1950, o Governo, nas mãos do então Governador Moyses Lupion, titulou exten-
sas áreas de “terras devolutas” no Oeste do Estado, as quais estavam situadas na
chamada “faixa de fronteira”. Ocorreu, porém, que as pessoas que foram tituladas
pelo Estado do Paraná não foram as mesmas pessoas que, há muitos anos, já ocu-
pavam aquelas terras, seja na condição de proprietários seja na condição de pos-
seiros, pessoas essas que, com seu trabalho e suor, cultivavam-nas e tornaram-nas
produtivas. Narram levantamentos feitos pelo INCRA e pelo Ministério Públi-
co Federal que o Governador, com as titulações, teria buscado beneficiar pessoas
“chegadas” ao poder, as quais não tinham qualquer afinidade com a agricultura,
por isso mesmo que ficaram conhecidas como “agricultores de asfalto”.
O fato é que, de posse dos títulos de propriedade, os titulados pelo Estado do Paraná,
ao verificarem que as terras que adquiriram estavam ocupadas por terceiros e também
que o preço delas subia a cada dia que passava (não só por sua extrema fertilidade, que
propiciava grandes níveis de produção, como também pelo fato da abertura e do asfal-
tamento das estradas, que facilitava o acesso e o escoamento da produção), passaram a
tentar obter a posse física das áreas, às vezes por meios legais (ações judiciais etc.), mas,
na maior parte das terras, fazendo uso da força, contratando, até mesmo, “jagunços”.
Diante desse quadro, é fácil concluir que a violência encontrou terreno fértil para
explodir, como de fato ocorreu. Tanto que foi preciso, em alguns casos, a interven-
ção do Exército. (BRASIL, 2006)

A ausência inicial da União no processo de colonização rendeu-lhe décadas de trabalho


inconcluso e de pendências judiciais, como consta da mesma decisão da Justiça Federal:

Diante dessa situação de insegurança e violência generalizada, o Governo Federal,


por meio do INCRA, teve que agir para que a paz e o progresso voltassem à região.
Resolveu então desapropriar parte daquelas terras, tituladas irregularmente pelo
Estado do Paraná a outras pessoas.
Certo ou errado o procedimento utilizado, o fato é que o INCRA foi bem suce-
dido no seu intento. Com as desapropriações e a outorga de títulos às pessoas que

171
realmente ocupavam e produziam naquelas terras, a paz voltou à região, tanto que
os imóveis, que haviam sofrido razoável desvalorização em razão do conflito, com
o fim desse, novamente voltaram a valorizar-se. (BRASIL, 2006)

Dessa decisão judicial e pelo desenrolar do processo em que foi proferida é possí-
vel concluir sobre como se operou um capítulo da história da Marcha para o Oeste. As
companhias colonizadoras recebiam títulos de domínio do Estado do Paraná, os quais
seriam nulos, pois competiria à União emiti-los sobre a faixa de fronteira. Mesmo assim,
as colonizadoras puderam comercializar as terras à época. Em alguns casos, o Estado do
Paraná concedia outros títulos sobre as mesmas áreas a pessoas próximas do governo.
Daí ocorriam disputas para fazer prevalecer um título nulo sobre outro título nulo, com
a participação de jagunços e das forças públicas. Dada a confusão, a União desapropria-
va a área do segundo titular, e emitia títulos válidos aos ocupantes das terras, talvez os
adquirentes das colonizadoras. Então, as colonizadoras lucravam com títulos nulos e o
Estado do Paraná beneficiava seus asseclas não com a concessão de terras, mas de títulos
de crédito resgatáveis junto à União em suas ações desapropriatórias. Isso ocorria para
fazer valer, com atraso e por vias transversas, a proteção ao posseiro que morava no local,
prevista no artigo 156, da Constituição Federal de 1946.
Nas localidades de Jardinópolis do Iguaçu e Flor da Serra, hoje município de
Serranópolis do Iguaçu, ocorreu uma revolta entre os posseiros, que se mobilizaram
para impedir a continuidade da violência física e psicológica que sofreram de policiais e
jagunços, de quem ouviam que ali “sobraria viúva para fazer sabão” ou que “matar um
homem é que nem matar um mosquito”. Mas não foi só. Dois posseiros foram pegos
pelos jagunços e obrigados a comer esterco de vaca e de galinha e a tomar urina. Depois,
os posseiros receberam panfletos lançados de um avião, em que se lia: “o pagamento
da terra em três dias, ou serão despejados”. Os relatos são do agricultor Abílio Santini
(2001, p. 27), que liderou os agricultores em conflito armado do dia 2 de junho de
1961, quando houve mais de cem mortes (FOLHA DE LONDRINA, 1988, p.14).
Com o fim da ditadura de Vargas em 1945 e a extinção do Território Federal do
Iguaçu, o governador do estado Moysés Lupion buscou promover um “Paraná-Maior”,
com o que estabeleceu uma verdadeira “psicose titulatória” em disputa com a União,
levando à sobreposição de títulos e ao conflito com posseiros, que pretendiam a regula-
rização no que seriam terras devolutas de competência federal. O ex-governador acusava
os elementos da frente nortista de serem responsáveis por desordens e conflitos agrários
(LUPION apud MYSKIW, 2002, p. 69).
Além disso, Lupion buscou beneficiar oligarquias que formavam sociedades co-
lonizadoras como a Pinho e Terra Ltda., que, através de sua subsidiária Agrícola Bento
Gonçalves, comprou 29.040,00 hectares de terras do Estado do Paraná por Cr$ 9,21/
hectare, em 1950, revendendo as terras em lotes seis meses depois pelo valor de Cr$

172
619,83/hectare (COLOMBO, 2001, p. 222-223). À “psicose titulatória” se somava o
“borracheamento”, prática de grilagem promovida pelas colonizadoras, que faziam com
que a soma das pequenas glebas demarcadas superasse o total das terras que deveriam
colonizar (WACHOWICZ, 1987, p. 162).
Outra colonizadora que se beneficiou da atuação ou da omissão, no caso, do
Estado do Paraná sob o governo Lupion, foi a Sociedade Colonizadora União do Oeste
Ltda., que disputou terras na região dos municípios de Nova Aurora e Assis Chateau-
briand, e as vendeu à Colonizadora Norte do Paraná S.A., pertencente a grupo econômi-
co paulista liderado por Oscar Martinez. Conquanto a decisão judicial que reconheceu
a propriedade do imóvel à União do Oeste Ltda. exigisse que fossem respeitados os
posseiros, a Norte do Paraná S.A. chegou ao imóvel com grande quantidade de jagunços
para intimidar as famílias ocupantes da área e possibilitar o seu loteamento. Os possei-
ros se organizaram, roubaram as armas dos jagunços e sequestraram três agrimensores
da colonizadora, que foram levados para a praça da cidade de Nova Aurora. Lá, os
posseiros se reuniram e entoaram coro de desafio à polícia, que era conivente com as
ações criminosas da colonizadora. Os posseiros exigiram a presença do Exército brasi-
leiro, cujo representante informou que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária – Incra resolveria o impasse, já que o imóvel estava na faixa de fronteira e era de
propriedade da União. Diante disso, os posseiros se desmobilizaram, mas no dia seguinte
foram procurados e espancados pela Polícia Militar, que perseguiu, prendeu e torturou
os líderes da revolta (ROMPATTO, 2014).
O enfrentamento dos posseiros ocorria não apenas pelos jagunços, mas era au-
xiliado pelas forças militares do Estado. Para tanto, a Lei de Segurança Nacional de
1935, aprovada no contexto de combate ao comunismo, teve forte repercussão contra os
posseiros e suas tentativas de enfrentamento. Contribuiu para o sucesso da colonização
privada a continuidade de governos militares uma década após a queda de Getúlio Var-
gas, em 1954, os quais se aproveitariam de uma mesma ameaça comunista para rechaçar
os movimentos de luta pela terra. Mais uma coincidência: todos os generais-presidentes
militares de 1964 a 1985 estudaram no Colégio Militar de Porto Alegre, fundado por
Júlio de Castilhos no final do século XIX, onde Vargas também frequentou (BUENO,
1997, p. 256). Ordem e trabalho são virtudes cujos conteúdos seguiriam sendo preen-
chidos com o mesmo caldo ideológico que embalou a Marcha, paulatinamente legiti-
mando-a e consolidando-a.
Assim como na queda do Império, quando o Poder sinalizava concessões sociais,
os golpes militares do século XX significariam a ampliação da repressão às reivindicações
populares e das expressões silenciosas, mas não menos estridentes, de desafio à lei e à
ordem, como era o caso da simples posse da terra nos sertões e das revoltas produzidas
pelos camponeses que foram alijados do processo colonizador moderno. Da mesma for-
ma como combateram em Canudos (Bahia, 1893-1897) e no Contestado (1912-1916),

173
com as Repúblicas militares “as reivindicações sociais diriam respeito à ordem pública,
cabendo aos governos tratar como desordeiros os que ousassem apresentá-las como de-
mandas ao Estado” (WEFFORT, 2006, p. 225), os militares responderiam com força
desproporcional às reivindicações da população rural que não se beneficiou ou que foi
atropelada pela Marcha.
Esses exemplos da prática da Marcha no Oeste do Paraná não compõem a diversida-
des de situações que envolveram o processo, apenas expressam seus contornos mais densos,
distantes dos eloquentes discursos do Poder Público para a colonização da região. Houve
uma diversidade de sujeitos envolvidos, destacando-se o Estado, as empresas colonizadoras
e o colono, que assumiria a condição de mito regional quando pioneiro (KLAUCK, 2004,
p. 45). O tamanho dos lotes destinados também variava, mas teria prevalecido entre as
colonizadoras a venda de parcelas com cerca de 25 hectares (MYSKIW, 2002, p. 68).
Houve diferentes formas de colonizar a região, criando-se cidades que deveriam
conformar uma nova sociedade eleita, voltada ao progresso e ao trabalho, como também
houve a colonização interessada apenas no comércio de terras e a colonização envolven-
do posseiros e grileiros, oferecendo possibilidades muito antes da implantação de sua
moderna agricultura e da consolidação de novos e aquecidos mercados, o que represen-
tou um processo típico da acumulação primária capitalista.
De acordo com Antonio Myskiw (2002, p. 209), haveria mais de 815 mil hec-
tares com sobreposição de títulos e outros aproximados 404 mil hectares ocupados por
grileiros no Oeste do Paraná, em levantamento que considerou os títulos expedidos até
1966. Desde que foi publicado, houve ações judiciais que colocaram sob dúvida outras
dezenas de milhares de hectares na região.
Samuel Klauck (2004, p. 105-106) destaca que a colonização da região teve como
característica a seleção de elemento humano de determinado tipo e representou a re-
forma agrária paranaense do governador Lupion para integrar o território e facilitar a
construção de uma identidade, o que fez com a substituição das populações indesejadas
para essa integração. Foi estratégia do estado, entretanto, “ocultar sua associação com
os propósitos de exclusão e seleção de determinados grupos sociais, como também sua
direta ou indireta interferência nos conflitos de terras e na distribuição de recursos para
os empreendimentos de colonização” (KLAUCK, 2004, p. 107).
A partir dessas possibilidades, as identidades da região tiveram diferentes condi-
ções para ser estabelecidas. A construção de “núcleos comunitários sólidos” favoreceu
o elemento humano sulista, vez que as famílias procedentes de uma mesma região do
Sul foram reunidas em espaços específicos (YOSHIDA apud KLAUCK, 2004, p. 67).
Portanto, os sulistas chegaram com “uma identidade já previamente consolidada” e orga-
nizada, o que permitiria a “sua afirmação sobre diversos grupos que se fixam de maneira
dispersa, e uma valorização dessa memória coletiva de teor étnico, em oposição à memó-
ria individualizada de outros grupos” (KLAUCK, 2004, p. 67-68):

174
As identidades construídas na região, em sua grande maioria priorizam elementos cultu-
rais de origem “estrangeira”, em detrimento do que se poderia considerar manifestações
culturais ligadas aos “brasileiros”. Esta constatação abre caminho para o estabelecimento
de uma dicotomia entre uma coletividade, unida em torno do nós, em oposição aos gru-
pos que não conseguiram, em função da desproporção de recursos humanos, materiais e
simbólicos, estabelecer sua memória de forma expressiva. Essa oposição cria a subjugação
dos últimos, isolando e até mesmo enquadrando suas memórias pela do pólo dominante.
E quando esses grupos – descendentes de mineiros, paulistas, nordestinos – se afirmam,
percebe-se uma reação na memória regional pela sua caracterização como outros. Ser
caracterizado como “alemão”, “italiano”, “polonês, opõe-se à “brasilidade” – uma identi-
dade fluida, inconsistente e inferior, no âmbito das disputas simbólicas.

Existem várias interpretações e leituras para a Marcha, mas ainda conforme


Klauck (2004, p. 93-94, 103 e 113), verifica-se que a memória que se estabelece para o
processo de colonização representa muitas vezes a extrapolação de sucessos individuais,
que são incorporados como próprios de toda a história regional, sufocando e ocultando
os conflitos e a diversidade de situações que efetivamente existiram. “O memorável está
encravado em conflitos” (KLAUCK, 2004, p.100).

SOB A MARCHA

Colombo: Quem morava perto de sua casa?


Hetkowski: Tinha um mestiço bugre, com sobrenome Sanches;
era paraguaio, mas boa gente, um coitado que não se governava.

Leonir Olderico Colombo (2001, p. 148).

A esses homens (e mulheres) que, com sofreguidão e coragem, lutaram e morre-


ram por objetivos comuns e foram até, quem sabe, deixados no anonimato, se deve a
consolidação do progresso e desenvolvimento de toda uma região.
(...)
As conquistas e obras do Toledo de hoje se devem ao mais humilde paraguaio,
abridor de estradas e clareiras, construtor de jangadas dentro d’água; (...)
Aos primeiros couberam as maiores adversidades e nem por isso desanimaram,
nem por isso soçobraram nas enseadas de fracassos e sofrimentos. Heroicamente, fortale-
cidos por um espírito unitário, de garra e força de vontade, esses pioneiros conquistaram
um lugar ao sol, vislumbraram um novo horizonte. A eles (e elas) a eterna homenagem
de Toledo, obra de suas e nossas mãos.
(SILVA apud GRONDIN, 2007, p. 261-262).

175
A história permite manipulações, leituras e releituras, reconstruções que transfor-
mam e geram disputas. O filósofo francês Paul Valéry advertiu, em 1931:

A História é o produto mais perigoso que a química do cérebro elaborou. As suas


propriedades são bem conhecidas. Faz sonhar, embriaga os povos, gera-lhes falsas
memórias, exagera-lhes os reflexos, nutre-lhes as velhas mágoas, atormenta-os no
repouso, condu-los ao delírio das grandezas ou ao da perseguição e torna as na-
ções amargas, arrogantes, insuportáveis e vaidosas. (VALÉRY apud BERNARDO,
2015, p. 1.348)

Na Marcha para o Oeste, a história criou heróis e vilões, os quais exalta e per-
segue. A historiografia produzida representa olhares parciais, que são recorrentes em
discursos – ou silêncios – que reafirmam exclusões e violações de direitos próprias de
toda a ocupação territorial do país desde a chegada dos europeus. Assim, relegam a um
passado distante, aquele que existe apenas na história, a realidade que se perpetua inde-
finidamente e que se observa no correr do século XXI.
Existem sujeitos ocultos, que não estiveram de um ou outro lado da Marcha,
senão sob ela, e por isso não aparecem em seus registros ou tiveram somente uma parti-
cipação transitória, desaparecendo em seguida, ao menos da história, consumidos pelo
decurso do tempo. A esses sujeitos, quando muito, restou um “muito obrigado” ou um
espaço entre parênteses, fazendo constar que estavam ali, que participaram do processo,
em sua humildade e subserviência aos verdadeiros protagonistas do grandioso feito.

A supressão dos outros, cujas memórias foram apagadas ou esquecidas, estaria


justificada, como diria [Michael] Pollak, pelos interesses dominantes sobre o que
lembrar e o que esquecer, a partir do ponto de vista de quem está produzindo a
memória e forjando uma identidade. (KLAUCK, 2004, p. 94)

Pelo Oeste vagavam, também, aqueles que já haviam sobrado no processo de co-
lonização das demais regiões do Paraná. Esse processo, que apontaria para uma carência
de terras, contrastava com o histórico de concessões que o Estado promovia sobre o seu
território aos estrangeiros, inclusive das obrages. O imigrante traria a redenção ao bra-
sileiro, em detrimento de camponeses pobres e indígenas, que não poderiam integrar o
projeto nacional, quanto mais ter a utopia de sua autonomia.
A nova ordem que invadiu o Oeste do Paraná, conquanto possa ser grata ao suor
cansado de quem enfrentava as tarefas mais duras, reconhecia como trabalho apenas
um tipo próprio de agricultura, de coordenação da mão de obra, de comercialização de
terras. E é com esse trabalho que se pode acessar o direito de propriedade ou dele dispor.
Existem, assim, elementos humanos que não foram deliberadamente excluídos, mas que
foram verdadeiramente ignorados ou lançados como inimigos da conquista almejada.

176
Somente os elementos “preparados” para a pequena propriedade e para o tra-
balho intenso na agricultura que se implantaria é que poderiam acessar as terras. Esse
não era o caso dos humanos que já viviam sobre essas terras, porque inaptos segundo os
pressupostos eleitos pelos estranhos a chegar. E como a natureza que então existia não
era própria para o desenvolvimento da chamada moderna agricultura e do modelo de
organização social pretendidos, houve a necessidade de conversão de toda a paisagem,
com a destruição da floresta, a implantação de vias de acesso e a estruturação de cidades
(WACHOWICZ, 1987, p. 166 e 181).
Nesse cenário de transformações, estiveram ocultos os trabalhadores rurais sem terra,
representados principalmente pelos caboclos, conquanto muitos sulistas tenham chegado ou
sido sujeitados à mesma condição, e os indígenas, que perderam não apenas o seu território,
mas a própria natureza nele contida, o que impossibilitou a manutenção de seus modos pró-
prios de vida. Esse destino foi traçado desde a chegada dos primeiros portugueses e ganhou
contornos mais nítidos com as políticas de colonização-imigração do século XIX:

Negros e mestiços, categorizados como “bárbaros”, deviam desempenhar apenas


um papel coadjuvante na colonização (isso quando sua “participação” era cogi-
tada) – a eles cabia desbravar a floresta, conforme se verifica em alguns textos
anteriores à abolição (...).
(...)
A menção às incursões indígenas estancadas pela presença colonizadora mostra o
lugar reservado aos nativos, designados por um termo depreciativo (bugres) – o
desaparecimento. Com a intensificação dos assentamentos, os remanescentes se-
riam impiedosamente “caçados” pelos bugreiros, categorizados como selvagens,
antítese da civilização “européia” trazida pela colonização.
(...)
Nesse contexto, o colono não é percebido apenas na sua condição de trabalhador
rural, mas visualizado como um pequeno produtor e portador de civilização. Es-
cravos, ex-escravos, negros, mulatos, enfim, as camadas inferiores (literalmente) da
sociedade estavam automaticamente excluídas, inclusive no debate sobre imigra-
ção preferencial. (SEYFERTH, 2002, p. 120, 122 e 125)

Essa condição de coadjuvantes justificou o massacre dos caboclos na Guerra do
Contestado, desqualificados pelo estigma da mestiçagem com indígenas e por sua “su-
posta tendência ao nomadismo” (SEYFERTH, 2002, p. 138). Estranha, portanto, a
analogia de Cassiano Ricardo (apud WACHOWICZ, 1987, p. 143), para quem, “do
mesmo modo que se explica a mobilidade tupi pelo instinto hereditário do nomadismo,
explica-se o dinamismo social que hoje caracteriza as nossas populações pelo instinto
hereditário do bandeirismo, ou seja, pela herança do movimento”.
Dentre os seus vários personagens, a Marcha colocaria em evidência caboclos e
pioneiros, mas cada um com o seu lugar para ocupar na história:

177
A conquista de novas terras também fez surgir na nossa história e cultura local e
cotidiana os termos “caboclos” e “pioneiros”, que ainda são usados com frequên-
cia. O “caboclo” é a definição de misturas de várias raças que neste país chegaram,
e que desempenhavam todos os trabalhos mais brutais, desgastantes e desprovidos
de riquezas. O “pioneiro”, termo utilizado com muita frequência após o processo
de revolução industrial, identifica aquele que ocupou terras em meio ao sertão, o
pioneirismo pode ser interpretado como modernas relações de trabalho rural, no
sentido de expansão da exploração da terra. Muitas vezes, o termo “caboclo” foi
utilizado de forma pejorativa, por sua própria condição de vida. No oeste para-
naense, também era chamado de “mensu” (guarani moderno) pelos Obrageiros.
(COLOMBO, 2001, p. 3)

Os indígenas guaranis, por sua vez, não chegaram com a Marcha, mas a rece-
beram e já em situação de extrema desvantagem. Foram vítimas de repetidas ações de
conquista, ilegalmente feitos escravos nos dois lados da linha Tordesilhas. Os jesuítas os
reduziram aos pequenos espaços das missões para a conversão espiritual, liberando o seu
território para a colonização. Os bandeirantes destruíram esses reduzidos espaços para
escravizá-los e dizimá-los. Portugueses e espanhóis, e depois brasileiros, argentinos, uru-
guaios e paraguaios disputaram suas terras, explorando-os e exterminando-os.
Pelo Tratado de Madri, de 1750, Portugal entregou à Espanha a Colônia de Sacra-
mento e recebeu, em troca, a região dos Sete Povos das Missões, ocupada pelos guaranis.
As nações europeias negociaram entre si o território alheio, que pertencia aos guaranis. Os
espanhóis deveriam entregar aos lusitanos a terra desocupada, do que resultou a tentativa
frustrada de transferência dos indígenas, ocasionando o que seria a primeira guerra guara-
nítica5 (1750-1756), na qual foi morto o lendário Sepé Tiaraju. Espanhóis e portugueses
empenharam-se para por em prática ao menos esse acordo, unindo-se para massacrar os
guaranis. Apesar do extermínio, a região se tornou definitivamente domínio português
somente em 1801, com a assinatura do Tratado de Badajoz. Em razão dos conflitos e dis-
putas sobre o território indígena, a população guarani caiu de 25 mil para 14 mil indígenas
entre 1767 e 1801 (QUADROS; ARINOS apud CARVALHO, 2013, p. 290-293).
A Guerra do Paraguai também foi uma guerra entre nações que ocorreu sobre
território indígena e contra eles, trazendo graves repercussões para os guaranis, que eram
tidos como inimigos paraguaios e que por isso foram massacrados pela Tríplice Aliança
entre Argentina, Brasil e Uruguai, na qual lutou o pai de Getúlio Vargas. Durante a
guerra, em solo brasileiro, promoveu-se uma chacina do povo guarani. O resultado para
a população paraguaia, especialmente para os guaranis, que seriam maioria nas tropas
paraguaias, foram trágicos: metade da população masculina de todo o país teria sido eli-
minada e 95% dos soldados teria morrido nos combates (BUENO, 1997, p. 153-144).
Apesar disso, os guaranis não deixaram de existir e o Paraguai seguiu com a marcante

5
Os ataques bandeirantes às missões não deixam de ser uma guerra precedente.

178
presença indígena. Não por acaso, já no século XXI, um militar brasileiro ainda se refere
ao Paraguai como “território guarani” (SILVA, 2011, p. 88-89).
A terceira guerra guaranítica seria a conquista do Oeste gaúcho, já no século XX,
com a implantação de novas colônias de imigrantes europeus, formando-se cidades como
Santa Rosa. Daí se vê que o elemento gaúcho-europeu que subiria ao Oeste do Paraná
tinha bagagem histórica para enfrentar os indígenas e conquistar a fronteira guarani.
E as obrages os exploraram até a exaustão, destruíram boa parte da riqueza de seus ter-
ritórios. Na melhor das hipóteses, os guaranis estariam integrados como produtores e consu-
midores na economia regional, mas com status muito baixo (WACHOWICZ, 1987, p. 47).
Assim como o tempo transformou as bandeiras em colonizadoras, as guerras fo-
ram convertidas em formas de conquista mais sutis, porém não menos violentas. Apesar
do nome pelo qual a região era considerada, não se reconhecia a existência de indígenas
na “fronteira guarani”. E estes, integrados ou não, por certo não tomariam a iniciativa
de reivindicar a proteção constitucional que lhes protegia o território. O artigo 154, da
Constituição de 1937, ou o artigo 216, da Constituição de 1946, eram a arma que os
brancos criaram para os índios deles se defenderem. Como não sabiam utilizar o direito
para se defender, menos ainda para atacar, os guaranis foram alcançados pela Marcha
totalmente desprotegidos. O Serviço de Proteção ao Índio – SPI, que já operava nessa
época, foi o braço do Estado especializado na limpeza das terras indígenas para o avanço
de frentes colonizadoras, além de ser perito na exploração dos recursos naturais e da mão
de obra indígenas (PARANÁ, 2014, p. 640-641). E a política de colonização-imigração
brasileira a partir do século XIX sempre abarcou a necessidade de oferecer garantias em
relação à propriedade, enquanto se manteve o arquivamento das leis que protegiam os
indígenas e as suas terras desde o século XVII (CARVALHO, 2013, p. 60).
É nessas condições que os guaranis foram alcançados pelos novos bandeirantes,
representantes da identidade nacional que não incorporaria, mas varreria o elemento in-
dígena. O bandeirante moderno, que no Sul consolidaria a imigração europeia com uma
geração de nacionais, não era mais um transgressor da lei, mas tinha espírito de iniciati-
va; não era um aventureiro, mas buscava povoar e trabalhar; não promovia a expansão de
latifúndios, mas da pequena propriedade; era a antítese do colonialismo escravista que
relegou a agricultura brasileira ao atraso (NADALIN, 2001, p. 80 e 90-91); e era porta-
dor da herança do movimento, mas não do “nomadismo tupi”. O guarani, por sua vez,
que tem como a fonte da sua existência o caminhar constante, o guata (SILVA, 2007, p.
148), foi violado, sufocado e condenado.
Porém, durante todo esse processo histórico, “não são os próprios Guarani que
relatam sua história, e sim o ‘outro’” (CARVALHO, 2013, p. 261). São unilaterais os
discursos que moldam a imagem do bandeirante e que, ao mesmo tempo, recriam o in-
dígena como sua antítese. Enquanto o bandeirante pioneiro vinha com o trabalho, a fé,
a família, a pequena propriedade e o progresso, o guarani era um ser à toa, desgarrado, à

179
disposição para ser explorado, errante, selvagem, profano, sem terra, sem ambição, sem
família, sem pátria.
Tratou-se do resultado do contato de mais de um século desde a abertura dos por-
tos (1808), a partir de quando o Brasil recebeu “um ávido enxame de sábios, cientistas e
naturalistas”, cujos trabalhos publicados na Europa estimularia a vinda de novos viajantes
(BUENO, 1997, p. 97) e de imigrantes, mas que também colocariam a nação diante de um
espelho que desenharia o seu reflexo a partir da valorizada visão europeia, com as suas oblite-
rações. É longa a descrição do paranaense, do sulista, desse brasileiro feita por Saint-Hilaire,
considerado por muitos estudiosos das expedições científicas ao Brasil como o maior viajante
que o percorreu (BUENO, 1997, p. 104), o que fez entre 1816 e 1822, permitindo a com-
preensão da representação da qual nos envergonharíamos e, portanto, buscaríamos nos livrar:

Apesar da amenidade do clima, os habitantes desse distrito não são menos indolen-
tes do que os das zonas mais setentrionais do Brasil. O digno homem que exercia, à
época de minha viagem, as funções de capitão-mor era obrigado a demarcar a quan-
tidade de terra que cada um devia semear, metendo na cadeia, de vez em quando,
alguns preguiçosos, a fim de intimidar os outros. A cultura do trigo, que iria trazer
tantos benefícios, só pôde ser introduzida na região à custa de imposições e ameaças,
e se os pessegueiros são atualmente tão comuns ao redor de todos os sítios, é porque
o capitão-mor obrigou os agricultores a plantá-los. Ali não é o calor excessivo que
causa preguiça nos homens, eles se tornam indolentes porque têm poucas neces-
sidades e não se acham habituados ao luxo; além do mais, a fecundidade da terra,
bem como a doçura do cima, não exige deles grandes esforços. Em Curitiba, como
ocorre em todo o Brasil setentrional, o cultivo da terra não necessita mais do que
dois meses de cuidados. Dez meses de descanso habituam os homens à ociosidade, e
quando chega o momento de trabalhar ninguém se sente com coragem para isso. A
espécie humana é por natureza inclinada ao repouso, e os povos mais laboriosos da
Europa deixariam sê-lo em pouco tempo se pudessem prover às suas necessidades e
caprichos sem que precisassem trabalhar. Entre nós, europeus, a emulação contribui
também para afastar muita gente da ociosidade, mas até agora esse nobre sentimento
– forçoso é confessar – ainda é bastante raro entre os brasileiros. Contudo, veremos
a seguir o que conseguiu o capitão-mor de Curitiba nesse sentido, aos estimular a
vaidade das mulheres e o seu gosto pelos enfeites. O capitão me disse que as terras
mais bem cultivadas do seu distrito eram habitadas unicamente por pobres criaturas
cujos maridos tinham fugido dali para escapara à tirania do Coronel Diogo6. Cada
uma dessas mulheres, desejando possuir uma corrente de ouro, brincos e algumas
roupas decentes, punha-se a trabalhar para conseguir isso. Quando o capitão-mor
notava que uma delas estava mais mal trajada do que as outras, procurava fazer com
que ela se envergonhasse disso, incentivando-a assim a trabalhar para igualar-se às
suas vizinhas. (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 80)
6
Conforme o próprio Saint-Hilaire (1978, p. 49-50), o Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, para construir a
estrada até Guarapuava, que permitiria a conquista dessa vertente do Terceiro Planalto paranaense, forçou moradores
dos Campos Gerais a trabalhar na obra, sem receber pagamento, o que fez com que a maioria fugisse para o Sul para não
“ter de se embrenhar novamente naqueles sertões infestados de selvagens (...) longe de suas mulheres e de seus filhos”.

180
A desconstrução dos guaranis também carregaria um sentido mais profundo desafia-
dor de brios. É que o indígena subverte o heroísmo do colonizador, suplanta o pioneirismo
de quem chega depois. Ao alcançar um ambiente em que não poderia sobreviver e depois
de buscar inclusive mão de obra presidiária no Sul, o colonizador apelava à contratação da
mão de obra indígena, que tinha o “organismo aclimatado à região”, não se assustava com
os insetos e era mais rápida na derrubada da floresta, de onde brotava, enquanto que os exi-
gentes trabalhadores do Sul abandonavam o projeto (GRONDIN, 2007, p. 137-138, 143,
146 e 217). Assim, antes de ser retirado de cena e ocultado da história, o guarani receberia o
encargo de transformar a natureza em espaço confortável para que o altivo pioneiro pudesse
penetrar e fecundar a terra com a sua semente (GRONDIN, 2007, p. 242).

Nos primeiros anos, os pioneiros de Toledo, tiveram que conviver com umas quatro
ou cinco famílias de índios que moravam na região. Estavam localizados “onde é hoje
o campo de aviação”. Essas famílias indígenas, em torno de 20 pessoas, eram restos
de uma tribo que nas décadas anteriores havia entrado em contato com o homem
branco em Catanduvas. O pastor J. Pawelke, informa que estas famílias teriam sido
levadas em1956 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) à reserva indígena, existente
no então município de Laranjeiras do Sul. (WACHOWICZ, 1987, p. 170)

A tribo, existindo, seria somente um resto, tal qual o indígena seria apenas um meio
guarani, porque moderno e civilizado. Conquanto Ruy Wachowicz tenha se dedicado a um
estudo minucioso sobre composição da população do Oeste do Paraná, com dados sobre
a origem e local de ocupação, os indígenas foram ignorados em seu trabalho, aparecendo,
como “guaranis modernos” ou paraguaios. Apesar de admitir a existência de indígenas que
viviam nas matas, que seriam os caiuás (WACHOWICZ, 1987, p. 47), nenhum desses ele-
mentos entrou em seus cômputos populacionais ou mereceu qualquer análise quanto à sua
posição em relação à colonização da região. A forma como a população indígena foi desloca-
da, de maneira ilegal, se eram quatro ou cinco famílias, umas vinte pessoas, nada disso im-
portou em um estudo repleto de preciosismos numéricos e de atenção à legislação referente à
posse e à propriedade da terra. Como “restos”, restava aos indígenas desaparecer.
São outros relatos de meados do século XX, da formação do município de Toledo:

[Seriam] uns 30 e poucos brasileiros, alguns poloneses e uns 40 paraguaios. No


começo, os paraguaios dormiam lá também; depois passaram a dormir onde era
o refeitório. Quando começou a ter mais gente, dormiam onde dava. Às vezes,
os paraguaios davam um jeito: faziam rancho de sapé... uma casinha de folhas e
coqueiros e aí dormiam separados. (RUARO apud GRONDIN, 2007, p. 132)

Era bonito de se ver, na hora do almoço, quando todos se reuniam em grupos.


Era o grupo dos italianos, o dos alemães, dos polacos, dos paraguaios e dos bugres.
(NIEDERAUER apud GRONDIN, 2007, p. 147)

181
Ainda, no distrito de Bom Princípio, instalado no imóvel Lopei, da obrage Nuñez
e Gibaja, “só morava um casal de ‘bugres’. Eram bons vizinhos e visitavam frequentemente
os novos colonos” (GRONDIN, 2007, p. 281). O uso repetitivo do termo pejorativo “bu-
gre” associado a outros adjetivos envolveu a palavra com uma aura folclórica e romântica
que lhe outorgou o direito de ser usada sem pudores pelos simpáticos não índios. É o caso
do sociólogo e economista Marcelo Grondin, em seu livro “O Alvorecer de Toledo”, onde
teve a polidez de referir-se aos “restos” como “remanescentes”, ainda condenados a desapa-
recer. Antes, porém, foram imortalizados em uma fotografia (GRONDIN, 2007, p. 251)
para ilustrar as virtudes dos pioneiros e conferir maior emoção a suas histórias.
Na região de atuação da Maripá, nem a política étnico-cultural-religiosa aplicada
por Willy Barth, que respeitava as diferenças entre imigrantes e organizava núcleos sepa-
rados para italianos-católicos e alemães-luteranos, poderia admitir o reconhecimento do
território indígena em mínima parte que fosse. Toledo, diferente das “vilas étnico-sociais”
de colonização coordenada por Barth, seria uma cidade “pluri-étnico-religiosa”. Mesmo
assim, toda a diversidade da região seria reduzida a “aproximadamente 60% de alemães,
35% de italianos e 5% de poloneses e outras etnias” (GRONDIN, 2007, p. 239), ocultan-
do-se dessas contas outros vários elementos que participaram da sua construção.
O contato, a interação entre povos não era algo novo, já havia se estabelecido de
várias formas no Brasil e na região. Antonio Marcos Myskiw, ao comentar a obra “Cami-
nhos e Fronteiras”, de Sérgio Buarque de Holanda, aponta que os portugueses, e não os
indígenas, é que passaram por um processo de aculturação. Efetivamente se vê no bandei-
rante a assimilação “dos hábitos, costumes e conhecimentos indígenas para sobreviver” em
um ambiente novo e exótico (MYSKIW, 2008, p. 121). O contato com os jesuítas não
conteve o extermínio físico dos indígenas e possibilitou aos guaranis incorporar elementos
que reforçaram sua identidade, apesar das condições em que o relacionamento se deu. E há
sujeitos que estiveram entre os guaranis e estabeleceram relações mais recíprocas, como se
pode supor, por exemplo de Cabeza de Vaca, Moysés Bertoni e Curt “Nimuendaju”, apesar
de seus variados propósitos. O bandeirante moderno, porém, não veio disposto a trocas,
mas decidido a impor ao ambiente o seu modo de ser, com a exclusão dos indígenas e a
negação de seus hábitos, que subsistiram reinventados para o folclore regional.
A transformação do espaço e o transcurso do tempo municiaram o discurso da
colonização. O que era território guarani tornou-se colônia espanhola do Paraguai e, de-
pois, Brasil. O guarani virou paraguaio, mas não foi eleito brasileiro, pelo que deveria ser
eliminado da terra conquistada. A conversão, porém, não se deu com a presença, mas com
a ausência do colonizador. A destruição das missões jesuítas no século XVII deixou para
trás dezenas de milhares de guaranis, pois nem todas as reduções foram destruídas. Além
disso, havia indígenas que não se integravam ao projeto jesuíta ou outros que retornaram
após a destruição das vilas pelos bandeirantes. Esses guaranis se autodenominavam cainguá
ou “gente da floresta”, sendo identificados no Oeste paranaense em diversos momentos até

182
a Marcha alcançá-los (CARVALHO, 2013, p. 295-303; MYSKIW, 2002, p. 65-66; MY-
SKIW, 2008, p.169-171, 174 e 197). Também eram chamados kaiowás ou caiuás, “habi-
tantes da mata”, termo que foi até recentemente empregado para referir-se indistintamente
aos subgrupos mbya, ñandeva (Avá-Guarani) e kaiowá (FUNAI, 2009, p. 32).
Ruy Wachowicz, quando admite a presença indígena no Oeste paranaense, refe-
re-se aos caiuás, “que internaram-se nas matas” (1987, p. 47) e que teriam construído
malocas nas margens das estradas da obrage de Allica, após esta ter sido desmantelada e
a floresta ter iniciado sua regeneração (1987, p. 66). Ou ainda, quando aponta uma das
localidades de conflito com os revolucionários de 1924, o Porto São José, na margem
do rio Paraná, próximo da cidade de Guaíra e cujas “matas adjacentes foram desbastadas
por um grupo de índios caiuá, que ali viviam” (WACHOWICZ, 1987, p. 87-88).
Apesar disso, passados três séculos dos ataques às missões e posta em prática a
Marcha sobre aquele espaço descolonizado, seriam encontrados homens

de estatura média, corpo sólido, sua pele tinha aquela cor saudável, puxando o cobre.
A maioria tinha também os olhos puxados, mais ou menos japoneses. Falavam língua
estranha, se bem que compreensível, pois era muito parecida com o castelhano dos ar-
gentinos, que todo gaúcho conhecia. Mas quando falavam entre si, nada mais dava para
entender. Finalmente descobriu-se que eram paraguaios. Disseram ter vindo do rio Para-
ná.(...) Pareciam meio índios. (NIEDERAUER apud GRONDIN, 2007, p. 143 e 146)

Eram “parecidos”, mas não eram. Eram “meio”, mas não eram. Porque o tempo e o
discurso os converteram em bugres, paraguaios, paraguaios refugiados (WACHOWICZ,
1987, p. 176), em mensus, em guaranis modernos, selvagens civilizados pelo comércio,
pelo trabalho escravo das obrages, pela abertura das matas para as colonizadoras. Não
eram, conquanto guardassem a língua própria, poderoso elemento cultural que possibilita
sua representação própria do universo (RAFFESTIN apud CARVALHO, 2013, p. 483), a
qual resistiu às brutais colonizações espanhola e portuguesa, a campanhas de nacionaliza-
ção e políticas integracionistas. Não eram, apesar de que as mulheres parissem de cócoras
no mato (WACHOWICZ, 1987, p. 43; PACIORNIK, 1991, p. 100).
O trabalho do antropólogo Egon Schaden “Aspectos Fundamentais da Cultura
Guarani”, fruto de estudos realizados entre 1946 e 1954 sobre os guaranis desde o Oeste
de Santa Catarina ao Mato Grosso do Sul, envolvendo as etnias mbya, kayová e ñande-
va, é, por essas circunstâncias, bastante esclarecedor no que se refere às condições desses
indígenas, que ele avaliou sob a perspectiva da aculturação e dos resultados do contato
com a “civilização ocidental” (SCHADEN, 1962, p. 5). Que fale o próprio Schaden:

(...) é notório que a cultura Guaraní e o seu substrato biológico estão profusa-
mente representados na atual população mestiça, mormente do Paraguai, tendo
aí dado origem a uma cultura híbrida ibero-indígena sui generis, merecedora de

183
cuidadosa análise antropológica sobretudo por causa de sua multiplicidade de as-
pectos, variando entre formas quase-tribais e rurais, de um lado, e culturas urbanas
de acentuado caráter civilizatório do outro.
Mas também aqueles grupos remanescentes da antiga “nação Guaraní”, que na
composição étnica e na forma de vida se conservaram índios, estão longe de apre-
sentar homogeneidade cultural em todos os aspectos. (...)
(...) os Guaraní da atualidade constituem um dos exemplos mais instrutivos para o
estudo das consequências de situações de contato entre populações aborígenes ame-
ricanas e culturas de tipo ocidental. Nenhuma tribo ameríndia parece ter sido sub-
metida, nestes quatro séculos, às influências de tão variadas situações interculturais.
Quem quer que procure conhecer em suas próprias aldeias os índios Guaraní da atua-
lidade, não deixa de perceber desde logo que certos domínios de sua cultura se apre-
sentam inteiramente abertos a influências estranhas, ao passo que em outros é extraor-
dinariamente forte o apego aos padrões tradicionais. (SCHADEN, 1962, p.18-19)

Conquanto alguns historiadores julguem que os guaranis alcançados pela Mar-


cha eram “modernos” e “civilizados”, já “aculturados”, Schaden (1962, p. 25-32) encon-
trava, no mesmo momento, índios contrários ou temerosos à medição de sua estatura,
semelhantes aos japoneses, a ponto de serem presos durante a Segunda Guerra Mundial,
e também de características caboclas, apesar de não miscigenados; praticantes de rezas
diárias, que guardavam forte apego a sua religião inacessível aos não índios; e que prefe-
riam as matas aos campos.
Por outro lado, ao analisar relações de trabalho e de produção, Wachowicz inter-
preta que a Marcha para o Oeste substitui os mensus (paraguaios, guaranis modernos)
pelo colono (1987, p. 166), sem esclarecer para onde foi a mão de obra substituída. Existe
apenas uma pista quando fala que os colonizadores “apelaram” ao trabalho dos paraguaios
de “pernas grossas e inchadas” (PATUÍ apud WACHOWICZ, 1987, p. 169), já que

muitos mensus paraguaios ainda permaneciam na região, sobretudo na margem


do Paraná.
(...)
Dessa forma, o trabalho mais pesado, mais difícil, de derrubada da mata, e a
construção da estrada entre Toledo e Porto Britânia, foram obras dos guarani
modernos paraguaios. (WACHOWICZ, 1987, p. 169)

O mesmo historiador é expresso na análise dos elementos humanos que foram


preteridos na colonização da Fazenda Britânia pela Maripá, onde não consta referência
ao mensu, ao paraguaio, ao guarani moderno, muito menos aos “restos” (WACHO-
WICZ, 1987, p. 175). É como analisar a abolição da escravidão e a substituição da
mão de obra negra pela do imigrante utilizando a liberdade para fazer desaparecer da
história os escravos. Esse desaparecimento é tratado com ironia, quando se afirma que os
guaranis desapareceram por um “passe de mágica” (RIBEIRO apud CONRADI, 2007,

184
p. 35), e com suavidade, ao se alegar que aqueles que insistiam em existir “cederam”
lugar ao desenvolvimento (SAATKAMP apud CONRADI, 2007, p. 35-36). Apesar do
sumiço histórico e de uma suposta integração social, a Marcha encontraria ao menos 32
aldeias guarani no Oeste paranaense (CARVALHO, 2013, p. 297-327).

Sem dúvida estamos buscando e resgatando, assumindo definitivamente o apelido


e a identificação que o povo do nosso município detém a nível de região oeste “O
alemão de Missal”.
Esta é a primeira edição [da Festa Alemã de Missal – Deutsch Fest], certamente
irá mexer e dar o regresso ao sistema simples e alegre em que este povo viveu no
transcorrer dos anos passados e ainda muitas famílias vivem atualmente. O resgate
da nossa cultura, gastronomia e alegria de viver do povo alemão.
Estendemos o convite a todas as etnias para que prestigiem a nossa festa. Sem
dúvida, estaremos transmitindo às futuras gerações, os nossos costumes. (SCH-
NEIDERS apud KLAUCK, 2004, p. 45)

Ao colonizador, ocupando nova terra, seria possível manter e reproduzir seus costu-
mes ancestrais, reafirmando, fortalecendo e celebrando a sua identidade. Ao guarani não
caberia sequer o direito de se reconhecer como tal. O indígena tornou-se estrangeiro em
sua própria terra (BRUM, 2013), sem fazer parte da identidade nacional e sem ter direitos.
Nessa “corda bamba”, foi empurrado para “aquém ou além dos limites estabelecidos pelos
países fronteiriços” (CARVALHO, 2013, p. 288). A Constituição de 1946 carregava em
sua concepção um indígena transformado, civilizado, moralizado, mutilado, exterminado,
convertido, parte da comunhão nacional como mão de obra barata. Não seria mais indíge-
na, sem a sua terra que possibilitava o seu modo de viver. Não viveria mais no mato, rouba-
do e destruído. Sem ser indígena não teria mais direito à terra. Como um passe de mágica.
Isso não deixa de ser, portanto, uma estratégia de construção da história para
consolidação da Marcha, vez que se trata de um processo recente e envolvido por ques-
tionamentos legais e morais. Por isso é que, mesmo que os nomes indígenas estejam pre-
sentes em cidades, vilas, rios ou até mesmo em estabelecimentos comerciais, os guaranis
são ignorados ou negados como elementos humanos. Se existe farta produção histórica
sobre a Marcha para o Oeste, mesmo que crítica, são irrisórios os registros da versão dos
indígenas sobre os fatos, ocultados e silenciados que foram por esse processo, que lhes
impôs “um segundo genocídio ao apaga-los da história” (CTI, 2013, p. 5).
Valorizada a oralidade guarani, escuta-se que o Estado, através de seus órgãos fun-
diário e indígena, desalojou as aldeias Colônia Guarani, em Foz do Iguaçu, e de Toledo, de
onde os indígenas foram levados para a Terra Indígena Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras,
de predomínio caingangue, etnia que esteve em conflito histórico com os guaranis. “Alguns,
não querendo ir, fugiram para o Paraguai. Eles davam tiro na perna de quem fugia. Muitos
voltaram”, conta Honório, indígena de Oco’y (apud CARVALHO, 2013, p. 304-305).

185
A criação do Parque Nacional do Iguaçu, através do Decreto-lei nº 1.035/1939,
também impactou negativamente os guaranis. O que era território indígena passou a
compor uma unidade de conservação ambiental da sociedade envolvente. Se fora do par-
que os guaranis eram um obstáculo ao desenvolvimento, dentro dele eram considerados
uma ameaça à natureza e ao deleite dos turistas. Maria Lucia Brant de Carvalho ouviu
o relato da indígena Narcisa Tacua Catu de Almeida, o qual cita e comenta em sua tese:

“Nasci no Oco’y-Jacutinga em 1924. Fui morar na Aldeia Guarani em 1934. Mo-


rei ali até 1943. Morava umas 50 família na aldeia Guarani, perto do Rio Iguaçu,
lá onde hoje é o Parque Nacional do Iguaçu”. Afirma que na década de 1940, hou-
ve um massacre, que ela e sua família assistiram escondidos, emocionada, descreve:
“(...) guerra com os índio para tira os Guarani da terra: Eu vi, eu vi, mataram tudo!
Jogavam os índios nas Catarata, abriam a barriga com facão e jogava depois nas
Catarata (do Iguaçu)”. Enquanto falava, demonstrava com as mãos, o corte a facão
que era feito, do baixo ventre ao coração. Indagada do porque o corte dessa forma,
ela afirma: “era para o corpo não boiá, pra afundar! O cacique da aldeia Guarani
(Téve) e a mulher dele (Aispis) foram tudo morto, e jogado nas Catarata.
(...)
Ao indagar a ela qual a direção das aldeias, ela apontou para o Hotel de luxo
existente em frente ás Cataratas e afirmou: “É aqui mesmo. Aqui era a Aldeia
Guarani”. Nesse momento da visita Dona Narcisa permaneceu um longo tempo
olhando para o local, muito constrita, séria e calada. Um senhor Guarani que
também acompanhava a visita e também foi antigo morador da atual UC, revelou
sua tristeza ao visitar a referida Unidade de Conservação: “Os branco usa a terra
(da UC) para brincar, passear e ganhar dinheiro, enquanto que nós precisamo da
terra para viver...” (CARVALHO, 2013, p. 329-331)

O relatório do Centro de Trabalho Indigenista – CTI “Violações dos direitos


humanos e territoriais dos Guarani no oeste do Paraná (1946-1988): subsídios para a
Comissão Nacional da Verdade”, produzido pelo antropólogo Ian Packer, contém vários
depoimentos de guaranis, os quais registram o aliciamento para o trabalho na abertura
de estradas, inclusive pelo Exército, e o avanço das frentes colonizadoras. No Anexo 1 do
relatório está a íntegra dos diálogos.

(...) os índios se espalharam, com a chegada do Exército [instalação do quartel em


Guaíra, em 1947]. Uns foram pra cá, e outros foram pro Mato Grosso do Sul e
outros foram pro Paraguai.
(...)
Então esses Guarani, como o Onório né, eram os Guarani mais velhos, que de-
viam ter lá uns 20 ano, e que foram pra trabalhar no quartel, porque precisava de
pião né. Como eu era garotão, piá, não voltei, só voltei com 20 anos de idade pra
Guaíra. E os Guarani, a maioria foram massacrados, mortos, os que não quiseram
morrer tiveram que vazar de lá pra sobreviver...porque o Guarani era como um

186
bicho. Um bicho. Era a mesma coisa como quando passa um quati, um veado, os
Branco pegam a espingarda e ó, vão atrás, vão matar. Então, o Guarani era perse-
guido e considerado um animal.
[Depoimento de Pivo Benites]

Isso foi quando eu nasci, mais ou menos em 1948. E daí pegaram o meu pai,
minha mãe e o parente tudo e usavam pra abrir picada, picada aqui picada ali, até
outra cidade. Pra fazer entrada por aqui, por essa região. E quando ele faz todas as
picadas, vem o fazendeiro de toda parte. Vem com avião. E põe a estaca, a baliza.
E daí pegavam os índios com força, polícia federal, e mandava fazer a picada pras
fazendas. Fazia a picada onde tinha posto a baliza pra fazer a fazenda. Pra dividir a
terra. Vinha a polícia e o fazendeiro. Ia dividindo. E daí quando ele faz tudo isso
aí, daí mataram todos os índios. E quando nós tava aqui, o fazendeiro mandava
outra turma de pistoleiro e matava tudo também. Pra fazer fazenda. Isso foi em
toda parte, toda parte é fazenda. Onde era tekoha virou fazenda.
[Depoimento de Assunção Benites]

Na época do Exército, quando começaram Foz do Iguaçu, abrindo o caminho, até


Guaíra né, aí pegaram os indígenas Guarani, aonde eles estão, pra trabalhar né?!
Naquela época não tem trator né?! Então eles pegaram os índios Guarani pra abrir
o caminho, com machado, pra abrir estrada.
(...)
Meu pai nasceu lá no Paraguai, mas minha mãe nasceu aqui no Brasil. Só que ela
nasceu em outro lugar, em Toledo, ela sempre contava história de Toledo. Nasceu
ali, cresceu ali. E daí eu acho que na época dos colonizadores também que corre-
ram todos os parentes e ela passou pro Paraguai. Daí que ela encontrou o meu pai
e depois voltou pra Jakutinga.
(...)
Minha mãe contava que quando ela foi pro Paraguai alguns parentes ficaram em
Toledo, Maripá, não sei aonde...e daí que ela contava a história que quando ela
passou pro Paraguai, ela soube a notícia que tinham levado todos os parentes dela
pra Laranjeiras do Sul, que ali a área é maior. Então o SPI pegava os indígenas pra
levar pra aquela aldeia....
[Ian Packer] - Pegaram os índios de qual região?
Acho que pegaram de Toledo, aqui de Santa Helena, do Rio Branco, aí pegaram
né?! Pegaram e levaram....e conforme a história que ela contou levaram como gado
né?! Porque trouxeram caminhão, pegava assim, colocava dentro e levava....é aon-
de é uma aldeia Kaingang né? Ali é uma aldeia maior, então era pra juntar tudo....
eles pensavam que o índio era igual né?! Mas é diferente! Então levaram tudo, as
famílias que viviam na região.
[Depoimento de Pedro Alves]

Em 1954, 1955 eu fui no quartel. Daí dei baixa em 1956. Tinha mais 7 índios que
foram pro quartel junto. Tinha o Jaílton, ele tirou o diploma de cabo. E o Carnei-
ro também pegou o diploma de sargento. Tudo era índio. Terra Roxa eu conheço
tudo de quando estava no quartel, porque nós fazia caminhada até Terra Roxa e ali

187
pro lado de Cidade Real. Então por ali eu fui conhecendo...Inclusive, depois uma
companhia entrou lá pra fazer aquela estrada de Guaíra até Foz do Iguaçú. Depois
que eu saí do quartel eu trabalhei naquela estrada. Os outros índios também tra-
balhou. Derrubava madeira assim com machado, cortava com machado. E onde
tinha uma serrinha assim a gente emparelhava com a enxada, com o enxadão.
Então era tudo isso que a gente conheceu lá.
[Depoimento de Honório Benites]

Antes de 1946, por aí, tamo em Lope’i, tem família grande ali. Tem tudo minhas
avós, meus tios, naquele tempo... eu era piá, não sabia que tinha FUNAI [SPI] né?
Depois apareceu FUNAI e mandaram a firma, que tava em Toledo, mandava...
deu queixa...não sei o que fez o índio...mandaram pra Laranjeiras...expulsaram lá
de Lope’i e mandaram lá pra Laranjeiras. Isso eu sei. Mas eu não estava mais com
meus parentes...estava pro Paraguai né?!
[Depoimento de Gregório Benites]

Sou índia pura. Porque antigamente nós tinha bastante terra, os Brancos tiraram,
tomaram tudo, igual aqui...aldeia é muito pequena. E tem bastante criança aqui....
essa aqui é minha família. Antigamente tinha bastante terra, nós fazia casa onde
nós quer. Agora não, ficamos aqui no meio do Branco, num pedacinho de terra.
Pra plantar também já é pouco. E agora é assim, Antigamente não. Nós tinha roça,
plantava mandioca, batata, milho, cana. Mas roça livre pra nós, e mato também.
Agora não.
[Depoimento de Irma Almeida]

Damásio Martines detalha o triste e angustiante episódio em que seu pai foi as-
sassinado e ele, buscando denunciar o ocorrido e solicitar providências às autoridades
legalmente instituídas, acaba sendo arbitraria e ilegalmente preso sob a acusação de ma-
tar o próprio pai.

Damásio: estava começando a escurecer, a gente estava tomando chimarrão. E


tinha uma lâmpada acesa e as mulheres estavam na casa fazendo comida. E daí
o cachorro começou a latir. Eu não dei muita importância, era uma pessoa que
estava vindo... “quem é que está vindo? Cuidado com o cachorro...”. E começou
a atirar. Eu sentei e tinha uma criança nos meus braços. Quando deram os tiros
eu já vi o meu pai deitado no chão. Três tiros. Foi bem rápido. Então eu derrubei
a criança e entrei rápido em casa. Peguei um yvyra para, peguei a lanterna e sai
rápido. E a pessoa estava atrás de um pé de pocan. O tiro tinha vindo de lá. Foram
os Brancos porque eles já tinham vindo pedir pro meu pai as terras e o meu pai
não quis dar. Ele era tipo um cacique. Ele era o mais velho. Foram os Brancos que
mandaram o jagunço. Depois que o meu pai morreu as pessoas começaram a sair.
Uns foram pro Mato Grosso, outros pro Paraguai, outros pro centro.
Paulínia: e depois que o seu pai foi morto você foi atrás da pessoa ou não?
Damásio: de manhã eu segui e depois eu fui depor, pra contar o que é que aconte-
ceu com meu pai. Quando eu estava perto da Bela Vista eu cruzei com os policiais.

188
Eles vieram e perguntaram “Aonde você está indo?”. “Eu estou indo contar o que
aconteceu com o meu pai, para contar”. E eles falaram, “vamos lá ver”.
Paulínia: sozinho?
Damásio: sim. Eles perguntaram quem que matou meu pai. Eu respondi, “não
sei”. Era de noite, ele estava atrás do pé de pocan. E me levaram na delegacia.
E falaram pra mim que eu é que tinha matado meu pai. Eu disse, “mas eu não
tenho. Como vocês dizem que fui eu que matei meu pai?”. E me prenderam. E eu
falei que não tinha sido eu, e o policial disse que ouviu falar que tinha sido eu. Eu
jamais faria isso com meu pai.
Paulínia: e te prenderam? Quantos anos?
Damásio: eu fiquei 6 meses até me levarem pro corpo de jurados.

Da perspectiva dos indígenas, a Marcha para o Oeste foi um processo acelerado


de catástrofe. Espiritual e fisicamente domados, destruída a natureza que os confor-
mava e que cultivavam, e violados etnicamente ou mesmo como cidadãos brasileiros,
os guaranis encontrados pela Marcha estavam historicamente mortos, relegados ao
passado, existindo como espectros de uma outra realidade sepultada pelo tempo. O
espaço que lhes foi reservado é o de figurantes em lendas e memórias que engrande-
cem as aventuras, enaltecem a moralidade e a fé, enobrecem o trabalho e valorizam o
triunfo dos colonizadores.

PARA UMA CONCLUSÃO

“Civilizar é afugentar os índios, apossar-se das terras, explorar as matas e os


minérios, cultivar a terra e fazer nascer uma comunidade portadora de valo-
res e anseios que se encaixem na ideologia do progresso e da modernidade.”

Antonio Marcos Myskiw (2008, p. 99).

A conjuntura econômica e política mundial e brasileira da primeira metade do


século XX conduziram à decisão pela realização da Marcha para o Oeste, a qual deter-
minou a colonização do Oeste paranaense. Esse processo foi concebido por um Estado
centralizador, que buscava protagonizar a organização social no momento em que a
sociedade passava pelo aceleramento de uma transição de imensa magnitude: deixaria de
ser rural para ser urbana e a sua economia essencialmente agrícola agregaria o poder de
produção da indústria, o que converteria grandes estamentos nacionais formados desde
o período colonial. É o caso dos latifúndios, áreas agrícolas de extensas dimensões e im-
produtivas, remodelados para ampliar a sua produção com menos gente no campo para
atender não apenas uma maior quantidade de estômagos nas cidades, mas também para
alimentar as máquinas da indústria.

189
Tal a importância desse momento que antecipamos uma conclusão em ama-
durecimento de que a conformação histórica do Brasil contempla uma divisão entre o
antes e o depois dessa grande mudança, porque uma vasta gama de aspectos culturais,
econômicos, políticos, sociais e geográficos, sofreu um câmbio definitivo somente com
essa transformação, de modo tão acentuado como na abertura dos portos, a Indepen-
dência (1822), e a Proclamação da República, por exemplo. São instantes que reúnem
em si toda a força de transformações de ocorreram em um período histórico, em deter-
minado espaço, assim como a Marcha para o Oeste e a sua repercussão sobre território
paranaense se somaram para construir um Brasil urbano-industrial.
Para a sociedade integral, nacional, hegemônica que se formava e se fortalecia,
aquele seria um momento de desabrochar, de se revelar e crescer, em acumulação e em
dimensão. A integração unia o que jamais esteve separado, a não ser por uma concep-
ção moderna: política, economia, artes, agricultura, fé, identidade, poder (WEFFORT,
2012, p. 250-253). Encerrava-se um longo ciclo de imigrações de estrangeiros que se
incorporavam à sociedade nacional para dar os contornos de uma identidade em cons-
trução para legitimar a sua própria expansão, que estabeleceu novos limites territoriais
para a sua ideologia. Não se tratou de um projeto do Estado, porque a sua realização teve
muito das iniciativas privadas, das colonizadoras e dos pioneiros, que expressaram suas
pretensões com a própria execução da Marcha. Aliás, ao longo do desenvolvimento do
trabalho, perguntamo-nos repetidamente se o colonizador seria sujeito ou objeto desse
processo. Agora, questionaríamos em que medida o Estado é que foi objeto da coloniza-
ção, observando aqui também a ausência de limites entre essa instituição e a sociedade,
de modo que haveria uma falsa dicotomia entre sujeito e objeto.
Quanto aos trabalhadores rurais e aos indígenas, porém, esse momento histórico
não converteu paradigmas. Pelo contrário, com eufemismos e um “muito obrigado”,
perpetuou-se a negação de direitos, manteve-se a exploração servil e agravou-se a inviabi-
lização da reprodução de modos de vida diversos. Os novos territórios não serviram para
assentar a mão de obra historicamente excluída da propriedade privada da terra, formada
principalmente por negros e caboclos, mas foram destinados novamente às oligarquias,
como no Brasil colonial, e aos imigrantes, como ocorreu desde o Império. Adensou-se o
eclipse que assombra quem não integra a sociedade hegemônica. Povos indígenas, qui-
lombolas e camponeses seguem invisibilizados, temporária ou definitivamente.
A Marcha para o Oeste pode ser considerada inconclusa. Fatos posteriores aos
que foram tratados colaboraram para preenchê-la, como a construção da usina hidrelé-
trica de Itaipu, que submergiu terras indígenas e áreas de colonos, a desintrusão do
Parque Nacional do Iguaçu e a modernização agrícola induzida como política de Esta-
do, convertendo o sertão paranaense em um celeiro de grãos (KLAUCK, 2004, p. 77).
Porém, a Marcha ainda segue seu curso, sua operação indefinida, com a produção de
discursos que a legitimam e outros que buscam desestabilizá-la para suscitar outras vias.

190
A força com que as suas concepções integraram a sociedade dominante, entretanto,
tem feito prevalecer a reprodução e o aprofundamento de seus efeitos perniciosos para o
ambiente e para as gentes, inclusive com a produção de pareceres judiciais e a revogação de
leis por outras que buscam corrigir, mas também referendar, as ilegalidades e imoralidades
do passado, como é o caso da Lei nº 13.178/2015, com a qual a União prorrogou o prazo
reiteradamente prorrogado para ratificar, agora de uma maneira bastante simplificada, os
títulos de terra expedidos de modo ilegal pelo Estado do Paraná na faixa de fronteira. A lei
não veio para beneficiar a pequena propriedade símbolo da ocupação do Oeste paranaense,
que já se encontrava amparada por leis anteriores. Veio com a finalidade de beneficiar grandes
proprietários nas terras já concentradas pela continuidade da Marcha capitalista.

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195
BAGATELAS E BEDENGÓS: EMPRESAS COLONIZADORAS NA FOR-
MAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA NO PARANÁ 1940-1960

Jefferson de Oliveira Salles1

– Como Seu Doutor-coronel? Então era preciso documen-


to das terras? Porque, se ali haviam nascido, se ali haviam mor-
rido seus antepassados, haviam trabalhado, vivido sem nunca
precisarem de documento [...]. Depois apareceu ele, Schüller,
ostentando o título de Coronel das Terras do Ivaí, orgulhoso
com o documento na mão, a esfregá-lo nas fuças de quem
não quisesse acreditar, como dizia o povo. […] Havia uma
justiça além do direito dos caboclos. (VAZ, 1976, p. 18)

INTRODUÇÃO

O presente texto faz uma breve revisão bibliográfica acerca do papel das gran-
des empresas colonizadoras na formação da propriedade rural no Paraná entre 1940 e
19602, dialogando com a literatura acadêmica e também fontes documentais – livros de
memórias de dirigentes de colonizadoras, Diário Oficial do Estado, registros da Junta
Comercial do Paraná e sentenças judiciais.
Para iniciarmos o texto é importante salientarmos duas questões: A primeira re-
fere-se à ocupação das terras no período que, na visão de parte da historiografia cons-
titui-se em um “vazio demográfico”. Pesquisas recentes e relatos de produzidos entre
1900-1930 demonstram que havia presença indígena (Xetá, Kaingang e Guarani) bem
como por camponeses. Estes agentes sociais apareceram na historiografia utilizada sob as
categorias “mensus”, “caboclos”, “guaranis modernos”, “colonos”, “sitiantes”, “pequenos
lavradores”, “trabalhadores rurais”, “sem terras”, “sertanejos””3. Ocupavam as terras em
que as colonizadoras atuaram e, mesmo que a existência destas populações não seja obje-
to do presente artigo, é importante salientar que as terras tão diligentemente distribuídas
pelo Estado4 e/ou União, por serem, na opinião destes, fartas e despovoadas, eram habi-
tadas por diferentes grupos sociais, os quais possuíam inclusive diferentes concepções de

1
Historiador, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e assessor técnico do Centro de Apoio
as Promotorias de Direitos Constitucionais do Ministério Público do Estado do Paraná.
2
Parte deste texto é fruto de minha contribuição ao relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado do Paraná
referente a Graves Violações de Direitos Humanos no Campo – 1946-1988.
3
Em relação a estas categorias do campesinato consultar MACHADO; WESTPHALEN; BALHANA,1968, e WA-
CHOWICZ, 1982 e 1985.
4
Salvo indicação contrária, “Estado” será utilizado como sinônimo de governo do Paraná e União do governo federal.

196
uso – as quais, muitas vezes, estavam abrigadas na legislação vigente, tais como posse e
ocupação de terras indígenas.
A ação das colonizadoras foi marcada pela busca da privatização das terras e da
política de reterritorialização, contando para isto com apoio do Estado e da União por
meio da instalação de “descendentes de europeus” usualmente chamados de “colonos”
ou “fazendeiros”, associando reorganização do espaço pela substituição de indígenas e
caboclos por euro-brasileiros. Este ideário sustentou-se no princípio de que europeus
tinham condições morais superiores (em específico, apreço pelo trabalho e pela proprie-
dade) como afirmou o diretor de uma das maiores colonizadores paranaenses, a Cleve-
lândia Industrial e Territorial Limitada (CITLA):

Ocorre que com o tempo houve a valorização da terra e a maioria dos posseiros,
caboclos, não resistia, vendendo sua posse pela melhor oferta, pois não tinha con-
dições de explorar a terra ocupada por não ter a formação e cultura do trato da
terra, transmitidos a estes por seus pais, avós, enfim ascendentes que imigraram da
Itália e sempre trabalharam. (FEDER, 2001, p.41)

A população almejada para (re)ocupar a região deveria ser composta por mi-
grantes euro-brasileiros oriundos do Rio Grande do Sul. A tentativa de substituir uma
população por outra misturou, portanto, a apropriação privada da terra por parte do
capital e a segregação de determinados grupos étnico – salientando que, em muitos casos
também estes colonos foram expulsos. Para a bibliografia utilizada os principais respon-
sáveis por atos de violência contra indígenas e camponeses eram “grileiros”, “grandes
proprietários”, “[proprietários de] latifúndios agropastoris”, “papa terras”, “capitalistas”,
“figurões da cidade”, “obrages”, “companhias de colonização”, “agricultores do asfalto”,
“fazendeiros”, “grupos poderosos”, rotineiramente utilizando “guascas”, “bandoleiros”,
“capangas”, “pistoleiros de ofício” e “jagunços”, que muitas vezes atuavam de forma
paralela ou complementar à “força policial”.
Apenas referindo-se a conflitos fundiários ocorridos em nosso recorte tempo-
ral, registram-se casos envolvendo centenas de famílias e milhares de hectares de terra:
Guerra de Porecatu (1945-52); Revolta dos Colonos do Sudoeste (1955-1960). Além
destes enfrentamentos ocorreram vários outros de menor escala: em Jaguariaíva e Sengés
(1946-1949); Guaíra (1955); Guaraniaçu (1956); Campo Mourão e Paranavaí (1948 e
1952 e novamente no início de 1960); Assis Chateaubriand (final da década de 1950);
Cascavel e Goioerê (final da década de 1950 até 1961); Alto Paraná (1961), Serranópolis
do Iguaçu (1961), Revolta de Três Barras do Paraná (1961). Em 1972, conflitos eclodi-
ram em Leônidas Marques, Altônia e Diamante d’Oeste. Esta situação levou Brasil Pi-
nheiro Machado, então professor do Departamento de História da Universidade Federal
do Paraná (UFPR), ex-Procurador-Geral e ex-Interventor do Estado, a afirmar que na
década de 1950 a “Polícia estadual está mobilizada exclusivamente a serviço das grandes

197
questões de terra” (MACHADO; WESTPHALEN; BALHANA, 1968, p. 39)5. A estes
casos seguiram-se outros durante a Ditadura Militar, tendo como fundo o direito e uso
da terra e relações trabalhistas (PARANÁ, 2014).
As concessões de terras e mesmo as transações entre empresas eram bastante ne-
bulosas no que se refere às relações entre agentes públicos e privados, com claro objeti-
vo de gerar ganhos para particulares. Como podemos ver em diversas declarações dos
propritários-dirigentes das empresas o uso do poder político de “amigos” ou sócios que
ocupavam cargos no legislativo ou executivo foi largamente usado. Grandes extensões
de terra eram adquiridas por bagatelas. Por outro lado, considerando que estas mesmas
terras estavam ocupadas por uma variedade de sujeitos, sua desintrusão era bastante
complicada. Como não poderia deixar de ser, os diferentes sujeitos sociais que ocupavam
estas áreas tinham percepção de tal quadro, como o cacique Ferreira, liderança de um
grupo Kaingang que habitava a região do médio rio Tibagi, próximo a serra do Cadeado
(Norte do Paraná). Segundo sua interpretação, citada em relato de 1910 produzido pelo
capitão Ozório, inspetor do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o cacique “chamou de
bendegó6 [coisa descomunal], termo de gíria aplicado às concessões escandalosas [de
terras feitas pelo governo estadual]” (OZÓRIO apud MOTA, 2014 p. 378-379).
A segunda questão refere-se a disputas entre agentes hegemônicos – seja de uma
colonizadora específica contra União ou Estado do Paraná ou das colonizadoras entre
si. Casos como estes são extremamente relevantes para compreensão da constituição da
estrutura fundiária paranaense, sem mudar sua orientação.
Embora os autores se refiram a casos de esbulho e violência, afirmam que a op-
ção do governo estadual pela colonização privada objetivou (e, na maioria dos casos,
fracassou) o combate à grilagem de terras públicas, visto que as colonizadoras teriam
que lotear as terras (parcelá-las) - mapas indicando a sobreposição de grilos e concessões
encontram-se nos anexos desta obra.
Genericamente, toda a ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas
para o patrimônio de terceiros constitui uma grilagem ou grilo, que tem seu início em
escritórios e se consolida no campo mediante a imissão na posse de terras. A grilagem de
terras acontece normalmente com a conivência de serventuários de Cartórios de Registro
Imobiliário que, muitas vezes, registram áreas sobrepostas umas às outras - ou seja, elas
só existem no papel. Há também a conivência direta e indireta de órgãos governamen-

5
Sobre os agentes sociais envolvidos e localização destes conflitos consultar MACHADO; WESTPHALEN; BALHA-
NA, 1968, p. 30-33 e 40-49; GOMES, 1986; MISKIW, 2002; CRESTANI, 2012; PRIORI, 2000.
6
Segundo o Dicionário Aulete Digital, a palavra bendengó significa “coisa descomunal”. O mesmo significado consta no
Dicionário Houaiss, segundo o qual a palavra em origem tapuia (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 432). Em relação ao
termo “bendegó” o historiador Nílson Thomé, autor diversas obras sobre o Contestado, refere-se este termo em relação
transações terras na região limítrofe entre Paraná e Santa Catarina onde ocorreu a gerra do Contestado com a expressão
“Vendas suspeitas de terras no Contestado, do Estado para especuladores – bendegós”. Disponível em <http://nilson-
contestado.blogspot.com.br/>, acesso 10 ago. 2016.

198
tais, que admitem a titulação de terras devolutas estaduais ou federais a correligionários
do poder, a laranjas ou mesmo a fantasmas - pessoas fictícias, nomes criados apenas para
levar a fraude a cabo nos cartórios. Depois de obter o registro no cartório de títulos de
imóveis, o fraudador repetia o mesmo procedimento no Instituto de Terras do Estado,
no Cadastro do Incra e junto à Receita Federal. Seu objetivo era obter registros cruzados
que dessem à fraude uma aparência de consistente legalidade. (MDA/INCRA, 2000)
Esta medida, caso obtivesse sucesso, asseguraria a média e pequena propriedade
e seu uso produtivo, evitando a intrusão desordenada das mesmas terras. Segundo este
raciocínio, a atuação destas empresas caracterizou-se “economia capitalista moderna” e
gerou “grande riqueza agrícola”, principalmente no que se refere aos “colonos” instala-
dos com a garantia da “certeza da propriedade”. Os autores afirmam ainda que foi neste
período que se consolidou a “ocupação” do Estado. Parte da bibliografia consultada
demonstra o inverso, que os métodos de apropriação das terras públicas habitadas segui-
ram: uso privado da coisa pública, troca de favores e violência. Estes interesses, embora
tenham enfrentando contradições internas e algum tipo de oposição, eram hegemônicos
e determinaram em larga medida a política fundiária estatal. Identificarmos no presente
texto ligações entre grupos empresariais e detentores do mando político estatal buscando
compreender a política de concessão de terras, aspecto essencial da política econômica.
A análise inter-relacionada destes aspectos é parte do

estudo do processo de formulação da política econômica, isto é, de constituição da


hegemonia, é importante inclusive do ponto de vista teórico-metodológico, pois
contribui para provar que a correspondência entre output estatal, no caso a políti-
ca econômica, e os interesses de uma classe ou fração não é meramente acidental.
(PERISSINOTTO, 1994, p. 27).

Para concluir esta introdução salientamos que, embora não nos aprofundemos
em detalhes, estamos cientes que a ação do grupo hegemônico não ocorreu sem contra-
dições internas explicitadas, por exemplo, nas disputas pontuais entre grandes coloniza-
doras como veremos abaixo, mas tal fato em nenhum momento significou o questiona-
mento de que as terras públicas deveriam ser repassadas para iniciativa privada.

199
PRIMÓRDIOS DA COLONIZAÇÃO: CONCESSÕES
DO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX

“Que culpa tenho eu de ter comprado 200 mil alqueires [440.000 ha] de terras, que
ninguém queria, pelo preço de uma caixa de fósforos.” Mario Fontana, fundador,
proprietário e diretor da CITLA (FEDER, 2001, página de rosto s. n.).

As primeiras tentativas de exploração de caráter empresarial das terras paranaenses


ocorreram no início no final do século XIX e início do XX com a “concessão” de centenas
milhares de hectares de terras públicas da União e Estado para extrativismo de madeira e
mate (casos das obrages como a Companhia de Maderas del Alto Paraná, a MARIPÁ, bene-
ficiada com a Fazenda Britânia, que possuía de 251 mil hectares; Matte Laranjeira com 87
mil hectares; Petry, Mayer e Azambuja; Nuñes y Gibaja; a Domingos Barthe, entre outras)
ou a título de pagamento prévio de construção de ferrovias: caso da Cia. Estrada de Ferro
São Paulo-Rio Grande e outras, levando a um quadro que, segundo declaração de 1944 do
Interventor Manoel Ribas, levou o Estado a uma luta contra “grileiros” que se apossaram de
cerca de 5,9 milhões de hectares de terras, ou seja, mais de um quarto de seu território (WES-
TPHALEN, MACHADO e BALHANA, 1968, p.05-06). Números estes que se somam a
outras concessões gigantescas, como a Paraná Plantations Limited7.
A maior parte das concessões estava na região Oeste e Norte paranaense ainda não
apropriadas pela oligarquia terratenente que explorava a criação extensiva de gado e extra-
tivismo de erva mate e madeira. Praticamente todos os contratos de concessões não foram
cumpridos pelos beneficiários, sendo as reservas extrativistas utilizadas de forma predatória
e a venda de terras ocorria de forma especulativa, levando o Estado a tentar reaver estas
terras por meio de decretos dos governos do Estado e Federal. Estes e outros decretos e
medidas administrativas, como era de se esperar, foram questionados juridicamente por
proprietários das empresas, organizados em grupos de interesse com forte intervenção
nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo nas esferas Municipal, Estadual e Federal.
Como veremos algumas destas disputas judiciais envolvendo empresas, Estado e União,
iniciadas na década de 1930, chegaram até os dias atuais. A longa duração de tais disputas
explica-se pelo fato de que os contratos de concessão foram negociados, principalmente
na década de 1940, com “companhias colonizadoras” privadas, levando ao surgimento de
empresas como Companhia Brasileira de Viação e Comércio (BRAVIACO, fundada na
década de 1910, adquirida na década de 1940 por um grupo de empresários capitaneado
por Oscar Martinez), Colonizadora Norte do Paraná (CNP), Pinho & Terras e CITLA.

7
Decreto Imperial 10.432 de 09/11/1889 relativo a concessão de para construção de ferrovias (WACHOWICZ, 1971,
p. 302). Decreto Presidencial 4.166 de 1942 cancelou títulos da Petry, Mayer e Azambuja (COLODEL, 1988, p. 208-
209). Sobre obrages consultar o capítulo referente a este tema. Sobre as medidas do Estado e União para reaver as terras
consultar LAZIER, 1986, p. 38 e 41; COLODEL, 1988, p. 208-209; e MACHADO; WESTPHALEN; BALHANA,
1968, p. 7 e 49.

200
Em casos pontuais, além da ação privada, ocorreu a “colonização dirigida” pelo
Estado e União. No primeiro caso destacando a ação da Fundação Paranaense de Co-
lonização e Imigração (FPCI) e do Departamento de Geografia, Terras e Colonização
(DGTC) por meio de emissão direta de títulos para pequenos proprietários em terras
patrimoniais do Estado. No segundo caso destacamos o caso da colonizadora Colônia
Agrícola General Osório (CANGO), empreendimento estatal, que teve ação e funcio-
namento curto devido opção pela política de colonização. Embora a colonização estatal
não seja objeto deste artigo, é importante explicitar o fato de que esta competia com
interesses das colonizadoras privadas em relação ao acesso a terras disponíveis como na
disputa por compradores. Devido à pressão de tais empresas após 1930 o Estado evitou
“competir abertamente” com as mesmas e, a partir de 1945, diminuiu a “colonização di-
rigida” (CARVALHO, E. 2008, p. 26-27, 49-50, 83-84, 123 e 126). De tal constatação
resulta que a racionalidade da política de colonização estava diretamente ligada ao grupo
de interesses das colonizadoras privadas.

COMBATE À GRILAGEM: GUARAPUAVA 1850-1960

A grilagem de terras patrimoniais do Estado tem uma história tão longa quan-
to sua fundação. Segundo Relatório da Secretaria de Obras Públicas e Colonização
do Estado em 1896, apenas 15% das terras do município de Guarapuava (que ocu-
pava 1/3 do território estadual na época) encontravam-se legalmente registrados, ha-
vendo no restante diversos “grilos” (ABREU, 1981, p. 73-77). Nas décadas seguin-
tes, precisamente nos anos de 1928, 1939 e 1940, o órgão estadual de terras reiterou
solicitações ao governador solicitando o “restabelecimento” de diversas exigências
contidas nas leis de terras de 1854 e 1893 objetivando solucionar “problemas de
legitimação de posse e revalidação de sesmarias e outras concessões” de terras públi-
cas estaduais. Para findar tais disputas, atendendo as solicitações do Departamento
de Terras e Colonização (DTC), o Executivo estadual expediu novas leis e decretos,
sempre dilatando prazos e ampliando condições, deixando de exigir cumprimento
imediato de regulamentos, leis, etc8. Tal estratégia, que postergava medidas concre-
tas de retomada de terras públicas levou a continuidade de embates judiciais. Em
1962 o Estado disputava judicialmente 1.440.000 hectares de terras tendo como
adversários “grileiros” e pessoas que herdaram ou adquiram patrimônio das obrages
e outras concessões do final do início do XX canceladas pela União e Governo do
Paraná na década de 1930.
8
Para DTC ver COSTA, 1974, p. 31-32, para Relatório do Interventor Federal no Paraná enviado à Presidência consultar
PRIORI, 2000, p. 76-86. Departamento de Terras e Colonização (DTC) que substituiu o DGTC, Departamento de Geo-
grafia, Terras e Colonização, órgão que atualmente é denominado Instituto de Terras, Cartografia e Geociências (ITCG).

201
Segundo laudo de dezembro de 1966 intitulado “Relatório apresentado pelo
Departamento de Geografia, Terras e Colonização – DGTC à Comissão Especial de
Estudos da Faixa de Fronteira do Paraná e Santa Catarina” o quadro era caótico. O do-
cumento demonstra que

no início dos anos 60 a região Oeste do Paraná possuía 815.640,8 hectares de terra
(38,9% da área total) com sobreposição de títulos; 7.800,0 (0,37%) ocupadas por
posseiros; 403.984,0 (19,3%) ocupadas por grileiros e 313.280,7 (14,9%) hecta-
res possuíam protocolos de aforamento expedidos pela União. Apenas 553.437,0
(26,5%) hectares estavam livres de problemas. (BRUNE, 2014, p. 05, apud MIS-
KIW, 2002, p.143)

Na década seguinte a ação de grileiros espalhava-se em várias regiões, exigindo


tomada de posição pelo Corregedor Geral de Justiça do Paraná que

expediu recomendação aos titulares dos Registros de Imóveis das Comarcas de


Guaíra, Foz do Iguaçu, Medianeira, Matelândia, Toledo, Assis Chateaubriand,
Formosa do Oeste, Cascavel, Guaraniaçu, Guarapuava, Laranjeiras do Sul, Pitan-
ga e Campo Largo” alertando sobre “documentos falsos de terra emitidos entre
1956-1961 […] [solicitando aos cartorários que] antes de transcreverem títulos de
propriedade expedidos pelo extinto DGTC (Departamento de Geografia, Terras e
Colonização [denominação do DTC]), no período levantem dúvida [sobre sua le-
gitimidade junto] ao Juízo da Comarca e, se possível, consultem a Fundação ITC.
(FUNDAÇÃO INSTITUTO DE TERRAS E CARTOGRAFIA,1975).

Tais medidas não lograram o êxito, levando o INCRA, no final da década de 1990, a
solicitar “cancelamento de títulos fraudulentos” de “19 propriedades, cuja soma de terras griladas
é de 584 mil hectares, ou seja, mais do que foi destinado para assentamentos durante toda a
história do Paraná” (PAULINO, 2006, p. 66). No limiar do século XXI ainda sentiam-se os des-
dobramentos da ação de poderosas e articuladas quadrilhas de grileiros. Segundo o INCRA, a

grilagem de terra no Estado do Paraná, na década de 50, envolveu também os


imóveis Colônia “K”, Colônia Cielito, Gleba Cinco Mil, Gleba Pindorama, Guai-
raca, Rio Azul/Piquerobi e Ocoí. Todas as glebas do Oeste do Paraná, que somam
cerca de meio milhão de hectares, foram desapropriadas pelo INCRA em 1970,
diante do verdadeiro caos fundiário e social promovido pelo governo estadual com
a conivência dos cartórios municipais. Por causa das desapropriações, o Incra aca-
bou sendo condenado a pagar R$ 3 bilhões em indenizações (o caso é comentado
no Livro Branco das Superindenizações). Além de ilegal, já que se refere a falsas
propriedades, este montante absurdo decorre de avaliações incorretas e superes-
timadas realizadas por contadores e peritos judiciais, que na maioria das vezes
se aproveitaram da situação para obter lucro com as indenizações. O Incra está
contestando este pagamento na Justiça. (INCRA, 1999, p. 17-19)

202
Tendo em vista a longa duração das disputas judiciais é importante salientar que,
segundo constatação do INCRA e ITCG, os principais adversários do Estado e União
eram “empresários” de diversos ramos associados a dirigentes políticos em nível local,
regional e nacional. Este fato é essencial para compreendermos a forma de agir do Estado
e da União e o motivo das disputas jurídicas adentrarem pelo século XXI, pois pretensos
herdeiros das colonizadoras do Oeste paranaense reivindicavam em 2014 indenizações
em torno de US$ 20.000.000,00 (vinte bilhões de dólares) segundo o Desembargador
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (BRASIL, 2014). A articulação entre grandes
empresários e políticos estaduais, além da bibliografia aqui citada, foi também constata-
da por laudo elaborado sob orientação do juiz federal Rony Ferreira:

a problemática das terras no Estado do Paraná iniciou-se quando, na década de


1950, o Governo, nas mãos do então Governador Moyses Lupion, titulou exten-
sas áreas de “terras devolutas” no Oeste do Estado, cujas terras estavam situadas
na chamada “faixa de fronteira”. Ocorreu, porém, que as pessoas que foram titu-
ladas pelo Estado do Paraná não foram as mesmas pessoas que, há muitos anos,
já ocupavam aquelas terras, seja na condição de proprietários seja na condição
de posseiros, pessoas essas que, com seu trabalho e suor, cultivavam-nas e torna-
ram-nas produtivas. Narram levantamentos feitos pelo INCRA e pelo MPF que
o Governador, com as titulações, teria buscado beneficiar pessoas “chegadas” ao
poder. (BRASIL, 2014)

Estas disputas fundiárias entre União e grileiros, não raro, foram potencializadas
pela ação de camponeses como o caso das ocupações promovidas pelo MST no imóvel
Rio das Cobras (que integrava as concessões feitas à BRAVIACO). O conflito fundiá-
rio provocou disputas judiciais com intervenção da Procuradoria da Justiça Federal e
Advocacia-Geral da União, sendo que sentenças da Justiça Federal têm reconhecido,
sucessivamente nos últimos anos, que o referido imóvel pertence à União (ALMEIDA,
2010; CRUZ, 2015a e 2015b). Tais sentenças evidenciam confuso, por vezes ao arrepio
da lei, processo de transferência de terras da União para grandes “grupos” empresariais9.

9
Utilizamos este termo a partir da definição de Warren Dean, segundo o qual “as maiores dentre as sociedades familiais
ou combinações de clientela, que revelavam certa estabilidade e diversificação em atividades imobiliárias, comerciais e
bancárias passaram a chamar-se de ‘grupos’. Reuniram consideráveis quantidades de capital, fábricas e poder político sem
precisar vender ações ao público em fundir-se” (DEAN, 1971, p.133).

203
COLONIZAÇÃO PRIVADA: UMA AÇÃO ENTRE AMIGOS

Para dar materialidade ao presente artigo apresentaremos estudo sobre algumas das
maiores colonizadoras do Estado no recorte temporal citado: MARIPÁ, BRAVIACO,
Pinho & Terras, Companhia Brasileira de Imigração e Colonização (COBRIMCO),
CITLA e Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP). Tal seleção ocorreu pelo fato
de serem as mais citadas na bibliografia consultada, que tem recortes teóricos variados, a
depender do interesse do pesquisador: estudo de conflitos fundiários, de estrutura fun-
diária, memória de camponeses, urbanização, etc.
Em relação à caracterização destas empresas é essencial explicitarmos duas ca-
racterísticas estruturais. A primeira de que estavam ligadas a grandes conglomerados
empresariais que atuavam em diversos setores da economia, tais como o bancário, de
transportes, comunicação, mineração, produção de celulose, dentre outros. Esta é uma
característica importante, pois alguns sócios das colonizadoras maiores, possuíam colo-
nizadoras menores. A segunda é que várias das empresas estavam articuladas entre si por
meio de um ou mais de seus sócios-dirigentes que possuíam parte significativa do capital
de mais de uma destas empresas.
Deste modo as empresas citadas foram assim divididas:

• BRAVIACO, Pinho & Terras, MARIPÁ as quais estavam interligadas com co-
lonizadoras menores como a CNP e União d’Oeste. Pelo menos um dos sócio-
dirigentes destas empresas também estava associado à COBRIMCO;
• CITLA, Comercial e Apucarana;
• Companhia de Terras Norte do Paraná, em 1944 adquirida de proprietários in-
gleses por empresários paulistas, mudando seu nome, em 1951, para Companhia
Melhoramento Norte do Paraná (CMNP). Dentre os sócios brasileiros estavam
empresários que controlavam a Territorial Ubá (FABRINI, 2014, p. 55; TOMA-
ZI, 2000, p. 180-194).

Efetuada a relação das empresas, partimos para seu estudo.

204
BRAVIACO, PINHO & TERRAS, CNP, MARIPÁ,
UNIÃO D’OESTE E COBRIMCO

Dentre os nomes citados, Oscar Martinez aparece como pessoa com maior poder,
sendo identificado como sócio-fundador da CNP, adquirindo cotas da Pinho & Terras,
MARIPÁ e COBRIMCO ao longo das décadas de 1940 e 1950.
Entrevistas de pessoas que ocuparam cargos de administração destas empresas
(exercendo tais funções na década 1950 ou 1960) tornam possível construirmos o se-
guinte quadro:

• Oscar Martinez: Diretor geral da COBRIMCO em 1954, empresa que ti-


nha como sócio seu irmão, José Martinez Robles, também sócio da CNP (SÃO
PAULO, 1954, p. 47; CRESTANI, 2012, p. 65);
• Otávio Cesário Pereira Junior: vice-governador do Paraná 1975-1979, ad-
vogado do “Grupo Martinez” como veremos a seguir;
• Rudi (Rudy) Alvarez: sócio-dirigente da CNP, sócio da MARIPÁ, prefeito
do município Assis Chateaubriand, colonizado pela MARIPÁ;
• Ruy de Castro: advogado e sócio das colonizadoras MARIPÁ e Pinho &
Terras (BRUNE, 2014, p. 7-9);
• João Simões: ex-dirigente Banco do Estado do Paraná (estatal), diretor da
colonizadora COMERCIAL (cargo ocupado também pelo irmão Camilo Si-
mões), deputado estadual, indicado como principal defensor dos interesses desta
colonizadora (WACHOWICZ, 1985, p. 205-206);
• Adízio Figueiredo dos Santos: fundador e gerente da Sociedade Coloni-
zadora União do Oeste LTDA, incorporada à CNP na qual se tornou diretor
(BORITZA, 2008, p.27);
• Alberto Dalcanalle: Sócio dirigente da MARIPÁ, Pinho & Terras e pre-
sidente da BRAVIACO na década de 1950 (CROCETTI, 2007, p. 129-134;
WACHOWICZ, 1982, p. 142-150 e 160-167; SCHNEIDER, 2001, p. 38-40;
MACHADO; WESTPHALEN; BALHANA, 1968, p. 19-27). Era irmão de
Luiz Dalcanalle, que foi deputado estadual por Santa Catarina (a ação destes será
melhor abordada abaixo);
• Alfredo Paschoal Ruaro: Sócio-dirigente da MARIPÁ, Pinho & Terras na
década de 1950 (WACHOWICZ, 1982, p. 142-150, 160-167; SCHNEIDER,
2001, p. 38-40). Seu irmão, Zulmiro Ruaro, atuou na defesa do “grupo Dalcanal-
le” (Pinho & Terras) nas disputas eleitorais e fundiárias no Oeste paranaense (es-
pecificamente em frente a CITLA e Superintendência das Empresas Incorporadas
ao Patrimônio da União – SEIPU em torno do grilo Missões) (WACHOWICZ,
1985, p. 193-194).

205
Estas pessoas, direta ou indiretamente (via colonizadoras subsidiárias), como
veremos, detinham controle acionário da BRAVIACO e da MARIPÁ, que disputavam
centenas de milhares de hectares de terra com o Estado, União, com outras colonizado-
ras e camponeses.

A COLONIZADORA NORTE DO PARANÁ

Segundo registro de sua fundação de 1951, a CNP foi fundada por Oscar Marti-
nez e outros empresários, a maioria paulistas (como seu irmão, José Martinez Robles)10.
A bibliografia consultada tratou da ação empresarial da CNP após 28/09/1958, quan-
do esta adquiriu a Colonizadora União d’Oeste (ou União do Oeste) até então propriedade
de Adízio Figueiredo dos Santos. A União do Oeste adquirira, em 15/08/1952, direitos sobre
terras da Fazenda Santa Cruz, Cachoeira ou Rio dos Patos localizados em Assis Chateu-
briand. Adízio, referindo-se a CNP, afirmou que esta adquiriu 396.000 hectares do Grupo
Dalcanalle – área que tinha origem nos imóveis titulados à BRAVIACO11. O contexto desta
transação foi resumido pelo empresário Oscar Martinez da seguinte forma:

O governo media uma área de dez mil hectares por exemplo, e os locali-
zava dentro daqueles dez mil hectares, por ordem cronológica. […] cada
requerimento geralmente era de quinhentos hectares. Então aqueles reque-
rimentos eram legalizados dentro daquela Gleba de dez mil hectares e, às
vezes, reunia um só proprietário, um só interessado que comprava o reque-
rimento na praça [...]. Era muito difícil que um cidadão que morasse em
Curitiba e que tivesse recebido quinhentos hectares de terras no Vale do
Piquiri, no Vale do Iguaçu, naquele imenso sertão... fosse lá localizar os seus
quinhentos hectares de terras e abrir uma propriedade... Existia também no
Vale do Piquiri, um domínio particular, chamado Santa Cruz, Fazenda Ca-
choeira ou Rio dos Patos e o Estado entrou com uma ação de juízo para anular
os títulos de domínios particulares e a essas concessões, [...] já tínhamos com-
prado o direito da Colonizadora União do Oeste que era detentora do
famigerado “grilo” que eles chamavam na época de grilo Santa Cruz.
[...] procedemos com a legalização daquelas áreas ... com a condição do

10
Entre os fundadores CNP estavam Cândido Musa Teles, Feres Bechara, José Alencar Musa Teles, Oscar Martinez,
José Martinez Robles, Luiz Antônio Marcantônio e Raimundo Durães, sendo que Celso Garcia Cid e Raul Mignone
participação do conselho fiscal, tendo como suplentes Honório de Melo Silos, Arliando de Castro Ramos e Domingos
de Almeida Morais. Fonte: Escritura de Constituição da Colonizadora Norte do Paraná S.A. Primeiro Tabelião José de
Oliveira Rocha, comarca de Londrina, 08/06/1951, livro 111, fls.20, encontrado na Junta Comercial do Paraná.
11
Sobre o imóvel Fazenda Santa Cruz ver CRESTANI, 2012, p. 65 e 98. Sobre a CNP e Grupo Dalcanalle ver ROCHA,
BORITZA e ICHIKAWA, 2012, p. 3.

206
Estado desistir da ação que havia contra a Colonizadora União do Oeste.
Feito isso legalizou as terras e a Colonizadora Norte do Paraná S.A. passou
a ter o título do Estado e o título da União do Oeste para evitar que alguma
contestação pudesse haver no decorrer da colonização.(MARTINEZ apud
SOUTO MAIOR, 1996, p. 19, negritos nossos)

Rudy Alvarez (sócio-dirigente da CNP e MARIPÁ) forneceu, em entrevista, uma


versão de como ocorreu à aquisição destas terras:

Por volta de 1958, o Dr. Oscar [Martinez] mandou levar para o escritório da Co-
lonizadora União do Oeste de São Paulo, 250 contos, emprestados para a Colo-
nizadora que era dona do “Grilo Santa Cruz”, Cachoeira e Rio dos Patos, nesta
região. Essa Gleba compunha-se de mais ou menos 220 mil alqueires, [nos mu-
nicípios] de Guaraniaçu até Palotina. Quando Dr. Oscar emprestou esse dinheiro
para o senhor Adízio Figueiredo dos Santos, o mesmo sugeriu ao Dr. Martinez
para que ele comprasse a Colonizadora União do Oeste que era dona do Título.
Passados alguns dias, ele mandou levar mais 250 contos. Ato contínuo, Dr. Oscar
me chamou no gabinete dele em São Paulo disse: “Você vai para Curitiba, junto
com Osório Bueno, (um corretor de terras e café no Norte do Paraná, muito amigo
dele) vai falar com o Dr. Bento Munhoz da Rocha, Governador do Paraná e vamos
fazer uma proposta para ele que nós compramos o ‘Grilo Santa Cruz’ e fazemos um
acordo para o Estado titular as terras, anexando os dois títulos”. Fomos ao Palácio São
Francisco e lá fizemos a proposta para o Governador o qual disse: “Fale para Dr.
Oscar fazer o negócio que eu estou muito interessado em fazer essa composição, porque é
a primeira vez que titulares de terras que têm demanda com Estado vem fazer proposta
honesta como essa”. Voltei para São Paulo e o Dr. Oscar levou um ano para acabar
de comprar o acervo da Santa Cruz e teve o cuidado de deixar o Sr. Adízio como
sócio […] Posteriormente o Dr. Oscar veio a São Paulo de avião, pois não havia
estradas e repetiu toda a história para o governador. Quando ele acabou de dizer,
o Governador disse: “Martinez, você é meu amigo, meu cliente, esse ‘Grilo Santa
Cruz’ é muito famoso no Paraná e eu não vou correr risco”. Dr. Oscar amarelou,
branqueou, ficou desesperado porque já tinha gasto mais de 100 mil contos, era
muito dinheiro e então saímos do Palácio. Fomos à empresa de Colonização do
Bradesco [COBRIMCO], que estava colonizando Anaí, perto de Nova Aurora,
Caraíma, Ivaté. Passado esse Governo, volta a Governar o Estado Moysés Lupion
em seu segundo mandato. Certa feita, estou na Rua XV em Curitiba, chega um
corretor e diz: “Você não quer falar com o Amador Aguiar [proprietário e fundador
do banco BRADESCO] para comprar 50 mil alqueires de terras roxas à margem
esquerda do Rio Piquiri?” Quando ele disse isso minha cabeça fez “poimmm”... É
grilo, é o negócio do Martinez. Perguntei: “Você tem planta?” Ele disse que sim.
“Onde está?” Está no escritório do Pedro Lupion”. Pedro era irmão de Moysés
Lupion […]. Quando peguei a planta, verifiquei que eram estas terras do Vale do
Piquiri. Fui a São Paulo e falei: “Dr. Oscar, tenho uma bomba, o pessoal do Lupion
está vendendo o Piquiri”, então o Dr. Oscar contratou um advogado que era muito

207
ligado ao Lupion, em São Paulo, um professor da USP. Dr., Homero Pena Firme,
e disse: “Dr., já gastei 150 mil contos no grilo do Santa Cruz e eu derrubo o Governo,
pois sou amigo do David Násser, Assis Chateaubriand e gasto mais 150 contos para
derrubar o Governo”. O Dr. Homero disse para Martinez não fazer nada, que ele
iria tomar umas providências. O único homem que o Governador ouvia era o
Dr. Homero. Daí a uma hora, ele telefonou para irmos a Curitiba e na semana
seguinte começou novamente o acordo, foi quando eu fui para o Departamento
de Terras para fazer a titulagem dos títulos que cobriam os títulos do Santa Cruz
no Estado. Dois títulos, o da Colonizadora (Santa Cruz) e do Estado, que deram a
tranqüilidade fundiária desta região. (apud CRESTANI, 2012, p. 126-127, negri-
tos nossos, itálico citações do entrevistado referindo-se a diálogos com terceiros)

Um terceiro associado, Adílio Figueiredo forneceu maiores detalhes dos métodos


utilizados para assegurar o domínio sobre as terras por parte da CNP. Segundo este, os
administradores da CNP procuraram intervenção do governador:

Moysés Lupion era bem mais acessível do que Bento Munhoz da Rocha Neto. Foi
quando então o governo havia recorrido da decisão do juiz da Comarca de Foz,
mas nessas alturas, em [19]56, terminava o governo de Bento Munhoz e Moysés
Lupion voltava a governar o Paraná pela segunda e última vez. […] Depois da
primeira instância vem a segunda e por aí vai. E se ele fosse esperar pela decisão da
Assembleia, esta não ia aprovar nunca porque nela ainda existiam deputados interes-
sados na colonização dessa rica região. Por isso o próprio Lupion decidiu pela nossa
colonização. (SANTOS apud ROMPATTO, 1995, p. 38 e 51-52)

Nestes depoimentos é importante destacar o fato de que envolvidos (ambos diri-


gentes e sócios de outras colonizadoras) negociavam um título do qual tinham dúvida
sobre a validade legal – devido às disputas entre União e Estado – conseguindo fazer
valer seus interesses a partir de contatos pessoais com o então governador, evitando a
intervenção do Legislativo, ao qual a legislação agrária assegurava a obrigação de intervir
em casos de concessões de grandes extensões de terras patrimoniais do Estado.
Em relação aos interesses de “deputados” na colonização da região é necessário especi-
ficar quais eram estes interesses. Inicialmente, reafirmamos a presença de deputados, prefei-
tos, vereadores e até governadores no quadro societário das colonizadoras. Some-se a isto o
fato da região estar em rápida re-organização territorial com a chegada de migrantes impac-
tando nos padrões de votação. As entrevistas dos empresários supracitados são forte indício
de um determinado modus operandi e foram corroboradas pelo chefe de gabinete do governo
Lupion, Oswaldo Guirmarães da Costa, segundo o qual os deputados exerciam a função de
procuradores das colonizadoras nos corredores do DGTC e do Departamento Administrati-
vo do Oeste (ao qual coube atuar nas terras do extinto Território Federal do Iguaçu).
Sobre as entrevistas, salientamos os seguintes aspectos: 1º) Ratificam-se as con-
siderações (de Adílio Figueiredo, Rudy Alvarez e de próprio Oscar Martinez) quanto à

208
origem dúbia ou fraudulenta dos documentos titulatórios ser conhecida pelos proprietá-
rios da colonizadora e pelos dois governadores; 2o) a validação da documentação se dava
pelas relações privilegiadas entre empresários que tinham governadores como “amigos” e
“clientes”; 3o) O empresário mais poderoso – para o qual os outros trabalhavam –, de for-
ma explícita, teria enviado recado para o governador ameaçando criar problemas a ponto
de afastá-lo do poder a partir de relações que tinha com poderosos empresários do ramo de
comunicações (David Násser, Assis Chateaubriand) sendo que ele mesmo, Martinez, tor-
nou-se proprietário de uma empresa do ramo, a Rede OM de Comunicações em meados
da década de 1970 (BORITZA, 2008, p. 11; CRESTANI, 2008, p. 835).
A validação (pela CNP) dos títulos oriundos da concessão BRAVIACO não pro-
moveu tranquilidade fundiária nas regiões de Palotina e Assis Chateubriand como de-
monstrou o Jornal O Paraná de fevereiro 1977, segundo o qual uma onda de “terror” se
espalhava pela região com raízes

ligadas a Fazenda Santa Cruz, Cachoeira ou Rio dos Patos. [...] Estes sucessivos
desmembramentos deram margem para que grupos econômicos e financeiramen-
te bem, acobertassem a situação das mais comprometedoras. A Gleba Tupãssi, a
mais visada pelos jagunços da Colonizadora Norte do Paraná S.A, tinha como
proprietário de uma área de 670 alqueires, o vice-governador do Estado Dr.
Otávio Cesário Pereira Junior, que também era advogado do Grupo Martinez.
(Jornal O Paraná de 25/02/77, apud: BORITZA, 2011, p. 105)

Os enfrentamentos armados ocorridos nas glebas Santa Cruz, Cocheira ou Rio


dos Patos envolvendo a CNP foram relatados por Boritza (2008), que a partir de entre-
vistas com antigos moradores relatou violentos conflitos fundiários com a presença de
jagunços comandados por empregados da CNP entre o final da década de 1950 e início
dos anos 1980. A recorrência de tais conflitos fundiários envolvendo Oscar Martinez foi
denunciada pelo bispo de Palmas, dom Agostinho Sartori, e o pastor Gernot Gilberto
Kirinus da Igreja evangélica Luterana do Brasil12. Anos depois, Otávio Cesário Perreira
Júnior, advogado da colonizadora, reivindicou R$13 bilhões de indenização a serem
pagas pelo INCRA para Oscar Martinez argumentado que este emitiu títulos violando
direito da CNP13.
Em relação aos empresários supracitados, salientamos o papel dos Dalcanalle.
Alberto, durante a década de 1940 foi sócio-dirigente da colonizadora Cruzeiro (muni-
cípio de Ponte Serrada-SC). Como no Paraná, as terras foram vendidas para os colonos
(migrantes do Rio Grande do Sul), sendo que em grande parte estavam ocupadas por
posseiros (em geral caboclos). Processo este que não ocorreu sem tensões e os dirigen-

12
Relatório Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou irregularidades no sistema fundiário brasileiro em 1977.
13
Em relação ao pedido de indenização ver MASCHIO, 1998.

209
tes da colonizadora tiveram que construir diversas estratégias para retirar os caboclos14.
Uma destas foi a realização de contratos, transformando posseiros em empregados, desta
forma promovia-se a “limpeza (da área)”, evitando problemas jurídicos no momento da
retirada de posseiros de áreas para instalação de colonos. Sobre tais procedimentos da
colonizadora é significativo o relato de um dos associados:

Na minha colonizadora [Cruzeiro], nós tínhamos os empreiteiros, fazedores de es-


tradas, que eram encarregados de fazer isso. Eles distribuíam um pedacinho de ter-
ra para eles ir plantar, ajeitando aqui, assinando um recibo de empregado da firma,
pra ir tirando o direito deles também; era uma maneira. Que eu sei, não houve
nenhum atentado violento às pessoas. Essa era a forma sábia de resolver. Porque a
firma tinha bons advogados. Tinha o assessoramento do Gaspar Coutinho e vários
outros advogados, e eles davam as formas de fazer as coisas. O próprio Alberto
Dalcanale era um homem de muito poder imobiliário. O Luiz Dalcanale, que foi
deputado estadual [em Santa Catarina, 1947-1951 e também no Paraná, sendo
presidente da Assembleia Legislativa do Paraná em 1962], o Coronel Passos Maia,
de Joaçaba, que era amigo e companheiro deles também, que dava cobertura pra
gente, pra colonizadora, porque tinham interesse na colonização aqui, porque boa
parte disso pertencia a Joaçaba. (LUNARDI apud RADIN, 2006, p. 121).

A BRAVIACO

A colonizadora BRAVIACO origina-se em uma concessão feita pela União em


09/11/1889 à Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (CFSPRS) a título de
parte do pagamento pela construção de ferrovias. Para tratar da exploração dos recursos
madeireiros e comercializar estas terras a CFSPRS criou, como subsidiária, a BRAVIA-
CO, a qual recebeu uma área de 1.700.000 hectares – a maior parte no Oeste paranaen-
se, junto ao rio Piquiri. É importante salientar que, como demonstrou o historiador
Ruy Wachowicz (1985, p. 178-179), a CFSPRS não repassou todas as concessões de
terras recebidas pela União à sua subsidiária (BRAVIACO), guardando para si parte
de tais terras, por exemplo, a gleba Missões. Como a CFSPRS não cumpriu o con-
trato, as terras que estavam sob seu controle direto bem como aquelas controladas
pela sua subsidiária foram retomadas. Estas empresas recorreram judicialmente da
decisão estatal em um processo que transitou por décadas no judiciário e envolveu
disputas entre União, Estado e empresários que adquiriram a CFSPRS e a BRAVIA-
CO, em intricados embates jurídicos nas quais o poderio econômico e político se
fez sentir por diversas vezes.

14
Renk (2006, p. 52, 72 e 127) salienta que os caboclos associam a colonizadora Cruzeiro a processo de expropriação de
suas terras e também ligam os “nomes de seus representantes [da colonizadora], nas diversas etapas do empreendimento”
referindo-se principalmente à “Angelo de Carli e Alberto Dalcanalle”.

210
Aproximadamente em 1953 a BRAVIACO (nesta época controlada pelos empre-
sários acima relacionados que reivindicavam direitos suspensos pelos decretos da União
e do Estado) teriam vendido 55.682 hectares – parte de um imóvel localizado as mar-
gens do rio Piquiri – para Ruy de Castro. A transação chama atenção pelo fato deste
ser, simultaneamente, advogado e sócio das colonizadoras MARIPÁ e Pinho & Terras
(BRUNE, 2014, p. 7-9). Segundo a bibliografia consultada, a documentação destas ter-
ras encontrava-se no Ofício de Registro de Imóveis de Toledo e foi repassada em 1954
à Pinho & Terras, que pretendia promover sua exploração madeireira e colonização na
região do atual município de Palotina. Os planos da colonizadora foram ameaçados
em 1957 por decreto do governador Moysés Lupion que, retomando o Decreto 300,
reafirmava o caráter “ilegítimo” dos títulos da BRAVIACO e, por consequência, da pro-
priedade da Pinho & Terras.
Após a emissão do decreto de 1957, o Estado expediu novos “títulos de domínio”
sobre a área em questão, rebatizando os imóveis (para a BRAVIACO e Pinho & Terras,
Gleba Piquiri) com os nomes de Colônia Rio Azul ou Colônia Piquerobi (CRESTANI,
2012, p. 120-122). Estes imóveis foram subdivididos pelo DTC, que passou a emitir
diversos títulos de propriedade para pequenos agricultores e, em particular, “agricultores
do asfalto” – estes últimos, segundo a historiografia paranaense, estavam ligados ao gru-
po político-partidário de Lupion e pretendiam apenas realizar especulação imobiliária,
fraudando a legislação referente à colonização em terras públicas estaduais.
A região passou a registrar uma complexa teia de disputas fundiárias envolvendo
grandes empresários, posseiros e Estado que se encontravam em posições móveis: por
exemplo, caso o DTC emitisse um lote para um pequeno proprietário, poderia ver-se
compelido a solicitar que outro, que houvesse adquirido a mesma área da Pinho & Ter-
ras, o abandonasse. Somava-se a tal quadro, já conflituoso, a distribuição de terras aos
“agricultores do asfalto” apaniguados do governador e deputados de sua base como relata
a bibliografia citada.
O ato administrativo do executivo estadual conflitos já existentes, caracterizada
por disputas judiciais e uso da violência, em particular, contra camponeses. A existência
de “jagunços e pistoleiros” a soldo da Pinho & Terras e da CNP – respectivamente no
“distrito de São Camilo (município de Terra Roxa)”, e Gleba Cinco Mil – foi relatada
por um agricultor que adquiriu terras destas colonizadoras (BRUNE, 2014, p. 11). Se-
gundo este a força armada tinha a função de “manter a ordem e evitar que os colonos
que adquiriram suas terras junto às colonizadoras fossem importunados pelas ‘pessoas de
fora’”. Salientamos que, para o entrevistado, a ilegitimidade dos “de fora” poderia signi-
ficar “agricultores do asfalto”, beneficiários de títulos do DTC. Some-se a tal contexto
o fato que a região já estava ocupada por agricultores, como demonstra a reportagem
intitulada “Litígio de Terras em Palotina”:

211
Com uma população de aproximadamente seis mil habitantes [...] Palotina é um
dos mais prósperos municípios de nosso Estado e vem sofrendo um rápido pro-
cesso de regressão. As indústrias locais já paralisaram, os impostos não estão sendo
pagos, as escolas e hospitais estão fechando. A causa determinante deste fenômeno
está nos litígios judiciais existentes entre os colonizadores titulados pela Compa-
nhia Pinho e Terras e os titulados na administração anterior [Moysés Lupion],
litígios que determinaram o sequestro de toda a área do município. (O ESTADO
PARANÁ, 01/05/1961, apud REGINATO apud BRUNE, 2014, p. 10)

O governador Ney Braga, que sucedeu Moysés Lupion, “desapropriou” os títulos


de terra emitidos por seu antecessor (cancelando títulos da Colônia Rio Azul ou Colônia
Piquerobi) e “transferiu a questão para o Poder Judiciário”. Não obstante, os proprietá-
rios da BRAVIACO do período e Ruy de Castro continuaram reivindicar como suas as
terras ocupadas. Tal disputa chegou ao STF que, em 25/10/1963, a partir de relatoria
feita pelo Ministro Antônio Vilas Boas, julgou por unanimidade que as terras eram da
União15.
A decisão do STF não levou a segurança da propriedade fundiária para muitos
pequenos proprietários, tendo em vista que as colonizadoras Pinho & Terras e CNP
continuavam reivindicando direitos sobre terras que haviam sido adquiridas por estas
ante a BRAVIACO – desconsiderando o fato de que esta não realizou sua contrapartida
nos contratos de concessão. Disputas judiciais envolvendo o conglomerado Pinho &
Terras, CNP e BRAVIACO (adquirida por empresários que estavam associados às duas
primeiras) permaneceram por décadas, como o aquele envolvendo o imóvel Rio das
Cobras (como vimos acima, originário de concessão da BRAVIACO).

A MARIPÁ

A MARIPÁ tinha como seus sócios-dirigentes Alberto Dalcanalle e Alfredo Pas-


choal Ruaro (o primeiro sócio e dirigente da Pinho & Terras e da BRAVIACO, o segun-
do exercendo as mesmas funções na Pinho & Terras como vimos acima). Reproduzindo
o papel de Dalcanalle e Ruaro, outros sócio-dirigentes da MARIPÁ atuaram simultanea-
mente em colonizadoras menores como a Gaúcha, Industrial Agrícola Bento Gonçalves
e Matelândia (CROCETTI, 2007, p. 129-134; WACHOWICZ, 1982, p. 142-150 e
160-167; SCHNEIDER, 2001, p. 38-40). Tal característica leva-nos a supor que as em-
presas menores desenvolviam atividades suplementares/complementares às da MARIPÁ,
salientando que, neste caso, não havia concorrência quer por espaço ou compradores de
terras, tendo em vista que atuariam na área pretendida pela MARIPÁ.
15
Brune usou, dentre outras fontes, o livro de Pedro Reginato “História de Palotina 1954/1979”, escrito com auxílio de Wil-
son C. Kuhn, advogado defensor dos interesses da BRAVIACO no julgamento do dia 25/10/1963 (BRUNE, 2014, p. 8-9).

212
A COBRIMCO

A empresa, conhecida na década de 1950 como “a colonizadora do BRADES-


CO”, tinha como proprietários empresários paulistas, dentre eles Amador Coelho
Aguiar (fundador e sócio do banco) e Oscar Martinez, sendo este último seu diretor-
geral em 195416.
A COBRIMCO, inicialmente recebeu em “concessão, mais de 22 mil alqueires”
ou seja, mais de 53.240 hectares, aos quais somou “outras glebas de terras” até então
cedidas a uma colonizadora menor, a Suemitsu Miyamura & Cia Ltda. A atuação desta
empresa estava inserida na proposta de colonização estatal enunciada pelo governador
Moysés Lupion em Mensagem de Governo enviada a Assembléia Legislativa em 1949, a
ser executada pelos órgãos estatais responsáveis, isto é, DGTC e FPCI. Diferentemente
de colonizadoras supracitadas, as fontes bibliográficas sobre a COBRIMCO são escassas,
sendo que a maioria dos trabalhos encontrados não tratam especificamente de seu papel
na colonização e formação da estrutura fundiária da região em que atuou. A bibliografia
e a documentação consultadas, quando fazem referência à empresa, tratam de seu envol-
vimento na expropriação e genocídio do povo Xetá na década de 1950.
A par destes fatos na bibliografia que trata do conglomerado Pinho & Terras-MA-
RIPÁ encontramos o significativo depoimento de Rudy Alvarez (sócio-dirigente destas
colonizadoras), que afirmou que, quando ameaçados de perderem o “grilo”, foram em
busca de amigos poderosos:

Dr. Oscar [Martinez] amarelou, branqueou, ficou desesperado porque já tinha


gasto mais de 100 mil contos, era muito dinheiro e então saímos do Palácio.
Fomos à empresa de Colonização do Bradesco [COBRIMCO], que estava coloni-
zando Anaí, perto de Nova Aurora, Caraíma, Ivaté. (ALVAREZ apud CRESTA-
NI, 2012, p. 127).

Retomando nossa caracterização desta empresa, uma similaridade com o modo


de agir de outras colonizadoras de grande porte, está no fato de ter incorporado uma co-
lonizadora menor – Companhia Colonizadora Suemitsu, Myiamura & Cia. Ltda., for-
mada para instalar japoneses na região. Tal transação, segundo Frans Licha, ex-corretor
de terras da Suemitsu aconteceu no governo Bento Munhoz da Rocha e foi conflituosa:
“armou-se um jogo político nebuloso que até hoje foi não explicado”. Sumariamente,
a Suemitsu teve sua concessão anulada e foi substituída na colonização das terras pela
COBRIMCO17.

16
Nesta data, além de Oscar Martinez, ocupavam cargos de direção da empresa Vicente Felício Primo e Antônio Canti-
zani (SÃO PAULO, 20/03/1954, p.47).
17
Para a atuação da COBRIMCO ver Relatório da Comissão Estadual da Verdade Teresa Urban: Grupo de Trabalho
Graves Violações de Direitos Humanos Contra Povos Indígenas – 1946 a 1988.

213
ASSOCIAÇÃO TERRITORIAL UBÁ E CTNP

Iniciamos o estudo das relações entre estas empresas pela CTNP, fundada com
capital britânico, recebendo terras na região entre atuais Apucarana e Londrina, sendo
posteriormente vendida para empresários e fazendeiros brasileiros, mudando seu nome
para Companhia Melhoramentos Norte do Paraná – caminho semelhante ao da MARI-
PÁ e BRAVIACO, que também foram fundadas com capital estrangeiro e posteriormen-
te adquiridas por empresários brasileiros.
Em relação aos proprietários da CTNP destacamos:

• João de Oliveira Franco: diretor e advogado da CNTP, aceitou em 1938


convite do Interventor Manoel Ribas para ser Secretário de Estado dos Negócios
da Fazenda, Indústria e Comércio sem deixar de trabalhar para a CTNP (TO-
MAZI, 2000, p. 182);
• Willie da Fonseca Brabazon Davids: um dos fundadores da CNTP, ocu-
pando cargo na diretoria. Latifundiário de Jacarezinho, onde foi prefeito, deputa-
do [estadual] por três legislações, nomeado pelo Interventor prefeito de Londrina
(TOMAZI, 2000, p. 203-205);
• Leovegildo Barbosa Ferraz e Bráulio Barbosa Ferraz (irmãos): família de
grandes cafeicultores paulistas, sócios da CTNP desde sua fundação, eram tam-
bém sócios da Cia. Agrícola Barbosa Ferraz e da Colonizadora Sociedade Ter-
ritorial Ubá Ltda. (CHIES; YOKOO, 2012, p.33; WACHOWICZ, 1982, p.
142-150 e 160-167; SCHNEIDER, 2001, p. 38-40).

Segundo a tese de Tomazi (2000, 317), embora o discurso produzido pela história
oficial afirme que todo o Norte paranaense foi colonizado pela CTNP/CMNP, dados
oficiais demonstram que a empresa foi responsável por “apenas 20%”, salientando-se
que o Estado também colaborou com as iniciativas da empresa nesta parcela (CARVA-
LHO, 2008, p. 26-27, 49-50, 83-84, 123-126). Tal reflexão ajuda-nos a compreender
como agiram outras colonizadoras a ela vinculada, embora de menor porte, como a
Sociedade Territorial Ubá Limitada ou Colonizadora Ubá.
Ao estudar a história do imóvel Ubá ou Fazenda Ubá, Lúcio Boing demonstra
que sua origem remonta a escrituras de 1852 que eram particularmente confusas e im-
precisas: a primeira descrição em documento titulatório do imóvel é de 1853 e não traz
delimitação clara, sendo que pelo menos uma linha divisória foi estabelecida por “divisa
cantada”, havendo, na descrição de 1853, uma única referência sobre sua localização
como sendo em um lugar chamado Salto Grande, margem esquerda do rio Ivaí. Es-
tas imprecisões possibilitaram aos três compradores que transacionaram o imóvel entre
1853 e 1912 a ampliação das divisas (ao menos no papel) e, portanto, da extensão do

214
imóvel (BOING, 2007, p. 5-6). A ampliação elástica de linhas divisórias foi denunciada
em 1913 por Edmundo Mercer (Toca Mercer) que se referindo ao “bedengó do Ubá”,
salientou que seus

terrenos que nunca foram habitados, situados em zonas remotíssimas que nunca
produziram um só grão de cereal, são, como por encanto, ‘propriedades particu-
lares’, não sujeitas à legitimação porque tem escritura de venda e siza paga antes
de 1854... que as escrituras que servem de base, com datas remotas, referem-se a
lugares que nas respectivas épocas ainda eram desconhecidos... Que indivíduos
sem direito algum vão se apossando de áreas fabulosamente grandes do nosso
território, com o dispêndio apenas de algum selo e propinas... (MERCER, 1978,
p. 75 apud BOING, 2007, p.10).

Devido a estas denúncias, a Secretaria de Obras Públicas e Colonização do Estado


realizou perícia e comprovou fraudes como “adulteração de documentos, bem como a
inserção de uma falsa transcrição de limites das posses”, determinando restauração dos
verdadeiros limites em 1935 (BOING, 2007, p. 11). Não obstante, antes desta medida,
em 1929, com objetivo específico de apropriar-se de tais terras, havia sido criada a Co-
lonizadora Ubá. Ainda segundo o autor, a empresa, neste momento, tinha como sede a
cidade de Cambará, era composta por banqueiros, advogados e pelos irmãos Barbosa,
totalizando dezesseis sócios, tendo como administrador Leogivildo Barbosa Ferraz.
Segundo Denez (2011, p. 71), a área pretendida pela Colonizadora Ubá totali-
zava 184.800 hectares, tendo como base diversos títulos de propriedade nas duas pri-
meiras décadas do século XX. Segundo este autor os títulos de terra foram adquiridos
pela empresa por valor baixo, tendo em vista o fato de que tinha sua legitimidade ques-
tionada pelo Estado no âmbito do Judiciário – atitude que ganha mais ênfase após a
“Revolução de 1930”. Entre 1946 e 1952, tendo em vista algumas vitórias judiciais da
empresa e acordo feito com o Estado, a Territorial Ubá, utilizando uma milícia privada,
expulsou violentamente aqueles que identificava como “posseiros”. Os enfrentamentos
cresceram, levando a uma “revolta de posseiros” em 1952, a qual somente foi aplacada
com a chegada de uma comissão do governo apoiada por policiais militares, que mante-
ve os interesses da colonizadora. Após tais fatos a empresa parcelou e revendeu as terras
para pequenos e grandes proprietários. Dentre os que receberam terras estava a empresa
Sociedade Civil Agrícola Lunardelli, a qual, segundo a bibliografia citada, era credora
da Territorial Ubá. Tal fato nos leva à hipótese de que o grupo empresarial Lunardelli
possuísse participação na administração da Territorial Ubá, pois como vimos acima o
entrelaçamento de grupos empresariais era comum.

215
CONGLOMERADO
CITLA-COMERCIAL-APUCARANA-GRUPO LUPION

As disputas envolvendo as colonizadoras na região de Francisco Beltrão, Pato Branco


e Capanema estão entre os mais abordados na historiografia paranaense dedicada ao tema de
conflitos agrários. Para o presente texto utilizaremos duas obras: “Paraná, Sudoeste: Ocupação e
Colonização” de Ruy C. Wachowicz e a obra “200.000 Alqueires Por Uma Caixa de Fósforos” de
Elias Feder. A primeira é um clássico da historiografia paranaense, sendo suas fontes entrevistas
com personagens que, entre as décadas de 1940 e 1960, foram deputados estaduais, prefeitos,
empresário Mario Fontana (fundador, proprietário e dirigente da CITLA no período estuda-
do), pequenos proprietários, documentos do GETSOP e jornais de época. A segunda obra foi
escrita pelo genro do fundador da CITLA, que integrou seu quadro diretivo no período estuda-
do quando também foi vereador na cidade de Mariópolis entre 1958 e 1967.
Segundo Feder (2001, p. 19) a origem da CITLA deu-se com a “aquisição da
Fazenda São Francisco de Salles” em 1947, negociada entre João Menegassi (do qual
era genro de Mario Fontana) e Candido Martins de Oliveira que representou por pro-
curação os proprietários da área, Francisco Beltrão e Othon Maeder – este personagem
merece destaque, pois foi deputado e senador. Após fundarem a empresa, seu comando
passou a ser exercido pelos irmãos Mario Fontana, Aldo Josué Fontana e Nilo Fontana
– este último merece destaque por ser, no período, responsável pela administração das
Glebas Missões/Chopim e, em 1957, também pela Fazenda Ubá.
Segundo Wachowicz (1985, p. 192-199 e 203-206), a aquisição da Gleba Mis-
sões ocorreu mediante formação de “grilos” originados nas concessões de terras feitas
pelo Estado e União no início do século XX para a Companhia Ferroviária São Pau-
lo-Rio Grande. Estas concessões originaram quatro “glebas”: Santa Maria, com 12.327
hectares; Silva Jardim, com 76.746 hectares; Riozinho, com 551 hectares; e Missões,
com 425.731 hectares. Como dito acima, a CFSPRS criou uma subsidiária (BRAVIA-
CO) para administrar parte destas concessões de terras. Segundo o Wachowicz, o “grilo
Missões”, entre outras glebas, não foi repassado para esta subsidiária, permanecendo sob
domínio da CFSPRS, reivindicado pela CITLA.
A interpretação de Feder (2001, página de apresentação sem número) quanto à
aquisição das glebas Missões e Chopim pela CITLA foi outra. Segundo ele, a transação
ocorreu em 27/07/1950 por meio de venda de “créditos que José Rupp” possuía com a
União a qual realizou pagamento em terras: em 17/11/1950 a SEIPU transferiu para a
CITLA uma área de “aproximadamente 480.000 hectares, localizadas nas Glebas Mis-
sões e Chopim”. O historiador Wachowicz (1985, p. 186-188), que analisou acervo do
GETSOP18 e entrevistou Mario Fontana, afirmou que a aproximação anterior entre
18
O GETSOP foi coordenado pelo Conselho de Segurança Nacional e orientação da Procuradoria da República e da
Procuradoria do Estado do Paraná (WACHOWICZ, 1985, p. 283).

216
Fontana e Rupp tinha como objetivo o interesse comum de apropriação das terras que,
até então, eram objeto de disputa judicial entre Estado e União. Como demonstra Wa-
chowicz, os proprietários da CITLA tinham informações sobre a disputa judicial entre
Rupp, Estado e a União. A aquisição dos supostos direitos de Rupp a serem recebidos
somente no caso de vitória judicial transformada em terras indica relações privilegiadas
dentro do aparato estatal estadual e federal.
As disputas envolvendo a “gleba Missões” não foram destituídas de conflitos en-
volvendo diversos atores. Tanto Feder quando Wachowicz, mesmo com interpretações
específicas, referem-se a diversos conflitos armados e disputas judiciais que envolveram
agentes sociais identificados como posseiros, colonos, colonizadoras (CITLA e suas sub-
sidiárias, Pinho & Terras), Estado e União (SEIPU). Ambos os autores afirmam que
estas disputas oneraram em muito a CITLA, levando-a a crise financeira e a perder
controle sobre as terras pretendidas.
Ruy Wachowicz, sustentando sua análise em documentação do GETSOP, jornais
da época, entrevistas com dirigentes políticos e empresariais envolvidos nas disputas (de-
putado Candido Martins, Mario Fontana entre outros), afirmou que o risco de perder
as terras que almejava levou Mário Fontana a associar-se ao Grupo Lupion em busca de
apoio financeiro e político – ambos essenciais, o primeiro para infraestrutura necessária
à colonização e exploração de madeira e, o segundo, em especial, pois sendo Moysés
Lupion (proprietário majoritário do Grupo Lupion), governador e presidente do Partido
Social Democrata (PSD), um dos maiores partidos do Estado, para assegurar domínio
das terras ante a eventuais iniciativas do Estado e União em reavê-las19.
Elias Feder, genro de Fontana, indicado candidato a vereador pelo PSD e duas
vezes vereador pela União Democrática Nacional (UDN), da qual foi fundador em Pato
Branco20, embora com interpretação diferente do historiador paranaense, Feder, tam-
bém explicitou as relações íntimas entre a CITLA e o PSD. O historiador Wachowicz
ratificou tal fato, afirmando que no final da década de 1940, Mario Fontana ingressou e
tornou-se a principal liderança do PSD no Oeste paranaense, participando ativamente
da eleição de prefeitos e vereadores durante a década seguinte nos municípios de Fran-
cisco Beltrão, Clevelândia, Pato Branco e Mariópolis. Em depoimento prestado por
Rubens S. Martins, primeiro prefeito de Francisco Beltrão, ressaltou a vinculação entre
PSD e CITLA “refletia a potencialidade de recursos daquela Colonizadora na agremia-
ção partidária” (apud FEDER, 2001, p. 25 e 150). Dados coletados por Wachowicz ex-
plicitam o resultado da articulação de interesses CITLA-PSD nas eleições da década de
1950, caracterizada pela “esmagadora vitória político-eleitoral dos candidatos do PSD.

19
Sobre relações CITLA-SEIPU ver FEDER, 2001, p. 22-23 e 52. Ver também WACHOWICZ, 1985, p. 178-180 p.
203-205.
20
Sobre o padre-prefeito Eduardo Machado e a atuação política de Elias Feder, duas vezes vereador e fundador da UDN
ver FEDER, 2001, p. 91, e p.97-98.

217
Todas as Prefeituras do sudoeste sem exceção, passaram para o controle político do parti-
do e Moysés Lupion foi novamente eleito governador” (WACHOWICZ, 1985, p. 205).
A par das relações privilegiadas com os legislativos e executivos de diversos muni-
cípios – lembrando que estes, no período, eram consideravelmente extensos, abarcando
grande parte do Sudoeste paranaense –, Elias Feder (2001, p. 102) refere-se a diversos
casos de troca favores, como nomeação para cargos públicos (como o deputado Anibal
Curi em 1961); “homízios feitos em 1960” feito por Nilo Fontana, na sede da CITLA,
de “guardas” que cometeram assassinatos na região de Manoel Ribas (município em que
se localizava parte da Fazenda Ubá), feito a pedido de Renato, prefeito desta cidade em
nome do “deputado que tinha o comando político da região”. Sobre este caso é relevante
a explicação Feder:

Mário [Fontana] mandou o avião a Manoel Ribas para apanhar o delegado e os


dois policiais e levá-los à Mariopolis. […] Ora, o mercado de trabalho para este
tipo de gente simplesmente não existia, razão pela qual ficaram os mesmos na
dependência da CITLA. O delegado um senhor de idade avançada, tranquilo,
bastante culto para o nível da vila, adaptou-se rapidamente, passando a fazer parte
do convívio social com os moradores do local. Um dos soldados também, bastante
calmo, adaptou-se, fazendo pequenos serviços de rotina para a firma. O outro
não se adaptava e nem aceitava serviço nenhum que lhe fosse solicitado a não ser,
quando a CITLA tomava conhecimento de roubo de pinheiros, pegava os funcio-
nários e mandava expulsar os ladrões. (FEDER, 2001, p. 71-73)

A ação da CITLA não foi de todo gratuita tendo em vista que, segundo Feder,
a empresa possuía em Manoel Ribas a Fazenda Ubá, administrada em 1957 por Nilo
Fontana, irmão de Mário (dirigente da CITLA, “proprietária” da fazenda Ubá segun-
do FEDER).
Além da articulação de interesses entre CITLA e PSD, lembramos sua proxi-
midade com o outro grande partido da época, a UDN, como declarou Elias Feder.
Este tipo de conciliação de interesses não foi exclusiva das ligações pessoais de Mário
Fontana. Uma das maiores lideranças políticas tradicionais do Oeste paranaense no
período, Candido Machado de Oliveira Neto, com intuito de manter mando político
regional no Sudoeste, levou um genro (Antonio Anibeli) ao Partido Trabalhista Brasi-
leiro (PTB) e outro (Arnaldo Busato) ao PSD, conseguindo eleger ambos como depu-
tados estaduais. Além de ter sido intermediador na compra do imóvel São Francisco
de Sales, segundo Wachowicz (1985, p. 201-207) este personagem foi “o político do
PSD que mais ajudou a Mario Fontana nos negócios da CITLA com a gleba Missões.
Tornaram-se sócios comerciais e aliados políticos”, relação esta confirmada por Mário
Fontana ao narrar, por exemplo, o papel do deputado na construção de estradas (com
dinheiro público) de interesse da CITLA.

218
As relações íntimas entre detentores do poder político e a CITLA são ressaltadas tam-
bém por Wachowicz, segundo o qual a CITLA fez valer seus interesses usando diversos arti-
fícios. Segundo este historiador a CITLA, tentou fazer valer seus interesses usando diversos
artifícios, associando poder econômico e político, inclusive por meio de expedientes que evi-
denciam sua “ilegalidade”, como no caso descrito abaixo que trata do fornecimento de títulos
de terra pela SEIPU a partir dos argumentos da CITLA (direitos adquiridos de José Rupp):

A escritura de dação de pagamento foi assinada por Antonio Vieira de Melo em nome
da Superintendência [SEIPU] e datada de 17.11.1950. Saliente-se que os elementos
que participaram das negociações deste estranho e ilegal acordo, eram pessoas ligadas
ao antigo gerente geral da São Paulo-Rio Grande, Geraldo Rocha, ou seja: Geraldo
Rocha Sobrinho era assistente do então Superintendente Antonio Vieira de Melo e
filho do tabelião do 6º Ofício de Notas, Francisco Rocha, em cujo cartório foi registra-
da a escritura de dação de pagamento. [...] O Superintende Antonio Vieira de Melo,
pilhado em flagrante, tentou salvar sua responsabilidade e acusou em ofício dirigido
ao Presidente do Tribunal de Contas da União, o cartorário, por ter modificado a mi-
nuta por ele entregue em cima da qual foi lavrada a escritura. [...] A pedido do INIC
[INCRA], o Conselho de Segurança Nacional avisou por ofício a todos os cartorários
do Paraná e Santa Catarina para que não lavrassem a escritura da CITLA, na região
da fronteira, sem o assentimento por escrito do referido Conselho. O cartorário de
Clevelândia negou-se a registrar na região a referida escritura. [...] Foi então nova-
mente acionado o governo do Estado. [...] Um projeto de lei enviado pelo executivo,
desmembrando o cartório, foi imediatamente aprovado, embora não houvesse neces-
sidade funcional para tanto. (WACHOWICZ, 1985, p. 189-191).

A alternância de poder, o interregno dos governos Lupion com a eleição de Bento


Munhoz, evidenciam mais ainda o uso pessoal do Executivo estadual. Em seu mandato Ben-
to impediu emissão do registro de terras que seriam vendidas dentro imóvel Missões. No final
do governo Bento, após diversas disputas judiciais (somadas às pressões políticas), foi feito
um “acordo verbal” pelo qual o “INIC [Instituto Nacional de Imigração e Colonização],
através do Departamento de Terras e Cartografia” deixaria de “expedir títulos de propriedade
aos colonos localizados” nas terras colonizadas pela estatal CANGO – principal concorrente
da CITLA na região por disputar madeiras e terras, salientando-se que a estatal tinha larga
vantagem no que se refere a crença em relação validade dos títulos de terra que emitia. A
ação do INIC, no início do segundo governo Lupion, tornou-se ainda mais suspeita quan-
do transferiu porções de terra sob seu controle para a CITLA mesmo sem “definição pelo
judiciário” sobre propriedade das áreas. Sobre as dúvidas em relação à propriedade das terras
reivindicadas pela CITLA, Ruy Wachowicz (1985, p. 192-199 e 203-206)21 elencou diversos
pontos, dos quais selecionamos os mais relevantes ao nosso tema:
21
O autor não elenca quem seriam estes “capitalistas” que, no jargão do autor, identifica empresários. Porém, lembrando que Feder
afirma que a CITLA possuía a Fazenda Ubá no então município de Manoel Ribas, podemos supor que alguns destes indivíduos
podiam estar interessados na colonização desta região, o que não impede que também atuassem no Sudoeste, no grilo Missões.

219
• Havia uma disputa judicial nos tribunais superiores entre Estado e União
sobre as terras tendo em vista o Decreto 300 que ainda não havia sido definido;
• O INIC afirmou que o imóvel estava na faixa de fronteira (fato negado pela
CITLA);
• A “Divisão de Projetos e Fiscalização do Ministério da Agricultura” afirmou,
na época, “não possuir elementos para afirmar com exatidão o tamanho da área
dada em pagamento” a José Rupp, sendo, portanto, impossível afirmar o valor a
ser pago para CITLA.

A par destes fatos, havia um contexto social crescentemente conflituoso, tendo


em vista que a área pretendida pela CITLA (“grilo Missões” na expressão de Wachowicz)
era região de forte migração desde a década de 1920 (quando já estava ocupada por pe-
quenos e grandes posseiros). Esta nova realidade, a sociedade estabelecida com o Grupo
Lupion, levaram a CITLA a mudar suas estratégias de atuação. A mais importante delas,
no que se refere ao estudo em questão, foi a divisão da empresa com a criação de duas
subsidiárias em janeiro de 1957, que atuariam no ramo imobiliário:

• Comercial e Agrícola Paraná Ltda.: a Comercial, dirigida por João Simões,


Camilo Simões e Lino Marchetti, o primeiro inclusive passou a ser alto dirigente
do Banco do Estado do Paraná, o último foi prefeito de Jandaia do Sul (1952-
1956), município colonizado pela CTNP;
• Companhia Colonizadora Apucarana Ltda.: a Apucarana, dirigida por
Amim Maia.

A nova composição de capital implicou em novas formas de administrar o empreen-


dimento, gerando divergências e disputas. Os irmãos Fontana, donos únicos da CITLA,
tornaram-se meros sócios dos interesses e propriedades da CITLA, Comercial e Apucarana
e acreditavam como demonstra entrevista, que seus novos sócios (grupo Lupion) estavam
tentando se apropriar totalmente do “negócio” (WACHOWICZ, 1985, p. 203).
Para encerrar este tópico apontamos alguns aspectos sobre as disputas por terras
envolvendo a conglomerado CITLA-Comercial-Apucarana para compreensão das polí-
ticas de regularização fundiária em específico para os imóveis citados (Chopim/Missões):

• Mesmo levando-se em conta atritos posteriores (entre Fontana e o Grupo


Lupion; disputas entre eleitorais entre Othon Maeder e Lupion) houve envolvi-
mento pessoal de dirigentes dos maiores partidos da época em obscuras transa-
ções de terras públicas;
• Alguns dos principais personagens foram (nas décadas de 1940-1960) ou
tornaram-se lideranças político-partidárias poderosas por um longo período, ci-

220
tamos alguns exemplos: Anibal Curi, deputado estadual por diversos mandatos
ocupando várias vezes o cargo de vice-presidente e presidente da Assembleia Le-
gislativa Estadual; Othon Maeder que foi presidente do DTC, interventor de Foz
do Iguaçu, Secretário de Estado e senador; o já citado Moysés Lupion, governa-
dor por dois mandatos e senador.

BENDENGÓ: UMA AÇÃO ENTRE AMIGOS…

Buscamos em nosso texto contribuir para o estudo das empresas supracitadas


no que se refere à formação de grandes empreendimentos da colonização recente do
Paraná. Entendemos que a compreensão das inter-relações entre interesse privado e
público (e suas contradições) foi elemento essencial para compreensão da formação
da estrutura fundiária no Paraná. Procuramos colaborar em estudos que articulem a
formação das grandes colonizadoras e sua articulação com ocupantes de altos cargos
na administração pública (englobando órgãos do executivo e legislativo). Tivemos o
cuidado de explicitar contradições entre as empresas (que disputavam frações do terri-
tório entre si) e destas com a administração do estado, fato que evidencia o quanto o
quadro era amplo e complexo.
Como acreditamos ter demonstrado, a apropriação de centenas de milhares de
hectares de terra por alguns grupos empresariais (associados entre si) a preço baixo –
milhares de alqueires “por uma caixa de fósforos” – dependeu das relações destas em-
presas com ocupantes de altos cargos públicos nos poderes Executivo e Legislativo. A
formação destas gigantescas propriedades significou, simultaneamente, a privatização de
terras devolutas e a expropriação de camponeses. Neste sentido, à guisa de conclusão,
salientamos que estudos aprofundados sobre associação destes elementos são essenciais
para a compreensão da estrutura fundiária paranaense.

221
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226
TERRAS INDÍGENAS EM ZONA DE PODER: DETERMINAÇÃO LEGAL
E PRÁTICA INSTITUCIONAL NO BRASIL - I

Maria Lucia Brant de Carvalho1

INTRODUÇÃO

A população indígena Guarani desde tempos imemoriais ocupa tradicionalmente


as Bacias dos Rios Paraguai, Paraná e Uruguai e seus afluentes, ou seja, a grande Bacia do
Prata. A região da Bacia do Paraná na Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argenti-
na é denominada pelos Guarani como sendo parcela do Tekoa Guassu (Aldeia Grande).
Ali possuem o direito de permanecer, reconhecido legalmente desde a época colonial
portuguesa e pelas sucessivas constituições brasileiras.
Entre os anos 40 e 80 do século XX, o Estado brasileiro objetivou obter o efetivo
domínio territorial e fronteiriço da região oeste do estado do Paraná, região brasileira in-
serida na Tríplice Fronteira, localizada na Bacia do Paraná. Objetivou estabelecer o mar-
co geopolítico de domínio fundiário do território frente aos países vizinhos, fundamen-
talmente Argentina, e, para isso considerou ser necessário ocupar o território de modo a
colonizar e a desenvolver regionalmente, por meio da reprodução do modo de produção
capitalista. As terras paranaenses apresentavam características bem vindas, como terras
roxas, extremamente férteis, belezas naturais como as Cataratas do Iguaçu, atrativas para
o turismo e rios hidricamente potentes, para a construção de hidrelétricas. Em nome de
tais interesses político-econômicos de Estado foram instalados dois Grandes Projetos na
região, a criação da Unidade de Conservação, Parque Nacional do Iguaçu/IBDF funda-
da em 1939 e a criação da Usina Hidrelétrica de Itaipu ou Itaipu Binacional, projetada
em 1971 e colocada em funcionamento em 1982.
Tendo tais projetos como cunha, o governo brasileiro patrocinou na região do
oeste paranaense, verdadeiro processo de desconstrução do território de ocupação tradi-
cional da população indígena Guarani, o Tekoa Guassu (Aldeia Grande). Desta forma,
os Guarani foram esbulhados de suas terras, desaparecendo inúmeras aldeias.
Em trabalho de campo foi possível identificar em 2004-5, com a colaboração dos
Guarani e de mapas de 1:50.000 expostos sobre a região do oeste paranaense, a localiza-
ção detalhada e o histórico do desaparecimento de pelo menos trinta e duas (32) aldeias
da etnia, processo ocorrido do início dos anos 40 até os anos 80 do século XX, sem que,
quaisquer direitos sobre a posse indígena de tais terras fossem respeitados.
1
Mestre em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/
PUC-SP. Doutora em Geografia pelo Departamento de Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo/FFLCH/USP/SP. Antropóloga aposentada da Fundação Nacional do Índio.

227
Neste artigo recuperam-se algumas das principais questões de cada um dos Lau-
dos Antropológicos, sobre a trajetória vivida pela população Avá-Guarani da atual Terra
Indígena Avá-Guarani do Oco’y/ São Miguel do Iguaçu/Paraná. A situação descrita foca
em síntese, o modo pelo qual esses Guarani vieram perdendo suas terras ao longo dos
anos, terras de quatro aldeias, nas quais várias famílias, atuais habitantes do Oco’y, eram
originários. Convidamos o leitor a observar neste artigo o contexto e as condutas que
foram oficializadas pelos poderes estatais. São vias de ação que envolvem a manipulação
de dois principais dados: território e população.

OS DIREITOS INDÍGENAS SOBRE AS TERRAS QUE OCUPAM

Das Cartas Régias portuguesas de 1609 até a Constituição Federal do Brasil de


1988, os direitos indígenas sobre a posse dos territórios que ocupam vinham sendo ga-
rantidos pelo reconhecimento de serem eles os povos originários, primários e naturais
ocupantes do território.

[...] Assim, as Cartas Régias de 30 de julho de 1609 e a de 10 de setembro de


1611, promulgadas por Felipe III, afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus
territórios e sobre as terras que lhe são alocadas nos aldeamentos: [...] os gentios são se-
nhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser
tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão
ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordena-
dos, salvo quando elles livremente o quizerem fazer [...]. (Carta Régia, 10.09.1611
apud CUNHA, 1987, 58). (grifo do autor)
Ainda é mais explícito é o Alvará de 1º de abril de 1680, que declara que as ses-
marias concedidas pela Coroa Portuguesa não podiam afetar os direitos originais
dos índios sobre suas terras. “Primários e naturais senhores” de suas terras eram
enquanto tais isentos de qualquer foro ou tributo sobre elas. [...] E para que os
ditos gentios, que assim descerem, e os mais, que há de presente, melhor se con-
servem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no
sertão, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. E o
Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão,
lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados
dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo
algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares,
porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais
se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primá-
rios e naturaes senhores delas [...] (Alvará de 01.04.1680, apud CUNHA, 1987, 59)
(grifos nossos/ autor).

228
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha atuou na revisão da legislação indi-
genista, para com outros, contribuírem em novas propostas, à vindoura, na época, hoje,
para a atual Constituição Federal de 1988, tendo escrito a obra “Os Direitos do Índio:
Ensaios e Documentos” (1987). A antropóloga continua a análise através dos tempos
imperial e republicano, afirmando, sobre a situação jurídica contemporânea:

A disputa das terras indígenas e de suas riquezas é o núcleo da questão indígena hoje
no Brasil. [...] Os direitos territoriais dos índios estão garantidos na Constituição vi-
gente2, que data de 1969, seguindo uma tradição constitucional que remonta a 1934
(Const. 1934, art. 129; Const. 1937, art. 154; Const. 1946, art. 216; Const. 1967,
art. 186). Esses direitos são reiterados no Estatuto do Índio e no Estatuto da Terra
(art 2º, parágrafo 4º)3. Na sua formulação atual4, a Constituição atribui à União a
propriedade das terras indígenas (art. 4º, IV) e aos índios a sua posse permanente e
o usufruto exclusivo de suas riquezas (CUNHA, 1987, 32-3).

Os direitos indígenas sobre a posse dos territórios, desde a legislação colonial fo-
ram garantidos por meio do reconhecimento da imemorialidade dessa ocupação.

Os direitos territoriais indígenas derivam, como já foi mencionado acima, do re-


conhecimento de sua posse imemorial (Cavalcanti, 1951, p. 53) e de o fato do
indigenato ser a fonte primária e congênita da posse territorial (Mendes Jr,
1912, p. 57, e Affonso da Silva, 1984, p. 4), reconhecido expressamente em várias
leis coloniais e em particular no Alvará de 1º de abril de 1680, que declara os índios
“primários e naturais senhores (das terras), devendo seus direitos serem pre-
servados diante de concessões de terras a particulares. É um direito decorrente
da ocupação primitiva (Dallari, 1980, p.9), um direito histórico (Carneiro da
Cunha, 1981b). Apesar da força do texto constitucional e talvez precisamente por
causa dela, tenta-se descaracterizar os sujeitos desses direitos territoriais, reduzir a
extensão dos territórios assegurados e desfigurar em leis ordinárias e decretos o que
dispõe a Constituição (CUNHA, 1987, 33) (grifos nossos).

As premissas citadas por Carneiro da Cunha acabou por ser vivenciada pela po-
pulação Guarani do Oco’y. Apesar dos direitos territoriais indígenas serem desde sem-
pre assegurados pelas sucessivas Constituições Federais, no processo histórico verificado
tentou-se descaracterizar os sujeitos desses direitos territoriais, ora como “não índios”,
ora como em número reduzido de “verdadeiros indígenas”; reduziu-se enormemente a

2
Vigente à época, o livro foi publicado em 1987, como material auxiliar nas discussões da Constituinte, que daria origem
a Constituição de 1988.
3
Lei nº 4504 de 30/11/1964. Estatuto da Terra. Título I. Capítulo I. Artigo 2º. É assegurado a todos a oportunidade de
acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta lei. Parágrafo 4º. É assegurado
às populações indígenas o direito à posse das terras que ocupam ou que lhes sejam atribuídas de acordo com a legislação
especial que disciplina o regime tutelar a que estão sujeitas.
4
Atual à época (1987).

229
extensão de seu território, deixando de existir o processo regular de Identificação de Terra de
Ocupação Tradicional, conforme era/é exigido por leis vigentes em todas as épocas, desfi-
gurando-se, desta forma, em leis ordinárias e decretos, o que dispõe a Constituição Federal.
Se até a data da promulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos dos
indígenas sobre as terras eram garantidos em função da imemorialidade histórica da ocu-
pação, a partir dela, esses mesmos direitos irão ser reconhecidos de outra forma, agora,
relativo ao modo de ocupação tradicional5. Ou seja, para ter reconhecido o direito territo-
rial, os indígenas devem estar na pratica realizando este modo especial de ocupação na
própria terra ocupada. A partir da demarcação das terras Raposa Serra do Sol o Superior
Tribunal Federal/STF, lança mais um complicador: os índios só teriam direitos às terras
efetivamente ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
E se os indígenas foram esbulhados de suas imemoriais terras de ocupação em anos an-
teriores? E ainda, se nas poucas e parcas terras que permaneceram eles são impedidos de
realizar a contento seu modo de ocupação tradicional? Em ambas as situações é aqui o
caso dos Guarani do Oco’y. Com esta nova imposição literalmente retiraram o chão - ou
a terra – dos pés dos povos indígenas, que se encontravam nesta situação.
A questão do direito às terras não pode estar reduzida ao um marco temporal, dado
como limite a data da promulgação da Constituição Federal. Atualmente, o poder de Justiça
no Brasil tem desconsiderado o direito indígena sobre as terras, justamente daqueles que fo-
ram esbulhados, daqueles que antes de 1988 estavam impedidos de ocupar suas imemoriais
terras de ocupação. No caso tratado, foram impedidos pelo próprio poder de Estado.

A IMEMORIALIDADE DA OCUPAÇÃO GUARANI


NA REGIÃO DO OESTE DO PARANÁ

No caso dos Guarani do Oco’y os esbulhos ocorreram em período anterior a Cons-


tituição de 1988. Desta forma procuramos em nosso trabalho6 verificar a tradicionalidade
da ocupação Guarani na região do oeste paranaense, em termos da imemorialidade histórica
da ocupação, pois seus direitos territoriais foram rompidos temporalmente, no marco dessa
legislação passada. Restou claro que na região fronteiriça da confluência que englobam o
Paraguai, a Argentina e o Brasil, especialmente neste estudo a região do oeste do Paraná,

5
O modo de ocupação tradicional é a plataforma legal na qual hoje se guia os Relatórios Circunstanciados de Identifica-
ção e Delimitação de Terra Indígena/RCID. Ele é determinado por quatro elementos descritos no Parágrafo 1 do Artigo
231 da Constituição Federal de 1988. Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-
las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º  São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
6
CARVALHO, Maria Lucia Brant de. Laudo Antropológico Parte I/2003 e Parte II/2005.

230
configurou-se como imemorial território de ocupação tradicional da etnia Guarani. O que
foi comprovado por inúmeras informações: - arqueológicas: atesta a presença dos Guarani
na região já no ano 80 Depois de Cristo; - históricas: o explorador espanhol Cabeza de
Vaca os encontra em 1541, em toda a região sudeste do continente, especialmente na área
atual do Parque Nacional do Iguaçu, junto às Cataratas do Iguaçu; - geográficas: diversos
mapas e relatos que provam a presença em todo o oeste paranaense, sul do Mato Grosso do
Sul, leste paraguaio, nordeste argentino; - etnográficas antigas: as 15 missões jesuíticas do
Guairá no Paraná, 13 sobre terras Guarani, nos séculos XVI e XVII; a ação dos bandeiran-
tes paulistas sobre o Guairá, escravização e/ou genocídio praticado contra os Guarani no
século XVII e ao final o desmantelamento das missões no Guairá, com a consequente fuga
dos Guarani para as matas do rio Paraná no mesmo século; Os Tratados entre as Coroas
Ibéricas7 - nos quais é citada a presença da etnia - visando a repartição do território sul-a-
mericano que inclui o território tradicional Guarani, comprometendo-o dessa forma; da-
dos arqueológicos e militares do século XIX, demonstram o retorno dos Guarani a região
do Guaíra; o mapa etnográfico de Curt Nimuendaju Unkel de 1944 demonstra a presença
dos Guarani em ampla faixa de terras do oeste paranaense; e nosso próprio levantamento
etnográfico, mais recente, a seguir descrito.
Por meio de levantamento etnográfico com base na história oral contada pelos
Guarani, foi possível levantar os fatos recentes ocorridos no decorrer século XX; iden-
tificamos a existência de 32 (trinta e duas) aldeias no interior da região denominada
por eles de “Tekoa Guassu”, existentes no grande entorno de Foz do Iguaçu, na qual
as populações Guarani viviam até a década de 40, de onde começaram a ser esbulhadas
paulatinamente ao longo das próximas quatro décadas seguintes, até os anos 80. Como
se vê a história tem sido cíclica, expulsão, retorno, expulsão, retorno.
Todas as 32 aldeias foram identificadas e mapeadas: aldeia, município, localiza-
ção, número aproximado de famílias habitantes, data aproximada do esbulho, quem
passou a ocupá-las8. A área total ocupada pelas 32 (trinta e duas) Terras de Ocupação
Tradicional somou cerca de 132.000 (cento e trinta e dois mil) hectares, segundo a Di-
retoria de Assuntos Fundiários/DAF/FUNAI/MJ, calculo realizado em 2002. São elas:
- Aldeias Campina, Britador, Lope’y, Yvy-u ou Barro Preto, Paraje, Jabuticaba (todas os
seis localizadas no município de Toledo); - Memória e Paková (as duas em Corbélia); -
M’Boi-Picuá (Cascavel); - Rio Branco e Quatro Pontes (as duas em Marechal Rondon);
- Yvyrá-petei ou Iguaçuzinho (Campo Mourão); - Rio Tapera (Laranjeira do Sul); - São
João Velho, Guarani, Colônia-Guarani, M’Boicy e Sanga-Funda (as cinco em Foz do
7
Tratados entre Portugal e Espanha: Tordesilhas (1494); Ultrech (1715); Madrid (1750); El Pardo (1761); Santo Idel-
fonso (1777); Badajós (1801). Após os acordos de limites entre as duas Coroas a região platina começa a apresentar a
conformação geopolítica semelhante à de hoje. Na região das Três Fronteiras, os Guarani foram submetidos inicialmente
a Coroa Espanhola e a partir da metade do século XVIII ao domínio da Coroa Portuguesa. Como povos de fronteira é
natural articularem-se além de na língua materna (guarani), também na língua espanhola e portuguesa.
8
Mapa nº 5 do Laudo Antropológico Parte II/2005, de nossa autoria.

231
Iguaçu); - Camba’i (Porto Britânia/Porto Mendes); - Rio Guavirá, Passo-Kuê, Takuá
-Pindaí, Mborevy, Ipiranga, Mocoitadji ou Dois Ipês e Arroyo Leon (as sete em Santa
Teresinha); - Oco’y-Jacutinga (antigo município de Criciúma hoje São Teresinha de
Itaipu); - Vitorace (Três Lagoas); - Tati-Jupi (Céu Azul); - Três Irmãs e Santa Rosa (as
duas em Santa Helena); - Yvá-Karetã ou Mato Queimado (Espigão Alto).
Foi verificado que na área de ocupação tradicional dos Guarani no entorno de Foz do
Iguaçu instalaram-se dois Grandes Projetos que passaram a ocupar extensas áreas: o Parque
Nacional do Iguaçu, criado em 1939, inicialmente com 1000 e hoje com 185.000 hectares;
a Usina Hidrelétrica de Itaipu, com 111.332 hectares utilizados para a criação do reservatório
e reflorestamento marginal, elaborado o projeto em 1971, instalado em 1982. Ambos os pro-
jetos, para viabilizarem-se previam a evacuação das populações alojadas nas áreas que viriam
a ocupar. No caso do Parque Nacional do Iguaçu, não foi possível encontrar dados sobre o
total da população removida desde sua criação, porém em 1972 ainda viviam na região 457
famílias entre detentores de títulos do Governo do Estado, posseiros, arrendatários e empre-
gados rurais, conforme o Resumo Executivo do Plano de Manejo do Parque Nacional do
Iguaçu (PNI/IBAMA, 2000). No caso de Itaipu, segundo Germani (2003), foram 42.444
indivíduos deslocados da área a ser inundada, nos anos 70. Para a construção da barragem da
hidrelétrica, Itaipu trouxe para a região cerca de 40 mil trabalhadores. Assim, entre as décadas
de 40 e 80 do século XX, a região foi marcada pela escassez de terras disponíveis para assentar
populações, tanto desterritorializadas, como migrantes em número crescente.
Foi comprovado que um grande contingente de população indígena Guarani, ocu-
pava imemorialmente pelo menos 32 aldeias em território praticamente contínuo do oeste
paranaense, denominado pelos Guarani como parte do Tekoa Guassu, o que caracterizava a
posse desse conjunto populacional de terras de ocupação tradicional. Entre as décadas de 40
a 80 do século XX as populações indígenas dessas aldeias foram esbulhadas, seja através de
violência, seja através de fraude, e, em nenhuma dessas terras foram reconhecidas - indepen-
dentemente de sua demarcação como assegura a lei, o Artigo 25 do Estatuto do Índio (Lei
6001/EI/1973) - os direitos indígenas sobre elas; assim, não passaram pelos procedimentos
legalmente previstos, o obrigatório reconhecimento fundiário e populacional pelo poder exe-
cutivo, de responsabilidade das instituições SPI e posteriormente FUNAI. Apesar da legisla-
ção brasileira assegurar constitucionalmente, desde sempre e até 1988, o direito imemorial de
posse das populações indígenas sobre territórios tradicionalmente ocupados, houve omissão
do poder executivo, o que levou à perda dessas terras pelos ocupantes tradicionais, ainda que
o direito indígena sobre elas, como afirma a lei, em tese, seja imprescritível. Nesse contexto
de mudanças regionais foram as populações indígenas, mais uma vez, as primeiras a serem
prejudicadas pelos poderes locais e nacionais. A história se repete.
Ao final dos anos 70, todas as 32 aldeias haviam desaparecido, sem que a legislação
federal vigente em diferentes momentos, sobre os direitos à posse dos territórios ocupados
tradicionalmente pelas populações indígenas fosse respeitada. Assim, foram desconsideradas

232
nas diferentes épocas as seguintes Constituições Brasileiras: Const. 1934, art. 129; Const.
1937, art. 154; Const. 1946, art. 216; Const. 1967, art. 186, Emenda Constitucional de
1969 - art. 198, Constituição Federal de 1988, artigos 231 parágrafos 4º, 5º e 6º e Artigo
232. Esses direitos são reiterados no Estatuto do Índio e no Estatuto da Terra (art 2º, pará-
grafo 4º). Em todas Constituições Federais brasileiras, dispunham sobre a inalienabilidade,
a indisponibilidade, na proibição da remoção, na nulidade e extinção dos atos que tenham
por objeto o domínio e a posse das Terras Indígenas. Portanto, as famílias Guarani e seus
descendentes, componentes das 32 aldeias que viviam na região do Tekoa Guassu, na grande
região do entorno de Foz do Iguaçu, obtinham o direito de permanecer em suas aldeias de
origem, dados os elementos juridicamente legais que os apoiavam, existentes em todas as
Constituições Federais, caracterizados fundamentalmente pela imemorialidade da ocupação.
Indagávamos-nos de que forma as populações Guarani, que detinham a posse
imemorial de terras de ocupação tradicional num amplo território entre Paraguai, Ar-
gentina e Brasil, com comprovada ocupação tradicional em todo o oeste paranaense (32
aldeias), territórios estes legalmente de propriedade da União, tornaram-se praticamente
“povos indígenas sem-terra”, no decorrer dos anos 40 e 80 do século XX?

DE COMO OS GUARANI HABITANTES DA ATUAL TERRA INDÍGENA


AVÁ-GUARANI DO OCO’Y FORAM ESBULHADOS DE SUAS ANTIGAS
TERRAS DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL

Dentre as 32 aldeias citadas, 4 (quatro) aldeias são mais significativas para a po-
pulação indígena que vive atualmente na Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y, por
serem seus atuais membros originários delas. São elas: - Aldeia Guarani; - Aldeia São João
Velho; - Aldeia Colônia Guarani; - Aldeia Oco’y - Jacutinga. Desta forma, nos detivemos
sobre elas buscando entender como ocorreram os fatos que envolvem a perda das terras.
Pesquisamos informações detalhadas junto aos indivíduos que no passado habitaram
as quatro aldeias; esses descrevem que após varias e paulatinas expulsões destas aldeias,
por sua própria resistência vieram mais tarde a ser reassentados, constituindo assim, a
população da Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y.
Como metodologia de trabalho realizamos o cotejamento de três tipos de in-
formações: - Levantamento etnográfico de campo: os fatos narrados oralmente pelos
informantes indígenas; - Levantamento de gabinete: histórico da região e especialmente
a documentação oficial existente de cada época respectiva, que perfaz 30 anos de docu-
mentação, recolhida em vários locais e juntada ao processo nº 1053/76 existente nos
arquivos do Centro de Documentação da FUNAI (CEDOC/FUNAI); e, por fim, tais
informações foram cotejadas com as respectivas legislações federais existentes em cada
período histórico correspondente aos fatos. Disso resultou seguidos processos de esbulho

233
por fraude e/ou violência nas quatro aldeias, processo no qual nenhum dos direitos indí-
genas consagrados pelas sucessivas Constituições Federais, durante os 30 anos analisados
foram cumpridos. A seguir, os processos de esbulho nas 4 aldeias.

TERRA DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL - ALDEIA GUARANI

A idosa Narcisa Tacua Catu de Almeida descreveu a situação vivida na Aldeia


Guarani, localizada a poucos metros, em frente às Cataratas do Iguaçu, às margens do
rio Iguaçu, em Foz do Iguaçu/Pr, situação presenciada quando menina.

Box nº 1. Depoimento Guarani. Senhora Narcisa Tacua Catu de Almeida

Nasci no Oco’y-Jacutinga9 em 1924. Fui mora na aldeia Guarani em 1934. Morei


ali até 1943. Morava 50 família, na Aldeia Guarani, perto do Rio Iguaçu, lá onde
hoje é o Parque Nacional do Iguaçu. Afirma que na década de 1940, houve um
massacre, que ela e sua família assistiram escondidos na mata, emocionada, des-
creve: (...) guerra com os índio para tira os Guarani da terra: Eu vi, eu vi, mataram
tudo! Jogavam os índios nas Catarata, abriam a barriga com facão e jogava depois
nas Catarata (do Iguaçu). Enquanto fala ela demonstra com as mãos, o corte a
facão que era feito, do baixo ventre ao coração. Indagada do porque o corte assim,
ela afirma: era para o corpo não boiá, pra afunda! Continua: O cacique da Aldeia
Guarani (Téve) e a mulher dele (Aispis) foram tudo morto, e jogado nas Catarata.
Nesse massacre, tinha quatro padre: dois era amigo dos índio e dois que era contra
os índio, um de cada lado, que era “irmãos”, brigaram muito e se mataram ali. A
Catarata é cemitério Guarani. Em 1944 fui mora na aldeia São João Velho10. Mora-
vam 40 família na aldeia São João Velho, perto da antiga Usina (Hidrelétrica) São
João (hoje desativada), perto do Rio São João. Eu morei lá de 1944 a 1962. Depois
tivemo que saí de lá também, os branco expulsou os Avá-Guarani. Tem o cemitério
lá, minha sogra, Siriaka Coronel Martinez, foi enterrada ali. Em 1962 fui mora na
aldeia Colônia Guarani11. Os branco do INCRA expulsou os Guarani dali também.
Em 1967 nasceu Laureano (seu filho). Em 1981 voltei a mora no Oco’y-Jacutinga.
Quando inundaram o Oco’y-Jacutinga, depois vim mora aqui na Aldeia do Oco’y12,
isso foi no ano de 1982. Apesar de idosa, ainda pretende ir residir em outra aldeia,
ela afirma: quero vive num lugar mais tranquilo.13.

9
Aldeia que na década de 70/80 viria a ser parte tomada pelo INCRA, parte inundada pela Itaipu.
10
Aldeia em área de terras que também veio a tornar-se o atual Parque Nacional do Iguaçu/PNI.
11
Antigo município de Três Lagoas, atual Santa Teresinha, próximo à Foz do Iguaçu.
12
Atual Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y em São Miguel do Iguaçu.
13
Em torno de 2011 Dona Narcisa faleceu.

234
O Parque Nacional do Iguaçu foi fundado em 1939. A Aldeia Guarani foi invadi-
da em 1943. Dona Narcisa descreve que na ocasião os sobreviventes desta aldeia fugiram
para as Aldeias mais próximas, Aldeia São João Velho, Aldeia Colônia Guarani, Aldeia
Oco’y-Jacutinga e para outras aldeias no Brasil e no Paraguai. Como veremos é cíclica a
fuga, e, cíclica é a perseguição.

TERRA DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL - ALDEIA SÃO JOÃO VELHO

Narcisa Tacua Catu de Almeida também descreve a situação vivida na Aldeia São João
Velho. Afirma que havia cerca de 40 famílias nesta aldeia até ser invadida; a Aldeia se localizava
junto à Usina (hidrelétrica) São João, hoje desativada, próxima às Cataratas do Iguaçu, às mar-
gens do rio Iguaçu, também no interior do atual Parque Nacional do Iguaçu/ Foz do Iguaçu/Pr.
Ela descreve que na década de 60, provavelmente 1962, os “brancos” invadiram e expulsaram
com armas os Guarani do local. Dona Narcisa descreve que fugiram para aldeias mais próximas,
Aldeia Colônia Guarani, Aldeia Oco’y-Jacutinga entre outras aldeias no Brasil e no Paraguai.
Em 1939 o Parque Nacional do Iguaçu é fundado pelo antigo Instituto Brasileiro
de Defesa Florestal/IBDF, em área de terras de 1000 hectares, as quais as Aldeias Gua-
rani e São João Velho passaram então, a estar inseridas. Tudo leva a crer que o esbulho
praticado através de violência em 1943 na Aldeia Guarani e a expulsão sob a mira de
armas em 1962 da Aldeia São João Velho, tinha como principal interessado o próprio
IBDF, já que o ocupante que sucedeu os Guarani foi e ainda é a mesma Unidade de
Conservação, o Parque Nacional do Iguaçu/IBAMA.
Há muitas provas da imemorial presença indígena Guarani nestas áreas que vie-
ram a ser ocupadas pelo Parque Nacional do Iguaçu. Além dos depoimentos de sobre-
viventes indígenas Guarani residentes no Oco’y, obtivemos informações sobre achados
arqueológicos de várias épocas, como também dados históricos, geográficos, etnográfi-
cos (antigos e contemporâneos), os quais foram descritos nos Laudos Antropológicos I e
II (CARVALHO, M. L. B de., 2003 e 2005 respectivamente).
O depoimento de Dona Narcisa, comprova a evidente habitação Guarani em alguns
locais da região de tradicional ocupação da etnia, e ainda, suas várias e obrigatórias retiradas,
seja por massacre e/ou expulsão. Assim, a atual Unidade de Conservação administrada pelo
IBAMA é local tradicional, habitado imemorialmente pelos Guarani, pois como exposto em
Laudo, desde as viagens de Cabeza de Vaca (século XVI), os Guarani já estavam ali, sendo
comprovadamente habitado até os anos 40 na Aldeia Guarani e até os anos 60 na Aldeia
São João Velho. Portanto, não se trata de uma “longínqua antiguidade” a presença indígena
Guarani na área administrada pelo IBAMA, o Parque Nacional do Iguaçu. Ao contrário do
que a mídia dominante na região veicula, os Guarani só foram definitivamente expulsos da
Unidade de Conservação recentemente, na segunda metade do século XX.

235
Quando o IBDF em 1943 ocupou a Aldeia Guarani na região, já vigorava legisla-
ção federal que defendia o direito à posse das terras pelos indígenas: Constituição Fede-
ral de 1934, artigo 129; Constituição Federal de 1937, artigo 154. Da mesma forma em
1962 quando o IBDF ocupou a Aldeia São João Velho, já vigorava a Constituição Fe-
deral de 1946, art. 216. Desta forma o poder executivo foi omisso, deixando de realizar
a identificação fundiária e populacional em ambos os casos, do território de ocupação
tradicional Guarani.
Dada a antiguidade da ocupação destas duas aldeias, até então obtivemos somen-
te o depoimento de indígenas idosos e os dados arqueológicos; a partir dos anos 70,
quando se inicia efetivamente a presença da FUNAI na região, começa então a surgir os
documentos oficiais, que somados aos depoimentos indígenas, resultaram nas informa-
ções a seguir à respeito das Aldeias Colônia Guarani e Oco’y-Jacutinga.

TERRA DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL - ALDEIA COLÔNIA GUARANI

A Aldeia Colônia Guarani localizava-se na antiga região denominada Três Lagoas,


hoje Santa Teresinha, município colado praticamente como bairro periférico de Foz do
Iguaçu. Localiza-se à margem direita da Rodovia BR-277, no sentido Cascavel - Foz do
Iguaçu, entre Km 530 e 532. O local onde se localizava tal aldeia passou a ser habitado
por colonos e foi denominado com o sugestivo nome de “Vila Guarani”.
Há muitos indivíduos vivos no Oco’y que viveram em Colônia Guarani, foram
colhidos seus depoimentos, assim como os depoimentos de não indígenas antigos mora-
dores da região, os quais comprovaram a ocupação indígena no local. Segundo relato dos
indígenas antigos habitantes de Colônia Guarani, as famílias Guarani foram expulsas à
força por funcionários do INCRA. Os fatos se deram na década de 70, em duas ações do
INCRA, uma em 1971, esbulho por fraude, e, outra, em 1976, esbulho por violência,
sem qualquer intervenção da FUNAI. Em 1971, o INCRA considera as terras de Co-
lônia Guarani como terras devolutas através de “Processado de Discriminação de Terras
Devolutas” do INCRA. Assim ela foi expropriada14 pelo Decreto Federal nº 69412 de
22.10.1971, do Projeto Integrado de Colonização OCOI I/ PIC-OCOI I (área reserva-
da a assentamento de colonos) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-
ria/INCRA15. Em 1976, os funcionários do INCRA praticaram o esbulho através de
violência contra os Guarani. Segundo os indígenas, os funcionários invadiram a aldeia,
arrancaram seus pertences das casas e os atiraram na estrada, atearam fogo nas casas,

14
Conforme ocorreu também com a aldeia Oco’y-Jacutinga, aldeia vizinha, que no mesmo ano de 1971, foi expropriada
pelo mesmo Decreto nº 69412 de 22.10.1971 do PIC-OCOI I-INCRA.
15
Projetos Integrados de Colonização do rio Ocoi - PIC-OCOI I e II. Decreto Federal n.º 69412. INCRA. 22.10.1971.
PIC OCOI I – Área reservada para assentamento de colonos. PIC OCOI II – Área reservada para alagamento por Itaipu.

236
ameaçando-os com armas, obrigando desta forma a retirada, a subir no caminhão que se
dirigiu ao Paraguai, despejando-os no país vizinho. Afirmaram os Guarani que: “quem
se recusasse a subir no caminhão levava tiros na canela”. Alguns indígenas declararam que
fugiram para a Aldeia do Oco’y-Jacutinga.
Os relatos da FUNAI de Curitiba, sobre os índios da região do oeste paranaense
começam a surgir somente em 1976. Os documentos são vários, retivemos o que de
mais importante descrevem. Tais documentos fazem parte de processo nº 1053/76/Cen-
tro de Documentação da FUNAI em Brasília.
Em ofício do Delegado Regional da FUNAI/Curitiba/4º DR/FUNAI16, dirigido
ao Presidente da FUNAI são colocados argumentos à respeito de Colônia Guarani:

Em 1971, esta DR (FUNAI) foi alertada pelo Comando do 1º Batalhão de Fron-


teiras e pelo Chefe do DFZ-01, Distrito de Terras do PR e SC do IBRA, a respeito
da existência de grupo tribal e da conveniência de regularização da área de terras
por ele ocupado e localizado no município de Foz do Iguaçu, assuntos esses enca-
minhados à apreciação da administração central da FUNAI.
No início do ano passado (1975), a FUNAI solicitou a Coordenadoria Regional
do INCRA/PR esclarecimentos acerca da Colônia Guarani, situada na localidade
Santa Teresinha ou Três lagoas, nas proximidades da rodovia que demanda a Foz
do Iguaçu, tendo esta DR, pelo ofício nº 110/75-Gab/4º DR, de 25.04.75 após
ligeiro histórico, proposto a constituição de Equipe FUNAI-INCRA para efetiva-
ção de diligências necessárias à localização e reunião de grupos tribais, à delimita-
ção da Colônia Guarani e de outras áreas indígenas existentes na região e à efetiva
ocupação das mesmas pelas comunidades silvícolas.
As dificuldades na consecução de recursos financeiros e viatura, bem como de ser-
vidores habilitados retardaram a composição dessa equipe, até que, em vista do ofício
nº INCRA-4 (09) nº 247/76, de 23.01.76, da Coordenadoria Regional do INCRA,
que aludia à expedição de títulos em favor de 55 ocupantes da Colônia Guarani, foi
necessário recorrer aos préstimos [...] de que resultou o anexo relatório do servidor
Nelson Silva (FUNAI): [...] a Colônia Guarani foi demarcada pelo Distrito de Terras
do Paraná e Santa Catarina do INCRA, dentro das terras da primitiva área ocupada
por grupo tribal Guarani, onde viviam na década de 30, cerca de 40 famílias indíge-
nas, algumas numerosas, chegando até a contar com 17 membros.
Informou também, o Cel Belo, atual Diretor do Parque Nacional do Iguaçu, que
há uns dez anos (1966), quando no Comando do 1º Batalhão de Fronteiras em
Foz do Iguaçu, existiam famílias indígenas nessa área, também conhecida por Três
Lagoas, com os quais manteve contato por intermédio do Sargento Orcídio A.
Dias, o qual pessoalmente confirmou a informação.
Esse grupo tribal vivia quase que exclusivamente da caça e pesca e de alguma la-
voura [...] foi quase totalmente dizimado por epidemia de maleita no período de
48/50, tendo os remanescentes na década de 50/60, sob pressão dos civilizados, se
retirado da área. A área está toda cultivada, é toda cortada por estradas e ocupada

16
Todos os grifos (sublinhados, itálicos e negritos) à respeito de Colônia Guarani são nossos.

237
por civilizados, não possui mais matas. [...] encontrei cerâmica Guarani.
[...] A área está toda intrusada, ...estando o INCRA com os títulos de 70 lotes
prontos para ser entregues aos ocupantes.
Consta que não vive família indígena alguma na área, pois os índios remanescentes
devem estar espalhados na região de Foz do Iguaçu e Paraguai, a que depende de
mais minuciosa e demorada verificação.
Se, mediante tais diligências, se apurar a existência de famílias Guarani, talvez
fosse possível localizá-los no Parque Nacional do Iguaçu/PNI, cujo Diretor, to-
davia, afirmou inexistirem índios no interior do mesmo. (Curitiba. 20.02.76. of.
nº045/76/Gab/4º DR/FUNAI)

Portanto, em 1971 a FUNAI é alertada sobre a existência do agrupamento indígena


no local, bem como da conveniência de se fazer diligência imediata para regularizar a área de
terras por ele ocupada. No mesmo ano o INCRA expropria ilegalmente a área de terras de
Colônia Guarani em favor do PIC-OCOI I/INCRA. Somente após cinco anos, em 1976,
a FUNAI faz diligência na área, a partir de informação do INCRA referente à expedição de
títulos em favor de 55 ocupantes não índios sobre o território de Colônia Guarani. Portanto,
somente após a ocupação da área pelo INCRA e a expulsão dos Guarani da mesma, a FU-
NAI se dirige ao local. O funcionário designado pela FUNAI confirma a existência recente
de grupo indígena no local e também sua expulsão, atestando a intrusão da área. Mas, ao
invés de trabalhar pela desintrusão da área, destinando a posse aos Guarani, conforme o Es-
tatuto do Índio vigente na época, tal funcionário não procura os índios na região, sugerindo
que, se encontrados, fossem colocados no Parque Nacional do Iguaçu.
O próximo documento - ofício do INCRA de 1976 para o Delegado Regional de
Curitiba/FUNAI indica que as famílias Guarani de Colônia Guarani, foram num “passe
de mágica”, nesta data de 1976, finalmente encontradas pelo INCRA:

[...] comunicamos a consulta procedida por esta CR (INCRA) junto à DR do


IBDF, sobre a possibilidade de localização das famílias Guarani na área do Parque
Nacional do Iguaçu [...] .
Tendo em vista as constantes pressões que vem sofrendo esta CR, para que se
proceda a titulação daquela área a seus ocupantes, sendo do inteiro conhecimento
público que todo processo administrativo encontra-se concluído, faltando somen-
te a liberação da área por esse Orgão (FUNAI) para a outorga dos títulos, vimos,
nesta oportunidade, reiterar a Vossa Senhoria o valioso empenho no sentido de
ser procedida a liberação da gleba para os fins propostos. (Curitiba 24/05/1976
ofício/INCRA – 4(09) nº 1733/76)

Da situação de não encontrados, não habitando a região, de hora para outra os


Guarani são encontrados ainda em 1976 na aldeia; objetiva o INCRA assentar a popu-
lação indígena de Colônia Guarani no Parque Nacional do Iguaçu. Medida que é negada
pelo IBDF. O INCRA solicita a liberação da área pela FUNAI.

238
Em ofício do Delegado Regional da 4º DR/ Curitiba /FUNAI para o Presidente
da FUNAI General Ismarth de Araujo Oliveira é afirmado sobre Colônia Guarani:

[...] apesar de o IBDF pronunciar-se contrariamente ao assentamento dos índios


no PNI, insiste o INCRA na liberação das terras da Colônia Guarani, para fim
de titulação das mesmas em favor dos civilizados que as invadiram e as vêm
ocupando, razão por que solicito decisão final de V. Exa.

Em seguida refere-se ás terras de ocupação tradicional do Oco’y-Jacutinga:

[...] De outra parte, informa o INCRA que as terras ocupadas por famílias indí-
genas na região do Ocoi serão totalmente inundadas por efeito de instalação da
hidrelétrica de Itaipu, motivo porque rogaria a V. Exa, entender-se com a adminis-
tração central do INCRA no sentido de que determine à Coordenadoria Regional
a manutenção das citadas famílias nas terras remanescentes do PIC-OCOI, em
local próximo a represa a ser construída.(Curitiba 28/05/76 ofício nº ?/76/Gab/4º
DR/FUNAI)

Portanto, o Delegado Regional da FUNAI/Curitiba dirige-se ao Presidente da


FUNAI colocando dois problemas: 1) O IBDF nega o assentamento dos indígenas de
Colônia Guarani no Parque Nacional do Iguaçu/PNI. O INCRA insiste na liberação
da área Colônia Guarani em favor dos colonos ocupantes. Solicita decisão final do Pre-
sidente da FUNAI. 2) O INCRA informa que as terras habitadas pelos Guarani do
Oco’y-Jacutinga serão totalmente inundadas pela represa da hidrelétrica de Itaipu. Po-
rém, como veremos adiante, o próprio INCRA é que havia desalojado também estes
índios de seu território, empurrando-os para esse mesmo local o qual foi acima referido,
ainda em território indígena, local no qual seria alagado por Itaipu.
Em documento interno do INCRA é afirmado sobre Colônia Guarani:

A Colônia Guarani localizada [...]. encontra-se totalmente ocupada por famílias


de agricultores, já demarcada pelo PFP/ INCRA, no aguardo de apenas autoriza-
ção da FUNAI, para que seja entregue os títulos a 70 ocupantes. [...] Não existem
famílias indígenas ocupando a área.

Em seguida refere-se ao Oco’y-Jacutinga, e ao procedimento do próprio INCRA


contra os Guarani desta localidade.

Acreditamos na deturpação dos informes chegados à Pres/FUNAI, referente ao


procedimento hostil que estariam tendo as 8 famílias de remanescentes indígenas
que habitam às margens do rio Paraná na área do PIC-OCOI I, por parte de ser-
vidores daquele Projeto. (Curitiba. 29.06.76. Doc. Interno do INCRA)

239
O ofício do Presidente da FUNAI/1976 ao Presidente do INCRA refere-se à
Colônia Guarani:

Dirijo-me a V. Sa. em face dos problemas existentes na área da Colônia


Indígena Guarani situada na localidade de Santa Teresinha ou Três Lagoas,
na proximidade da rodovia que leva à Foz do Iguaçu, onde existe grupo
tribal.
Dos entendimentos realizados junto ao CR/INCRA/PR, ficou patente a
necessidade de imediata remoção do grupo para outro local, em face
da premência na liberação da área, em favor dos civilizados que a habi-
tam e que terão seus lotes titulados por este Instituto.
Procurando solução para o problema [...] o INCRA encaminhou ao IBDF,
expediente consultando aquele órgão sobre a viabilidade de instalar o refe-
rido grupo no Parque Nacional do Iguaçu/PNI. O IBDF responde negati-
vamente, apoiando-se no princípio de desalojamento total de famílias nos
parques nacionais.

Em seguida refere-se aos Guarani do Oco’y-Jacutinga:

Por outro lado os remanescentes Guarani, que residem na barra do


rio Ocoi, Rio Paraná, onde o INCRA desenvolve o PIC-OCOI I, estão
sendo ameaçados de despejo sumário, por parte de elementos desta
entidade, sob a alegação que esta região será inundada por força das
obras da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Em face de problemas de tão significativa relevância, que vem preocupando
sobremodo esta Presidência, solicito de V. SA um pronunciamento sobre
a real situação daquelas áreas e das alternativas que poderão ser oferecidas,
para equacionamento da situação que se apresenta realmente grave para
as comunidades indígenas ali residentes. Tendo em vista que o IBDF não
pode permitir a transferência dos índios para o PNI, consulto-lhes sobre
a possibilidade do INCRA determinar uma área para a sua localização,
onde possam exercer atividades para sobrevivência (caça, pesca e agricultu-
ra de subsistência). (Ofício nº ?/ junho/1976/PRES/FUNAI/BSB)

O pronunciamento do Presidente da FUNAI de então17, no mínimo era paradoxal,


com relação a Colônia Guarani concordava com a ilegal remoção dos Guarani em favor dos
ditos “civilizados”! Com relação ao Oco’y-Jacutinga ao mesmo tempo que afirma à respeito

17
General Ismarth de Araujo Oliveira. General do Exército que presidiu a FUNAI de 1974 a 1979.

240
da atitude do INCRA: que “estão sendo ameaçados de despejo sumário, por parte de ele-
mentos desta entidade”, afirma em seguida: “consulto-lhes sobre a possibilidade do INCRA
determinar uma área para a sua localização”. A FUNAI, técnica e legalmente, deveria intervir
de antemão, afirmando sua responsabilidade institucional de defesa das Terras Indígenas,
i.e., não permitir por princípio Constitucional uma “ação de despejo sumária” por parte de
terceiros sobre terras de posse tradicional das Comunidades Indígenas. A responsabilidade
de Identificação do território ocupado pelos indígenas era da FUNAI. O caso “de possível
remoção do grupo tribal para outra área” – pelo alagamento, de forma intempestiva, também
era ilegal. Não poderia o Presidente da FUNAI solicitar à terceiros uma incumbência técnica
que era sua, e ainda solicitar área para a instalação dos índios ao próprio INCRA, que, como
veremos adiante, havia expulsado os Guarani do Oco’y-Jacutinga de suas terras, para este
mesmo local que seria alagado, onde ficaram reduzidos.
Em resumo, no caso de Colônia-Guarani, funcionários da FUNAI indicam ini-
cialmente de forma correta, que se deve proceder a demarcação para que os indígenas
não percam suas terras. Nada é feito neste sentido. A FUNAI “se atrasa” e deixa de ir
em busca dos Guarani que haviam sido expulsos da região. O INCRA ocupa o espaço,
provocando de fato a expulsão dos Guarani. Em seguida, com os 70 títulos de terras
já prontos, o INCRA pressiona a FUNAI com o fato consumado: o assentamento de
“civilizados” em área tradicional de ocupação Guarani. A FUNAI, por seu turno, não
requer a área em favor dos índios conforme a legislação em vigor na época, Artigo nºs
25 e 38/Estatuto do Índio/1973. Assim, a Terra Indígena Colônia Guarani, de posse dos
indígenas é perdida através de autorização do Presidente do próprio órgão indigenista,
FUNAI, que afirma “a necessidade de imediata remoção do grupo para outro local em
face da premência na liberação da área, em favor dos civilizados”. A autorização do Pre-
sidente da FUNAI se dá através de certidão negativa, a qual afirma que Colônia Guarani
não era local de habitação tradicional indígena. Portanto, solução em desacordo com a
legislação e com a realidade. Em 21 de dezembro de 1976, são emitidos pelo INCRA,
62 títulos aos ocupantes colonos da Terra Indígena Colônia Guarani. Os documentos
comprobatórios dos fatos aqui arrolados pertencem ao processo nº 1053/1976/FUNAI,
o mesmo foi anexado no Laudo Antropológico 2º (Anexo nº1)18.
Outro depoimento significativo é o do empresário Sr Silvio, proprietário de ho-
téis em São Miguel do Iguaçu (Marcom e Letto de Fiori). Ao informar ter visitado algu-
mas vezes a referida aldeia a título de ajuda humanitária, relata ter batizado crianças com
freiras da região e apresentou fotos da aldeia de Colônia Guarani, feitas em 1958, pelo
próprio empresário e familiares. As fotos, prova contundente da ocupação tradicional
Guarani no local, foram apresentadas em Laudo Antropológico 2º (Anexo nº 2)19. Afir-
mou ainda que os colonos que atualmente residem no local, são provenientes do Parque
18
Ver nota nº 1 deste artigo.
19
Idem.

241
Nacional do Iguaçu, quando no início dos anos 70, foram obrigados a se retirar do local.
O depoimento acerca do local de origem dos colonos é comprovado pelos próprios co-
lonos, que residem na região.
Assim, o INCRA e o Presidente da FUNAI acabaram ferindo os seguintes artigos
legais, então em vigor, no caso de Colônia Guarani: - Emenda Constitucional nº 1 de
17. 10. 196920; O Estatuto da Terra, Lei nº 4504 de 30/11/1964, lei que rege a maioria
dos atos relativos ao órgão governamental INCRA21; e o Estatuto do Índio, Lei nº 6001
de 19/12/1973, os Artigos 2º, item V e IX, o Artigo 18, 25 e 3822:

TERRA DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL - ALDEIA OCO’Y-JACUTINGA

A seguir o histórico desta aldeia, desde o inicio das primeiras reduções territoriais
pelos agentes nacionais.

1º Esbulho - Estrada Velha Foz-Guaíra

Não há informações na FUNAI sobre a extensão original do “território de ocu-


pação tradicional” do Oco’y-Jacutinga, por ausência de Identificação Fundiária. Porém,
em 1971, o INCRA afirmou que o “Terreno OCOI” apresentava a extensão de 12.500
hectares. Mostrado o mapa deste terreno aos Guarani, eles o identificaram como grande
parcela da área de ocupação tradicional do próprio Oco’y-Jacutinga.
20
Emenda Constitucional nº 1 de 17. 10. 1969: Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos
que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido seu direito ao usufruto exclusi-
vo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. Parágrafo 1º. – Ficam declaradas a nulidade e a extinção
dos efeitos jurídicos de qualquer natureza, que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas
pelos silvícolas. Parágrafo 2º - A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não darão aos ocupantes direito
a qualquer indenização ou ação contra a União e a Fundação Nacional do Índio.
21
Estatuto da Terra, Lei nº 4504 de 30/11/1964/INCRA: Título I. Capítulo I. Artigo 2º. É assegurado a todos a oportu-
nidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta lei. Parágrafo 4º. É
assegurado às populações indígenas o direito à posse das terras que ocupam ou que lhes sejam atribuídas de acordo com
a legislação especial que disciplina o regime tutelar a que estão sujeitas.
22
Estatuto do Índio, Lei nº 6001 de 19/12/1973. Os Artigos 2º, item V e IX, o Artigo 18, 25 e 38: Artigo 2º. Cumpre
à União, aos estados e Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua com-
petência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação de seus direitos; V- garantir aos índios a permanência
voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso; IX – garantir aos índios
e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o
direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes; Art. 18º. As terras
indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício
da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas. Artigo 25º. O reconhecimento do direito dos índios e
grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição federal, inde-
penderá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual
e ao consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação, sem prejuízo de medidas cabíveis que, na omissão ou erro do
referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República. Artigo 38º. As terras indígenas são inusucapíveis e sobre elas
não poderá recair desapropriação, salvo o previsto no Artigo 20.

242
Na década de 40 do século XX, ocorreu que com a abertura da “Estrada Velha
Foz-Guaíra”, cortou-se o território de ocupação tradicional Guarani do Oco’y-Jacutinga
de norte a sul. Os Guarani mantiveram a posse somente da banda esquerda do território,
localizada entre o limite da citada estrada, Estrada Velha Foz-Guaíra à leste, o Rio Paraná
a oeste, o Rio Oco’y ao norte e o Arroio Jacutinga ao sul. Neste momento as terras do
Oco’y-Jacutinga passaram a apresentar 1500 hectares. Na época o município denomi-
nava-se Criciúma, com a inundação das terras por Itaipu, houve a mudança de nome e
conformação de vários municípios.

2º Esbulho – INCRA

O contexto histórico regional nos anos 70 caracterizava-se pela criação dos dois Gran-
des Projetos na mesma área do oeste paranaense, Parque Nacional do Iguaçu com 185.000
hectares, criado em 1939, mas que ainda retirava populações do interior da área e Usina Hi-
drelétrica de Itaipu com 770 km2 de área a ser ocupada no Brasil, que viria a partir de então,
começar a retirar populações do interior da área. Assim, os dois projetos previam a evacuação
das populações de seu interior. A Hidrelétrica como vimos, ainda recebeu muitos trabalhado-
res de fora da região. O INCRA tinha como missão, retirar e reassentar toda essa população
residente nas áreas dos dois Projetos e também destinar espaço aos recém-chegados trabalha-
dores na construção da Hidrelétrica. O Decreto Federal nº 69.412 de 22.10.1971 do IN-
CRA (já mencionado) então dividiu as porções de terras na região da aldeia Oco’y-Jacutinga
próxima ao rio Ocoí, em áreas que foram reservadas tanto para assentamento de colonos, área
denominada “PIC-OCOI I - INCRA”, quanto área destinada para inundação para formação
da represa de Itaipu, a qual denominou-se “PIC-OCOI II - INCRA”.
O denominado “Terreno OCOI” pelo PIC-OCOI - INCRA, perfazia 12.500
hectares sobreposto ás terras de ocupação tradicional dos Guarani do Oco’y-Jacutinga,
área anterior aos anos 40. Segundo o INCRA, com o projeto de instalação da hidrelétri-
ca de Itaipu, esse “Terreno” viria a perder 2/3 de sua superfície original, antes destinada
aos assentamentos. Assim, a área em que o PIC-OCOI I do INCRA fixou famílias,
muitas procedentes do Parque Nacional do Iguaçu, veio a ficar reduzida a 1/3 de seu ta-
manho original. Portanto, na verdade, se considerarmos apenas os 12.500 hectares como
a terra original dos Guarani, a “imemorial terra de ocupação tradicional do Oco’y-Jacu-
tinga” foi inundada por Itaipu em 2/3, o que corresponde a 8.332 ha (oito mil, trezentos
e trinta e dois hectares) e ocupada em 1/3 pelo INCRA, para seus assentamentos, o que
corresponde a 4.168 ha (quatro mil cento e sessenta e oito hectares) de área ocupada.
Após a criação da Estrada Velha Foz-Guaíra nos anos 40, esta terra indígena ficou
reduzida a 1500 hectares, localizada no local descrito (limite da citada Estrada Velha Foz-
Guaíra a leste, o Rio Paraná a oeste, o Rio Oco’y ao norte e o Arroio Jacutinga ao sul),
município de Criciúma. Após a inundação da represa de Itaipu, foram modificadas a con-

243
figuração dos municípios, uns desapareceram, outros se fundiram, novos foram criados,
enfim, vários municípios da região mudaram de nomes; neste processo estas terras passa-
ram a estar localizadas no agora denominado município de Santa Teresinha de Itaipu23.
Oco’y-Jacutinga, foi uma das aldeias onde muitos dos Guarani se refugiaram
dado o processo geral de esbulho a que estavam sujeitos. Esta aldeia se localizava mais
afastada do centro de tensão política maior, Foz do Iguaçu. Os Guarani passaram a ser
esbulhados no Oco’y-Jacutinga pelo INCRA, de forma semelhante como ocorreu em
Colônia Guarani. Em 1971 a área de terras do Oco’y-Jacutinga é esbulhada através
de fraude, como se ali não existisse ocupação por terra indígena, pelo mesmo Decreto
Federal nº 69412 de 22.10.1971 do Projeto Integrado de Colonização OCOI I (área
reservada a assentamento de colonos) /PIC-OCOI I do INCRA.
Segundo depoimento dos Guarani em 1973 haviam cerca de 70 famílias indíge-
nas no Oco’y-Jacutinga. Nesta data se dá o esbulho por meio de violência. Segundo de-
poimento dos indígenas a expulsão se deu por meio de tiros nas pernas, queima de casas,
pertences jogados na estrada, obrigação de subir no caminhão que iria para o Paraguai,
atos praticados da mesma forma pelos funcionários do INCRA, situação semelhante a
ocorrida em Colônia Guarani. Nesta data, 1973, a reduzida “terra de ocupação tradicio-
nal” Guarani, já era ilegalmente denominada pelo PIC-OCOI I - INCRA de “Terreno
OCOI”, pelo Decreto Federal citado, de 1971. Os ocupantes não índios que vieram a
ser reassentados em toda a parte leste do Oco’y-Jacutinga eram - da mesma forma como
ocorreu com Colônia Guarani, colonos que foram retirados da Unidade de Conservação
administrada pelo IBAMA, o Parque Nacional do Iguaçu, os quais foram reassentados
ali pelo INCRA. O INCRA expediu titulações das terras em nome dos colonos sobre a
área, com a provável indevida permissão da FUNAI.
Nesta data (1973) as famílias Guarani são deslocadas à força pelo INCRA para
pequena parcela, ainda em território indígena, às margens do rio Paraná, local que mais
tarde, em 1982, seria inundado pela Usina Hidrelétrica de Itaipu, atenção, local este, já
previsto pelo PIC-OCOI II/INCRA, desde 1971, para inundação para formação da re-
presa. Está clara a má-fé do órgão. Mantiveram-se na pequena área de terras 32 famílias,
ainda em território de ocupação tradicional Guarani, espremidas entre a ocupação dos
colonos e o Rio Paraná. As demais (38 famílias) foram obrigadas a se deslocar, muitas
para aldeias no Paraguai, outras para aldeias no Brasil, outras ainda dispersas pelas terras,
de forma que estavam naquele período histórico desaldeadas.
Quanto á responsabilidade do poder Executivo, nota-se que em 1971 a FUNAI
apesar de ter sido alertada pelo Comando do 1º Batalhão de Fronteiras de Foz do Igua-
çu, para verificar as duas áreas de ocupação tradicional Guarani que estavam para ser
esbulhadas por não índios, a saber, “Colônia Guarani e Oco’y-Jacutinga”, porém, a ins-
23
Questão essa, a mudança de nomes, que confundiu muito a localização exata das terras perdidas de cada indivíduo na
região, considerando-se a tecnologia informacional existente na época.

244
tituição não se mobilizou para dirigir-se aos locais. Somente em 1976 dirigiu-se à região
das aldeias, quando estas já estavam tomadas por colonos reassentados pelo INCRA.
O que caracteriza a omissão, dado não haver sido realizada novamente a “Identificação
Fundiária” da terra de ocupação tradicional Guarani de Oco’y-Jacutinga.
Quanto á legislação federal pertinente à proteção dos direitos territoriais indí-
genas nas épocas dos esbulhos observa-se que a partir de 1971 foi desconsiderada a
Constituição Federal de 1967, art. 186; a Emenda Constitucional de 1969, artigo 198,
parágrafos 1º, 2º e 3º; o Estatuto da Terra. Lei nº 4504 de 30/11/1964. Título I. Capí-
tulo I. Artigo 2º. E a partir de 1973, o Estatuto do Índio. Lei nº 6001 de 19.12.1973,
Título I. Artigos 2º, item V e IX, Título III. Das Terras dos Índios. Capítulo I. Artigo nº
18; Capítulo II. Artigos nº 22º e seu parágrafo único, 23º, 24º, 25º e 38º.

3º Esbulho - Itaipu Binacional

Até 1976 ainda permaneciam 32 famílias indígenas em pequena parcela de terras


encurralados junto às margens do rio Paraná, local que o INCRA já tinha conhecimento
prévio em 1971 (PIC OCOI II - INCRA) que também viria a ser inundado por Itaipu,
quando ali foram colocados pelo próprio INCRA. Sobre a dimensão da área, apesar de
fazer parte das terras de ocupação tradicional Guarani, Itaipu declarou em um docu-
mento perfazendo 29,5 hectares, e, em outro 100 hectares.
Neste período os Guarani passaram a sofrer seguidos esbulhos, por violência mo-
ral (1976, 1981 e 1982) seguidos por fraude (1977, 1981 e 1983) com o aval da própria
FUNAI. Esbulho por violência moral (1976): Os Guarani ao longo do tempo declaram
que sofreram sucessivas ameaças por parte de técnicos da Itaipu, de que se permaneces-
sem na área iriam morrer afogados; Em 1976, Itaipu anuncia publicamente que inun-
dará grande área, inclusive aquela parte mínima em que os Guarani foram encurralados
pelo INCRA em 1973. Com medo uma parte das famílias Guarani foge do local e outra
permanece, resistindo. Desta forma, ao longo deste periodo mais 13 famílias indígenas
se retiraram do local por medo da inundação. Algumas famílias foram obrigadas pela
FUNAI a vir a ocupar outras aldeias (T.I. Rio das Cobras), terras demarcadas para a et-
nia Kaingang, já também anteriormente ocupadas indevidamente, por ação de governo
anterior, por Guarani. Resistiram ao final nas terras 19 famílias.
Poder Executivo avaliza o esbulho através de fraude (1977): a) A FUNAI final-
mente se apresenta no local (06.04.77), em data posterior a invasão do INCRA e do
assentamento de colonos em grande parte da terra indígena à leste; encontra os Guarani
naquela ínfima parte de sua terras originais. Os Guarani relatam os acontecimentos.
Sem haver qualquer Laudo Antropológico prévio, que deveria realizar a Identificação e
Delimitação do Território Tradicional, o Levantamento Fundiário e o Recenseamento
da População Indígena, procedimentos obrigatórios, o 1º GT FUNAI/INCRA (1977)

245
dirigiu-se a campo e não reconheceu as duas áreas, a já ocupada por colonos e a ser
inundada por Itaipu, como “terra indígena de ocupação tradicional” Guarani, questão
que seria de sua obrigação institucional. Ao não reconhecer a “terra de ocupação tradi-
cional”, invertem os valores e afirmam que os Guarani é que estavam ocupando as terras
do PIC-OCOI II do INCRA. Porém, realizam fotos da pequena parcela que restou da
aldeia, comprovando que a população resistia em seu imemorial território de ocupação
tradicional, mesmo que deslocados de onde estavam em 1973, mas ainda em parte di-
minuta deste território tradicional em 1977, o que atestou a documentação da FUNAI
mesmo sem pretender, a presença Guarani na área. O recenseamento da população foi
realizado pelo INCRA (20.04.77), órgão que invadiu as terras ocupadas pelos Guarani;
Informou à FUNAI que chancelou como válido, que supostamente eram ao todo 11
famílias, quando no período somavam segundo os Guarani, 19 famílias.
Tratativas de gabinete no decorrer de 1977 entre as Instituições FUNAI e Itaipu, de
“titular individualmente” a população indígena, acabaram por se mostrar inviáveis, devido
a ilegalidade do processo proposto. b) O 2º GT FUNAI/INCRA (sem data) dirigiu-se a
campo, provavelmente 1981 e novamente inexistiu Laudo Antropológico prévio, questão
que era obrigatória. O engenheiro agrônomo da FUNAI Edívio Battistelli emitiu um “parecer”
que nada tinha a haver com sua área técnica, mas que foi validado, o qual acabou por não
reconhecer a “imemorialidade da ocupação tradicional” afirmando que os Guarani estariam
na região supostamente a “não mais que 49 anos”24. Definiu também de forma arbitrária que
o território ocupado pelos Guarani seria menor do que “50 hectares”. Assim como tratou de
reconhecer o recenseamento da população feito pelo INCRA. A partir destes dados Battistelli
tentou manipular o Artigo 33 do Estatuto do Índio, ao excluir seu parágrafo único25, para
assim chegar ao objetivo ultimo que era “titular individualmente apenas 12 chefes de família”
da Comunidade Indígena, através de “12 (doze) pequenos lotes de terras” que ao todo soma-
riam 91,1313 hectares. Dessa forma este 2º GT tratou os Guarani como “remanescentes”,
deixando assim de reconhecê-los, como ressalvava o parágrafo único do artigo 33, como um
Grupo Tribal, que possuíam a posse imemorial de terras, cuja propriedade era da União. Ape-
sar de não corresponder aos fatos tentou descaracterizar os indígenas como algumas poucas
famílias remanescentes, e assim estas poderiam receber “Títulos de Propriedade de Terras”.
24
Questão que desfizemos ao provar a imemorialidade da ocupação Guarani na região, com dados arqueológicos e histó-
ricos, emitidos pelo Laudo Antropológico I/2003.
25
A afirmação decisiva proferida pelo funcionário da FUNAI: “Como estes indígenas ocupam por mais de dez anos áreas
inferiores a 50 hectares de terra o “Estatuto do Índio” Lei 6001 de 19/12/1973 no Artigo 33 lhe dá o direito de proprie-
dade plena.” (Battistelli. Relatório de Viagem: FUNAI, sem data, processo n.º 1053/1976, fls 143/44/45). O Estatuto
do Índio, Lei n.º 6001 de 19.12.1973 no Capítulo IV - Das Terras de Domínio Indígena, em seu Artigo 33 , afirma na
verdade: “Artigo 33: O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra
inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena.” Porém vem em seguida o Parágrafo Único, fazendo
ressalva importante, o qual no caso se fez questão de omitir:”Parágrafo Único: O disposto neste artigo não se aplica às terras
de domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta lei, nem as terras de propriedade
coletiva de grupo tribal.” No caso, as terras eram de domínio da União e ocupadas por grupo tribal. Portanto, os “técnicos”
da FUNAI, suprimiram o Parágrafo Único do Artigo 33, o qual seria contraditório com aquela situação.

246
Em seguida essas famílias indígenas seriam indenizadas de forma semelhante a “colonos”, os
quais, no mesmo período, recebiam indenizações de Itaipu.
Indígenas são regidos pelo Estatuto do Índio e não pelo Estatuto da Terra. Portanto,
dessa maneira ilegal, os Guarani seriam evacuados rapidamente da área que Itaipu pretendia
inundar, indenizados como 12 indivíduos, supostos “posseiros”. c) Em 03.06.81 é realizado
Laudo Antropológico por Célio Horst, posterior aos trabalhos dos GTs. Em apenas um dia
em campo, sem ouvir as declarações dos Guarani, Horst também inverteu os valores, ou
seja, afirmou que “os índios Guarani estão na Área do Projeto Integrado de Colonização
OCOI, cuja área ficará contida na Bacia Hidrográfica da Hidrelétrica de Itaipu Binacional”
(Horst,1981,4), quando era justamente o contrário, a Área do Projeto Integrado de Coloni-
zação OCOI, cuja área ficará contida na Bacia Hidrográfica da Hidrelétrica de Itaipu Bina-
cional é que estava ocupando a “terra tradicionalmente ocupada pelos Guarani”. Horst não
realiza da mesma forma que os antecessores a Identificação, Delimitação e o Levantamento
Fundiário, que seria de sua obrigação. Pelas contas dos Guarani, no período, a população do
Oco’y-Jacutinga somava as mesmas 19 famílias; Pelas contas do INCRA 11 famílias; Através
de critérios questionáveis, Horst colocou sob análise somente 9 famílias. Num estudo inad-
missível sob o ponto de vista antropológico, afirmou através dos conhecidos “Critérios de
Indianidade”26, que das famílias existentes, espremidas numa parte mínima de seu território,
somente 4 (quatro) são reconhecidas como “verdadeiros indígenas”. Na época Horst con-
trariou a Lei nº 6001 de 19/12/1973, Estatuto do Índio, Artigo 3º, item I27, o qual afirma
que o “reconhecimento de população indígena” é realizado somente através de autoreconhe-
cimento e ao mesmo tempo, reconhecimento pela comunidade indígena. Horst indica que
as 4 famílias reconhecidas como “indígenas” poderão receber “Títulos de Propriedade de
Terras”, e portanto, serem indenizados como “posseiros”, para em seguida serem evacuados
rapidamente da área que Itaipu pretendia inundar. O recurso financeiro representado pela
indenização que deveria ser destinado na realidade à compensação em “terras”, na concepção
de Horst28, serviria somente para o que pretendiam, pagar a “mudança e a instalação” dos
Guarani em outras terras já ocupadas por outras populações indígenas.
26
Contrariamente a toda a legislação existente, os Critérios de Indianidade, teve como papel histórico, a finalidade
política, de extinguir a proteção legal às Comunidades Indígenas, as quais seriam consideradas “ex-índios”, após terem
supostamente absorvido padrões culturais da sociedade nacional envolvente. Uma emancipação ex-officio, emancipar o
índio independentemente da sua vontade, como é observado por Faria (1997). Faria (1997) afirma que a FUNAI na
época, esperava alcançar dois objetivos imediatos com os Critérios de Indianidade: o primeiro político tinha como meta
interromper a rebeldia ou mesmo atos considerados pela FUNAI como subversivos de lideranças indígenas que se opu-
nham à política indigenista oficial da época. Isto se dava através do controle das lideranças indígenas que incomodavam e
criticavam a política oficial, ou seja, só seria índio quem o governo quisesse e, na qualidade de ex-índios, estas lideranças
não poderiam mais falar em nome de todo o grupo; o segundo objetivo era econômico, no sentido de liberar as terras
indígenas do nordeste, sul e sudeste do Brasil. (FARIA, 1997,127).
27
Índio ou Silvícola. É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como
pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.
28
“Que a FUNAI acompanhe o processo de indenização (LOTE 574, 575, 576, 590 e 592) e que esta importância
seja aplicada em benefício das famílias a serem removidas (construção de casas, abertura e preparo de novas roças etc).”
(HORST, 1981, 7).

247
O posterior “Laudo Antropológico” de Horst viria a legitimar a ação já perpetrada
antes pelos GTs29. Ele teria utilidade específica, a de se encaixar nas propostas dos GTs.
Portanto, quanto menor número de indivíduos reconhecidos como indígenas, e quanto
menor a área de ocupação (inferior a 50 hectares), mais fácil seria aplicar o Artigo 33 do
Estatuto do Índio, desde que se suprimisse seu Parágrafo Único. Outra “vantagem”, sob
o ponto de vista destes “técnicos”, seria transferir as poucas famílias reconhecidas como
indígenas para outra aldeia já habitada, e, se no limite houvesse resistência e fossem obri-
gados a destinar terras para estes indígenas - como veio a ocorrer - essas terras, na forma
de lotes familiares (forma ilegal) seriam em menor número, para somente as 4 famílias
reconhecidas como indígenas, acarretando, portanto, menores recursos destinados à ob-
tenção de terras.
No decurso dos fatos, no inicio dos anos 80, representantes da FUNAI ligados a
este processo verificado (pois houve resistência no interior da própria instituição quanto
a aderir a este projeto etnocída, por parte de antropólogos e setores ligados aos meios
jurídicos, que foram vencidos pela direção militarizada da instituição), tentaram transfe-
rir a todo custo a população indígena da região que seria inundada, o Oco’y-Jacutinga,
para outras aldeias já habitadas por outras populações, como para a Terra Indígena Rio
das Cobras/PR e a Terra Indígena Itariri/SP, como se pode depreender do relatório de
Célio Horst de 1981, desconsiderando assim seus direitos territoriais. Desta forma, pro-
vocava-se superpovoamento, por meio de confinamento em terras já demarcadas para
outra população/etnia, enquanto deixava-se de reconhecer os direitos sobre as terras da
população em questão, que estava em pauta.
Alguns indígenas foram transferidos, outros resistiram, outros ficaram dispersos
pela região ainda no Brasil, e muitos, a grande maioria, foram compulsoriamente en-
caminhados para o lado de lá da fronteira, para o Paraguai. Assim, outras famílias que
também deveriam obter direito às terras por compensação de Itaipu, superpovoaram
terras de outras aldeias, já demarcadas ou não, tanto Guarani como de outras etnias
(Kaingang), contribuindo para o desequilíbrio entre grande número de população em
cada vez menor número de terras. Note-se que somente na região oeste paranaense ha-
viam trinta e duas aldeias que desapareceram entre os anos de 40 e 80/século XX e pos-
teriormente, após duas a três décadas ressurgiram na região, às duas questionáveis com-
pensações realizadas por Itaipu, apenas duas aldeias, Oco’y em 1982 e Ãnetete em 1994.
Apesar de várias tentativas da FUNAI de transferir a comunidade indígena do
Oco’y-Jacutinga para a Terra Indígena Rio das Cobras, as 19 famílias permaneceram
resistindo nas terras, pois se consideravam possuidoras de legítimo direito sobre elas.
Itaipu, FUNAI e INCRA, assim não tiveram outra saída e foram obrigados a adquirir
terras para os considerados por eles, “os verdadeiros indígenas”, os 4 (quatro) chefes de
29
Lembrando que o Laudo Antropológico/LA deve vir antes do GT, justamente para investigar a situação e posteriormen-
te o GT executar o que foi estipulado pelo LA.

248
famílias apontados por Horst. Desta forma, a solução buscada por estas instituições foi
iniciar processo de transferência de “lotes”, “módulos rurais” do INCRA para “indíge-
nas”, o que se configurou como procedimento ilegal. Uma das propostas do período:
“TÍTULO DEFINITIVO DE PROPRIEDADE DE NºS 1; 2; 3; e 430. Os quatro
títulos somavam irrisórios 22,3335 hectares. As tratativas entre FUNAI, INCRA e Itai-
pu no decorrer de 1981/2, para tratar “indígenas” como “posseiros”, recebedores de
“títulos de propriedade de terras”, não se concretizaram, dada a clara inviabilidade da
forma proposta apontada pelo Setor Jurídico da FUNAI, em Brasília. Ambas as ações
dos funcionários da FUNAI, Battistelli e Horst, se caracterizaram tanto por esbulho por
violência moral, quanto por fraude (1981).
Como as famílias se recusavam a deslocar-se para outras aldeias reivindicando
seus direitos sobre as terras e Itaipu não estava conseguindo resolver o impasse fundiário
da forma como pretendia, “titulação individual para indígenas”, para solucioná-lo, a
Itaipu lançou mão de consultoria realizada antes para outra instituição sobre o caso, pelo
advogado especialista em direito indígena Dr Carlos Frederico Marés de Souza Filho.
Em 10.05.82, sob o título “SOBRE A FORMA DE TRANSMISSÃO DA PROPRIE-
DADE E POSSE AOS ÍNDIOS AVA-GUARANI DO RIO OCOÍ DA NOVA ÁREA
A LHES SER DESTINADA”, o material do Dr Marés é utilizado pela Itaipu, demons-
trando a princípio o que legalmente deveria ser feito.
Além do documento de Marés ter “descartado a validade dos títulos individuais
de propriedade”, que haviam sido entregues aos índios pelo INCRA na região do rio
Ocoí, o advogado os declarou nulos, pelas mesmas razões que nós advogávamos. Ou
seja, “povos indígenas não podem ser considerados como colonos”, e mais o “Artigo
33/EI não se aplicava ao caso, pois o Oco’y-Jacutinga se caracterizava como ocupação
coletiva de grupo tribal, propriedade da União”. Ainda afirmou Marés “que as terras de
ocupação tradicional indígena não podem ser alienadas, e se o fossem, deveria ser ime-
diatamente declarada sua nulidade, assim como a extinção de efeitos jurídicos dos atos
que teriam por objeto o domínio ou posse dessas terras. Mesmo que realizado o ato pela
FUNAI, ele continuaria nulo, dado o direito da Comunidade Indígena ofendido”31. Es-
bulho por violência moral: Em maio de 82, as 19 famílias foram obrigadas a se retirar da
pequena “terra de ocupação tradicional restante”, sem que nenhum processo legalmente

30
“TÍTULO DEFINITIVO DE PROPRIEDADE DE NºS 1) 4(09)92(02) 831 2) 4(09)92(02) 832 3) 4(09)92(02)
835 4) 4(09)92(02) 837 emitidos pelo Ministério da Agricultura -INCRA. Curitiba 06/07/1981. (Anexo nº 9 C/ Laudo
Antropológico II). São expedidos 4 documentos de igual teor, destinando “Títulos Definitivos de Propriedade” aos “in-
dígenas”, são eles: Doc 1) 4(09)92(02) 831 Indígena Fernando Martins - imóvel com área de 4,9892 há -Lote 576; Doc
2) 4(09)92(02) 832 Indígena João Lopes - imóvel com área de 5,5957 há -Lote 574; Doc 3) 4(09)92(02) 835 Indígena
Ovilon Benite - imóvel com área de 4,8704 ha -Lote 575; Doc 4) 4(09)92(02) 837 Indígena Salecio Rosa - imóvel com
área de 6,8782 há -Lote 592”.
31
Os sucessivos atos praticados pelo INCRA sobre as terras Colônia Guarani e Oco’y-Jacutinga, esbulho da população
Guarani sobre as terras tradicionalmente ocupadas, apesar da FUNAI haver fornecido falsas certidões negativas sobre as
terras, constatado os fatos, deveriam ser anulados os atos, pois, não possuem validade legal.

249
estabelecido pela Constituição Federal e normas administrativas, fossem realizados, ou
seja, a obrigatória Identificação do Território Tradicional e o real recenseamento da po-
pulação indígena. Foram reassentadas nas terras da atual Terra Indígena Avá-Guarani
do Oco’y. Itaipu alegou, segundo depoimentos dos Guarani, que precisavam se retirar
rapidamente da área, pois ela seria de qualquer forma inundada. Com medo novamente
da inundação, os Guarani saíram do que restou de seu território. Em outubro de 1982
a área toda foi inundada para a formação da represa.
Como área de ocupação dos Guarani foi reconhecida apenas a parcela mínima
que foram obrigados a ocupar junto ao rio Paraná, por força da ação ilegal anterior do
INCRA e depois da FUNAI. Declarou Itaipu que os indígenas ocupavam irrisórios 29,5
hectares. A Itaipu inundou, removeu da área de seu interesse os indígenas Guarani e
somente um ano depois, em 1983, foi buscar solucionar os trâmites fundiários. Esbu-
lho por fraude: Em 25 de agosto de 1983, 15 meses após a transferência dos Guarani
foram acionados os trâmites para a compensação de terras por Itaipu. Nesta data, o
“INCRA” repassou 4 (quatro) “títulos de propriedade individual de terra” à 4 (quatro)
famílias Guarani, portanto, caracterizando a ilegal “posse individual da terra para apenas
os 4 indígenas” que somaram 177,5601 hectares. Exatamente em data próxima (2 dias
depois), em outro documento, as 4 (quatro) famílias foram obrigadas pela FUNAI, sua
“tutora”, a repassarem os “4 (quatro) títulos de propriedade individual das terras (que
agora apareceram, não mais como “titulação de propriedade”, mas como “Títulos de
Reconhecimento de Domínio”, o que significou de qualquer forma “legitimação de
posse” de forma ilegal) para as 19 famílias restantes, a “Comunidade Indígena” presente,
passando esta a possuir, somente neste momento, a “posse comunal” da terra, conforme
determinava a legislação e a indicação de Marés, porém, artifício utilizado, para destinar
aos Guarani os mesmos e insuficientes 4 lotes, ou seja, os 177,5601 hectares, reservados
para apenas 4 famílias.
A partir deste momento são reconhecidas - questão que Horst antes havia negado,
as 19 famílias que resistiram, a “Comunidade Indígena”, porém, por meio de claro con-
torcionismo jurídico, recebedoras apenas de 4 ilegais “módulos rurais”. Esta área corres-
ponde a cerca de 4/5 da atual Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y. Os procedimentos
de transferência de terras não se deram junto a sede dos órgãos FUNAI e INCRA ou
junto à Justiça Federal, mas no Cartório Arlei Costa em São Miguel do Iguaçu, com a
presença apenas de funcionários locais do INCRA e da FUNAI, este último presente,
por determinação da Presidência da FUNAI. Neste Cartório no dia 25.08.1983, Itaipu
repassa para a “Comunidade Indígena” pequenas parcelas de terras, que nas escrituras
feitas nesta data perfizeram 88,5941 hectares; nas tratativas anteriores de 1982 perfize-
ram 73,5925 hectares; porém, na planta de demarcação da FUNAI, realizada em 1982,
perfizeram somente 54,3199 hectares. A diferença entre 88 e 54 hectares foram as terras
perdidas em razão de que a Itaipu, também as inundou no próprio Oco’y, em data poste-

250
rior a instalação dos Guarani. O que foi demarcado pela FUNAI, a Terra Indígena Ava-
Guarani do Oco’y com 231,88 hectares, na verdade é a soma de terras repassadas pelo
INCRA (177,5601 hectares) com vários cacos de terras repassadas por Itaipu (54,3199
hectares), cacos que vieram a se encaixar nas terras arranjadas pelo INCRA.
Legislação Federal pertinente à proteção dos direitos territoriais indígenas nas
épocas de todos os esbulhos, a saber: 1º GT FUNAI/INCRA (1977); 2º GT FUNAI/
INCRA (sem data); Laudo Antropológico FUNAI (1981); Ação de expulsão dos índios
pela Itaipu (1982); Escrituras realizadas por FUNAI/INCRA/Itaipu(1983): O texto
Constitucional que vigorava em todo este período relativo aos direitos indígenas, era o
artigo 198, parágrafo 1º, da Emenda Constitucional de 1969, já citado.

Artigo 198, parágrafo 1º e 2º, da Emenda Constitucional de 1969. Art. 198 – As


terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal deter-
minar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido seu direito ao
usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
Parágrafo 1º. – Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de
qualquer natureza, que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das
terras habitadas pelos silvícolas. Parágrafo 2º - A nulidade e a extinção de que trata
o parágrafo anterior não darão aos ocupantes direito a qualquer indenização ou
ação contra a União e a Fundação Nacional do Índio (Emenda Constitucional nº
1 de 17. 10. 1969).

A situação vivida, desterramento de população indígena em função de obra pú-


blica, estava prevista legalmente na Lei n.º 6001/ Estatuto do Índio/ 19.12.1973, Título
I, ítem V e IX; Artigo 18º , 20 º #1º, 2º, 3º e 5º.

Lei n.º 6001 - Estatuto do Índio de 19.12.1973, artigo 18º, 20º, parágrafos I,
II, III e V. Título I. Dos Princípios e Definições. Artigo 2º. Cumpre à União, aos
estados e Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indi-
retas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas
e a preservação de seus direitos; V- garantir aos índios a permanência voluntá-
ria no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento
e progresso; IX – garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da
Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes
o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades
naquelas terras existentes; Art. 18º. As terras indígenas não poderão ser objeto
de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno
exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas. Art.
20º. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados,
poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígenas,
determinada a providência por decreto do Presidente da República. Parágrafo
1º. A intervenção poderá ser decretada: (...) d) para a realização de obras públi-
cas que interessem ao desenvolvimento nacional. Parágrafo 2º: A intervenção

251
executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meio suasórios,
dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas
seguintes: (...) c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. Parágrafo
3º: Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou
desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à
comunidade indígena removida área equivalente a anterior, inclusive quanto
às condições ecológicas. Parágrafo 5º: O ato de intervenção terá assistência direta
do órgão federal que exercita a tutela do índio.

Portanto, o Artigo nº 198 da Emenda Constitucional/1969 e o Artigo 20 /Esta-


tuto do Índio/1973, já previam os procedimentos a serem legalmente adotados.
Sobre a instalação dos Guarani no Oco’y e todas as consequências advindas para
suas vidas, dado o limite deste artigo, o tema merece mais espaço para sua descrição;
esta apresentação em detalhe é desenvolvida em outro artigo, publicado noutra platafor-
ma32. Pretendemos finalizar com um pequeno resumo a respeito de como a resistência
indígena no Oco’y, que insistiu em permanecer em território brasileiro foi submetida
á condição de vida precária nos ambitos: territorial, social, ambiental e sanitariamente,
degradantes, situação verificada até os dias de hoje.
Revendo quanto ás perdas de terras no Oco’y-Jacutinga: eram 12500 hectares ou
mais antes de 1940; após o impacto da estrada Foz – Guaíra em 1940, era calculada em
1500 hectares, dimensão que permaneceu até 1973; em 1973 após a invasão do INCRA
menos de 100 hectares; em 1982 após a inundação de Itaipu 0 hectar; Pela lei a totalidade
do Grupo Tribal deveria receber como compensação terras iguais a que possuíam antes e am-
bientalmente semelhantes. Quanto ás perdas de terras no Oco’y: 231,88 hectares, os 4 lotes
individuais do INCRA/Itaipu a partir de 1982 e demarcados pela FUNAI em 1983; dada a
invasão dos colonos lindeiros, em 2004 apresentava menos da metade, cerca de 110 hectares.
As terras de compensação de INCRA/Itaipu, a denominada Terra Indígena Avá-Guarani do
Oco’y, na verdade, são terras triplamente sobrepostas: Terras de Colonos não indenizados
pelo PIC OCOI II/INCRA; Área de Preservação Permanente/APP de Itaipu; e, Terra Indí-
gena Avá-Guarani do Oco’y. Terra Indígena por lei é de uso exclusivo.
Quanto a população indígena existente em ambos os contextos: Oco’y-Jacutinga:
1973 - 70 famílias; após o impacto do INCRA invadindo as terras em 1973 perma-
necem 32 famílias; após as ameaças de inundação por Itaipu permanecem 19 famílias
até 1982; segundo o INCRA são 11 famílias em 1981; segundo a FUNAI por meio de
Laudo de Horst são apenas 4 famílias as verdadeiras indígenas em 1981; os Guarani
afirmam que resistiram as mesmas 19 famílias até sua retirada das terras originais em
1982, as mesmas 19 famílias que vão para o Oco’y; Pela lei a totalidade do Grupo Tribal

32
CARVALHO, Maria Lucia Brant de. Terras Indígenas em zona de poder: determinação legal e prática institucional no
Brasil - II, in Povos indígenas, quilombolas e ciganos no Brasil - Curitiba : Letra da Lei, 2016, no prelo, a ser disponi-
bilizado em versão eletrônica em www.direitosocioambiental.org.

252
deveria receber como compensação terras iguais a que possuíam antes e ambientalmente
semelhantes. Quanto a população indígena no Oco’y: as 4 famílias reconhecidas como
as verdadeiras indígenas recebem 4 lotes individuais de terras em 1983, as quais são obri-
gadas a repassar para si mesmas e para as restantes 15 famílias as terras recebidas; assim o
Grupo Tribal, as 19 famílias, foi em tese contemplado, porém com os mesmos 4 lotes de
terras do INCRA reservados a apenas 4 famílias nucleares, como se fossem colonos e não
indígenas que fazem parte de um Grupo Tribal ; definida a terra pelo governo, o Oco’y,
várias famílias desaldeadas do antigo Oco’y-Jacutinga se dirigem ao Oco’y, ocorre parale-
lamente crescimento demográfico, o que resulta 60 famílias em 1994; em 2004 são 134
famílias, em terras destinadas ilegalmente como 4 lotes para apenas 4 famílias indígenas.
Inversamente proporcional é a disponibilidade de terras versus população indí-
gena. Enquanto as terras tendem a diminuir por meio de expedientes oficiais ilegais, a
população real tende a crescer. Nota-se que no momento decisivo do repasse de terras, a
população real naquele momento (19 famílias) não foi considerada, houve um estrangu-
lamento na contagem, e de forma irreal, apenas 4 famílias foram consideradas indígenas
em 1981, para justamente caber nos estreitos limites do Artigo 33/Estatuto do Índio, ou
seja, destinar-lhes um mínimo de terras, os tais 4 lotes do INCRA.
Através dos procedimentos historicamente utilizados por parte do IBDF, INCRA,
Itaipu e FUNAI, os Guarani perderam a maioria de suas terras originais; conseguiram
garantir apenas irrisória faixa de terras, o Oco’y, terras de muito menor dimensão e qua-
lidade ambiental a que tinham direito. Itaipu e INCRA ao final desembolsaram recurso
financeiro irrisório, para a instalação dos Guarani no Oco’y.
A TI Oco’y localiza-se numa microbacia, em duas línguas de terras de 7 km de com-
primento, cortadas ao meio por um braço da represa de Itaipu; externamente é cercada por
todos os lados por colonos. Inicialmente (1983) cada uma das línguas de terras possuíam
238 metros de largura em media; dada a invasão dos colonos lindeiros não indenizados pelo
INCRA, os quais derrubaram a pequena mata que os separava, um grupo de outro, as terras
em 2004 passaram a apresentar 138 metros de largura em media. Nas terras indígenas inva-
didas ou recuperadas pelos colonos se estendem os plantios de soja, milho e aveia. Utilizam
agrotóxicos, tanto ilegais provenientes do Paraguai, e, portanto, sem controle municipal/
estadual, como os permitidos no Brasil, os quais são utilizados muito próximos dos indígenas
poluindo tudo e todos, águas, peixes, plantios, animais e a própria população indígena.
A pulverização se dá a menos de 5 metros das residências indígenas. Todas as
águas (represa, poços e olhos d’água) são passíveis de contaminação biológica e química.
Dada a invasão dos colonos, a maioria das residências e plantios indígenas se encontram
praticamente as margens da APP de Itaipu, o que provoca o assoreamento e, por conse-
guinte, o encurtamento maior da área de terras ocupadas pelos indígenas. Via de regra
as águas ás margens da represa são paradas, local propício para o desenvolvimento do
mosquito Anópholes, transmissor da malária. Os Guarani do Ocoy são praticamente a

253
única população do estado que apresentam a doença, assim como são a única população
que vivem na APP ás margens da represa. Isto não se dá por coincidência.
Para a realização da borrifação em geral é necessário que a população se ausente
do local por pelo menos 3 dias. Como não há lugar para a população indígena ser deslo-
cada, a borrifação se dá em sua presença, sendo o produto também tóxico.
Como não há lugar para a população indígena ser deslocada, a borrifação se dá
em sua presença, sendo o produto também tóxico. No que se refere ás atividades pro-
dutivas indígenas elas não podem se dar a contendo, dado o tamanho diminuto da área
versus a população que a habita; quanto as atividades extrativistas, caça não há, pesca
se encontra poluída com os agrotóxicos, e a coleta se dá em área irrisória. A agricultura,
tradicionalmente itinerante (uso de 2 a 3 anos e pousio de 20 anos), não pode se dar
por absoluta falta de espaço físico. Como se pode observar os Guarani de Oco’y estão
presos a um perímetro de terras, que diminui a cada dia mais, sufocando dessa forma, a
expectativa de vida da comunidade. Uma indígena em reunião indagou recentemente:
E quem pune o Estado?

254
REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resumo Executivo: Plano de Manejo. Parque


Nacional do Iguaçu. Brasília: IBAMA/MMA. 2000.

CARVALHO, Maria Lucia Brant de. Laudo Antropológico. Introdução: Proposta de


Trabalho referente a Laudo Antropológico sobre a Terra Indígena do Oco’y. Ref: Comu-
nidade Indígena da Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y. Município de São Miguel do
Iguaçu. Estado do Paraná. Brasil. AERBAURU/SP/FUNAI/MJ. São Paulo: 2002. 27 p.

_____. Laudo Antropológico. 3º. Parte: O Contexto Atual Vivido Pela População In-
dígena Avá-Guarani na Terra Indígena do Oco’y/São Miguel do Iguaçu/ Pr. Ref: Comu-
nidade Indígena da Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y. Município de São Miguel do
Iguaçu. Estado do Paraná. Brasil. AERBAURU/SP/FUNAI/MJ. São Paulo: 2002. 147 p.

_______. Laudo Antropológico. 1º Parte: Plano Macro-Histórico das Populações In-


dígenas Avá-Guarani na Região Tradicional de Ocupação: Brasil/Paraguai/Argentina.
Ref: Comunidade Indígena da Terra Indígena Avá-Guarani do Oco’y. Município de São
Miguel do Iguaçu. Estado do Paraná. Brasil. AERBAURU/SP/FUNAI/MJ. São Paulo:
2003, 138 p.
_____. Histórico das Populações Indígenas Avá-Guarani na Região Tradicional de
Ocupação: Brasil/Paraguai/Argentina. Ref: Comunidade Indígena da Terra Indígena
Avá-Guarani do Oco’y. Município de São Miguel do Iguaçu. Estado do Paraná. Brasil.
AERBAURU/SP/FUNAI/MJ. São Paulo: 2003, 138 p.

_____. Relatório Antropológico. O Relatório Antropológico da FUNAI em resposta


a carta colocada à VIº Câmara do Ministério Público Federal, pelo antropólogo Rubem
Thomaz de Almeida, antropólogo contratado pela Usina Hidrelétrica de Itaipu. Popula-
ção Indígena Avá-Guarani (Ñandeva). Terra Indígena do Oco’y. Município de São Mi-
guel do Iguaçu. Paraná. Brasil. AERBAURU/SP/FUNAI/MJ. São Paulo: 2004. 150 p.

_____. Laudo Antropológico. 2º Parte: O processo de desterramento da população in-


dígena Avá-Guarani da região do Oco’y-Jacutinga e o reassentamento na Terra Indígena
do Oco’y: Aspectos antropológicos e jurídicos. Vol. I-II-III. Ref: Comunidade Indígena
AVÁ-GUARANI. TERRA INDÍGENA OCO’Y. Município de São Miguel do Iguaçu.
Estado do Paraná. Brasil. AERBAURU/SP/FUNAI/MJ. São Paulo: 2005. 174 p.

_____. Das Terras dos Índios a Índios sem Terras. O Estado e os Guarani do Oco’y:
Violência, Silêncio e Luta. Tese de Doutorado. Departamento de Geografia Humana.

255
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São
Paulo. 2013. 834 p.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do Índio: Ensaios e Documentos. São


Paulo: Brasiliense, 1987, 230 p.

FARIA, Ivani Ferreira de. Território Indígena: direito imemorial e o devir. Dissertação
de Mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 1997.

GERMANI, Guiomar Inez. Expropriados Terra e Água: O Conflito de Itaipu. Salva-


dor: EDUFBA/ULBRA. 2003. 266p

MORAES, Julio Cesar de. Agrotóxicos no entorno da Terra Indígena Avá-Guarani


(Oko’y), em São Miguel do Iguaçu-Pr: Sobrevivência física e cultural em risco da po-
pulação indígena Avá-Guarani. São Paulo: AER BAURU/FUNAI, 07.2004.

256
CAPÍTULO 3 - AS ÁGUAS

Porque hoje o território guarani, parte daquelas terras guarani que existiam nas
margens do rio Paraná, hoje elas estão com as terras em baixo da água, elas não existem
mais. Aquela floresta, aquela caça que existia antigamente, não existe mais, então é parte
da cultura que enfraquece com este impacto. Pois existia tudo, a fauna e a flora, que maior
parte dela infelizmente desapareceu.

Ilson Soares, liderança da Tekoha Y’Hovy


Foz do Iguaçu, 25 de novembro de 2014

A Itaipu, se for pra gente analisar bem, ela não só destruiu cultura, costumes, re-
ligião e a própria pessoa indígena, a vida indígena. Mas sim, como os mais velhos falam,
lembrando um pouco do meu pai, quando ele lembra quando a represa da Itaipu começou:
“A Itaipu é responsável pela destruição do princípio e do fim do ser indígena”.

Paulina Cunha Takua Rocay Ponhy Martines, liderança da Tekoha Y’Hovy


Foz do Iguaçu, 24 de novembro de 2014

257
O CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO (1930-1984)
E A OPÇÃO DO GOVERNO BRASILEIRO PELA CONSTRUÇÃO
DA USINA HIDRELÉTRICA DE ITAIPU

Bruna Balbi Gonçalves1

INTRODUÇÃO

A usina hidrelétrica de Itaipu foi construída na região do Salto de Sete Quedas ou


Salto Guaíra. Ao contrário do que o nome indica, a cachoeira, a maior do mundo em
volume d’água, era composta por dezenove quedas. O contexto histórico da construção
da barragem revela os interesses em disputa, desmitificando a tomada de decisão tida
como natural ou inevitável. Para tanto, deve-se considerar os aspectos sociais, políticos
e econômicos da época, com a alta do nacionalismo e a emergência de planos desenvol-
vimentistas para o Brasil.
O governo autoritário estabelecido no período ditatorial buscou justificar a cons-
trução da maior hidrelétrica do mundo com base em informações dúbias, até hoje am-
plamente difundidas. Por isso, faz-se necessário rememorar os antecedentes históricos de
Itaipu, esclarecendo, por exemplo, as justificativas baseadas na possibilidade de resolu-
ção do conflito territorial existente entre o Brasil e o Paraguai, nunca esgotado. Ainda,
importa destacar a necessidade de produção de eletricidade no Brasil, naquele período.
Com a crise do petróleo, houve intenso investimento em fontes alternativas, seguindo
a orientação política de aproveitamento máximo dos recursos hídricos. Dessa forma,
anteriormente ao projeto Itaipu, foram elaborados estudos para a construção de hidrelé-
tricas totalmente em território nacional, com uma potência estimada superior à parcela
brasileira de geração de energia elétrica do megaprojeto, que teriam custo financeiro e
impactos socioambientais inferiores.
Portanto, sustenta-se que a opção pela construção de Itaipu é marcada por políti-
cas que direcionam o Brasil a um padrão hegemônico de desenvolvimento, associado à
ideia de progresso, impulsionando o capitalismo brasileiro e mundial. Com o perfil de
financiamento do setor alicerçado no grande capital internacional e a ausência de par-
ticipação democrática garantida pelo regime autoritário, o Estado Brasileiro viu-se sem
barreiras para barrar as Sete Quedas.

1
Advogada popular e mestranda em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

258
ANTECEDENTES DE ITAIPU: A INDUSTRIALIZAÇÃO
BRASILEIRA E OS PROJETOS PARA O APROVEITAMENTO
HIDRELÉTRICO DO RIO PARANÁ

Dizem que temos faltado ao nosso encontro com a história e, enfim, é preciso
reconhecer que chegamos tarde a todos os encontros.
(Eduardo Galeano)

A partir de 1929, até meados de 1933, vive-se o período da chamada Depressão


Econômica Mundial, que abala fortemente o sistema capitalista a nível global. A crise de
1929 provoca efeitos diretos na cafeicultura brasileira, que regulava o sistema político-e-
conômico do país. Somente com a derrocada do café é que as classes sociais – e a própria
burguesia associada à cafeicultura – percebem as limitações de uma economia voltada ao
mercado externo (IANNI, 1996).
Na época, o sistema brasileiro de geração e distribuição de eletricidade não era
ainda integrado, atendendo a poucos centros urbanos e, em geral, aos interesses da eco-
nomia agrário-exportadora. Era o suficiente até 1930, mas não poderia acompanhar a
crescente demanda após esse ano (MAGGI, 2013).
Com a crise política e econômica, mundial e interna, há uma ruptura do Estado oli-
gárquico vigente até então. Em 1930, com a tomada de poder por Getúlio Vargas, há uma
reestruturação do Estado Brasileiro, que passa a atuar com forte intervencionismo. No primeiro
governo Vargas, há uma nova forma de acumulação de capital, com o desenvolvimento da
produção interna e elevação da produtividade, sempre acompanhadas por um sentimento de
nacionalismo. Nas palavras de Ianni, “Passa-se do regime oligárquico à ditadura de tipo bur-
guês, depois de um entreato de grande fermentação política e cultural” (IANNI, 1996, p. 22).
É a partir de 1930 também que o país inicia seu processo de expansão industrial,
contando, para isso, com um novo arranjo institucional. As principais mudanças no
papel do Estado, no setor energético, se deram após o fim da Cláusula Ouro para os
serviços de energia elétrica, por meio do Decreto nº 23.501/19332, e a instituição do
Código de Águas, através do Decreto nº 24.643/1934, definindo que todos os recursos
hídricos estariam sob o monopólio estatal (MAGGI, 2013).
A fase decisiva de industrialização brasileira se dá com o segundo governo de
Vargas, dessa vez legalmente eleito, entre os anos de 1951 e 1954. As áreas emblemáticas
de investimento nesse período eram a energia elétrica e o petróleo. Foram criadas a Pe-
trobrás (1953) e a Eletrobrás (1954)3.

2
Até então, a moeda nacional seguia o padrão ouro, ou seja, o ouro era internacionalmente reconhecido como indexador econômico.
O Decreto nº 23.501/1933 determinou que os valores de serviços de energia elétrica não fossem mais regulados a partir do ouro.
3
A criação da Eletrobrás foi proposta pelo governo Vargas, mas teve grande oposição e somente foi instalada de fato em 1962.

259
Está na mercadoria energia a chave para entender o papel de Itaipu. Uma categoria
histórica, que em cada momento cumpriu um papel decisivo na reprodução capi-
talista e essas transformações rebateram e rebatem sobre Itaipu. (…)
É o movimento realizado pela mercadoria energia que rege as relações materia-
lizadas em Itaipu. Assim, não é possível compreender Itaipu como algo estático,
acabado. (MAGGI, 2013, p. 18)

É nessa época que os estudos para a exploração hidrelétrica do rio Paraná apa-
recem com maior ênfase, apesar de terem se iniciado já na década de 19404. Em geral,
eram “relatórios preliminares que visavam informar as autoridades e o governo sobre o
potencial hidrelétrico dos saltos de Sete Quedas” (LIMA, 2006, p. 114-115).
No entanto, o enfraquecimento da política de Vargas, frente ao avanço da opo-
sição interna e as investidas do capital estrangeiro, culmina com seu suicídio, em 1954.
No ano seguinte, tem início uma nova fase econômica, com o governo de Juscelino
Kubitschek: a internacionalização da economia. O governo JK aprofunda o desenvol-
vimento econômico dependente das multinacionais, com uma expansão acelerada das
indústrias automobilística, química e farmacêutica.
Em 1956, o governo brasileiro autoriza a Comissão Interestadual da Bacia do
Paraná-Uruguai (CIBPU) a estudar o potencial hidrelétrico das quedas. A Comissão
apresenta um relatório prevendo a exploração progressiva do rio Paraná, em etapas su-
cessivas, para a “regularização” das águas. Recebe nova autorização no ano seguinte para
prosseguir com os estudos, contudo, perde o prazo para apresentação de um anteprojeto
e, por conseguinte, a concessão (PEREIRA, 1974; CAUBET, 1991).
Três anos depois, o Serviço de Navegação da Bacia do Prata (SNBP) celebra um
convênio com o Serviço Regional de Obras da 5ª Região Militar do Mato Grosso, a
fim de promover estudos para o aproveitamento dos saltos. O convênio obtém auto-
rização para a implantação de uma usina hidrelétrica piloto em outubro de 1959. A
usina é inaugurada em 1960, aproveitando uma pequena parte do potencial das Sete
Quedas. No mesmo dia, é realizado um congresso com o objetivo de reunir estudos para
o seu aproveitamento máximo. A inauguração da primeira turbina foi um dos últimos
atos oficiais de Juscelino Kubitschek como presidente. Essa usina piloto somente seria
desativada em 1982, com o enchimento do reservatório de Itaipu (PEREIRA, 1974;
CAUBET, 1991).
Ainda em 1960, o engenheiro Sylvestre Souza elabora um projeto ambicioso, que
previa uma usina com capacidade de geração de até 25 MW, alterando toda a formação
da bacia do rio Paraná. Aliás, esse projeto promoveria o alagamento de uma área muito

4
Os estudos se iniciam entre as décadas de 1940 e 1950, mas Ivone Teresinha C. de Lima (2006) afirma que existem
referências quanto ao aproveitamento de Sete Quedas desde o ano de 1908. Osny Duarte Pereira (1974), por outro lado,
defende que, se quiséssemos compilar as ideias que surgiram para a exploração da Bacia do Rio da Prata, teríamos que
começar pelo ano de 1898.

260
superior àquela inundada por Itaipu. Foram esses estudos que motivaram o SNBP, junto
à Federação das Indústrias do Paraná, a pretender a construção de uma usina em Guaíra
com potência instalada de 600 MW. Para tanto, houve a contratação de técnicos japone-
ses, da empresa Overseas Electrical Industry Survey Institute (PEREIRA, 1974).
O projeto japonês previa a construção de dez geradores de 100 MW cada, tota-
lizando uma potência de 1.000 MW. Apesar disso, o local de construção da usina (na
“Prainha”, a cinco quilômetros de Guaíra) preservaria a beleza dos saltos, de acordo
com os estudos. As quedas seriam comprometidas apenas se houvesse a necessidade de
aumentar ainda mais a capacidade de fornecimento de energia, que previa o suprimento
do parque industrial de São Paulo, além do Estado do Paraná (PEREIRA, 1974).
Em 31 de maio de 1961, durante o curto mandato do presidente Jânio da Silva
Quadros, é instituído um Grupo de Trabalho para elucidar a questão, com base nos
estudos desenvolvidos até então. O GT conclui que o material reunido ainda não era
suficiente para justificar a obra economicamente, mas reafirma o interesse nacional no
aproveitamento energético das Sete Quedas, bem como na “regularização” das águas do
Rio Paraná (PEREIRA, 1974).
A partir do aprofundamento das pesquisas, e após o teste com a usina piloto de
1960, o presidente João Goulart, sucessor de Jânio Quadros, contrata, em 1962, o escri-
tório do engenheiro Otavio Marcondes Ferraz para desenvolver um anteprojeto. O rela-
tório apresentado pelo engenheiro previa a instalação de 21 turbinas, que produziriam
10.000 MW5, a um custo de um bilhão e vinte e cinco milhões de dólares (PEREIRA,
1974; CAUBET, 1991).
O Projeto Otavio Marcondes Ferraz pretendia desviar as águas por meio de uma
barragem à montante dos saltos, conduzindo-as por um canal por uma das margens até
um ponto à jusante das quedas, onde seria construída a casa de força. Nesse caso, a usina
seria inteiramente brasileira (PEREIRA, 1974; CAUBET, 1991).
Até então, o Brasil ainda não havia considerado a participação do Paraguai na
tomada de decisão quanto ao aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio Paraná.
Quando o projeto preliminar de Otavio Marcondes Ferraz vem a público, iniciam-se
as tensões com o governo do Paraguai. O Estado vizinho reclama sua participação nos
estudos e reacende o antigo debate acerca da demarcação das fronteiras6.
São realizados estudos complementares pela Divisão de Águas do Ministério das
Minas e Energia, apresentados ao Paraguai em setembro de 1963. Contudo, o país re-
cusa os estudos realizados unilateralmente pelo Brasil (PEREIRA, 1974). Importante
mencionar que, em dezembro de 1962, é noticiado pelos jornais brasileiros que o gover-

5
A potência instalada de Itaipu é de 14.000 MW com 20 turbinas, dos quais metade pertencem ao Brasil, ou seja, 7.000 MW.
6
O problema da demarcação de fronteiras na região das Sete Quedas tem início na época colonial, no conflito entre as
Coroas Portuguesa e Espanhola, e a definição de limites permanece dúbia ao longo do tempo. Por isso, o projeto Itaipu
Binacional será apresentado como uma possibilidade de “engenharia diplomática” (DÁVALOS, 2009).

261
no de João Goulart havia convidado os soviéticos para estudar o aproveitamento de Sete
Quedas (PEREIRA, 1974). Os russos alegavam que poderiam tornar a obra mais barata.
Mas, publicado pelo Jornal do Brasil, em janeiro de 1964, um telegrama de Assunção,
expedido pela France Press, afirmava:

O Presidente Alfredo Stroessner sempre teve a melhor boa vontade para com o Brasil,
mas é certo que objeta a participação soviética na elaboração do projeto ou na execução
da obra, pois Stroessner é violentamente anticomunista. (PEREIRA, 1974, p. 60)

A Guerra Fria esquentava e o anticomunismo crescia nos países latino-americanos


sob a influência dos Estados Unidos. Antes no Paraguai que no Brasil, mas não tardou
a cruzar as Sete Quedas.

A OFENSIVA NORTE-AMERICANA NO BRASIL


E A DECISÃO DOS MILITARES PELA ITAIPU BINACIONAL

Tampouco conseguimos tomar o poder, e a verdade é que, às vezes, nos per-


demos pelo caminho ou nos enganamos de rumo e depois tratamos de fazer
um longo discurso sobre o tema.
(Eduardo Galeano)

Ao passo que os governos Vargas (1951-1954) e JK (1956-1960) foram alvos


de intensa oposição, o governo João Goulart foi pressionado tanto pela esquerda que
o apoiava, e aguardava reformas na estrutura estatal, quanto pela direita, que temia a
crescente participação sindical no governo. Culminou com o golpe civil-militar de 1964,
que afasta o governo de João Goulart de forma autoritária (SOUZA, 2013).

A transição econômica de uma fase para outra causou turbulência política. Var-
gas, então envolvido na luta nacionalista/anti-imperialista, suicidou-se para evitar
um golpe orquestrado por forças reacionárias internas e externas. Logo depois,
Juscelino Kubitschek, que operou a fusão de um novo bloco de poder no país —
baseado no tripé burguesias internacionais, burguesia brasileira e Estado —, foi
ameaçado de não tomar posse por conta de um golpe orquestrado pelos mesmos
setores que tentaram derrubar Getúlio. Jânio Quadros renunciou ao seu mandato
e João Goulart, que procurou aprofundar um projeto nacional-popular de refor-
mas de base, foi deposto por um golpe civil-militar que instaurou a autocracia bur-
guesa e consolidou o capitalismo financeiro no país. (CASTELO, 2012, p. 620)

As justificativas para a execução do golpe basearam-se na suposta necessidade de


restabelecimento da ordem social e retomada da expansão econômica. Dessa forma, o

262
novo período objetiva consolidar o modelo implantado nos anos 1950, de expansão e
concentração econômica. Nas palavras de Ivone Lima, a construção da hidrelétrica de
Itaipu irá representar, portanto, “a consolidação do discurso da modernização” (LIMA,
2006, p. 65).
O golpe de 1964 acontece no contexto histórico da Guerra Fria. O Brasil alinha-se aos
Estados Unidos, com a política de segurança nacional, pretendendo situar-se como “potência
emergente”. Os pilares políticos da época são, portanto, segurança e desenvolvimento. Na
verdade, a concepção de desenvolvimento adotada parte da Doutrina de Segurança Nacio-
nal7, segundo a qual, o desenvolvimento econômico é elemento fundamental da segurança.
Por isso, de acordo com Argemiro Brum (2000, p. 152), “o governo [brasileiro] opta
por um modelo econômico característico de sociedades em elevado estágio de desenvolvi-
mento e com alto padrão de vida. Mais precisamente, busca-se construir uma sociedade
tendo o padrão norte-americano como modelo, ao menos em termo de consumo”.

A característica mais significativa do modelo brasileiro é a sua tendência estrutural


para excluir a massa da população dos benefícios da acumulação e do progresso
técnico. Assim, a durabilidade do sistema baseia-se grandemente na capacidade
dos grupos dirigentes em suprimir todas as formas de oposição que seu caráter
anti-social tende a estimular. (FURTADO, 1981, p. 109)

A característica levantada por Celso Furtado decorre do próprio sistema capita-


lista que, com suas contradições, passa por períodos de crise para depois se reinventar,
em um ciclo contínuo. Assim, o modelo de consumo norte-americano que se intenta
implantar no Brasil é usufruído por uma minoria bem limitada.
Ainda em 1964, é lançado o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) e
o governo militar passa a atuar com a redução do déficit público, a contratação de crédi-
to privado e a redução dos salários. Em sua primeira mensagem ao Congresso Nacional,
o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco afirma:

A nova política do governo passou a abranger dois planos de atuação: num, mais
imediato, a correção das deformações que se revelavam em todas as manifestações
do processo de desenvolvimento brasileiro, considerado este num sentido orgâni-
co, que inclui os aspectos político, militar, econômico, social e externo; em outro,
a adoção de uma estratégia para o desencadeamento de um surto de progresso,
igualmente naquele sentido integrado, levando em conta a realidade brasileira em
seu conjunto (IANNI, 1996, p. 232).

Com esse ânimo, um grupo de militares brasileiros adentra o território paraguaio,


no ano de 1965, a fim de realizar estudos para a implantação da usina hidrelétrica no rio
7
Doutrina elaborada pelos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria. A divisão bipolar capitalismo versus comunismo era a
base da doutrina, que combatia a subversão prezando pela “segurança coletiva”. Assim, não comportava o conflito, a divergência.

263
Paraná. A população paraguaia protesta contra o “expansionismo brasileiro”, nas palavras de
Vaneski Filho (2012, p. 209): “queimaram bandeiras em praça pública, decretaram o Brasil
como inimigo número 1 do Paraguai: afinal a Guerra ainda estava viva na memória”.
Em 1966, os chanceleres do Brasil e do Paraguai se encontram para então assinar
a Ata das Cataratas ou Ata do Iguaçu. O encontro, no qual os países confirmam a esco-
lha pela binacionalidade, foi proposto por intervenção do departamento de segurança
dos Estados Unidos (VANESKI FILHO, 2012).

Vale lembrar que do manifesto interesse capitaneado pelo Brasil, de 1952 até 1966,
os projetos pretendidos para exploração do rio Paraná eram nacionais apenas. Proje-
tos anteriores ao de Itaipu, como as hidrelétricas de Guairá ou Paranáyara, previstas
totalmente em território nacional, com uma potência estimada de até 10 GW. Em
particular para o Brasil, uma quantidade bem superior aos 7 GW que possui de
direito com Itaipu. Se esse fosse um desses o projeto escolhido, ainda seria o maior
projeto de geração de energia elétrica do mundo. (MAGGI, 2013, p. 54)8

O Brasil se encontrava em uma situação delicada, temendo a imagem construída, ao


longo dos anos, de pretensa potência imperialista na América do Sul, com o apoio dos Estados
Unidos. Assim, firma o condomínio com o Paraguai, alegando o fim da disputa de fronteiras
– tema priorizado pelo Paraguai, mas importante à imagem política do Brasil, bem como propi-
ciando, afinal, o aproveitamento hidrelétrico do Rio Paraná. Afirmava-se que, com a construção
da barragem, a região fronteiriça em disputa (20 quilômetros) ficaria submersa.
A partir da Ata das Cataratas (Ata de Foz do Iguaçu), foi designada uma comissão
mista (brasileira-paraguaia) para a realização dos estudos de aproveitamento hidrelétrico,
em 12 de fevereiro de 1967, instalada oficialmente em maio do mesmo ano.
Foram elaborados diversos projetos alternativos, inicialmente em uma gama
maior de locais, que se tornaram três, pesquisados com maior intensidade. Destes três,
foi escolhida Itaipu pelo menor custo, além de possuir espaço para a construção de toda
a casa de máquinas ao pé da represa, bem como a facilitação do desvio do rio pela menor
profundidade verificada no local, facilitando o transporte de materiais e o acesso à obra.
A opção de Itaipu implicava a construção de uma barragem no cânion do rio, submer-
gindo as Sete Quedas e caracterizando o projeto como binacional (PEREIRA, 1974).

O argumento apresentado para a eleição do projeto executado era de que, entre as


demais possibilidades, ele permitiria a máxima exploração possível do potencial dispo-
nível, otimizaria os recursos necessários para a execução do empreendimento e evitaria
problemas diplomáticos com o Paraguai, especialmente com a Argentina e outros paí-
ses da Bacia do Prata, da qual o Rio Paraná faz parte. (MAZZAROLLO, 2003, p. 14)

8
Apenas para subsidiar a comparação com os projetos anteriormente elencados, todos referidos na unidade MW, as
hidrelétricas de Guairá ou Paranáyara teriam uma potência estimada de até 10.000 MW, enquanto o Brasil atualmente
possui 7.000 MW de direito com a hidrelétrica de Itaipu.

264
A escolha da localização da barragem é política. Do período histórico pós-golpe
de 1964, Leonardo Maggi destaca dois elementos importantes: o alinhamento político
com os Estados Unidos e a receita para recuperação econômica, baseada em políticas
de endividamento para o desenvolvimento. É somente a partir do regime de ditadura
militar que se define a binacionalidade do empreendimento, e o consórcio internacional
contratado pela Comissão Internacional Mista Técnica recomenda a sua instalação ape-
nas no trecho contíguo do rio, entre os dois países (MAGGI, 2013).
Essa opção pela localidade é que vai definir o restante do projeto. Do ponto de vista
jurídico, constitui-se uma empresa binacional, com tratamento jurídico distinto tanto do orde-
namento interno brasileiro como paraguaio. Do ponto de vista econômico, é alterado o perfil
de financiamento do setor de energia elétrica, com a abertura ao capital estrangeiro (MAGGI,
2013). Na verdade, “As circunstâncias entorno de Itaipu, inclusive em função da definição do
local, criaram um ambiente extremante seguro para o capital financeiro e industrial, subordi-
nando não apenas interesses do Paraguai como também brasileiros” (MAGGI, 2013, p. 55).
Outro aspecto da política internacional no entorno de Itaipu, que deve ser desta-
cado, é a participação – ou a ausência desta - argentina.

Ao fazer o processo de revisão dos antecedentes históricos de Itaipu, é recorrente


encontrar a afirmação de que o Brasil e Paraguai não estavam sozinhos com relação
aos planos de exploração da força das águas do rio Paraná. Em especial, a Argentina
vinha de muito tempo ventilando a possibilidade de exploração desses recursos, con-
tudo, por força de uma alegada distância e de uma condição favorável à termoeletri-
cidade, teria abandonado os planos hidroenergéticos, optando pela manutenção dos
investimentos em fontes a carvão, gás e até nuclear. (MAGGI, 2013, p. 49)

Osny Pereira afirma que os problemas com a Argentina foram ocasionados pelos
interesses daquele país no aproveitamento hidrelétrico do rio Paraná. É fato que a Ar-
gentina demonstrava interesse na possibilidade de exploração desses recursos, mas, como
lembra Leonardo Maggi, o setor elétrico argentino era dominado pela indústria térmica.
Assim, a vantagem brasileira foi a industrialização tardia, se comparada com a Argentina,
o que permitiu o desenvolvimento de tecnologia mais avançada para a época, ou seja,
energia de bases hidráulicas (MAGGI, 2013).
Aliás, Christian Caubet complementa reafirmando os interesses diversos dos dois países,
que se mostravam incompatíveis: “(...) se o Brasil subestimava o interesse que apresentava a
navegação fluvial para a Argentina, esta, produtora de mais de 90% do petróleo que utiliza, não
avaliava a seu justo nível as necessidades energéticas de seu vizinho” (CAUBET, 1991, p. 29).
Talvez o ponto mais importante nesse conflito seja como Brasil e Argentina vi-
nham se posicionando no cenário mundial, e como estes países – e a América Latina em
geral - foram sendo conduzidos por interesses externos. Pode ser que resida aí a chave
para elucidar as tensões (criadas) entre os hermanos latino-americanos.

265
Oscar Camilion, ministro da Argentina no Brasil e Subsecretário das Relações
Exteriores de 1961 a 1962, em texto para o jornal argentino Clarin, publicado no jornal
O Globo, de março de 1973, afirma:

Sem pretender formular um paralelo histórico do tipo Atenas-Esparta, é evidente que


as sociedades argentina e brasileira têm sido modelos relativamente opostos na área
latino-americana. A Argentina estabeleceu sua organização num firme vínculo com a
Europa, baseada em sua condição de exportadora de alimentos e matérias-primas da
zona temperada, competidoras em princípio com as exportações dos Estados Unidos.
O Brasil, após a vinculação inicial – como toda a América Latina – com a potência
hegemônica mundial, a Grã-Bretanha, orientou suas relações econômicas para os Es-
tados Unidos, que se tornaram seu principal cliente, fornecedor e financiador. Em
consequência, enquanto o Brasil se revelava um aliado sistemático de Washington em
todas as questões internacionais, a Argentina se ateve permanentemente a uma posição
neutra, que teve sua expressão mais clara nas relações continentais. Quando o governo
norte-americano pretendeu aplicar na América Latina a política do “país-chave”, en-
controu no Brasil um candidato predisposto a esta função, recusada sistematicamente
– com algumas exceções transitórias – por Buenos Aires. (PEREIRA, 1974, p. 52-53)

O “MILAGRE ECONÔMICO”: CRISES E HERANÇAS


DE ITAIPU AO BRASIL DEMOCRÁTICO

Nós, latino-americanos, temos a má fama de charlatães, vagabundos, criadores


de caso, esquentados e festeiros e não há de ser por nada. Ensinaram-nos que,
por lei do mercado, o que não tem preço não tem valor, e sabemos que a nossa
cotação não é muito alta. No entanto, nosso aguçado faro para negócios nos faz
pagar por tudo que vendemos e comprar todos os espelhos que traem nosso rosto.
(Eduardo Galeano)

As reduções, principalmente salariais, assumidas em 1964 resultam no crescimen-


to econômico de 1968, conhecido como “milagre econômico”. Esse período é marcado
por lucros exorbitantes para os empresários, expansão econômica e concentração de
renda. Boris Fausto justifica o dito milagre:

O milagre tinha uma explicação terrena. Os técnicos que o planejaram, com Del-
fim à frente, beneficiaram-se, em primeiro lugar, de uma situação da economia
mundial caracterizada pela ampla disponibilidade de recursos. Os países em de-
senvolvimento mais avançados aproveitaram as novas oportunidades para tomar
empréstimos externos. O total da dívida externa desses países, não produtores de
petróleo, aumentou de menos de 40 bilhões de dólares em 1967 para 97 bilhões
em 1972 e 375 bilhões em 1980 (FAUSTO, 2006, p. 268).

266
É de 1968 em diante que as multinacionais avançam no Brasil, e passam a dominar os
ramos mais rentáveis da economia. Conforme Argemiro Brum: “É o período das ‘vacas gordas’
da economia, que se prolonga até 1974, embora as autoridades governamentais o festejassem
como por tempo indefinido” (BRUM, 2000, p. 165). Esse modelo de desenvolvimento exclui
do processo histórico nacional a grande maioria da população, que não apenas fica à marginali-
dade política, econômica, histórica e cultural, como sofre a repressão ditatorial.
A expansão industrial ocorreu principalmente nos ramos automobilístico, de
produtos químicos e material elétrico, além da construção civil. Esse crescimento veio
aliado à forte propaganda governamental, com a TV Globo como porta-voz do “Brasil
grande potência” (FAUSTO, 2006). Em 09 de dezembro de 1969, em discurso profe-
rido no Conselho para a América Latina, em Nova York, o então Ministro da Fazenda
Antônio Delfim Netto, afirma:

O Brasil espera contar com a colaboração externa em seu novo impulso de desen-
volvimento econômico. (...) O Brasil oferece o atrativo maior para o investimento
privado, que é a perspectiva de uma economia em forte crescimento. Não apenas
um mercado interno vasto e em expansão, mas já agora os meios e as possibilida-
des de acesso aos mercados externos, permitindo que o investimento seja planeja-
do levando em conta os dois mercados, como uso mais intenso da capacidade em
benefício da produtividade e da competitividade. (IANNI, 1996, p. 255)

Com o fim da reconstrução da Europa, após a Segunda Guerra Mundial, não


havia mais onde aplicar o capital excedente. É a saturação dos mercados naquele que é
tido como Primeiro Mundo que força o capitalismo a se expandir aos países em desen-
volvimento. A bandeira adotada é a da interdependência, mas não há contrapartida que
beneficie o Brasil, que se vê novamente atolado na dependência externa (MAZZAROL-
LO, 2003).
Em 1971, o General Emílio G. Médici institui o I Plano Nacional de Desenvolvi-
mento (PND), que vai de 1972 a 1974. O objetivo do PND era preparar a infraestrutu-
ra necessária para o desenvolvimento do país nas décadas seguintes. A usina hidrelétrica
de Itaipu faz parte do plano. É ainda no período do “milagre” que o Brasil firma com o
Paraguai o Tratado de Itaipu, no ano de 1973, após a finalização dos trabalhos da comis-
são mista designada pela Ata das Cataratas.
Portanto, a escolha de Itaipu não está desvinculada da condição internacional exis-
tente à época, favorável à tomada de empréstimos no exterior. Na verdade, segundo Maggi,

Itaipu foi concebida apenas e somente diante da perspectiva de se conseguir tomar muito
recurso emprestado. (...) não se imaginava a possibilidade do “projeto Itaipu”, nessas di-
mensões, antes da clara sinalização do capital financeiro internacional. Por esse motivo,
pode-se afirmar que Itaipu foi feita para dever. (MAGGI, 2013, p. 63-64)

267
Contudo, em 1974 ocorre a primeira crise internacional do petróleo, que afeta
profundamente o Brasil, devido à dependência externa estabelecida. Com a conjuntura
recessiva internacional, esgotam-se as fontes de financiamento, e tem-se a elevação das
taxas de juros internacionais. Apesar disso, a crença de que o Brasil estava “predestinado”
a crescer permanecia, e persistia o clima de euforia do “milagre econômico”.

Embalado pela onda de altas taxas de crescimento da economia, subestimando a


crise econômica mundial e seus desdobramentos e pouco sensível às contradições
do “modelo econômico Brasileiro”, o governo Geisel propõe-se manter a perfor-
mance do “milagre”, embora com taxas de crescimento econômico um pouco
inferiores (média de 10% ao ano). (BRUM, 2000, p. 199)

Com esse objetivo em mente, Geisel lança o II Plano Nacional de Desenvolvimento,


e se propõe a transformar o Brasil em potência mundial emergente até o fim de seu mandato,
em 1979. O II PND é marcado pela realização de projetos faraônicos e uma preocupa-
ção especial com a questão energética, a ser desenvolvida com a construção de hidrelétricas
(BRUM, 2000 e FAUSTO, 2006). Reafirma-se a necessidade de Itaipu, não apenas como
fonte energética, mas como monumento a representar a grandeza do país.
Conforme Boris Fausto:

O “capitalismo selvagem” caracterizou aqueles anos e os seguintes, com seus imen-


sos projetos, que não consideravam nem a natureza nem as populações locais. A
palavra “ecologia” mal entrara nos dicionários e a poluição industrial e dos auto-
móveis parecia uma bênção. (FAUSTO, 2006, p. 269)

O ano de 1978 é marcado por greves gerais, e em 1979 ocorre a segunda crise do petró-
leo. A crise internacional recai sobre a (dependente) economia brasileira. Isso não afeta a crença
de que o Brasil estaria “predestinado” a crescer: mesmo com a crise, a intenção do governo é
aumentar o crescimento econômico. Na verdade, “Para os dirigentes do país as possibilidades
de crescimento, desenvolvimento, estavam intrinsecamente associadas à Itaipu, representava o
futuro, seria o suporte enérgico que o país necessitava para consolidar sua posição no mundo,
principalmente com a crise do petróleo e da energia” (RIBEIRO, 2006, p. 46).
Assim, temos um período de construção de obras faraônicas. Vaneski Filho (2012, p.
208) afirma que: “o Brasil na verdade estava tocando vários ‘negócios do século’ ao mesmo
tempo – Itaipu, Carajás, Programa Nuclear, Ferrovia do Aço, as usinas de Tucuruí e Tubarão, os
metrôs de São Paulo e Rio de Janeiro e uma gigantesca lista de eteceteras”.
Todas essas obras significam mais empréstimos e o consequente aumento da dívi-
da externa. A construção de Itaipu inicia no período de recessão e a formação do reserva-
tório, em 1982, ocorre no auge da estagnação econômica. Em 1984, a hidrelétrica entra
em funcionamento, no período de transição democrática. Assim, a dívida externa que

268
resulta das ações megalomaníacas em meio à crise é repassada ao governo democrático
que assumirá após vinte anos de ditadura (LIMA, 2006).
Sobre a (des)necessidade de uma obra do porte de Itaipu, Mazzarollo (2003)
afirma que havia, já na década de 1970, uma crescente demanda por geração de energia,
tanto no Brasil, como no Paraguai, mas que o mais sensato, talvez, tivesse sido a cons-
trução de hidrelétricas menores em outros rios, a custos também menores. Maggi (2013)
explica que nenhum dos dois países precisava de Itaipu. Escreve, em 2013, que o Brasil
até então havia explorado apenas metade de toda a energia hidrelétrica aproveitável.
Como relembra Maria de Fátima B. Ribeiro, ao citar Debernardi, a “solução”
Itaipu era política. Não possuía justificativa técnica, dado os inúmeros projetos propos-
tos anteriormente, com a possibilidade de uma eficiência superior, além de pertencerem
com exclusividade ao Brasil.

(...) o fato de que, do lado brasileiro, fosse o Itamaraty, com sua autoridade interna
e seu prestígio internacional, e não o setor elétrico, o condutor do projeto; a coinci-
dência de dois chanceleres dotados de uma personalidade imponente; a presença de
dois governos fortes com uma rápida capacidade de decisão, a complementariedade
de dois presidentes como Alfredo Stroessner e Emilio Garrastazú Médici; a circuns-
tancial rivalidade argentina-brasileira; a abundância de financiamentos internacio-
nais; a relativa debilidade dos grandes movimentos ecológicos; a experiência recen-
temente adquirida por técnicos paraguaios em Acaray e o entendimento construtivo
dos executivos (DEBERNARDI apud RIBEIRO, 2006, p. 41, tradução livre)9.

Assim, sem respaldo técnico para a escolha pelo projeto da Itaipu Binacional, o governo
brasileiro, amparado pela mídia monopolizada pela Rede Globo, ditava à população os pas-
sos para o desenvolvimento econômico. Da mesma forma que aconteceu com outras grandes
obras, e permanece acontecendo – mesmo em um período democrático, as informações são
manipuladas e dotadas de “cientificidade”, que lhes confere uma aparente legitimidade.

Usando palavras que aparentavam muita ciência, afirmaram que o desenvolvimen-


to econômico iria aumentar oportunidades de trabalho, os investimentos iriam
dinamizar a vida econômica e aumentar extraordinariamente o número de empre-
gos. E a realidade é um número elevadíssimo de pessoas que têm profissão, querem
trabalhar e não conseguem emprego. Não é correndo atrás do desenvolvimento
que se elimina o desemprego e suas tremendas consequências. (...). Os senhores
do dinheiro usaram de seu poder para mentir com eficiência, fazendo as pessoas
acreditarem que o desenvolvimento econômico era o caminho único e necessário
9
O trecho original: [...] el hecho de que, del lado brasileño, fuese Itamaraty, com su autoridad interna y su prestigio internacio-
nal, y no el sector eléctrico, el impulsor del projecto; la coincidencia de dos Cancilleres dotados de uma personalidade descollante;
la presencia de dos Gobiernos fuertes com uma rápida capacida de decisión; la complementaridad de dos presidentes como Al-
fredo Stroessner y Emilio Garrastazú Médici; la circunstancial rivalidad argentina-brasileña; la abundancia de financiamentos
internacionales; la relativa debilidad de los grandes movimientos ecológicos; la experiencia recientemente adquirida por tecnicos
paraguayos en Acaray y el entendimiento constructivo de los ejecutivos.

269
para o mundo da felicidade. A humanidade foi a grande vítima desse “materialis-
mo prático”, na expressão do papa João Paulo II. Mas a grande ironia é que depois
disso os ricos ficaram mais ricos, mas também com isso não conseguiram viver em
paz. (DALLARI apud MAZZAROLLO, 2003, p.16)

ITAIPU: TERRITÓRIO DO CAPITAL

Se olharmos sob a perspectiva paraguaia, Itaipu representa a possibilidade de ex-


ploração da sua maior riqueza natural (que não existiria sem a técnica e o investimento
brasileiros) e a possibilidade de progresso tecnológico e industrial. Mas, pelo lado brasilei-
ro, além da geopolítica de aproximação com o Paraguai, o empreendimento se revela pura
manifestação do capital internacional buscando rentabilidade no Sul (MAGGI, 2013).
Assim, Itaipu se constitui um “território de exceção” (CARVALHO, 2013) ou
“território do capital” (MAGGI, 2013), já que as “Altas Partes Contratantes” (Brasil
e Paraguai) criam, com Itaipu Binacional – constituída pela Eletrobrás e pela Ande,
empresas públicas - um território regido por regras próprias (Tratado, Estatuto e demais
anexos), não afetado pelas legislações brasileira ou paraguaia e isento de impostos, taxas
e empréstimos compulsórios.

Para tanto, o capital financeiro exigiu a instituição das melhores condições de rentabi-
lidade, segurança e autonomia para os investimentos e o caráter binacional de Itaipu
proporcionou um rol imenso de exclusividades, alcançando inclusive a moeda, que
não é nem a brasileira nem a paraguaia. Não apenas a dívida tem referência no dólar,
mas todos os custos de gerenciamento interno, tarifa de energia, investimentos, royal-
ties, pagamento de trabalhadores, etc. Os índices de reajuste nacionais do Paraguai ou
do Brasil nada influenciam na gestão financeira e na saúde econômica de Itaipu. Todo
o fator de ajuste está relacionado à condição de inflação e política de juros do Banco
Central estadunidense (até 2007 principalmente). (MAGGI, 2013, p. 55)

Itaipu não apenas fixa um território próprio, como redefine os territórios paraguaio
e brasileiro. Houve uma diminuição da população no local, com a inundação pelo lago da
barragem, mas, ao mesmo tempo, a construção da usina hidrelétrica de Itaipu promoveu o
crescimento demográfico do município de Foz do Iguaçu: de 34 mil habitantes em 1970,
passa-se a 190 mil em 1991 (inauguração da 18ª turbina) (MAGGI, 2013). Assim,

Itaipu é uma manifestação de um território destinado ao capital industrial, apropriado


através da organização econômica pelo capital financeiro, legitimado politicamente por
dois Estados nacionais e alimentado pelo lucro suplementar da exploração do trabalho
dos trabalhadores na atividade hidrelétrica. Um tipo de território com uma destinação
dos resultados orientada para o externo. As relações de poder que governam aquele terri-

270
tório são próprias do capital financeiro internacional – taxa de juros, de inflação, remune-
ração do capital, bases do mecanismo de operação da empresa que vão a partir de então,
organizar toda a cadeia produtiva: escalas de produção, aspectos laborais (até os salários
são em dólar) e numa condição de exploração de recursos naturais privilegiadíssima.
Nota-se que nem mesmo a impostos esse território, aos seus territórios de origem, está
sujeito. Um único empreendimento que em 50 anos distribuirá cerca de US$ 60 bilhões
para o capital industrial e financeiro e já distribuiu cerca de US$ 8 bilhões em royalties
aos Estados parte desde que entrou em operação.
O forte componente externo que rege as relações de poder em Itaipu faz dessa, ao final
e ao mesmo tempo, uma área de integração de dois países, mas também de exclusão.
(MAGGI, 2013, p. 71)

A fixação do território binacional, no entanto, não resolve a questão da demar-


cação da fronteira. A área em disputa entre Brasil e Paraguai era de aproximadamente
2 km². Para “solucionar” o conflito, foram inundados 1.350 km². O que se percebe é
que o que estava em disputa não era a propriedade da terra em si, mas a propriedade do
pedaço de terra que possibilitaria a exploração da energia. Os 2 km² de terra não foram
totalmente inundados pelo lago de Itaipu e, hoje, integram o patrimônio da Itaipu Bi-
nacional. A controversa definição dos limites se tornou parte do território do capital.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levamos quinhentos anos aprendendo a nos odiar entre nós mesmos e a traba-


lhar o corpo e a alma para a nossa perdição, e assim estamos; mas ainda não
conseguimos corrigir nossa mania de sonhar acordados e esbarrar em tudo, e
certa tendência a ressurreição inexplicável.
(Eduardo Galeano)

Uma rápida imersão em uma perspectiva crítica da história recente nos permite
analisar de forma mais coerente os fatores que levaram à construção da segunda maior
usina hidrelétrica do mundo. Alguns pontos concernentes à geopolítica de Itaipu, prin-
cipalmente as longas negociações entre Brasil, Paraguai e Argentina não foram contem-
plados no decorrer do texto. A intenção foi condensar de forma didática os fatos que
levaram o Brasil a optar pela construção da barragem. Portanto, para compreender a
tragédia de Itaipu e o que ela representou, precisamos entender que:

a) A escolha pelo projeto de Itaipu não se deu pela necessidade de geração


de energia hidrelétrica. Não se quer dizer, com isso, que não houvesse demanda
energética. Mas, como pudemos constatar, foram desenvolvidos outros projetos
anteriores. Em especial, um desses anteprojetos propunha a construção de uma

271
usina hidrelétrica totalmente em território brasileiro, com um custo menor, in-
clusive socioambientalmente, se considerarmos que as Sete Quedas poderiam ter
sido mantidas, e uma geração de energia superior àquela percebida pelo Brasil
com a Itaipu Binacional.
b) O local de implantação da usina tampouco foi uma decisão técnica.
Cria-se um verdadeiro território de exceção. Sob o signo da binacionalidade, a
moeda corrente é o dólar e a lei é a do capital.

Além disso, o megaprojeto era necessário para demonstrar a “grandeza” do Brasil


potência, o “progresso” da ditadura, e alavancar o conceito de desenvolvimento do go-
verno autoritário: o alinhamento político com os Estados Unidos e a economia sustenta-
da pelo endividamento externo. Aos povos e a presente democracia, restaram as dívidas
e o fim das Sete Quedas – que representa não apenas a degradação do ambiente, mas de
todo o ecossistema, e da sociobiodiversidade.
Então, para que e para quem serve Itaipu? Itaipu serviu à expansão da acumula-
ção privada, não apenas no contexto local e regional, como mundial. O Estado, nesse
contexto, cumpre a função de possibilitar a acumulação capitalista. Quem lucra com o
negócio que se tornou Itaipu são as empresas nacionais em alguns setores, beneficiadas
pelas políticas de desenvolvimento do setor elétrico; o setor industrial, composto em sua
maioria por multinacionais; e as instituições financeiras, dadas as condições de financia-
mento da obra.
A construção de Itaipu não deriva de qualquer interesse ou participação popular.
Em um regime ditatorial, se não houve consulta aos karaí, que dirá aos povos indígenas.
O que podemos concluir é que Itaipu não foi construída (e não serve) para os povos e
a natureza. Essa afirmação pode parecer óbvia, mas talvez seja justamente isso do que
precisamos: dizer as obviedades, para que a história não seja repetidamente violada pelos
vencedores. Conhecedores do nosso passado, poderemos construir adiante um caminho
novo, de libertação para os povos da América Latina – e de toda ela, em união.

272
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274
IMPACTOS AMBIENTAIS DA HIDRELÉTRICA DE ITAIPU

Diogo Andreola Serraglio1

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por escopo a análise dos impactos ambientais ocasionados
pela construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional na fronteira entre o Brasil e o
Paraguai. Resultado de diversas negociações durante o período do milagre econômico
brasileiro, o levantamento da barragem aconteceu durante as décadas de 1970 e 1980 e
mostrava-se imprescindível para a continuação do crescimento anual do Produto Inter-
no Bruto (PIB) brasileiro nas décadas seguintes.
Apesar de se caracterizar como uma fonte de energia renovável, quer dizer, uma
matriz energética pouco poluente no que tange a emissão de gases de efeito estufa (GEE)
na atmosfera, ressalva-se que o planejamento dessa represa no território nacional propi-
ciou diversos debates em virtude dos impactos provocados pela sua implantação. Inobs-
tante a construção de projetos dessa natureza poder ser justificada por meio da possibili-
dade do desenvolvimento econômico, não se pode perder de vista a degradação do meio
ambiente e as mudanças sociais nas populações que habitavam em seu entorno.
Restringindo-se aos impactos ambientais, ambiciona-se, inicialmente, enumerar
as principais consequências geradas pelo levantamento de barragens catalogadas pela
literatura contemporânea. Verificar-se-á que os impactos ambientais provocados pelo
estabelecimento de usinas hidrelétricas são irreversíveis: além de gerar uma ampla degra-
dação ambiental, afetam todo o ecossistema componente da região em que o empreen-
dimento é instalado.
Da mesma forma, buscar-se-á demonstrar que a edificação da Usina Hidrelétrica
Itaipu Binacional, ao produzir um novo espaço no território afetado por meio da desca-
racterização da paisagem local, provocou o desaparecimento da biodiversidade regional,
quedas d’água, saltos e corredeiras. Constatar-se-á que o fechamento das suas eclusas
inundou uma área aproximada de 1.500 Km2 de vegetação nativa, onde se encontravam
remanescentes florestais relevantes para a preservação da biodiversidade nacional, assim
como a submersão de terras férteis e agricultáveis. Tem-se, como exemplo do impacto

1
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); Bolsista da Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUCPR; Es-
pecialista em Direito Internacional do Meio Ambiente pela United Nations Institute for Training and Research (UNITAR);
Pós-graduado em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Graduado em Direito pelo Centro
Universitário Curitiba (UNICURITIBA); Membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da International Union
for Conservation of Nature (IUCN); Membro da Rede Latino-Americana de Antropologia Jurídica; Participante do Grupo
de Pesquisa Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica (PUCPR/CNPq); Advogado.

275
ambiental gerado na região, o desaparecimento do Salto de Sete Quedas2, considerada a
maior cachoeira do mundo em volume de água até então.
Por fim, ainda que a Itaipu Binacional tenha elaborado planos visando à minimi-
zação dos impactos causados pela edificação de sua usina hidrelétrica, destacando-se o
Plano Básico para a Conservação do Meio Ambiente, de 1975, examinar-se-á que a perda
de uma grande parcela da biodiversidade local foi legitimada pela noção de progresso
econômico arraigada no Brasil durante o regime militar.

OS IMPACTOS AMBIENTAIS OCASIONADOS


PELA CONSTRUÇÃO DE USINAS HIDRELÉTRICAS

Relevante sublinhar, preliminarmente, que a implementação de usinas hidrelétricas por


meio da edificação de barragens3 e da formação de lagos artificiais ocasionam impactos ambien-
tais4 irreparáveis. Tendo em vista que tais projetos arquitetônicos promovem a transformação
do espaço geográfico, esses acabam por reconfigurar a paisagem e o território a fim de garantir
o máximo aproveitamento energético possível, olvidando-se, por vezes, da manutenção da bio-
diversidade local: “todo processo de geração de energia elétrica, independente da fonte, envolve
custos diferenciados e acarreta imensuráveis impactos” (ROOS, 2012, p. 26).
Ainda que estudos evidenciem os danos gerados ao meio ambiente pela constru-
ção de usinas hidrelétricas e, a partir disso, ações de mitigação sejam elaboradas com
vistas à minimização da degradação ao meio ambiente, tenha-se presente que essas não
logram êxito na compensação de todos os efeitos negativos produzidos. Isso porque cada
bacia hidrográfica apresenta características únicas, espécies da fauna e flora próprias,
vazões e ciclos particulares (MATER NATURA, 2008, p. 01). Quer dizer, “assim como
todo rio é único nas características de sua vazão, da região que ele percorre e das espécies
que ele sustenta, assim também o é o design e o modelo de operação das barragens e os
efeitos nos rios e ecossistemas que dela decorrem” (MCCULLY, 1996, p. 31).
Considerando a dificuldade de se avaliar, com precisão e exatidão, a extensão da frag-
mentação dos ecossistemas em decorrência da construção de empreendimentos desta nature-
2
Também chamada de Saltos del Guairá.
3
Enquanto termo barragem designa qualquer estrutura em um curso permanente ou temporário de água para fins de
construção ou acumulação de substâncias líquidas ou de misturas de líquidos e sólidos, abrangendo também o barra-
mento e as estruturas associadas; assevera-se que a expressão reservatório sinala tão somente a acumulação não natural de
água, de substâncias líquidas ou de mistura de líquidos e sólidos, nos termos da Lei n. 12.334/2010 (Política Nacional
de Segurança de Barragens). Constata-se, deste modo, que a definição de barragem possui uma amplitude maior que o
conceito de reservatório. (MACHADO, 2013, p. 594)
4
Segundo o artigo 1o da Resolução n. 001 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), datada de 23/01/1986,
considera-se impacto ambiental “qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente,
causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afe-
tam a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições estéticas e
sanitárias do meio ambiente; a qualidade dos recursos ambientais”.

276
za, antes de adentrar nos impactos ambientais específicos provocados pela Usina Hidrelétrica
Itaipu Binacional, impende observar, ainda que brevemente, as principais consequências5 do
levantamento de barragens catalogadas pela literatura contemporânea (VIANA, 2003, p. 22).
De início, evidencia-se a inundação de áreas com vegetação nativa como o princi-
pal impacto ocasionado pela construção de hidrelétricas. McCully (1996, p. 32) aponta
que, até o fim do Século XX, pelo menos 400.000 km2 de terras agricultáveis foram
perdidas em razão do erguimento de barragens.
Comumente, a construção de centrais que têm por finalidade a produção de ener-
gia elétrica por meio da exploração do potencial hidráulico existente no curso de um rio
ocorre em áreas que concentram remanescentes florestais, colocando em risco espécies
da fauna e flora, por vezes já ameaçadas de extinção.
Ao submergir matas nativas que sobreviveram por conta da dificuldade de acesso
para fins agrícolas ou para a exploração madeireira, tais elevações implicam, antes da
formação e alagamento dos reservatórios, o desmatamento de áreas que possuem terras
férteis e que se caracterizam como verdadeiras guaridas da fauna silvestre (MATER NA-
TURA, 2008, p. 06). Em outras palavras,

[...] as barragens geralmente são construídas em áreas remotas, que repre-


sentam o último refúgio de espécies deslocadas pelo desenvolvimento de
outras regiões. Além de destruir o habitat de várias espécies, os reserva-
tórios ainda contribuem para obstruir o acesso das rotas migratórias de
muitos animais (VIANA, 2003, p. 22).

Além da perda da fauna e flora, não se pode olvidar que a construção de bar-
ragens e a consequente formação de lagos artificiais propiciam o desaparecimento de
paisagens cênicas, as quais, apesar de apresentarem potencial para o desenvolvimento de
outras atividades econômicas, como o turismo, acabam sendo inviabilizadas. Citam-se,
como exemplos, a Usina Hidrelétrica de Itá e a Usina Hidrelétrica Barra Grande, ambas
localizadas na divisa dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, as quais inun-
daram o Estreito do Rio Uruguai e o Cânion dos Encantados, respectivamente; assim
como a Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional, que submergiu o Salto de Sete Quedas, no
município paranaense de Guaíra, fato esse que será analisado em momento oportuno
(MATER NATURA, 2008, p. 06).
Em epítome, denota-se que o “reservatório se torna um elemento novo na pai-
sagem, provocador de reflexos variados na estrutura social e econômica. Já no período
de operação e aproveitamento hidrelétrico, novos impactos surgem e outros se tornam
permanentes” (ROOS, 2012, p. 27).
5
Dentre os diversos efeitos causados pela implementação de usinas hidrelétricas, destacam-se a perda da fauna e da flora
decorrente da inundação das áreas do reservatório, a erosão e o depósito de sedimentos, tremores de terra, a contaminação
e a qualidade da água, a salinização dos solos e os efeitos sobre os peixes.

277
Dentre os efeitos gerados após a operacionalização das usinas hidrelétricas, me-
recem destaque a erosão e o depósito de sedimentos. Denota-se que todos os rios trans-
portam, ao longo do seu curso, sedimentos que são erodidos do solo e das rochas. Esse
processo é interrompido diante da construção de uma represa: além de a água correr
muito lentamente no reservatório, a existência de um obstáculo para o seu escoamento
faz com que os sedimentos se depositem no fundo do lago artificial e não sigam rio
abaixo. Como resultado, o rio a jusante da eclusa começa a erodir seu próprio leito.
Ou seja, como forma de recuperar o abastecimento de sedimentos abaixo da barragem,
percebe-se a intensificação do processo de erosão, o qual causará o aprofundamento e o
alargamento das margens do rio, comprometendo, desta forma, obras de infraestrutura
e o abastecimento de água em determinadas regiões (VIANA, 2003, p. 22-23).
Assinala-se que esse fenômeno ocorreu no Rio Colorado, localizado nos Estados
Unidos da América (EUA), em função da Represa Hoover6. Referindo-se ao território
norte-americano, McCully (1996, p. 34-36) aduz que, desde a década de 1920, diversos
diques têm sido responsáveis pela redução de quatro quintos dos sedimentos que chegam
à costa sul da Califórnia: “tal fato tem propiciado um efeito dramático na região costeira,
que atualmente é mantida pelo alto custo das areias trazidas de outras regiões do país”.
Outra consequência relacionada à edificação de barragens é o surgimento e inten-
sificação de tremores de terras e atividades sísmicas em localidades próximas aos reserva-
tórios de água formados.
A pressão exercida pelo volume de água armazenado nos lagos artificiais explica o
aparecimento de atividades sísmicas. Acreditava-se, em um primeiro momento, que os
tremores de terra só poderiam acontecer enquanto o reservatório estivesse sendo cheio
ou imediatamente após o seu completo enchimento. Entretanto, constatou-se, poste-
riormente, que tais fenômenos também ocorrem com o nível de água já estabilizado
(MATER NATURA, 2008, p. 07).
É de ser relevado que, durante a década de 1960, quatro abalos sísmicos, medindo entre
5.8 e 6.5 na escala Richter, foram registrados no globo em decorrência da instalação de usinas
hidrelétricas, quais sejam: as represas de Hsinfengkiang, na China; Kariba, no Zimbábue; Kre-
masta, na Grécia; bem como Koyna, na Índia (VIANA, 2003, p. 24). Roborando o assunto,
menciona-se o lago artificial Nasser, formado em razão da Usina de Aswan, no Egito:

O enchimento do reservatório começou em 1964 e o lago atingiu seu nível máxi-


mo de água (177,8m) em 1978; desde então ele flutuou entre 171 e 177 metros.
No dia 14 de novembro de 1981 ocorreu um terremoto de magnitude 5.6 na
escala Richter, precedido por três foreshocks e seguido por um grande número de
aftershocks7 (GOLDSMITH & HILDYARD, 1984, p. 116).
6
Hoover Dam.
7
Geralmente os terremotos são acompanhados de pequenos tremores de terra que podem ocorrer antes ou depois do
abalo sísmico principal, sendo esses conhecidos como foreshocks e aftershocks.

278
Por sua vez, o comprometimento da qualidade de água nos reservatórios encon-
tra-se relacionado à interrupção do fluxo normal do curso do rio, uma vez que propicia
diversas mudanças na composição química e térmica da água.
No que tange às alterações na temperatura, verifica-se que a água estocada no
fundo do reservatório costuma ser mais fria no verão e mais quente no inverno, se com-
parada à água do próprio rio. Enquanto isso, a água mantida na superfície da eclusa é
mais aquecida que o restante do rio em todas as estações do ano. Tais variações de tem-
peratura acabam por alterar a quantidade de oxigênio (O2) e outros compostos químicos
que permanecem suspensos na água, modificando os ciclos de vida dos seres aquáticos,
tais como a procriação (VIANA, 2003, p. 26).
Ademais, tendo em vista que a limpeza das áreas que serão alagadas pelos reser-
vatórios nem sempre é feita da forma devida, haja vista o cronograma apertado para a
conclusão das obras e o alto custo do desmatamento de todo o entorno, destacam-se os
efeitos da decomposição da vegetação e do solo submerso pelas águas do lago artificial.
Além da redução da quantidade de O2 na água, o apodrecimento da matéria orgânica
enseja a liberação de gases, como o metano (CH4) e o dióxido de carbono (CO2), na
atmosfera (MATER NATURA, 2008, p. 07). Nesse lanço, observa-se que o tempo mé-
dio de recuperação dos reservatórios diante dos danos ora mencionados aproxima-se de
uma década, quando localizados em regiões temperadas, podendo a decomposição da
matéria orgânica demorar até algumas décadas, quando situados em regiões tropicais
(MCCULY, 1996, p. 38).
Tem-se na Usina Hidrelétrica de Tucuruí, construída no estado do Pará, um
exemplo da contaminação das águas do reservatório em razão da limpeza indevida an-
tes do seu enchimento8. Dos 2.430 km2 de floresta inundada para a formação do lago,
apenas 400 km2 foram desmatados. Por isso, a decomposição de toda a matéria orgânica
remanescente no local foi responsável pela proliferação de algas na represa, propiciando
a multiplicação de mosquitos que, consequentemente, afetaram toda a população realo-
cada nos entornos (VIANA, 2003, p. 27).
Em síntese, “a urgência político-oportunista do governo federal em inaugurar a
obra fez com que os seus executores não processassem o desmatamento em tempo hábil.
A consequência desta decisão foi a decomposição da matéria orgânica vegetal e a proli-
feração das macrófitas aquáticas” (SILVA, 1997, p. 34).
Não menos importante, um dos impactos ambientais ocasionados pelo levanta-
mento de barragens diz respeito à salinização da água. Considerando que a formação dos
reservatórios expande a superfície de água exposta aos raios solares, percebe-se o aumento

8
A Usina Hidrelétrica de Tucuruí designa-se como a principal usina integrante do Subsistema Norte do Sistema Inter-
ligado Nacional (SIN), sendo responsável pelo abastecimento de grande parte das redes da região norte do país. A sua
construção foi iniciada em 1974 e a sua inauguração ocorreu dez anos mais tarde, em 1984, pelo presidente João Figuei-
redo com capacidade de 4000 MW, ampliados em meados de 2010 para 8.370 MW.

279
dos índices de evaporação e, logo, da concentração de sais no lago artificial. Como efeito
desse fenômeno, evidencia-se o envenenamento de espécies aquáticas, bem como a corrosão
de tubos e máquinas que constituem as usinas hidrelétricas (VIANA, 2003, p. 28).
Por fim, cumpre observar as implicações das represas sobre a vida dos peixes.
Uma vez constatado que essas modificam o fluxo dos rios ao criar obstáculos para o
ciclo migratório, as barragens interferem na migração e procriação, colocando em risco
a sobrevivência de diversas espécies (MATER NATURA, 2008, p. 08).
Além disso, as variações da temperatura da água dos reservatórios, já apresenta-
das nesta pesquisa, acarretam o desaparecimento de espécies incapazes de se adaptar às
novas condições climáticas. Frisa-se, ainda, que a concentração de poluentes nos lagos
acaba por disseminar uma variedade de doenças nos peixes, bem como a introdução
de espécies exóticas que contribuem para a extinção daquelas nativas no curso dos rios
(MATER NATURA, 2008, p. 08).
Assim posta a questão, os impactos ambientais produzidos pela edificação de usinas
hidrelétricas mostram-se irreversíveis, uma vez que, além de gerar degradação ambiental, afetam
todo o ecossistema componente da região em que o empreendimento é instalado.
Verifica-se, pelo exposto, a amplitude das perturbações ocasionadas por tais obras e, “en-
tre os custos ambientais, podem ser lembrados: perda de florestas, de ecossistemas naturais, da
biodiversidade, transformações nos ecossistemas aquáticos, barramento da migração de peixes,
na transformação do rio em lago, emissão de gases de efeito estufa, etc” (ROOS, 2012, p. 29).
Ainda, de acordo com a Comissão Mundial de Barragens9, os principais rios e bacias
hidrográficas do planeta suportam um grande número de represas, que, além de todos os im-
pactos ambientais mencionados, motivam o aparecimento de efeitos cumulativos, os quais de-
correm da construção de diversas usinas hidrelétricas em um mesmo rio (WCD, 2000, p. 88).
Estima-se que 60% das mais relevantes bacias hidrográficas a nível mundial são alta-
mente fragmentadas: quanto maior o número de barragens construídas em um mesmo rio ou
bacia hidrográfica, maior será o fracionamento do ecossistema fluvial. Ou seja, a pulverização
das bacias de drenagem de cursos de águas intensifica os problemas de cunho ambiental, resul-
tando em um aumento das perdas de recursos naturais, da qualidade dos habitats, bem como
da integridade dos ecossistemas (VIANA, 2003, p. 33)
Notabiliza-se, nesse lanço, a Bacia Hidrográfica do Rio Paraná, que, diante de um
relevo acidentado, aliado ao grande volume d’água, tanto do Rio Paraná quanto de todos
os seus afluentes, se caracteriza pelo grande potencial hidrelétrico fornecido ao Brasil,
Paraguai e Argentina, o qual se dá por meio de dezoito usinas hidrelétricas devidamente
instaladas com potência energética acima de 1.000 MW10.
É nesse contexto que surge a Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional. Nota-se que a
sua edificação trouxe à baila a reconfiguração da paisagem e a reordenação territorial por
9
World Comission on Dams (WCD).
10
Megawatts.

280
meio do surgimento de novas feições, composições, formações e adequações encaradas
pela região Oeste do estado do Paraná a partir da formação do Lago de Itaipu até os dias
atuais (ROOS, 2012, p. 27).
Tendo em vista que o enchimento do seu reservatório, ao produzir um novo es-
paço no território afetado por meio da descaracterização da paisagem local, provocou o
desaparecimento da biodiversidade regional, quedas d’água, saltos e corredeiras, cumpre
verificar os impactos ambientais ocasionados pela construção de Itaipu Binacional na
região de fronteira entre o Brasil e o Paraguai.

A CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA ITAIPU


BINACIONAL E A SUBMERSÃO DO SALTO DE SETE QUEDAS

Dentre os diversos acontecimentos que colaboraram para o esgotamento de espé-


cies da fauna e flora na Mata Atlântica11, o levantamento da Usina Hidrelétrica Itaipu
Binacional adquire relevância. Isso porque o alagamento de 1.350 km2 de áreas com
remanescentes florestais e terras agricultáveis, o desaparecimento de quedas d’água, sal-
tos e corredeiras, caracterizam-se como eventos excepcionais do ponto de vista da inter-
venção humana na paisagem, cujos impactos ainda não foram suficientemente avaliados
(ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 02).
Tenha-se presente que os primeiros estudos realizados pelo Brasil com vistas ao
aproveitamento do potencial energético das águas do Rio Paraná aconteceram na década
de 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que tinha como lema crescer cin-
quenta anos em cinco. No governo que se sucedeu, presidido por Jânio Quadros, foram
apresentados os projetos para a promoção da geração de energia, com propostas para a
edificação de represas ao longo do curso do rio (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 02).
Dentre os projetos elaborados na época, cogitava-se, em 1961, a construção de
uma usina hidrelétrica que não abarcasse as águas transfronteiriças, desviando o rio an-
tes da fronteira com o Paraguai. Da mesma forma, no ano seguinte, ambicionou-se a
construção de uma barragem que pertencesse exclusivamente ao Brasil, sem a submersão
do Salto de Sete Quedas. Entretanto, considerando a pretensão argentina de edificar
uma represa12 em consórcio com o Paraguai, acirrando, assim, a disputa geopolítica e a
influência sobre a América Latina, o governo brasileiro aliou-se ao governo paraguaio,
tendo-o como parceiro preferencial no que diz respeito à matriz energética na Bacia do
11
O bioma brasileiro denominado Mata Atlântica, ainda que devastado, abriga uma parcela significativa da diversidade
biológica do país, em especial no que tange à flora, a qual apresenta alto grau de endemismo. Ainda que inexistam dados
precisos acerca da diversidade de plantas, estudos apontam a existência de aproximadamente 20.000 espécies, o que cor-
responde de 33 a 36% do total encontrado no Brasil. Quanto à fauna, das 202 espécies ameaçadas de extinção no país,
171 encontram-se nesse bioma. (CAPOBIANCO, 2002)
12
Usina de Corpus.

281
Paraná. O acordo13 significou “a materialização do projeto geopolítico brasileiro para a
hegemonia na região do Prata” (SILVA, 2006, p. 80).
Em suma, localizada em um trecho de fronteira do Rio Paraná, a Usina Hidrelé-
trica Itaipu Binacional começou a ser pensada durante a década de 1960, momento em
que foram assinados os primeiros acordos de cooperação entre o Brasil e o Paraguai.
A formalização do empreendimento se deu com a assinatura do Tratado de Itaipu, em
1973, o qual estabeleceu os pontos para o financiamento da obra e a operação da empresa em
um modelo de sociedade binacional, pertencente às duas nações em partes iguais:

O Tratado de Itaipu, firmado pelos governos brasileiro e paraguaio, em 1973,


dispôs os termos do empreendimento. Na ocasião, também foi criada a empresa
Itaipu Binacional, de natureza jurídica internacional, para promover o aproveita-
mento hidrelétrico do trecho do Rio Paraná desde e inclusive de Sete Quedas, hoje
inexistente, até a foz do Rio Iguaçu, a dezessete quilômetros da fronteira com a
Argentina. (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 02)

Ratificado o Tratado, propôs-se a edificação da usina hidrelétrica por meio de


uma única barragem que seria construída em um ponto do rio conhecido como Itaipu14.
Iniciaram-se, assim, as obras da construção do que seria “a maior hidrelétrica do mundo
até então, capaz de gerar 12,6 milhões de quilowatts, com possibilidade de ampliação,
no futuro, para 14 milhões, a serem divididos em partes iguais entre o Brasil e o Para-
guai” (MAZZAROLLO, 2003, p. 14).
Vale mencionar que a empresa Itaipu Binacional ficou responsável pela supervisão
da construção da usina hidrelétrica, amparando-se na lei de segurança nacional, com
legislação específica, estando diretamente subordinada ao governo federal (ZIOBER &
ZANIRATO, 2014, p. 03).
O canteiro de obras foi estruturado no ano de 1975 e o escavamento do canal de
desvio começou no ano seguinte. Sete anos mais tarde, em 1982, a construção da barra-
gem principal – que apresenta 196 metros de altura e 7.235 metros de comprimento – foi
concluída e o fechamento das comportas foi autorizado, permitindo, assim, a formação do
Lago de Itaipu: “o nível das águas subiu mais de 100 metros em 14 dias e atingiu o volume
adequado à produção de energia. Estava feito o lago que permitiria o funcionamento da
Usina Hidrelétrica de Itaipu” (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 03).

13
Assinala-se que as negociações culminaram na assinatura da Ata das Cataratas, em 1966, a qual representa o acordo
oficial a respeito da construção da usina hidrelétrica. Por meio desse documento, firmou-se que o aproveitamento das
águas do Rio Paraná seria compartilhado pelo Brasil e Paraguai. Objetivando definir as condições em que isso ocorreria,
instituiu-se a Comissão Técnica Brasileiro-Paraguaia e, em 1970, assinado o Convênio de Cooperação entre as Centrais
Elétricas Brasileiras S/A. (ELETROBRAS) e a Administracion Nacional de Eletricidad (ANDE). Impende observar que,
para o Paraguai, a parceira promoveu o desenvolvimento de programas de integração com o país vizinho dentro da polí-
tica dos corredores de exportação (SILVA, 2006, p. 98).
14
Do tupi-guarani, a pedra que canta.

282
A amplitude da obra é constatada na quantidade de material utilizado. Segundo
Santos (2006, p. 35), o volume de concreto poderia erguer 210 estádios do Maracanã
ou um conjunto habitacional com capacidade para 04 milhões de pessoas. O ferro e o
aço utilizados moldariam 880 torres Eiffel. Ademais, foram consumidos 6.657.396 m3
de concreto e aproximadamente 17.973.562 m3 de ferro e rocha.
Isso posto, assinala-se que a Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional, também chamada
de Itaipu Binacional, está localizada entre as cidades de Foz do Iguaçu, no Brasil, e Ciudad
del Leste, no Paraguai, estando o seu reservatório assentado na divisa de ambas as nações e
se estendendo até as cidades de Guaíra, no Brasil, e Salto del Guairá, no Paraguai.
Inobstante a grandiosidade do empreendimento, essa obra ocasionou desmedidos
impactos ambientais na Bacia do Paraná. Roesler (2007, p. 84) elucida que

[...] a grande justificativa quanto à abordagem de aspectos da institucionalização


do projeto Binacional de Itaipu [...] repousa, fundamentalmente, no entendimen-
to de que ele foi feito pelo homem em busca da consecução de propósitos voltados
à promoção do seu desenvolvimento. Assim, o homem demonstra sua capacidade
de criar mudanças na natureza através de formas de exploração dos ecossistemas
que envolvem, paradoxalmente, a depredação da mesma e os desafios de sua con-
servação com vistas à sustentabilidade do habitat.

É de ser relevado que um dos danos ambientais propiciado pela Itaipu Binacional
foi a transformação do Rio Paraná em um lago artificial de aproximadamente 1.350
km2 por meio do levantamento de uma barragem que fez submergir um vasto território
composto por remanescentes florestais, áreas de cultivo agrícola, bem como sítios ar-
queológicos (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 03).
As alterações provocadas ao meio ambiente acarretaram não apenas a transfor-
mação do relevo, mas também a variação do clima local e, sobretudo, a perturbação aos
organismos vivos entre si e com o meio físico. Deste modo, visto que todo o ecossistema
regional foi modificado, a fauna e a flora existentes foram afetadas pelas águas da eclusa
(ROOS, 2012, p. 32). Roborando o assunto, “a biodiversidade e a sociodiversidade não
foram consideradas e a ideia da natureza é utilizada mais como forma de obtenção de di-
visas do que com a preocupação socioambiental e a sociedade é enquadrada num padrão
único de entendimento de desenvolvimento” (ROESLER, 2007, p. 51).
Constata-se a devastação ecológica provocada pela Itaipu Binacional por meio do
desaparecimento do Salto de Sete Quedas, situado no Rio Paraná, na altura do municí-
pio paranaense de Guaíra, completamente inundado pelas águas que compõem o lago
artificial de Itaipu.
Descoberta pelo homem branco no ano de 1525, quando o navegador espanhol
Aleixo Garcia desbravou a região, o Salto de Sete Quedas foi originalmente intitulado
como as Cataratas do Rio Paraná. Todavia, frisa-se que as populações indígenas que habi-

283
tavam o local o chamavam, em um primeiro momento, de Kanendyiú, em homenagem
a um cacique do mesmo nome, e, posteriormente, de Guaíra, outro cacique, da região
(MAZZAROLLO, 2003, p. 174).
Tratava-se, pois, de um conjunto de 19 cachoeiras principais divididas em 07
grupos de quedas, as quais se originavam do estreitamento do Rio Paraná, que, de uma
envergadura de 380, metros passava para 61 metros de largura. A altura total das quedas
alcançava o patamar aproximado de 114 metros, enquanto a maior de suas cachoeiras
apresentava uma queda de 40 metros de altura. Além disso, relatos apontam que os
rugidos provocados pela água mergulhando rio abaixo podiam ser ouvidos a 20 km de
distância (RIO URUGUAI VIVO, 2012, p. 03).
De acordo com Mazzarollo (2003, p. 174),

Sete Quedas – na verdade uma sequência de dezenove cachoeiras e noventa saltos,


num desnível de cem metros – oferecia um espetáculo sem similar no mundo. A
comparação com as Cataratas do Niágara ou com as Cataratas do Iguaçu ajuda pou-
co para dimensionar o que se perdeu em Guaíra, porque cada um desses caprichos
da natureza tinha uma concepção diferente e causava um impacto incomparável.

O local situava-se dentro do Parque Nacional de Sete Quedas, criado em 1961.


Considerando que o alagamento do lago artificial de Itaipu implicaria alterações sig-
nificativas e acabaria por descaracterizar a reserva, promulgou-se o Decreto Federal n.
86.07115, de 04 de junho de 1981, o qual extinguiu a condição de parque nacional
(ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 03).
Em 1982, ano em que as comportas da barragem da Usina Hidrelétrica de Itaipu
seriam fechadas, formando, assim, o lago artificial de Itaipu, pequenos movimentos am-
bientalistas – ainda incipientes no cenário nacional – reuniram-se na área que seria ala-
gada para o movimento denominado Adeus, Sete Quedas!, um protesto contra o governo
brasileiro, contra a empresa Itaipu Binacional, e todos aqueles que, de alguma forma,
consentiram e tornaram possível a construção da usina hidrelétrica. Desta maneira,

[...] para externar e extravasar esses sentimentos, grupos de ecologistas do Paraná


e outros Estados Brasileiros promoveram uma ruidosa manifestação de protes-
to dentro do Parque Nacional de Guaíra, [...]. Centenas de pessoas permanece-
ram acampadas durante três dias no interior do parque, no chamado Movimento
Adeus, Sete Quedas! Passeios, rezas, procissões, rituais litúrgicos, debates, palestras
e impropérios lançados contra a Itaipu fizeram o registro da comoção provocada
por esse que seria um dos mais lamentáveis crimes de todos os tempos contra a
natureza. (MAZZAROLLO, 2003, p. 176)

15
De acordo com o artigo 1o do Decreto Federal, “fica extinto o Parque Nacional de Sete Quedas, localizado no Estado
do Paraná, criado pelo Decreto n. 50.665, de 30 de maio de 1961”.

284
Observa-se que, no mesmo ano, um dos movimentos ambientalistas ingressou
com ação popular perante a Justiça Federal com o objetivo de impedir que o represa-
mento do Rio Paraná submergisse o Salto de Sete Quedas. Entretanto, reconhece-se que
a ação judicial tinha apenas um valor simbólico (MAZZAROLLO, 2003, p. 173).
Com relação ao assunto, assim dispôs o jornalista Hélio Teixeira à Revista Veja,
na edição de 22 de setembro de 1982: “É uma pena, mas aí está um exemplo de que,
no choque entre o progresso e a natureza, ela perde inapelavelmente, pois não haveria
como salvar as quedas e manter o projeto de Itaipu” (MAZZAROLLO, 2003, p. 174).
Nesse contexto, cumpre averiguar a proporção do impacto que a edificação de
Itaipu Binacional ensejou sobre o meio natural e social dessa região, uma vez que impos-
sibilitou que gerações futuras tivessem a oportunidade de conhecer a paisagem cênica de
ordem natural do Salto de Sete Quedas, o qual permaneceu tão somente nas lembranças
das gerações passadas e em arquivos fotográficos (ROOS, 2012, p. 33).
O ecologista José Lutzenberger assim escreveu no Jornal Zero Hora, de Porto
Alegre, RS, edição de 28 de julho de 1982:

O desaparecimento de Sete Quedas significa a destruição de um valor eterno,


em favor de benefícios momentâneos de alguns poucos à custa de muitos. [...]
Seu desaparecimento é apenas um dos sintomas visíveis e dolorosos da demolição
generalizada de valores naturais, sociais e espirituais que hoje se verifica neste país,
e não somente neste país. Até onde irão os poderosos em sua cobiça imediatista?
(MAZZAROLLO, 2003, p. 175)

Uma vez caracterizada a devastação oportunizada pela represa de Itaipu Binacio-


nal, a qual extinguiu uma formação natural única em prol do crescimento econômico,
Mazzarollo (2003, p. 175) argumenta, ainda, que “o turismo e a consciência ecológica
poderiam ter salvado Sete Quedas do desaparecimento, mas nem o turismo nem a cons-
ciência ecológica chegaram a tempo de impedir o holocausto”.
Atualmente, no lugar do Parque Nacional de Sete Quedas, que abrigava a maior
queda do mundo em volume de água, descansa um imenso lago artificial, sereno, bar-
rento e de cor avermelhada (MAZZAROLLO, 2003, p. 177).
Vale mencionar, por fim, trecho do poema intitulado Adeus, Sete Quedas, de auto-
ria de Carlos Drummond de Andrade, que, diante da construção da Itaipu Binacional,
insurgiu-se por meio de versos:

285
Adeus, Sete Quedas
Carlos Drummond de Andrade

Sete quedas por mim passaram, 


e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
aos apagados fogos 
de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se
os sete fantasmas das águas assassinadas
por mão do homem, dono do planeta.
Aqui outrora retumbaram vozes
da natureza imaginosa, fértil
em teatrais encenações de sonhos
aos homens ofertadas sem contrato.
Uma beleza-em-si, fantástico desenho
corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
mostrava-se, despia-se, doava-se
em livre coito à humana vista extasiada.
Toda a arquitetura, toda a engenharia
de remotos egípcios e assírios
em vão ousaria criar tal monumento.
E desfaz-se
por ingrata intervenção de tecnocratas.
Aqui sete visões, sete esculturas
de líquido perfil
dissolvem-se entre cálculos computadorizados
de um país que vai deixando de ser humano
para tornar-se empresa gélida, mais nada.
Faz-se do movimento uma represa,
da agitação faz-se um silêncio
empresarial, de hidrelétrico projeto.
Vamos oferecer todo o conforto
que luz e força tarifadas geram
à custa de outro bem que não tem preço
nem resgate, empobrecendo a vida
na feroz ilusão de enriquecê-la.

286
Sete boiadas de água, sete touros brancos,
de bilhões de touros brancos integrados,
afundam-se em lagoa, e no vazio
que forma alguma ocupará, que resta
senão da natureza a dor sem gesto,
a calada censura
e a maldição que o tempo irá trazendo?
Vinde povos estranhos, vinde irmãos
brasileiros de todos os semblantes,
vinde ver e guardar
não mais a obra de arte natural
hoje cartão-postal a cores, melancólico,
mas seu espectro ainda rorejante
de irisadas pérolas de espuma e raiva,
passando, circunvoando,
entre pontes pênseis destruídas
e o inútil pranto das coisas,
sem acordar nenhum remorso,
nenhuma culpa ardente e confessada.
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo o Brasil grande!”)
E patati patati patatá...
Sete quedas por nós passaram,
e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
e todas sete foram mortas,
e todas sete somem no ar,
sete fantasmas, sete crimes
dos vivos golpeando a vida
que nunca mais renascerá.

Isso posto, evidencia-se que a concretização da Usina Hidrelétrica Itaipu Bina-


cional motivou a modificação da paisagem regional, descaracterizando o meio ambiente
local por meio da submersão de cachoeiras e corredeiras que enalteciam o cenário, como
o Salto de Sete Quedas.
Mister se faz ressaltar, além disso, que o lago artificial de Itaipu inundou a Mata
Atlântica que compunha a região Oeste do Paraná, aniquilando toda a sua biodiversi-
dade. Dentre os impactos ambientais que transformaram a paisagem do ponto de vista
fisiológico, nessa região, enfatizam-se as variações que ocorreram na dinâmica do ciclo
hidrológico, no microclima, na vegetação, assim como na ocupação e uso do solo. Esses

287
últimos, por sua vez, propiciaram processos erosivos, o assoreamento, a contaminação
das águas, sobretudo em decorrência do uso inadequado do reservatório e das áreas lo-
calizadas no seu entorno (ROOS, 2012, p. 35).
Salienta-se, dessa forma, que a degradação ambiental gerada, como o desma-
tamento para a implementação da obra e a alteração do regime hídrico do rio, que o
converteram em um lago artificial de água parada, não deixou de impactar a fauna e a
flora regional, ainda que tivessem sido elaborados planos para que os danos fossem mi-
nimizados (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 03).
Nesse sentido, Mazzarollo (2003, p. 180) aponta que o empreendimento bina-
cional, visando passar uma boa imagem perante a opinião pública, divulgava o seguinte
bordão: “Apesar de ser uma entidade criada apenas para a construção e operação da
hidrelétrica, a Itaipu Binacional se preocupa também com outros assuntos”.
Por esse motivo, torna-se compreensível que a Itaipu Binacional tenha elaborado pla-
nos visando à redução dos impactos causados pela edificação de sua usina hidrelétrica, des-
tacando-se o Plano Básico para a Conservação do Meio Ambiente, de 1975, a seguir analisado.

A POLÍTICA DE CONSERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DA


USINA HIDRELÉTRICA ITAIPU BINACIONAL E OS IMPACTOS
AMBIENTAIS ADVINDOS DA SUA CONSTRUÇÃO: A RETÓRICA
DESENVOLVIMENTISTA

O Plano Básico de Conservação do Meio Ambiente foi elaborado em 1975 e alme-


java atenuar parte dos danos ocasionados pela edificação da Usina Hidrelétrica Itaipu
Binacional, enfatizando e aperfeiçoando, gradualmente, os benefícios e outros aprovei-
tamentos que o reservatório traria para a região Oeste do Paraná (MAZZAROLLO,
2003, p. 180).
A estruturação do plano remonta o ano de 1972, momento em que a Comissão
Técnica Brasileiro-Paraguaia publicou o estudo denominado Reconhecimento dos Efeitos
Ecológicos do Projeto Itaipu, evidenciando prováveis alterações na fauna e flora, no clima,
nas condições sanitárias do local do reservatório, bem como a perda de diversos sítios
arqueológicos. Sugeria, diante disso, a adoção de mecanismos com vistas à diminuição
da degradação ambiental, sem deixar de considerar os impactos positivos oportunizados
pela construção da usina hidrelétrica (MIRANDA, 2008, p. 25).
Consoante a Itaipu Binacional (1975, p. 01), tencionava-se “mitigar o impacto
ambiental da barragem, permitindo, ao mesmo tempo, um efeito de controle ecológi-
co dos efeitos consequentes”. Pretendia-se, em síntese, amenizar os danos que seriam
causados pela represa à natureza, esvaziando, assim, críticas advindas dos setores sociais
relacionados com a defesa do meio ambiente (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 04).

288
Dividido em seis capítulos, o Plano Básico de Conservação do Meio Ambiente ca-
racterizava a região Oeste do Paraná, mencionava as perturbações ao meio ambiente
que poderiam decorrer das obras da Itaipu Binacional e apresentava programas com
vistas à sua atenuação. A fim de atingir esses propósitos, foram estabelecidas as seguin-
tes diretrizes: inicialmente, o levantamento dos problemas sobre o meio ambiente que
exerceriam influência direta no funcionamento da usina hidrelétrica, incluindo aqueles
gerados pela edificação; a identificação de projetos específicos a serem elaborados com o
intuito de preservar a barragem e o meio ambiente local, almejando abrandar os impac-
tos ambientais resultantes; por sua vez, a definição de projetos gerais que propiciariam
o uso múltiplo do reservatório, possibilitando a sua integração institucional; e, por fim,
a estruturação administrativa da empresa para o controle dos projetos, bem como uma
estimativa orçamentária dos trabalhos (ITAIPU BINACIONAL, 1975, p. 01-02).
Evidenciou-se que o principal impacto ambiental na região seria a transfiguração
de aproximadamente 170 km2 do Rio Paraná em um lago artificial e a imersão do Salto
de Sete Quedas, além do desmatamento da cobertura florestal, a perda de terras agricul-
táveis, a redução do habitat de animais, assim como o alagamento de locais de interesse
arqueológico (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 04).
De acordo com o plano, tendo em vista que no território encontravam-se remanes-
centes florestais compostos por espécies da fauna e flora endêmicas e em extinção, haveria
que se falar na devida remoção da cobertura vegetal e na proteção das espécies ameaçadas
de desaparecimento. Para tanto, previa-se a elaboração de inventários florístico, faunístico,
ictiofaunístico e arqueológico de toda a região (ITAIPU BINACIONAL, 1975, p. 01-02).
Os inventários foram realizados na área que seria ocupada pelo lago artificial de Itaipu
entre os anos de 1976 e 1981 e contaram com a assistência técnica da Escola de Florestas da
Universidade Federal do Paraná, da Fundação Parque Zoológico de São Paulo, do Instituto
Butantã e do Parque Zoológico de Curitiba (MAZZAROLLO, 2003, p. 180).
Ficou incumbido ao inventário florestal a identificação do povoamento florestal, o
reconhecimento das espécies frutíferas para a fauna, das espécies florestais nativas e exóticas,
e, da mesma forma, a elaboração de projetos que versassem sobre o manejo florestal, a for-
mação de viveiros florestais e o reflorestamento. O estudo deveria abarcar, ainda, um projeto
para a exploração e avaliação das árvores que teriam destinação comercial (ITAIPU, 1975).
Para realizar o diagnóstico da situação florestal da região, a Escola de Florestas da
Universidade Federal do Paraná selecionou uma área de 123.561,82 hectares do lado
brasileiro da represa, ainda que a superfície a ser atingida no país fosse de 94.429,18 hec-
tares (ITAIPU BINACIONAL, 1978, p. 02): “a ampliação advinha do entendimento
de que a parte não inundada deveria permanecer para proteger a região costeira ao lago
da erosão, além de funcionar como um refúgio para os animais da área a ser inundada.
Os locais que seriam impactados pela obra deveriam ser reflorestados (ZIOBER & ZA-
NIRATO, 2014, p. 04).

289
Por meio da análise de fotografias aéreas, constatou-se que 52,8% da região a ser
submersa pelo lago eram cobertas por florestas, sendo que 24% desse total correspondiam
a árvores com interesse econômico, uma vez que seus troncos possuíam entre 3 a 12 me-
tros de cumprimento. Ademais, foram identificados tipos florestais diversos, quais sejam,
florestas densas, florestas densas em processo de exploração, floresta já exploradas – secun-
dárias –, áreas de repouso e regiões de reflorestamento (ITAIPU BINACIONAL, 1978).
Sublinha-se que o inventário em questão relatou ponderações quanto aos efeitos da
não retirada da cobertura florestal antes do enchimento do lago. Como já mencionado neste
capítulo, o apodrecimento de toda a biomassa local traria consequências para a vida aquática,
de tal forma que seria imprudente permitir a decomposição de 4,3 milhões de metros cúbicos
de florestas. Além das alterações dos níveis de O2 nas águas, a navegação e a exploração turís-
tica do lago restariam prejudicadas, dado que o transporte fluvial correria riscos em razão da
presença de árvores submersas (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 05).
Recomendou-se, então, a limpeza total da área: após a retirada de todas as árvo-
res consideradas adequadas à exploração comercial, haveria que se falar na queima do
restante. O estudo afirmou que essa seria a melhor opção por contemplar os aspectos
de segurança, ecológicos e econômicos, pois possibilitaria “ao proprietário da gleba um
aproveitamento agrícola da área por um lapso de tempo de 1 a 3 anos, até que ela ficasse
submersa. Por se tratar de solos de mata virgem, não necessitando de adubação, esta
atividade poderia ser bastante lucrativa” (ITAIPU BINACIONAL, 1978, p. 08).
Não obstante, observa-se que os procedimentos de limpeza total da área não
ocorreram conforme o planejado. Notícias veiculadas pela imprensa local na época da
formação do lago artificial de Itaipu constatavam a existência dos “típicos cemitérios
de árvores que indicam áreas inundadas sem a limpeza prévia” (ZIOBER & ZANI-
RATO, 2014, p. 09).
Isso posto, é de ser relevado que o inventário florestal, elaborado nos termos do
Plano Básico de Conservação do Meio Ambiente tornaria possível a identificação das espé-
cies, o manejo florestal considerado adequado para a implementação de viveiros, o reflo-
restamento dos entornos e o desenvolvimento das matas ciliares, assim como os meios
de exploração das árvores com potencial comercial, separando-as das que deveriam ser
queimadas antes da formação do lago. Assim concluiu o inventário:

Apesar de esta região ter sido descoberta há muitos anos, pouco se sabe a respeito
das características de sua cobertura florestal. Na literatura brasileira são encontrados
poucos detalhes sobre a composição florística dessas matas, que têm sido gradativa-
mente destruídas para dar lugar às culturas de soja e trigo. Menos ainda se sabe de
sua origem, suas condições ecológicas e detalhes sobre a reprodução. Sabe-se apenas
quais são as madeiras mais importantes. (ITAIPU BINACIONAL, 1978, p. 21)

290
Deduz-se, do trecho ora exposto, que a catalogação da flora local se baseou tão so-
mente em espécies já inventariadas em estudos realizados anteriormente. Isto é, as perdas
ambientais não se restringiram apenas à diversidade florística conhecida, mas também
a espécies que possivelmente foram extintas sem que fossem descobertas pelo homem
(ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 09).
Em verdade, inobstante o inventário florestal ter detectado a diversidade da flora da re-
gião, a Itaipu Binacional buscou, em todo momento, valorar o potencial comercial da madeira
retirada dos locais que seriam inundados (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 09).
Ainda que os levantamentos realizados tenham identificado 623 espécies botâni-
cas, Mazzarollo (2003, p. 180) enfatiza que, em 1975, a margem brasileira do projeto
apresentava 24% de sua área coberta por florestas, enquanto na margem paraguaia elas
cobriam 92%. Todavia, diante da formação do lago artificial de Itaipu, o índice de ocu-
pação do solo pelas florestas na margem brasileira era de apenas 5%.
Com relação ao inventário faunístico, esse foi concebido entre os anos de 1977 e
1979 e se restringiu ao lado paraguaio da represa, a qual, por possuir a maior cobertura
florestal que seria afetada pela usina hidrelétrica, abrigava uma maior quantidade de
animais silvestres. Objetivava-se, com esse estudo, a identificação das espécies terrestres,
anfíbias e aquáticas mais frequentes, atentando-se para as espécies endêmicas e as amea-
çadas de extinção. Outrossim, buscava-se a coleta de exemplares para a exposição em um
museu de história natural e a formulação de mecanismos para proteger as espécies raras
e em risco de desaparecimento (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 06).
Para tanto, o Plano Básico de Conservação do Meio Ambiente (1975, p. 18) elenca-
va as seguintes etapas: determinar o método e o equipamento adequado à operação de
deslocamento da fauna das áreas inundadas; programar refúgios de recepção de animais,
impedindo naturalmente a invasão daqueles aos centros urbanos; indicar a destinação
de eventuais animais de porte, cujas necessidades de espaço vital sejam superiores à faixa
marginal da barragem; e construir um hospital veterinário para os animais eventualmen-
te feridos no deslocamento das áreas inundadas.
A catalogação se deu por meio de pesquisas de campo, nos períodos diurno e
noturno, realizadas a pé e em veículos. Segundo a Itaipu Binacional (1979, p. 133), o
encaminhamento dos animais para reservas biológicas e áreas consideradas adequadas,
como zoológicos, precederia à devida identificação dos animais, sendo que esses seriam
removidos à medida que “fossem ameaçados pelas águas”16.
O estudo detectou a existência de uma população faunística de 70 espécies de
mamíferos, pertencentes a 22 famílias; 252 espécies de aves, pertencentes a 54 famílias;
cerca de 1.600 espécies de insetos de 19 ordens, e 23 espécies de répteis. Os peixes foram
analisados a partir de uma coleta de 7.835 exemplares de 129 espécies pertencentes a 25

16
Traduzido a partir de: “ [...] se van amenazados por las aguas”.

291
famílias, de acordo com sua distribuição geográfica e seus hábitos alimentares (MAZ-
ZAROLLO, 2003, p. 180).
O inventário faunístico concluiu, ainda, que “dentro da área a ser inundada, exis-
te uma fauna variada e populações consideráveis que merecem ser resgatadas”17 (ITAIPU
BINACIONAL, 1979, p. 141). Da mesma forma, destacou que “não há que se falar na
ameaça de extinção de espécies de animais em razão da elevação dos níveis das águas; no
entanto, a população total e o habitat de algumas dessas espécies sofrerão reduções”18
(ITAIPU BINACIONAL, 1979, p. 141).
Uma vez finalizado o inventário em tela, iniciaram-se as ações para a coleta dos
animais por meio da Operação Mymba-Kuera19. Até o fechamento das comportas, a
operação capturou cerca de 600 animais (MAZZAROLLO, 2003, p. 181).
Como o enchimento do lago de Itaipu ocorreu em apenas 14 dias, grande parte
dos animais salvos foram recolhidos pelas equipes de resgate enquanto a região sucum-
bia, nas copas das árvores e nas ilhas formadas que, aos poucos, desapareciam. Tenha-se
presente que a operação que contava com 200 homens, 17 lanchas e 02 helicópteros não
foi capaz de evitar que o reservatório se tornasse um campo de extermínio da fauna local
(MAZZAROLLO, 2003, p. 181):

Desse modo, milhares de animais sucumbiram, morreram afogados ou de inani-


ção. Pior do que Itaipu, só mesmo o apocalipse. As equipes de resgate não têm a
menor noção da responsabilidade do trabalho que lhes foi atribuído. As lanchas
levam quatro peões mais o material de captura, que é uma piada. As redes, por
exemplo, têm espaços superiores a dez centímetros, o que implica na incapacidade
de apanhar animais de pequeno porte, e as caixas, sem ventilação, abrigam dezenas
de animais ao mesmo tempo (MAZZAROLLO, 2003, p. 181-182).

A empresa Itaipu Binacional (1987) afirma que, após o fechamento das com-
portas, foram resgatados 27.150 animais. Destes, 547 mamíferos, 1.848 aves, 12.081
répteis e 5.674 aracnídeos, os quais foram encaminhados, em sua maioria, para refúgios,
com a exceção dos aracnídeos, enviados ao Instituo Butantã, em São Paulo. Mazzarollo
(2003, p. 181) destaca, entretanto, que apesar de se tratar de “números aparentemente
expressivos, se reduzem a nada quando se considera que, para cada animal salvo, pelo
menos outros 50 foram vitimados pelo dilúvio”.
Pelo exposto, não se pode admitir que a operação utilizada para a retirada dos ani-
mais fosse pertinente à sua salvaguarda, uma vez que consistiu somente em recolhê-los
na medida em que as águas subiam, o que os obrigou a buscar abrigo em locais que se
17
Traduzido a partir de: “[...] dentro del área a ser inundada, existe una variada fauna, y poblaciones considerables que
merecen ser rescatadas”.
18
Traduzido a partir de: “[...] no habrá especies animales que se verían amenazadas de extinción en forma directa por la suba
del nivel de las aguas, sin embargo la población total y el hábitat de algunas de ellas sufrirán reducciones”.
19
Do tupi-guarani, pega-bicho.

292
tornavam mais fáceis para a sua captura que em seu habitat natural. Quer dizer, o mecanis-
mo utilizado contribuiu para a morte de animais que não sabiam nadar, de filhotes ainda
despreparados e de ninhadas que foram cobertas pelas águas. Destaca-se, deste modo, que
“a maioria dos animais não pôde ser resgatada” e que aproximadamente “80% dos animais
existentes na região de alagamento não sobreviveu por falta de preparo dos técnicos e de
materiais adequados para a captura destes” (ZIOBER & ZANIRATO, 2014, p. 09).
Tais fatos não devem ser negligenciados para que não se incorra na retórica ambien-
talista do empreendimento, que alegava que as medidas tomadas haviam sido de “incalcu-
lável valor”, não somente para ele e para as duas nações comprometidas com a obra, mas
também “para toda a ciência biológica” (ITAIPU BINACIONAL, 1979, p. 141).
Verdade seja, a análise dos documentos produzidos pela empresa Itaipu Binacional
permite afirmar a existência de impactos ambientais na região afetada pela formação do
lago artificial de Itaipu, resultando em perdas significativas da biodiversidade nacional.
Contudo, a referida empresa jamais assumiu toda a degradação ambiental gera-
da pela construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional sob o argumento de que o
ambiente natural já estava profundamente modificado antes da sua edificação, sendo a
sua ação uma contribuição para a conservação da fauna e da flora regional (ZIOBER &
ZANIRATO, 2014, p. 10).
Tendo em vista que o principal objetivo da empresa Itaipu Binacional era a produção
energética, minimizar as consequências do empreendimento designava-se como uma inten-
ção secundária. Tal fato ficou evidenciado no próprio Plano Básico de Conservação do Meio
Ambiente (1975, p. 01), o qual estabeleceu, em suas diretrizes, que os impactos ambientais
deveriam ser contemplados para não obstaculizarem o funcionamento da usina hidrelétrica:

O projeto de Itaipu tem como principal objetivo a produção de energia elétrica.


Para tanto, será investido enorme volume de recursos, os quais deverão produzir
dividendos contínuos. Assegurar a continuidade desses benefícios é uma das im-
portantes tarefas da cobertura florestal, principalmente proteger a barragem hi-
drelétrica contra a erosão da bacia hidrográfica.

Isso porque, no período da construção da Itaipu Binacional, a política interna


do Brasil era marcada pela busca do crescimento econômico e pela ideia de progresso,
presente na proposta dos presidentes militares da época. Nesse contexto, tem-se que o
Plano Básico de Conservação do Meio Ambiente resulta de um período caracterizado pelo
surgimento das preocupações ambientais no âmbito internacional, uma vez constatado
que o meio ambiente é incapaz de absorver toda a poluição gerada pelo ser humano.
Assim, a degradação ambiental provocada pela Usina Hidrelétrica Itaipu Binacio-
nal foi consentida a partir de um momento histórico caracterizado pela ideia desenvolvi-
mentista no Brasil, a qual acabou ofuscando a ainda incipiente percepção de que o con-
tínuo processo de industrialização da sociedade causava a devastação do meio ambiente.

293
Tenha-se presente que a existência de uma política voltada para a maximização e acele-
ração do crescimento econômico definiu o governo militar brasileiro, em especial nos gover-
nos dos generais Costa e Silva e Médici. Considerado como o milagre econômico brasileiro, a
época fomentou a entrada de capitais estrangeiros, estimulou os investimentos privados e au-
mentou o papel intervencionista do Estado, possibilitando a construção de grandes obras de
infraestrutura nas áreas de telecomunicações, energia e siderurgia: “esses empreendimentos
permitiram ao Brasil grande expansão econômica em um curto período de tempo. A euforia
na ideia de desenvolvimento e elevação do país à categoria de nação moderna foi o que levou
os militares a realizarem grandes obras” (ZIOBER, 2009, p. 07).
Assinala-se, deste modo, que o propagado sonho de desenvolvimento e moderniza-
ção da sociedade apresentou, como um dos seus maiores símbolos, a edificação de grandes
barragens (VIANA, 2003, p. 13). Roborando o assunto, Vainer (1997, p. 12) sustenta que

[...] a história da implantação de grandes barragens parece ser a mesma em toda


a parte. Em todo o mundo a grande barragem serve ao mesmo modelo de de-
senvolvimento. Nos mais diversos países, o grande projeto hídrico busca impor
um mesmo padrão de apropriação e uso dos recursos naturais. Nas mais variadas
latitudes, a coalizão de interesses políticos e econômicos que promove grandes
hidrelétricas tem mais ou menos a mesma composição. [...] Similares são, aqui e
ali, os beneficiários da energia gera pelas hidrelétricas.

Assim, para que todos os empreendimentos tornassem possível a transformação do Bra-


sil em um grande canteiro de obras em busca do seu desenvolvimento e produção energética,
imensas áreas, naturalmente preservadas, foram degradadas, gerando diversos impactos am-
bientais e sociais. Neste período, diante da inexistência de uma legislação ambiental eficaz, não
haviam estudos prévios, tampouco audiências públicas para a apresentação do empreendimen-
to junto à comunidade. Ou seja, a ausência de planos de ação que contemplassem a população
afetada e as questões ambientais permitia, com total liberdade, a edificação de grandes usinas
hidrelétricas, como a Itaipu Binacional. Nesse contexto, impende observar que

[...] quando nos dizem que as hidrelétricas vêm trazer, para o país e para uma re-
gião, a esperança de salvação da economia, da integração do mundo, a segurança
do progresso, tudo isso são símbolos que nos permitem aceitar a racionalidade do
objeto que, na realidade, vem exatamente destroçar a nossa relação com a natureza
e impor relações desiguais (ROOS, 2012, p. 30).

Pelo exposto, nota-se que a infraestrutura necessária para o avanço do sistema


capitalista deu condições para que o Brasil se desenvolvesse em setores importantes da
economia, mas não conseguiu evitar a deterioração da natureza (ROOS, 2012, p. 27).
Em outras palavras, ainda que planos tenham sido elaborados para conter e ate-
nuar os danos ambientais, nota-se que a perda de uma parcela da biodiversidade local

294
foi legitimada pela noção de progresso econômico arraigada no Brasil durante o regime
militar. Almejando o desenvolvimento da nação, os governantes desse período salienta-
vam que o processo de modernização do país se daria por meio da edificação de gran-
des obras, destacando-se, aqui, a construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional
(ZIOBER, 2009, p. 09).
Impende observar, por fim, que os discursos oficiais da Itaipu Binacional, os quais
buscaram construir uma imagem de modernidade, progresso e grandiosidade, conti-
nuam presentes na sociedade atual20. Em que pese a construção da usina hidrelétrica ter
ocorrido em um momento histórico em que já se discutiam as consequências ambien-
tais ocasionadas por grandes empreendimentos no âmbito internacional, o anseio pelo
crescimento econômico caracterizava as práticas políticas no território brasileiro. Assim,
mesmo diante da resistência de moradores locais e de grupos ambientalistas, a represa
que formou o lago artificial de Itaipu tornou-se inevitável.

CONCLUSÕES

Por tudo exposto neste capítulo, evidenciou-se que a implementação de usinas


hidrelétricas e, consequentemente, a edificação de barragens e a formação de lagos arti-
ficiais, ocasionam diversos impactos ambientais, uma vez que, além de gerar uma ampla
degradação ambiental, afetam todo o ecossistema componente da região em que o em-
preendimento é instalado.
Atestou-se a amplitude das perturbações geradas por tais obras e, entre os custos am-
bientais, foram lembrados o desmatamento de florestas, a perda de ecossistemas naturais e
da biodiversidade, as transformações nos ecossistemas aquáticos, o barramento da migração
de peixes, a transformação do rio em lago, a emissão de gases de efeito estufa, dentre outros.
Nesse sentido, dispôs-se sobre a construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional, a
qual propiciou o aparecimento de danos ao meio ambiente na região em que o lago artificial
de Itaipu se formou, colocando em risco espécies da fauna e flora já ameaçadas de extinção.
Verificou-se que um dos danos ambientais propiciados pela Itaipu Binacional foi
a transformação de um trecho do Rio Paraná em um lago artificial de aproximadamente
1.350 km2 e a consequente submersão de um território composto por remanescentes
20
Apesar de todo o exposto nesse capítulo, não se pode perder de vista que, desde a construção da Usina Hidrelétrica Itai-
pu Binacional, a empresa Itaipu Binacional vem implementando ações de gestão ambiental para a preservação da fauna e
flora remanescente na região, o que se dá por meio da manutenção de reservas, refúgios biológicos e de um corredor de
biodiversidade, sem mencionar medidas adotadas para o reaproveitamento e a reciclagem de materiais e a educação ambiental.
Dentre os programas implementados, destacam- se o Cultivando Água Boa (contempla diversas ações socioambientais relaciona-
das com a conservação dos recursos naturais e da biodiversidade, e com a promoção da qualidade de vida nas comunidades da
Bacia Hidrográfica do Paraná) e o Carapa Ypoti (busca recuperar a qualidade dos recursos hídricos de toda a bacia do Rio
Carapa, sejam águas superficiais ou subterrâneas). Para maiores informações acerca da política ambiental promovida pela Itaipu
Binacional desde então, acessar o link: [https://www.itaipu.gov.br/meioambiente/politica-ambiental].

295
florestais, áreas de cultivo agrícola, sítios arqueológicos, bem como a paisagem cênica
natural do Salto de Sete Quedas.
Os impactos ambientais acarretaram não apenas a modificação do relevo, mas
também a variação do clima local e, sobretudo, a perturbação aos organismos vivos entre
si e com o meio físico.
Ainda que tivessem sido elaborados planos para a minimização dos danos, des-
tacando-se o Plano Básico para a Conservação do Meio Ambiente, de 1975, e os seus in-
ventários, não se pode levar em consideração a retórica ambientalista da empresa Itaipu
Binacional, que alegava que as medidas tomadas haviam sido de “incalculável valor”,
não somente para o empreendimento e para as duas nações comprometidas com a obra,
mas também “para toda a ciência biológica”.
A análise dos documentos produzidos pela Itaipu Binacional realça a existência de
impactos ambientais na região afetada pela formação do lago artificial de Itaipu, resultando
em perdas da biodiversidade nacional. Contudo, a referida empresa jamais assumiu a de-
gradação ambiental gerada pela construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional sob o
argumento de que o ambiente natural já se encontrava modificado antes da sua edificação,
sendo a sua ação uma contribuição para a conservação da fauna e da flora regional.
Inobstante a empresa sempre ter insistido na defesa ao meio ambiente, pode-se
afirmar que a edificação dessa usina hidrelétrica significou a renúncia de toda a biodi-
versidade regional em prol da produção energética em grande escala. Tal argumento
deve ser enfatizado não apenas para descortinar um passado de graves danos ambientais
provocados pela construção da barragem, mas, sobretudo, porque a Itaipu Binacional
continuou a ser apresentada como um modelo de empresa sustentável.
Se faltavam estudos acerca do conhecimento da fauna e flora local, como disposto
nos inventários, não podem faltar lembranças de que as águas que movem as turbinas
da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional e geram energia à parcela considerável do Brasil,
têm um doloroso gosto de perda, e que ainda hoje permanecem os desafios de mitigar os
impactos ambientais relacionados à construção de barragens e de proteger o patrimônio
natural do país, uma vez que a hidroeletricidade permanece sendo a alternativa mais
buscada para a geração de energia.

296
REFERÊNCIAS

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298
IMPACTOS SOCIAIS DA IMPLEMENTAÇÃO DA USINA DE ITAIPU

Danielle de Ouro Mamed1


Angelaine Lemos2
Flavia Donini Rossito3

INTRODUÇÃO

A construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu, além dos impactos ocasionados à


natureza, também significou um conjunto de mudanças sociais drásticas na região onde
exerceu influência. O desenvolvimento de um projeto tão grande e complexo como Itaipu
não poderia deixar de trazer profundas marcas na organização social e econômica local.
Pela amplitude do projeto, milhares de trabalhadores foram necessários para
levá-lo a cabo. A necessidade de deslocamento de contingente populacional para a
região de construção da Usina provocou, desde logo, uma série de dramas pessoais
que vão desde a odisseia em busca de trabalho, até as formas através das quais se optou
por organizar os trabalhadores que ali chegaram em busca de trabalho e de melhores
condições de vida.
Para os trabalhadores, o desafio foi encontrar-lhes um posto onde pudessem ser
alocados no empreendimento, além de conseguir-lhes moradias adequadas. O vertigi-
noso aumento populacional experimentado em decorrência da esperança de trabalho
causou, no entanto, um inchaço na cidade de Foz do Iguaçu, ressaltando-se que parte
dessa população migrante não conseguiu ser absorvida pela demanda da obra e passou a
incrementar os mercados informais e a marginalidade social.
No ponto de vista da população que já habitava a região afetada, distúrbios de
outras matrizes tiveram que ser suportados, a exemplo da afetação drástica da paisagem
e do potencial turístico da região (como no caso da cidade de Guaíra), além das perdas
suportadas pelos produtores agrícolas, tratados de maneira injusta e desigual nos pro-
cessos de desapropriação para a construção da Usina. Devido a esta classe de problemas
surgiram diversas demandas que culminaram na formação de um movimento social es-
pecífico (Movimento Justiça e Terra), emblemático na defesa dos direitos da população,
ameaçados pela expulsão para atender aos interesses do empreendimento.

1
Doutora em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Direito
Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Professora em Estágio de Pós-Doutoramento no Programa de
Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado (Canoinhas - Santa Catarina).
2
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pesquisadora do Centro de Pesquisa e Extensão
em Direito Socioambiental (CEPEDIS).
3
Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito Agroam-
biental pela Universidade Federal de Mato Grosso.

299
Deste modo, este texto objetiva compreender como tais impactos foram sendo
apresentados e enfrentados pelas populações afetadas, apresentando-se as implicações
sociais e econômicas ocasionadas pela construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu, no
Oeste do Estado do Paraná.

AFETAÇÃO DA PAISAGEM E DO POTENCIAL TURÍSTICO

A Usina Hidrelétrica de Itaipu foi construída sob o discurso do progresso e de-


senvolvimento, com o intuito de ser a maior usina do mundo neste segmento. Sua jus-
tificação se deu diante de uma necessidade propagada pelo poder público de evitar um
possível colapso no sistema de fornecimento do Brasil e Paraguai, porém, o custo social
e ambiental decorrentes deste empreendimento, foi avassalador.
Em outubro de 1982, foi concluída a construção da barragem, fechando-se as
comportas e formando-se o lago de Itaipu, para tal foi inundado o total 1.460 km2 no
Brasil e Paraguai. Acerca da área afetada esclarece Juvêncio Mazzarollo (2003, p. 26):

Para a instalação do canteiro de obras, a formação do reservatório de água (com


capacidade para 29 bilhões de metros cúbicos) e para faixa de segurança, passaram
ao domínio da Itaipu Binacional 1.800 km2 de terras (1.000 no Brasil e 800 no
Paraguai). Desse total, a água cobre 835 km2 no Brasil e 625 km2 no Paraguai. O
lago de Itaipu equivale a três Baías de Guanabara.

A inundação ocorreu em 14 dias e ocasionou danos em grande escala e irreparáveis,


como os valores culturais, históricos, sociais, políticos e a ruptura dos vínculos entre os
habitantes locais e as suas terras. Na época da construção de Itaipu eram oito os municípios
diretamente afetados pela obra. Depois alguns distritos foram se desmembrando e hoje
formam quinze municípios (MAZZAROLLO, 2003, p. 31). De acordo com o site “Ob-
serva Barragens” os municípios paranaenses afetados e suas respectivas áreas são:

Santa Helena (263,76 km²), Foz do Iguaçu (201,84 km²), Itaipulândia (179,73
km²), São Miguel do Iguaçu (90,91 km²), Marechal Cândido Rondon (56,04
km²), Guaíra (51,01 km²), Pato Bragado (47,07 km²), Santa Terezinha de Itaipu
(41,90 km²), Missal (40,07 km²), Entre Rios do Oeste (32,9 km²), Mercedes
(19,32 km²), Mundo Novo (14,71 km²), Diamante do Oeste (5,62 km²), São
José das Palmeiras (1,94 km²), Terra Roxa (1,58 km²) e Medianeira (1,16 km²).

Os municípios de Santa Helena, Foz do Iguaçu e Itaipulândia foram muito atin-


gidos e mais de ¼ do seu território inundado. Para melhor visualização da perda territo-
rial dos principais municípios afetados, vejamos abaixo a largura do curso das águas do
Rio Paraná em 1981 e depois de decorridos 33 anos da inundação:

300
Figura 1: Antes e depois da inundação no Rio Paraná

Nota: Photo Credits: Befor Landsat 1-5 MSS (NASA) After Landsat 7 e 8 (NASA).
Fonte: http://apublica.org/os-ecos-de-itaipu/

Os mapas demonstram a área alagada, o que de fato é impressionante em vista


das perdas físicas, ambientais e sociais para a população afetada. Há que se considerar
que tamanha intervenção ambiental implica uma infinidade de consequências que vão
seguindo uma cadeia lógica: a) as cidades afetadas têm seu modo de vida e matriz eco-
nômica altamente prejudicadas, em especial quando vivem do turismo e dos recursos
naturais; b) a população rural é retirada para tornar a construção possível, deslocando-se
para os centros urbanos próximos ou para outras áreas rurais; c) os centros urbanos que
recebem este contingente, por vezes, não disponibilizam equipamento urbano adequado
para a população gerando diversos problemas estruturais; d) inevitável marginalização
da população e diversas outras adversidades.
Segundo Gattermann, alguns centros urbanos desapareceram completamente em
decorrência do alagamento da área necessária para a formação do reservatório da Usina,
tal como ocorreu coma localidade chamada Alvorada do Iguaçu, distrito de Foz do Igua-
çu, com aproximadamente 5.000 habitantes. O mesmo aconteceu com Itacorá, distrito

301
de São Miguel do Iguaçu, com cerca de 10.000 habitantes. Já os municípios de Santa Helena,
Guaíra e o distrito de Porto Mendes, partes do município de Marechal Cândido Rondon,
ficaram isolados total ou parcialmente. O Município de Santa Helena ficou semicercado pelo
Lago de Itaipu, impossibilitando que o município crescesse na porção inundada. De igual
modo, o norte do Município foi bloqueado, extinguindo-se o acesso aos municípios vizinhos
de Marechal Cândido Rondon e Toledo. Naquela região, os lençóis freáticos e águas subter-
râneas foram contaminados, trazendo demandas de saúde pública antes inexistentes: “O pro-
blema do isolamento atingiu parte de três municípios, 45% do território de Santa Helena,
12% de São Miguel do Iguaçu e 5% de Foz do Iguaçu” (GATTERMANN, 2006, p. 20-21).
Sob o ponto de vista das perdas de estrutura física relacionada à economia local,
considera-se que o município mais afetado foi Guaíra, devido à submersão do “Salto das
Sete Quedas” e de um Parque Nacional adjacente. De acordo com Catta (2003), a cida-
de perdeu seu polo turístico de destaque internacional, além de também haver perdido
parte de sua área urbana, seu porto fluvial, estaleiros, olarias, restaurantes, hotéis, um
porto de extração de areia, uma pequena hidroelétrica, trechos de vias urbanas pavimen-
tadas, sistema de saneamento básico e outros equipamentos urbanos (CATTA, 2003).
Para Souza e Silva (2011, p. 6) a inundação das Sete Quedas representa um divisor
de águas no desenvolvimento de Guaíra, pois marca a prevalência de dois modelos distin-
tos de organização social. O primeiro período baseava-se numa economia determinada
pela atividade turística existente graças ao atrativo local. Não há registros exatos a respeito
da força do turismo antes da inundação, não obstante, a estrutura urbana existente antes
da construção de Itaipu era toda voltada para atender às demandas que este atrativo exigia,
considerando as condições técnicas da época e os sistemas de informação outrora dispo-
níveis (SOUZA e SILVA, 2011, p. 7). Ou seja, o modo de vida daquela população local
dependia e voltava-se às atividades turísticas exercidas pelos visitantes das Sete Quedas.
O segundo momento relatado pelos autores, refere-se ao contexto em que foram
implementadas as mudanças estruturais necessárias para adaptar a economia local à nova
paisagem e condições econômicas e ambientais:

Desmantelada a estrutura organizacional do turismo com o fim das Sete Quedas, a


economia que girava em torno desta atividade (hotéis, restaurantes, bares, lojas de
souvenires, boates, serviço de transporte, agências de viagem e outros de apoio) se
reorganiza em Guaíra para adaptar-se a uma nova realidade. Assim, estabelece-se
um novo arranjo espacial, reproduzindo a sociedade sob novos ritmos de organi-
zação econômica, política, social, cultural e ambiental, considerando que o fim das
Sete Quedas gera também um impacto ecológico. (SOUZA e SILVA, 2011, p. 7)

Deste modo, toda a dinâmica antes existente na cidade teve que ser destruída
para dar lugar a novas relações sociais e econômicas, que agora passariam a depender
dos investimentos realizados por Itaipu para criar novas cadeias econômicas na região.

302
Como exemplo de ações voltadas para construir essas novas relações, tem-se a formação
do Conselho dos Municípios Lindeiros ao Lago de Itaipu4, que é formado pelos dezesseis
municípios afetados e tem como finalidade a busca e discussão de alternativas para o
desenvolvimento social e econômico da região (SOUZA e SILVA, 2011, p. 10).
A criação do Conselho dos Municípios Lindeiros se deu em março de 1990 como
uma pessoa jurídica, de direito privado e sem fins lucrativos com a finalidade de formar
uma representação legítima dos municípios atingidos pela construção da Usina. Entre os
objetivos da entidade estão a viabilização de obras e interesses comuns aos municípios,
promoção de estudos e pesquisas para o planejamento integrado do desenvolvimento da
região e a contribuição para a discussão a respeito da destinação dos royalts a serem rece-
bidos para projetos viáveis e eficazes5. Assim, os municípios precisaram se associar para
pleitear melhores condições de enfrentamento das mudanças que lhes seriam impostas.

DESLOCAMENTO POPULACIONAL, EXPULSÕES,


DESAPROPRIAÇÕES E INDENIZAÇÕES INJUSTAS

No que tange à população rural afetada, a situação não foi muito diferente.
Acompanhando a onda de prejuízos experimentados nas cidades, também se observaram
graves barreiras a serem superadas, porém, sob uma perspectiva diferente.
Enquanto nas cidades, houve uma importante alteração nas fontes econômicas,
no campo, agricultores e povos que ocupavam as margens do rio, perderam suas terras.
Fauna e flora foram destruídas e agricultores retirados de suas terras, sendo tais violências
consideradas ‘normais’ para tornar exitosa a política do ‘milagre econômico’6.
Na área necessária para a imponente hidrelétrica viviam aproximadamente 8.000 fa-
mílias (cerca de 40.000 pessoas) na margem brasileira e 4.000 famílias (20.000 pessoas) na
margem paraguaia (MAZZAROLLO, p. 42, 2003), impondo-se a este contingente o pesado
encargo de modificarem suas vidas em prol do ideal nacional do desenvolvimento.
Cabe destacar que a década de 70, marcada pela repressão, falta de democracia
e supressão de direitos constitucionais, foi o momento em que o governo brasileiro de-
monstrou as diversas faces do seu gigantesco projeto arquitetônico. Em vista do regime
autoritário que fora instalado desde a década 60, os atingidos não foram consultados
4
Municípios afetados pelo Lago de Itaipu: Guaíra, Terra Roxa, Mercedes, Marechal Cândido Rondon, Pato Bragado,
Entre Rios do Oeste, Santa Helena, São José das Palmeiras, Diamante do Oeste, Missal, Itaipulândia, Medianeira, São
Miguel do Iguaçu, Santa Terezinha de Itaipu, Foz do Iguaçu no PR e Mundo Novo, no MS.
5
Informações disponíveis no site do Conselho: <https://www.lindeiros.org.br/lindeiros/paginas.php?idmat=918>. Aces-
so em: 02 de ago. 2015.
6
Durante a década de 70, a escala e velocidade dos projetos de desenvolvimento do governo militar atingiram um clí-
max que não resultou apenas em crise econômica, mas também em uma tempestade conjunta de desastres ambientais,
desacreditando sua propalada preocupação com a segurança nacional. O “milagre” econômico que começou em 1968 foi
acompanhado paradoxalmente, pelo maior recurso à regra do arbítrio e da força militar (DEAN, 1996, p. 307).

303
com relação aos procedimentos de remoção, ainda que possuíssem título das proprie-
dades. Mais crítico ainda foi o processo de remoção dos posseiros e outros vulneráveis
como os povos indígenas Avá-Guarani que viviam às margens do Rio Paraná.
As vitórias conquistadas pelas famílias durante anos com muito esforço e traba-
lho, foram deixadas pra trás com a saída forçada de suas casas e terras, sem informações
sobre as desapropriações e sobre o recebimento das indenizações. O procedimento de
‘expulsão’ das famílias ficou sob responsabilidade do departamento jurídico de Itaipu,
representado pelo advogado Paulo José Nogueira Cunha:

Paulo Cunha montou escritórios para tratar as indenizações no canteiro de obras,


em Foz do Iguaçu, nos Município de Santa Helena, Marechal Candido Rondon
e São Paulo. A empresa Matrix Engenharia, de Minas gerais, realizou os levanta-
mentos topográficos da região e o inventário das propriedades que seriam afetadas
pela hidrelétrica. Entre 1973 e 1974, Itaipu realizou um censo preliminar da área
a ser alagada. A primeira etapa consistiu no levantamento e na demarcação das
propriedades, a segunda, no esclarecimento à população (já assustada e irritada
com o vaivém dos técnicos em suas terras), e a terceira, na formulação das propos-
tas de indenização, a que chamavam de “acordos amigáveis”. (MAZZAROLLO,
2003, p. 47-48)

Conforme observado, na segunda etapa os funcionários de Itaipu atuavam em


campanhas “conscientizadoras”, a fim de desestabilizar as reações contrarias à constru-
ção da Usina. Entre várias promessas afirmavam que seriam pagos preços justos pelas
terras desapropriadas, usavam artistas, músicos e pessoas influentes como ferramentas
de manobra política. Ao longo do trabalho foram montados 8.257 processos de desa-
propriação e indenização: 6.658 na zona rural e 1.599 na zona urbana (MAZZAROL-
LO, 2003, p. 49).
Com os processos em andamento e sem a existência do decreto presidencial de-
clarando a utilidade pública da área desapropriada, os dirigentes de Itaipu continuaram
suas ações, escusando-se da ilegalidade do ato. A fim de resguardar seu posicionamento,
os representantes do empreendimento apontaram que o atraso do decreto desapropria-
tório7 se deu pela necessidade de regularização fundiária da região, que era de responsa-
bilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Quando finalmente as primeiras desapropriações começaram a efetivamente
ocorrer, outra classe de problemas teve que ser enfrentada por aqueles que permaneciam
nas áreas. De acordo com Maria de Fátima Bento Ribeiro:

7
O decreto foi baixado em 1º de março de 1979, após denúncias de atingidos, sindicatos de trabalhadores rurais e entidades
eclesiásticas. TRATADO DE ITAIPU Decreto Legislativo nº 23, de 1973. Tratado entre o Brasil e o Paraguai, de 26 de abril
de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d72707.htm>. Acesso em 19 de Jan. 2016.

304
A primeira desapropriação que ocorreu foi em Sede Alvorada do Iguaçu. Em pri-
meiro lugar desapropriaram, na sede do distrito, as casas comerciais, os postos
de combustíveis, as farmácias e, uma vez desapropriada com a infraestrutura, os
agricultores, que permaneceram, tinham que percorrer mais de 70 quilômetros
para comprar combustíveis e outros produtos que precisavam. Com isso, suas
propriedades desvalorizavam. (RIBEIRO, 2002, p. 23)

Verifica-se, assim, a utilização de estratégia militar do governo brasileiro em de-


sapropriar inicialmente as propriedades que forneciam serviços essenciais para a perma-
nência da população local, com intuito claro de dispersar os atingidos e desmobilizar
ações contrárias aos atos injustos cometidos pelos dirigentes da grande Itaipu contra
uma minoria inicialmente desinformada e desorganizada.
Ademais, vários comportamentos adotados por Itaipu no critério de avaliação
dos bens eram estranhos às práticas comerciais regulares, denotando a consideração dos
critérios que fossem mais lucrativos à empresa, conforme descreve Juvêncio Mazzarollo:

Itaipu media as terras e depois as confrontava com as escrituras em poder dos pro-
prietários. Em muitos casos apareciam diferenças. Se a escritura apresentasse área
maior que a encontrada pelos técnicos da Itaipu, valia a medição da Itaipu; se apre-
sentasse área menor, valia a do proprietário - um curioso critério de encontrar o
preço (...) os posseiros nada estavam recebendo pelas terras. Só recebiam indenização
pelas benfeitorias introduzidas. Na medição feita por Itaipu eram descontados os
rios e as estradas, procedimento nunca verificado na comercialização de terra. As
redes de eletrificação rural também não eram pagas, embora uma propriedade com
energia elétrica instalada tivesse seu valor significativamente aumentado, além de ter
representado um custo para o proprietário. (MAZZAROLLO, 2003, p. 53)

Além da patente inconsistência sobre os critérios para pagamento das indeniza-


ções, aos agricultores era negada qualquer possibilidade de reação, negociação ou contra-
proposta. No caso de recusa das propostas apresentadas aos agricultores, havia ameaças
de que só receberiam após 3 ou 4 anos, e o preço estabelecido à época. Temerosos de
não conseguirem depois qualquer tipo de indenização e diante da ameaça de ainda te-
rem mais prejuízos pela inflação (que poderia corroer ainda mais o valor a ser pago) os
agricultores ficaram à mercê dos ‘favores’ do governo, de mãos atadas, sem saber a quem
recorrer para que fossem considerados seus direitos.
Ao final, a situação foi claramente desenhada: os agricultores ficaram cientes de
que as indenizações eram injustas. Os critérios de avaliação das terras por Itaipu eram
claramente desiguais e os preços fixados, pagos de maneira diferenciada, segundo o tipo
de terra em questão (brancas ou vermelhas), sem qualquer direito de consulta ou de con-
testação por parte dos agricultores. Arlindo Lamb, por exemplo, denunciava que Itaipu
lhe oferecia 35.000 cruzeiros por alqueire de terra, quando o preço de mercado estava
acima dos 100.000 (LAMB apud MAZZAROLLO, 2003 p. 66).

305
No entanto, diante da estratégia nefasta e dos atos impostos unilateralmente, um
movimento de resistência surgiu em 1978, com apoio da Comissão Pastoral da Terra
(CPT)8 do Oeste do Paraná. Esta entidade partiu em defesa dos atingidos pela constru-
ção de Itaipu, que permaneciam invisíveis diante de tantas violações de direitos. Deste
modo, portanto, iniciou-se uma aclamada luta pela reparação e indenizações justas. So-
bre o movimento, Iria Zanoni Gomes (2001, p. 59) considera:

A primeira tentativa de enfrentar as dificuldades vividas pelos agricultores se dá


através da organização de “grupos de reflexão” nos quais a expropriação é conce-
bida como uma questão política com o objetivo de discutir e propor estratégia de
luta. Em decorrência, em março de 1978, é criado o “Projeto Arca de Noé”. Após
seis meses de existência do projeto, realiza-se, no município de Santa Helena, a
primeira assembleia geral, reunindo mil e quinhentos agricultores de sessenta e
seis localidades. Também estavam presentes bispos, padres e membros da equipe
nacional da CPT. Durante a mobilização foi elaborado um documento encami-
nhado para o Presidente da República em forma de abaixo-assinado, solicitando
“medidas concretas que modificassem a política de indenização da Itaipu”.

A luta dos agricultores e representantes da igreja pelas melhorias nos acordos impostos
por Itaipu foram pautas para a reunião em Santa Helena, no dia 16 de outubro de 1978.
Na ocasião, de acordo com Mazzarollo (2003), reuniram-se 2.000 pessoas no pátio da Igreja
católica e após debates por grupos de trabalho, foram tratadas as queixas e recomendações
para Assembleia. Deste evento resultou a carta/documento a ser entregue para o Presidente
General Ernesto Geisel, que estaria em Foz do Iguaçu no dia 20 de outubro de 1978.
Dentre as solicitações buscavam-se: melhores preços em torno de 100.000 cru-
zeiros por alqueire, além de pagamentos iguais para todos os tipos de solo9; reajustes de
40% ao ano; inclusões das benfeitorias e maquinários no mínimo em 50%; a garantia
de que os posseiros recebessem no mínimo 50% do valor da terra; a indenização total
para as propriedades parcialmente atingidas pela inundação; ajudas nos transportes das
mudanças dos atingidos; assistência aos atingidos; reassentamentos; pagamento das in-
denizações até o final de 1978; entre outros pedidos10.
A carta não surtiu efeitos imediatos e em novembro de 1978 a CPT publicou na
Folha de São Paulo um documento de 50 páginas intitulado ‘O Mausoléu do Faraó’,

8
A Comissão Pastoral da Terra é um órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB criado em 1975 em Goiás
e oficializado no Paraná em 1976. Em 1977, a CPT instalou um secretariado no Oeste do Paraná com sede na cidade de
Marechal Cândido Rondon, para atuar como entidade de articulação ecumênica e atuação coletiva entre a população rural.
O caráter ecumênico estava bem patente no fato de, apesar de tratar-se de órgão da Igreja católica, sua coordenação ter sido
partilhada entre católicos e luteranos, como os pastores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil-IECLB Gernote
Kirinus, Kurt Walter Hattje e Werner Fuchs. No desenrolar da caminhada, a Comissão de Justiça e Paz-CJP do Paraná, com
sede em Curitiba, também abraçaria a causa dos desapropriados atuando especialmente no campo jurídico.
9
Itaipu criou categorias que distinguiam as características do solo, e as denominavam por classes de terras.
10
Acesso às reivindicações na íntegra, consultar Juvêncio Mazzarollo (2003, p. 73).

306
expondo as mais ácidas queixas dos agricultores e as mais graves acusações contra os mé-
todos de indenização da Itaipu. Para desespero do governo e da Itaipu, a imprensa deu
ampla divulgação ao documento (MAZZAROLLO, 2003, p. 66).
A resposta de Itaipu ao ‘Mausoléu dos Faraós’, também publicada na Folha de
São Paulo foi redigida por Pedro Paulo de Salles Oliveira, chefe das Relações Públicas
de Itaipu. Oliveira desacreditava que a CPT era a autora do Mausoléu dos Faraós, de
modo que a resposta foi mais direcionada para a carta emitida pelos agricultores ao então
Presidente Geisel. Por ocasião da resposta apontou que as alegações feitas pelos agricul-
tores não tinham fundamento. Entre os argumentos apresentados, constava que desde
as primeiras tentativas de “ouvir os atingidos”, seriam eles próprios quem não sabiam
se comunicar ou expressar. Por outro lado, nada se comentou que os demandantes não
eram recebidos pelos dirigentes de Itaipu, e que sua comunicação era obstada pela obri-
gatoriedade de que suas solicitações fossem sempre no formato escrito. Provavelmente
pela simplicidade do homem do campo e modo de falar, sofriam preconceito de origem.
Ademais, as respostas de Pedro Paulo aos questionamentos não eram convincen-
tes, sendo que, após a publicidade dos descasos de Itaipu, aponta-se que:

Itaipu fornecia carta de anuência para o colono pleitear financiamento do cultivo


até a data da desocupação da área, mas os bancos não aceitavam o documento; a
possibilidade de transferência de hipotecas em banco para outro imóvel, longe de
ser uma dádiva de Itaipu, era uma conquista dos desapropriados, como também
a promessa de que os posseiros receberiam 50% do valor da terra; Itaipu não
cumpriu o plano de indenizar em ordem a partir do Rio Paraná e em direção ao
interior. O que fez foi indenizar indiscriminadamente aqui e acolá, atendendo
antes aos proprietários mais fortes para que estes servissem de propagandistas da
“benevolência” da binacional; ou pagava preços régios a determinados proprie-
tários com o objetivo de que estes convencessem seus companheiros a fazerem
acordo; ou indenizava as lideranças emergentes com o fim de dispersar, dissolver
lutas reivindicatórias. (MAZAROLLO, 2003, p. 68)

Assim, entre perdas e ganhos, em 1979 os desapropriados conseguiram o aumen-


to de 40% no valor das indenizações. No entanto, vale lembrar que, devido ao atraso nos
pagamentos, havia uma alta desvalorização pela inflação. Itaipu foi capciosa e injusta nos
critérios utilizados, pois, conforme visto, diferenciava proprietários, impunha condições
injustas, e estabelecia indenizações desiguais, como por exemplo: enquanto se pagava 80
cruzeiros por um pé de laranja num lugar, pagava-se 150 em outro. Sendo uma área de
terra avaliada em 173.000 cruzeiros por alqueire, outra, em idênticas condições, avalia-
va-se em 150.000 (MAZZAROLLO, 2003, p.71).
A convite da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Paraná
(FETAEP), os sindicatos de trabalhadores rurais entraram na luta, no dia 16 de feve-
reiro de 1979 reunindo-se em Marechal Cândido Rondon, contando com cerca de 200

307
pessoas, entre líderes sindicais, pastorais e políticos. Do encontro resultou o documen-
to “Terras no Paraná e Indenização justa”, que seria discutido e aprovado na segunda
Assembleia Geral dos Agricultores convocada para o dia 7 de abril, em Santa Helena
(MAZZAROLLO, 2003, p. 69).
No documento, dentre outras exigências, reivindicava-se: o assentamento dos co-
lonos atingidos em terras paranaenses; indenização e reassentamento por comunidades;
regularização imediata, pelo Incra, das terras dos posseiros; e estipulação do preço mínimo
e de forma de correção monetária para as terras sem benfeitorias (GOMES, 2001, p. 59).
Juvêncio Mazzarollo (2003, p. 71) aponta que na ocasião da Assembleia decidiu-se por:

(...) formar uma Comissão de Coordenação e Representação, constituída por mem-


bros da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Paraná (FETAEP),
da Comissão Pastoral da Terra da Comissão de Justiça e Paz e dos Sindicatos dos Tra-
balhadores Rurais de Marechal Cândido Rondon, Guaíra, Santa Helena, Medianeira,
São Miguel do Iguaçu, Terra Roxa e Matelândia, mais dois agricultores atingidos por
município. Outra decisão consistiu em recorrer à assessoria jurídica prestada pelos ad-
vogados dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e da Comissão de Justiça e Paz, sob
a coordenação do Departamento Jurídico da FETAEP. (...) O documento foi enviado
ao presidente da República, aos ministros do Interior, da Fazenda, Agricultura, Minas
e Energia e da Previdência Social, ao governador do Paraná, ao presidente do INCRA,
ao diretor-geral da Itaipu, ao presidente do Banco do Brasil, ao presidente da Confe-
rência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e à imprensa.

As ações dos agricultores e seus apoiadores não foram suficientes para obrigar
Itaipu a ceder aos pedidos de indenizações justas, o que contribuiu para a criação do
Movimento Justiça e Terra, conforme aponta Iria Zanoni Gomes (2001, p. 60):

(...) em meados de 1980, a avaliação dos resultados dos instrumentos de pressão


usados assembleias, abaixo-assinados e reuniões deixou claro para os agricultores
que o Estado não detinha o poder de decisão, ou que não tomaria medidas a seu
favor, o que colocava a necessidade de construir outras estratégias de luta. Nasceu
então, a proposta de uma grande concentração para pressionar a Itaipu. Os escri-
tórios da empresa, em Santa Helena, foram cercados de 14 a 31 de julho de 1980,
por mil agricultores, o que dá inicio ao Movimento Justiça e Terra.

O Movimento em questão era pacífico, não sendo permitido o uso de armas ou bebi-
das alcoólicas em suas atividades. O grupo, portanto, defendia a não violência e era movido
pela coragem, esperança e união das famílias que sofriam com as expropriações forçadas.
Como o próprio nome sugere, buscavam a Justiça e a Terra em face da hegemônica Itaipu.
O acampamento em Santa Helena durou 16 dias com muitas atividades reli-
giosas, culturais, reuniões entre os expropriados, e tentativas frustradas de acordo. No
acampamento havia um autofalante que denominaram “Rádio Justiça e Terra”, através

308
do qual eram disseminadas as informações, pelo líder do Movimento, Marcelo Barth, e
outros. No dia 25 de julho de 1980, dia do agricultor, comemorações foram canceladas
e houve uma grande manifestação popular com aproximadamente 10.000 participantes.

Figura: Manifestação em Santa Helena


Nota: Data não especificada pela fonte.
Fonte: Sr. Gustavo Broenstrup

Em 29 de julho de 1980 Itaipu cedeu a algumas reivindicações. Porém, não cum-


priu integralmente o acordo fixado, ensejando-se uma nova concentração em Março de
1981. Na ocasião o acampamento foi instalado em Foz do Iguaçu e perdurou por 54
dias, sendo que após muitas lutas o Movimento Justiça e Terra lograram algumas outras
conquistas. A seguir serão listadas algumas das reinvindicações; ações no caso da não
aceitação por Itaipu; promessas de concessões; vitórias e o motivo das declarações do
próprio Movimento Justiça e Terra, constatadas por Juvêncio Mazzarollo (2003):

REINVINDICAÇÕES: 1) que o prazo para a conclusão das desapropriações seja


30 de junho de 1981, e que os casos que, por qualquer motivo, ultrapassarem
essa data recebam reajuste adicional de 5% ao mês; 2) que Itaipu se prontifique a
desapropriar áreas remanescentes de até cinco alqueires, caso estas não ofereçam
condições de sobrevivência ao produtor e caso este assim o deseje; 3) que Itaipu
faça vigorar para todos os posseiros a indenização de 100% da terra nua, mais as
benfeitorias e benefícios e que juntamente com o INCRA, proporcione terras no
Paraná, gratuitamente aos parceiros agregados e posseiros já indenizados a preços

309
vis; 4) que Itaipu indenize a preços justos também todos os pontos comerciais
dentro da área do reservatório; postos de gasolina, portos de areia, pontos de táxi,
moinhos, etc. 5) que as vilas situadas fora do reservatório, mas condenadas ao
desaparecimento, também recebam indenização justa em dinheiro.
AÇÕES DO MOVIMENTO: 1) recorrer diretamente ao presidente da Repúbli-
ca; 2) E se o aumento de 100% não fosse concedido, empreender uma marcha até
Foz do Iguaçu, montando o acampamento em frente ao escritório da Itaipu; 3)
trancar a estrada (BR-277) que dá acesso ao canteiro de obras da hidrelétrica; 4) se
a resposta às reivindicações não fosse dada até o dia 28, pedir aumento de 120%;
5) manter o acampamento até que as exigências fossem atendidas; 6) trancar todos
os escritórios da Itaipu (em Foz do Iguaçu, Santa Helena e Marechal Cândido
Rondon); 7) Entre essas propostas e outras predominou a da concentração, por
tempo indeterminado, em Foz do Iguaçu.
PROMESSAS DE CONCESSÕES DE ITAIPU: 1) aumento no preço da terra;
2) garantia de que 80% das terras seriam incluídas na primeira classe; 3) reajuste
dos preços a cada 90 dias; 4) aumento do preço das benfeitorias de acordo com os
valores adotados pela construção civil; 5) indenização das estradas; 6) pagamento
em 15 dias depois de feito o acordo; 7) plantio de mais uma safra (até março/
abril de 1982); 8) entrega, pelo INCRA, de todos os títulos das áreas atingidas
no imóvel Rio Paraná até outubro/novembro; 9) informe semanal do ITC (Ins-
tituto de Terras e Cartografia) sobre terras à venda no Paraná; 10) possibilidade
de indenização de áreas remanescentes de até três hectares (áreas maiores seriam
estudadas como casos especiais); 11) indenização das redes elétricas; 12) Itaipu se
comprometeu ainda a fornecer cópia oficial da proposta de indenização ao pro-
prietário; 13) respeitar o direito do posseiro em reuniões entre este e o proprietá-
rio; 14) conseguir terras pelo INCRA e pelo governo do Estado para os posseiros,
arrendatários e agregados; 15) ajudar na transferência dos postos de gasolina; 16)
permitir a retirada de benfeitorias antes do acordo, mediante requerimento; 17)
reajustar os preços das chácaras de acordo com os valores de mercado; 18) adiantar
50% do valor da terra aos ocupantes dos pousos de Marechal Cândido Rondon;
19) entregar gratuitamente planta e memorial descritivo das áreas remanescentes.
VITÓRIAS DO MOVIMENTO: l) Manutenção do acampamento por 54 dias,
graças à união e organização; 2) Nosso movimento provou de modo irrefutável
que Itaipu vinha pagando preços injustos. O ITC pesquisou os preços de terras
na região e num trabalho confiável, comprovou o que nós afirmávamos, Itaipu
pretendia pagar 290.000 cruzeiros por alqueire de terra nua de primeira classe,
e o ITC provou que o preço de mercado era de 490.000 cruzeiros, em abril.
(Hoje, Itaipu aceita pagar 471.000; 3) Obtivemos também um aumento de 62%
no valor das benfeitorias e mais de 100% no das chácaras a partir de outubro;
4) Garantimos o reassentamento de uma parte dos posseiros e arrendatários em
Arapoti, PR, Bom Jesus da Lapa, BA, e no Acre; 5) Obtivemos da Itaipu a pro-
messa de indenizar imediatamente os participantes do acampamento; 6) Outras
conquistas: a) indenização de redes elétricas e estradas (estas incluídas na classe de
terra predominante na propriedade); titulação de áreas e documentação conflitiva
ou indenização por instrumento de cessão de direitos: b) pagamento de translado
para os que se deslocassem aos projetos oficiais de reassentamento; c) verba de

310
compensação por perdas no comércio; d) permanência na propriedade prorrogada
de 31 de dezembro de 1981 para 30 de abril de 1982; 7) Enfim, provamos mais
uma vez que o agricultor unido e consciente tem muita força - e vence!
POR QUE VENCEMOS: 1) Tivemos muita coragem, perseverança, união, so-
lidariedade, paciência, organização e ajuda; 2) Recebemos valioso assessoramento
da Comissão Pastoral da Terra, da Comissão de Justiça e Paz e da Diocese de Foz
do Iguaçu; 3) Contamos com o apoio e a solidariedade de muitos parlamenta-
res, das igrejas, da Regional Sul II da CNBB, de centenas de personalidades e
entidades nacionais, em particular de outras lutas de agricultores, da imprensa
nacional e internacional, enfim, de tantos que ajudaram material e moralmente o
acampamento. Ficamos muito agradecidos a todos. Voltamos mais fortes Regres-
samos aos lares que já não são nossos, e de lá continuaremos nossa luta até o final
deste drama que vivemos. Esta foi uma etapa. Estaremos sempre prontos a repetir
nossos protestos sempre que a isso formos forçados pela Itaipu ou pelo governo.
Saímos lamentando que o governo do Paraná tenha recusado a sugestão, nossa e
do ITC, no sentido de liberar recursos para a formação de um estoque de terras
regularizador do mercado e estabilizador dos preços. Não tememos ameaças que
Itaipu faz de ajuizar as desapropriações dos que resistem, pois lá teremos
chances de defesa e não seremos mais obrigados a aceitar imposições unila-
terais. O Movimento Justiça e Terra contínua. Ele só acabará com o último
agricultor indenizado. Agricultor unido jamais será vencido. O preço da
Paz: Justiça e Terra. Foz do Iguaçu. 9 de maio de 1981.

Desde o projeto Arca de Noé até o Movimento Justiça e Terra, os desapropriados


juntamente com seus apoiadores em meio a tantas injustiças e revoltas demonstraram que
é possível persistir e resistir sem violência, provando que “o povo unido é povo temido”. O
Movimento Justiça e Terra não obteve sucesso total contra Itaipu, e não se pode afirmar se as
conquistas foram de fato efetivadas na sua integralidade, o que exigiria maiores análises. No
entanto, o que se observa é que organizações deste tipo, em muito colaboram no sentido de
frear os abusos do poder econômico diante dos mais vulneráveis.
Prova disto é que ao final de 1981, o Movimento Justiça e Terra deu origem
ao Movimento dos Agricultores Sem-Terra no Oeste do Paraná- MASTRO, primeiro
embrião do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná (GO-
MES, 2001, p. 61), o que constituiu um marco importante na defesa dos direitos das
populações vulneráveis.
Convém mencionar, ainda, que de acordo com dados fornecidos pela Itaipu Bi-
nacional foram desapropriadas 6.913 propriedades rurais e 1.606 urbanas, totalizando
8.519 propriedades que nos contextos urbano e rural, enfrentaram toda a sorte de di-
ficuldades. Há que se pontuar também a remoção de uma população inteira, além de
outras ações de violência simbólica que foram deflagradas no conflito. Sobre as ações
nesse sentido, explica Maria de Fátima Ribeiro (2002, p. 28):

311
Além das propriedades rurais e urbanas, foram indenizados 42 templos religiosos
e 95 escolas existentes na área desapropriada. Os cemitérios também foram reco-
locados para outros distritos, dentro do mesmo município, mas que não seriam
atingidos pela inundação. Em convênio com as prefeituras municipais, foram
transladados os restos mortais de 1090 pessoas.

Em decorrência da retirada de importantes símbolos sociais, como os templos


religiosos e o cemitério, não resta dúvida quanto ao infortúnio cultural/ espiritual oca-
sionado às famílias. Além de serem obrigadas a deixar compulsoriamente seus lugares de
vida, viram violadas as sepulturas de seus antepassados e destruídos seus lugares de culto
religioso. O sofrimento provocado, portanto, ultrapassa a mera perda de bens patrimo-
niais, mas abrange a esfera moral e espiritual dos atingidos.
Em razão da constatação das dimensões que o problema ocasionou, reputou-se
interessante localizar uma família desapropriada para complementar as impressões a se-
rem transpostas a este trabalho. Com este intuito, foi localizada uma família que viveu
o drama da expropriação e realizada uma visita no dia 9 de fevereiro de 2016 ao expro-
priado Sr. Gustavo Broenstrup11, 79 anos, e seu filho Erico Ademar Broenstrup, 45 anos.
Os entrevistados relataram: que a família (casal e mais 8 filhos) morava em São
Miguel do Iguaçu, a 18 km de Missal, e antes da inundação de Itaipu cultivavam milho,
tabaco e soja; que os técnicos de Itaipu entraram na propriedade deles sem autorização,
começaram as medições e não esclareceram para os proprietários o motivo daquilo; que
tinham uma propriedade de 23 hectares e que não aceitaram a primeira proposta de
acordo feita por Itaipu, pois o valor era muito abaixo do que valia, e após as manifesta-
ções em Santa Helena, nas quais eles estavam presentes, conseguiram reajustes no valor
da indenização e não se recordam exatamente quanto receberam, mas somente que foi
no ano de 1981 e que foi injusto. Segundo o relato, no montante indenizado estavam
incluídos a casa, galpão e arvoredos, excetuados os animais. Recordaram, ainda, que
atrasou-se bastante o pagamento. Com o valor recebido investiu integralmente em 45
hectares de terras em Faxinal dos Galvões localizado a 25 km do Município de Imbitu-
va-PR, mas com qualidade muito inferior e totalmente cobertos de mata. Por isso, a fa-
mília necessitou destocar e preparar a terra para o plantio de soja e erva-mate, tendo que
começar do zero, com muitas dificuldades e trabalho. Além disso, a terra nova produz
a metade da antiga e não possui rios ou nascentes de água o que a tornou mais barata.
Deste modo, foi necessário perfurar um poço na propriedade, o que não impediu que
até hoje sofressem com a escassez de água. Precisarão perfurar um novo poço.
Relataram, ainda, que alguns desapropriados também compraram terras em Faxi-
nal dos Galvões, porém não se adaptaram a elas e foram embora. Citaram que um mora-
dor, cujo nome não se recordam, ficou até a inundação chegar e que os funcionários de

11
Entrevista realizada e incluída nesta publicação mediante consentimento livre, prévio e informado dos entrevistados.

312
Itaipu retiravam os pertences da casa dele e levavam até uma área que não seria atingida,
não sabem informar se o atingido fora indenizado posteriormente. No relato, também
deram a conhecer que amigos e conhecidos ficaram doentes com depressão, e que mui-
tos não conseguiram comprar terras com os valores recebidos, além das dificuldades
como a adaptação dos filhos na escola, longe dos coleguinhas e família, também comen-
taram sobre a saudade do Rio Paraná onde tomavam banho e pescavam. Quando ques-
tionados se recordavam de alguns dos integrantes do Movimento Justiça e Terra, o Sr.
Gustavo respondeu que não lembrava o nome. Porém, ao citar Marcelo Barth e Pastor
Fuchs, afirmou que era amigo de Marcelo e conhecia o Pastor. Ao final, demonstraram
preocupação no caso de um possível rompimento das barragens de Itaipu.
O choque imposto diante da construção do empreendimento, como se vê, foi
duramente suportado pelos habitantes das terras alagadas. Mesmo possuindo o título de
propriedade relativo ao imóvel ocupado, esses grupos, no geral agricultores, foram dupla-
mente violentados: Primeiro essas pessoas perderam o direito de permanecer nas terras
que escolheram para viver. Depois, foi-lhes subtraído o legítimo direito a uma indenização
justa que amenizasse o desconforto e a inconveniência de uma mudança não desejada.
Mais grave ainda foi à situação dos posseiros e demais ocupantes das terras, que,
sem direito de uma indenização que lhes permitisse uma vida nova em outro lugar, per-
deram-se na busca por encontrar novas formas de sustento.
De acordo com a literatura trabalhada e com as declarações do relato observado,
muitos foram os agricultores que tiveram suas vidas destruídas em razão da perda da
terra. No entanto, os efeitos sociais nefastos acarretados pela hidroelétrica não se restrin-
giram à propriedade da terra, e tampouco à busca por justiça nas indenizações.

IMPACTOS SOBRE A PRODUÇÃO AGRÍCOLA DA REGIÃO AFETADA

A região do Oeste do Paraná, entre as décadas de 1940 e 1950, passou a ser ocupada
por imigrantes, descendentes de alemães e italianos, que seguiam o percurso tradicional do
Rio Grande do Sul para Santa Catarina e, consequentemente, para o Sudoeste e Oeste do
Paraná, em busca de novas terras para a produção agrária (GERMANI, 2003, p. 24).
A primeira atividade desenvolvida, por se tratar de área com cobertura florestal,
foi o desmatamento para a retirada de madeira e a extração da erva-mate, nativa da
região. Explica Guiomar Inez Germani (2003, p. 24) que “à medida que a madeira ia
sendo retirada, abria-se espaço para a entrada da plantação de hortelã, acompanhada de
uma cultura de subsistência (arroz, feijão, milho, batata e mandioca) e da suinocultura”.
Posteriormente, na década de 1960, outros imigrantes passaram a chegar ao Oeste para-
naense, eram eles os nordestinos, mineiros e capixabas, que já não eram mais absorvidos
na produção cafeeira no Norte do Paraná (GERMANI, 2003, p. 24).

313
No final dos anos de 1960 e meados de 1970, a soja e o trigo chegaram à região Oeste,
com a forte mecanização agrícola (GERMANI, 2003, p. 25), acompanhando um movimen-
to mundial denominado de Revolução Verde12 ou Modernização Dolorosa, como preferiu
José Graziano da Silva (1982), em que a mecanização da agricultura fomentou o êxodo rural
e a chegada de um novo contingente populacional aos centros urbanos.
O fenômeno da mecanização da agricultura, por suas próprias características,
acarretou diversas contrariedades aos agricultores de todo o Brasil, que tiveram que
adaptar-se às novas técnicas de cultivo para poder sobreviver ao voraz mercado hegemô-
nico que controla boa parte deste setor produtivo.
Entretanto, no Oeste e Extremo-Oeste do Paraná, não foi apenas a mecaniza-
ção agrícola e a chegada da soja e do trigo que alteraram a vida da população rural e
a estrutura fundiária, antes fracionada em pequenas propriedades e posses rurais, mas
também a grande área territorial que seria inundada para a construção do reservatório da
Hidrelétrica de Itaipu, como salienta Guiomar Germani (2003, p. 25-26). Ou seja, de-
pois de tantas dificuldades enfrentadas no campo para absorver as profundas mutações
impostas, as sociedades rurais do Oeste do Paraná tiveram que, novamente, adaptar-se à
obrigação que lhes foi outorgada.
Na área acometida pela inundação, havia uma expressiva produção agrícola que
deixou de ser gerada, ocasionando prejuízos ao mercado local e aos agricultores que
ganhavam a vida por meio desta atividade. Maria de Fátima Bento Ribeiro (2002, p.
27-28), baseada em noticiário da época, ressalta que com a inundação do lago de Itaipu,
afetou-se diretamente a produção agrícola antes praticada nos municípios de Foz do
Iguaçu, São Miguel do Iguaçu, Medianeira, Matelândia, Santa Helena, Marechal Cân-
dido Rondon, Terra Roxa e Guaíra:

Os oito municípios deixaram de colher mais de 100 mil toneladas de soja, cerca de
31 mil toneladas de trigo, quase 34 mil toneladas de milho, cerca de 1.500 tonela-
das de feijão, mais de 27 mil toneladas de mandioca, em torno de 1.700 toneladas
de arroz e 24 toneladas de café. Em suma, deixaram de colher mais de 200 mil
toneladas de produtos agrícolas. (Cf. Jornal Nosso Tempo, 03 dez. 1980, p. 08)

No mesmo sentido, Juvêncio Mazzarollo (2003, p. 32) apresentou dados de que os


principais produtos agrícolas, que representavam 98% da produção agrícola e ocupavam
mais de 99.000 hectares do total desapropriado, eram a soja, milho, trigo, feijão, mandio-
ca, arroz e café, deixando a região de produzir em torno de 210.000 toneladas por ano.
Em que pese os impactos sociais da mecanização da agricultura fossem generaliza-
dos, conforme já salientado, esta situação, somada à perda das terras em decorrência do

12
A Revolução Verde implica, dentre outros fatores, o processo de transformação da agricultura pela adoção de práticas,
insumos agrícolas e demais tecnologias com o objetivo de alcançar elevados índices de produtividade.

314
empreendimento, configura a completa destruição do modo de vida da população rural
que suportou os piores efeitos de um ‘direito ao desenvolvimento’ tão propalado como
justificativa para qualquer atrocidade que fosse realizada visando tal finalidade. Sobre
este sentimento de término das condições de vida, Maria de Fátima Ribeiro assevera:

Mais que a terra como instrumento de trabalho, a mudança representava a perda


da “condição de ser”, da identidade com o lugar, dos laços de vizinhança, do
cheiro da terra, das cores dos frutos da terra, da memória de uma vida que o lago
encobriu. Não foi apenas o passado que foi destruído, mas, principalmente, a
crença no futuro, motivo que encorajou milhares de migrantes a abandonarem
suas terras na década de 1950, intensificando o movimento migratório para a
região Oeste do Paraná. Junto aos grupos desapropriados encontra-se uma outra
imagem do passado recente, que não a de um futuro promissor. Trata-se da ima-
gem de agricultores cuja existência foi interrompida pela cruel implantação do
projeto de Itaipu. (2002, p. 49)

Normalmente, o sofrimento subjetivo da população, por mais pesado que possa


parecer, não é considerado nos cálculos econômicos a que os grandes projetos recor-
rem, pois contra ele pesa o ‘ideal desenvolvimentista’, que vem sido há muito tempo
o norteador das políticas públicas. Ou seja, em nome desse ideal tido como ‘natural’ e
compartilhado por ‘todos’, admite-se tamanha interferência na vida e no modo de vida
das pessoas. Em nome deste ideal se admite todo o tipo de expropriação, que afeta, via
de regra, as camadas sociais mais vulneráveis. Na expressão de Guiomar Germani:

Independentemente de ser área rural ou urbana, o que importa salientar é o fato


de que a ‘área em conflito’ é um espaço que foi ocupado com uma finalidade e que
agora, com a Usina de Itaipu, tem essa finalidade alterada – não será mais roça e
não será mais vila – será leito de um grande lago. É o capital definindo a utiliza-
ção, produção e reprodução do espaço, e se apropriando do trabalho morto nele
contido. (2003, p. 52)

Destarte, em se tratando de populações rurais ligadas à agricultura, há que se


levar em consideração que as consequências da perda do domínio sobre suas terras não
se restringem à mera necessidade de reassentamento da população em outros lugares.
Quando produtores agrícolas possuem o perfeito domínio das técnicas aplicáveis às suas
terras, tendo-se constituído toda uma estrutura para o desenvolvimento de suas ativida-
des, torna-se muito complicado simplesmente deixar todo o esquema já estabelecido de
produção, para aventurar-se a desenvolver outro completamente diferente, já que será
necessário adaptar-se às novas necessidades e contingências que serão encontradas em
outras terras. No caso de Itaipu, muitos desses agricultores sequer lograram estabelecer-
se em outras áreas. Quem o conseguiu, se obrigou a recomeçar, passando por todos os

315
passos necessários até ser possível voltar à produção que se conseguia em tempos passa-
dos. Além dos prejuízos em decorrência da perda da terra, os agricultores provaram as
amarguras de galgar novos espaços para produzir e vender seus cultivos. As implicações
destes fatos são inimagináveis.

URBANIZAÇÃO DESENFREADA E CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS

Como visto, constata-se que, de toda a população deslocada para a construção


de Itaipu, parte continuou resistindo no campo contra as injustiças geradas pela perda
das terras que ocupavam e pela falta de justa indenização, vindo a formar o Movimento
Justiça e Terra. Por outro lado, a outra parcela dos atingidos conseguiu se estabelecer em
áreas rurais diversas, enquanto que grande contingente humano acabou migrando para
os centros urbanos em busca de melhores condições de vida, passando a exercer ativida-
des diferentes daquelas que executavam anteriormente. Assim:

A construção da Hidrelétrica de Itaipu ocasionou importantes transformações na


região do Extremo-Oeste paranaense. Em nível regional, a formação do lago mo-
tivou a indenização de terras produtivas de colonos, que há muito tempo tinham
se radicado na região. Estes, por sua vez, viram-se obrigados a migrar para novas
terras ou, simplesmente, a abandonarem o meio rural, ingressando em novas ati-
vidades produtivas nas cidades. (RIBEIRO, 2002, p. 53)

Como visto, os centros urbanos também foram seriamente afetados, pois alguns
desapareceram, outros tiveram seus territórios parcial ou totalmente inundados e os
demais viram fundamentalmente modificadas suas estruturas. A título de exemplo, o
município de Guaíra perdeu sua condição de polo turístico com a submersão das Sete
Quedas do Rio Paraná e muitas cidades tiveram parte do território submerso e isolado
dos municípios vizinhos, como ocorreu com Santa Helena, São Miguel do Iguaçu e Foz
do Iguaçu (MAZZAROLLO, 2003, p. 33).
Não obstante esta gama de impactos, foi Foz do Iguaçu a cidade mais afetada por
haver sido sede do canteiro de obras da Hidrelétrica de Itaipu, atraindo, assim, enorme
contingente de mão-de-obra e serviços.
A criação da Hidrelétrica de Itaipu Binacional trouxe à tona os efeitos referentes
às questões e interesses afeitos ao período militar ora vivenciado pela história brasileira. A
militarização serviu em grande medida para que a obra da usina pudesse ser realizada sem
maiores empecilhos que pudessem ocorrer em razão de ações das populações afetadas. Des-
te modo, foi a força simbólica proveniente do governo militar que dificultou resistências
mais radicais, motivo pelo qual muitos agricultores optaram pelo êxodo para as cidades,
somando-se aos trabalhadores que ficaram na região após o fim da construção da hidrelé-

316
trica. Tanto o incremento populacional causado pela população deslocada quanto aquele
causado pela promessa de empregos ocasionaram uma urbanização desenfreada.
Assim, o Estado, conseguia se fazer presente com seus homens do exército nacio-
nal para garantir que a construção da hidrelétrica fosse concluída. Mas, no entorno das
cidades, a criminalidade, o desemprego, a prostituição e a falta de políticas públicas de
saúde, saneamento e educação cresciam.
Conforme expressa Maria de Fátima Ribeiro:

Itaipu exigiu uma enorme infraestrutura. Por isto, vários investimentos foram fei-
tos, uma vez que foi necessário melhorar o abastecimento de água e energia elétri-
ca, produzir e aumentar o atendimento à saúde e educação (mediante a construção
de hospitais, escolas, estradas), bem como a criar vilas residenciais. Somente a
Avenida Brasil estava asfaltada em 1973, e, mesmo assim, cortada ao meio por
um rio. Com base num plano diretor estabelecido pelo Governo do Estado e em
recursos estaduais-federais, o então prefeito nomeado de Foz do Iguaçu, o coronel
Clóvis Cunha Vianna, deu início à ‘transformação’ da cidade. (2002, p. 53-54)

Entretanto, os investimentos na infraestrutura urbana de Foz do Iguaçu pelo Estado


não acompanhavam o crescimento populacional e suas necessidades de emprego, saúde, edu-
cação e saneamento básico. Conforme ressalta Ribeiro (2002, p. 57), muitas favelas foram
formadas em Foz do Iguaçu pelos desempregados que se lançavam para o Oeste paranaense
em busca de trabalho na obra de Itaipu e nem sempre conseguiam. Muitas vezes estes traba-
lhadores foram agenciados e recrutados pelos “gatos” e abandonados à própria sorte. Assevera
Guiomar Germani (2003, p. 34) que “os efeitos da Itaipu ficaram perfeitamente dentro da
lógica implacável do capitalismo: riqueza para poucos e pobreza para muitos”.
Com o fim da obra de Itaipu, muitos trabalhadores, que passaram à condição de
desempregados, permaneceram na cidade de Foz do Iguaçu, aumentado o contingente
populacional nos bairros pobres e nas favelas (RIBEIRO, 2002, p. 79).
Se os impactos ambientais observados em decorrência do empreendimento já se
demonstram demasiado graves e ensejam um necessário repensar acerca do custo que a
sociedade e a natureza pagam por obras desta envergadura, mais profunda ainda deve
ser a reflexão quando se tem em conta as milhares de vidas humanas que são direta e
irremediavelmente atingidas.
Em estudo do Instituto Polis a respeito dos impactos causados por projetos de
grande impacto urbano e ambiental, Romeiro e Frota (2015) ponderam que apesar das
promessas vinculadas aos grandes projetos:

[...] o modelo aplicado para a implantação de projetos de grande impacto urbano


e socioambiental não incorpora, nem como princípio, diretriz ou premissa, um
tratamento compatível com a dignidade da pessoa humana. Assim, são impos-
tos altos custos para as pessoas, grupos ou comunidades impactadas, principal-

317
mente quando se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica.
Considerando o aumento das intervenções urbanas de grande impacto, é preciso
modicar radicalmente este modelo, que tem resultado, na maioria dos casos, em
violações de direitos humanos e injustiças sociais. É necessário que as normas
(internacionais e internas) de proteção dos direitos humanos e voltadas à promo-
ção de cidades mais justas, democráticas e sustentáveis sejam respeitadas e sejam
orientadoras das intervenções urbanas.

No caso em análise, o posicionamento dos autores mostra-se plenamente aplicá-


vel, uma vez que demonstra a preponderância dos interesses econômicos, que tende a
sobrepor a dignidade da pessoa humana diante das violações infligidas às comunidades
atingidas por projetos de grande envergadura. Ademais, nota-se que quanto maior a
vulnerabilidade social e econômica, maior se mostra o desrespeito aos direitos que lhes
deveriam ser garantidos pelo Estado, e não vilipendiados por ele.
Assim, cabe uma reflexão acerca das violações de direitos sociais cometidas du-
rante a construção da Usina de Itaipu. A intenção não deve ser somente a denúncia
da conduta inapropriada e ilegal do Estado para privilegiar o poder econômico, mas
também a reflexão acerca das atuais e futuras ações, especialmente aquelas que visam à
implementação de outros megaprojetos em território brasileiro. As experiências passadas
devem servir como balizadoras para as futuras, servindo ao aperfeiçoamento das relações
entre Estado, Economia e Sociedades. Assim, espera-se que as injustiças cometidas em
Itaipu não continuem a ser replicadas perpetuando um modelo de desenvolvimento
incompatível com as necessidades dos povos, especialmente dos mais vulneráveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ideal de desenvolvimento amplamente difundido tem levado as sociedades a


aceitarem as mais penosas consequências de um modelo econômico que prioriza gran-
des obras e empreendimentos a despeito dos direitos das pessoas, em especial dos mais
vulneráveis economicamente.
A construção da Hidroelétrica de Itaipu constitui um grande exemplo desta cons-
tatação, pois, além de arcar com profundos impactos ambientais decorrentes das obras
para instalação e funcionamento da Usina, foi necessário avocar uma série de conse-
quências negativas para as sociedades afetadas. Neste texto, apresentou-se algumas dessas
consequências enfrentadas pelas populações dos centros urbanos atingidos pela obra,
assim como a população rural, que desenvolvia atividades agrícolas em terras que mar-
geavam o Rio Paraná antes da formação do lago da Usina.
Nos centros urbanos, a população precisou adaptar-se ao fato de que toda a ma-
triz econômica antes existente haveria de ser extinta para dar lugar a novas atividades,

318
às quais as pessoas deveriam ser integradas. O caso de Guaíra, apresenta-se como o mais
grave nesse sentido, tendo em vista que a sociedade, que antes era em grande parte man-
tida pelo turismo voltado para as Sete Quedas, teve comprometida toda a estrutura do
setor, sendo obrigada a encontrar novos meios de subsistência.
Também no ambiente urbano, a urbanização desenfreada, tanto pela população
expulsa do campo quanto pelo contingente atraído pela promessa de empregos no can-
teiro de obras, levou a um inchaço na cidade de Foz do Iguaçu, sede das obras. Como
consequência, as condições de atendimento básico à população como fornecimento de
instituições de saúde, educação e moradia foram sendo gravemente precarizadas, devido
à falta de estrutura para comportar o aumento exponencial da população iguaçuense,
além do aumento da marginalidade.
No campo, a situação também tomou pesadas dimensões em razão das injustas
circunstâncias pelas quais a população foi retirada de suas terras. Em primeiro lugar, os
valores das indenizações ofertadas pela Itaipu eram muito aquém daqueles praticados no
mercado, havendo uma disparidade entre os valores oferecidos para diferentes imóveis
em condições análogas. Os proprietários e posseiros que ocupavam a região não podiam
expressar qualquer descontentamento ou divergência dos termos oferecidos sem que
fossem coagidos e/ou ameaçados em seus direitos. Para não deixar a situação ainda pior,
muitos acabaram aceitando as propostas e enfrentando sérias dificuldades para conse-
guir outros imóveis. Deste modo, partiam para as cidades, incrementando os bolsões de
pobreza. A população rural da região, tal como no resto da população rural brasileira, a
pouco tempo havia passado por um período de intensas transformações em virtude da
mecanização do campo advinda pela mão da Revolução Verde. Tão logo recuperados
deste período de adaptação, os agricultores que margeavam o rio Paraná tiveram suas vi-
das novamente alteradas pela retirada de suas terras, sem chance de discordância, e con-
sequentemente, precisaram adaptar-se a uma vida nova a ser construída a partir do nada.
A capacidade de produção agrícola que já era possível gerar se perdeu com a submersão
das terras, despedaçando-se as cadeias locais e todo um modo de vida ali desenvolvido.
Deste modo, resta a reflexão acerca de quais seriam os limites das atividades eco-
nômicas diante das histórias de vida daqueles que pagaram (e pagam até hoje) um alto
preço para tornar possíveis os ideais de desenvolvimento e de progresso, tão fartamente
defendidos pela sociedade.

319
REFERÊNCIAS

CATTA, Luiz Eduardo. O cotidiano de uma fronteira: a criminalidade e o controle


social. Esboços - Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC,
Florianópolis, v. 1, n. 1, p. pp. 50-58, jan. 1994.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: A História e Devastação da Mata Atlântica Brasileira


de Warren Dean, 1996.

GERMANI, Guiomar Inez. Expropriados. Terra e água: o conflito de Itaipu. Salvador:


EDUFBA/ULBRA: 2003.

GOMES, Iria Zanoni. Terra & Subjetividade: a recriação da vida no limite do caos.
Curitiba: Criar Edições, 2001.

MAZZAROLO, Juvêncio. A taipa da injustiça: esbanjamento econômico, drama social


e holocausto ecológico em Itaipu. 2ª Ed. São Paulo: Loyola, 2003.

OBSERVATÓRIO SOCIO-AMBIENTAL DE BARRAGENS. Disponível em: <http://


www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/28/itaipu>. Acesso em: 02 de fev. 2015.

RIBEIRO, Maria de Fátima Bento. Memórias do Concreto: vozes na construção de


Itaipu. Cascavel: Edunioeste, 2002.

ROMEIRO, Paulo Somlanyi e FROTA, Henrique Botelho, Org. Megaprojetos de im-
pacto urbano e ambiental: violação de direitos, resistência e possibilidades de defesa
das comunidades impactadas. São Paulo: IBDU, 2015.

SILVA, José Graziano. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e


trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

320
CAPÍTULO 4 - AS LUTAS

Antigamente nós corríamos de branco por todo canto, por todo lado. E chegou um
dia que nós tivemos aquela vontade de voltar a nossa terra. E nós se juntamos, 5, 6 famí-
lias, e voltamos para as nossas tekoha, antigas aldeias, retomamos outra vez. E por isso nós
estamos de volta a nossas aldeias, porque é sagrado para nós. Porque eu nasci em Guaíra,
em Cidade Real. Eu corri de pequeno para o Mato Grosso, mataram meus parentes, e de
repente eu tive saudade de Guaíra.

Libório Garcia, liderança da Tekoha Nhemboetê


Foz do Iguaçu, 24 de novembro de 2014

Eu falo para o povo Guarani não ter medo. Aonde eles estão são aldeias antigas, para
eles ficarem lá. Para onde eles vão correr agora? Não tem mais mato para esconder, tem
que ficar lá mesmo. Falei para minha família, não vamos mais correr, se eles têm vontade
de matar mais os Guarani, deixa eles matar todos nós aqui.

Raul Medina, liderança da Tekoha Yvyraty Porã


Foz do Iguaçu, 25 de novembro de 2014

321
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO AOS AVÁ GUARANI: A NECESSÁRIA POLÍTICA
DE REPARAÇÕES E RESTITUIÇÃO DE TERRAS PELAS VIOLAÇÕES
COMETIDAS DURANTE A DITADURA MILITAR

Liana Amin Lima da Silva1

Tekoha Mirim. Guaíra - PR, Brasil, 2014. Foto: SILVA, Liana Amin Lima da.

O Falar

O Pai Primeiro dos guaranis ergueu-se na escuridão, iluminado pelos reflexos de seu pró-
prio coração, e criou as chamas e as tênues neblinas. Criou o amor, e não tinha a quem
dá-lo. Criou a fala, mas não havia quem o escutasse. Então encomendou às divindades
que construíssem o mundo e que se encarregassem do fogo, da névoa, da chuva e do vento.
E entregou-lhes a música e as palavras do hino sagrado, para que dessem vida às mulheres
e aos homens. Assim o amor fez-se comunhão, e a fala ganhou vida e o Pai Primeiro re-
dimiu sua solidão. Ele acompanha os homens e as mulheres que caminham e cantam: Já
estamos pisando esta terra, já estamos pisando esta terra reluzente.
Eduardo Galeano. Os nascimentos. Trilogia: Memória do Fogo.

1
Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade (PUCPR). Bolsista (PDSE/ CAPES), com estágio de dou-
torado na Universidad Nacional de Colombia (UNAL, Bogota). Pesquisadora no Projeto A Questão Indígena no Oeste
do Paraná: A Reconstrução do Território Avá Guarani (CNPq), integrante do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito
Socioambiental (CEPEDIS). Professora colaboradora da Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvi-
mento Sustentável da Universidade Federal do Amazonas (UFAM, alto rio Negro).

322
INTRODUÇÃO

A usurpação do território Avá Guarani no oeste do Paraná impetrada pelo Estado


brasileiro no período de 1946-1988 é revisitada pela busca da memória e verdade nos
relatórios das Comissões da Verdade instauradas nos últimos anos. A Comissão Na-
cional da Verdade, em capítulo intitulado “Violações de direitos humanos dos povos
indígenas” descreve as práticas de expulsão, remoção e intrusão de territórios indígenas,
destacando o ocorrido no Mato Grosso do Sul e no oeste do Paraná, com os Guarani
Kaiowá e Avá Guarani, respectivamente. Assim como, trata do extermínio ocorrido com
a desagregação do povo Xetá, vítimas de remoção forçada e genocídio pelas colonizado-
ras, pelas próprias ações do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e posteriormente, pela
inundação da hidrelétrica de Itaipu, no Estado do Paraná.
O reconhecimento da violação dos direitos indígenas pelos relatórios recente-
mente publicados aponta para o caminho de uma justiça transicional. O reconhecimen-
to público das violências e esbulho de terras cometidos pelo Estado brasileiro contra os
Avá Guarani reflete no reconhecimento dos seus direitos originários e consequentemen-
te, na demarcação da Terra Indígena Avá Guarani, território em vias de reconhecimento,
estudo e delimitação da terra em processo administrativo pela Fundação Nacional do
Índio (Funai).
Os direitos originários dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocu-
pam está consagrado no artigo 231 da Constituição brasileira. Desse modo, no presente
trabalho abordaremos também sobre a inconsistência do critério do marco temporal
adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no caso Raposa Serra do Sol (PET 3388-
4 RR), prevendo a data da promulgação da Constituição (05 de outubro de 1988) como
marco para verificação da posse da terra pelos povos indígenas. Frisa-se que recentemen-
te tal critério foi considerado no caso da Terra Indígena Guiraroká dos povos Guarani
Kaiowá no acórdão que julgou o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29.087,
pela Segunda Turma do STF. Por isso, a preocupação de seu alcance também aos Avá
Guarani do oeste do Paraná.
Defendemos a desconstrução do critério do marco temporal fundamentada no
entendimento de que o direito originário dos povos indígenas à terra é um direito co-
nexo ao direito à vida, à existência e à integridade física, cultural e espiritual dos povos
indígenas. O direito à terra existe desde o momento em que a comunidade se forma, ou
seja, como direito congênito existe desde o surgimento ou nascimento da própria comu-
nidade, dispensando a ótica do direito originário como referente a um passado remoto.
O termo “povos originários” é consagrado nos instrumentos jurídicos internacio-
nais por se tratar de grupos que descendem de populações que se encontravam na região
geográfica no período da colonização, conquista do território ou estabelecimento das
atuais fronteiras dos Estados nacionais (e plurinacionais). Negar o direito à terra como

323
direito originário é negar o direito à existência presente e futura desses povos e comu-
nidades, é mantê-los na invisibilidade, quando os próprios instrumentos normativos
constitucional e internacionais tentam legitimamente trazê-los à visibilidade jurídica e
política (SILVA; MARÉS, 2016).
Desse modo, o presente artigo pretende traçar uma correlação entre o reconheci-
mento dos direitos originários e a necessidade de implementação no país de uma justiça
de transição pró indígena, ou seja, além de prever medidas coletivas reparadoras nos
aspectos morais, materiais e espirituais indígenas, torna-se necessário traçar uma política
de restituição de terras, como ocorre em outros países latino-americanos, a exemplo da
Colômbia, com tribunais com competência própria.
Assim, tratar dos direitos de reparação dos Avá Guarani do oeste do Paraná per-
passa por analisarmos o contexto de massacre vivenciado e as violações dos direitos in-
dígenas cometidas sobretudo no âmbito da construção da hidrelétrica Itaipu Binacional
em meados dos anos 1970.

POLÍTICA INDIGENISTA, MASSACRE E REMOÇÃO FORÇADA


DOS AVÁ GUARANI DURANTE A DITADURA MILITAR:
REFLEXOS NAS VIOLAÇÕES DE HOJE

As arbitrariedades e violências conflagradas pelo antigo Serviço de Proteção aos


Índios (SPI), criado pelo Decreto n. 8.072 de 20 de junho de 1910, órgão antecessor
da Fundação Nacional do Índio (Funai), ficaram evidentes no Relatório Figueiredo,
documento há mais de 45 anos desaparecido e que vem a tona num momento histórico
propício para a busca de se realizar ainda que tardiamente uma justiça de transição para
os povos indígenas.
Trata-se de um relatório de mais de 7.000 páginas produzido pelo Procurador do
Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), Jáder Figueiredo Correia,
após terem sido evidenciadas as denuncias de corrupção, abuso de poder e atrocidades
cometidas pelo SPI, apuradas pela Comissão Parlamentar de Inquérito criada em 1963.
Após a repercussão internacional do relatório da CPI, o então Ministro do Interior Afonso
Augusto de Albuquerque Lima cria a Comissão de Investigação presidida por Jáder Figuei-
redo Correia. O relatório apurou matanças de comunidades inteiras, atentados com metra-
lhadoras e dinamites, prisões, torturas, estupros, mutilações e crueldades como inoculações
de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado com veneno (estricnina),
comprovando o genocídio contra os indígenas nas décadas de 1940 a 1960. 2

2
Em 2012, o pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, foi chamado ao Museu do Índio
para identificar o relatório, que até então acreditava-se eliminado em um incêndio oorrido no Ministério da Agricultura em
1967. “O relatório é uma bomba atômica na história recente do país. Tinha muita gente importante envolvida. Essa é uma

324
O Relatório Figueiredo “foi fundamental para a extinção do SPI, mas, com a militari-
zação da Funai, intensificada após o Golpe, ele foi engavetado, e as ilegais e violentas práticas
contra os índios ali denunciadas permaneceram durante o regime militar” (CTI, 2013, p.46).
Acusado de corrupção, o SPI foi extindo, criando-se a Funai (Lei n. 5.371 de 05 de
dezembro de 1967). Manuela Carneiro da Cunha ressalta que, nessa época, políticos e mili-
tares podiam abertamente declarar que os índios eram “empecilhos para o desenvolvimento”,
este entendido de forma mais predatória possível. O que não se distancia da realidade atual.

As terras indígenas e o usufruto exclusivo de seus recursos pelos índios gozavam


de proteção constitucional, e o governo manifestava orgulho de sua legislação in-
digenista. Para levantar o embargo legal sobre as terras indígenas, imaginou-se um
expediente: era só emancipar os índios ditos aculturados. Na realidade, o que se
tentava emancipar eram as terras, que seriam postas no mercado, como os Estados
Unidos haviam feito no século XIX. (CUNHA, 2012, p.100)

Entre as estratégias do SPI para remover os Guarani à medida que se impôs a


presença das colonizadoras na região e a necessidade de se liberar terras para a coloniza-
ção, foi remover as famílias guarani de seus lugares de ocupação e levá-los para a Reserva
Indígena Rio das Cobras (criada em 1901 para confinar a população Kaingang), em
Laranjeiras do Sul, Paraná. Tal estratégia de confinamento posta em prática pelo SPI é
mais um caso onde imperavam as arbitrariedades cometidas e violências pelo SPI contra
os índios, e que são denunciadas pelo Relatório Figueiredo. (CTI, 2013, p.43)
Após as investigações e averiguações de Jader Figueiredo na reserva de Rio das Co-
bras, em Laranjeiras do Sul – PR, Jader Figueiredo denunciou Raul de Souza Bueno por:
torturar índios; troca de índios para trabalho escravo; suplício de índios no “tronco”;
aluguel de índios para trabalho escravo; violências e arruaças; enriquecimento ilícito;
cárcere privado de índios; esbulho do trabalho indígena” (CORREIA, 1967, p. 5043).
Com seu território avassalado pelas colonizadoras em processo de ocupação desde
os anos 1950; afetados pelo reassentamento de famílias de agricultores que ocupavam
área dentro do Parque Nacional do Iguaçu, através do Projeto Integrado de Colonização

das melhores notícias que já recebi nos últimos 40 anos”, se emociona o advogado Jader de Figueiredo Correia Júnior, ao saber
que o relatório produzido por seu pai em 1968, sobre violação de direitos humanos de indígenas, foi encontrado quase intacto,
depois de mais de 40 anos desaparecido. “Eu tinha certeza de que ele tinha sido queimado. Diziam na época que tinha sido
proposital”, lembra o advogado, que reclama de o trabalho do pai ter sido escondido e ignorado na história do país, perpetrando
as injustiças constatadas. “Era uma voz solitária na ditadura, contra o AI-5 e contra um regime que censurava a imprensa”, diz.
O vice-presidente do Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, um
dos principais atores na recuperação do material, concorda: “Jader de Figueiredo foi uma figura republicana superinteressante,
apagada injustamente da história”. – Notícia disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2013/04/19/inter-
na_politica,373426/filho-se-emociona-ao-falar-do-trabalho-de-investigacao-feito-pelo-procurador-sobre-massacre-indigena.
shtml> . Em 2013, o grupo de pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica” (PUCPR) teve
acesso e disponibilizou o inteiro teor do relatório. Disponível em: <http://www.direitosocioambiental.org/relatorio-figueiredo/>
. A 6a. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF) também disponibilizou em: <http://6ccr.pgr.
mpf.mp.br/institucional/grupos-de-trabalho/gt_crimes_ditadura/relatorio-figueiredo>.

325
(PIC-Ocoí) do INCRA, que afetava diretamente a terra dos Avá Guarani; o megaproje-
to de Itaipu foi o golpe mortal para esse povo, consolidando um processo de migração,
dispersão e extermínio.

A criação do Parque Nacional do Iguaçu (PNI), em 1939, por meio do Decreto


-Lei N. 1035 gerou, assim, uma grande pressão fundiária na região em função do
tamanho da área a ser desapropriada e que incidia diretamente sobre o território
guarani, situação que ficará ainda pior nos anos 70 com a criação de Itaipu e o
alagamento do rio Paraná. […]
O decreto do PNI previa a retirada de toda presença humana de uma área com
extensão de 185.262 hectares, o que ocorreu oficialmente a partir de 1967, já
durante a Ditadura Militar (1964-1988), quando se iniciou o processo de levanta-
mento de desapropriação dos colonos que viviam ali. (CTI, 2013, p.25)

Logo, a militarização da política indigenista durante o período de vigência do AI-5


(1968-1978) fica evidente com a adequação aos princípios da Doutrina da Segurança
Nacional e seu binômio Segurança e Desenvolvimento. O órgão indigenista foi sendo ocu-
pado por militares egressos do Serviço Nacional de Informação (SNI) e do Conselho de
Segurança Nacional (CSN), o que resultou em uma política de não-demarcação de terras
dentro dos 150km estipulados como faixa de fronteira do Brasil. (CTI, 2013, p. 56-59)

A CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA ITAIPU BINACIONAL:


ARBITRARIEDADES E GRAVES VIOLAÇÕES AOS DIREITOS INDÍGENAS

Em 1980, com a publicação da obra “Taipa da Injustiça”, pela Comissão Pastoral


da Terra do Paraná (CPT-PR), o jornalista Juvêncio Mazzarollo denuncia a remoção
forçada e massacre dos Avá Guarani em virtude da construção da hidrelétrica Itaipu
Binacional, constituída em 1973, através do tratado assinado pelos generais presidentes
do Brasil, Emílio Médici e Alfredo Stroessner, do Paraguai. O tratado previa a concessão
à empresa Itaipu Binacional para explorar durante 50 anos o potencial hidrelétrico do
Rio Paraná, pertencentes aos dois países em forma de condomínio, desde e inclusive o
Salto de Sete Quedas de Guaíra até a foz do Rio Iguaçu. (MAZZAROLLO, 2003, p.13)
Denunciando os empreendimentos megalomaníacos bem ao gosto do regime mi-
litar (Transamazônica, Carajás, Tucuruí, Itaipu, etc.), Mazzarollo (op.cit., p.121) relata
que na margem esquerda do Rio Paraná, eram 25 famílias do grupo Avá Guarani, tam-
bém conhecido como Xiripá, que habitava área entre os rios Ocoí e Jacutinga, que teria
suas terras alagadas pela represa.
Mazzarollo (op.cit., p.123), reproduz a notícia do jornal Estado de S. Paulo (1978):

326
A Itaipu Binacional agirá com os índios da mesma forma que com os posseiros das
áreas a serem inundadas pela hidrelétrica. Quem tiver documentos de propriedade
de terra será indenizado em primeiro lugar; depois, os que possuem somente títu-
los provisórios, por estarem pagando as terras; e, finalmente, posseiros e ocupantes
diversos. Nessa última categoria é que estão os índios.

Da notícia, podemos observar o tratamento não diferenciado para a posse indí-


gena, no sentido da exigência de titulação para fins de indenização, como se tratasse de
posse civil e propriedade privada, ignorando a proteção constitucional ao direito origi-
nário, posse permanente e usufruto exclusivo dos indígenas, na época, ainda sob regime
de tutela, chamados “silvícolas”.

A célebre frase do General José Costa Cavalcanti, primeiro diretor-geral da Itaipu


Binacional, em que no período da liberação da ocupação na área, prestes a ser
inundada para formação da represa que geraria força energética para a hidrelétrica,
afirmou: “Os animais para o refugio, os índios para o Paraguai”. (CARVA-
LHO, 2015, p. 7)

A Funai mostrava-se mais preocupada em evitar atritos com a Itaipu do que am-
parar os índios, ao sugerir que a Itaipu não teria obrigação de indenizar os indígenas
nem de reassentá-los, pois seria atribuição da Funai transferir-lhes a uma área do Posto
Indígena Rio das Cobras, em Laranjeiras do Sul, Paraná, cerca de 200 quilômetros de
Foz do Iguaçu. (MAZZAROLLO, op.cit., p. 123).
Tal transferência caracteriza o deslocamento forçado, assim como eram mantidos
em regime de exploração de trabalho e semiescravidão pelo próprio órgão indigenista,
como podemos verificar no Relatório Figueiredo.

o empreendimento tencionou ainda mais a estrutura fundiária da região e gerou


uma nova onda de repressão sobre os índios e de pressão sobre as terras que ainda
ocupavam. O projeto da usina previu a inundação de uma área de 1350 km2
(cerca de 135 mil hectares), sendo 770km2 do lado brasileiro, incidindo sobre
os municípios de Foz do Iguaçu, Santa Helena, Marechal Cândido Rondon e
Guaíra, onde Itaipu abriu escritórios para conduzir o processo de desapropriação
e indenização das propriedades e cujo inventário foi feito por uma empresa de
Minas Gerais, a Matrix Engenharia. O decreto de Ernesto Geisel, aprovando a
delimitação da área necessária para a formação do reservatório foi publicado em
1979 (Decreto Federal No. 83.225). (CTI, 2013, p.56)

Em levantamento etnográfico, Carvalho (2015) identifica 32 aldeias que desapa-


receram entre os anos 1940 e 1980 no oeste do Paraná. Na mesma área, após 1982, so-
breviveram apenas duas aldeias, “quando a duras penas ressurgiram como compensação
de Itaipu, compensação esta profundamente questionável, o Oco’y, e, mais tarde o Ãne-

327
tete”: “Foi comprovado que um grande contingente de população indígena Guarani,
ocupava imemorialmente pelo menos 32 aldeias em território praticamente contínuo do
oeste paranaense, denominado pelos Guarani como parte do Tekoa Guassu”. Reproduzi-
mos aqui a indagação da antropóloga:

de que forma as populações Guarani, que detinham a posse imemorial de terras


de ocupação tradicional num amplo território entre Paraguai, Argentina e Brasil,
com comprovada ocupação tradicional em todo o oeste paranaense (32 aldeias),
territórios estes legalmente de propriedade da União, tornaram-se praticamente
"povos indígenas sem-terra", no decorrer do período dos anos 40 e 80 do século
XX? (CARVALHO, 2015, p. 14-15)

Entre os depoimentos do levantamento etnográfico realizado pela pesquisadora,


destacamos o depoimento da senhora Narcisa Tacua Catu de Almeida, que comprova a
evidente habitação Guarani em alguns locais da região de tradicional ocupação da etnia,
e ainda, suas várias e obrigatórias retiradas, seja por massacre ou expulsão:

Nasci no Oco’y-Jacutinga em 1924. Fui mora na aldeia Guarani em 1934. Morei


ali até 1943. Morava 50 família, na Aldeia Guarani, perto do Rio Iguaçu, lá onde
hoje é o Parque Nacional do Iguaçu. Afirma que na década de 1940, houve um
massacre, que ela e sua família assistiram escondidos na mata, emocionada, des-
creve: (...) guerra com os índio para tira os Guarani da terra: Eu vi, eu vi, mataram
tudo! Jogavam os índios nas Catarata, abriam a barriga com facão e jogava depois
nas Catarata (do Iguaçu). Enquanto fala ela demonstra com as mãos, o corte a
facão que era feito, do baixo ventre ao coração. Indagada do porque o corte assim,
ela afirma: era para o corpo não boiá, pra afunda! Continua: O cacique da Aldeia
Guarani (Téve) e a mulher dele (Aispis) foram tudo morto, e jogado nas Catarata.
Nesse massacre, tinha quatro padre: dois era amigo dos índio e dois que era contra
os índio, um de cada lado, que era "irmãos", brigaram muito e se mataram ali. A
Catarata é cemitério Guarani. Em 1944 fui mora na aldeia São João Velho. Mo-
ravam 40 família na aldeia São João Velho, perto da antiga Usina (Hidrelétrica)
São João (hoje desativada), perto do Rio São João. Eu morei lá de 1944 a 1962.
Depois tivemo que saí de lá também, os branco expulsou os Avá-Guarani. Tem o
cemitério lá, minha sogra, Siriaka Coronel Martinez, foi enterrada ali. Em 1962
fui mora na aldeia Colônia Guarani. (CARVALHO, 2015, p. 16-17)

Em relação ao esbulho da Itaipu Binacional, a autora relata que até 1976 ainda
permaneciam 32 famílias indígenas em pequena parcela de terras, encurralados junto às
margens do rio Paraná: “A área, apesar de fazer parte das terras de ocupação tradicional
Guarani, Itaipu declarou em um documento como perfazendo 29,5 hectares, em outro
100 hectares.” (CARVALHO, 2015, p. 27)

328
A população indígena Avá-Guarani (Guarani-Nhandeva) do Oco’y-Jacutinga teve
seu território de ocupação tradicional invadido por funcionários do INCRA em
1973. Dessa forma, ela foi compulsoriamente deslocada para pequena parcela do
próprio território indígena à margem esquerda do rio Paraná. Em 1982 essa área
restante foi inundada pela represa da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Cabe registrar
que o INCRA, desde 1971, conhecia o traçado das áreas que seriam inundadas
pela hidrelétrica. Dessa forma deu-se a perda total do território indígena. (CAR-
VALHO, 2013, p.346. )

Em 1981, no laudo antropológico realizado por Célio Horst, em apenas um dia


em campo, sem ouvir as declarações dos Guarani, Horst afirmou através dos “critérios de
indianidade” que das famílias existentes, espremidas numa parte mínima de seu território,
somente 4 (quatro) são reconhecidas como “verdadeiros indígenas”, os quais poderão re-
ceber “Títulos de Propriedade de Terras”, e portanto, serem indenizados como “posseiros”,
para em seguida serem evacuados rapidamente da área que Itaipu pretendia inundar.
Carlos Frederico Marés (1982, p.01) defendeu em parecer intitulado “Sobre a
forma de transmissão da propriedade e posse aos índios Avá Guarani do Rio Ocoí da
nova área a lhes ser destinada” que:

A ocupação da área pelos índios avá guarani às margens do rio Ocoí, por si só, ca-
racteriza a área como bem da União, (art. 4, VI da Constituição Federal) destinada
a posse e ao usufruto exclusivo das riquezas aos próprios índios e atribuindo-lhe
a qualidade de inalienável (art. 198, caput, CF), ficando declarada a nulidade e
extinção de efeitos jurídicos de qualquer ato que tenha como objeto o domínio ou
posse desse imóvel (art. 198, pár.1o, CF.)

Carvaho (2013, p.425-429), observa que a transferência da população, legalmen-


te deveria ser de todo o agrupamento indígena, para terras de igual extensão e ambiental-
mente semelhantes à anterior. Ocorre que a suposta “compensação” realizada pela Itaipu
Binacional, se deu através da titulação individual de apenas 04 lotes que seriam para 04
famílias Guarani, como se colonos fossem e em área sobreposta a Área de Preservação
Permanente (APP) do reservatório. Houve ainda a doação do título para mais 15 famí-
lias, iniciando o processo de confinamento do povo Guarani na área já diminuída, de-
vido à permanência dos colonos desapropriados, que não foram indenizados pelo Incra.
Carvalho (2015, p.33) destaca que:

outras famílias indígenas que estavam dispersas pela região também se dirigem ao
Oco’y. Não muito tempo depois a realidade se impôs, 60 famílias já habitavam o
Oco’y. Oco’y se apresentou superpovoado. Itaipu culpa os Guarani pelo fato, na
medida em que afirma: “enquanto vierem Guarani do Paraguai, está fechada a
conversa sobre compensação em terras”. Em 2004 eram 134 famílias cerca de 700
indivíduos. [...] Acuados os Guarani estabeleceram suas casas e roças próximo às

329
águas da represa. Com isso ela vem assoreando, encurtando novamente o espaço
de terras disponíveis aos indígenas. Estas águas além de poluídas por agrotóxicos
provenientes dos colonos, também são águas praticamente paradas, o que conta-
mina os Guarani com malária.

Diferente do Brasil, o Estado Paraguaio reconheceu oficialmente a sua “dívida históri-


ca com as comunidades indígenas Avá-Guarani afetadas pela Hidrelétrica de Itaipu-Binacio-
nal”, bem como a procedência das reclamações por danos e prejuízos, comprometendo-se a
promover e acompanhar ações para contemplar a reivindicação territorial. (CTI, 2013, p.5)
Itaipu Binacional é exemplo de modelo de degradação humana e ecológica que
nos serve de lição para os dias atuais. Ressalta-se que as violações cometidas no passado,
seguem ensejando violência e mortes, caracterizando um crime continuado, seja por
ação, seja por omissão do Estado brasileiro.
Sem uma justiça de transição aos povos indígenas afetados, o modelo de de-
senvolvimento predatório adotado pelo Estado brasileiro seguirá na repetição histórica
de uma conduta autoritária, antidemocrática e violenta que extermina grupos étnicos,
massacrando povos indígenas e ribeirinhos, como hoje se vê no caso “Belo Monte” no
rio Xingu, Pará e demais complexos hidrelétricos na Amazônia, como no Madeira (Ron-
dônia) e Tapajós (Pará).

ETNOCÍDIO EM CURSO: MASSACRES,


VIOLÊNCIA FÍSICA E SIMBÓLICA

As violações continuadas aos direitos dos Avá Guarani configuram um estado


permanente de atentados, que caracterizam o etnocídio em curso no Brasil. A situação
de violência física e simbólica que afeta os Guarani e Kaiowá do sul do Mato Grosso do
Sul e os Avá do oeste do Paraná tem sido denunciada há décadas, e só se agrava.
A relatora das Nações Unidas para os Povos Indígenas (ONU, 2016), em seu
comunicado oficial destacou a grave situação de violência, assassinatos, ameaças e inti-
midações contra os povos indígenas no Brasil perpetuados pela impunidade.

Uma questão de preocupação premente é a grande quantidade de ataques do-


cumentados e relatados contra povos indígenas. Em 2007, segundo o CIMI, 92
líderes indígenas foram assassinados, ao passo que em 2014 o número havia au-
mentado para 138. O estado de Mato Grosso do Sul foi o que registrou o maior
número de mortes. [...]
Com frequência, os ataques e assassinatos constituem represálias em contextos nos
quais os povos indígenas reocuparam terras ancestrais depois de longos períodos
de espera da conclusão dos processos de demarcação. Eu considero extremamente
alarmante que uma série desses ataques, que envolveram tiroteios e feriram po-

330
pulações indígenas nas comunidades de Kurusu Ambá, Dourados e Taquara, no
Mato Grosso do Sul, tenham ocorrido após minhas visitas a essas áreas. Ainda
mais alarmante é o fato que os povos indígenas têm relatado que nenhuma auto-
ridade estatal esteve nas áreas até agora. Eu condeno enfaticamente tais ataques
e conclamo o governo a pôr um fim a essas violações de direitos humanos, bem
como investigar e processar seus mandantes e autores. [...]
Um refrão recorrente entre todos os povos indígenas que visitei e encontrei foi
quanto à urgente necessidade de concluir os processos de demarcação, fundamen-
tal para todos os outros direitos dos povos indígenas.

Maria Lúcia Brant de Carvalho (2015, p.05) nos aponta que o poder político
institucionalizado, em relação aos Guarani do oeste do Paraná, vem agindo em épocas
distintas de forma semelhante:

antes e durante a ditadura militar trataram de esbulhar as terras indígenas, pos-


teriormente, em tempos considerados “democráticos”, trataram de manter o sta-
tus quo fundiário conseguido, sem permitir discussão a respeito. O que chama
atenção é que a tônica da política institucional oficial é a mesma em qualquer das
épocas. Os poderes, Executivo e Judiciário, colaboraram e continuam colaborando
para a manutenção da mesma situação. O primeiro descumpriu no passado todas
as determinações legais quanto aos direitos indígenas sobre as terras; descortinado
os fatos, o segundo faz tornar invisível todos os descumprimentos, legal e moral-
mente, inadmissíveis. O poder vem mantendo os Guarani que resistiram e insis-
tiram em ficar no Brasil, em contexto opressor: grande população comprimida
em mínimo espaço de terras, ambiental e sanitariamente comprometido, como
é o caso da Aldeia de Oco’y; ou, limitação do direito de ir e vir, controle sobre as
uniões entre os casais, sujeitos a exploração da força de trabalho em suas próprias
terras em sistema de barracão, como é o caso da Aldeia de Ãnetete.

Tratando da “pedagogia da crueldade” aplicada ao crime de gênero ocorrido na


Guatemala, Rita Segato define a crueldade expressiva que denota a existência de uma
soberania para-estatal que controla vidas e negócios em um determinado território. Po-
demos trazer as lições dessa definição ao caso Avá Guarani: “método que é característico
das novas formas de guerra não convencionais, inauguradas nas ditaduras militares la-
tino-americanas e guerras sujas contra as gentes, guerras internas, as guerras chamadas
étnicas” (SEGATO, 2016, p. 02).
Não obstante todas as denúncias internacionais, os ataques e ameaças aos Guarani
se agravaram no ano de 2016, em um contexto de retrocesso democrático, observa-se
que as forças conservadoras oligárquicas e antidemocráticas ganham espaço para incita-
ção ao ódio e ataques às comunidades indígenas em processos de retomadas.
Registra-se sobre o recente ataque aos Guarani Kaiowá, conforme apurou o Mi-
nistério Público Federal, que jagunços teriam sido contratados e financiados por pro-
prietários rurais para violentar e ameaças as comunidades. As investigações estão sendo

331
conduzidas pela Força Tarefa Avá Guarani, instituída pelo procurador geral da Repúbli-
ca, Rodrigo Janot, para apurar crimes contras as comunidades indígenas dessa região. O
ajuizamento das denúncias é a primeira de uma série de medidas a serem adotadas para
combater o conflito armado na região (CIMI, 2016).

O DIREITO CONSTITUCIONAL DOS POVOS INDÍGENAS E A


REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS

A Constituição de 1934 foi a primeira a dispor sobre a proteção às terras indíge-


nas: “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente
localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (artigo 129). Direito constitu-
cional que foi mantido nas Constituições de 1937 (Estado Novo, ditadura Vargas) e
Constituição de 1946, período de redemocratização.
Mesmo no contexto do golpe militar de 1964, a Constituição outorgada de 1967
acrescentou, no seu artigo 186, o direito à posse permanente das terras que os “silvícolas”
habitam e o usufruto exclusivo dos recursos naturais. Direito que foi mantido na Emen-
da Constitucional n. 1 de 1969, dispondo ainda que as “terras habitadas pelos silvícolas
são inalienáveis” (artigo 198) e em seu § 1o. dispõe que: “Ficam declaradas a nulidade e
a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio,
a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas”.
Um grande avanço na legislação e na ação governamental brasileiras ocorreu em
relação a proteção dos direitos dos povos e populações tradicionais durante o processo
de transição e redemocratização (1980-1988), pós ditadura militar. Este processo é fruto
da luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de seus direitos fundamentais, pela
primeira vez se organizando num movimento político a nível nacional.
No final dos anos 1970, lideranças de diversos povos passaram a se organizar
em um movimento de resistência que foi denominado de União das Nações Indígenas
(UNI). Os trabalhos da UNI se consolidaram com a defesa do anteprojeto da Constitui-
ção, que nas palavras de Ailton Krenak pela ocasião de seu discurso na Assembleia Na-
cional Constituinte (04 de setembro de 1987), “Esse texto procurou apontar para aquilo
que é de mais essencial para garantir a vida do povo indígena” (KRENAK, 2015, p.33).

Os trabalhos que foram feitos até resultar no primeiro anteprojeto da Constituição


significaram lançar uma luz na estupidez e no breu que tem sido a relação histórica
do Estado com as necessidades indígenas. Avançou no sentido de expandir a pers-
pectiva de um futuro para o povo indígena (KRENAK, 2015, p.34).

O capítulo VIII da Constituição, intitulado “Dos Índios”, em seu artigo 231 pre-
vê o reconhecimento da sua organização social, costumes, crenças, tradições e os direitos

332
originários das terras que tradicionalmente ocupam. Na superação da ótica assimilacio-
nista anteriormente vigente, conquistam o direito a continuar existindo como indígenas,
reconhecida a diversidade étnica, linguística e cultural do Brasil (artigo 231 e 216).

DIREITO ORIGINÁRIO ÀS TERRAS


QUE TRADICIONALMENTE OCUPAM

O instituto do indigenato existe desde o período colonial, ao considerar as “terras


possuidas por hordas selvagens collectivamente organisadas, cujas posses não estão sujei-
tas à legitimação, visto que o seu título não é a occupação, mas o indigenato (Alvará de
1o de Abril de 1680)”. (MENDES JUNIOR, 1912, p.64)
Os indígenas foram os “primeiros ocupantes e donos naturais destas terras”,
como, expressamente reconhecia o Alvará Régio. O fundamento do direito deles às ter-
ras está baseado no ‘indigenato’, que não é direito adquirido, e sim congênito. Logo, a
demarcação não dá nem tira direito, apenas evidencia os limites das terras indígenas.
(TOURINHO NETO, 1993)
Sobre a usurpação do territorial ancestral tradicional, Mariátegui destaca que per-
passa pelo período colonial, se agravando na república, com a ascensão da nova classe
dominante:

A aristocracia latifundiária da colônia, dona do poder, conservou intactos seus direitos


feudais sobre a terra, e por consequencia, sobre o índio. […] A república devia elevar a
condição do índio. E, contrariando seu dever, a república pauperizou o índio, agravou
sua opressão e exasperou sua miséria. A república significou para os índios a ascensão
da nova classe dominante que se apropriou sistematicamente de suas terras. Em uma
raça com costume e alma agrárias, como a raça indígena, esse despojo foi a causa de
uma dissolução material e moral. A terra sempre foi toda alegria do índio O índio des-
posou a terra, sente que ‘a vida vem da terra’ e volta à terra. Finalmente, o índio pode
ser indiferente a tudo, menos à posse da terra que suas mãos e seu alento lavraram e
fecundaram religiosamente. (MARIÁTEGUI, 2010, p. 63)

O instituto do indigenato se manteve no ordenamento jurídico brasileiro por


meio da Lei de Terras (Lei 601 de 1850), do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854
(que regulamentou a Lei de Terras), Constituições de 1934, 1937 e 1946 e da Emenda
de 1969, assim como do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001 de 1973) e Constituição de
1988 ao se referir aos “direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam”.

O conceito de posse civil não pode ser aplicado aos índios. A posse deles é ime-
morial, dentro de uma visão sociológica e antropológica. Para identificar se uma
posse indígena, é preciso observar se há, ainda, na área, palpitante influência in-

333
dígena, demonstrativa de que, há não muitos anos, os índios ali tinham o seu
habitat— tradicionalmente a ocupavam — e que dali foram expulsos, à força ou
não. (TOURINHO NETO, 1993, p.23)

As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas im-


prescritíveis (§ 4° do art. 231). Atente-se que o § 6° do art. 231 dispõe que são nulos e
extintos, não produzindo efeitos jurídicos os atos que tenham por objeto a exploração
das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos das terras indígenas.
Aos povos indígenas, é assegurado o direito as terras, territórios e outros recursos,
devendo essa especial relação ser respeitada, a fim de preservar as culturas e valores espiri-
tuais e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação (arts. 26 e 27, da Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas - ONU, 2007 - e arts. 13 e 14,
da Convenção n. 169 - OIT, 1989). 3
A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em
15 de junho de 2016 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA), dispõe em seu artigo XXV que os povos indígenas têm direito a possuir, utilizar,
desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da pro-
priedade tradicional ou outro tipo tradicional de ocupação ou utilização. Os Estados
assegurarão o reconhecimento e proteção jurídica dessas terras, territórios e recursos.
Dito reconhecimento respeitará devidamente os costumes, tradições e sistemas de posse
da terra dos povos indígenas. (OEA, 2016)
Em relação ao movimento circular dos Avá Guarani pelo território, frequente-
mente confundido como “práticas nômades”, importante notar o contexto de ameaças
iminentes, tratando-se de um movimento, muitas vezes, forçado. Nesse sentido, Carva-
lho (2015, p.7) salienta que:

No que se refere às terras ocupadas foi verificado que os Guarani foram forçados
pelo poder estatal, a praticaram um movimento circular pelo território, em que
cada terra indígena invadida a força de armas, massacres e expulsões, buscavam
refúgio noutra terra, que por sua vez também era alcançada, se instalando pro-
cessos de esbulho em todas elas. Desta forma o poder institucional diminuiu o
numero de aldeias ou de terras tradicionais de ocupação dos indígenas, através
da expulsão, não reconhecimento do direito possessório dos indígenas sobre as
terras, seguida de ocupação por não índios.

No artigo XIX da Declaração Americana: “Os povos indígenas têm o direito a viver
em harmonia com a natureza e a um ambiente são, seguro e sustentável, condições essenciais
para o gozo dos direito à vida, a sua espiritualidade, cosmovisão e bem-estar coletivo”.

3
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002, aprovada pelo Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de
2002, sendo promulgada pelo Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004.

334
Trata-se da superação da terra enquanto propriedade privada. Assim como, ob-
serva-se o direito à vida em sua concepção ampla, como direito à existência enquanto
coletividade.
Nesse sentido, destacam-se os precedentes da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, no caso Mayagna Awas Tingni Indigenous vs. Nicarágua (Corte IDH, 2001),
reconheceu que os povos indígenas, em virtude de sua existência, têm o direito de viver
livremente em suas próprias terras e ter seus direitos ligados a ela. A Corte considera a
estreita ligação dos povos com suas terras tradicionais, ampliando a interpretação do art.
21 da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).
Destaca-se ainda, a interpretação da Corte IDH em convergência com os princí-
pios e direitos previstos na Convenção n. 169 da OIT e Declaração da ONU de 2007.
Os direitos territoriais, portanto, estão estritamente ligados ao direito à vida e à integri-
dade dos povos indígenas enquanto grupos coletivos portadores de identidade étnica.

PEC 215 E A INCONSISTÊNCIA DO MARCO TEMPORAL4

Entre as ameaças atuais de violação de direitos no âmbito do Legislativo, é a


proposta de emenda à Constituição PEC n. 215/2000 a mais grave, pois pretende trans-
ferir a competência do Poder Executivo na demarcação de terras para que o Congresso
Nacional dê a última palavra.
A PEC 215 relativiza cláusulas pétreas, afeta direitos e garantias fundamentais e o
princípio da separação dos poderes. Apesar dessa inconstitucionalidade, o parecer do relator
Deputado Osmar Serraglio da Frente Parlamentar do Agronegócio (bancada ruralista) foi
aprovado em Comissão Especial em 27 de outubro de 2015 na Câmara dos Deputados.
Além de não serem consultados, tem sido vedada a legítima participação de re-
presentantes desses povos durante o processo legislativo, especialmente, nos espaços das
comissões que tratam e aprovam a matéria no âmbito do Congresso Nacional, o que
gerou os protestos da mobilização nacional indígena, coordenada pela Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo assuntos indígenas,
e, especialmente no caso envolvendo a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol  dos  Macuxi, Wapixana, Ingariko, Patamona e Taurepang de Roraima (2009), ob-
serva-se que o STF tem ignorado os instrumentos jurídicos internacionais de proteção
aos direitos dos povos indígenas. Essa constatação é verificada nas 19 condicionantes
no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (povos Ingarikó, Taurepang, Patamona,
4
Esta seção está baseada no artigo: SILVA, Liana Amin Lima da; MARÉS, Carlos Frederico. Marco temporal como
retrocesso dos direitos originários indígenas e quilombolas. In: TARREGA; WOLKMER; MARÉS. Os direitos ter-
ritoriais quilombolas, além do marco temporal. Goiânia: Ed. PUC-Goiás, 2016. p. 50-78.

335
Wapixana e Macuxi). 5 Tais condicionantes representam restrições nos direitos dos povos
indígenas garantidos pela Constituição, além de ignorar o que dispõe a Conv. 169 da
OIT e Declaração da ONU de 2007.
Além das 19 condicionantes, a invenção do critério “marco temporal” (marco
objetivo) da ocupação para fins de demarcação das terras indígenas como sendo a data
da promulgação da Constituição Federal, que deverá ser verificado conjuntamente ao
“marco da tradicionalidade” significa restrições aos direitos originários dos povos indíge-
nas garantidos na própria Carta Constitucional.
Tal critério refletiu na recente decisão do STF afetando os Guarani Kaiowá (Terra
Indígena Guyraroká, Mato Grosso do Sul), no qual a Segunda Turma “reafirma as diretrizes
que o Plenário do STF estabeleceu na decisão proferida na Pet. 3.388/RR, notadamente
aquela que definiu como marco temporal ineliminável, o dia 05/10/1988, data da promulga-
ção da vigente Constituição da República”, declarando a nulidade do processo administrati-
vo de demarcação da Terra Indígena Guyraroká, que havia sido declarada, pela União, como
área de posse imemorial da etnia Guarani-Kaiowá, integrando a Terra Indígena Guyraroká.
Ainda que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tinha posicionamento contrário:

O acórdão do Superior Tribunal de Justiça reitera que “a comunidade Kaiowá


encontra-se na área a ser demarcada desde os anos de 1750-1760, tendo sido desa-
possados de suas terras nos anos 40 por pressão dos fazendeiros”, mas que alguns
permaneceram na região “trabalhando nas fazendas, cultivando costumes dos seus
ancestrais e mantendo laços com a terra”. Nos termos da decisão do STJ, esse fato
seria suficiente para legitimar a demarcação pretendida.6

Contudo, nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Ministra Cármen Lúcia, é
retomado o fundamento do “marco temporal”. O voto do relator Min. Gilmar Mendes
na contramão dos direitos indígenas, afirma que “o marco temporal relaciona-se com a
existência da comunidade e a efetiva e formal ocupação fundiária”, não compreendendo-
se como posse imemorial.
O STF desconsidera, portanto, que esses povos – Guarani Kaiowá (sul do Mato
Grosso do Sul) e Avá Guarani (do oeste do Paraná) – foram expulsos de suas terras
ancestrais no período da ditadura militar no Brasil, o que ficou evidente no Relatório
da Comissão Nacional da Verdade Indígena, publicado em dezembro de 2014 (CNV,
2014). Hoje, muitas das comunidades se encontram em processo de reivindicação e
reconquista de seus direitos originários que foram usurpados.

5
Supremo Tribunal Federal (STF). Petição 3.388 Roraima. Relator: CARLOS BRITTO, Data de Julgamento:
03/04/2009. Data de Publicação: DJe-071 DIVULG 16/04/2009 PUBLIC 17/04/2009). Petição 3.388-4 Roraima.
Referência à consulta prévia e Conv. 169 da OIT. Voto-Vista Min. Marco Aurelio. p.62, 63, 66.
6
Voto-Vista Relator Ministro Gilmar Mendes. Supremo Tribunal Federal (STF). Segunda Turma. Recurso Ordinário
em Mandado de Segurança 29.087 DF, decisão em 16/09/2014. Inteiro teor do acórdão. Extrato de Ata: p. 71-73.

336
Após essa decisão (no âmbito do RMS 29087-STF), a invenção jurisprudencial
do critério do marco temporal foi incorporada à proposta substitutiva da PEC 215. A
Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou o substitutivo em 27 de outu-
bro 2015, relatório contaminado pela visão já superada de integração dos indígenas à
comunhão nacional, defendendo os interesses da Frente Parlamentar do Agronegócio,
inclusive com a mudança no que concerne à indenização aos proprietários com títulos
incidentes em territórios indígenas, o que pela Constituição (artigo 231, § 6º), tais títu-
los seriam nulos e extintos.
Ao consubstanciar a posição do marco temporal, o STF nega a existência de mui-
tas comunidades e povos indígenas, ao considerar a data da promulgação da CF para fins
de verificação do fato em si da ocupação fundiária. Tratando-se de terras indígenas, não
se pode restringir a interpretação como se a Constituição se referisse ao sentido jurídico
de se comprovar a posse civil.
No cerne dessa discussão, importante frisar que o sentido da expressão “tradicio-
nalmente ocupam” (Art.231) e “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” (Art.
20, XI) dá conteúdo à existência do grupo étnico. O legislador constituinte ao dispor os
verbos no presente não se referiram a data da promulgação da Constituição, mas sim à
existência contemporânea dos povos indígenas. Na interpretação da Constituição não
encontramos fundamento para o marco temporal de comprovação da “posse indígena”
na data da promulgação da Constituição Federal (05 de outubro de 1988).
Diferentemente, o que a Constituição dispõe no artigo 67 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias é o prazo de 05 anos do dever da União em concluir as
demarcações de terras indígenas a partir da promulgação, o que não foi cumprido pelo
Estado brasileiro.

que direito está protegido? E a resposta continua a mesma, o que deve ser pro-
tegido é a existência, preservação e manutenção da comunidade em toda a sua
condição social, econômica e, especialmente, cultural. O que se está preservando
é a comunidade, portanto. A terra é condição para a manutenção da comunidade
a quem a lei estabelece o direito. É claro que a expressão “ocupam terras” ou “este-
jam ocupando” não é o mesmo que mantenham posse atual, como tecnicamente
seria dito caso o que se estivesse protegendo fosse a posse atual ou contemporânea
a 1988. (MARÉS, 2015, p. 87)

Na fundamentação e decisões no âmbito dos tribunais, não deve haver espaço para
argumentos leigos e racistas como os que restringem a interpretação do direito originário à
terra como à posse imemorial e pré-colonial, no sentido de que os povos indígenas pode-
riam reivindicar o território de todo o país e especialmente o território onde se desenvolve-
ram cidades e metrópoles brasileiras. Esse discurso político em tom fascista é de um vazio
e absurdo em termos jurídicos que não deveria ser propagado nos tribunais.

337
Assim como atualizadas as definições de povos e de propriedade no século XXI,
também devemos atualizar a interpretação do direito originário à terra, no sentido do
direito à terra desde o surgimento de determinado povo ou comunidade. O sentido de
direito congênito permanece, pois trata-se de direito que nasce com o surgimento da
própria comunidade.

A relação com o território dos indígenas é fundamental para a efetivação de sua


dignidade. O território é patrimônio coletivo de todo um povo, de seus usos e
costumes, basta observar que a luta é construída em torno da expressão Tekoha,
que envolve a construção simbólica de outro jeito de ser num espaço onde sua
ancestralidade está presente. (DHESCA, 2014, p. 41)

Logo, o direito originário à terra se vincula ao direito à existência coletiva do povo


Avá Guarani. Os povos indígenas podem se afastar do seu território, mas não perdem a
identidade ligada ao seu lugar de origem, território no qual forjaram sua cultura e sua
sociedade.

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA E POVOS INDÍGENAS

A justiça de transição caracteriza-se por reger processos de passagem de regimes


autoritários para regimes democráticos, ocorridos mais ou menos a partir de meados dos
anos 1980 no Brasil e América Latina, a fim de garantir o direito à verdade, memória,
reconhecimento oficial de violações cometidas pelo Estado, política de reparações e ga-
rantias de não repetição.
Segundo a definição adotada pelo Dicionário de Direitos Humanos (ESMPU,
2010), baseada no documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU – UN
Security Council – The rule of law and transicional justice in conflict and post-conflict socie-
ties, a justiça de transição é conceituada como o conjunto de abordagens, mecanismos
(judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do
passado, para atribuir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memória
e à verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e garantir a não
repetição das atrocidades.

El campo de “justicia transicional” —una red internacional de personas e instituciones


cuya coherencia interna se sustenta en conceptos comunes, objetivos prácticos y derechos
de validez personal— empezó a surgir como respuesta a estos nuevos dilemas prácticos
y como un intento de sistematizar el conocimiento que se estima útil para resolverlos. El
campo de la justicia transicional, así definido, emergió directamente de un conjunto de
interacciones entre activistas de derechos humanos, abogados y académicos del campo
jurídico, legisladores, periodistas, donantes y expertos en política comparada interesa-

338
dos en el tema de derechos humanos y la dinámica de las “transiciones a la democracia”
que empezó a finales de la década de los ochenta. (ARTHUR, 2011, p. 78)

Baldi (2016) nos alerta sobre a justiça de transição como passagem de um regime
autoritário para um regime democrático, assentando-se no direito à verdade, direito à
justiça, reparações históricas e reformas institucionais ao questionar que:

o conceito de justiça de transição continua sendo eurocentrado e necessita novos


questionamentos, pois está por demais pensado a partir do Norte, como incomple-
tude, de forma a naturalizar, no contexto latino-americano a ausência de democra-
cia, ignorando, ademais, as inúmeras formas de resistência, re-existência e formula-
ções populares que foram invisibilizados pela versão hegemônica estatal. [...]
Em decorrência da centralidade dada à discussão da memória em relação a padrões
eurocentrados, é urgente que sejam trabalhadas outras formas, conceitos e acepções
de memória, incorporando novos instrumentos de análise. Neste ponto, a oralidade
e toda a história oral, muito presentes nos povos afros e indígenas, coloca novos de-
safios para as pesquisas a serem realizadas. Desafios epistêmicos e também metodo-
lógicos. Disso decorre, por sua vez, o próprio repensar das reparações e das tentativas
de não repetição, a partir de outras genealogias de memórias e de resistências, em
especial a partir dos movimentos afros e indígenas. (BALDI, 2016, p.05)

Em alguns países latino-americanos como Argentina, se discute a “justicia re-


troactiva” (NINO, 2015), contextualizando os crimes e violações de direitos humanos
cometidos pelo Estado durante o golpe de 1966 e a ditadura militar (1976-1980).
Já na Colômbia, a justiça de transição que se discute hoje, com consideráveis
avanços na sua concretização, é contextualizada no processo de paz (Acuerdo de Paz)
firmado em La Habana entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e
o Governo colombiano (Presidente Juan Manuel Santos) no contexto do pós-conflito.
A Ley 1424 de 2010 dispõe sobre as disposições da justicia transicional que garantam
a verdade, justiça e reparação às vítimas. A Lei de Vítimas (Ley 1448 de 2011) prevê
como um de seus componentes os processos judiciais de restituição de terras usurpadas
dos campesinos pelos paramilitares e civis favorecidos, criando-se a jurisdição especial
de restituição de terras.
Na Colômbia, a restituição de terras é considerada um direito fundamental. Esse
caráter está vinculado às noções de conceito de vítima do conflito, conceito de deslocado
vítima do conflito e reparação integral como direito fundamental. Considera-se que as
vítimas (incluindo os sujeitos coletivos, como grupos étnicos) são titulares dos direitos
fundamentais à justiça, à verdade e à reparação. No caso específico do direito à repara-
ção, o direito das vítimas é um direito à reparação integral, que implica em: restituição,
indenização, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição. (QUINCHE RAMÍ-
REZ; PEÑA HUERTAS, 2015)

339
Na sentença T-025 de 2004, a Corte Constitucional da Colômbia considerou as
condições de vulnerabilidade extrema dos peticionários e as omissões das autoridades
públicas diante de uma situação de violações massivas, prolongadas e reiteradas, que
obedece a um problema estrutural de toda política pública de atenção desenhada pelo
Estado até constituir um estado de coisas inconstitucional.
No contexto da América Latina, salvo no caso do Chile, não houve uma comissão
da verdade que se ocupasse da violação massiva de direitos especificamente indígenas,
como direitos ao território, à jurisdição própria e à própria cultura, direitos que hoje são
tidos por direitos humanos em virtude da Declaração das Nações Unidas sobre os Direi-
tos dos Povos Indígenas (2007), apontou Bartolomé Clavero (2014, p. 02).
A Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas recentemente apro-
vada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), dispõe
em seu artigo VI sobre os direitos coletivos dos povos indígenas indispensáveis para sua
existência, bem-estar e desenvolvimento integral como povos.
Sobre a discussão que a Declaração não é hard law, vale lembrar que os direitos ali
reconhecidos e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas
constituem as normas mínimas para a sobrevivência, dignidade e bem-estar dos povos
indígenas das Américas (artigo XLI da Declaração Americana).
Destacamos ainda o artigo XXX da Declaração recém-aprovada, tratando especi-
ficamente do direito a paz, à segurança e a proteção, dispõe que “os povos indígenas têm
direito à proteção e segurança nas situações ou períodos de conflito armado interno ou
internacional conforme o direito internacional humanitário”.
O questionamento que Bartolomé Clavero nos propõe é o seguinte: “Hacen falta
comisiones de verdad y otros procedimientos de justicia transicional distintos y especí-
ficos ante la violación masiva de derechos humanos en el caso indígena?” (CLAVERO,
2014, p.02)
Clavero aponta a seguinte crítica ao caso do Chile:

El Informe de la Comisión Verdad Histórica y Nuevo Trato con los Pueblos In-
dígenas, como es el nombre más extensor que le adjudica finalmente la edición
de 2008, nació ya fallido. El fallo principal de nacimiento, que el propio informe
asumió y ratificó, fue el de que no se hiciera relación de la commission de verdad
con la justicia. La primera cobra sentido con respecto a la segunda en coyunturas
de transición, de una transición que para el caso indígena no es de salida de alguna
dictadura, sino de superación de una forma de Estado que, constitucional y todo,
sistemáticamente ignora y viola derechos indígenas. (CLAVERO, 2014, p. 05)

Tal crítica nos serve para reflexão aqui proposta e é aplicada ao caso do Brasil, na
mesma direção da crítica apontada por Marcelo Zelic sobre a falta de prioridade da Co-
missão Nacional da Verdade nas questões e violações indígenas, que trataremos a seguir.

340
Constata-se que, apesar das iniciativas no âmbito do Ministério da Justiça com
a Comissão da Anistia e Comissão da Verdade, e apesar das iniciativas estaduais, ainda
estamos distantes da concretização de uma justiça de transição no Brasil, sobretudo em
relação à necessária reforma das instituições no âmbito dos três poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário) para proteção, promoção e defesa dos direitos humanos.

COMISSÃO NACIONAL INDÍGENA DA VERDADE

No contexto brasileiro, a Comissão Nacional da Verdade constituiu um grupo


de trabalho sobre violações sofridas pelos povos indígenas durante a ditadura militar no
Brasil, coordenado pela comissionada Maria Rita Kehl, dedicando no relatório final um
capítulo às violações e atrocidades cometidas aos povos indígenas.

“Os índios não podem impedir a passagem do progresso [...] dentro de 10 a 20


anos não haverá mais índios no Brasil”. (Ministro do Interior Rangel Reis, janeiro
de 1976). […]
A edição do Ato Institucional n° 5 (AI-5), em 13/12/1968, marcou o aprofunda-
mento da violência estatal contra os indígenas, da repressão ao movimento políti-
co-indigenista e do controle da política indigenista pelos aparelhos de segurança,
segundo os ditames da doutrina de segurança nacional. (MPF, 2015, p.03-04)

Pela primeira vez, um estudo e relatório oficial constata e reconhece os massacres


e torturas aos povos indígenas cometidos pelo Estado brasileiro nesse período como
crimes da ditadura.

Por todos os fatos apurados e analisados neste texto, o Estado brasileiro, por meio
da CNV, reconhece a sua responsabilidade, por ação direta ou omissão, no esbu-
lho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais
graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas
articuladas em torno desse eixo comum. (CNV, 2014, p. 247)

O que a primeira vista pode parecer um avanço, a relevância dada ainda é pe-
quena no Brasil, num contexto tardio de transição, ainda que o número de vítimas das
arbitrariedades e atrocidades cometida pelo Estado, que era de cerca de 400 vítimas (não
indígenas) mortas em torturas no enfrentamento com o Estado, se some aos 8.350 in-
dígenas mortos, sem contar os camponeses e vários outros segmentos da sociedade que
não foram computados.
Marcelo Zelic, aponta criticamente que o relatório da Comissão Nacional da
Verdade (CNV) é o reflexo da falta de aprofundamento e valorização da pesquisa sobre
indígenas, camponeses e outros segmentos da sociedade vítimas da ditadura militar.

341
A Comissão Nacional da Verdade, vem buscar a verdade em todos os seus aspec-
tos. Índios, camponeses, questão da perseguição à gênero, religiosos, ficaram no
segundo tomo; Todos esses contextos, esses focos, recortes de um estudo com re-
lação à violência contra segmentos da sociedade, ficou relegado no segundo tomo,
como se fossem textos de cada um dos seus comissionados responsáveis; isso é
muito ruim, esse entendimento. (...) Então, essa separação vem para não se traba-
lhar o tema. (ZELIC, 2015)

Entre os possíveis desdobramentos da CNV, um deles são os desdobramentos


judiciais. Zelic destaca que as recomendações da CNV tem esse aspecto de se levantar
a necessidade de se proceder a um processo judicial contra essas pessoas que praticaram
torturas, assassinatos, mas também tem vários outros aspectos. Nesse sentido, destaca
que a mudança de conduta do Estado é fator fundamental para a transição.
Exemplifica com o caso que em pleno ano de 2014 forças do Exército atuaram
no sul da Bahia, em missões de garantia da lei e da ordem em território Tupinambá,
sendo que foram profundamente violentos no trato com a população, havendo relatos
de tortura, perseguição com tiros em confronto com a população. E questiona: “Qual é
o papel do Exército em 2014 para cuidar de uma questão de terra?”
Ressalta que nosso problema não será resolvido somente com a revisão da Lei
de Anistia e condenação de torturadores, mas é necessário também uma mudança de
conduta do próprio Estado.
Acerca da necessária revisão da Lei da Anistia e necessária revisão do posicio-
namento do STF (julgamento na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADPF n. 153/2008), destacamos a conclusão do voto fundamentado de Roberto Caldas
(Presidente da Corte IDH; na época, Juiz Ad Hoc) 7 :

Finalmente é prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a doutrina in-


ternacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como
as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excludentes de
punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de
punir os crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências
de um indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e
nas transmissões por gerações de toda a humanidade.

Com relação a violações a povos indígenas, o primeiro caso analisado na Comis-


são de Anistia foi o caso envolvendo os Aikewara-Suruí do Pará, afetados pela repressão
à Guerrilha do Arauguaia, no período da ditadura militar. Apesar de ter sido concedida

7
A Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença do caso Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrrilha
do Araguaia”) vs. Brasil (sentença de 24 de novembro de 2010), julgou a Lei de Anistia (Lei 6.683 de 1979) como in-
compatível com a Convenção Americana em casos de graves violações de direitos humanos. Assim como nos casos: Corte
IDH. Caso Barrios Altos vs. Perú. Fondo; Caso Gelmán vs. Uruguay referente às leis de anistia dos respectivos países.

342
a anistia política e indenização a 14 Aikewara-Suruí, observa-se que a reparação integral
e coletiva ainda não correu no referido caso, sobretudo no que se refere à demarcação da
terra indígena. (FUNAI, 2014)
Alguns casos como dos Waimiri-Atroari (Amazonas) e dos Krenak (Minas Gerais)
ganharam visibilidade e colaboraram para que a CNV, em 2014, se preocupasse em
compor um estudo específico dos povos indígenas vítimas da ditadura.
O massacre dos Kiñá (Waimiri-Atroari) foi documentado em um relatório fruto do
trabalho dos indigenistas Egídio Schwade e Doroti Schwade (in memoriam), do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). O relatório foi encaminhado à Assembleia Legislativa do
Estado do Amazonas, o que ensejou a formação do Comitê Estadual de Direito à Verdade,
à Memória e à Justiça do Amazonas e resultou publicado em livro intitulado “A Ditadura
Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari: por que Kamña matou Kiña”.
Nesse relatório, observa-se os desenhos dos indígenas, fruto de um exercício de
alfabetização baseado no método de Paulo Freire. Desenhos que eram feitos nas comuni-
dades e depois discutidos em aula, vindo a resgatar a memória narrativa traumática dos
sobreviventes (muitos ainda crianças) das cenas de horror vividos e começam a questionar:

“Por que Kamña (civilizado) matou Kiña (Waimiri Atroari)?” “O que é que
Kamña jogou do avião e matou Kiña?” Kamña jogou kawuni (de cima, de avião),
igual a pó que queimou a garganta e Kiña logo morreu”. Os índios se referiam a
FUNAI e as Forças Armadas que foram então os responsáveis pelo destino deste
povo. (COMITÉ ESTADUAL DA VERDADE –AM, 2012).

Referem-se ao momento em que aviões sobrevoavam e atacavam com bombas


químicas e metralhadoras a população vulnerável, exterminando aldeias inteiras, pro-
cesso sistemático de extermínio para exploração de seu território, especialmente para a
construção da rodovia BR 174, construção da hidrelétrica Balbina, grilagem de terras e
exploração minerária.
O relatório sobre as ações do massacre, devidamente documentado pela pesquisa
realizada pelos missionários ao longo de suas vidas se dedicando à causa Waimiri-A-
troari, nos revela ação planejada como política de Estado, ainda que a ação de matança
tenha sido apoiada também em ações de empresas de jagunços (milícias armadas), com
o consentimento do Exército. (Schwade, 2011)

Não restam dúvidas de que o Governo Militar, utilizando-se de aparatos bélicos e


em favor de interesses privados, cometeu o genocídio dos Waimiri-Atroari”. Essa é
a conclusão do Comitê Estadual da Verdade sobre a ação do Estado Brasileiro con-
tra esse povo indígena por ocasião da abertura da rodovia BR-174 (Manaus-Boa
Vista), iniciada na década de 1960 e que resultou na redução de três mil, em 1972,
para pouco mais de 300 indivíduos em 1986. (Schwade, 2012)

343
Sobre a construção da UHE de Balbina, atingindo o território dos Waimiri-Atroari,
assim como da UHE Itaipu Binacional, houve um discurso insistente que negava a presen-
ça indígena na região, atribuindo-se a “acentuada tendência migratória dessas populações”,
como verifica-se na resposta do Presidente da Eletronorte, Douglas Souza Luz, em 17 de
março de 1983. (COMITÊ ESTADUAL DA VERDADE - AM, 2012, p.29)
No caso das violações ao povo Krenak, identifica-se três episódios emblemáticos:
a criação da Guarda Rural Indígena; a instalação do Reformatório Krenak, um presídio
para indígenas no município de Resplendor, MG, onde foram aprisionados indígenas de
diversas etnias de todo país; e o deslocamento forçado de indígenas de 23 etnias, incluindo
Krenak para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, MG, funcionando como
centro de detenção arbitrária de indígenas após a extinção do Reformatório Krenak.
A cena de horror retratada desse caso é a do desfile de formatura da primeira tur-
ma da Guarda Rural Indígena (GRIN), em 1970. Nesse desfile, os militares exibem com
orgulho um índio dependurado num pau de arara, instrumento muito utilizado pela
tortura nos porões da ditadura. “O desfile oficial da GRIN traz demonstração pública
de como técnicas de tortura foram ensinadas aos indígenas pela Polícia Militar, como
mecanismo legítimo a ser empregado contra a população civil.” (MPF, 2015)
A CNV reconheceu que o Reformatório Krenak assumiu um caráter de “campo
de concentração” e “prisão domiciliar”. O Ministério Público Federal (MPF) em Ação
Civil Pública, interposta em 10 de dezembro de 2015, verifica o concurso da União e
do Estado de Minas Gerais no etnocídio em questão. Os Krenak quase chegaram a ser
extintos durante a ditadura militar. (MPF, 2015, p.89-91)
Em relação ao dever de reparação, faz-se referência ao art. 37, §6° da Constituição
da República, que dispõe: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qua-
lidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos
casos de dolo ou culpa”.
No caso em questão, o MPF ressalta sobre a necessidade de reparações que permi-
tam: (i) o fortalecimento da identidade e da autoestima dos indivíduos e da coletividade
Krenak; (ii) o resgate e o fortalecimento da cultura Krenak; (iii) a garantia do direito à
memória, visando à não-repetição das violações perpetradas.

Ainda que os atos de violência contra os Krenak tenham se dado na vigência do an-
tigo sistema constitucional, a perpetuação de seus efeitos na atualidade importa em
ofensa a direito fundamental dos indígenas e de toda a sociedade brasileira, que tem
direito à preservação de seu patrimônio cultural imaterial. Deve o Estado, portanto,
em obediência à Constituição da República de 1988, reparar a desagregação cultural
infligida ao Povo Krenak, criando condições para que os elementos estruturantes de
sua cultura, contra a qual o próprio Estado atuou para destruir, possam prosperar,
segundo os desejos e projetos de vida dos indígenas. (MPF, 2015, p. 92-95)

344
Entre as medidas requeridas pelo MPF, no pedido fundamentado de antecipação
de tutela jurisdicional, acertadamente, entre os pedidos que visam obrigar solidariamen-
te a União, a Funai, o Estado de Minas Gerais e a Fundação Rural Mineira a: “1.1 – pro-
mover, com a participação dos indígenas Krenak – e após realização de consulta livre e
informada a este povo –, a recuperação ambiental de suas terras, esbulhadas e degradadas
durante o período da ditadura militar” […]. E solidariamente a União e a Funai a: “2.1
– concluir o processo administrativo Funai n° 08620-008622/2012-32, de Identificação
de Delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões/MG, no prazo de um ano”;
entre outros pedidos de reparação, destacam-se também os referentes à revitalização da
língua Krenak que foi quase extinta no período das violações, assim como medidas de
caráter educativas no que concerne ao direito à memória.
Entre os pedidos, o MPF requer a condenação solidária da União, da Funai, do
Estado de Minas Gerais e da Fundação Rural Mineira a realizar cerimônia pública na
Terra Indígena Krenak, com a presença de altos representantes do Poder Executivo Fe-
deral e Estadual, durante a qual seja feito pedido público de desculpas ao Povo Krenak
pelas graves violações de direito perpetradas contra esta etnia durante a ditadura militar.
Com os casos exemplificativos acima, pretendemos corroborar o entendimento que
versa sobre a necessidade pendente de reparação aos povos indígenas afetados pelas violações
durante a ditadura militar. No caso do Paraná, uma investigação específica sobre os crimes,
massacres e violações ocorridos durante a construção do megaprojeto da hidrelétrica Itaipu Na-
cional, que reflete na configuração de etnocídio guarani, um crime lento, porém continuado.
É urgente a demarcação das terras Avá Guarani, pois seguem como vítimas da omis-
são do Estado brasileiro, sendo frequentemente atacados por pistoleiros (jagunços) a mando
de fazendeiros que reivindicam serem os “legítimos” donos das terras devido aos títulos con-
cedidos pelo Estado do Paraná sobrepostos ao território Avá Guarani no período da ditadura.
No âmbito da CNV, foram estabelecidas 13 (treze) recomendações específicas para
indígenas, diretrizes no âmbito da justiça transicional, conforme quadro abaixo (grifo nosso).

- Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho
das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob
sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de
um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos.
- Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Es-
tado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas visando a colonização de
suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação
política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena.
- Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo
das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofun- dar
os casos não detalhados no presente estudo.

345
- Promoção de campanhas nacionais de informação à população sobre a importância
do respeito aos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição e sobre as
graves violações de direitos ocorridas no período de investigação da CNV, considerando
que a desinformação da população brasileira facilita a perpetuação das violações descritas
no presente relatório.
- Inclusão da temática das “graves violações de direitos humanos ocorridas contra os
povos indígenas entre 1946-1988” no currículo oficial da rede de ensino, conforme o
que determina a Lei nº 11.645/2008.
- Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves
violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por órgãos públicos
e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e educativa, incluindo-se investiga- ções
acadêmicas e obras de caráter cultural, como documentários, livros etc.
- Reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à
apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas
no período investigado pela CNV, visando ampla divulgação ao público.
- Reconhecimento pela Comissão de Anistia, enquanto “atos de exceção” e/ou enquanto
“punição por transferência de localidade”, motivados por fins exclusivamente políticos,
nos termos do artigo 2º, itens 1 e 2, da Lei nº 10.559/2002, da perseguição a grupos in-
dígenas para colonização de seus territórios durante o período de abrangência da referida
lei, visando abrir espaço para a apuração detalhada de cada um dos casos no âmbito da
Comissão, a exemplo do julgamento que anistiou 14 Aikewara-Suruí.
- Criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para organizar
a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas atingidos por atos de
exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural
Indígena, bem como aos demais casos citados neste relatório.
- Proposição de medidas legislativas para alteração da Lei nº 10.559/2002, de modo a
contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos indígenas.
- Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no
âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-
SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva.
- Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma
de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período in-
vestigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial
aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988.
- Recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas e degradadas como forma
de reparação coletiva pelas graves violações decorrentes da não observação dos direitos
indígenas na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos rea-
lizados entre 1946 e 1988.

Quadro 1. CNV. 13 recomendações específicas para indígenas. Comissão nacional


da verdade - relatório - volume ii - textos temáticos - dezembro de 2014.

346
Na ocasião da sessão de julgamento do caso Aikewara-Suruí no âmbito da Comis-
são da Anistia, Sonia Bone Guajajara - Coordenadora Geral da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB), afirmou em seu discurso que:

O caso dos parentes Aikewara é apenas um dentre os muitos povos indígenas


que buscam reconhecimento em relação às atrocidades da Ditadura e da colo-
nização. O caso de Nísio Gomes e dos Guarani Kaiowa é um dentre os muitos
parentes que sofrem pelo efeito continuado do desaparecimento de corpos.
Nossas terras tradicionais também são corpos para nós, e muitas delas perma-
necem sequestradas. [...]

Esperamos que hoje o conceito de justiça de transição, que orienta essa Co-
missão, se acrescente de um novo significado para o Brasil. Um Estado De-
mocrático verdadeiro não pode ser um Estado Colonialista. A transição de-
mocrática precisa da descolonização da relação com os povos originários desta
nação, processo que é permanente. Que o povo Aikewara possa ter sua verdade
reconhecida, e que isso abra caminho para a justiça com todos os nossos pa-
rentes. (GUAJAJARA, 2014)

No relatório da CNV encontramos elencadas cinco tipos de violações contra


os povos indígenas: remoções forçadas do território tradicional; usurpação de traba-
lho indígena e trabalho escravo; prisões, tortura e maus tratos; desagregação social; e
extermínio. Podemos verificar que tais tipificações são aplicadas as violações sofridas
pelos Avá Guarani.

RESTITUIÇÃO DE TERRAS E REPARAÇÕES AO POVO AVÁ GUARANI

Diante da grave situação em que se encontra o povo Avá Guarani do oeste do


Paraná, torna-se urgente a conclusão do processo de demarcação de terras em área con-
tínua, que deverá ser realizada no âmbito da concretização de um processo de justiça
transicional para os Avá Guarani, garantindo as reparações aos danos sofridos no passado
e que seguem, como ação permanente e continuada, violando os direitos desse povo até
os dias atuais.
Nesse sentido, a Comissão Estadual da Verdade – Paraná (CEV/PR) traz as se-
guintes recomendações específicas (grifo nosso):

347
a. Aprofundar as investigações nos órgãos de terras (federais e estaduais), na Itaipu
Binacional e na Funai para identificar e mensurar as graves violações, seus agentes e
locais em que ocorreram;
b. Identificar as empresas e particulares que promoveram ou auferiram vantagens
destas graves violações contra essas populações para exigir-lhes a reparação de danos
materiais, morais e ambientais;
c. Incluir no projeto pedagógico dos ensinos básico e fundamental conteúdos sobre
o protagonismo das populações camponesas e indígenas na luta pela terra no Estado
do Paraná e o papel repressivo do Estado brasileiro aliado a grupos econômicos e
lideranças políticas no campo paranaense;
d. Criar espaços de memória regionalizados sobre estas graves violações e acontecimentos.
Quadro2. Recomendações específicas. Comissão Estadual da Verdade – Paraná:
Violações no Campo e Povos Indígenas.

Destacamos que se aplica o artigo XXX da Declaração Americana sobre os Direi-


tos dos Povos Indígenas, ao dispor que os Estados deverão tomar medidas de reparação
efetiva, conjuntamente com os povos indígenas afetados, pelos prejuízos ou danos oca-
sionados em caso de conflito armado; tomarão medidas especiais e efetivas em colabo-
ração com os povos indígenas para garantir que as mulheres e crianças indígenas vivam
livres de toda forma de violência, especialmente sexual e garantirão o direito de acesso à
justiça, proteção e reparação efetiva dos danos causados às vítimas (artigo XXX).
E nesse sentido, destacamos o direito a autonomia e autogoverno: os povos in-
dígenas têm o direito a manter e desenvolver suas próprias instituições indígenas de
decisão, têm o direito a participar da adoção de decisões nas questões que afetem seus
direitos (artigo XXI).
Observa-se que o direito à autonomia, assim como o direito à participação, direi-
to à consulta prévia e ao consentimento livre, prévio e informado como direitos funda-
mentais são indissociáveis ao direito à reparação integral e restituição de terras.
O direito à consulta, previsto na Convenção n. 169 da OIT, foi reafirmado pela
Corte Interamericana também na interpretação da sentença de reparação, no sentido de
que o povo em questão (Caso Saramaka) deverá ser consultado para a determinação de
a quem se deve outorgar justa compensação. 8
Logo, cada caso concreto deverá ser tratado de forma diferenciada, cada povo e
comunidades diretamente afetados deverão mostrar os caminhos de como se concretizar
a reparação, que deve ir além da reparação material/ ambiental/ territorial e buscar a re-
paração também dos danos morais coletivos. Deve-se considerar a concepção coletiva da
integridade étnica, respeitando a cosmovisão Guarani, na busca do direito à reparação.
8
Corte IDH. Caso del Pueblo Saramaka vs Surinam. Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas. Sentencia
de 28 de noviembre de 2007.

348
No caso concreto de nosso estudo, importante frisar que deverá ser o povo Avá
Guarani, por meio de suas instituições representativas e organizações tradicionais, por
meio de sua jurisdição própria, que nos mostrará os caminhos para uma reparação efeti-
va, incluindo a reparação simbólica e espiritual.
O tempo para se discutir as formas de reparação deverá ser respeitado. O acesso
à justiça (e à justiça investida de caráter transicional) é muito relevante nesse processo,
mas a reparação não poderá ser limitada a uma decisão judicial que ignora os preceitos
tradicionais do povo Avá Guarani, sob pena de fracassar no intuito principal de reparar
as violações sofridas.
O povo Avá Guarani é um povo que existe porque resiste, numa incessante busca
da “terra sem males”, sobrevivem no processo legítimo de retomada das terras ancestrais,
encontrando o “lugar onde se é”, se reencontram e se reconhecem em sua existência ét-
nica nas Tekoha. A perda do território e a remoção forçada enseja uma situação de dano
permanente, continuado no tempo.
Logo, na política de demarcação de terras, aqui entendida - no âmbito da justiça
de transição, como restituição de terras - as reparações aos danos ambientais compõem
o processo de demarcação/ restituição. O fundamento está na garantia das condições de
subsistência física e integridade cultural do povo Avá, com base no artigo 231 da Consti-
tuição acerca dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, impres-
cindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e à reprodução
física e cultural dos povos indígenas.
Um interessante caso exemplificativo é o caso do povo Gavião da Montanha,
afetado pela construção da hidrelétrica de Tucuruí:

Nos anos 1970, o governo brasileiro, por meio da empresa estatal Centrais Elé-
tricas do Norte do Brasil S.A. – Eletronorte, resolveu construir a Hidrelétrica
de Tucuruí exatamente sobre as terras tradicionais dos Gavião da Montanha. Na
ocasião, os Gavião sofreram, por parte da Eletronorte e da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), grandes pressões para que se retirassem da área da montanha,
estrategicamente escolhida pela estatal para a construção da barragem. Os Gavião
da Montanha, encabeçados pelo líder Paiaré, resistiram, permanecendo em seu
território e buscando negociar com a Eletronorte. Em 1984, funcionários da Fu-
nai e da Eletronorte negociaram com outros índios Gavião um acordo, excluindo
o líder Paiaré, através do qual transferiam à Eletronorte todos os direitos sobre
a terra da Montanha, por meio de escritura pública. (ROCHA, 2003, p.13-82)

Em 1989, o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) propôs em nome da Comuni-


dade de Gavião da Montanha uma ação ordinária de anulação de ato jurídico contra a
Eletronorte, pedindo a devolução da área em questão ou a reposição de novas terras em
igual dimensão e condições ecológicas, bem como indenização pelos prejuízos sofridos
durante todo o período que se viu privada de suas terras tradicionais. Em 2002 o Tribu-

349
nal Regional Federal da 1a Região declarou a nulidade do ato, condenando a Eletronorte
a restituir à Comunidade Indígena dos Gavião da Montanha novas terras de igual tama-
nho e condições ecológicas na região, a serem escolhidas pela comunidade.
Trazendo as lições dos casos citados, no âmbito da justiça transicional, se requer
uma mudança de postura do Estado, reconhecendo as violações do passado e do pre-
sente em relação ao povo Avá Guarani. Nesse sentido, imprescindível considerar que
o direito à reparação está vinculado ao direito à demarcação/ restituição de terras e às
garantias de não repetição das violações cometidas pelo Estado. Portanto, buscando os
princípios da justiça de transição, destaca-se a importância do ato simbólico do Estado
reconhecer o direito à verdade, garantir o direito à memória e a não repetição de fatos e
violações da mesma natureza.
No direito à memória, importante buscar a reparação aos danos imateriais, no
sentido de reconhecer as vítimas que, no decorrer dos anos de omissão do Estado com a
morosidade no processo demarcatório, tiveram suas vidas ceifadas e dignificá-las, assim
como é dever do Estado garantir a não repetição dos ataques e assassinatos e propor-
cionar meios dignos de vida, visando a diminuição do índice de suicídios entre os Avá
Guarani.
O enfoque contemporâneo de reparações da Corte Interamericana compreende
medidas de restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição, em conjunto
com a compensação pecuniária. 9
Encontramos no caso Avá Guarani algumas semelhanças com os casos Comu-
nidad Indígena Yakye Axa e Comunidad Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay, julgados
pela Corte Interamericana, pois em ambos os casos, a Corte se viu diante da situação
de transferencia pelo Estado dos direitos de propriedade a terceiros, na qual os povos
indígenas reclamantes haviam perdido a posse de suas terras, deslocando-se contra sua
vontade e em condições de extrema pobreza a outro lugar. 10

Deber de restituir: cuando correspondiere las tierras tradicionales a las comunidades,


cuando por causas ajenas a su voluntad hayan salido de sus tierras tradicionales o per-
dido la posesion de las mismas y éstas se encuentren en manos de terceros. A pesar de tal
perdida de posesión, y aún a falta de título legal, se mantiene el derecho de propiedad
sobre las mismas y la restitución es la forma óptima de respetar el derecho a la propie-
dad, con prevalência sobre derechos de terceiros y mediante la adopción de medidas
necessárias para que dichos terceiros de buena fe sean devidamente indemnizados. […]
Deber de otorgar tierras alternativas de la misma extensión y calidad que las perdidas,
cuando la restitución no fuera posible en casos excepcionales y acordados con las comu-
nidades y sus representantes libremente elegidos. (GONZA, 2014, p.525).

9
Sobre danos imateriais e reparação, v. Corte IDH. Caso de la Comunidad Moiwana vs Surinam. Excepeciones prelimi-
nares, fondo, reparaciones y costas. Sentencia 15 de junio de 2005. Serie C No.124, párr. 191.
10
Convenção n. 169: art. 16.3; Corte IDH. Caso de la Comunidad Indígena Sawhoyamaxa, parr. 128; Corte IDH
Comunidad Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguay, párr. 284.

350
Uma crítica pertinente à Corte Interamericana feita no capítulo comentado por
Alejandra Gonza (2014, p.525), no sentido de que, apesar das considerações profundas
sobre direito à propriedade indígena e identidade cultural, a Corte não tem sido tão
firme em dar prioridade à propriedade indígena sobre o direito de terceiros, nos casos de
necessidade de devolução de terras e tem deixado ao Estado a prerrogativa de decidir se
procede a expropriação do território a favor dos indígenas, deixando aberta a possibili-
dade de “por motivos objetivos e fundamentados, a devolução das terras ancestrais aos
membros da comunidade não for possível, o Estado deverá entregar terras alternativa. 11
Outra violação aplicada ao caso Avá no período da ditadura militar se refere ao
direito de circulação e residência, o direito a não ser removido/ deslocado forçadamente,
quando pessoas se vêm obrigadas a abandonar seu lugar de origem e/ou residência, por
ocasião de uma situação de insegurança e violência e quando não podem retornar devido
a existência de situação de violência generalizada e ameaças. 12

Este período foi calcado e estendido até os dias de hoje, pela opressão institucio-
nal exercida por meio de controle dos poderes governamentais, ora Executivo,
ora Judiciário, sobre as populações Guarani da região. Sob o ponto de vista dos
indígenas, eles continuam a viver numa ditadura sutil, praticada de forma abusiva
pelas instituições nacionais. [...]
Apesar de haver no país “tempos mais democráticos”, nem por isso, o contexto foi
passível de sensibilização pelos poderes da república. Na verdade o que se observa
é um proposital “deixar morrer”. (CARVALHO, 2015, p. 05-06)

Os casos recentes contra os Guarani e Kaiowá do sul do Mato Grosso do Sul (FU-
NAI, 2016) mostram bem as cenas de horror que ameaçam também os Avá Guarani do
oeste do Paraná, vítimas de ataques de milícias armadas, que geram um ambiente hostil
de guerra interna, com ameaças e assassinatos de muitas lideranças. 13
Na luta pela sobrevivência, sem a terra demarcada, sem acesso à serviços básicos,
o contexto de violência física e simbólica contra os guarani, acaba por corroborar o alto
índice de suicídios de crianças e jovens guarani que sofrem racismo nas cidades, sendo
discrimadas nas escolas, chamadas de “bugres”, “paraguayas”, etc. 14
11
Corte IDH Comunidad Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguay, párr. 286; Corte IDH Caso de la Comunidad Indígena
Sawhoyamaxa, parr. 212; Caso Comunidad Indígena Yakye Axa, Interpretacion de Sentencia.
12
Casos Moiwana vs. Surinam; Masacre de Mapiripán vs. Colombia; Masacres de Ituango vs. Colombia; Valle Jaramillo
y otros vs. Colombia.
13
Nas visitas às 13 Tekohas em Guaíra e Terra Roxa, PR (maio/junho de 2014), no âmbito do projeto de pesquisa, nos foi
relatado o sequestro e abusos sexuais ocorrido em novembro de 2013 contra uma jovem Avá Guarani (Amélia, 19 anos),
que prestava serviços como estagiária na Coordenação Técnica Local (CTL/FUNAI) e irmã do cacique Inácio Martins
Tekoha Marangatu. O crime teve a conotação de ameaça: “Fala pra Funai que nós vamos acabar com eles”.
14
Em visita de nossa equipe do projeto de pesquisa às Tekoha de Guaíra e Terra Roxa, chegamos em uma semana pos-
terior ao ocorrido da morte de um jovem Avá por enforcamento (suicídio). Compartilhamos e comungamos do luto e
dor daquela família, que nos levou até o cemitério, relatando a discriminação vivida pelo seu filho na escola municipal
por alunos e professores não indígenas e a falta de expectativas com o futuro, na insegurança vivida com a morosidade

351
Importante salientar que, no caso Avá Guarani, estamos diante de crimes de le-
sa-humanidade, que são imprescritíveis. Tal imprescritibilidade surge como categoria de
norma geral de Direito Internacional (ius cogens), de maneira que o Estado não pode
deixar de cumprir esta norma imperativa. 15
A Corte Interamericana assegura reparações por dano imaterial no caso de au-
sência de delimitação, demarcação e titulação da propriedade comunal.16 Reconhece a
reparação ao dano coletivo, assim como danos individuais.17 A jurisprudência da Corte
tem desenvolvido também a reparação simbólica, no sentido do reconhecimento da
memória das vítimas e garantias de não repetição.
No que diz respeito à morosidade do Estado em cumprir sua obrigação com a
demarcação, a Corte considera os aspectos de impunidade contínua e as dificuldade
para se obter justiça. Também a Corte considerou o dano emocional, espiritual, cultural
e econômico causado aos integrantes da comunidade devido à dispersão e brusca inter-
rupção de sua conexão com o território ancestral. 18

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Poucos percebem que o genocídio dos povos indígenas segue se repetindo e que a cons-
trução de uma nação democrática depende de uma justiça de transição ampla para
com os povos originários dessa terra, alvos da opressão primeira, que deu origem a essa
nação. Enquanto não houver esse reconhecimento, a violação histórica é continuada.

Sonia Bone Guajajara, 2014.

Os Avá Guarani, durante o período da ditadura militar, em um contexto de violência,


massacre, opressão e remoção forçada, foram distanciados de suas terras originárias. Hoje, re-
sistem a um crime continuado de lesa-humanidade e lutam pela sobrevivência física e cultural.
da demarcação e sem acesso à serviços básicos (água, energia elétrica, serviços de atenção à saúde, etc.). Relatos que são
corroborados pela Carta da Tekoha Y’Hovy manifestando a preocupação e denúncia da situação recorrente, publicada em
20 de agosto de 2015 (TEKOHA Y’HOVY, 2015).
15
Corte IDH. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. In: Steiner; Uribe, 2014, p. 639 [cap. Juana María Ibánez Rivas].
16
Corte IDH. Comunidad Mayana (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua. Fondo, reparaciones y costas. Sentencia de 31 de
agosto de 2000. Serie C No. 79, párr. 167.
17
Corte IDH. Caso de la Comunidad Yakye Axa vs. Paraguay. Fondo, reparaciones y costas. Sentencia de 17 de junio de
2005. Serie C, n. 125, párr.201; Corte IDH. Caso de la Comunidad Moiwana vs Surinam, párr. 193-195.
18
Cristián Correa (em comentários à Convenção Americana): En casos de comunidades que se han mantenido unidas, referi-
dos a violaciones del derecho de propiedad de tierras indígenas, pero que en ocasiones han involucrado el desplazamiento, desar-
raigo, la reubicación temporal en otras tierras o condiciones de vida que incluso han causado la muerte de algunos integrantes por
deficiencias sanitarias, la Corte ha reconocido la existencia de un daño moral causado a la comunidad. La forma de repararlo
ha sido mediante el establecimiento de un fondo de desarrollo comunitario para la ejecución de proyectos de infraestructura en
diversas áreas [Corte IDH. Caso de la Comunidad Yakye Axa vs. Paraguay; Caso de la Comunidad Indígena Xákmok Kásek
vs. Paraguay]. In: STEINER; URIBE, 2014. p.868.

352
Constata-se que as famílias Avá Guarani organizadas em comunidades vivem nas
Tekoha em improvisados barracos de lonas, confinadas em áreas já degradadas pelo agro-
negócio, sofrendo violência física e simbólica, seja sob ataques violentos, assassinatos de
lideranças, sequestros e ameaças por milícias armadas (jagunços dos fazendeiros), seja
sob o medo de serem despejados com a violência do próprio Estado no cumprimento de
liminares de reintegração de posse.
Resistem sob a mira da ameaça de etnocídio, sofrendo o massacre cotidiano or-
questrado por ações de racismo, indiferença, hostilidade e repugnância da sociedade
envolvente, que gera o medo e o abandono da vida (suicídios) como única alternativa
para muitos jovens guarani sem perspectiva de futuro. As famílias guarani sobreviventes,
através de seus cânticos, rituais, costumes e crenças, expressam nas casas de reza a força
em Ñanderu, para seguirem lutando por seu direito à existência digna.
Conclui-se que a identididade étnica dos Avá está intrinsecamente ligada às Tekoha, que
originam as próprias comunidades. É no sentido de pertencimento à terra, que a comunidade
se autorreconhece, concretiza seus costumes, suas crenças, práticas tradicionais e se autodeter-
mina enquanto povo, obtendo a liberdade de ser Guarani, exercitando autonomia em termos
de organização tradicional e autonomia cultural e linguística (língua materna Guarani).
O direito à terra é uma base onde germinam, se realizam e onde se nutre os de-
mais direitos coletivos dos povos indígenas. Logo, o reconhecimento pelo Estado bra-
sileiro das violações cometidas contra os Avá Guarani, deve se dar de forma conjunta
ao reconhecimento dos direitos territoriais, com a restituição da terra e efetivação do
processo de demarcação da Terra Indígena Avá Guarani, em área contínua.
O reconhecimento do valor da vida comunitária, somado a participação das co-
munidades na definição e administração de medidas de reparação são pressupostos para
que haja uma justiça de transição aos Avá Guarani, superando a lógica tutelar, legitiman-
do a participação com autonomia, em respeito à Convenção 169 (1989, ratificada em
2002 pelo Brasil), Declaração das Nações Unidas (2007) e Declaração Americana sobre
os Direitos dos Povos Indígenas (2016).
Nesse sentido, paralelamente à conclusão do processo da demarcação contínua da
Terra Avá Guarani, um processo de consulta prévia ao povo Avá deverá ser iniciado para
que os próprios indígenas, por meio de suas lideranças tradicionais e organizações, apon-
tem as possibilidades de reparação aos danos materiais e imateriais sofridos, respeitando-se
suas tradições, seu modo de vida, cosmovisão Guarani e seu direito próprio, consubstan-
ciado pelo consentimento livre, prévio e informado no exercício da autodeterminação.
Na busca pela realização da justiça transicional aos Avá Guarani, considera-se as
recomendações da Comissão Nacional da Verdade e, em especial, da Comissão Estadual
da Verdade - Paraná no que tange as investigações quanto aos abusos, crimes e violações
de direitos indígenas cometidos pela Itaipu Binacional, pelos órgãos de terra (estadual e
federal) e Funai, assim como por empresas e particulares.

353
Ressalta-se o lema da Mobilização Nacional Indígena 2016: “o governo é provi-
sório, nossos direitos são originários”. Oxalá as ameaças e os retrocessos democráticos
do ano de 2016 no Brasil - com a usurpação do poder, extinção e enfraquecimento de
instituições legítimas que avançavam na defesa dos direitos humanos e minorias-, não
permaneçam no transcurso histórico de avanços do Estado democrático de direito.
Deve-se aspirar à busca pelo respeito às diversidades e autonomias étnicas, em um
convívio harmônico e um futuro de paz e bem viver entre a sociedade envolvente e os po-
vos e nações originárias. Assim, torna-se urgente a conclusão do processo de demarcação
da Terra Indígena Avá Guarani, conjugado com o respeito ao direito à memória, à verdade
e à reparação em um processo amplo e de caráter coletivo, não só mirando o passado de
violações, mas vislumbrando, sobretudo, um futuro de vida e dignidade a esse povo.

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361
SÍNTESE DAS GRAVES VIOLAÇÕES AOS POVOS INDÍGENAS
CONSTANTES NO RELATÓRIO DA COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE
DO PARANÁ – TERESA URBAN

Olympio de Sá Sotto Maior Neto1


Jefferson de Oliveira Salles2
Raquel de Souza Ferreira Osowski3
Edilene Coffaci Lima4

INTRODUÇÃO

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e das Comissões Estaduais


instaladas no país5 confirmaram a prática de graves violações de direitos humanos de
forma generalizada e sistemática por parte do Estado brasileiro em nome da doutrina de
segurança nacional e da política desenvolvimentista empreendida no período de 1946
a 1988. No âmbito do Paraná, com a instalação da Comissão Estadual da Verdade –
Teresa Urban (CEV/PR)6 foi constituído um Grupo de Trabalho destinado a apurar as
graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, que além de contar com
equipe de trabalho do Ministério Público do Paraná7 reuniu uma rede de colaboradores
de formação multidisciplinar, com profissionais de várias Universidades, nas áreas de

1
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Coordenador da Comissão da Estadual da Verdade
do Paraná - Teresa Urban.
2
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Assessor do Centro de Apoio Operacional das
Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos do Ministério Público do Paraná e colaborador da Comissão
Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban.
3
Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Assessora do
Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos do Ministério Público do
Paraná e colaboradora da Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban.
4
Professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná, Doutora em Antropologia pela Uni-
versidade de São Paulo e Pesquisadora (PQ2) do CNPq.
5
Sobre as Comissões Estaduais da Verdade consultar: ISER. Relatório Semestral de Acompanhamento da Comis-
são Nacional da Verdade, 1. Disponível em:<http://www.iser.org.br/website/wp-content/uploads/2013/11/I-Relat%-
C3%B3rio-Semestral-de- Acompanhamento-CNV-ISER-2012.pdf>. Acesso em: 29 set. 2015.
6
A Comissão Estadual da Verdade – Teresa Urban (CEV) foi criada por lei estadual em 27/11/12, a partir de iniciativa de
varias institui oes e movimentos sociais que constituíam o Forum Paranaense de Resgate da Verdade, Memoria e Justi a.
A CEV foi organizada nos seguintes grupos de trabalhos: Ditadura, Sistemas de Justi a e Repressao; Graves Violaçoes de
Direitos Humanos; Opera ao Condor; Sindicatos, Partidos Políticos e Ditadura; Seguran a Publica e Militariza ao; Graves
Viola oes de Direitos Humanos no Campo e contra os Povos Indígenas.
7
O Ministério Público do Paraná contribuiu nas atividades da Comissão Estadual da Verdade do Paraná com uma equipe
formada pelo procurador de justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, a assessora jurídica Raquel de Souza Ferreira
Osowski, o historiador Jefferson de Oliveira Salles, a historiadora Cláudia Cristina Hoffmann, a socióloga Schirle Mar-
garet dos Reis Branco, os quais atuaram em três Grupos de Trabalho: Sistemas de Justiça, Ditadura e Repressão; Graves
Violações de Direitos Humanos contra Camponeses; Graves Violações de Direitos Humanos contra Povos Indígenas.

362
História, Antropologia, Direito e Sociologia8.
O presente artigo constitui-se numa síntese do relatório final do trabalho produ-
zido por este Grupo de Trabalho coordenado pelo Procurador de Justiça Olympio de Sá
Sotto Maior Neto na qualidade de membro da CEV/PR.
Em que pese o esforço desta e de outras Comissões da Verdade instaladas no país
de (de 2012-2015), as investigações se revelaram insuficientes diante da gravidade e
variedade das violações identificadas, recomendando-se, desde logo, a continuidade das
pesquisas, a fim de alcançar mais subsídios às políticas de reparação específicas a se de-
senvolver, considerando especialmente que dentre as mais de 35.000 mil pessoas anis-
tiadas pela Comissão de Anistia até 19 de setembro de 2014, apenas 15 eram indígenas9.

RELATÓRIO DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS


CONTRA OS POVOS INDÍGENAS NO PARANÁ APRESENTADO PELA
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE – TERESA URBAN

Em princípio é preciso destacar que a especificidade das violações praticadas contra os


povos indígenas dificultou a correlação com a tradicional perspectiva das Comissões de Ver-
dade na apuração de casos de mortos e desaparecidos políticos. No entanto, com objetivo de
recuperar ao menos uma parcela da memória dos povos originários que habitavam a região
onde está o Estado do Paraná e contribuir para reconstrução da verdade do Período de 1946-
88 é que os trabalhos do grupo foram desenvolvidos de forma colaborativa, a partir da revisão
de pesquisas acadêmicas complementadas com busca em fontes orais e documentais10.
Diga-se que a oportunidade desses povos contarem suas histórias e tê-las registradas é
tanto uma forma de o Estado reconhecer as lesões perpetradas no passado quanto de conferir
e restituir aos povos indígenas a sua dignidade, proporcionando inclusive a possibilidade de
reconstituição de seus tecidos sociais. Com isso, sobressai a relevância das comissões da verdade
que tiveram entre seus objetivos investigar as violações de direitos humanos aos povos indíge-
nas, porque constituem um mecanismo de compartilhamento dessas memórias.
Assim, após a identificação de genocídio, extermínio, homicídios, desapareci-
8
Colaboraram com o trabalho uma rede de especialistas formada por Kimye Tommasino, Edilene Coffaci de Lima, Éder
da Silva Novak, Marcelo Zelic, Cecília Maria Vieira Helm, Clóvis Antônio Brighenti, Maria Lúcia Brant de Carvalho,
Senilde Alcântara Guanaes, Paulo Humberto Porto Borges, Andréa Mendes de Oliveira Castro, Raul Cézar Bergold,
Adriele Fernanda Andrade Précoma, Gisele Jabur, Manuel Munhoz Caleiro e Rafael Pacheco Marinho.
9
INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Indígenas Aikewara na Comissão da Anistia. Perdão e reparação. São
Leopoldo, 22 set. 2014. Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535443-indigenas-aikewara-na-comis-
sao-da-anistia-perdao-e-reparacao>. Acesso em: 30 set. 2015.
10
Foram realizadas 13 oitivas (04 Xetá, 02 Kaingang e 07 Guarani); entrevistas com integrantes de instituições de apoio à causa
indígena e antropólogos com atuação no período investigado; reuniões públicas em Curitiba; Audiências Públicas em Curitiba,
Cascavel e Maringá; levantamento documental nos acervos do DOPS-PR, Relatório Figueiredo (SPI), ASI-FUNAI, Círculo
de Estudos Bandeirantes, Museu de Arqueologia e Antropologia e Centro de Pesquisas Arqueológicas da UFPR, Museu Pa-
ranaense, acervo Pastor Fuchs, Laudos antropológicos, periódicos especializados e jornais de circulação regional, entre outros.

363
mento forçado, escravidão, transferência forçada, prisão ilegal, restrição à liberdade de lo-
comoção, tortura, agressão sexual, perseguição de lideranças e movimentos indígenas, ex-
propriação de terras e bens, esbulho possessório e procedimentos de negação da identidade
indígena, foram definidos alguns casos principais para integrarem o relatório da CEV/PR
a fim de permitir compreensão geral do período investigado: a) Acordo de 1949 ou Acordo
Lupion; b) violações denunciadas no Relatório Figueiredo; c) graves violações à integrida-
de física, psíquica e mortes – destacando-se o Genocídio Xetá; d) repressão a movimentos
e lideranças indígenas; e) conflitos decorrentes da política de integração indígena; e f)
conflitos decorrentes da política desenvolvimentista no Oeste do Paraná.
Constatou-se, ainda, que essas violações não ocorreram de forma esporádica ou
acidental. Elas, conforme destacou a Comissão Nacional da Verdade, “foram sistêmicas,
na medida em que resultaram diretamente de políticas estruturais de Estado, que deverá
responder por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões” (BRASIL,
2014, p. 198).

ACORDO DE 1949 OU ACORDO LUPION

O final da década de quarenta no Paraná foi marcado pela vitória de Moysés Lupion
para Governador do Estado do Paraná e do general Eurico Gaspar Dutra à Presidência da
República – ambos eleitos para o mandato 1946-1950 pelo Partido Social Democrático, o
PSD. Em seu mandato, o general Dutra aprofundou medidas antidemocráticas: perseguiu
intelectuais identificados como comunistas, cassou o registro do Partido Comunista Brasi-
leiro (PCB), decretou o fechamento da Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB)
e das Uniões Sindicais nos Estados (PARANÁ, 2016, Anexos).
Nesse contexto, no Paraná, deu-se continuidade ao megaprojeto de desenvolvi-
mento conhecido como “Marcha para o Oeste”, no qual a União e o governo do Estado
estimularam a expansão da frente pioneira e a invasão de terras indígenas (TIs11), bem
como o repasse de terras indígenas e devolutas que tinham maior valor econômico para
o patrimônio privado ou uso privado.
O genocídio Xetá, as violações de direitos humanos descritas no Relatório Figuei-
redo, as revoltas indígenas ocorridas nas TIs de Rio das Cobras, Mangueirinha e Barão
de Antonina ocorridas na década de setenta e oitenta só podem ser adequadamente
compreendidas a partir desse “Acordo” celebrado em 12 de maio de 1949 e ratificado
pelo Decreto Estadual nº 13.722, de 19 de janeiro de 1951 (PARANÁ, 2016, Anexos),
que levou à redução de grande parcela das TIs de Apucarana, Queimadas, Ivaí, Faxinal,
11
TIs – Terras ocupadas por indígenas, demarcadas ou não, enquanto PIs seriam os postos indígenas instalados dentro
das TIs, a partir dos ideais de Rondon e poderiam ser de atração, criação, nacionalização, etc. Enfim, eram unidades
administrativas estabelecidas pelo SPI e FUNAI para atração e pacificação.

364
Rio das Cobras e Mangueirinha, bem como à transferência forçada das populações que
tradicionalmente ocupavam essas terras.
Os governos estadual e federal, em tese, objetivavam “a regularização das terras des-
tinadas aos índios no território daquele Estado e a prestação de maior assistência aos mes-
mos silvícolas” (PARANÁ, 2016, Anexos), porém as justificativas apresentadas não eram
verdadeiras, vez que tais áreas já se encontravam devidamente demarcadas por decretos do
início do século XX. Na prática, com a celebração do Acordo de 1949, foram reduzidas
terras indígenas com objetivo de liberar terras para os processos de colonização conduzidos
pela Fundação de Paranaense de Colonização e Imigração (FPCI) (NOVAK, 2002).
A redução das TIs, aliada à política tutelar, acabaram ainda intensificando o mo-
dus operandi do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) consistente no arrendamento de
terras e na venda de madeira das TIs, pois Moysés Lupion era proprietário de um dos
maiores grupos do setor industrial madeireiro paranaense da época e dirigente de enti-
dades de representação desse setor (SALLES, 2004).
De fato, conforme oitiva realizada com a antropóloga e professora Cecília Helm
(HELM, 2013) e denúncias investigadas ainda na década de oitenta pela também an-
tropóloga Kimiye Tommasino, as terras expropriadas dos povos indígenas, que deveriam
ser destinadas à instalação de pequenos agricultores (Cláusula VII, do Acordo de 1949),
acabaram entregues a empresas do setor industrial madeireiro e a ocupantes de cargos
públicos, em especial do executivo e legislativo estadual. É importante salientar que os
povos Kaingang e Guarani, habitantes dessas áreas, não foram consultados, nem seu
modo de vida foi levado em consideração para estabelecer os critérios que definiram o
tamanho das áreas remanescentes. Para definir as áreas remanescentes, União e governo
do Estado usaram critérios similares à política de colonização (vide Cláusula III, do
Acordo de 1949, PARANÁ, 2016, Anexos)12.
Ademais, documentação entregue pela antropóloga Kimiye Tommasino à CEV/
PR, especialmente relacionada à TI Barão de Antonina, demonstra que o Governo do
Estado do Paraná não cumpriu também as Cláusulas IV, V e VI do Acordo, vez que as
comunidades indígenas nunca gozaram de domínio pleno das áreas remanescentes em
que viviam (Cláusulas IV e V), bem como as TIs não receberam a infraestrutura pro-
metida (Cláusula VI), conforme se comprova pela documentação fornecida pelo SPI
(PARANÁ, 2016, Anexos).
Dessa forma, além do descumprimento dos seus próprios termos, estudos téc-
nico-jurídicos produzidos pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) salientaram
outras ilegalidades do “Acordo Lupion”: 1o) violou o art. 216, da Constituição de 1946,
que estabelecia a inalienabilidade das terras indígenas; 2o) as TIs Indígenas de Manguei-
rinha e Rio das Cobras, por estarem em “áreas de fronteira”, não poderiam ter sido trans-

12
A documentação coletada traz mapas que identificam a redução de TIs e encontra-se anexa ao Relatório Final da CEV/PR.

365
feridas para o domínio do governo do Paraná sem autorização do Congresso Nacional,
que deveria ter ratificado a transferência dos noventa mil hectares da União para a FPCI;
3º) o Acordo não respeitou o art. 23, inc. XII, da Constituição Estadual, em vigor na
época, que previa nos processos de “concessão”, “cessão”, “venda” ou “aproveitamento”
de terras de patrimônio do Estado “superiores a 500 hectares” a prévia autorização da
Assembleia Legislativa do Estado.
Assim, ao estudar os desdobramentos iniciais do Acordo fica evidente, não obstante
as motivações oficiais, que esse interessava às elites locais ligadas à exploração de riquezas
extrativistas. Grupos como Fortes/Cury, Slavieiro, Serraria Badoti, Marochi, Volpato e fa-
zendeiros como Lea Brand Schaffer e o próprio Moysés Lupion são citados no Relatório
Final da CEV/PR como beneficiários dessas manobras (PARANÁ, 2016, Anexos).
O Acordo Lupion se concretizou, no entanto, articulado com um projeto nacio-
nal, explicitado, por exemplo, nas recomendações aprovadas pela I Conferência Brasilei-
ra de Imigração e Colonização, realizada entre abril e maio de 1949, em Goiânia, pelo
Conselho de Imigração e Colonização CIC, as quais previam que a “delimitação das
terras habitadas pelos índios” deveria ser acompanhada pelo estabelecimento de coloni-
zações em moldes técnicos nas proximidades: “Facilitar-se-ia, assim, não só a penetração
e o desbravamento do hinterland brasileiro, como também a assimilação desses nossos
patrícios por um processo de aculturação” (BRASIL, 2014, p. 201).
É importante ressaltar que, em oposição a essa política estatal, houve constante
resistência indígena, revestida das mais diversas formas. A resistência Guarani e Kaingang
tem destaque na documentação do SPI relativa às TIs Rio das Cobras e Mangueirinha,
posto que, até o momento, são os casos mais documentados (PARANÁ, 2016, Anexos).
Essas etnias se opuseram à invasão de suas terras por meio de diversas estratégias, dentre as
quais o SPI aponta um telegrama enviado diretamente ao Presidente Juscelino Kubstieck
informando os problemas que estavam enfrentando (PARANÁ, 2016, Anexos). A resposta
do SPI merece destaque, pois, segundo o órgão, tais reclamações seriam “pura armação de
4 índios rebeldes” contrários à “doação” de 300 pinheiros à diocese de Palmas (PARANÁ,
2016, Anexos), o que demonstra que o órgão indigenista utilizava os recursos naturais das
TIs, mesmo sem o consentimento da comunidade diretamente afetada.
Em oitiva da CEV/PR, Cecília Helm relatou que diversos Kaingang não aceitaram
as justificativas do SPI para redução das áreas, o que fez com que o órgão acabasse recor-
rendo à polícia para retirá-los das TIs. Em que pese isso, muitos opuseram resistência,
ocorrendo “espancamentos de indígenas” efetuados por policiais associados a “capangas”,
como os contratados pela empresa F. Slaviero, Comércio e Indústria de Madeiras (HELM,
2013). Nesse tópico do Relatório Final da CEV/PR, restaram citados como envolvidos em
agressões, denúncias de grilagem, exploração ilegal de madeira e do trabalho indígena o
chefe de posto “Raul de Souza Bueno e seu irmão Janguito” (PARANÁ, 2016, Anexos).

366
RELATÓRIO FIGUEIREDO

O Relatório Figueiredo, produzido pelo Procurador Federal Jader de Figueiredo Cor-


reia, ficou 45 anos desaparecido. Nele são denunciados massacres de comunidades inteiras,
torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país, principalmente
por latifundiários e funcionários do SPI até 196713. As irregularidades arroladas expressam a for-
ma institucionalizada de exploração e destruição dos indígenas em completa oposição à sua já
limitada e equivocada finalidade de proteger os indígenas para integrá-los à civilização. Devido
à dimensão do relatório, a análise da CEV/PR ficou restrita às ocorrências relacionadas terri-
torialmente ao Paraná, sob a jurisdição da 7ª Inspetoria Regional (IR), localizada em Curitiba.
O Relatório Figueiredo reuniu um vasto rol de informações sobre a situação das
terras indígenas no Paraná e permite uma análise da sua evolução histórica. É possível
observar, por exemplo, a ausência de Postos Indígenas (PIs) no Oeste, Noroeste e Norte
Novo do Paraná, conquanto essas regiões fossem objeto do megaprojeto colonizador da
Marcha para o Oeste e fossem densamente povoadas pelos Guarani. Além disso, os Xetá
tinham sido recém-contatados na Serra dos Dourados (região de Umuarama). Outra
circunstância relevante, consistiu na transferência de muitos Guarani para os PIs como
Interventor Manoel Ribas (atual município de Nova Laranjeiras), onde a predominância
era de indígenas Kaingang, inimigos tradicionais dos Guarani, fato de conhecimento do
SPI, porém ignorado, ocasionando conflitos e discriminações.
De outra sorte, fica bem caracterizado no Relatório Figueiredo que, para desenvolver
seus trabalhos, o SPI, além das verbas orçamentárias que lhes eram destinadas, explorava
o Patrimônio Indígena, cujas receitas constituíam o que a literatura consultada denomina
Renda Indígena14, formada por receitas provenientes da dilapidação do patrimônio indígena
por meio de arrendamento de terras, extrativismo e exploração de atividade agropecuária.
Isso fez com que o órgão possuísse dois sistemas de contabilidade. O primeiro re-
ferente às dotações orçamentárias, sobre o qual incidia a legislação ordinária que tratava
dos recursos públicos, tendo sua aplicação controlada pelo Tribunal de Contas da União
(TCU). O outro sistema tratava das movimentações relacionadas ao Patrimônio Indíge-
na, cuja gestão era de responsabilidade do Diretor do SPI, com prestação de contas anual
ao Ministro da Agricultura. Essa sistemática é agravada pelo fato de que a assistência
prestada com o uso dos recursos advindos dessa exploração se dava ignorando o interesse
dos índios, sendo voltada para sua integração à “sociedade nacional”. Por exemplo, cons-
truíam-se escolas, igrejas e casas de madeira para os indígenas. Ou, ainda mais grave, a
13
O Relatório ressurgiu quase intacto em abril de 2013. Após ter-se acreditado que ele teria sido eliminado num incêndio
no Ministério da Agricultura, foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preser-
vadas e contendo 29 dos 30 tomos originais.
14
Esse expediente foi regulado em lei (Decreto 10.652 de 16/10/42) e sofreu várias modificações no período estudado.
Para maiores detalhes consultar Relatório Graves Violações de Direitos Humanos contra Povos Indígenas no Paraná da
Comissão Estadual da Verdade Teresa Urban.

367
Renda Indígena era desviada de suas finalidades, servindo ao pagamento de pessoal, pois
embora “destinada aos índios na lei, a renda indígena acabou por ser fonte de 80% do
orçamento da FUNAI” (BRASIL, 2014, p. 200).

GRAVES VIOLAÇÕES À INTEGRIDADE FÍSICA, PSÍQUICA E MORTES

GENOCÍDIO XETÁ

Levantamento documental feito pelo professor da Universidade Estadual de Ma-


ringá Lúcio Mota demonstra que a presença Xetá era amplamente conhecida pelo Estado
desde o século XIX. Não obstante, foi na metade do século passado, quando o projeto
varguista de Marcha para o Oeste fez avançar a fronteira agrícola da cafeicultura, do Norte
para Noroeste do Estado do Paraná, pressionando o território por onde se deslocavam os
pequenos grupos, que o contato dos Xetá com os brancos se consolidou e tornou-se irrever-
sível, especialmente na Serra dos Dourados, seu território tradicional. Segundo “Resumo do
Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da T.I. Herarekã Xetá”, produzido
pela FUNAI, entre as décadas de 1940 e 1960 o povo Xetá sofreu um processo genocida e
uma população estimada em mais de trezentas pessoas contava, na década de 1990, apenas
com oito sobreviventes. Hoje totalizam seis sobreviventes diretos do massacre perpetrado
na Serra dos Dourados, dadas as mortes recentes de Tuka e Tikuen. Contando com os des-
cendentes dos sobreviventes de outrora, os Xetá totalizam atualmente mais de 160 pessoas,
a maior parte localizada na TI São Jerônimo da Serra, onde entendem estar morando “de
favor”, dado que se trata de uma terra oficialmente demarcada aos Kaingang e Guarani.
Extremamente móveis, entre o final da década de 1940 e início de 1950, os Xetá
foram cercados pelos brancos que avançavam sobre suas terras e então, pouco a pou-
co, pequenos agrupamentos foram aproximando-se das fazendas recém-adquiridas15.
Alguns documentos indicam que buscavam a aproximação para saciar a fome, pois cer-
cados não conseguiam satisfatoriamente ter acesso aos recursos naturais, aos animais
de caça e pesca. Do que é possível saber, principalmente a partir de Wladimir Kozak
(s/d), foram os agrimensores da Companhia Colonizadora Suemitsu Miyamura Ltda.,
no final da década de 1940, no governo de Moysés Lupion (1947-1951), os primeiros
a informarem o contato com os Xetá. Conforme relata, foi Wismar Costa Lima Filho,
funcionário da 7ª IR do SPI, quem recebeu, em julho de 1949, o comunicado de Agos-
tinho Veronesi, agrimensor da Miyamura, sobre a presença dos Xetá nas imediações dos
trabalhos da colonizadora:

15
Foram identificadas pelo menos três fazendas que constituíram verdadeiros postos de atração para os Xetá. São elas:
Santa Rosa, São Francisco e do Sr. Fidélis Guimarães.

368
Estamos – disse ele – dividindo as terras do território da Serra dos Dourados para
o japonês Miamura, de Apucarana, o qual está revendendo os lotes a colonos pro-
cedentes de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Havíamos acampado
perto da nascente do Rio do Veado. [...] Aconteceu, porém, que às vezes durante a
noite ouvíamos certos assobios e ruídos... Isso deixou-nos apavorados e, um certo
dia, quando eu e três dos meus homens regressamos ao nosso acampamento, depois
de terminar o trabalho e carregando nossas ferramentas, deparamos com seis índios
nus na picada que levava ao acampamento. Carregavam arcos e flechas e postaram-se
bem no meio duma clareira por onde teríamos de passar. [...] Meus ajudantes puse-
ram-se em debandada [...]. Venho agora a esta repartição para comunicar o fato e pe-
dir que o mesmo seja investigado para que se possam tomar as devidas providências.
Assim terminava o depoimento prestado por Agostinho Veronesi. (KOZAK, s/d)

Torna-se inevitável destacar aqui também, conforme afirmado no tópico relacio-


nado ao Acordo de 1949, a excessiva proximidade entre as ações governamentais e as
companhias de colonização no Norte do Paraná, que amalgamaram interesses públicos e
privados. Ainda no governo de Bento Munhoz da Rocha Neto (1951-54), a Companhia
Colonizadora Suemitsu Miyamura Ltda. foi substituída pela Companhia Brasileira de
Imigração e Colonização (COBRIMCO), pertencente ao grupo Bradesco.
No contexto exposto, para a efetiva invasão e usurpação do território Xetá, puse-
ram-se em prática estratégias e técnicas violentas, algumas silenciosas, que resultaram na
ocultação da existência dos Xetá, submetidos ao avanço dos pioneiros. As memórias do
genocídio são narradas de forma dramática pelos sobreviventes, revivendo a experiência
dos pais: “Nós tinha medo, né? Que matassem nós lá. Daí nós corria. E ficava lá no
mato. O branco matava a tiro. Pra limpar a área na terra lá, né?” (SEVERO, 2006).
Além dos tiros, há menção de que as casas foram incendiadas e os sobreviventes
deslocados em caminhões para outras regiões, como indica o linguista Aryon Dall’Igna
Rodrigues no documentário Xetá, de Fernando Severo:

Nhango [Xetá], que me contou que tinha saído para caçar, ao voltar da aldeia
encontrou as casas todas derrubadas e as pessoas mortas. (SEVERO, 2006)

Caminhões [da COBRIMCO] teriam sido vistos pelo menos duas vezes condu-
zindo os índios para fora da Serra dos Dourados. Qual destino? Nada se sabe.
Ninguém ao que parece, até agora procurou averiguar [...]. Pessoas temem fazer
denúncias. (PARANÁ, 2016, Anexos)

Ademais, os agrimensores tiveram um papel determinante na história dos Xetá,


pois não só foram os primeiros a comunicar a existência deles ao SPI, como, mais tar-
de, foram os responsáveis pelos primeiros sequestros de crianças do grupo. Conforme
indicam variados documentos e depoimentos prestados à CEV/PR16, há notícia de que
16
São vários os documentos que fazem referência ao rapto dos dois meninos. Entre eles salientamos os produzidos por

369
pelo menos duas crianças Xetá foram subtraídas por agrimensores nos primeiros anos
de 1950: Caiuá e Tucá (capturados em ocasiões diferentes quando se deslocavam com
outras crianças pela mata)17, sendo um deles depois utilizado como intérprete, confor-
me relato do antropólogo José Loureiro Fernandes, arquivado no Círculo de Estudos
Bandeirantes. No Plano de Pesquisa Antropológica Sistemática dos Índios da Serra dos
Dourados, Loureiro expõe ainda ameaça da extinção e confirma o sequestro de crianças:

Há necessidade de proceder-se com a máxima urgência ao estudo dos índios da


Serra dos Dourados porque esses índios se acham ameaçados de própria extinção.
Tratam-se apenas de poucas dezenas de indivíduos, hoje provavelmente não mais
que cinquenta, que vivem exclusivamente da caça e dos frutos que lhes oferecem a
floresta, mas para os quais essa floresta, e com ela a caça e os frutos, está desapare-
cendo, derrubada pelos civilizados, que há mais de dez anos vêm tomando conta
dela num ritmo assustador. [...] Algumas famílias que se decidiram a conviver com
os brancos, numa fazenda, perderam, além disso, vários de seus membros, sobre-
tudo as mulheres, em consequência quase certa de infecções pulmonares adquiri-
das por contágio dos brancos. [...] Outro fator de desagregação é ainda o fato de
que, nesses últimos dez anos, várias crianças, de ambos os sexos foram arrebatadas
pelos brancos (pelo menos 8, o que importa em grande ameaça para a sobrevivên-
cia de uma população de poucas dezenas). (PARANÁ, 2016, Anexos)

A fazenda a que Loureiro Fernandes faz referência é a chamada Santa Rosa, de Antô-
nio Lustosa de Oliveira, deputado estadual, que a obteve por permuta de Moysés Lupion.
Deve ser lembrado que esse era apenas um dos grupos indígenas, tendo os demais, aqueles
que não se aproximaram da fazenda Santa Rosa, desaparecido sem que se possa precisar seus
destinos, pois os Xetá adotaram como estratégia “espalharem-se pelo mato”, passando a viver
em “pequenos grupos familiares […] ligados a uma aldeia grande” (SILVA, 1998 e 2003).
No Relatório Figueiredo consta também uma correspondência de Durval Antunes Macha-
do, servidor do SPI, na qual narra que o senhor Antônio Lustosa de Freitas lhe comunicou a
“captura” de um menino Xetá, Coen, de aproximadamente 12 anos, por um caminhoneiro.
Dona Carolina de Freitas, esposa de Antônio Lustosa de Freitas, em seu depoimento no
documentário “O extermínio Xetá”, narra a trajetória de alguns indígenas, confirmando os
sequestros de Cauá e Tuca e de ao menos mais três crianças, além de Coen:

[...] Aí depois eles começaram a sair, começaram a carregar as crianças, os meninos.


Primeiramente os agrimensores pegaram esse indinho Caiuá – eu tenho a fotografia
dele aí. E ficaram com esse indinho na Serra dos Dourados. Depois eles pegaram o
Tuca (...). Depois os padres lá pegaram um que chama Natal, nem sei onde tá esse

Wladimir Kozak e pesquisadores do Museu de História Natural dos EUA (KOZAK et al., 2007); depoimentos dos Xetá
contatados na época (entrevistas a antropólogos da Universidade Federal do Paraná em diversos momentos).
17
Mais tarde, ambos foram deslocados para Curitiba e entregues a Deocleciano de Souza Nenê, então chefe da 7a Ins-
petoria Regional do SPI.

370
índio. Os padres pegaram ele, levaram ele (...). Depois, por último, tinha dois índios
que eu também não sei onde que está, que foi o homem da fazenda São Francisco
que pegou esses índios. Aí acho que um dia o fazendeiro achou eles e levou pra fa-
zenda e se criaram com ele. Me disseram que estão numa fazenda do Bradesco lá no
Mato Grosso, não é? Mas nunca ninguém foi atrás. [...] (RIBAS, 2004).

A mencionada Fazenda São Francisco era de propriedade da Cobrimco, conforme


indicado na Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes (FERRARINI, 1995, p. 91).
Segundo consta na mesma publicação, quando foi desativada a fazenda, os dois Xetá
foram deslocados para Maringá e Belém (PA).
Antônio e Carolina Lustosa Freitas, em 1956, também decidiram “criar” duas
crianças, mesmo contra a vontade dos pais. São elas Tiguá (Maria Rosa), ainda viva, e
Geraldo, já falecido:

A mãe dele ficou uns três ou quatro dias em redor [da Fazenda] pra roubá-lo. Quan-
do foi um belo dia, ela ameaçou pegá-lo. Foi quando eu peguei uma vara de bater
em vaca e a ameacei. Depois disso, ela nunca mais tentou. O Mã [o pai da criança]
tentou, chegou a pegá-lo, mas eu fiz a mesma coisa. (PARANÁ, 2016, Anexos)

Por fim, cita-se a situação de Tiquein e seu irmão Rondon, que após a morte dos
pais por sarampo foram “criados” por João Rosso de Menezes – então funcionário do SPI
– e sua mãe, Dona Rosa. Assim, os Xetá que conseguiram escapar do extermínio18 foram
retirados de suas terras, dispersos em fazendas, postos indígenas Kaingang e Guarani ou
“criados” por brancos, que os levaram para diferentes regiões do estado ou fora dele.
Claudemir, descendente Xetá, ao falar do destino de seu povo, na Audiência Pú-
blica da Comissão Estadual da Verdade, que aconteceu em Maringá, nos dias 04 e 05 de
agosto de 2014, traz à memória essa circunstância:

[...] o que eu tenho que falar eu não faço rodeio. Na época meu pai contava pra nós
e eu chegava chorar. Dizia que quando começaram a tirar os índios é a mesma coisa
de quando cria uma cadela chega lá os pessoal e diz: olha que cachorrinho bonitinho,
eu vou levar esse aqui! [...] Foi a mesma coisa que aconteceu com nosso povo, por isso
aconteceu de ir pra um lado ir pro outro, extraviou tudo, foi isso que aconteceu. [...]

A documentação analisada permite concluir que restam ainda vários desapareci-


mentos a serem elucidados, como por exemplo o destino dos caminhões que saíam da

18
O contato desencadeou um período bastante difícil para os Xetá. Assim, enquanto Dona Carolina enumera os Xetá
raptados ou desaparecidos na década de 1950, Wladimir Kozak, que voltou aos Xetá mais de vinte vezes após tê-los
conhecido nos anos 50, concentrou-se em enumerar aqueles acometidos por doenças na década seguinte: “Pouco a pou-
co, os Xetá desse grupo foram morrendo ou se dispersaram por outra região. Hatshuakán, o líder do grupo, morreu de
tuberculose provinda de subnutrição em março de 1966. Eirakán, sua mulher Álua e seus filhos morreram em junho de
1967. Haikumbawai morreu em 1972” (KOZAK et al., 1981, p. 31).

371
região da Serra dos Dourados carregados com Xetá. O paradeiro dessas pessoas permanece
ignorado pois, removidos compulsoriamente das suas terras tradicionais, jamais retornaram.
Cabe mencionar ainda prováveis envenenamentos por meio de alimentos. Há fortes indícios
de que a mãe de à (Maria Rosa), uma Xetá sobrevivente, órfã (KOZAK, s/d; SILVA, 1998),
capturada na Serra dos Dourados quando tinha aproximadamente seis anos, foi envenenada,
a contar pelo depoimento que deu à antropóloga Carmen Lúcia da Silva:

Minha mãe morreu depois do meu pai. Os brancos, acho que os engenheiros,
abriam picada, com machado, picareta, e moravam numa fazenda lá perto. Eles
construíam estradas próximo ao local onde ficavam nossos ranchos. Foi quando
deixaram carne de charque nos nossos ranchos pra nós comermos. Nossa gente
nunca tinha comido isso. Todos comeram aquilo com farinha que eles deixaram.
O grupo inteiro morreu com dor de barriga. Apenas algumas crianças iguais a eu
não comeram, e foi assim que nos salvamos. Foi assim que minha mãe morreu, e
aquela nossa gente que parava ali (SILVA, 1998, p. 96).

Restando improvável que o consumo do sal tivesse sido o causador exclusivo das
súbitas mortes, a hipótese de que tenha ocorrido envenenamento deve ser considerada,
sobretudo se atentarmos para o fato de que o expediente de envenenamento de índios,
para expulsão de seu território, é recorrente na literatura sobre povos indígenas no Brasil.
No início dos anos 1970, aos Tapayuna foi oferecida carne de anta “temperada” com ar-
sênico, que também foi misturado ao açúcar, resultando na morte de muitas pessoas. No
Relatório da CNV há, também, registro de que os Cinta Larga foram exterminados por
meio da adição de estricnina ao açúcar (BRASIL, 2014, p. 232). Outro Xetá, Tiquein,
em depoimento à CEV/PR, fez menção a envenenamentos com oferta de arroz doce:

Chegaram os brancos lá [Serra dos Dourados] e o pessoal gostava muito de coisa doce,
então eles preparavam aquelas panelas com arroz-doce e o pessoal que comia ali, no
outro dia amanhecia morto, não se sabia o que acontecia. Era criança, homem e mu-
lher que morria à noite. Os que não morriam, os brancos colocavam no caminhão e
saiam à tarde para depois voltar sem ninguém. (PARANÁ, 2016, Anexos)

Além das violações já citadas (homicídios, desaparecimentos forçados, sequestros


de crianças, remoções compulsórias, etc.), os Xetá também foram vítimas de violência
sexual contra mulheres (SILVA, 1998). No entanto, em que pesem os esforços de Lou-
reiro Fernandes dando ciência das violações19 a omissão estatal foi uma constante. O
SPI e, em seguida, a FUNAI, não implementaram qualquer iniciativa para conter as
investidas dos colonizadores, a fim de garantir proteção ao território e à vida dos Xetá
e tampouco para tentar reuni-los. A reunião dos sobreviventes, anos mais tarde, deu-se

19
Vide documentos arquivados no Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (CEPA/UFPR).

372
após esforços de antropólogos. No âmbito do Estado, em 1955, o deputado Antônio
Lustosa de Oliveira, proprietário da fazenda Santa Rosa, chegou a propor a criação de
um Parque Estadual na Região da Serra dos Dourados para reunir os índios dispersos,
mas o projeto não obteve a aprovação (SILVA, 1998, p. 206)20.
No âmbito federal, em 30 de maio de 1961 foi criado por meio do Decreto nº
50665, o Parque Nacional de Sete Quedas, que deveria reunir os Xetá sobreviventes. No
entanto, passados vinte anos, em 04 de junho de 1981, o Parque foi extinto pelo Decre-
to Presidencial nº 86.071 (SILVA, 1998, p. 210), do General João Batista Figueiredo,
e não foram encaminhadas quaisquer providências para a reunião dos sobreviventes no
território que lhes havia sido destinado21.
Resta inevitável pôr em destaque as palavras de Dival José de Souza, indigenista do
SPI e depois da FUNAI, que acompanhou a trajetória histórica dos Xetá. Em entrevista à
antropóloga Cecília Vieira Helm, Dival de Souza foi enfático: “O extermínio [dos Xetá]
foi devido à falta de interesse das autoridades governamentais” (HELM, 2005, p. 20).
Segundo o último registropublicado, os descentes dos sobreviventes do massacre
na Serra de Dourados somam atualmente quase 160 pessoas dispersas em TIs Kaingang
e Guarani e aguardam a homologação de suas terras, cujo relatório de identificação e
delimitação, com 2.868 hectares, nas imediações da cidade de Ivaté, PR, foi publicado
no Diário Oficial, de 30 de junho de 2014 (PARANÁ, 2016, Anexos).

GUARDA E CADEIA INDÍGENA:


CENTROS CLANDESTINOS DE TORTURA

A polícia indígena foi instituída pelo SPI sob a justificativa de que serviria para
garantir a segurança da comunidade:

Com o objetivo de efetuar o policiamento dos aldeamentos [...], de acordo com


as ordens de Encarregado do Posto, vigiar constantemente a área do PI, de modo
a evitar que intrusos se instalem nela se estabeleçam em caráter definitivo; prestar
socorro a feridos ou acidentados; prestar informações sobre pessoas estranhas que
penetram na área, evitar brigas entre índios, chamando para isso o responsável
pelo posto, quando necessário, efetuar diligências que forem determinadas, pro-
curar evitar a entrada de bebidas alcoólicas nos aldeamentos; chamar atenção de
qualquer índio que esteja se portando mal, levando-o a presença do Encarregado;
vigiar os bens do patrimônio indígena, evitando o corte de madeiras sem ordem

20
De acordo com registros do Arquivo Público do Estado do Paraná e do Instituto de Terras, Cartografia e Geociências,
durante os dois mandatos de Lupion (1947-1951 e 1956-1961) foi emitido o maior número de títulos de terra, no
Paraná, em todo o período republicano, somando, no primeiro mandato, 9.564 títulos e, no segundo, 26.084 títulos.
(PARANÁ, 2016, Anexos).
21
A extinção do Parque com a inundação das Sete Quedas também atingiu os Guarani daquela região.

373
superior; evitar o afastamento de índios do aldeamento para as capitais dos Esta-
dos ou grandes cidades. (MUSEU DO ÍNDIO, 1960).

A FUNAI, por sua vez, denominou-a de “Guarda Indígena” (GRIN) e deu a ela
diversas atribuições, dentre as quais a de proteger as terras indígenas e manter a “ordem
interna”. Os levantamentos efetuados no presente relatório demonstram que esse apa-
rato repressor foi o que mais atuou nas TIs, mesmo não sendo legalmente constituído.
Diga-se, sem um código de conduta ou estabelecimento de normas de ação, nem mesmo
um órgão dentro do SPI-FUNAI que fiscalizasse seu funcionamento.
Conforme Relatório da CNV, a repressão ocorreu de forma sistemática em diver-
sas regiões do país:

Para lidar com a insatisfação dos povos indígenas, o Estado recorreu, ano após ano,
à privação de liberdade de índios que resistiram às ordens do chefe do posto, à in-
vasão e exploração das riquezas de suas terras, bem como aos projetos de integração
nacional e desenvolvimento.[…] A violência contra índios tutelados era praticada de
forma brutal e pública nos postos e em delegacias dos municípios, com o objetivo de
humilhar os presos e também de atingir os demais indígenas da localidade, intimi-
dando tanto os que presenciavam os fatos como os que ouviam falar das agressões.
[…] Inúmeros relatos apontaram que a violência do Estado estava longe de ser difu-
sa e casual, pois, com sua aplicação sistemática, molda-se uma cultura de repressão
para subjugar os índios atingidos e silenciar a luta por seus direitos frente à política
desenvolvimentista do Estado brasileiro à época (BRASIL, 2014, p. 239).

Com relação ao aprisionamento de índios, a Comissão Nacional da Verdade


apontou, ainda, que “o Ato Institucional n. 5 foi um marco da oficialização desse sistema
punitivo especial, integrando a repressão ao índio aos órgãos de controle exercidos por
parte do Estado brasileiro, como o Sistema Nacional de Informações (SNI) e seus bra-
ços”(BRASIL, 2014, p. 239).Tudo sob o comando direto dos generais Costa Cavalcanti
e Bandeira de Melo, que controlavam a política indigenista em 1969, o primeiro como
ministro do Interior e o segundo como presidente da FUNAI.
A partir da bibliografia acadêmica especializada, audiências públicas e oitivas, encon-
tram-se relatos sobre as “cadeias indígenas”, uso do “tronco”, que se enquadram na classifica-
ção de centros clandestinos de tortura, visto que foram utilizadas para impor comportamen-
to disciplinar via expiação por um “castigo exemplar” aos “índios rebeldes”. Um indígena
poderia ser remetido à “cadeia do posto” e, complementarmente, sofrer “castigos, surras”, ir
para o “tronco” por diversos motivos, todos dependendo de ordem ou anuência do chefe do
posto – “brigas, bebedeiras, insubordinação (em relação ao chefe do PI), falta ao trabalho na
“roça do posto/panelão”, sair da TI sem “portaria” ou “passe”, poligamia (em particular entre
Kaingangs dada prática tradicional de poligamia sororal), atritos com “intrusos” – sendo que
apenas os indígenas recebiam punição na “cadeia indígena” ou “tronco” que funcionavam

374
de forma complementar e articulada. Vale registrar o depoimento de João Maria Tapixi, em
Audiência Pública da CEV/PR, realizada no município de Maringá:

A gente, e ia ali, qualquer erro... que saia [sair da T.I. sem “passe ou portaria”], por
exemplo, era castigado ali mesmo. Eles [Polícia Indígena] amarrava ele [vítima]. Eles
[índios antigos] tinham muito costume de trocar de mulher, e essa troca de mulher
era castigado. Bem castigado. Então, eram castigados, pois tomavam a mulher um do
outro, ai eles eram castigados por causa disso ai. Então, volte e meia, o capitão [respon-
sável pela Polícia Indígena designado pelo chefe de P.I.] era chamado lá no chefe de
posto e vinha, chegava fazer uma reunião, vinha novas normas: “Olha, nós temos que
fazer um trabalho este ano e não gastar muito, tá ficando devendo muito pro patrão, e
o patrão não tá aguentando”. [...] e alguns que desistiam [do trabalho na roça do posto]
e iam embora, eles ficavam devendo pro capitão. Pro capitão que era responsável lá,
pro dono do serviço. Os índios escapavam e iam embora. [A Polícia Indígena] ia atrás
e trazia de volta, daí davam um castigo, um exemplo de castigo tinha que trabalhar [de
graça para o P.I. ou capitão dos índios]. (PARANÁ, 2016, Anexos)

Sobre os castigos no “tronco”, Tapixi explica:

Ele era amarrado, em alguns casos ele era surrado mesmo. Dava duas lambada
[de corda ou chicote], o índio tinha que tirar a camisa pra levar as duas lambadas.
[...] não tinha um tronco oficial, que nem hoje tem as cadeias. Lá não, a gente
fazia um erro, ai amarrava em qualquer pé de pau. Não tinha um tronco oficial,
assim. Agora as mulheres índias elas eram castigadas no tronco igual aos homens,
elas apanhavam igual aos homens. [...] sei que índio fugiu [da T.I.] com medo dos
chefes de posto. (PARANÁ, 2016, Anexos)

Segundo depoimentos colhidos por Helm entre 1965 e 1980 (HELM, 2013),
bem como registrado por Kimyie Tommasino, existiam “cadeias indígenas” e “troncos”
em todas as TIs do Paraná até a década de oitenta e mesmo posteriormente.
Assim, conforme destacado pela CNV, no período de 1946 a 1967 o aprisiona-
mento cumpriu o papel de “amansar” o índio rebelde e controlar a resistência de seu
povo frente aos conflitos gerados pela política de desenvolvimento da sociedade aplicada
pelos órgãos indigenistas criados pelo Estado, sustentando um sistema ilegal de detenção
que, ao longo de décadas, foi se estruturando e operou de forma coordenada, porém sem
ser oficial, pela participação de inspetores de índio, chefes de posto, chefes de inspetoria,
funcionários da direção do SPI, relacionando-se às vezes com os delegados de polícia de
municípios próximos às aldeias (BRASIL, 2014, p. 237).
Além dos castigos físicos e prisão, as punições também se deram por meio de “des-
locamento forçado”, verdadeira expulsão de grupos ou indivíduos indígenas considerados
“índios problema” para terras indígenas distantes do local em que causavam embaraços ao
órgão indigenista (CASTRO, 2011, p. 58). O uso desse mecanismo de repressão implicava

375
em fragilização e até “rompimento de redes de parentesco e solidariedade existentes na terra
de origem”, perdas econômicas de roçados e moradias, posto que estes não eram indenizados.
Essa política afetava de forma profunda os grupos indígenas diretamente em sua identidade
étnica, sendo que as crianças foram as mais afetadas devido aos distanciamentos impostos e
que acabavam implicando em rompimentos dos laços familiares e culturais.
Tal mecanismo de repressão foi utilizado contra os pais de Ângelo Kretã devido à opo-
sição que fizeram à instalação e ao funcionamento das serrarias Slaviero em Mangueirinha.
Também foi utilizado em relação a João Maria Tapixi. Importa destacar ainda que os indí-
genas eram impedidos de circular livremente pelo território nacional, pois para sair da Terra
Indígena era necessário “passe” emitido pelo servidor do SPI ou FUNAI. Saliente-se que esse
método era contrário à legislação indigenista e tratados internacionais sobre o tema do qual o
país era signatário na época, a exemplo da Convenção nº 107, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto nº 58.824, de 14/07/1966. Ainda no que se
refere à aplicação dessas práticas repressivas, depoimentos coletados por pesquisas recentes,
identificaram os “chefes do Posto” conhecidos como “sargento João Bosco” e o “tenente Flo-
risbaldo” como torturadores de índios (CASTRO, 2011, p. 69; PARANÁ, 2016, Anexos).

VIOLÊNCIA SEXUAL

Segundo Cecília Helm, os casos de mulheres indígenas violentadas eram cotidia-


nos. Na entrevista e oitiva que concedeu à CEV/PR referiu-se a Vitor, chefe do PI de
Boa Vista, do município de Laranjeiras do Sul, como conhecido abusador de mulheres
indígenas. O Relatório Figueiredo, por sua vez, citou o servidor do SPI e, posterior-
mente, da FUNAI, Wismar Costa Lima, quando chefe do TI Barão de Antonina, como
autor de assédio e violência sexual (PARANÁ, 2016, Anexos). Soma-se a esses relatos o
depoimento do Kaingang João Maria Tapixi na Audiência Pública de Maringá.

TRABALHOS FORÇADOS

Os casos de trabalho forçado aparecem principalmente relacionados à “renda in-


dígena” e às práticas dela originadas, principalmente as “roças coletivas”, “roça do posto”
ou “panelão”, existentes desde o SPI e mantidas pela FUNAI. Segundo depoimentos de
antropólogos e indígenas colhidos nas Audiências Públicas da CEV/PR, os indígenas eram
obrigados a trabalhar alguns dias da semana nessa atividade, muitas vezes sem receber
remuneração em dinheiro ou a recebendo na forma de “[…] gêneros alimentícios distri-
buídos semanalmente, cujo valor era descontado no final da colheita. Serviços de plantio e
carpa das roças eram pagos em diárias para os índios envolvidos” (TOMMASINO, 1995,

376
p. 194). Ressalta-se que a recusa em trabalhar nessas atividades significava punição, sendo
que a colheita era direcionada para o órgão indigenista (CASTRO, 2011).
O acervo documental produzido pelos investigadores do Relatório Figueiredo le-
vantou diversos indícios de conflitos causados pela imposição de trabalho compulsório.
Cecília Helm afirma ter constatado em suas pesquisas que há uma relação entre a impo-
sição do trabalho compulsório – quer dentro da TI para gerar a “renda indígena”, quer
fora, quando os servidores da FUNAI atuaram como empreiteiros (“gatos”) para grandes
proprietários – e a tentativa de transformar o indígena em boia fria dócil, obediente a con-
dições de trabalho duras e salários baixos. Ela pesquisou nas décadas de setenta e oitenta tal
prática constando que fazendeiros “alugavam” por intermédio e/ou com conhecimento de
servidores do SPI e FUNAI grupos de indígenas para trabalharem em suas terras. Em al-
guns casos esses grupos indígenas foram enviados para trabalho em Mato Grosso, de onde
voltaram com bem pouco dinheiro de pagamento, retido por patrões, intermediários, etc.
(HELM, 2013). Tais dados foram corroborados por pesquisas realizadas pela antropóloga
Edilene Coffaci de Lima ao investigar Terras Indígenas do Norte paranaense – diferentes
daquelas estudadas por Cecília Helm. Essa nova pesquisa traz depoimentos da década de
oitenta nos quais indígenas relatam que os “intrusos” pagavam valores menores aos indíge-
nas do que aqueles pagos aos não índios pelas mesmas tarefas.

REPRESSÃO A MOVIMENTOS E LIDERANÇAS INDÍGENAS

O levantamento dos casos de violações em decorrência de oposição à política indige-


nista imposta pelos militares guarda uma série de desafios. Não obstante, a resistência coletiva
ou individual teve como marco concreto práticas institucionais consideradas aviltantes pelos
indígenas. A partir da memória desses, os casos indicados foram classificados como “indisci-
plina”, “desordem”, “desafios aos chefes do posto”, entre outros termos que se enquadravam
em “desobediência civil” explicitamente direcionada aos representantes do poder estatal in-
vestidos na função de exercer a tutela nas TIs (TOMMASINO, 2014, p. 61). É importante
lembrar que a FUNAI foi administrada por militares de uma formação diferente daquela do
ideário indigenista rondoniano. Era uma ditadura civil-militar e a gestão se orientava dentro
do binômio desenvolvimentismo-segurança nacional, sob uma ótica autoritária na qual opo-
sitores eram vistos com desconfiança e vigiados atentamente.
Nos termos do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, tanto o endure-
cimento da política indigenista como a repressão ao movimento político-indigenista,
que se gestava para fazer frente ao contexto da Ditadura Militar, intensificam-se sobre-
maneira após o AI-5. A partir de 1970, com a edição do Decreto nº 66.882, a FUNAI
incorporou formalmente atividades de assessoramento de segurança e informações à
sua estrutura organizacional, por meio da Seção de Segurança e Informações, vinculada

377
à Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério do Interior, esta diretamente
ligada ao SNI. Em 1975 foi publicado, por meio da Portaria nº 239, o regimento interno
da Assessoria de Segurança e Informações (ASI-FUNAI), tal como passou a ser chamada,
que regulamentava suas finalidades, intrinsecamente ligadas à Doutrina da Segurança Na-
cional. De acordo com a portaria, todas as unidades descentralizadas da FUNAI passaram
a compor a “comunidade de informações” da ASI, o que se reverteu na instauração de um
clima constante de perseguição dentro do órgão. Lideranças indígenas e seus apoiadores
passaram a ser monitorados por meio desse serviço de inteligência, que mapeava e descre-
via as atividades julgadas “subversivas” ou “agitadoras”, com especial atenção para o CIMI,
cujos membros eram frequentemente taxados de “comunistas” e tinham sua permanência
ou seu ingresso nas terras indígenas negado pelo órgão tutor. Pesquisadores que pleiteavam
o ingresso em terras indígenas passaram a ter suas solicitações avaliadas com base na análise
de suas orientações políticas. Funcionários da FUNAI que fomentavam ou participavam
de reuniões sobre direitos indígenas ou que eram tidos como suspeitos por suas orientações
políticas também passaram a ser perseguidos. Em todos esses casos, a preocupação cons-
tante com o encobrimento de críticas à política gestada pelo órgão era a tônica principal.
Um exemplo desse ambiente de repressão pode ser visto na área de atuação da 4ª
Delegacia Regional (D.R.) da FUNAI, sediada em Curitiba, e que atendia aos indígenas
dos três estados da região Sul. Diversas lideranças indígenas Kaingang e Guarani de Santa
Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul participavam das chamadas “Assembleias de
Chefes Indígenas”, organizadas com o apoio do CIMI desde 1974. O historiador Clóvis
Brighenti localizou telegramas do acervo ASI-FUNAI que demonstram o cerceamento
do livre direito de ir e vir dos povos indígenas, bem como violências praticadas pela FU-
NAI. A documentação nos serve como exemplo regional dessa repressão às organizações
indígenas, que ocorreu nacionalmente. Em 1977, há registros de reclamações públicas
de lideranças indígenas por conta da proibição de participarem dessas assembleias. Para
qualquer deslocamento entre aldeias os indígenas necessitavam da já citada “portaria”
ou do “passe”, documento de responsabilidade do chefe de posto que autorizava o afas-
tamento mediante exposição de motivos e tempo de permanência em viagem. Também
deveriam apresentar-se ao mesmo quando do retorno (BRASIL, 2014, p. 242).
Para além disso, o Estado brasileiro também cerceou mobilizações indígenas e de
grupos formados por não índios que defendiam os direitos daqueles, como demonstra a
demissão de mais de vinte indigenistas da FUNAI em razão de carta por eles elaborada
denunciando violações promovidas ou acobertadas pelo regime contra povos indígenas
(DAVIS, 1978, p. 18; CTI, 2014, p. 103).
No Paraná, as maiores expressões de mobilizações e do movimento social indígena
foram as “retomadas” ou “desintrusões” de TIs promovidas por índios em Rio das Cobras
(1977-1979) e Barão de Antonina (em 1979 e, em segunda etapa, em 1985), sendo que
as perseguições políticas e interesses econômicos fizeram várias vítimas, das quais a mais

378
conhecida foi Ângelo Cretã (TOMMASINO, 1995, p. 65-70). A partir dos anos setenta
começou a ser organizada a primeira tentativa de um movimento indígena nacional, tendo
como representantes mais conhecidos Marçal Guarani, Raoni, Ângelo Kretã e as lutas dos
Xavante (MT) e Pataxós. Demonstração da pujança de tal movimento foram as diversas
“rebeliões indígenas” ocorridas ao final da década de setenta e início dos anos oitenta.
Além desses casos envolvendo as retomadas, merecem destaques diversos outros de
repressão ou impedimento de manifestações culturais (como o “ritual dos mortos” Kaingang
Kikikoi – HELM, 2013), praticados pelo órgão indigenista por meio dos administradores
de posto. Em depoimento na Audiência Pública da CEV/PR, Romancil Cretã e João Tapixi
referiram-se à proibição de seus pais e avós do uso da língua nativa em escolas das TIs.

REBELIÕES INDÍGENAS NO NORTE DO PARANÁ: 1979-1985

A retomada de terras indígenas aqui registrada refere-se àquelas demarcadas ofi-


cialmente e ocupadas por não índios, os “intrusos” (arrendatários da FUNAI, posseiros,
grileiros, madeireiros, serrarias, barragens, empresas de extração de areia, etc.). Como
demonstra a bibliografia especializada, jornais do período e depoimentos à CEV/PR, as
TIs do Paraná estavam, em grande parte, sendo exploradas por não índios. Entre 1977 e
1985 ocorreram diversas mobilizações envolvendo indígenas de quase todas as TIs para
reaver suas terras, sendo que a experiência política de mobilização foi cumulativa, pois,
segundo depoimento de João Tapixi à CEV/PR, houve solidariedade entre os grupos:
indígenas da TI Rio das Cobras, desintrusada em 1977, enviaram, em 1979 e 1985,
“guerreiros” para apoiar as mobilizações de Barão de Antonina. Salientando-se que em
outras regiões do Sul e do Brasil também ocorreram mobilizações semelhantes, impondo
reação da FUNAI, que promoveu a retirada de não índios de terras demarcadas.
Em várias TIs a situação era dramática, como no caso de Barão de Antonina, que
foi dividida nas Glebas Água Branca (parte da Gleba I) e Cedro. Ambas intrusadas, sen-
do que a primeira estava quase totalmente ocupada por “posseiros”, “arrendatários” (da
FUNAI) e grileiros (TOMMASINO, 1995, p. 205-6). Com relação à ocupação, desta-
ca-se o fato de que as terras objeto de “arrendamento” nos moldes da “renda indígena”
deveriam ser destinadas a pequenos proprietários, o que nem sempre ocorria. Além dos
arrendamentos, havia, ainda, casos de grilagem de terras em que títulos havidos irregu-
larmente serviam para transações da terra ou para que latifundiários assegurassem seu
domínio. Cansados de tais fatos e cada vez mais comprimidos pelo avanço dos intrusos
e devido à pressão demográfica pelo aumento da população indígena, os indígenas deci-
diram expulsar todos os não índios (LIMA, 1989, p. 34). Salienta-se que entre esses in-
trusos estavam ex-servidores do SPI, como João Pereira Gomes Filho, seu filho Antônio
Pereira Gomes e o cunhado Antônio Lázaro dos Santos.

379
A primeira ação de desintrusão e retomada ocorreu em 1979 na área conhecida
como Água Branca, quando dezenas de Kaingang adentraram em plantações e galpões
dos maiores “proprietários” e passaram a cultivar as terras e impedir o trabalho de
seus empregados. A situação rapidamente se deteriorou, chegando aos limites de um
conflito armado, tendo em vista a utilização de jagunços pelos fazendeiros Santaella
e Batarse e o espancamento do índio Antônio Pedro por um pistoleiro (PARANÁ,
2016, Anexos). Como é possível perceber de outros casos, no Paraná a invasão de não
índios nas TIs aprofundava conflitos interétnicos, sendo importante ressaltar que o
janguncismo era uma prática quase que exclusiva daqueles que dispunham de grandes
extensões de terra e/ou serrarias, fatos esses notoriamente ocorridos nas TIs de Man-
gueirinha e Rio das Cobras.
Vale lembrar que, não obstante vários casos de agressão, ameaças, jagunçagem e
assassinato na T.I. de Barão de Antonina entre as décadas de cinquenta e setenta (TOM-
MASINO, 1995 e 2014; PARANÁ, 2016, Anexos), os órgãos indigenistas raramente
tomavam postura incisiva de punir ou buscar punição de não índios (posseiros, fazen-
deiros, madeireiros ou arrendatários do SPI/FUNAI) que cometiam crimes contra indí-
genas. Apenas devido à massiva ação indígena foi que o chefe da 12ª D.R. da FUNAI
sediada em Bauru-SP, Álvaro Villas Boas, passou a agir. Ademais, o governo estadual,
que se comprometera a colaborar na retirada de “posseiros” de Água Branca era contrário
à retirada dos não índios, conforme demonstra ofício enviado pelo Secretário Estadual
da Agricultura Reinhold Stephanes ao presidente da FUNAI, general João Carlos Nobre
da Veiga, referente à retirada dos “posseiros” de Água Branca, manifestando “preocupa-
ção” em relação a “posseiros” que estavam no Cedro e na TI de Apucarana. Nesse ofício,
o Secretário de Estado propôs ao presidente da FUNAI um processo de regularização
fundiária para que não índios permanecessem no Cedro, propondo que para essa área
(demarcada para indígenas) fossem transferidos os “posseiros” da TI de Apucarana. A
proposta de expropriar parte da TI foi defendida também por Álvaro Villas Boas, em
ofício (PARANÁ, 2016, Anexos) encaminhado à presidência da FUNAI (TOMMASI-
NO, 1995, p. 208).
Saliente-se ainda que a TI de Apucarana teve uma supressão de 1.000 ha (em re-
lação ao Acordo de 1949), que não foram restituídos aos Kaingang, fato esse que levou,
ainda em 2014, à reativação periódica de lutas por sua devolução.

380
MORTE DO CACIQUE ÂNGELO CRETÃ

O cacique Kaingang Ângelo Cretã, no final da década de 1970, foi um dos organiza-
dores do movimento das retomadas e uma referência nacional do movimento indígena em
crescente visibilidade e na simpatia da opinião pública brasileira. Cretã foi um dos articula-
dores do movimento pela retomada das Terras Indígenas de Ligeiro, Nanoai e Cacique Doble
(Rio Grande do Sul,) Chapecó (Santa Catarina) e Rio das Cobras, no Paraná. Essa liderança,
paulatinamente, passou a se opor a diversas práticas rotineiras implementadas pela FUNAI,
consideradas degradantes pelos indígenas, como: o “panelão”, a presença de serrarias dirigidas
ou autorizadas pela FUNAI nas TIs, a transferência dos recursos oriundos dessa exploração
de outros recursos naturais para a Gestão do Patrimônio Indígena em Brasília e principal-
mente a espoliação de grande parte da TI Mangueirinha feita pelo citado Acordo Lupion,
destinando-a para um dos maiores grupos madeireiros paranaenses, o Grupo Slaviero.
As críticas feitas contra a FUNAI por Ângelo Cretã e pela liderança Kaingang
chamada de Paraguaio, levaram a diversos atritos, em particular com os responsáveis
pela administração da renda indígena (especificamente pela venda de madeira de lei da
TI Mangueirinha). Esse fato pode ser averiguado pelo memorando 042/gov./CPI-78 de
25/08/78, enviado por Milton Ribeiro Rodrigues, coordenador do DGPI da 4ª D.R.-
FUNAI, para a Coordenação Nacional da Renda Indígena em Brasília (PARANÁ, 2016,
Anexos). Nesse memorando o servidor acusa os dois Kaingang e o servidor da FUNAI
em Mangueirinha Issac Bavaresco de estarem realizando venda ilegal de madeira de lei.
Tal acusação estava ligada, conforme o próprio memorando demonstra, às reivindica-
ções e tentativas de Cretã e Paraguaio de influenciar tanto nas decisões sobre derrubada
de madeira dentro da TI quanto na destinação de recursos de sua venda. Evidencia-se
o uso político de expediente administrativo: buscava-se deslegitimar as reivindicações
indígenas e de servidores da FUNAI simpáticos a eles.
Explicita-se o fato de que, nesse contexto, Cretã destacou-se por sua atuação com-
bativa, bem como por suas posições críticas junto à FUNAI, grupos madeireiros, grileiros,
fazendeiros e outros não indígenas. Sua morte segundo familiares, lideranças indígenas e
organizações indigenistas interessava a grupos poderosos e, para os Kaingang e indigenistas
subsiste a grande suspeita de que não tenha sido acidental, pois além dele outros líderes
como Ambrósio dos Santos, Nelson Xangrê, Marcolino Kandetê, Zé Lopes, Ambrósio dos
Santos e Zé Domingos recebiam constantes ameaças. Ademais, outras lideranças indígenas
como Ângelo Pankararé (Bahia), Simão Bororo (Mato Grosso) e Marçal Tupã-I (Guarani
de Mato Grosso do Sul) foram assassinadas por jagunços em decorrência de mobilizações
por retomada ou demarcação de terras indígenas (CASTRO, 2011).
A morte de Ângelo Cretã ocorreu, no dia 29 de janeiro de 1980, em virtude dos
ferimentos causados por um acidente automobilístico, em circunstâncias que indicam
que tenha sido provocado por uma emboscada preparada por jagunços conhecidos na

381
região. Conforme vários depoimentos de Ângelo Cretã à época, ele vinha sofrendo cons-
tantes ameaças de morte, tanto que foram designados seis policiais militares para garantir
sua segurança e três deles estavam no fusca dirigido por Ângelo no momento do acidente
(Liberino Bak, Sadi Reisdoenfer e Bernardo Pehencenzmi). Conforme a maioria dos de-
poimentos colhidos pela Polícia Federal no Inquérito Policial n.° 013/80-SR/PR e pela
Polícia Civil em Chopinzinho, Francisco Monteiro, Antônio Rosevaldo da Silva, Romildo
Lopes Bueno e outro indivíduo não identificado teriam abandonado na pista de rolamento
da BR-373, na altura do KM 277, um veículo Fusca Azul, placa NP-0213-PR, de São
João, circunstância que obrigou Antônio de Souza Lima, que trafegava em sentido contrá-
rio, a desviar do veículo parado e invadir a pista em que estava o veículo do cacique Ângelo
Cretã. Em relação aos indícios de jagunçagem, a 4ª D.R.-FUNAI chegou inclusive a enviar
radiograma confidencial urgente para a ASI-FUNAI apontando, inclusive, os nomes das
pessoas que ameaçavam Cretã, como se vê na transcrição a seguir:

nº 08 de 18-01-80 – RECEBEMOS NESTA DATA INFO TELEFONICA DO


CAC. ANGELO CRETÃ/MANGUEIRINHA DANDO CONTA GRAVES
AMEAÇAS DE MORTE RECEBIDAS ET. QUAE EXECUTADAS CONTRA
MESMO ET CH PI PT FOI REGISTRADA QUEIXA DEL. POL CHOPIN-
ZINHO/PR PT SÃO ACUSADOS INDIVÍDUOS OSWALDO CAMARGO
ET DARCI CAMARGO V6 SENDO 19 VG MARIDO EX PROFESSORA ET
JAGUNÇU AREA PR TAMBEM ENCONTRAM-SE ENVOLVIDOS ATILIO
PEREIRA ET OSWALDO BURGUE VG MORADOR PRÓXIMO AREA GUA-
RANI PT SOL APOIO SEC SEGURANÇA POIS REF INDIVIDUOS APESAR
QUEIXA APRESENTADA PROSSEGUEM TENTANDO CONSECUÇÃO
CRIME PT SITUAÇÃO TENDE AGRAVAR-SE CASO NÃO OCORRA PRO-
VIDENCIAS POLICIAIS URGENTES PT. JOSE CARLOS ALVES – DEL/1DR

De outra parte, há sérias em relação as condições de funcionamento desse fusca


azul, que se encontrava parado em plena via asfáltica, obstando a regular circulação de
veículos e que obrigou o caminhão a desviar e adentrar à pista contrária, na qual houve
a colisão. O tenente da Polícia Militar Sílvio Mozalatti, em entrevista a uma rede de TV,
declarou que o veículo parado “está em perfeita condição mecânica, não tem defeito ne-
nhum. Inclusive veio rodando de lá [do lugar da colisão] até o pátio da delegacia de polícia”
(CASTRO, 2011). Os depoimentos desse policial, bem como de outro PM que também
esteve no local do “acidente”, não foram levados em consideração no inquérito instaurado
para investigar a morte do líder indígena, bem como na ação penal desencadeada. Esses
fatos fizeram com que indígenas e entidades indigenistas considerassem a hipótese de ho-
micídio doloso, pois o próprio oficial da PM supracitado informou a presença de homens
armados no local e no momento do acidente (CASTRO, 2011, p. 150).
Ao analisar do Inquérito relativo à morte de Cretã, a CEV/PR, salientou que:
1) o contexto anterior de ameaças não foi adequadamente investigado pelo Delegado

382
que presidiu o Inquérito, como fica evidente no Relatório do Inquérito Policial e no
curso da Ação Penal; 2) apesar de citado várias vezes como provável envolvido nos fatos,
como o quarto ocupante do fusca, Osvaldo Burgue (Osvaldinho), não foi procurado e
nem sequer ouvido, anotando-se que no já mencionado radiograma, enviado pela 4ª
D.R.-FUNAI à ASI-FUNAI, Osvaldo Burgue é citado nominalmente por ter ameaçado
Cretã; 3) é significativo o fato de que todas as autoridades envolvidas na investigação
desconsideraram a versão que estava sendo noticiada em periódicos da mídia estadual e
nacional, bem como nos depoimentos do oficial PM Lamartine Nascimento Pereira e do
chefe de PI Isaac Bavaresco, sobre a possibilidade de emboscada.
Registre-se, como já mencionado, que a Polícia Federal chegou a instaurar um
Inquérito para investigar os fatos e indiciou todos os ocupantes do veículo fusca azul e
o motorista do caminhão, mas o Tribunal Federal de Recursos entendeu que a Justiça
Estadual não seria a competente para processar e julgar esse tipo de infração penal. Esse
Inquérito, não obstante todas as diligências realizadas pelo Grupo de Trabalho da CEV/
PR, não foi localizado. Os indícios de que a morte de Cretã tenha sido desdobramento
de uma emboscada recomendam que seja reexaminado tal episódio, que pode contem-
plar prática criminosa, resgatando-se a verdade do propósito da eliminação de importan-
te liderança indígena, que se contrapunha ao discurso e práticas oficiais.

PRISÃO E AGRESSÕES FÍSICAS À FAMÍLIA DE JOÃO TAPIXI

Após a retirada dos não índios de Água Branca o clima se manteve tenso nas TIs do
Norte do Paraná, em especial no que se refere às relações entre dirigentes da FUNAI, como
Gilberto Abreu Amaral (chefe do PI de Barão de Antonina) e indígenas que participaram
das mobilizações, caso de João Maria Tapixi. O aumento da tensão entre ambos resultou
na violenta repressão contra a família Tapixi em 1983, cujo estopim teria sido um conflito
menor entre alguns pais de alunos e a professora contratada pela FUNAI, namorada do
servidor Gilberto Abreu Amaral. Segundo Comissão de Sindicância da própria FUNAI,
devido a tal conflito esse servidor, então chefe do PI, pediu à Polícia Indígena que pren-
desse João Maria Tapixi e seus familiares, sendo que alguns desses deveriam ser levados
amarrados a sua presença. Essa ordem foi desobedecida, levando o servidor da FUNAI a
“interpelar os índios [da Guarda Indígena], o que acabou gerando um conflito físico entre
as partes”. A crescente tensão adquiriu contornos tais que foi objeto de Comissão de Sin-
dicância composta pelos servidores José Araújo Filho e Oswaldo Malini e presidida pelo
procurador jurídico da 12ª D.R., Antônio Pedro Marquezi (FUNAI, 1985).
Em síntese, a Comissão de Sindicância da FUNAI relatou que, em novembro
de 1983, houve um atrito envolvendo o chefe do Posto Indígena Barão de Antonina e
alguns indígenas. O conflito teria resultado na detenção arbitrária e prisão, na cadeia da

383
cidade de São Jerônimo da Serra, dos indígenas João Maria Tapixi, de sua mãe Maria Rodrigues,
seu irmão Américo Rodrigues, suas irmãs Izabel Rodrigues Amaro e Tereza Nunes de Pau-
la, Ilda Vargas e outros familiares. Os funcionários da FUNAI envolvidos no episódio foram:
Moacir Cordeiro de Mello, subdelegado regional da 12ª. D.R.; Henrique Sérgio Bunger, chefe
do PI Apucarana; Almir Ribeiro Carvalho, chefe do PI Laranjinha; Nelson Antônio de Mello,
chefe do PI Vanuíre; Alceu Clementino de Souza, chefe da TI São Jerônimo; e Gilberto Abreu
Amaral, chefe do PI Barão de Antonina, este apontado como autor de arbitrariedades e abuso
de poder decorrentes da prisão dos indígenas por quatro dias e sua remoção compulsória de
Barão de Antonina para TI Pinhalzinho, a 200 km de sua residência original.
Em depoimento prestado à Comissão Estadual da Verdade, João Maria Tapixi
confirmou os fatos e circunstâncias que levaram à expulsão do grupo:

mais ou menos às onze horas do dia, chegou uma camioneta e uma viatura da po-
lícia, chegaram assim na estrada. Eu falei: “Vamos lá ver o que está acontecendo.
Correr não vai adiantar”. Falei para o meu irmão: “Correr não vai adiantar, que
eles vão pegar nós mesmo. Vamos lá”. Chegamos lá e foram diretamente pra gente.
Chamaram nós, aí prenderam eu, meu irmão, minha mãe (com sessenta e dois anos
de idade), duas irmãs e a mulher que deu a “litrada” e o marido dela. Levaram pra ca-
deia, ficamos quatro dias presos [...] na delegacia, nos [depois de] quatro dias chegou
dois caminhões carregados com todas as mudanças, aí me jogaram lá no Pinhalzinho
[Posto Indígena que fica no município de Tomazina-PR], mas eu levei um prejuízo,
eu tinha três alqueires de algodão, dois alqueires de feijão na hora de arrancar, perdi
tudo, fiquei cinquenta e oito dias no Pinhalzinho [...] eu cheguei no Pinhalzinho,
morava um posseiro chamava Neno Serrano, esse Neno chegou, ele era muito tra-
balhador, ele chegou, deu uma olhada assim, porque eles levaram um caminhão só
de ferramentas de trabalhador, o homem olhou assim, falou assim: “O que vocês
estão fazendo aqui?” Aí eu contei a história prá ele, ele falou assim: “Você quer que
eu arrume um advogado prá você?” Eu disse: “Eu quero” (PARANÁ, 2016, Anexos).

Assim, além das violências físicas e psicológicas, os indígenas transferidos com-


pulsoriamente para a T.I. de Pinhalzinho deixaram para trás plantações, animais e la-
vouras em fase de preparação, acarretando um prejuízo econômico substancial para essas
famílias. Segundo declarações de Izabel Amaro, de João Tapixi e de servidor da FUNAI,
somaram-se outras perdas causadas pelo fato de que parte da mobília dos expulsos foi
abrigada de forma precária, ficando exposta a chuva e umidade nos primeiros dias de sua
estadia na TI Pinhalzinho. Não bastassem esses crimes praticados, conforme telegrama
enviado, em 03 de dezembro de 1983, pelo chefe de posto Gilberto para a Delegacia Re-
gional da FUNAI, fica evidente que a remoção foi efetuada e somente depois ratificada
por documentos oficiais da FUNAI: “Solicito remoção de todas as casas mestiços trans-
feridos para Pinhalzinho fim desvincular PI Barão totalmente qualquer envolvimento
dos mesmos nessa área” (PARANÁ, 2016, Anexos).

384
A essa correspondência soma-se a Ordem de Serviço nº 34/12ª D.R./83, de 15/12/83,
citada no relatório final da Comissão de Sindicância, em que, segundo a interpretação do pro-
curador regional da FUNAI, é possível perceber a “existência de ideia preconcebida, por parte
da antiga administração” regional da FUNAI, no sentido de afastar do Barão de Antonina as
famílias inapropriadamente chamadas por Gilberto Amaral de “mestiços” – situação essa que
nos remete às posições racialistas do antropólogo da FUNAI Célio Horst em seus “critérios de
indianidade” que serão abordados a seguir. Registre-se que o retorno à terra ancestral dessas fa-
mílias ocorreu somente quando o chefe de posto de Barão de Antonina mudou e mesmo assim
mediante autorização de Villas-Boas, dirigente da 12ª Delegacia Regional da FUNAI. Dessa
forma, do presente depoimento à CEV/PR, da análise da Sindicância da FUNAI e da leitura de
estudos acadêmicos que trataram dos fatos citados ficou evidente que os índios estavam cientes
de que o chefe de posto e administração regional da FUNAI utilizaram expedientes financeiros,
ameaças, agressões físicas, prisão (em Delegacia de Polícia) para impor sua vontade e reprimir
qualquer sentimento grupal, que viabilizasse uma revolta generalizada.
Constatou-se, assim, que a perseguição a João Maria Tapixi, para além de aconte-
cimentos pontuais envolvendo o chefe de posto e a professora da escola instalada na TI,
desencadeou-se pelas posições da família Tapixi contrárias à ação do órgão indigenista
num contexto no qual Kaingangs e Guaranis realizavam mobilizações para recuperar
terras ocupadas por posseiros, em particular nas TIs em Rio das Cobras, Água Branca e
Cedro, entre fins da década de setenta e meados da seguinte.

CONFLITOS DECORRENTES DA POLÍTICA


DE INTEGRAÇÃO INDÍGENA

Retomando o tema da Renda Indígena, para além do período tratado no Relatório


Figueiredo, após a criação da FUNAI, pela análise da documentação oficial ficou patente que
o próprio órgão tutelar dirigiu e implementou uma política indigenista “predatória, ininter-
rupta, sem nenhuma espécie de retorno” para os indígenas, sendo que o advento do golpe
civil-militar aprofundou tais características (TOMMASINO, 2014). Com o surgimento da
FUNAI, presidida pelo coronel Nobre da Veiga, assessorado pelo coronel Zanoni Hausen,
instaurou-se o “sistema de empresa” radicalizando o uso da Renda Indígena. Ambos os ex-
pedientes visavam a extrair o máximo de recursos das terras indígenas. Secundariamente
visava-se à “desindigenização” e a “emancipação da terra do índio”, de modo que grandes
extensões de terras demarcadas para grupos indígenas fossem destinadas ao mercado de terras
(via instalação de camponeses ou concessões para grandes empresas). Em relação aos oficiais
do Exército citados, é importante registrar a notoriedade do coronel Zanoni por ter apro-
fundado o expediente das “roças coletivas” (na linguagem indígena, “panelões”), nas quais
os indígenas eram coagidos a trabalhar em plantações de propriedade da FUNAI recebendo

385
como pagamento a “cantina” (alimentos, querosene, etc.) e não pagamento em dinheiro. A
modernização da Renda Indígena serviu para aprofundar a dilapidação das terras indígenas
demarcadas, potencializando diversos conflitos entre índios, não índios e a FUNAI, sendo
casos mais notórios aqueles corridos em Rio das Cobras e Mangueirinha.
Além dessas medidas, a atuação do cel. Zanoni Hausen merece destaque pelo que
foi uma das maiores estratégias para suprimir a identidade étnica dos povos indígenas
(e portanto, suprimir seus direitos). Trata-se de seu projeto de “indicadores ou critérios
de indianidade”. Nos casos registrados de aplicação desses critérios – ver a seguir os
Guarani do Oeste paranaense impactados pela Usina Hidrelétrica de ITAIPU – grupos
indígenas foram invariavelmente caracterizados como “caboclos”, “mestiços,”, “posseiros
do sertão”, etc., facilitando a expropriação de suas terras.

CONFLITOS DECORRENTES DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO

A bibliografia especializada na história da política indigenista do século XX demonstra


que o Estado brasileiro buscou manter a tutela dos povos indígenas atrelada aos diferentes
programas e projetos de avanço da economia e do imperativo da segurança nacional. Os inte-
resses dos povos indígenas como segmento específico da nação nunca foram levados em con-
ta. Durante a Ditadura, conforme já salientado, todas as terras indígenas do Paraná apresen-
tavam intrusão. Tal fato tornou-se mais complexo pela vinculação da FUNAI ao Ministério
do Interior (MINTER), comandada por militares os quais definiram a política indigenista.
Além disso, a formação de milícias paramilitares (associando força policial estatal
e jagunços) utilizadas por grileiros, madeireiros, grandes empresas imobiliárias (as “colo-
nizadoras”, que receberam entre as décadas de trinta e cinquenta terras do governo esta-
dual e federal) foi comum em diversas regiões do Paraná, como registra farta produção
bibliográfica acadêmica e documentação produzida pelos próprios órgãos de repressão.

VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS


DE INDÍGENAS GUARANI NO OESTE DO PARANÁ

As pesquisas desenvolvidas em diversas fontes – documentos oficiais via solicitação


da CEV/PR e/ou encaminhados por colaboradores(as), laudos técnico-antropológicos,
entrevistas com pesquisadores e apoiadores da causa indígena no período investigado, so-
mados aos depoimentos de indígenas nas audiências públicas promovidas pela Comissão,
esclareceram o modus operandi de instituições como FUNAI, Instituto Nacional de Colo-
nização e Reforma Agrária (INCRA) e Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
(IBDF) em relação aos Guarani no Oeste do Paraná durante o regime militar.

386
Na primeira metade do século XX, diversas fontes documentais evidenciam que
a população indígena da região de Foz do Iguaçu e Oeste do Paraná foi a principal mão
de obra de empresas colonizadoras e/ou extrativistas de erva-mate e madeira (Maripa,
Cobrimco, Matte Laranjeira entre outras) e de obras públicas (abertura de estradas,
construção de portos fluviais, etc.). Isso demonstra que tanto as obras de infraestrutura
quanto as concessões de terras (para empresas colonizadoras) incidiram sobre terras in-
dígenas. A historiografia regional pouco trata dessa mão de obra, dos chamados “peões
ervateiros” ou “mensus”, porém é unânime em apontar que eram submetidos a um regi-
me de semiescravidão, como “se lê no diário de Arthur Martins Franco, engenheiro que
viveu no início do século na região, ‘passavam por situações desumanas e até mesmo a
condições de semiescravidão” (MYSKIW, 2009, p. 227).
Assim, a ação do Estado, por meio do SPI e da FUNAI, no oeste paranaense par-
tia do pressuposto de que os indígenas estavam integrados e não necessitavam de mais
terras. Quando da sua criação, a FUNAI tinha como diretriz subjacente ajustar a política
indigenista ao supracitado projeto de desenvolvimento autoritário, recusando-se, inclu-
sive, a prestar assistência a indígenas fora dos Postos Indígenas. A primeira atitude do
servidor da FUNAI ao encontrar uma comunidade Guarani era transferir para “reservas”
(BRIGHENTI, 2012).
Por outro lado, a região está inserida no contexto de Faixa de Fronteira (150 km
desde a fronteira nacional), e portanto se trata de uma área com restrições de uso. Esse
fato se agravou no pós-1964, com os governos ditatoriais no poder, quando os diferentes
órgãos que atuaram na região eram comandados por generais. O mesmo ocorrendo com
prefeitos da região que eram indicados pelo regime. A ITAIPU estava sendo presidida
pelo general José Costa Cavalcanti, notoriamente ligado à criação do AI-5 e à chamada
“linha dura” da Ditadura. E tanto INCRA e FUNAI como ITAIPU seguiam uma linha
tutelada pela ideologia da segurança nacional e possuíam suas respectivas Assessorias de
Segurança e Informação (ASI) vinculadas diretamente ao SNI. Esses órgãos de informa-
ção (ITAIPU, INCRA e FUNAI) realizavam constante monitoramento de defensores de
direitos humanos na região que atuavam em prol de camponeses e indígenas. Soma-se a
isso o regime tenso na região da tríplice fronteira inserida num projeto de segurança na-
cional – a Operação Condor, dentre outros fatores (PALMAR, 2005; MAZZAROLLO,
2003). A militarização da questão indígena sofria uma mudança substancial, agora sob
a égide da doutrina de segurança nacional em oposição ao indigenismo do período do
Marechal Rondon (CTI, 2014).
No que se refere ao modo de vida Guarani, é importante salientar que uma das
suas principais características, talvez a mais abordada na etnologia, diz respeito à mobi-
lidade. As migrações são elementos constitutivos da forma como os Guarani se relacio-
nam com o espaço. Fundamentadas em elementos mitológicos e históricos as migrações,
registradas pela arqueologia, continuam a fazer parte da cultura desse povo. O Rio Para-

387
ná nunca foi limite territorial para os Guarani. Ao contrário, era o elemento aglutinador.
Assim, sofreram ainda mais com a perspectiva da militarização e implementação da
doutrina da segurança nacional.
Ao analisar as violações de direitos sofridas por essa população, a CEV/PR e seus
colaboradores incorporaram os elementos citados em quatro contextos específicos, do
ponto de vista metodológico, vez que não podem ser tomados de maneira isolada, sem
que se leve em consideração a totalidade dos temas. O primeiro relacionado à deflores-
tação, seguido do Parque Nacional do Iguaçu (PNI), do caso de Itaipu Binacional e, por
fim, do estabelecimento da Colônia Guarani.
As violações identificadas na região Oeste do Paraná em relação aos Guarani,
nesses quatro contextos, revelaram a prática de crimes contra a humanidade, nos termos
do artigo 7º, do Estatuto de Roma, promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 25/09/2002,
consistentes em homicídios, extermínio, escravidão, transferência forçada da população,
privação da liberdade em violação das normas de direito internacional e outros atos que
causaram intencionalmente grande sofrimento físico e mental.
É importante salientar que o Estado, em particular órgãos responsáveis pelo orde-
namento ambiental, fundiário e indígena (IBRA-INCRA, SPI-FUNAI, administração
do PNI, etc.) foram consciente e diretamente responsáveis por esses diversos crimes por
ação e omissão (diante de grileiros e colonizadoras, etc.). Como salientou Maria Lúcia
Brant de Carvalho, a bibliografia especializada sobre a região demonstra que a presença
indígena era muito maior antes dos grandes projetos serem ali instalados (Parque Na-
cional do Iguaçu e ITAIPU). Os trabalhos de Brant de Carvalho (2003, 2005, 2013)
indicam que desapareceram 32 aldeias Guarani entre os anos de 1940 e 1980 da região
do Oeste paranaense.
A documentação produzida pelos órgãos estatais diretamente envolvidos tanto na
criação do Parque Nacional do Iguaçu e de ITAIPU (ou seja, INCRA, FUNAI e IBA-
MA, para utilizar usar nomenclatura atual) explicita diversas fraudes no sentido de violar
direitos indígenas, em particular no que se refere à questão fundiária. Embora todos esses
órgãos tenham colaborado ativamente e, por vezes, utilizando-se de violência, destaca-se
que a utilização da estrutura da FUNAI e o envolvimento direto de alguns servidores,
por terem a atribuição de resguardar o interesse dos povos indígenas, releva a perversida-
de do sistema criado. Ademais, considerando que a presidência dessas instituições, bem
como a de ITAIPU, esteve atribuída a altos oficiais das forças armadas – oriundos de
órgãos que compunham o Conselho de Segurança Nacional e que formularam e imple-
mentaram o modelo de desenvolvimento autoritário – explicita-se a cadeia de comando
e a orientação ideológica das ações. Assim, os Guarani ficaram, de um lado, encurralados
pela determinação do governo militar em não criar terras indígenas na Faixa de Fronteira
e, de outro, pela criação da ITAIPU, presidida pelo general Costa Cavalcanti e que via
nos Guarani um empecilho para concretizar os projetos de Estado.

388
OUTROS IMPACTOS POR GRANDES OBRAS

Além de ITAIPU, que representou um caso paradigmático, outras usinas hidrelé-


tricas (UHE) provocaram fortes impactos socioambientais em terras indígenas demar-
cadas. Até onde a CEV/PR conseguiu levantar, os indícios apontam para duas outras
situações graves, como a UHE Salto Santiago, que atingiu parte da TI Mangueirinha
sem qualquer indenização para população ali residente, sendo a população removida
sem consulta ou explicações adequadas, resultando na inundação, em 1979, de 150 ha
de terras (HELM, 2013).
Situação parecida ocorreu com a instalação de grandes redes de torres de energia
construídas a partir de 1967 e que impactaram as TIs Barão de Antonina e Apucarani-
nha, que impediram a prática de roçados e outras formas de agricultura, sem também
qualquer forma de consulta (HELM, 2013). É importante salientar que, da mesma
forma que ocorreu com a instalação de ITAIPU, houve resistência e protestos por parte
de indígenas, bem como por seus apoiadores, conforme constou em depoimentos e do-
cumentação encaminhada à CEV/PR (PARANÁ, 2016, Anexos). Tais protestos foram
ignorados pelas autoridades competentes em flagrante desrespeito à legislação em vigor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, após concluir que houve, por ação direta e omissão do Estado brasileiro,
graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas no Paraná e apropriação
de suas terras tradicionalmente ocupadas no período investigado – a CEV/PR já emitiu,
em 2014, uma série de recomendações. Dentre essas, destaca-se especialmente a neces-
sidade de ações de reparação coletivas e individuais aos indígenas atingidos pelas graves
violações de direitos humanos no período investigado 1946-1988, sobretudo a restitui-
ção do patrimônio indígena usurpado, incluindo a restituição de suas terras inclusive as
que foram objeto do Acordo de 1949, bem como a recomposição ambiental das áreas
indígenas afetadas pelas ações e omissões do Estado brasileiro e compensação pelas per-
das materiais e imateriais sofridas.
Os trabalhos das Comissões da Verdade são, portanto, o começo de um processo
que merece ter continuidade, de modo a permitir que as violações praticadas no passado
contra os povos indígenas no Brasil possam ser trazidas para a esfera pública de conhe-
cimento, ensejando a possibilidade de que a justiça prevaleça, considerando o direito à
memória e a verdade desses povos.

389
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393
RESISTÊNCIA AVÁ-GUARANI NO OESTE DO PARANÁ SOB CONSTANTE
VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Adriele Fernanda Andrade Précoma1


Caroline Barbosa Contente Nogueira2
Elis Cristina Alves Pereira3

“Afirmamos o compromisso de luta em memória dos que se foram e por aqueles


que virão. Cada passo dado para dentro de nossos territórios tradicionais, para
além das fronteiras nacionais, é um passo a mais rumo a Terra Sem Mal, juntos
ao pé do fogo, no som dos nossos cantos sagrados, nas danças, a vida segue circu-
lando. Unimos nossas rezas e nossas organizações e afirmamos que a luta de um
povo é a luta de todos os povos. Viva Sepé! Viva a todos e todas lutadores da terra!”

(trecho do documento final do 10º Encontro Sepé Tiaraju)4

INTRODUÇÃO

Ao longo do caminhar do povo Avá-Guarani, nos vários encontros de diversas épo-


cas com os brancos, foi sendo-lhes infligida toda sorte de violências: imposições culturais,
explorações, etnocídios, espoliação de seus territórios. Ainda assim, os Avá-Guarani resis-
tem fortemente, ampliando a coesão do grupo em torno da reconquista do território.
A manutenção da cultura Avá-Guarani é significativa para revelar a força de resis-
tência desse povo, uma vez que essa conservação cultural enfrenta muitas dificuldades.
A retirada de suas terras trata-se de forte obstáculo a viverem como tradicionalmente,
bem como a consequente imposição de manterem relações com a sociedade hegemôni-
ca, eivadas de preconceito, e sem qualquer garantia de uma vida digna nesse contexto.
Além da difícil batalha pela demarcação de suas terras e enfrentamento do pre-
conceito, as famílias das 13 Tekoha5 Avá-Guarani nos municípios do Oeste paranaense

1
Mestre em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, especialista em
Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.
2
Doutora em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Mestre em
Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas.
3
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
4
Documento final do 10º Encontro Sepé Tiaraju, de 08 de fevereiro de 2016, em São Gabriel/RS. Disponível em:
<http://cimi.org.br/pub/publicacoes/Documentos-e-cartas/2016-02_Carta-Final-10-Encontro-Sepe-Tiaraju.pdf>, Aces-
so em: 04 maio 2016.
5
Explica o antropólogo Evaldo Mendes da Silva (2007, p. 138-139) que tekoa (ou Tekoha) “seria o ponto de convergência
que une a dimensão sócio-cosmológica (o ‘modo de ser’) e a dimensão espacial (o ‘lugar’) constituindo-se, assim, como
um sistema total”. Logo, seria uma “unidade sócio-espacial que dá acesso ao pensamento e a vida dos Guarani”. O termo
é formado por tekó (modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes) e pelo sufixo nominalizador há (lugar e o meio
em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser Guarani).

394
de Terra Roxa e Guaíra enfrentam a luta diária pela sobrevivência, dada a situação de
extrema precariedade em que vivem. A violação de seus direitos mais básicos, os fun-
damentais reconhecidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CRFB/88), aprofunda as dificuldades e impõe mais obstáculos nessa longa jornada de
espera pela garantia do direito a suas terras originárias.
Nesse artigo, após um breve apanhado da trajetória dos Avá-Guarani no Oeste do
Paraná, bem explorada nos capítulos antecedentes deste livro, será abordada a constante
violação dos direitos desse povo nos referidos municípios, dando destaque às falas dos
próprios Avá-Guarani descrevendo sua história e situação atual. Por meio de um estudo
descritivo e comparativo dos relatos sobre a situação das Tekoha Avá-Guarani nesses
municípios em junho de 2013 pelo Ministério Público Federal (MPF) e um ano depois
por integrantes do Projeto de Pesquisa “A Questão Indígena no Oeste do Paraná e a Re-
construção do Território Avá-Guarani”, este trabalho evidencia a extrema precariedade
da situação dos Avá-Guarani nessa região e demonstra como as providências dos orga-
nismos estatais são tomadas a passos lentos, mesmo com a extrema urgência de soluções.
Por fim, o artigo informa sobre as competências das diversas esferas do Poder Público
de garantir direitos fundamentais e direitos indígenas, com o intuito de munir a luta
desse povo numa de suas frentes: as ações possíveis no interior do Estado, ao exigir dele
o cumprimento de sua obrigação de garantidor de direitos fundamentais.

A TRAJETÓRIA DOS AVÁ-GUARANI NO OESTE DO PARANÁ


COMO EMBLEMÁTICA DOS INDÍGENAS BRASILEIROS

A violência de variadas facetas infligida contra os povos indígenas no Brasil desde


os primeiros contatos com os invasores europeus marcou a vida desses povos, mas essas
violências não se restringem ao passado. Extermínio de populações, explorações de seus
trabalhos em condições servis, espoliação de seus territórios, imposições à cultura que
se fez dominante, infelizmente ainda não foram superados, mesmo que constitucional-
mente o país proclame o reconhecimento de direitos aos indígenas.
O quadro atual das múltiplas violências contra os povos indígenas no Brasil, con-
forme “Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2014” do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), demonstra o profundo desrespeito aos direi-
tos desses povos e a aguda discriminação que continuam sofrendo. Dentre as violências
e violações elencadas estão as relativas ao patrimônio, com a omissão e morosidade na
regularização de terras, os conflitos relativos a direitos territoriais, as invasões possessó-
rias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. No rol da
violência contra a pessoa, contam homicídios, tentativas de homicídios, ameaças várias
e de morte, lesões corporais, violência sexual, racismo e discriminação étnico culturais.

395
Relativos à omissão do poder público, somam-se suicídios e mortes dadas à desassistên-
cia geral (moradia, água, saneamento básico, educação, saúde) e disseminação de bebida
alcoólica e outras drogas. Há ainda a violência contra povos indígenas isolados e de
pouco contato, tais como invasões por fazendeiros e extrativistas em geral, por avanço
de políticas estatais desenvolvimentistas (construção de rodovias, de hidrelétricas), riscos
de doenças. Na conclusão do relatório do Cimi, revela-se que a não demarcação é o foco
central gerador das graves violências (RANGEL, 2014).
A trajetória do povo Avá-Guarani no Oeste do Paraná é emblemática a respei-
to das violências historicamente e continuadamente impostas aos povos indígenas no
Brasil, pois vem suportando não uma única, mas uma somatória de diversas violências
ao longo dos anos, vitimado esse povo por uma pluralidade de algozes. Nesse sentido,
considera Ribeiro (2006, p. 180):

Avalia-se, outrossim, que as contingências a atingir a comunidade Guarani no Oeste


explicitam o que se passa em outras regiões do Brasil, quando frações da sociedade na-
cional se apossam indiscriminadamente de terras indígenas. Diante disto, esses povos
são percebidos como reles obstáculos a remover, restando-lhes como alternativa sobre-
viverem acossados em pequenas parcelas dos seus territórios tradicionais.

Como narrado nos capítulos anteriores deste livro, esses violentos processos vêm ocor-
rendo desde as missões jesuíticas, com a tentativa de submissão cultural dos guarani, seguidos
pelos bandeirantes que os queriam escravizar (LUGON, 2010, p. 23-47), continuando a ser
expulsos de suas terras ou explorados para o avanço das colonizadoras (OLIVEIRA, 2014, p.
161; CASTRO, 2011, p. 29-30). Passaram por mais expulsões para a criação do Parque Na-
cional do Iguaçu e a construção da Usina Hidrelétrica Itaipu, sendo confinados em pequenas
e insuficientes reservas (KOLING, 2011; MAZZAROLLO, 2003, p. 124-127). Durante a
ditadura, foram continuamente explorados e inclusive torturados6. Tiveram terras espoliadas
também por colonos e mais atualmente seguem sem seus territórios tomados por ruralistas.
Ademais, muitas vezes têm negada sua identidade como indígenas brasileiros,
sendo chamados de paraguaios que teriam vindo tomar as terras particulares, até mesmo

6
Relativamente ao período militar, o ‘Relatório Figueiredo’, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia,
contém investigação feita em plena ditadura numa expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou
dezenas de agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e visitou mais de 130 postos indígenas. O Relatório Figueiredo,
documento fundamental para a extinção do SPI, contém denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras
e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados, doações de açúcar misturado a
estricnina (um tipo de veneno), vendas de crianças, abuso de índias, cárcere privado de índios, prisões com maus tratos e
torturas, monstruosos e lentos suplícios a exemplo do ‘tronco’, troca e aluguel de índios para trabalho escravo, trabalhos
forçados, chacinas no Maranhão quando “fazendeiros liquidaram toda uma nação, sem que o SPI opusesse qualquer
reação” etc. Esse documento tinha sido dado como perdido em um incêndio no Ministério da Agricultura, mas foi encon-
trado intacto recentemente no Museu do Índio, no Rio de Janeiro (CORREIA, 1967; CANÊDO, 2013). O documento
encontra-se disponível na íntegra na página do Grupo de Pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade
Hegemônica” da PUCPR: <http://www.direitosocioambiental.com.br/relatorio-figueiredo/>.

396
como argumento para afastar o cumprimento de obrigações estatais perante essa popu-
lação7. Seguem atualmente marginalizados, sem território e condições de se autossusten-
tar, vivendo de subempregos, sofrendo com o permanente racismo e com seus amargos
frutos como homicídios, tentativas de homicídio, ameaças, sequestros, discriminações
dos mais diversos tipos.
O cacique Libório Garcia Velasques (2014, informação verbal), da Tekoha Nhem-
boete, de Terra Roxa/PR, traz em sua muito lúcida fala a narrativa de que antigamente,
antes de existirem os Estados do Brasil, Paraguai, Bolívia, Argentina, o povo guarani era
muito numeroso, e podia se deslocar livremente entre esse território hoje dividido nos
diferentes Estados, época em que tinham grandes casas de rezas onde se reuniam guara-
nis de todos os lugares. Acrescenta que sempre houve guaranis morando no Paraná, fato
comprovando pelos artefatos muito antigos, de barro, encontrados na região, embora
queiram apontar que os guarani que hoje estão ali vieram de outro lugar. Aponta, ainda,
que os guarani querem recuperar sua terra, lutam pela demarcação, para recuperar sua
cultura, para ter mato, para caçar e cultivar milho para fazer sua bebida típica, a chicha.
Conhecedores de sua história, os Avá-Guarani contam sobre as espoliações de
seus territórios:

Porque o índio nunca tem título, porque a terra é nossa mesmo, quando a gente é
índio aqui nascido, a terra é nossa mesmo, então nossa pessoa mesmo é título [...].
Depois veio os fazendeiros, vieram comprando a fazenda. Se o fazendeiro é boa
pessoa ele deixa a gente morar pra trabalhar pra ele, e tem muito fazendeiro que
compra e já toca o índio, já manda sair, expulsa nós, nossa família, então a gente tem
que procurar outro canto pra morar, e assim foi tomando a nossa terra [...]. Quem
destruiu mais a nossa vivência é a empresa Itaipu, a empresa Itaipu pegou muito
nossa área na beira do rio Paraná [...] (RODRIGUES, 2014, informação verbal).

No Relatório do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) sobre “Violações dos di-


reitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paraná: subsídios para a Comissão
Nacional da Verdade (1946-1988)”, há depoimentos dos anciãos e anciãs que vivem
no Oeste do Paraná (municípios de Foz do Iguaçu, Diamante d’Oeste, Santa Helena,
Guaíra e Terra Roxa). Nesses relatos consta que as famílias foram ilegal e violentamente
expulsas de seus locais tradicionais de ocupação, perdendo suas terras, matas e meios de
subsistência e sendo relegados à situação de extrema penúria em que se encontram até
os dias de hoje. Desde a criação do Parque Nacional do Iguaçu (1939) até a construção
da usina hidroelétrica de Itaipu (1975-1982), passando pela avassaladora expansão da
frente agropecuária no oeste do Paraná a partir dos anos 40, ocorreu um gradativo ten-
sionamento da estrutura fundiária da região.
7
Enquanto os indígenas se reconhecem como Guarani, os brancos os identificam como argentinos, paraguaios ou brasi-
leiros, o que inclusive serviu de argumento para a Funai chegar a deportar índios (SILVA, 2007, p. 74).

397
Como se depreende da leitura do mencionado relatório, o Estado brasileiro, ao
patrocinar a ocupação da região por ervateiros, colonos, madeireiras e os grandes em-
preendimentos, promoveu a expulsão, a escravização e assassinatos dos Guarani, ao mes-
mo tempo que os privou dos meios legais de fazer valer seus direitos civis e territoriais.
Assim, o Estado brasileiro, ao instalar um sério conflito social e se furtando de resolvê-lo,
relegou os índios ao esquecimento deixando-os à sua própria sorte. Contudo, com a for-
ça de seus rezadores, homens, mulheres e crianças, eles continuam a resistir. O relatório
deixa clara a violação dos direitos humanos, intensificados durante o governo militar,
vigentes ainda hoje com a não demarcação das terras e a negação do acesso aos direitos
sociais mais elementares.
Desses trechos da história pode-se ter uma notável amostra do que passaram e
passam os povos indígenas por todo o Brasil, porque os Avá acumularam em sua expe-
riência uma ampla gama de violências, frente das quais sua resistência deu-se de diversas
formas, desde por enfrentamentos, por fugas, e até mesmo com suicídios. Fica manifes-
tada a resistência na permanência de sua cultura, que embora modificada de uma manei-
ra acelerada e profunda por causa da imposição ao contato com a cultura dos brancos,
seu modo de ver o mundo é cultivada e são preservadas características que os distinguem
da sociedade hegemônica. Como diz Ribeiro (2007, p. 51),

[...] tendo como suporte um universo de significações específico, eles interatuam


com os múltiplos segmentos que se sucedem na região, persistindo cada vez mais
cientes e ciosos da sua auto-identificação étnica, mesmo que a sua vida em socie-
dade tenha sofrido transformações, tanto no fazer como no representar social. As
metamorfoses não fazem com que o grupo deixe de consistir naquilo que diz ser,
uma vez que a auto-alteração é elemento essencial de sua vivência, implicando na
possibilidade de construir uma outra forma ou sentido do ser sociedade sem deixar
de se auto-identificar como Guarani.

Continuam fazendo suas rezas, danças e cânticos, mantêm sua língua, muito em-
bora alguns aspectos culturais possam se modificar a partir de circunstâncias internas ou
de contatos interétnicos, uma vez que cultura é algo dinâmico. Muitas vezes o contato
dos indígenas com nossa civilização foi-lhes imposta (BANDEIRA et al., 2012, p. 111-
113), e as adaptações nesse contato são importantes pois, como qualquer cultura viva
- sob pena de morrer cristalizada -, no sentido apontado por Souza Filho (2006a, p. 21),
adaptar-se é também forma de se manter. Por exemplo, é possível verificar que o acesso
à tecnologia, a convivência com nossa cultura e outras adaptações não os fazem deixam
de ser índios (BANDEIRA et al., 2012, p. 111-113). Sua força, portanto, fica estampada
na sobrevivência dessa cultura, a despeito de todas as incursões dos brancos que queriam
ter podido tomar completamente as terras desses povos, mas não conseguiram, embora
em grande parte tenham sido vitoriosos nesse intento.

398
A história contada por parte desses cruéis vitoriosos sempre foi a do sucesso dos
empreendimentos da colonização, das megaobras (hidrelétricas, rodo e ferrovias), da
agricultura latifundiária. Os números são manipulados a seu favor, mas os números dos
assassínios etnocidas não são contabilizados, as perdas na devastação ambiental, social e
cultural não entram nessas contas. Os nomes dos grandes empreendedores são alçados
a alto renome, inscritos nas placas públicas, nos livros, difundidos, enquanto os nomes
dos indígenas nem pronunciados são8, mesmo grandes heróis como Sepé Tiaraju9 são re-
legados das narrativas históricas oficiais. Frente a essa mal contada e parcial narrativa por
uma maioria de historiadores, importa muito resgatar elementos do processo histórico
do povo Avá-Guarani para compreender sua luta atual.
Pelo exposto, corroborado pelos relatos do cacique Anatálio Ortiz (2014, infor-
mação verbal), da Tekoha Jevy em Guaíra, ainda que tenham resistido, houve a espolia-
ção dos territórios Guarani e a destruição do meio ambiente que lhes fornecia alimentos
conforme seus usos e costumes:

Naquele tempo tinha erva, agora acabou, não tem mais porque você viu, já o
branco destruiu, pro índio não deixa nem um pé de árvore pra fazer a lenha. Aí já
fala que o índio que destruiu a terra, o mato. Índio não tem a máquina pra destruir
a mata, por exemplo o índio não tem machado, motosserra, não tem trator, não
tem nada, e o branco já fala que o índio foi destruir o mato. [...] Na verdade aqui
já não tem mais caça, nem o peixe não tem mais e aquele tempo guarani não sofre.
Aquele tempo tem caça, tem peixe, tem passarinho. Aquele tempo índio guarani
não tá sofrendo, tem tudo.

Portanto, mesmo diante dessas circunstâncias que impedem ou impõem muitas


dificuldades para a manutenção e reprodução de suas formas próprias de viver, no entanto
os Guarani não desapareceram como etnia, prova de sua resistência e resiliência cultural.

Conclui-se, outrossim, que o Oeste paranaense, desde tempos imemoriais, é terra de


Guarani, ainda que a inexorabilidade do avanço da sociedade nacional esteja cons-
tantemente sujeitando-os a criações e recriações da sua espacialidade e do próprio
território. Assim, este povo é hábil em interagir com as vicissitudes impostas pelos
interlocutores que se sucedem, auto-alterando-se, mas sem deixar de se auto-iden-
tificar como Guarani. O contato interétnico, assim, não representa desestruturação
cultural, mas revela a envergadura de um povo, que, com base em padrões culturais
específicos, mantém relações com outros distintos (RIBEIRO, 2006, p. 188).

8
A resistência indígena aos processos colonizatórios conta várias ações de valor, mas os nomes dos protagonistas, muitas
vezes, são ignorados “pois os cronistas antigos tinham o costume de não nomear os heróis autóctones”, embora haja
inúmeros exemplos de valentia (COLL, 1986, p. 92).
9
Sepé Tiaraju liderou a resistência guarani contra o determinado pelo acordo entre Portugal e Espanha no Tratado de
Madrid em 1750, pelo qual os guaranis deveriam abandonar as sete aldeias da margem oriental do rio Uruguai (LUGON,
2010, p. 193-200).

399
Entretanto, nessa resistência que os faz perdurar como Avá-Guarani, enfrentam
todos os dias a inacessibilidade a direitos dos mais básicos, no abandono a condições de
extrema precariedade que traça sua realidade de duras lutas com profundo vincado na
carne e na alma.

A VIOLAÇÃO A DIREITOS COMO UMA CONSTANTE


NAS ALDEIAS AVÁ-GUARANI NOS MUNICÍPIOS
DE TERRA ROXA E GUAÍRA/PR

O povo Avá-Guarani, como se demonstrou, foi historicamente perseguido e ex-


plorado, e até hoje não lhes são garantidos nem mesmo seus direitos mais básicos, quem
dirá os direitos específicos aos indígenas, voltados à manutenção de sua cultura, apesar
de previstos seus direitos em dispositivos constitucionais.
Aos povos indígenas há o reconhecimento de direitos individuais e coletivos. Os
primeiros, no campo dos direitos fundamentais concernentes a todo cidadão brasileiro,
estão no título II da Constituição Federal, em especial no artigo 5º, embora em rol não
exaustivo. Os segundos, os direitos coletivos específicos dos indígenas, estão presentes na
Constituição de 1988 no capítulo VIII do título VIII da Constituição, e, em principal,
no artigo 231, da qual depende essencialmente a garantia de seu território. Além da
Constituição da República Federativa do Brasil, também a Constituição do Estado do
Paraná rege a proteção ao índio, no seu artigo 226:

Do Índio - Art. 226. As terras, as tradições, usos e costumes dos grupos indíge-
nas do Estado integram o seu patrimônio cultural e ambiental, e como tais serão
protegidos. Parágrafo único. Esta proteção estende-se ao controle das atividades
econômicas que danifiquem o ecossistema ou ameacem a sobrevivência física e
cultural dos indígenas.

O reconhecimento de direitos coletivos específicos, com cerne no artigo 231 da


CRFB/88, contém a essência dos direitos voltados para a questão indígena, como o
direito a ser povo culturalmente diferenciado da sociedade hegemônica, plenamente
capaz e autodeterminado, pois reconhece suas formas de organização social, suas cul-
turas e tradições, suas línguas e seu direito originário à terra tradicionalmente ocupada
(NOGUEIRA, 2012). Voltam-se, portanto, à manutenção de sua cultura e os direitos
de “ser indígena”, como afirma Souza Filho (2006b), mediante a proteção e garantia de
que possam manter sua integridade cultural, identitária, linguística e territorial, sem
mais espaço para forçar a transformação do indígena em ‘civilizado’, ou seja, trabalhador
comum que vende sua mão de obra ao mercado10.

10
Nessa compreensão, vale ressaltar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representa a ruptura

400
Nesse rumo, o direito à terra tradicionalmente ocupada aparece como central
para a garantia dos demais direitos coletivos indígenas. Essa prioridade é observada no
texto constitucional, tanto que no artigo 67 do Ato das Disposições Transitórias Cons-
titucionais há a determinação de que a União conclua a demarcação das terras indígenas
no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição, prazo há muito exau-
rido sem o cumprimento da determinação constitucional.
Postos acima dos ditames constitucionais, os interesses econômicos prevalecem
na realidade praticada no estado do Paraná e no país, afastando a concretização das von-
tades constituintes. Desse modo, o que se verifica são violações e inobservâncias desses
direitos por escolha prioritária de políticas de desenvolvimento econômico. O povo Avá-
Guarani sente diretamente em suas vidas o resultado dessa escolha.
Em junho de 2013, o Ministério Público Federal (MPF) de Guaíra/PR realizou
visitas técnicas às aldeias da região de Guaíra e Terra Roxa11, tendo verificado as péssi-
mas condições de vida dos Guarani na região (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL,
2013). Verificaram a precariedade em que vivem, em casas improvisadas com lonas, sem
coleta de lixo, sem água potável - levando-os a fazer uso de água contaminada, o que lhes
causa doenças -, sem acesso à educação em língua materna. Falta-lhes emprego, alimen-
to, e enfrentam a discriminação, sofrendo inclusive agressões psicológicas.
O jornal regional noticiou que os governos municipal e estadual usaram o fato da
não regularização das terras para justificar a falta de prestação de serviços públicos, mas o
então procurador da República em Guaíra, Henrique Oliveira, esclareceu que os direitos
básicos da Constituição independem da regularização fundiária. Oliveira informou, ainda,
que a atuação do MPF aconteceria por etapas, priorizando a garantia de que “os Guarani
tenham o que comer, água potável, saneamento, educação e saúde” (PORTAL GUAÍRA.
COM, 2013). Diante disso, o MPF instaurou 45 procedimentos administrativos junto às
diversas instâncias do Poder Público pedindo assistências aos direitos básicos dos Guarani
do Oeste paranaense, além de terem instaurado um procedimento investigatório criminal
e requisitado a instauração de dez inquéritos policiais para apurar fatos criminosos levanta-
dos durante as visitas (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2013).
Um ano depois dessa atuação do MPF, integrantes do Projeto de Pesquisa “A
Questão Indígena no Oeste do Paraná e a Reconstrução do Território Avá-Guarani”, em
visitas técnicas realizadas em maio e junho de 2014, verificaram que em apenas alguns
pontos houve avanços quanto aos direitos dos Avá-Guarani, permanecendo em situação
de extrema precariedade as cerca 403 famílias das 13 Tekoha (aldeias), que somam cerca

com a política assimilacionista que fora praticada em toda América Latina até o reconhecimento multicultural dos anos
80 e 90, como explica Yrigoyen Fajardo (2011). Essa ruptura significa uma alteração das políticas indigenistas, não mais
voltadas à integração dos povos originários à sociedade hegemônica, mas voltadas ao respeito de sua livre determinação e
possibilidade de manutenção de sua sociodiversidade.
11
Tekoha do Município de Guaíra são: 1) Marangatu; 2) Porã; 3) Y’hovy; 4) Tatury; 5) Mirim; 6) Poha Renda; 7) Yvyraty Porã;
8) Tajy Poty. Tekoha do Município de Terra Roxa são: 9) Aragajú; 10) Guarani; 11) Nhemboete; 12) Karumbe-y; e 13) Jevy.

401
de 2200 pessoas12, conforme números informados pelas lideranças indígenas entrevis-
tadas na ocasião. Uma compilação dos dados sobre os quais se passa a relatar consta no
mapeamento do quadro no anexo.
No intervalo entre uma e outra vista técnica, pôde-se verificar avanços com rela-
ção à água potável, disponibilizada a quase todas as Tekoha visitadas em 2014, ainda que
em alguns locais seja insuficiente, e na maioria não seja encanada, sendo abastecidas em
caixas enchidas por caminhões-pipa. Nas Tekoha Guarani e Mirim ainda não havia água
potável, inclusive havendo casos de doenças causadas pelo uso de água imprópria para o
consumo humano, até mesmo água contaminada com agrotóxicos, como se verifica nos
relatos do cacique Belino Vera (2014, informação verbal).
Com relação ao atendimento à saúde também houve progresso, pois os entrevistados
relataram que há visitas periódicas para consultas e vacinações, além das emergenciais pela Se-
cretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), ou há atendimento nas cidades, apesar de alguns
apontarem insuficientes os atendimentos e a escassez de medicamentos. Além disso, a docu-
mentação pessoal de grande parte dos indígenas está regularizada, e, com isso, muitos já pos-
suem atendimento da previdência e assistência social, porém restam pendências documentais
e, portanto, essa assistência não está garantida a todos. Com relação à educação indígena,
um pouco se avançou, pois em várias Tekoha foram implantadas escolas Guarani, contudo as
instalações são precárias e não contam com o recebimento de merenda e material escolar13.
Praticamente a totalidade das Tekoha visitadas permanece sem luz elétrica, em
quase nenhuma delas há coleta de lixo, e não há assistência à moradia, permanecendo a
situação de extrema precariedade das casas, construídas de improviso com lonas e mate-
riais encontrados nos lixos urbanos ou por doações. Além disso, em poucas aldeias con-
seguem produzir o próprio alimento, seja por falta de terra, seja por serem impedidos pe-
los proprietários de terras, e a maioria dos que produzem o fazem de forma insuficiente
ao abastecimento da comunidade. O auxílio em termos de alimentação, em quase todas,
foi apontado como insuficiente, além de não o receberem de forma periódica. Falam os
caciques Belino Vera e Raul Medina, a respeito da inobservância desses direitos básicos:

A justiça falou que os indígenas têm direito, mas até agora parece que os indígenas
não têm direito, porque cada aldeia, cada tekoha não tem escola, não tem água en-
canada, não tem postinho, não tem energia (MEDINA, 2014, informação verbal).

Eu já ouvi falar da cesta básica, mas nunca nem comi a cesta do município (risos)
(VERA, 2014, informação verbal).

12
O MPF apurou a existência de cerca de 1800 indígenas vivendo na região em junho de 2013 (MINISTÉRIO PÚBLI-
CO FEDERAL, 2013).
13
Na Tekoha Y’Hovy, por não terem atendimento estatal, os próprios Avá-Guarani construíram sua escola, inaugurada em 2016.

402
Com relação à situação fundiária, as Tekoha não estão regularizadas para os
indígenas e, em regra, as áreas são assoladas por conflitos pelas terras14. Os Avá-Gua-
rani sofrem constantes ameaças, violências, ataques, e profunda discriminação que
impede de terem um bom convívio com a sociedade envolvente, que lhes fecha as
portas inclusive para empregos. São excepcionais, ainda, as comunidades em que a
situação ambiental favorece o modo de viver Guarani, pois as áreas são devastadas e
muitas vezes contaminadas e poluídas.
Num breve balanço do relatado nas visitas técnicas do Ministério Público Fe-
deral em 2013 e das equipes do Projeto de Pesquisa “A Questão Indígena no Oeste
do Paraná e a Reconstrução do Território Avá-Guarani” em 2014, ressalta-se que:
- a Sesai atende as 13 aldeias da região, porém não de modo suficiente, de
modo que os indígenas ficam a mercê de vários tipos de doenças acarretadas pela
precariedade das condições em que vivem, com falta de saneamento básico, de ali-
mentação adequada, de água potável, de luz etc.
- a educação em língua indígena ainda não é viabilizada em todas as aldeias;
nas em que há, é muito mais pelos esforços dos indígenas em manter sua cultura
viva do que pelas ações dos órgãos responsáveis, pois as escolas são improvisadas
em estruturas muito precárias, às vezes construídas pelos próprios indígenas, e não
contam com o fornecimento de merenda nem material escolar;
- os Ministérios Públicos Federal e Estadual, ainda que estejam procurando
avançar na defesa dos direitos dos Avá-Guarani na região, ainda atuam abaixo do
necessário;
- não há suficiente atendimento por parte dos municípios e da Funai de dis-
tribuição de cestas básicas.
Pelo exposto, na comparação com a situação relatada pelo MPF em junho de
2013 e a verificada pelos integrantes do Projeto de Pesquisa “A Questão Indígena no
Oeste do Paraná e a Reconstrução do Território Avá-Guarani” em maio e junho de
2014, fica claro que as garantias de direitos se dão a passos lentos, permanecendo
muito distante alcançar a garantia de uma situação verdadeiramente digna para os
Avá-Guarani da região.

14
Infelizmente só há uma exceção de aldeia não assolada por conflitos pela terra: a Tekoha Nhemboete, que se localiza
no sítio arqueológico Cidade Real do Guairá, no município de Terra Roxa (INSTITUTO DE TERRAS, CARTO-
GRAFIAS E GEOCIÊNCIAS, 2008).

403
COMPETÊNCIAS PARA A SOLUÇÃO DAS VIOLAÇÕES
A DIREITOS INDÍGENAS

Como relatado pelos próprios Avá-Guarani, eles vivem em situação de extrema preca-
riedade, inobservados tanto os direitos fundamentais garantidos a toda população brasileira,
como educação, saúde, moradia, alimentação entre outros; quanto os que lhes são garantidos
como direitos específicos em razão da sua identidade e seu modo de vida diferenciado como
indígenas. Tais direitos são previstos ao longo da Constituição culminando no artigo 231,
que reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Esse artigo conferiu à União a competência para demarcar as terras indígenas,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Cabe à Fundação Nacional do Índio (Fu-
nai), como órgão indigenista oficial do Estado Brasileiro, proteger e promover os direitos
dos povos indígenas em nome da União, por força da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro
de 1967. Fica sob seu encargo um dos papeis mais importantes em se tratando da efe-
tivação dos direitos indígenas que é a demarcação das terras pertencentes às populações
indígenas, sem a qual se inviabiliza a manutenção da cultura desse povo. O processo de
demarcação, cujos procedimentos são regulados pelo Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro
de 1996, ocorre através de estudos necessários à identificação e delimitação de terras
indígenas, contando com a participação do Ministro da Justiça, do grupo indígena en-
volvido e do Presidente da República, a quem cabe homologar tais demarcações15.
A atuação da União na implementação dos direitos indígenas não fica restrita à
Funai, cabendo ao Ministério próprio a garantia da saúde. Inicialmente o atendimento
de saúde indígena estava dentro de uma política pública de atendimento de forma uni-
versal, que não atendia as particularidades de cada grupo indígena. Somente em outubro
2010 foi criada a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), especialmente voltada
para as especificidades regionais, locais e próprias das várias comunidades indígenas,
que antes disso buscavam atendimento nos postos comuns, onde, além das barreiras do
próprio sistema ainda tinham que, doentes, enfrentar as barreiras da língua para serem
compreendidas por médicos sem preparo para atendê-los.

15
Nesse ponto cabe ressaltar um dos ataques dos representantes políticos dos grandes proprietários de terras, que formam
atualmente a maioria no Congresso Nacional. Para fazer frente à insurgência das populações indígenas reivindicando seu
território originário, os chamados ruralistas propuseram uma emenda à Constituição - a Proposta de Emenda à Consti-
tuição nº 215 - que visa atribuir exclusivamente ao Congresso Nacional a aprovação das demarcações de terras indígenas,
além da confirmação das terras já demarcadas. Se aprovada essa proposta, o processo demarcatório, que já é extremamente
demorado e burocrático, teria ainda que conseguir a façanha intangível de ser aprovada pelos congressistas mormente ru-
ralistas. Além disso, a absurda PEC ainda quer o retrocesso no árduo caminhar pelo reconhecimento das terras ancestrais:
que sejam homologadas por esses mesmos congressistas as terras que a duras custas foram demarcadas. Nas certeiras pa-
lavras de Paulo Barela, representante da Central Sindical e Popular Conlutas, trata-se de “uma PEC que dá o controle da
demarcação de terra para os latifundiários, os representantes deles no Congresso Nacional. É como colocar a raposa para
cuidar do galinheiro, massacrar ainda mais as comunidades indígenas e quilombolas” (SENADO NOTÍCIAS, 2015).

404
Face essa precariedade do sistema de saúde a que esses índios eram submetidos, e,
logo, da necessidade de reformulação da gestão da saúde indígena no país, os próprios
indígenas demandaram tal reestruturação em 2006, durante a 4ª Conferência Nacional
de Saúde Indígena (FUNASA, 2006). Dentre as atribuições dessa Secretaria destacam-se
o desenvolvimento de ações de atenção integral à saúde indígena e educação em saúde,
em consonância com as políticas e os programas do Sistema Único de Saúde (SUS) e
observando as práticas de saúde tradicionais indígenas, além de também lhe competir o
planejamento e coordenação das ações de saneamento e edificações de saúde indígena.
Ao Ministério da Educação incumbe a implementação de educação diferenciada
indígena, devendo, para isso, articular-se com os povos indígenas para definir a maneira
de suprir as demandas educacionais de modo a preservar sua diversidade cultural. Isso
porque a CRFB/88, em seu artigo 210, garantiu aos indígenas a utilização de suas lín-
guas maternas e processos próprios de aprendizagem. Pela Lei nº 9394/96 que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, advém um dos seus objetivos relacionados à
educação indígena: proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação
de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de
suas línguas e ciências e garantir-lhes o acesso às informações, conhecimentos técnicos e
científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias. Seguindo
essa mesma lógica, o Plano Nacional da Educação (Lei nº 13005/14) estipulou as suas
metas e estratégias objetivando, através da garantia ao acesso à educação, possibilitar que
as populações indígenas possam manter sua cultura e crenças.
Já a defesa em juízo dos direitos e interesses dos indígenas, por atribuição cons-
titucional, compete ao Ministério Público (artigo 129, inciso V). O Ministério Público
da União, por sua lei orgânica, prevê a função de defender os direitos e os interesses
coletivos das comunidades indígenas, inclusive judicialmente, estabelecendo uma har-
monia com o que já estipulava o Estatuto do Índio ao prever a intervenção do Ministério
Público Federal em prol dos índios. Porém, tal atuação do Ministério Público Federal
deve-se pautar na existência de interesse da União. Logo não será em todos os litígios
envolvendo interesses indígenas que o Ministério Público Federal atuará. Assim, as ques-
tões excluídas do interesse da União, de competência da Justiça Federal, ficariam a cargo
do Ministério Público Estadual16.
Ainda dentro da competência para que sejam efetivados os direitos básicos garan-
tidos a esse povo em isonomia com todas e todos brasileiros(as), há de se frisar que os es-
tados e municípios devem voltar suas políticas públicas a fim de atender as demandas das
16
Em julgados em que se suscitou a competência da Justiça Estadual relativamente a ações envolvendo indígenas apontam
que, embora a Constituição Federal em seu art. 109, inciso XI estabeleça a competência da Justiça Federal para processar
e julgar os feitos relativos à disputa de direitos indígenas, quando os feitos envolverem interesses particulares de indígenas,
sem disputa de direitos indígenas catalogados no art. 231 da CF⁄88, fica cedida a competência da Justiça Federal à Justiça
Estadual. Nesse sentido, ver: STJ. Ação de conflito de competência 39.818 - SC (2003⁄0140443-6). Relator Ministro
Teori Albino Zavascki. DJ 29/03/2004, p. 167.

405
populações indígenas, independentemente da existência de litígio sobre a área em que
estão localizados os índios. Isso porque está constitucionalmente disposta a necessidade
de descentralização político-administrativa nas ações governamentais incluindo-se as em
prol dos povos indígenas, que inclusive podem contar com a participação da população
local, diretamente ou por meio de organizações representativas, na elaboração e imple-
mentação, além de fiscalização das ações do Poder Público. Desse modo, deve ficar a car-
go dos diversos entes federados (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), através
de ações articuladas e integradas, a observância dos direitos fundamentais garantidos à
população brasileira inclusive aos indígenas, guardadas as necessidades de atendimentos
específicos em respeito à garantia de suas diversidades culturais.
Nesse sentido propõe-se a atuar o Ministério Público do Paraná, através do Cen-
tro de Apoio Operacional das Promotorias de Direitos Humanos, Área das Comunida-
des Indígenas, criado pela Resolução nº 1.365/2012, acompanhando as ações nas esferas
federal, estadual e municipal para garantir a implementação de políticas públicas volta-
das à efetivação de direitos fundamentais tais como saúde, educação indígena, moradia,
cidadania etc., e ainda buscando dar apoio à autossustentabilidade das comunidades
indígenas e promover uma melhora no relacionamento com a sociedade envolvente17.
Verifica-se, logo, que no Brasil não faltam competentes organismos estatais para ga-
rantir a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos indígenas,
tal como prevê a legislação pátria e demais normas internacionais, como a Convenção nº
169 da Organização Internacional do Trabalho de 1989 e a Declaração das Nações Unidas
sobre Direito dos Povos Indígenas. Muito embora as normatizações, são ainda poucos os
indígenas no país realizados em seus direitos assumidos, mas descumpridos pelo Estado
brasileiro. E os Avá-Guarani do Oeste do Paraná estão muito aquém dessa realização.
Diante da problemática que os povos indígenas enfrenta em relação à omissão
do Estado Brasileiro, realizou-se nos dias 14 a 17 de dezembro de 2015, em Brasília,
a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista com o tema: “A relação do Estado
Brasileiro com os Povos Indígenas no Brasil sob o paradigma da Constituição de 1988”.
O evento teve como objetivos: a) avaliar a ação indigenista do Estado brasileiro; b) rea-
firmar as garantias reconhecidas aos povos indígenas no País; e c) propor diretrizes para
a construção e a consolidação da política nacional indigenista. A Conferência foi coor-
denada pelo Ministério da Justiça, a Funai, e por representantes dos povos, organizações
indígenas e demais órgãos e entidades governamentais e não governamentais. Na ocasião
foi frisado que a definição e a promoção das políticas públicas indigenistas deverão estar
de acordo com os princípios dispostos em marcos legais nacionais e internacionais rati-
ficados pelo Brasil, como os citados acima (FUNAI, 2016).
17
Vide Plano Setorial de Ação – biênio 2014-2015 disponível em: <http://www.indigena.mppr.mp.br/modules/conteu-
do/conteudo.php?conteudo=103>. Nesta proposta estão planejados os projetos e atividades, envolvendo diversos órgãos
públicos em esfera federal, municipal e estadual.

406
Dentro das propostas lançadas pelos eixos temáticos18 durante os debates da Con-
ferência, salienta-se a do eixo I, sobre Territorialidade e Direito Territorial Indígena, com
60 pontos levantados, iniciando pela garantia e efetivação do art. 231 da CRFB/88.
Outro ponto suscitado de alta relevância para a situação em que vivem os Avá-Guarani
foi o da demarcação e homologação das terras indígenas, com o pedido de cumprimento
imediato das demarcações (FUNAI, 2016).
A Conferência buscou afastar quaisquer resquícios das políticas tutelares e assimila-
cionistas que dominaram o indigenismo no Brasil até a Constituição de 1988, ratificando
a importância dos movimentos indígenas e sua resistência perante o Estado brasileiro que
exige o “respeito aos seus direitos individuais e coletivos”, superando definitivamente as
“práticas e valores coloniais” possibilitando sua efetiva autonomia. As propostas seguem
reforçando a necessidade de que o Estado respeite as decisões das comunidades indígenas,
garantindo o direito ao veto nas consultas sobre os projetos que envolvam seus territórios,
inclusive com o reconhecimento legal do exercício da autonomia jurídico-administrativa
dos povos indígenas sobre seus territórios, respeitando assim a Convenção 169 e a Decla-
ração da ONU sobre Direito dos Povos Indígenas (FUNAI, 2016).
Além disso, no evento os indígenas pediram a proteção e fiscalização de suas ter-
ras, assim como do meio ambiente e seus bens naturais, além de demandarem o incen-
tivo ao uso alternativo de energia. Também se manifestaram pela manutenção da Funai
como órgão responsável de maneira exclusiva para a coordenação dos estudos e pesquisas
antropológicas para identificação, delimitação e demarcação das Terras Indígenas, con-
forme o Decreto nº 1775/96 e a Portaria nº 14/1996, bem como a manutenção do Po-
der Executivo como responsável pela homologação, conforme previsto na Constituição
(FUNAI, 2016). Para finalizar, dentre os resultados importantes da Conferência há de
mencionar a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI)19, um órgão
colegiado no âmbito do Ministério da Justiça de caráter consultivo para elaboração e
acompanhamento de políticas públicas voltadas aos povos indígenas (BRASIL, 2015).
De acordo com o cacique Neguinho Truká, etnia Truká do município de Cabrobó,
estado de Pernambuco, a partir desta Conferência se pode iniciar a luta por garantir que as
propostas dialogadas sejam realidade em todo o território brasileiro. Notou-se, após a análise
das propostas, que o termo mais recorrente era diálogo, explicitando a necessidade de que
as autoridades governamentais devem se compenetrar mais nesse quesito (FUNAI, 2016).
As perspectivas lançadas pela Conferência Nacional de Política Indigenista mos-
tram que os objetivos das políticas públicas avançam no sentido de cumprir com o es-
tabelecido na Constituição de 1988 e com as normas jurídicas internacionais. Todavia,
18
A 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista trouxe os seguintes eixos temáticos para orientar os debates e propo-
sições: “I – territorialidade e o direito territorial dos povos indígenas; II – autodeterminação, participação social e o direito
à consulta; III – desenvolvimento sustentável de terras e povos indígenas; IV – direitos individuais e coletivos dos povos
indígenas; V – diversidade cultural e pluralidade étnica no Brasil; VI – direito à memória e à verdade” (FUNAI, 2016).
19
Criado pelo Decreto nº 8.593 de 17 de dezembro de 2015.

407
para fazer essas exigências do Estado mostra-se necessário o contínuo fortalecimento e
articulações dos movimentos indígenas, sem recuar em sua resistência, em vista da expe-
riência do que lograram conquistar desde as lutas que precederam à constituinte de 1988
até os dias de hoje. Essas experiências demonstram que o fortalecimento da etnicidade e
identidade dos povos indígenas torna possível dialogar dentro das tensões políticas que
envolvem o Estado, exigindo dele que detenha as violações a direitos dos povos indíge-
nas e garanta os direitos fundamentais e os específicos desses povos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Avá-Guarani, marcados com uma longa história de resistência às diversas in-


cursões em seus territórios, em suas vidas e culturas, permanecem acreditando que a terra
que lhes garantia subsistência há milhares de anos possa mais uma vez e definitivamente
voltar a lhes ser disponível. Isso fica explícito na fala do cacique Ismael Rodrigues (2014,
informação verbal): “Mas será que nosso avós não vai vê a demarcação, eu também já
tô velho, tô com 54 anos, mas será que eu não vou vê ainda a demarcação, mas será que
índio guarani não vai ter direito de ganhar um pedaço de terra [...]?”.
As intensas manobras para dizimá-los, embora bem sucedidas para grande parte
de sua população original, não impediram que os Avá-Guarani se mantivessem como
cultura diferenciada. Conscientes disso e de sua história, fazem um movimento de re-
tomada dos territórios dos quais foram expulsos, em busca de verem garantidos seus
direitos originários sobre as terras. Mas enquanto lutam pela demarcação para garantir
esses seus direitos territoriais, permanecem e por vezes perecem em péssimas condições,
sem garantia de direitos dos mais básicos.
Persiste a situação de penúria que dificulta a sobrevivência desse povo e traz ainda
mais obstáculos na já muito árdua luta pela terra. As melhorias dessa situação apresen-
tam demorada evolução, mesmo que envolva a urgência da garantia do mínimo para a
sobrevivência dessas pessoas. A despeito de não faltarem competentes organismos esta-
tais para garantir a plena efetividade dos direitos dos povos indígenas previstos na legisla-
ção pátria, são ainda poucos os indígenas no país realizados em seus direitos positivados,
mas não cumpridos pelo Estado brasileiro. E os Avá-Guarani do Oeste do Paraná estão
muito aquém dessa realização.
Ainda que se saiba ter sido o Estado um dos algozes dos Avá-Guarani, como ex-
posto brevemente neste trabalho e mais detalhadamente ao longo desse livro, mediante
muitas lutas os povos indígenas conseguiram fazer reconhecer seus direitos no ordena-
mento jurídico brasileiro. Assim, conhecer as obrigações assumidas pelo Estado e exigir
seu cumprimento aparece como uma das frentes possíveis de ação, ou seja, o Estado e
seu campo jurídico trata-se de um dos espaços a ser ocupado na luta dos povos.

408
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412
MAPEAMENTO DOS PROBLEMAS E VIOLAÇÃO DE DIREITOS NAS TEKOHA AVÁ-GUARANI DE GUAÍRA E TERRA ROXA/PR

TEKOHA (aldeia)
MUNICÍPIO DE GUAÍRA MUNICÍPIO DE TERRA ROXA
JEVY GUARANI KARUMBE- MARAN- TATURI MIRIM PORÃ Y’HOVY YVYRATY NHEM- TAJY POTY POHA ARA-
Y GATU PORÃ BOETE RENDA GUAJU
Água potável* X X OK X OK X X X X OK OK X X
Luz X X OK X X X X X X X X X X
Alimentação X X OK X X X X OK X X X X OK
Educação X X OK OK X X X X X X X OK X
Saúde OK X OK OK OK X X OK OK OK X OK X
Coleta de lixo X X OK OK X X OK X X X X X X
Moradia X X X OK X X X X X X X X X
Documentação OK X X X X OK X X X OK OK OK X
Previdência/
assistência X X X X X OK X X X X X OK X

413
Produção X X X OK X X X X X X X X OK
Contaminação X X OK X X OK X X X X X X X
Preconceito/
discriminação X X X X X X X X X X X X X
Violências/
ameaças X X X X OK OK X X X X X X X
Situação terra X X X X X X X X X X X X
Conflitos terra X X X X OK X X X X X X X X

Legenda: X: situação irregular (não há garantia ao direito ou o atendimento é insuficiente, ou há violação); OK: situação regular (apresentam atendimento satisfatório,
ou não apresentam o problema indicado)
Fonte: Entrevistas realizadas com as lideranças Avá-Guarani das Tekoha de Guaíra e Terra Roxa/PR, por integrantes do Projeto de Pesquisa “A Questão Indígena no Oeste
do Paraná e a Reconstrução do Território Avá-Guarani”, em visitas técnicas realizadas em maio e junho de 2014.

* Com relação ao abastecimento de água, as aldeias possuem caixas d’água, porém não há água encanada (exceto na Karumbe-y, que possui água encanada por se localizar
em área urbana de Guaíra). As que foram marcadas com “x” apresentam relatos de insuficiência no abastecimento de água potável.
GESTÃO TERRITORIAL, ETNODESENVOLVIMENTO
E AGROECOLOGIA – ELEMENTOS PARA SE REFLETIR SOBRE
A TERRA INDÍGENA AVÁ-GUARANI

Roberto dos Anjos Dias1


Luciano Egídio Palagano2

INTRODUÇÃO

Os Avá-Guarani do município de Guaíra – PR trilham caminhos semelhantes aos


que muitos outros povos indígenas do Brasil percorreram, como a expulsão e expropria-
ção territorial, com consequente e posterior organização e luta pela retomada da terra.
Pode se dizer que atualmente se encontram na primeira de duas etapas árduas, a luta pela
terra em si, ainda tendo pela frente o desafio de gerir o novo território, caso conquistada
as suas reivindicações.
O presente trabalho parte do pressuposto de que haverá a demarcação de uma
área com tamanho adequado à reprodução física e cultural dos aproximadamente 800
indígenas que vivem no município e assim, tem por objetivo explorar a partir de biblio-
grafias os novos desafios que surgirão após a demarcação, sugerindo sempre que possível
uma alternativa de resistência.
Atualmente a situação dos Avá-Guarani guairense é de pobreza, esta sendo fruto
de exclusão territorial que por sua vez os priva de acessar recursos naturais para sua
reprodução física e cultural, bem como ficam excluídos das políticas públicas que o mo-
vimento organizado dos povos indígenas no Brasil conquistou.
Com a demarcação percebe-se uma problemática em torno das formas de desen-
volvimento dos povos indígenas, pois o Estado cede espaço aos povos indígenas para se
organizarem e gerirem seus bens materiais e imateriais de acordo com seus usos e costu-
mes, ao mesmo tempo em que impõe a adoção de um modelo de desenvolvimento e de
uso sustentável dos recursos naturais.
Em vista disso, o presente trabalho busca tecer reflexões sobre o Etnodesenvolvi-
mento como uma estratégia de fortalecimento político dos Avá-Guarani frente ao Esta-
do, já que a organização política do Brasil (diferentemente da Bolívia, por exemplo) não
reconhece independência política dos povos indígenas frente à União, mas reconhece
estes povos apenas como organizações sócio-culturais próprias.
Em seguida, reflete-se sobre a estratégia econômico-ecológica de planejamento do
uso sustentável dos recursos naturais indígenas, explicitando características particulares
1
Mestrando em Desenvolvimento Rural Sustentável pela Universidade Estadual do Paraná (UNIOESTE).
2
Graduado em História pela Universidade Estadual do Paraná (UNIOESTE).

414
que determinam um território como sendo adequado à reprodução física e cultural para
o Avá-Guarani. Com base nisto, sugere-se a agroecologia como modelo de produção
ambientalmente e socialmente correto.

OS AVÁ-GUARANI DE GUAÍRA

Os Avá-Guarani do oeste paranaense passaram por um processo histórico de ex-


ploração e expropriação territorial e que embora, atualmente seja inegável a existência
milenar do povo Guarani nas terras que ocupam, a historiografia que reproduz o discur-
so oficial da colonização construiu e difundiu o conceito de “vazio demográfico”, isto é,
a produção de bibliografias científicas, midiáticas, populares e da memória coletiva que
negavam a presença indígena baseada na presunção de superioridade dos colonizadores
sobre os indivíduos nativos (RIBEIRO, 2005, p.27).
Acrescenta-se a estas informações o trabalho de Giseli Deprá (2006) que demons-
tra como se deu a construção midiática após a década de 80 do século passado em torno
da imagem dos indígenas do oeste paranaense, apresentando-os a partir de uma visão
estereotipada, simplista e romantizada. E com isso, deslegitimando as reivindicações dos
indígenas pelos seus direitos. Percebe-se assim, que a presença indígena no oeste do Pa-
raná foi retirada do discurso oficial colocando-os em um papel passivo ou ultrapassado.
Recentemente, o documento “Violação dos direitos humanos e territoriais dos
Guarani no Oeste do Paraná (1946-1988): Subsídio para a Comissão Nacional da Ver-
dade” (CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA, 2013) trouxe o relato de como
se deu a remoção forçada e a exclusão territorial sofrida pelos Avá-Guarani da região de
Guaíra durante a colonização do oeste paranaense, aliada a usual negação de identidade
dos indígenas, comumente chamado de paraguaios ou bugres.
A estratégia de negação da identidade indígena se traduziu na manutenção da
invisibilidade do indígena perante a sociedade envolvente e na conveniente recusa em
garantir os direitos sobre suas terras tradicionais.
Muitos indígenas que atualmente ocupam pedaços de terra no município de
Guaíra estão retornando das localizações em que haviam se refugiado durante a coloni-
zação. Camila Faria (2013), a partir de discursos indígenas, compreende que com a in-
tensificação das relações de parentesco e os conflitos nas terras indígenas do Mato Grosso
do Sul, os indígenas retornam a Guaíra, inicialmente para as aldeias que resistiram aos
processos de expropriação e em seguida, formando novas aldeias em lugares tradicionais
(FARIA, 2013, p.15).

415
Fonte: FARIA, 2013.

Ademais, eles também começaram a se organizar politicamente em prol da de-


marcação de seus territórios, movimento este que teve como resposta a organização de
setores que se posicionaram contra a demarcação, produzindo informações muitas vezes
distorcidas ou fictícias que geraram um clima hostil que se espalhou pelo município,
fazendo florescer preconceito e racismo por parte da população não-índia (DIAS, 2013;
FARIA, 2013; MASUZAKI, 2015).
O que se observa em algumas aldeias é uma situação de pobreza, como presente no
relatório produzido pelo Ministério Público Federal3, as quais não possuem energia elétrica e
nem água potável, os rios que muitas vezes servem como abastecedouros estão contaminados
por agrotóxicos causando diversos tipos de doenças em pessoas da comunidade.
Aqui se entende que a falta de segurança territorial impede que os Avá-Guarani
utilizem os mais variados meios para sua subsistência, tanto a partir de recursos naturais,
isto é, a terra, fauna e flora para produção de alimentos, medicamentos e construções

3
MPF/Guaíra verifica as péssimas condições de vida de indígenas na região de Guaíra e Terra Roxa. Disponível em:
<http://www.prpr.mpf.gov.br/news/mpf-guaira-verifica-as-pessimas-condicoes-de-vida-de-indigenas-na-regiao-de-guaira
-e-terra-roxa>. Acesso em: Mai. 2016.

416
como a ausência do título jurídico para obter acesso a políticas públicas e da realização
cultural que vem com o estabelecimento do seu “lugar para ser”.
Sobre a relação entre pobreza e a disponibilidade de recursos, Haesbaert (2006)
afirma que o território é propriamente um recurso fundamental para a reprodução so-
cial. Neste sentido afirma:

Percebendo a pobreza associada à disponibilidade de recursos, “recurso” deve ser


visto na sua acepção mais ampla, o que inclui, no nosso entender, a própria di-
mensão espacial, ou seja, o território como “recurso”, inerente à nossa reprodução
social. Com isto partimos do pressuposto que toda pobreza e, com mais razão
ainda, toda exclusão social, é também, em algum nível, exclusão socioespacial e
por extensão, exclusão territorial - isto é, em outras palavras “desterritorialização”.
Desterritorialização, aqui, é vista em seu sentido ‘forte’, ou aquele que podemos
considerar o mais estrito, a desterritorialização como exclusão, privação e/ou pre-
carização do território enquanto “recurso” ou “apropriação” (material e simbólica)
indispensável à nossa participação efetiva como membros de uma sociedade. (HAES-
BAERT, 2006, p. 315, grifo do autor.)

Sem um território ficam por fim, impedindo a utilização da agricultura como


meio principal de aquisição de alimentos, como lhes é culturalmente comum, acabam
por depender do emprego de sua mão de obra na construção civil, em propriedades ru-
rais, frigoríficos e cooperativas, locais onde por vezes lhes foram negados trabalhos por
serem indígenas (MASUZAKI, 2015). Portanto a exclusão territorial em que se encon-
tram é fator causador da pobreza, uma vez que ao mesmo tempo os excluem de diversas
possibilidades de acesso a recursos que provêm do território os impelindo a buscar ativi-
dades econômicas desgastantes e alheias ao seu ambiente cultural.
Outros extremos identificados durante os períodos mais intenso de conflito fo-
ram casos de bullying por parte de alunos e professores, discursos de ódios em redes so-
ciais e quase dez suicídios, sendo as vítimas principalmente jovens (DIAS, 2014, p. 61).
Como é destacado em carta pública produzida pela comunidade da Tekoha Y Howy, os
suicídios são muito comuns em terras não demarcadas, enquanto as outras terras Avá-
Guarani no estado não apresentam tais situações preocupantes (CARTA DOS INDÍ-
GENAS AVÁ-GUARANI DA TEKOHA Y HOWY EM GUAÍRA/PR, 2015).
Para se compreender a realidade indígena guairense e poder projetar ações futu-
ras, deve se levar em conta que o oeste paranaense devido à agricultura intensiva voltada
ao agronegócio que é predominante na região, principalmente do final da década de
1960 em diante, não manteve grandes áreas de preservação natural. As últimas áreas
remanescentes são Áreas de Proteção Permanente, e no geral são nestes espaços que os
indígenas se localizam.

417
Sendo assim, devido ao apelo de conservação ambiental destes indígenas4, após
demarcada a Terra Indígena, será necessário um projeto de recuperação ambiental da
área para que da mesma, posteriormente, os Guarani possam extrair os recursos para sua
subsistência.
Para mudar esta realidade os indígenas necessitam ter os seus territórios demar-
cados, pois garantir a segurança territorial é o primeiro passo para que estes possam
manifestar sua autonomia, definir seus projetos de futuro e se realizar como indivíduos,
pois como expresso em um comum jargão guarani: “Sem Tekoha não há teko”, isto é,
sem o lugar de ser (tekoha) não há como ser (teko), “sem a materialidade da terra, não há
possibilidade de construir-se enquanto ser cultural” (DEPRÁ, 2006, p. 25).
Ademais, se necessita de grande ação do Poder Público para conscientizar e des-
construir preconceitos sobre o povo Avá-Guarani. É preciso de ações sobre educação
dentro e fora das escolas sobre a história das características culturais, sociais e políticas
especificamente Avá-Guarani. Tais ações demandarão de organização indígena, reivindi-
cação e disputa com o Estado para fazer valer os direitos já garantidos.

TERRITÓRIO INDÍGENA E GESTÃO TERRITORIAL INDÍGENA

Considera-se que a mudança positiva da atual realidade indígena, somente pode


ser conquistada através do processo demarcatório e da garantia de um território que dis-
ponha dos recursos necessários à reprodução física e cultural deste povo, como disposto
no artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
A demarcação garante ao indígena “sua posse permanente, cabendo-lhes o usu-
fruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios, dos lagos nelas existentes”. Embora o Art.
67 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988
tenha estabelecido o prazo de cinco anos para a demarcação das terras indígenas, o pro-
cesso demarcatório já se arrasta por 26 anos e ainda não foi concluído.
Entende-se que a partir da demarcação surgem novas possibilidades de conquistar
melhor qualidade de vida, utilizando-se da noção de gestão territorial indígena e aces-
sando políticas públicas voltadas à sustentabilidade das terras indígenas, especialmente,
pois dentre os diversos atores relevantes para a gestão de terras indígenas, o Estado tem
papel significante, uma vez que a Constituição Federal reconhece o direito originário dos
povos indígenas sobre a terra, mas, ainda mantém a União como “co-responsável” destes
territórios, em seu Artigo 231. Bem como reforça essa percepção de órgão parceiro atra-
vés da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
4
O apelo á conservação ambiental no ano de 2014 foi motivo de manifestação e conflito no município, os indígenas da
aldeia Tekoha Y’Hovy ocuparam uma área vizinha a sua ocupação com o objetivo de evitar seu desmatamento: http://
pasquimdooesteonline.blogspot.com.br/2014/11/questao-indigena-x-meio-ambiente.html

418
A Carta Magna reconhece que o direito do indígena à terra é originário, ou seja,
antecede a colonização. Portanto, o direito a terra é inquestionável, cabe à demarcação
definir apenas onde é a sua localização e seus limites.
Como complementa Inglez de Souza (2012),

Uma Terra Indígena demarcada fornece os limites dentro dos quais os povos indígenas
têm autonomia de gestão, servindo de base para que construam seus projetos de fu-
turo. A base para o planejamento, entretanto, não se limita ao processo demarcatório.
Depois de demarcadas, é preciso garantir a integridade das Terras Indígenas e de seus
recursos naturais, de usufruto exclusivos dos povos indígenas. Portanto, a gestão terri-
torial das Terras Indígenas envolve também a proteção de seus limites e a integridade
dos recursos naturais aí existentes (INGLEZ DE SOUZA. 2012 p.82).

Nesse contexto, o tema gestão territorial vem se destacando na reflexão sobre as


ações de desenvolvimento e superação de desafios das terras indígenas brasileiras demar-
cadas. Isto, pois, abarca a importância tradicional do território para os povos indígenas,
bem como, articula e debate diversos outros temas voltados à manutenção ou condução
da sustentabilidade das terras indígenas (REDE DE COOPERAÇÃO ALTERNATIVA,
2013; INGLEZ DE SOUZA, 2012).
A articulação é feita principalmente em torno de projetos de gestão territorial
envolvendo setores representantes de diferentes áreas e com interesses muitas vezes di-
ferentes. Como por exemplo, a questão ambiental pelo Ministério do Meio Ambiente
(MMA), a questão educacional pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), os inte-
resses indígenas representados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e
cooperação internacional.
A presença de tantos e diversificados gestores5 demonstra uma convergência de
interesses que devem atuar de maneira unificada, para que não sejam gastos esforços e
recursos em atividades paralelas ou antagônicas.
Fortalecendo a iniciativa de gestão territorial indígena, é decretado em 2012 a
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, a
qual foi fruto de anos de luta por parte dos povos indígenas e é a atual diretriz para se
pensar a sustentabilidade das terras indígenas.
Com o advento desta política os gestores têm um material básico de apoio para
pensar as terras indígenas, isso permite que a gestão do território não dependa somente
de projetos com início e fim marcados, cujos objetivos são muitas vezes definidos pelos
financiadores, e sim que todos os envolvidos possam se basear em uma política pública
desenvolvida com participação indígena. Assim, cabe aos gestores adaptar as necessida-
des existentes em cada território a ser trabalhado.
5
A noção de gestores aqui presente quer dizer todo e qualquer indivíduo, órgão ou instituição responsável por ações,
práticas ou não, voltadas ao gerenciamento dos recursos materiais ou imateriais de um território indígena.

419
ETNODESENVOLVIMENTO: AUTONOMIA E PROTAGONISMO

Cabe de início esclarecer que as formulações seguintes estão inscritas na ideia do


etnodesenvolvimento, termo popularizado por Stavenhagen (1985) que apresenta uma
concepção alternativa de desenvolvimento que se utiliza das características étnicas como
determinante para a formulação dos projetos de futuro dos indígenas. Tal proposição
preconiza que o desenvolvimento seja formulado de maneira endógena e voltado a su-
prir em primeiro lugar as necessidades internas, isto é, por e para os indígenas. Para isso,
pressupõe a liberdade e a autonomia dos indivíduos para acessar os seus mais diversos
recursos presentes no território e negociar seus interesses com o Estado (STAVENHA-
GEN, 1984 apud AZANHA, 2002, p. 31).
Tal concepção é lida como uma nova forma de pensar o desenvolvimento, levan-
do em consideração “às condições necessárias para que a capacidade autônoma de uma
sociedade culturalmente diferenciada possa se manifestar, definindo e guiando seu de-
senvolvimento (VERDUM, 2006, p.73)”. Ainda, há de se observar que não se ignora a
existência de críticas a esta proposição, como as elaboradas por Verdum (2006) e Barreto
Filho (2006) que consideram o etnodesenvolvimento como uma reforma ou moderni-
zação das formas de dominação/sujeição do Estado e instituições perante os indígenas.
Uma vez que, como demonstra Verdum (2006, p. 75 -76) há diversas assimetrias inte-
rétnicas que foram ignoradas na proposição da ideia de etnodesenvolvimento.
Entre as imposições estranhas a lógica indígena está a necessidade de adequação
aos requisitos para acessar as políticas e projetos de desenvolvimento, a alteração da
organização social indígena com a imposição de determinadas formas de organização
como a associativa, o estabelecimento de lideranças que intermediam os interesses indí-
genas com propositores, a inserção nos circuitos econômicos de mercado, a definição de
bens e serviços adequados, entre outros. Em outras palavras, o Estado se coloca como
parceiro desde que cumprido com os objetivos propostos pelas entidades externas aos
povos indígenas.
Entretanto, concordamos com Almeida e Macedo (2012), que compreendem
que a “transformação cultural” é um processo inerente de etnias em contato e que pode
trazer fatores positivos e/ou negativos, e com Azanha (2002), que acredita na “força
adaptativa” e da “reação autocentrada” das sociedades indígenas. O que para nós é algo
evidenciado de longa data, seja na ideia de “inconstância da alma selvagem”, como no
título da obra de Eduardo Viveiros de Castro, ou na adaptação e indiferença de sistemas
e práticas religiosas fora da cosmologia Guarani, como demonstradas por Curt Nimuen-
dajú (1987) e principalmente na consciência que os Guarani possuem mais de 500 anos
de contato e enfaticamente se afirmam uma sociedade diferenciada.
Vê-se que há um conflito assimétrico de dois modelos civilizacionais diferentes,
o que implicará em uma disputa política que se manifesta nas reivindicações de direitos

420
e proposições. Como afirma Iara Ferraz (apud AZANHA, 2002) “E o desafio perma-
nente consiste em se reproduzirem como sociedades etnicamente diferenciadas e lidar,
ao mesmo tempo, com condições materiais de existência cada vez mais adversas e mul-
tifacetadas”.
Dessa forma é possível compreender o etnodesenvolvimento como uma estraté-
gia indígena para legitimar sua própria forma de desenvolvimento frente às inevitáveis
imposições externas. Portanto, há a necessidade de munir os indígenas para fazer valer
seus desejos frente aos interesses externos. Capacitando-os e permitindo que eles possam
tomar totalmente as rédeas do desenvolvimento de sua comunidade.
Sendo assim, afirma Azanha (2002):

Nesses termos, o “etnodesenvolvimento”, quando referido às sociedades indígenas


brasileiras, envolveria os seguintes indicadores: a) aumento populacional, com se-
gurança alimentar plenamente atingida; b) aumento do nível de escolaridade, na
“língua” ou no português, dos jovens aldeados; c) procura pelos bens dos “bran-
cos” plenamente satisfeita por meio de recursos próprios gerados internamente
de forma não predatória, com relativa independência das determinações externas
do mercado na captação de recursos financeiros; e d) pleno domínio das relações
com o Estado e agências de governo, a ponto de a sociedade indígena definir essas
relações, impondo o modo como deverão ser estabelecidas (AZANHA, 2002, p. 32)

A adoção desta ideia se dá em função da necessidade de trazer uma perspectiva de


melhor qualidade de vida para os Avá-Guarani de Guaíra após a possível homologação
de sua Terra Indígena. Assim, considera-se que há a necessidade de refletir uma forma
de gestão territorial determinada com base nas características culturais e na soberania
indígena no território.
Com base nos pressupostos acima, o trabalho segue em reta final para duas di-
reções. Primeiramente aborda-se a dimensão política do território indígena, compreen-
dida com enfoque na gestão dos conflitos de interesses dos indivíduos que compõem a
comunidade indígena. Além de órgãos e instituições que agem sobre este território, o
que diante destes agentes, implica a necessidade de maior protagonismo indígena para
equilibrar uma relação histórica de assimetria.
E em seguida, aborda-se a dimensão econômico-ecológica vista a partir do pla-
nejamento de ações voltadas ao uso sustentável dos recursos naturais priorizando-se à
reprodução física e cultural e incentivando a geração de renda. Para isso, elege-se a agroe-
cologia como modelo produtivo adequado aos aspectos culturais indígenas e as aspira-
ções produtivas voltadas à segurança alimentar e comércio.

421
ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA TERRA INDÍGENA AVÁ-GUARANI

Como o presente estudo infere sobre um território não definido precisamente,


podendo vir a ser uma grande área ou pequenos territórios que formariam ilhas, é ne-
cessário em primeiro momento conhecer e reconhecer a organização sociopolítica das
comunidades guarani de Guaíra, que em nossa abordagem é a base política para organi-
zação e planejamento de ações sociais, ambientais e econômicas.
Em outras palavras, trata-se de reconhecer a organização interna da sociedade
Avá-Guarani estabelecida no município de Guaíra e reconhecer suas particularidades,
estando ciente das potencialidades e desafios inerentes a esta forma de organização.
Segundo Mura (2005, p. 59) pode se considerar como base da organização polí-
tica, social e material do povo Ñandeva (Avá-Guarani) a família extensa, uma unidade
pré colombiana que dependendo da coesão social e do contexto histórico, pode conter
até cinco gerações. O líder da família extensa é o tamõi (avô), o indivíduo mais velho do
grupo. Com o falecimento deste indivíduo o grupo pode se desmantelar, pois os filhos
do tamõi podem formar novas famílias espacialmente independentes.
No município de Guaíra, os indígenas se organizam em torno de tekohas6, geralmente
liderado por uma família extensa, sendo cada uma com sistema próprio de liderança, man-
tendo ainda laços de reciprocidade entre si, alianças, porém, devido aos recursos escassos, há
certa dependência e competitividade pelo assistencialismo público. Sendo assim é importan-
te compreender que os indígenas adotam o termo tekoha como unidade administrativa, isto
é um território político, para estabelecer diálogo com o poder público e que tal organização
foi fundamental para garantia de direitos (OLIVEIRA, 2013, p.11).
Atualmente, no município de Guaíra existem 08 tekoha (CENTRO DE TRABA-
LHO INDIGENISTA, 2015) em estudo pela FUNAI, dispersos principalmente pela área
rural do município. Como pode ser observado na imagem abaixo (Fonte: OLIVEIRA, 2013):

6
É conhecido de modo simplista por não indígenas como “Aldeia”

422
Os tekoha são comumente representados publicamente por indígenas conhecidos
como caciques, como afirma Borges (2005, p.08) a posição de cacique surge na necessida-
de em se dialogar com os não-indígenas, estes indígenas são conhecidos como a “liderança
para fora”, indivíduos geralmente mais jovens que dominam os códigos discursivos ou so-
ciais dos “brancos”. Tais representantes da comunidade atuam em conjunto com as “lide-
ranças para dentro” que são líderes tradicionais, normalmente o guia espiritual do grupo.
Desde 2012 exista uma Comissão de Caciques responsável pelo diálogo com o
Estado (OLIVEIRA, 2013). O diálogo entre as aldeias e o Poder Público é comumente
realizado de forma individual por cada cacique, porém quando necessário se reúnem
para reivindicar alguma pauta coletiva.
Se houver uma demarcação de um território que abrigue a área de boa parte ou
de todas as comunidades7, é preciso que esta forma de organização seja levada em conta
após o processo demarcatório, para evitar possíveis conflitos internos entre as lideranças
em uma disputa por quem fará o papel de dialogar com o Estado.
Apresentados alguns esclarecimentos, em seguida disserta-se de maneira geral, sobre
dois elementos que consideramos importantes na dimensão política da gestão territorial.
O primeiro elemento é a autonomia, que é entendida aqui como a liberdade da
comunidade de discutir politicamente e decidir seus projetos de futuro, pois em nossa
perspectiva devem estar organizados de forma que representem ativamente seus inte-
resses frente aos interesses do município, do Estado e da União e instituições parceiras
internacionais. A nosso ver, esta organização pode ser feita pelos caciques de cada comu-
nidade e pela Comissão de Caciques com a participação da comunidade, a partir da sua
própria lógica organizacional tradicional.
Ainda assim é necessário fazer uma ressalva do papel das lideranças na autonomia
da comunidade, pois esta forma de organização não pode se tornar entrave das aspi-
rações da própria comunidade, isto é, não se deve quebrar a dependência dos agentes
externos e tornar-se dependente dos agentes internos. Como afirma Matos,

A vantagem significativa de quebrar a dependência externa na relação com o


governo e com as classes dominantes, com o respaldo de lideranças locais, não
justifica a manutenção de uma dependência da comunidade com relação a seus
líderes ou aos movimentos sociais de quem recebem apoio nas suas lutas. [...] A
autonomia não se constrói sem um método de organização que opere coletiva-
mente respeitando os espaços individuais; onde a instância reguladora deixe de ser
personalizada nas lideranças para ser prerrogativa de coletivos organizados com
respeito às singularidades (MATOS, 2001, p.05).

7
Como dito anteriormente o artigo parte do pressuposto que a terra indígena demarcada deve ser uma área adequada
a reprodução física e cultural dos indígenas. Caso se repita o que ocorre em muitas áreas fora da Amazônia, em que a
dimensão da terra indígena seja insuficiente para sustentabilidade, a pauta segurança territorial certamente retornará no
desejo de ampliação do território, o que iria trazer novos e intensos conflitos.

423
O segundo elemento é o protagonismo indígena, o qual se compartilha da visão
de Secchi (2007) que o entende “com um duplo enfoque: enquanto uma atitude de
rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o exercício qualificado
de um papel de destaque nas relações interculturais” (SECCHI, 2007, p. 11).
Cabe citar que após a década de 90 as políticas públicas substituíram o teor de
tutela e passaram à tentativa de incluir os povos indígenas em projetos dirigidos a po-
pulações desassistidas, entre eles estão muitos projetos de gestão territorial, educação
escolar, entre outros que contam com a participação indígena em suas formulações e
desenvolvimento, porém, apesar de ser um grande avanço ainda é limitador, pois sua
elaboração e avaliação é feita por não-indígenas (SECCHI, 2007, p. 18).
Entende-se que os indígenas devem estar capacitados para planejar, liderar e de-
senvolver as atividades estabelecidas, e para isso é importante nos primeiros momentos
após a demarcação destacar a participação indígena como base para o planejamento
das ações e ao mesmo tempo projetar para o futuro que a participação dê lugar ao
protagonismo.
Sugere-se também que para os Avá-Guarani de Guaíra, a organização em torno de
um representante político local, isto é, inicialmente um vereador indígena, seria um pas-
so importante para a garantia de seus direitos, uma vez que este ato de empoderamento
possibilitaria uma melhor participação nos debates concernentes à gestão municipal, e
até mesmo em relação aos futuros projetos que o município pudesse tentar implantar
nas tekoha.
Todavia, tal possibilidade só se consolidaria a partir da unificação de todos os
membros da população indígena no município, uma vez que dado o fato de que temos
na região a disseminação de um discurso de ódio contra os povos originários, dificilmen-
te um não-indígena votaria em um indígena para a câmara municipal de Guaíra.
Em paralelo é fundamental trabalhar a curto e médio prazo a formação de pro-
fissionais capacitados para tomar a frente dos projetos a serem desenvolvidos, estando
aptos a se postarem frente às adversidades, imposições e tirando o melhor das transfor-
mações frutos do contato interétnico (ALMEIDA e MACEDO, 2012, p.141).
Desta forma é necessário estimular o movimento que vem crescendo de profis-
sionais indígenas que atuem nas e para as comunidades de onde vieram. Pois se acredita
que desta maneira “a possibilidade de apropriação e re-significação de instrumentos e
práticas externas pela lógica indígena local permite validar esses mecanismos de gestão
ambiental e territorial no atual contexto vivenciado pelos povos indígenas” (SMITH E
GUIMARÃES, 2010, p. 9).
A garantia da autonomia da comunidade, e do protagonismo de indígenas cada
vez mais capacitados e que protagonizam cada etapa de planejamento, desenvolvimento
e de projetos de gestão, são elementos que indicam o fortalecimento do projeto de et-
nodesenvolvimento.

424
DIMENSÃO ECONÔMICO-ECOLÓGICA

Há a partir daqui certa preocupação com a geração de renda para os indígenas,


pois há novos elementos que se inserem em sua sociedade, como a dependência finan-
ceira de serviços externos, não havendo a possibilidade de retornar a uma situação de
isolamento, e nem os indígenas buscam tal retorno.
Assim se aborda a dimensão econômico-ecológica da futura Terra Indígena Avá-
Guarani, visando o uso sustentável dos recursos naturais, assim, parte-se da compreen-
são de Boff (2015, p. 138) que afirma que “o desenvolvimento sustentável se torna viável
quanto mais ele surgir da interação da comunidade como seu respectivo ecossistema
local e regional”. Isto é, compreende-se que as reflexões, as ações, as técnicas e as tecno-
logias devem ser adequadas ao ecossistema e as características sociais da comunidade ha-
bitante. Tal perspectiva é consoante com a noção de etnodesenvolvimento aqui adotada,
que por sua vez preza o uso dos recursos naturais e os conhecimentos indígenas sobre o
manejo de tais recursos.
Neste sentido há a necessidade em se pensar a dimensão econômico-ecológica do
território Avá guairense. Pois, embora a visão de terra indígena como improdutiva seja
mais generalizada em âmbitos mais populares da sociedade, está cada vez mais popula-
rizado as projetos e ações voltadas a comercialização de diferentes produtos indígenas.
Na perspectiva aqui adotada, compreende-se que em primeiro lugar é funda-
mental o suprimento das necessidades alimentares da comunidade, sendo o comércio
do excedente produzido pelos indígenas uma possibilidade de geração de renda na co-
munidade após a garantia da segurança alimentar. Tornando-se desta forma um meio
para incentivar a emancipação financeira de agentes externos e de modo que também
consolide maior independência política local.
Seguindo em nossa perspectiva de etnodesenvolvimento, é importante com-
preender que os Avá-Guarani buscam que o seu território apresente condições ambien-
tais específicas como requisitos de sua territorialização (OLIVEIRA, 2013), em outras
palavras, necessitam de uma configuração territorial que propicie a reprodução física e
cultural da comunidade. Sendo assim este território necessita dispor de recursos naturais
como mata para coleta de remédios e madeiras para construções e artesanato, animais
para caça e pesca, e principalmente terra agricultável (ALBERNAZ, 2007).
Sabendo da necessidade de conservar a fauna e a flora e também de produzir para
geração de renda, acredita-se que o incentivo a sistemas agroflorestais (SAFs), acompa-
nhado da formação de agentes agroflorestais, seria uma boa alternativa para a terra in-
dígena guairense. Afinal, os SAFs são uma forma de manejo ambientalmente adequada
que consiste no extrativismo, prática comum aos indígenas, respeitando a capacidade do
solo e a sucessão natural de árvores que produzem alimentos e materiais de interesse para
a comunidade (CANDIOTTO, CARRIJO e OLIVEIRA, 2008).

425
É importante ressaltar que, o planejamento da gestão do território indígena deve
também considerar que o modo produtivo dos Guarani é diferente da agricultura con-
vencional. Isto implica em compreender que os indígenas realizam a prática agrícola
como elemento indissociável da prática cultural, sendo passada de forma oral de geração
em geração (CARVALHO, 2012) acumulando séculos de sabedoria, bem como se cons-
titui de um manejo ambientalmente correto.
Como assevera Brighenti (2005):

A agricultura praticada pelos Guarani, além de manter uma extensa lista de va-
riedade de plantas e cultivares, baseia-se numa técnica itinerante, que consiste na
rotatividade do uso do solo. Como afirma Fogel (1998, p. 44) “depois de 3 a 4
anos de uso continuado da mesma lavoura – ao baixar a produção – deixam o solo
descansar até que se retome a fertilidade: é uma das formas de manter o equilíbrio
ecológico. Não é permitido derrubar a mata se não for utilizado para o plantio”.
Importante observar que os Guarani praticam um intenso manejo ambiental, pois
com o tempo de descanso da terra e sua regeneração e ao longo das trilhas nas
matas secundárias, crescem as plantas utilizadas na coleta, atraindo animais e am-
pliando a fomentando a multiplicidade de espécies (BRIGHENTI, 2005, p.44)

Embora o povo Guarani possua um sistema de manejo agroflorestal ambiental-


mente adequado, convergindo espiritualidade e respeito pela natureza (OLIVEIRA,
2009; BRIGHENTI, 2005; ALBERNAZ, 2007) é preciso se desvencilhar do mito do
“selvagem ecologicamente nobre”, isto é, a compreensão simplista de que o índio é con-
servacionista por natureza. Mesmo que tal ética de relação com a natureza seja funda-
mental para a conservação ambiental, considera-se que o manejo do meio ambiente
pode ser aprimorado com técnicas e tecnologias não-indígenas.
Smith e Almeida (2013) afirmam que há uma mudança das práticas produtivas,
impostas por diferentes situações, como demanda de mercado, técnicas e tecnologias
utilizadas. “Com isso, procura-se ressaltar que mesmo as ações com as quais os povos e
as comunidades indígenas já têm muita experiência são desenvolvidas hoje de maneiras
distintas daquelas do passado, e precisam de especialização por parte dos gestores indí-
genas (SMITH e ALMEIDA, 2013, p 201)”.
Entretanto, não se pretende reproduzir a crença de que o modelo de agricultura
moderna altamente tecnológica é o adequado ao desenvolvimento indígena, uma vez
que esta trouxe diversos impactos socioambientais negativos como a simplificação dos
agroecossistemas, a perda de variedades, o acorrentamento a maquinários agrícolas, a
substituição de sementes naturais por organismos geneticamente modificados e o inten-
so uso de agrotóxicos (ALTIERI, 2012).
A provocação aqui, não é da eleição de um modelo ou outro, mas sim do esta-
belecimento do desafio aos futuros gestores indígenas e órgãos de assistência técnica, de
equilibrar os meios produtivos a serem utilizados sem descartar o tradicional e o mo-

426
derno. Em proposta semelhante, Smith e Guimarães (2010, p.7) afirmam a necessidade
em se valorizar o conhecimento tradicional e complementá-lo com saberes e práticas
ocidentais, mantendo-se atento aos desafios e transformações da realidade indígena.
É neste sentido que se insere a agroecologia como modelo intermediário e susten-
tável para ser adotado, pois estimula e “incorpora, aos objetivos de conservação ambien-
tal presentes na agricultura orgânica, objetivos sociais, onde agricultores e consumidores
devem ser valorizados e beneficiados no processo (CANDIOTTO, CARRIJO e OLI-
VEIRA, 2008, p.222)”.
A agroecologia é um modelo amplo baseado nas especificidades econômicas e
socioambientais locais, que por atender as demandas ecológicas e econômicas está sendo
adotado por diversas comunidades indígenas e inclusive o Projeto de Gestão Ambiental
e Territorial (GATI) fruto da PNGATI8.
Cabe aqui trazer uma ressalva quanto à implementação de um projeto de agroe-
cologia, tendo como base a experiência relatada por Fábio Mura (2005, p. 70) sobre o
Programa Pantanal o qual adotou critérios agroecológicos para o manejo, porém descon-
siderou as condições sociais do local de implantação, aspectos de compreensão sobre o
mundo natural e humano e a temporalidade dos indígenas. Isto resultou na opção por
utilização do arado que despendia de muito tempo de trabalho o que por sua vez invadia
o tempo para realização da dinâmica de socialização cotidiana Guarani.
Embora haja observações a serem feitas, acredita-se que a agroecologia ainda é um
sistema de manejo benéfico e adequado às características tradicionais Guarani, e tornar-
se-ia um elemento importante para aliar produção e conservação ambiental, gerando
alimento e renda para os indígenas.

8
Projeto GATI promove apoio a quintais agroflorestais e hortas agroecológicas na TI Ava-Guarani de Oco’y (PR) – Dis-
ponível em: <http://cggamgati.funai.gov.br/index.php/projeto-gati/noticias/projeto-gati-promove-apoio-quintais-agro-
florestais-e-hortas-agroecologicas-na-ti-ava-guarani-de-ocoy-pr/>. Acesso em: Jan. 2016.

427
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Avá-Guarani de Guaíra encontram-se em uma posição delicada, pois desde o mo-


mento em que iniciaram sua organização para fazer valer seus direitos, fortaleceu-se também
o movimento local de setores contrários aos direitos indígenas. Tal reação está inscrita em um
panorama nacional respondida na mesma escala pelos povos indígenas do Brasil.
Eduardo Viveiros de Castro (2006) afirma que a década de 80 é um marco de
início do movimento de re-indianidade, do retorno ao orgulho em ser índio e do re-
conhecimento de diversos direitos na Constituição Federal. Se há mais de 30 anos os
indígenas iniciaram sua organização política para garantir seus direitos na Carta Magna,
hoje precisam se fortalecer para fazer valer na prática este direito.
A adoção de uma posição ativa, isto é, fazendo-se legitimar o protagonismo Avá-
Guarani nas mais diferentes dimensões do novo Território Indígena, é também o forta-
lecimento da ruptura de invisibilidade do Avá-Guarani perante o Estado.
Desta maneira, se entende que com a demarcação um dos grandes trunfos da
Terra Indígena Avá-Guarani guairense seria o acesso a políticas públicas por parte dos
indígenas. Principalmente políticas voltadas para a recuperação ambiental e para o for-
talecimento da segurança alimentar, e com isso a fortificação do modo de ser guarani.
É nesse contexto que o Etnodesenvolvimento aqui é visto como uma estratégia
política, pois embora possa ser abordado como uma modernização da concepção clássica
de desenvolvimento como sinônimo de produção econômica, o que para os povos indí-
genas traduziu em uma integração forçada à sociedade nacional, também se considera a
possibilidade dos povos indígenas resignificarem o sentido de desenvolvimento confor-
me suas próprias características culturais.
Pensando na ordem prática, isto é, ações que impactariam de maneira positiva
na vida dos indígenas após a demarcação, sugere-se a adoção da agroecologia como
modelo produtivo respaldado pela Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental
de Terras Indígenas e que vem respondendo teoricamente ao desafio de unir sabedorias
tradicionais com conhecimentos modernos, priorizando também a valorização não só
do comércio, mas também da produção.
Por fim, embora existam diversas ressalvas apontadas, ainda sim é necessário pen-
sar em formas de proporcionar com que os próprios indígenas superem a atual situação
de pobreza em que se encontram devido a exclusão territorial.

428
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