Revista Mulemba
Revista Mulemba
1. Apresentação
I. Ensaios:
4. Da voz quase silenciada à consciência da subalternidade: a literatura de
autoria feminina em países africanos de língua oficial portuguesa
Tania Macedo
71. Não sou mesmo uma feminista?” A Política do Corpo em O Alegre Canto da
Perdiz, de Paulina Chiziane
Ana Luísa Valente Marques Teixeira
Errata:
Nas referências, nos rodapés das páginas de cada artigo, onde se lê N. 2, v.1, jul.
2010, leia-se: Vol. 2, nº 1, jul. 2010
APRESENTAÇÃO
Abre a primeira parte o ensaio “Da voz quase silenciada à consciência da subalternidade:
a literatura de autoria feminina em países africanos de língua oficial portuguesa” , da
professora doutora Tania Macedo, da USP, que estabelece uma leitura comparativa de textos
de escritoras das literaturas africanas de língua portuguesa, apontando alguns traços da
trajetória poética de autoria feminina em Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
A seguir, o artigo “Mulheres e memória da guerra nas crônicas de Ana Paula Tavares” , da
professora doutora Simone Pereira Schmidt, da Universidade Federal de Santa Catarina,
propõe uma aproximação entre experiência traumática da guerra e lembranças de mulheres. O
foco de análise incide sobre as crônicas da escritora angolana Ana Paula Tavares, publicadas
na imprensa portuguesa, entre 1999 e 2002, e, posteriormente, reunidas no livro A cabeça de
Salomé (2004).
“Matilde Van Dun e o desejo que alimenta a visão” , de Vanessa Ribeiro Teixeira, doutora
em Letras pela UFRJ, trata do modo pelo qual a personagem Matilde Van Dun, do romance A
gloriosa família – o tempo dos flamengos, de Pepetela, dialoga com a possibilidade de criação
de novas formas de compreensão dos meandros da história e do desejo feminino, já que seu
olhar alcança espaços e realidades futuras.
Os cinco textos seguintes enfocam a obra da escritora Paulina Chiziane, primeira mulher a
escrever romances em Moçambique. Tais ensaios contribuem para um maior adentramento no
universo de crítica à escrita da autora. Em “Reflexões sobre gênero na narrativa de Paulina
Chiziane: uma leitura do conto “As cicatrizes do amor” , Maximiliano Torres, doutor em
Teoria Literária pela UFRJ, analisa o conto “As cicatrizes do amor”, da citada escritora, à luz da
teoria crítica feminista. Aborda a problemática da dominação masculina e apresenta o termo
gênero como uma categoria de análise perpassada por papéis socialmente construídos,
demarcados por relações de poder.
Em “ „Não sou mesmo uma feminista?‟ A Política do Corpo em O Alegre Canto da Perdiz,
de Paulina Chiziane” , Ana Luísa Valente Marques Teixeira, pós-doutoranda do Centro de
Estudos Africanos – ISCTE de Lisboa, propõe uma leitura do romance O Alegre Canto da
Perdiz (2008), a partir de conflitos entre classe, gênero e raça, enquanto conceitos social e
culturalmente construídos.
1
paródica de textos da literatura universal como a Bíblia, Branca de Neve e Alice no País das
Maravilhas.
Fechando a parte ensaística, o artigo, de tema livre, intitulado “Uanhenga Xitu: mundos em
confronto de uma terra chamada Angola” , de Rita Chaves, professora doutora de
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da USP, se debruça criticamente sobre a escrita de
Uanhenga, demonstrando como esta efetua uma consolidação de uma tradição literária que
vem desde António de Assis Júnior e se articula com uma ideia de nacionalidade.
Nesta edição, resolvemos inovar, introduzindo uma Parte II, com escritos literários de autores
africanos: Paula Tavares abre a seção com o poema " Entre Luz e Sombra" – homenagem a
Leopold Sédar Senghor ; José Luís Mendonça e Chó de Guri nos brindam, respectivamnete,
com a crônica “Se eu fosse mulher...” e com o conto “Da rejeição à afirmação”. A seguir, se
encontram inéditos do livro Estrangeira Condição, de Ana Mafalda Leite; “Poemas soltos”, de
Amélia da Lomba; os poemas “Mulher” e “Criança”, de Fátima Langa; e a resenha crítica
“Com a cabeça à tona da água” , de Paula Tavares, apresentando um livro da escritora
nigeriana Buchi Emecheta.
Por fim, a Parte III inclui biografias de Paula Tavares, Ana Mafalda Leite, Amélia da Lomba, e
autobiografias de Chó do Guri e Fátima Langa.
Notas:
¹ LISPECTOR, Clarice. Água Viva. 2.ed. Rio de Janeiro: Artenova, 1973. p. 40.
2
TÍTULO: DA VOZ QUASE SILENCIADA À CONSCIÊNCIA DA
SUBALTERNIDADE: A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA EM
PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA OFICIAL PORTUGUESA
RESUMO:
O artigo realiza uma leitura comparativa de textos de escritoras das literaturas africanas
de língua portuguesa, visando a apontar uma trajetória na poesia de autoria feminina em
Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe.
ABSTRACT:
The article provides a comparative reading of texts by writers of African literatures in Portuguese, aimed
at pointing out a career in poetry authored by women in Angola, Mozambique and Sao Tome and
Principe.
KEYWORD: Alda do Espírito Santo, Alda Lara, Noémia de Souza, Paula Tavares.
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como força organizadora da resistência, ou mesmo, como no caso da são-tomense Alda
do Espírito Santo, na efetiva ação de construção das jovens nações. Lembrem-se, a
respeito, os vários cargos ocupados por aquela poeta após a independência, aos quais se
soma o fato de ela ser também autora da letra do Hino Nacional de São Tomé e
Príncipe.
É paradigmático dentre as obras de Alda do Espírto Santo o longo poema
“Trindade”, cuja oposição implacável ao colonialismo se expressa no canto de denúncia
contra o massacre de 5 de fevereiro de 1953:
Eu chamo-me Cravid
E tenho um crime...
- Nasci na Trindade –
A vila condenada.
(...)
A revolta cresceu…
As lavas sufocaram os algozes
E as forças dos meus nervos
Desataram as cordas.
A rebelião crescia
E os carrascos sem nome
Atiraram contra mim.
E os tiros vieram
E eu resisti.
Eu não morri.
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emocionado monólogo de uma vida no limiar. E nesse movimento de ultrapassar os
limites entre os gêneros, o poema se torna o porta-voz das vítimas do massacre de
Trindade. Não se trata de uma esposa ou mãe que nos fala do infausto acontecimento
em que teriam morrido espancados até a morte ou abatidos a tiro cerca de 500
santomenses, mas do relato feito por uma voz masculina, testemunha e sobrevivente do
massacre1. Esse mascaramento da voz feminina torna o poema abrangente, na medida
em que são todas as vítimas do colonialismo que fazem ouvir a sua voz pela fala de
Cravid,.
Os amargos anos de luta contra o colonialismo também produziram textos de
combatentes, como os realizados pela angolana Deolinda Rodrigues que, no cárcere,
pouco antes de sua execução, no poema “Inquirindo” afirma em um texto
dramaticamente autobiográfico:
Carrasco de upistas
espia de tugas
prostituta
mulher metida em política
aqui estou etiquetada disso
inquirindo o fim deste pesadelo
inquirindo
cada vez que soa o passo bruto,
ronca o jeep militar,
a corneta toca formatura geral.
(ANDRADE, 1977, p. 55)
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atenção da crítica especializada, o que leva muitas vezes ao seu silenciamento. Esse
fato, aliado às difíceis condições de difusão do livro africano de língua portuguesa no
circuito internacional, e até mesmo no espaço lusófono, cria um desconhecimento do
que hoje as mulheres têm escrito em África.
A respeito,vale lembrar as palavras de Simone Caputo Gomes que, no
Congresso da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e
Linguística (ANPOLL), no GT "A Mulher na Literatura", realizado em Niterói, RJ,
assim situava as tarefas que um estudo sobre a literatura produzida por mulheres propõe
aos pesquisadores:
Ou seja, focalizar a escrita feminina é uma tarefa que demanda não apenas
mobilizar as forças da historiografia literária, mas, principalmente, iluminar o texto sem
deixar na penumbra questões como as suas condições de produção e o papel do autor,
operando com deslocamentos de lugares socialmente determinados.
É, sob essa ótica – de apreender o locus da enunciação do discurso literário
produzido por escritoras – que buscaremos ler os textos de algumas autoras de Angola e
de Moçambique, procurando verificar em que medida os seus textos articulam uma fala
do subalterno3, representando o mundo através da visão feminina. Para tal, escolhemos
textos em que, principalmente, se tematize a relação eu-feminino/outro-masculino.
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engajamento na causa da libertação, uma certa diluição da especificidade do discurso
feminino, já que, segundo entendemos, a afirmação de projeto político se sobrepõe a
uma reivindicação de caráter mais específico.
Dessa forma, a poesia de Alda Lara abaixo transcrita, por exemplo, em seu
“Testamento” refere-se a vários atores sociais e, apenas nos últimos versos, convoca o
amado, que, entretanto, beijado “de longe”, tem apenas a função de distribuir entre as
crianças pobres os poemas de amor do “eu lírico”. É como se a subjetividade feminina
fosse interdita em razão de tarefas mais urgentes atinentes à superação das dores do
mundo:
TESTAMENTO
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Ainda que as primeiras personagens que comparecem ao texto (nas duas
estrofes iniciais) sejam mulheres – a prostituta e a “virgem esquecida” –, pode-se
perceber que são muito mais alusões e tipos, do que personagens que explicitem um
feminino particularizado.
De certa maneira, ainda que revelando um trabalho artístico mais apurado,
encontramos a mesma situação em Noémia de Sousa, como se pode comprovar no
poema intitulado “Poema para um amor futuro”, do qual transcrevemos alguns versos:
A consciência da subalternidade
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que a voz feminina assuma a consciência de sua subalternidade nos textos produzidos
por mulheres.
Segundo cremos, somente após as independências dos países africanos de
língua portuguesa (ocorridas no ano de 1975), uma literatura mais militante pode ceder
espaço para a escrita em que tomam corpo as contradições internas das sociedades,
inclusive no que se refere ao papel social da mulher. Assim, abre-se espaço para a
realização e publicação de livros de autoras que tematizam o papel e a visão feminina
do mundo: Ritos de passagem, da angolana Paula Tavares, em 1985; Amanhã
amadrugada, da caboverdiana Vera Duarte, em 1993; Balada de amor ao vento, da
moçambicana Paulina Chiziane, em 1990.
Pode-se dizer que, embora qualitativamente bastante diversas, as três autoras
guardam entre si uma semelhança: a de realizarem uma literatura de gênero, na medida
em que a questão do feminino se apresenta de forma mais ou menos explícita em seus
textos.
Ana Paula Tavares (Lubango, 1952) destaca-se no cenário das letras em
português em razão da qualidade de seus textos, os quais aliam ao rigor formal a
explicitação do ser feminino, sem descurar de uma delicada relação de pertença ao solo
angolano. Desde o primeiro livro publicado, Ritos de passagem, sua poesia, com uma
dicção própria, ganhou admiradores e um lugar de relevo na poesia angolana
contemporânea. Vejamos, brevemente, como se situa a questão do feminino em seus
textos. Para tal, escolhemos um poema sem título, no qual a questão do que
denominamos “consciência da subalternidade” aparece de forma flagrante.
(SEM TÍTULO)
Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
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Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado
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propiciam que elas ganhem densidade e façam ouvir suas vozes, não raro caladas em
muitas oportunidades nas sociedades tradicionais africanas:
– Meu Dambuza, amo-te, sim. Esta linguagem de amor só é válida para nós
os dois. Na nossa tribo a palavra amo-te significa vacas. Vacas para o lobolo
e nada mais. Sem lobolo não há casamento. (CHIZIANE,1999, p. 42).
Ainda que alguns críticos, como Almiro Lobo (2003), questionem a qualidade
estética do romance, alertando que o texto, apesar de explorar uma certa faceta da
situação feminina em Moçambique, deixa a desejar no que se refere ao trabalho
especificamente literário, é inquestionável que a denúncia da subalternidade feminina
em diversas etnias do país e na sociedade moçambicana, em geral, é realizada por
Paulina Chiziane, conforme se pode comprovar a partir dos trechos anteriormente
transcritos, em que a mulher, não raro, é comparada a objetos sem valor e seu discurso
não é ouvido.
NOTAS
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1
Lembre-se que faz parte das comemorações oficiais da independência em São Tomé e Príncipe a leitura
do poema “Trindade”, feita obrigatoriamente por uma voz feminina.
2
A respeito das consequências, para as mulheres, dos conflitos armados africanos, indicamos o estudo do
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, intitulado Las mujeres ante la guerra (CIRC, 2002)
3
Colocamo-nos aqui na perspectiva de Peônia Viana Guedes, que, em seu texto " 'Can the subaltern
speak?: Vozes femininas contemporâneas da África ocidental”, apresentado no X Encontro da ANPOLL,
considera que algumas estratégias discursivas de que se valem os textos escritos por mulheres geram um
discurso em que o subalterno produz uma fala clara e precisa, capaz de enfrentar com sucesso tanto as
práticas e estratégias neocoloniais, quanto da hegemonia masculina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TÍTULO: MULHERES E MEMÓRIA DA GUERRA
NAS CRÔNICAS DE ANA PAULA TAVARES
Title: Women and memory of war in the chronicles of Ana Paula Tavares
RESUMO:
ABSTRACT:
This article intends to investigate the traumatic experience of civil wars in África –
specially in countries like Angola and Mozambique – and the womens‟ experience in
these wars, focusing their narratives about their experience. The object of analysis will
be Ana Paula Tavares chronicles, first published in a Portuguese newspaper, and finally
published, in 2004, in the book A cabeça de Salomé.
KEYWORDS:
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Em primeiro lugar, chama atenção o gênero literário escolhido por Paula
Tavares neste livro. Sem abdicar da linguagem poética que percorre toda a sua obra
literária, a escritora dedica-se, aqui, à comunicabilidade mais imediata e fluente da
crônica. A escolha de um gênero que, por convenção e costume, se associa à
cotidianidade das páginas do jornal, nos leva a refletir sobre o desejo, por parte da
autora, de provocar nestes textos a mistura entre o factual e o subjetivo, entre a história
e a ficção, cuidando para que se interpenetrem a poetisa e a historiadora. Como lembra
Anita Moraes, a literatura e a história parecem em alguns momentos manter uma
relação de especial complementaridade, particularmente quando “o desafio é abordar
eventos de violência radical”. “Não se trata”, diz Moraes, “de abordar o real como
ficção”, mas da necessidade de desenvolver estratégias “no campo da literatura para
abordar certas dimensões do real” (MORAES, 2006, p. 1), que, devido ao trauma que
provocaram, seriam, de outro modo, irrepresentáveis.
O desejo de compartilhar a experiência dolorosa da guerra em Angola com o
largo público de um jornal diário em Lisboa se liga, portanto, a um projeto de
sobrevivência, pela palavra, das marcas identitárias de um sujeito autoral estreitamente
ligado à voz coletiva do povo angolano, imerso, naquele momento, na experiência
traumática da guerra. A seguir, pretendo abordar algumas estratégias construídas pela
autora, para elaboração do que podemos considerar uma memória das guerras, as
passadas e as que se estendem no presente, ou as “guerra seguintes”, feitas, segundo
Margarida Calafate Ribeiro e Laura Padilha, da (im)possibilidade de gestão das pesadas
heranças de destruição e perda dos referentes (PADILHA e RIBEIRO, 2006, p. 12).
Com o intuito de dar maior clareza aos recortes que pretendo operar, dividirei meu
percurso de leitura em quatro cenas, que correspondem às quatro crônicas que escolhi
para objetos de minha análise.
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transportar a terra inteira às costas e por dentro de si próprias” (TAVARES, 2004, p.
76)2 . Na voz da narradora, encontramos a radicalidade das mudanças operadas pela
guerra na vida de todos:
Os anjos choram.
Os anjos choram
e o bálsamo de todas as feridas
não chega até nós. (APA, 2003, p. 115)
Pela ação avassaladora da história, os sujeitos que ficaram em suas terras, que
não partiram para lutar ou para fugir, foram aquelas que mais diretamente enfrentaram,
e de forma silenciosa, a guerra – em especial as mulheres, os velhos e as crianças, de
quem praticamente não ouvimos o relato, e que no entanto são os que da forma mais
direta e dramática testemunharam a destruição das casas, famílias, terra, e do próprio
país. Ao vivenciar as mudanças traumáticas promovidas pelas guerras, o drama vivido
por esses sujeitos privados de condições mínimas de sobrevivência pela ação
devastadora da luta à sua volta, é, em última instância, o drama de sua própria
identidade, já que estão a viver, segundo a autora, citando Coetze, num “tempo de
bárbaros”: “Não posso falar-te de tempo, porque aqui misturamos os tempos todos.
Ontem, hoje, amanhã não significa nada. O nosso tempo é um tempo dos bárbaros e só
sabemos dos dias e das noites e da espera” ( p. 78).
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O espaço invadido pelo tempo da barbárie provoca a crise de referentes, a perda
das noções primárias de espaço e tempo, e por conseqüência, a sensação de vertigem
identitária.
Neste texto, a autora nos propõe, como o próprio título sugere, uma receita para
curar as feridas da morte recente, uma espécie de ritual que parece obedecer a preceitos
muito antigos, ancorados na tradição das avós, para atuar como um bálsamo sobre os
destroços da guerra:
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ditadura latino-americana, Nelly Richard aponta uma tensão irresolvida entre o desejo
de preservação da memória doída, “que se traduz como o dever ético de não esquecer o
desaparecimento” das vítimas, e a necessidade vital de abrir o testemunho “a uma
comunidade de relatos futuros, que recombinem a experiência em plural”, para que “a
lembrança não permaneça contemplativamente aderida ao passado” (RICHARD, 2002,
p. 113). A lembrança imobilizada pela dor da perda levaria o sujeito, ainda segundo
Richard, à “perda da palavra”, ou seja, à “impossibilidade de nomear a dor, o que
fatalmente conduz o sujeito à queda na melancolia.
Ao contrário do que propõe o debate metropolitano, acerca do sujeito da escrita, o
sujeito das crônicas de Paula Tavares, que na expressão de sua experiência quer
registrar também a experiência histórica recente de seu país, não está morto; pelo
contrário, está nascendo, porque a escrita, como disse a crítica feminista norte
americana Donna Haraway, é um jogo mortalmente sério (HARAWAY, 1994, p. 275)..
É questão de vida ou morte. Porque contar/cantar “parece com não morrer”, como disse
o compositor brasileiro Ednardo. As palavras de Ana Paula Tavares, em outro texto,
resumem seu propósito:
Morri e renasci das doze cabaças da sorte. Bebi até ao fim o cálice amargo da
derrota. À força de preparar e colocar a voz pelos caminhos, comecei a contar
memórias. Agora sou o griot, contador de histórias que não começam e não
terminam nunca (p. 43).
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a narradora faz de seu texto uma “receita” para renascer das cinzas da guerra e da
devastação:
Por isso desce e procura as palmeiras. (...) Terás assim que visitar a ilha. Procura os
antigos caminhos da água onde ainda podes ver barcos a dormir (...) Descobre as
marcas dos pés da noite e segue pelas rotas de seda para ver aonde te conduzem.
(...) Depois, e de alma lavada, podes voltar para casa. (...) Todo o domingo passará
por ti sem que o pressintas enquanto, na pá de zinco, alecrim, eucalipto, açúcar
mascavado e as horas se vão consumir lentamente (p. 39-40)
3. AS MAIS VELHAS
Nesta crônica, a escritora recria uma memória coletiva que pertence às mulheres de sua
comunidade, e é delas, muito particularmente, a sabedoria que se transmite de geração a
geração. Na crônica, “As mais-velhas” essa presença feminina ancestral se torna
explícita, num texto-homenagem que reverencia sua memória:
Nunca sabem a idade, porque nasceram antes do tempo das sementes, num
qualquer ano da praga dos gafanhotos ou da epidemia da varíola. Com sorte,
lembram um vago cometa que lhes ameaçou princípios ou um fim de mundo
qualquer (...) Crescem sob o signo das sobreviventes, com a testa marcada pela
estrela em brasa das vacas eleitas para serem mães, mulheres, irmãs (p. 79).
Por vezes, e sem que se note muito param, entre o dia e a noite, um momento, para
passar, em formas de história, provérbio ou adivinha, as fórmulas de sobrevivência,
lições de parentesco, lugares de culto, os nomes do caminho. São livros de
marinharia que trazem escritos dentro da memória e, em segredo, libertam do
esquecimento (p. 80)
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“Têm mãos multiplicadas que se aplicam ao fogo, endurecem a pátina, tornam branca a
roupa, acalmam a febre com cheiro de gelo e de vinagre” (p. 79).
Georg Simmel percebeu, num texto de 1902, as inadaptações a que uma “cultura
feminina” está sujeita na vida moderna. O pensador observa que o trabalho feminino,
até então associado quase exclusivamente à vida doméstica, padece de uma crescente
desvalorização, uma vez que a organização do mundo do trabalho na vida moderna
aponta para a multiplicidade, a mistura, a dissociação entre os interesses subjetivos e a
produção humana. Segundo Simmel, a atividade das mulheres caracterizar-se-ia até
então por sua natureza contrária a essa tendência: o que ele chama de “essência
feminina” estaria baseada na unidade, na “solidariedade imediata, orgânica, entre a
pessoa e cada uma de suas manifestações, em suma, na indivisibilidade do eu, que só
conhece um „ou tudo, ou nada‟” (SIMMEL, 1993, p. 73). Talvez seja este o fascínio, e
também o espanto, provocados pela presença das mais-velhas no relato de Paula
Tavares: o contraste que se sente entre o nosso mundo, de tempo e transações de
mercado, cada vez mais globais e impessoais, e este mundo primitivo e uno, que só se
apreende em filigranas nas histórias das mulheres. E porque “contar histórias sempre foi
a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas
(BENJAMIN, 1986, p. 205), a narradora, ao mesmo tempo em que celebra a memória
das mais-velhas, portadoras da antiga sabedoria, lamenta o seu lento desaparecimento,
como num canto elegíaco de funda melancolia:
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Entre Agosto de 1975 e Março de 1976, fugir deixou de ser uma mera palavra de
ocasião, um verbo ilustrativo das mil e uma formas de conjugar, para se
transformar num modo devida, uma atitude, um estado de alma. (...) Assim
fugíamos. De quê, para onde, são histórias para contar amanhã ou depois. Uma
coisa era certa: ainda não fugíamos de nós, porque no meio do tempo frágil parecia
haver, para nós, um chão sagrado que ainda não era, mas cujas feridas expostas nos
dispúnhamos a sarar e plantar árvores e encher de filhos (p. 41).
O texto assim se propõe, de forma muito clara, a elaborar o luto das perdas mais
íntimas implicadas no longo processo da guerra, aquelas perdas que atacam o cerne vital
da subjetividade, ou seja, o luto da utopia. Remetendo-se outra vez ao tempo em que,
segundo ela, “não sabíamos nada e os dias eram-nos leves”, a narradora recorda um
tempo de inocência que se confunde, por um lado, com a felicidade perdida, e por outro,
com a ingenuidade que compactua com a derrota. Desse tempo de inocência e sonhos
ainda preservados, ela guarda a memória do primeiro encontro que teve com a obra da
poetisa finlandesa-russa-sueca Edith Södergran:
Foi então que, perdida no meio de fortes vozes suecas, traduzidas em espanhol, nos
rebentou nas mãos a voz de Edith. (...) Foi ela que me trouxe inquietação e dúvida.
Foi ela que, de modo manso, anunciou o dia em que teríamos que perder (p. 42-
43).
Com esta escritora, que lhe traz com sua voz do norte, “o tempo das mulheres”,
a narradora constrói uma comunidade imaginada, não aquela cartografada pela
fraternidade masculina que tem seu perfil definido na guerra e na violência,
reivindicando os contornos da nação em devir, mas uma outra comunidade, feita pelas
mãos e imaginação das mulheres, que experimentam, de forma distante mas comum, as
dores do exílio e das perdas:
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relações políticas advindas dos processos coloniais, e que se bem empregado pode se
constituir numa poderosa estratégia para resistir e sobreviver.
Ao cruzar o olhar que lança à sua própria história, à história de desesperanças de
seu país, com o olhar da escritora do norte europeu, Paula Tavares executa um
movimento em contraponto, naquele sentido empregado por Edward Said, que nos
permite sair de nós mesmos, vivendo uma experiência ao mesmo tempo a partir de nós e
fora de nós mesmos, o que, segundo o autor palestino, nos permite perceber, em medida
exata, que não estamos sós. Isso porque, de acordo com Said, à tarefa levada a cabo
pelo intelectual ou artista, de “representar o sofrimento coletivo do seu próprio povo”,
acrescenta-se outra, de “universalizar a crise”, dando “maior abrangência humana ao
que uma dada raça ou nação sofreu”, e “associar essa experiência aos sofrimentos de
outros”, para que “uma lição sobre a opressão, aprendida num dado lugar”, não venha a
ser esquecida ou violada em outro (SAID, 2000, p. 49).
Através dessa comunidade imaginada de mulheres, Paula Tavares executa seu
projeto de “repor vozes de mulheres de corpos maltratados e mãos prontas para começar
o país”. Se “consumar o trabalho do luto histórico significa poder narrar a dor da perda
do passado”, mas também, como sugere Nelly Richard, transformar o passado em
história para recombinar a experiência em plural (RICHARD, 2002, p. 113), esta tem
sido tarefa em que Paula Tavares tem se mostrado uma verdadeira mestra, ao narrar a
experiência vivida e as histórias de sua terra.
NOTAS
* 1Este trabalho foi apresentado no VI Seminário de Literaturas de Língua Portuguesa: memória,
paisagem e escrita, realizado pelo NEPA (Núcleo de Estudos Portugueses e Africanos) da UFF, em 2009.
2. Todas as referências ao livro A cabeça de Salomé mencionarão, doravante, apenas o número da página
citada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APA, Livia et al. (orgs.). Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Lacerda, 2003.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ___. Obras escolhidas. 2.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986. v.1, p. 197-221.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 14-23, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de janeiro: Rocco, 1994. p. 243-
288.
SIMMEL, Georg. “Cultura feminina”. In: Filosofia do amor. São Paulo: Martins
Fontes, 1993. p. 67-91.
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TÍTULO: MATILDE VAN DUN E O DESEJO QUE ALIMENTA A VISÃO
Title: Matilde van dun and wish that feeds the vision
ABSTRACT:
Matilde Van Dum, throug out her vision power, talk all the time with the possibility to create
some of new ways to compreend history's secret things and feminine wishes. The future visions of the
beautiful Baltazar's dogther give her diferents forms to recreat the memory. This memory doesn't work
only with the past, its is also constructed with things that will happen in the future. The Matilde's special
vision, that gets strongher with the desire of her body, shows us that the history and the memory can be
produced with the past truthes and future wishes.
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ao primogénito exigiu trocar a ordem dos apelidos, isto é, em vez de
António Van Dum Pereira, como era uso, se pusesse o seu no fim. E ficou
mesmo António Pereira Van Dum, pois o marido no fundo dava muito
pouca importância ao seu apelido de circunstância. Gertrudes fez esta
exigência, como mais tarde confessou à família, porque Matilde, sua irmã
mais nova, muito bonita, mas também muito bruxa, inclinada a visões e
profecias, lhe confidenciou numa noite de trovoada, propícia para essas
coisas, que o pai estava a dar origem a uma linhagem notável, nas suas
palavras, uma gloriosa família, e ela queria que seus netos e bisnetos
carregassem o nome ilustre de Van Dum. Se ficasse o Pereira no fim, em
duas gerações o glorioso nome desapareceria, em detrimento do arranjado
para esconder o apelido judeu. (PEPETELA, 1999, p. 22-23)
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Vi no dia em que chegaram. Vejo isso constantemente escrito no céu.
– Vês? Escrito? Escrito no céu?
– Gravado a fogo no céu.
(...)
– Tens a certeza que vai acontecer?
– Nunca tive uma visão tão forte. Por vezes as coisas não acontecem
como imagino, mas é porque não as tinha de facto visto nitidamente. Mas
quando as vejo nítidas nunca falha. E desta vez então, é tão claro que até me
faz piscar os olhos, a frase gravada a fogo queima-me. Juro!
(PEPETELA, 1999, p. 48-50)
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taxativo quando diz “eu imaginava, portanto tinha a certeza” (PEPETELA, 1999, p.
202). Estamos diante de duas formas de criação de realidades que dependem da
instância imaginativa. As visões do futuro apresentadas por Matilde estão tão
condicionadas às desenvolturas da imaginação, quanto as visões do passado que
sustentam o recontar da história, articulado pelo narrador-escravo.
Voltando à configuração da personagem, podemos inferir que seus
questionamentos sobre a noção de pecado, verbalizados na conversa com o padre,
ilustram, de maneira bastante pontual, a curiosa personalidade de uma mulher guiada
pelo desejo, condição essa que caracteriza praticamente todas as suas atitudes, reveladas
ao longo do romance. O diálogo com o jesuíta continua e Matilde sente arder a fogueira
que existe dentro de si:
– Ser dominado sete anos é uma boa mensagem, padre? Pensei que
não fosse. Não acha que devo pedir de qualquer modo a absolvição?
– Não creio, não cometeste pecado. Mas não contes a mais ninguém,
nunca se sabe como isso pode ser interpretado.
Matilde, segundo contou à irmã, mudou então de postura. Até aí
estava em atitude de humildade e alguma preocupação. Devia ser ele a tomar
a iniciativa, era muito mais velho e sobretudo era homem. Mas tímido de
mais. Soltei-me, disse ela, atirei tudo para o ar, nem queria saber o que ele
podia pensar, era uma força interior, um grito impossível de calar, um fogo,
uma sarça ardente que não dava para apagar.
– Me absolva, padre, me absolva.
Matilde se levantou encostou às pernas dele, olhando-o nos olhos. O
padre estava encurralado pelo tronco, não podia recuar. Matilde se chegou
mais, me absolva, padre, me absolva. O jesuíta balbuciou o começo de uma
oração com os lábios entreabertos, meteu uma mão por baixo dos saiotes
dela, sentiu o calor, revolveu os olhos. Ela o puxou e caíram abraçados no
chão. E o padre absolveu-a no capim, nas palavras dela, misturadas com
risinhos.
(PEPETELA, 1999, p. 50-51)
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podemos destacar alguns elementos que contribuem para uma configuração alegórica da
personagem. Atentemos, principalmente para a forma como as revelações surgem diante
dos olhos da filha de Baltazar. Segundo suas declarações, Matilde vê “uma frase
gravada a fogo” escrita no céu. Temos aí pelo menos dois universos simbólicos a serem
observados. A partir da relação entre fogo e céu, poderíamos imaginar que as frases que
surgem diante de seus olhos podem ser comparadas ao surgimento de raios ou
relâmpagos. As simbologias representadas por esses elementos estão, de maneira geral,
divididas entre as experiências de revelação divina e as manifestações do desejo sexual
humano; curiosamente, em determinadas culturas, essas leituras simbólicas estão
diretamente associadas.
No que se refere ao fogo, por exemplo, é sabido que a significação sexual desse
elemento natural está ligada, universalmente, à primeira das técnicas usadas para sua
obtenção: por meio da fricção, num movimento de vaivém, alcançamos uma imagem
primordial do ato sexual. A relação entre o relâmpago e a sexualidade é, em algumas
culturas, bastante próxima. Em determinadas sociedades primevas, a manifestação do
relâmpago é comparada à emissão do esperma e simboliza o ato viril de Deus na
criação. Para a comunidade aborígene australiana, por exemplo, o relâmpago é um pênis
em crescimento. A bela Matilde Van Dum vê uma clareira no céu que lhe revela o futuro
e, mais do que isso, alimenta ainda mais o fogo do seu desejo. Ou seria o arder
crescente do seu corpo que estaria alimentando suas visões? De qualquer forma, para a
construção da personalidade de Matilde, sua veia de pitonisa não pode ser dissociada da
constante necessidade de saciar os desejos de seu corpo.
Por outro lado, o elemento fogo, tão caro à configuração da personagem,
também é constantemente relacionado aos poderes divinatórios, sustentando a ponte
entre o humano e o divino. Para o povo bambara, por exemplo, o fogo terrestre –
ctoniano – está ligado à sabedoria humana, enquanto o fogo celeste – uraniano –
associa-se à sabedoria divina. Em uma sociedade em que o humano está subjugado ao
divino, o fogo terrestre seria devedor do fogo celeste, o que nos faz lembrar o mito de
Prometeu. Sabemos que o famoso Titã, filho de Jápeto e Clímene e, portanto, primo de
Zeus, teria ludibriado o deus do Olimpo, roubando-lhe uma centelha do fogo celeste
para entregá-la aos homens perdidos na escuridão. Entretanto, sabe-se também que
tamanha ousadia em favor dos humanos fora duramente castigada.
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A conquista do fogo, realizada por Prometeu, é geralmente celebrada por conta
da sua funcionalidade prática, um meio de facilitar e garantir a sobrevivência humana.
Por outro lado, o mito também simboliza a possibilidade de os homens compartilharem
os dons divinatórios, ligados, sobretudo, às visões do futuro, com os senhores do
Olimpo. Prometheús deriva de promethes, “previdente, precavido”, donde é aquele que
“vê, percebe ou pensa antes”. Não era à toa que o valoroso Titã detinha poderes
divinatórios.
Voltando ao romance de Pepetela, de acordo com essa leitura sobre as relações
entre o humano e o divino por meio do fogo, podemos inferir, de maneira intrigante, que
Matilde, justamente aquela que está sempre a questionar e, principalmente, a violar os
tabus “impetrados” por Deus, é quem mais se aproxima de Suas capacidades superiores.
Matilde recebe o clarão da revelação divina, tem o dom de ver as mensagens trazidas
por esse fogo; por outro lado, transforma o seu dom numa fogueira de desejo,
iluminando todos os homens eleitos por seus olhos.
Neste momento, recorremos às palavras de Marilena Chauí, quando faz
referência ao ver intuitivo, um tipo de olhar que atravessa a realidade comumente
visível e penetra em subjetividades singulares:
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Neste contexto, voltamos a falar duma interdependência sensorial, pois, se, por um lado,
sua visão é especial, por outro, o tato – domínio da pele que congrega os espaços de
todos os sentidos por insistir no contato com o corpo do outro – vai contribuir para a
afirmação de sua personalidade. A visão de Matilde está em constante sintonia com a
manifestação dos demais sentidos; tal como afirma Michel Serres, “(...) o sensível, em
geral, mantém juntos todos os sentidos, como um laço ou trevo generalizado, todas as
dimensões e todos os conteúdos.” (SERRES, 2005, p. 313).
Somos parte do mundo e, consequentemente, construímos a sua história.
Diríamos o mesmo, se afirmássemos que a história do mundo começa no nosso corpo.
Quando nos referimos ao ato de ver e o compreendemos como um sinônimo de
conhecer, intuímos que a própria construção da história dos homens encontra-se
intimamente ligada à atuação dos nossos sentidos. Sabemos que toda ciência depende de
uma subjetividade atuante, ainda que a mesma busque a neutralidade. No fundo, essa
busca deixará marcas pessoais inerentes a uma determinada leitura de mundo. Enquanto
o narrador d'A gloriosa família propõe contar a história da presença holandesa em
Angola a partir de uma “outra versão”– versão essa formulada pelas suas memórias,
pela sua imaginação, e impulsionada por um desejo de questionamento do discurso
oficial –, as visões futuras de Matilde, condicionadas pelas atuações dos seus sentidos,
proporcionarão, no espaço diegético, a concepção de uma outra realidade histórica,
diferente daquela observada em seu próprio tempo. Estar à frente do seu tempo
significa, para Matilde, a possibilidade de poder, desde já, articular uma postura crítica e
questionadora frente às leis correntes do tempo e do lugar. Não é justamente essa a
perspectiva que move os novos historiadores, preocupados em fazer uma leitura crítica,
elucidativa, e não meramente quantitativa, das marcas que o passado legou ao presente?
(TODOROV, 2002, p. 144-5).
As paixões e os desejos despertados também têm sua parcela de contribuição na
construção da história universal. No fim das contas, é sempre de homens que falamos.
Não seria diferente com Matilde Van Dum que, com seus olhos azuis e suas belas
formas, vai apimentando a recriação da história da capital de Angola em meados do
século XVII. A filha bruxa de Baltazar Van Dum está sempre a dar provas do seu
espírito transgressor e insubmisso. Lembremos das revelações do narrador acerca de seu
comportamento, pouco ou nada usual, durante a festa de casamento de seu irmão
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Rodrigo com Cristina Corte Real, a filha do governador da Ilha de Luanda:
As mulheres se colocaram de um lado, sentadas sobre esteiras, e os
homens conversavam em grupos, afastados delas. Mas Matilde estava no
meio de uma roda de oficiais mafulos, treinando o flamengo que aprendera
com o pai, como nós todos. Fui observando esse grupo e logo distingui o que
devia ser o tenente Jean du Plessis. Se todos comiam Matilde com os olhos,
esse oficial estava mais derretido que os outros e ela o mirava de vez em
quando de maneira especial.
(PEPETELA, 1999, p. 103)
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autêntica conquistadora, assumindo o papel dominante na relação com o militar.
Poderíamos dizer que, enquanto os soldados que a cercam a “comem com os olhos”, a
bela moça se alimenta do olhar embevecido de Jean du Plessis que se vai derretendo
diante da amada. A presença altiva e insubmissa da jovem permite com que ela, ainda
que comprometida em segredo, se entregue em diálogos de sentido duvidoso com
outros militares mafulos.
Em razão desse jogo de sedução, Jean du Plessis é inteiramente submisso à
Matilde. A mesma independência que essa representante da família Van Dum demonstra
ter em relação à autoridade do pai – haja vista que a mesma não parece nada
preocupada em estar cercada de homens diante de todos – é refletida na relação com o
tenente apaixonado. Para o desespero de Baltazar, Matilde não parece em nada com o
retrato ideal das mulheres da época, baseado no comportamento exemplar das
portuguesas que eram almejadas até mesmo pelos militares do exército holandês. Como
aponta o major Gerrit Tack, são essas “(...) as mulheres que tanto apreciamos, por
serem humildes e não cornearem os maridos.” (PEPETELA, 1999, p. 58)
O narrador parece não se ter enganado e a “fraqueza de carácter” de Jean du
Plessis é logo constatada quando Matilde lhe anuncia a repentina gravidez. Em nova
conversa com Catarina, Matilde revela seu segredo e descreve a cena em que informara
o tenente francês sobre o “acidente”:
– Já lhe disseste que estás grávida?
– Já.
– E ele?
– Ia desmaiando. Depois perguntou se eu tinha a certeza que o filho
era dele.
– E tu?
– Mandei-o à merda. Não era mesmo para lá que ele merecia ir?
Não me admirei. A Matilde é uma forte personalidade, toda a gente se
apercebe imediatamente disso. E bem me pareceu logo à primeira que o
tenente Jean du Plessis é um fraco de vontade. Outro qualquer teria desafiado
o Joost Van Koin para um duelo, depois de saírem da Ilha, na noite do
casamento. Sem escândalo, discretamente. Ou pelo menos ameaçado, mato-te
se voltares a atirar-te à minha pequena. Nem deve ter tido coragem de dizer
que amava Matilde. Como fará ele para comandar homens? Ou é daqueles
oficiais que só exercem o cargo nas cortes e nas danças de salão, sem nunca
pisarem o terreno ardente de uma batalha?
(PEPETELA, 1999, p. 117)
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tenente francês casam-se. Esse é mais um passo para a configuração do domínio que
essa pitonisa de olhos azuis exerce sobre a figura de Du Plessis. Matilde Van Dum leva
os homens que a cercam a saciarem suas vontades e realizarem seus desejos. Será o
poder de seus olhos? Até mesmo Dimuka, o maldito carrasco, teme o alcance de seus
poderes extraordinários e torna-se seu vassalo. Como a mesma afirma,
– (...) esse não mete medo. Pois o maldito, como dizes, já descobriu há
muito tempo. Mas não abrirá a boca. Percebi que ele vinha atrás de mim, logo
da primeira vez. Uma intuição, sabes como é, das que eu tenho. E lhe avisei,
se vires alguma coisa e se quiseres contar alguma coisa do que vires, eu faço
de maneira que só cobras vão sair da tua boca, até morreres.
(PEPETELA, 1999, p. 122)
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vol. I, p. 188). Matilde, inegavelmente, “brilha entre os homens”. Entretanto, ao contrário
da malfadada mântica grega – que ludibriara o deus Apolo e, em consequência disso,
fora amaldiçoada para que suas predições nunca recebessem crédito, ficando, assim,
fadadas à inutilidade –, a filha do flamengo Van Dum conseguiu alcançar êxito em suas
aventuras, ao utilizar-se de suas visões, bastante temidas, para surpreender e intimidar.
A singularidade desta personagem nos leva a perceber que manifestações pouco usuais
dos sentidos físicos, sobretudo o da visão, farão com que algumas figuras, antes
intocáveis, sejam vistas pelo avesso. Diante dos seus olhos, Jean Du Plessis mostrava
sua fraqueza humana por detrás da farda militar; em temor ao que sua boca dizia e seus
olhos pareciam ver, Dimuka tornava-se mudo e demonstrava uma pequenez jamais
imaginada. Matilde funcionava, assim, como uma espécie de agente desestabilizador da
tradicional imponência masculina em seu espaço social. No entanto, curiosamente, essa
sua personalidade diferenciada, marcada por uma altivez desconcertante, será, no fundo,
bastante bem vista pelo patriarca Van Dum. O próprio narrador se surpreendente com
uma certa benevolência demonstrada por seu dono no que se refere aos deslizes
amorosos da filha:
(...) Eu esperava maior severidade de parte do meu dono, mas então se viu
que Matilde era de facto a sua preferida, pois o surpreendi três dias depois do
escândalo a dizer para Benvindo, a tua irmã ao menos enfrenta as coisas,
quando viu que não conseguia convencer o tenente, veio ter comigo e abriu o
jogo, eu não soube por terceiros, soube por ela, isso é muito importante,
revela carácter, quem me dera que todos vocês o tivessem.
(PEPETELA, 1999, p. 141)
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que a “(...) jovem princesa tinhas os mesmos olhos sedutores de sua mãe, 'a cor da
noite', e o caráter forte de seu pai, que era o mais terrível adversário com que os
invasores portugueses se haviam defrontado até então.” ( GLASGOW, 1982, p. 36). Sejam
eles azuis, como no caso de Matilde, ou negros, como os de Nzinga, esses olhos têm o
poder de provocar, excitar e desconcertar os homens que estão à sua volta, pois sua
atitude perscrutante traz para o encontro “à primeira vista” a revelação do poder que se
esconde por trás deles. Algumas descrições sobre a rainha levam-nos a reconhecer
semelhanças entre a sua personalidade e a de Matilde Van Dum:
Amplamente admirada por sua inteligência, energia, precocidade,
sutileza e audácia no esporte, Nzinga também era uma jovem atraente, com
uma figura provocante. Era graciosa e esbelta, de quadris arredondados e bem
modelados. Atraía muita atenção e respeito por toda a parte. Já havia sinais
daquela aparência magnética descrita com termos que iam de magnífico a
feroz. Seu cabelo cobria-lhe as orelhas e seus olhos escuros podiam refletir
ódio imediato ou ternura. Um queixo com ligeira ponta, com corte pétreo,
sustentava lábios atraentes.
(GLASGOW, 1982, p. 40)
A partir desse breve retrato da rainha, podemos imaginar que Nzinga fazia,
por vezes, da junção entre inteligência e beleza sua arma de ataque. Atraente e
provocante, a soberana da Matamba seduz e comanda todo um reino. O espaço de
Matilde é mais reduzido, mas nem por isso sua força passa despercebida. A participação
dessas mulheres em seus universos sociais é semelhante quanto à sua função
desestabilizadora das estruturas de poder castradoras. Nzinga Mbandi enfrenta com
afinco as investidas do exército português pelas terras do interior; Matilde Van Dum
enfrenta pais e irmãos, representantes de uma sociedade moralista, obrigando-os a
respeitar suas vontades. Podemos também atribuir à figura de Matilde outras
considerações formuladas por Roy Glasgow em torno da personalidade da soberana: a
“(...) habilidade de Nzinga em moldar os eventos e não ser por eles moldada e,
consequentemente, em saber tomar a iniciativa em todas as oportunidades.”
(GLASGOW, 1982, p. 84)
As diferenças entre Matilde e a grande maioria das mulheres locais persiste ao
longo de seu casamento com o tenente Jean Du Plessis. A casa onde o casal passa a
viver, localizada na parte alta da cidade, torna-se um ponto-de-encontro bastante
visitado por jovens militares mafulos:
A casa da bela Matilde na cidade alta se tornou num lugar elegante
para os mafulos. Os oficiais não tinham as mulheres com eles, preferiam
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deixá-las na Holanda ou no Brasil. (...) não desdenhavam um chá de
caxinde, à tarde, pretexto para esvoaçarem à volta de Matilde e discutirem
livros, pintura, viagens, filosofia. (...) De facto havia razão para isso.
Matilde saiu da terrível provação que é o primeiro parto mais bela ainda.
Como se com o filho e as porcarias que eliminou se tivesse purificado. Os
olhos brilhavam mais luminosos, a pele ficou de uma suavidade nunca vista
e até os lábios cheios pareciam mais vincados.
(PEPETELA, 1999, p. 145-6)
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numa teia de sedução, que parecia ter-se estendido ainda mais após o nascimento de seu
filho, Henri. Novamente, era a exuberância dos olhos dessa mulher que indicavam, a
princípio, os passos para a mudança.
Nzinga Mbandi era uma verdadeira devoradora de homens e Matilde Van Dum
podia comparar-se-lhe quanto à sua voluptuosidade. Por conta desse desejo
transbordante, a filha de Baltazar poria o seu casamento em risco, vivendo aventuras
amorosas na companhia do insistente tenente Joost Van Koin. Como adianta o narrador
d' A gloriosa família :
Quem pelos vistos se não preocupava muito com a doutrina de Cristo
era Matilde, a qual aceitou um dia sair de casa pela manhã, dispensando a
companhia da escrava (...). Matilde parou à frente, olhou para todos os
lados, virou para a esquerda e acompanhou a parede lateral da sé. Atrás
tinha uma porta encostada, que permitia a entrada na sacristia. (...) olhou de
novo para todos os lados e empurrou a porta. Dentro da sacristia mal
iluminada estava o sorridente tenente Joost Van Koin.
Se trocaram beijos esfaimados e logo Matilde o afastou, num gesto de
recato ou de temor, desconheço, também não posso imaginar todos os
detalhes.
(...)
A sacristia estava suja, por não ser varrida durante três anos. E quase
despida.
(PEPETELA, 1999, p. 155-6)
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cidade; na cabeça dessa forma gigantesca surgia uma coroa e do seu ventre entravam e
saíam centenas de pessoas. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 500).
É claro que, através desse jogo de aproximações, não é simplesmente a atitude
da bela mulata de olhos azuis que está em xeque. Toda uma tradição religiosa,
cerceadora dos desejos humanos, também é questionada. Matilde Van Dum não será
expulsa do paraíso por ter-se deixado enganar pela serpente, ela é o próprio fruto
proibido e, quiçá, a própria face da serpente, consciente do desejo que urge saciar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GLASGOW, Roy. Nzinga. Trad. Silvia Mazza, J. Guinsburg & Fany Kon. São Paulo:
Perspectiva, 1982.
NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.
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TÍTULO: A NEGLIGÊNCIA CONDENSADA, EM “QUANDO FALTA OXIGÊNIO
NO BERÇÁRIO”, NA VOZ DE SÓNIA GOMES
Title: The condensed negligence in “Quando falta oxigênio no berçário” through the
voice of Sónia Gomes
Nesse artigo será abordada a relação entre literatura e sociedade, tendo como ponto de
partida a análise do conto “Quando falta oxigênio no berçário” da escritora angolana
Sónia Gomes. Acreditamos que a relação entre literatura e sociedade promove uma
discussão madura no que diz respeito às problemáticas sociais que envolvem os textos
pertencentes a um macro-sistema literário de língua portuguesa. É sob esse enfoque que
nossa discussão será concebida, levando em consideração a história, a sociedade e os
elementos literários pertencentes à literatura de escritoras angolanas cuja voz feminina
assume plano de destaque.
ABSTRACT:
This article is about the relation between literature and society. Its first proposal is the
analysis of the short story "Quando falta oxigênio no berçário", of the Angolan writer
Sonya Gomes. We believe that the relationship between literature and society promotes
a mature discussion with regard to social problems involving the texts belonging to a
macro-system of literary Portuguese. It is from this perspective that our discussion will
be designed, taking into account the history, the society and the literary elements that
belong to the literature of Angolan writers whose female voices assume prominence.
Uma das escritoras que ainda não alcançou um espaço privilegiado na contística
contemporânea de Angola é a autora Antónia Sónia Ilunga Gomes, nascida no Luena,
Província do Moxico. Um dos contos que analisaremos nesse artigo está em seu livro
mais recente Apenas entre mulheres e outros contos (2008). O conto “Quando falta
oxigênio no berçário”, pertencente a esse livro, foi coligido em uma antologia
organizada pela União dos Escritores Angolanos organizada em 2009 por Domingas de
Almeida, “Como se viver fosse assim”, que teve a presteza de reunir, além de Sónia
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 39-49, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Gomes, outros nomes de destaque na prosa contemporânea de Angola, como: Arnaldo
Santos, Fragata de Morais, Isaquiel Cori, Manuel Rui, Pepetela, Ondjaki, Marta Santos
para citar alguns.
Ao falar da literatura angolana nos dias de hoje, século XXI, temos que levar em
consideração as mudanças políticas ocorridas em Angola. A Angola de hoje passa por
um processo de restauração daquilo que foi devastado pelas guerras civis e, nesse
processo, no auge da globalização e da invasão do ideário neo-liberal, torna-se difícil
tatear à esquerda e à direita, como nos anos de 1970. Essa dificuldade, contudo, não nos
impede de observar que ainda há problemas sem solução, por mero descaso
governamental, como ocorre no Brasil e em países cujo governo mantém relações de
conchavo administrativo e industrial com potências imperialistas.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 39-49, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
A denúncia daquilo que não vai bem, seja na política ou na sociedade, encontra
espaço nas literaturas de língua portuguesa de ênfase social, como nos lembra o
professor Benjamim Abdala Júnior:
O acesso que o leitor tem ao texto de Sónia Gomes deve-se ao fato de ela
preferir a expressão vocabular simples e bem cuidada no que diz respeito ao
acabamento de seus enunciados. É por meio de uma linguagem despida de maneirismos
que a autora constrói uma narrativa próxima de seus leitores. A escolha vocabular
simples permite um acesso rápido a sua mensagem, recurso que confere uma
abrangência discursiva, angariando a simpatia de um número maior de leitores. O
interlocutor de Sónia Gomes não necessita possuir um alto nível de erudição; trata-se do
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 39-49, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
cidadão ou cidadã comum, que facilmente reconhecerá seus dramas na prosa sincera da
autora.
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de André Joles em seu livro Formas Simples, em que ele, na tentativa de diferenciar
esse gênero da novela, tece considerações bem elucidativas a respeito desse tema.
A filiação do conto àquilo que sai do coração do Todo, nas palavras de Joles,
confirma sua característica de se irmanar a outros gêneros textuais mantendo suas
tensões poéticas e narrativas confundindo-se vez ou outra com o relato informativo,
como nos lembra a professora Walnice Galvão: “O conto, que por natureza é ficção,
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jogo livre da imaginação, passa a competir com a forma da notícia de jornal; a
contradição se instaura entre conto e informação jornalística” (GALVÃO, 1982, p. 169).
Nessa primeira parte do conto, tudo parece tranquilo com a chegada da nova
equipe, mais cuidadosa, apesar dos gemidos das parturientes, da sala abafada e pequena,
ou seja, de um espaço que oprime as meninas que darão a luz. Nesse espaço minúsculo,
surge a oportunidade de alivio, conforto e segurança, como se constata nesse trecho:
Por algum tempo, além dos gemidos ouvia-se um ruído leve de passos
que cessou com a chegada à sala da Doutora. A mulher corpulenta e
alta parou entretanto á porta. Percorreu a sala com o olhar. A sua
presença não inquietava as parturientes, pelo contrário reforçava a
sensação de segurança (GOMES, 2009, p.303).
A figura da doutora nos faz lembrar a mulher altiva, matriarcal, que apenas pela
sua presença consegue acalentar. Ela se mostra oposta à figura da enfermeira, a qual
nega socorro ao recém-nascido, como explanaremos adiante. A presença da doutora
aplaca o sofrimento que as parturientes se encontravam antes da chegada de sua equipe,
esse gesto de ternura é evidenciado na maneira como ela se dirige a Elisa, uma das
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parturientes: “Devagar, dirigiu-se ao leito em que estava Elisa. – Então, menina já te
decidiste? Falava num tom carinhoso e o seu olhar estava repleto de ternura” (GOMES,
2009, p.303).
Dessa forma Elisa se prepara com tranquilidade para o seu parto e é com esse
sentimento que a personagem vai para a obstetrícia, alheia as surpresas que lhe
aguardam. É pela linguagem do conto e as situações narradas que associamos o texto de
Sònia Gomes a nossa realidade exaustivamente estampada na imprensa. Isso só é
possível pelas técnicas empregadas no conto contemporâneo que ao desbastar sua
linguagem de “clichês mortos” torna-o mais acessível, como nos lembra Fábio Lucas:
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uma floresta de verbosidade, desbastou a escrita de clichês mortos
(LUCAS, 1982, p.120-121).
Do início ao fim do conto nossos olhos são lançados para fora da narrativa
repousando em uma realidade alheia ao sentimento humano. A autora comprova que as
relações humanas estão se esvaindo e criando uma situação social desfavorecedora em
relação ao cooperativismo solidário. No conto, o ser humano é resultado de suas ações,
e suas escolhas definirão sua conduta, pois não nos cabe julgar a ação das personagens,
e sim constatar um fato que afeta milhões de pessoas e que a habilidade da autora
condensou no curto espaço do conto.
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cooperação da Doutora Carla, como se segue nesses trechos: “- Doutora Carla, porque
demorou tanto o meu parto? A obstetra aproximou-se mais da parturiente. Permaneceu
calada, fitando-a. Pensava em como responderia aquela pergunta” (GOMES, 2009,
p.304). Seguidamente, a atitude de Elisabeth inverte o clima de gentileza e zelo do
hospital, instaurando uma atmosfera de descaso e prepotência ao negar socorro a criança
doente que necessitava de uma incubadora:
A atitude de Elisabeth era prática e bem funcional a favor dela, até então seu
procedimento funcionava bem. Desse momento até o final do conto a situação inverte
dando lugar a um quadro dramático na vida da enfermeira que nega socorro a um bebe
que mais tarde ela descobre ser seu sobrinho. O proceder de Elisabeth, permeado de
ironia, coloca-a em um patamar ilusório acima das suas colegas e até mesmo da
diretoria do Hospital.
Esse momento que antecipa o clímax do conto é trabalhado com maturidade pela
autora, pois é aí que percebemos a potência da unidade de efeito elaborada ao molde da
técnica desenvolvida por Poe; “no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de
sua intenção.” (Poe in: GOTLIB, 2002, p. 33).
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que, de certa forma, confere literariedade ao conto, demonstrando o “domínio do autor
sobre os seus materiais narrativos” (GOTLIB, 2002, p. 34).
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REFERÊNCIAS:
CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social in: Literatura e Sociedade. São Paulo:
Publifolha, 2000.
GALVAO, Walnice Nogueira. Cinco teses sobre o conto, in: O livro do Seminário. São
Paulo: LR Editores, 1982.
GOMES, Sónia. “Quando falta oxigênio no berçário”, in: Como se viver fosse assim.
Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2009.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria sobre o conto. São Paulo: Ática, 2002.
JOLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
JUNIOR, Benjamin Abdala. Literatura, história e política. São Paulo: Ática, 1989.
LUCAS, Fábio. O conto no Brasil Moderno, in: O livro do Seminário. São Paulo: LR
Editores, 1982.
LUKÁCS, Georg. Narrar e descrever, in: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.
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TÍTULO: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO NA NARRATIVA DE PAULINA
CHIZIANE: UMA LEITURA DO CONTO “AS CICATRIZES DO AMOR”
Title: Reflections of gender on the Paulina Chiziane’s narrative: a reading of the tale “As
cicatrizes do amor”
Maximiliano Torres
Doutor em Teoria Literária pela UFRJ
[email protected]
Rua Visconde de Pirajá, 207, apt. 808, Ipanema, Rio de Janeiro.
RESUMO:
O presente artigo traça uma leitura do conto “As cicatrizes do amor”, da escritora moçambicana Paulina
Chiziane, à luz da teoria crítica feminista. Para tal, começa abordando a problemática da dominação
masculina enquanto agente do centro da economia das trocas simbólicas e prática corporificada,
vitimando tanto as mulheres quanto os homens. Em seguida apresenta o termo gênero como uma
categoria de análise e de relações, como papéis socialmente construídos, demarcados por relações de
poder.
ABSTRACT:
This article presents a reading of the tale “As cicatrizes do amor”, by Paulina Chiziane, a Mozambican
writer, in the light of feminist critical theory. For this, it starts broaching the problem of male domination
as an agent of the center of the economy of symbolic exchanges and embodied practice, victimizing both
women and men. Following this it introduces the term gender as a category of analysis and relations as
socially constructed roles, demarcated by power relations.
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dominado ou dominador. O corpo é a materialização da dominação, o locus do exercício
do poder por excelência.
Não é novidade que várias sociedades – algumas com mais radicalidade, outras
com menos – colocaram e, ainda colocam, as mulheres numa posição de subalternidade
perante os homens. A esses são oferecidos todos os privilégios, desde os melhores
lugares à mesa, o acesso à educação, a liberdade de escolher os rumos de suas vidas, até
a oportunidade de ascensão intelectual e social. Às mulheres, simplesmente, o espaço
doméstico, a responsabilidade de cuidar dos filhos e a imposição à passividade, que visa
à manutenção da supremacia falocêntrica. Em tais sociedades, vive-se sob a égide do
patriarcalismo. Sobre este termo, já tão discutido, concordamos com Manuel Castells,
quando explica que sua caracterização se sustenta:
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Desta forma, percebemos claramente que este posicionamento, ao contrário do
que pensaram por muito tempo alguns teóricos, não é um fato biológico, intrínseco à
natureza humana, que coloca o macho como o ativo e a fêmea como a passiva. Mas,
sem dúvida, uma construção cultural que apresenta a masculinidade como representação
da individualidade e a feminilidade como representação da alteridade.
A construção ideológica de gênero impõe às pessoas modelos de
comportamento em função do seu sexo. Desse modo, numa estrutura patriarcal, todo o
processo de socialização vai reforçar preconceitos e criar estereótipos para os gêneros,
como próprios de uma suposta naturalização, apoiados na determinação biológica.
Assim, na diferença biológica apóia-se a desigualdade social e esta toma uma aparência
de naturalidade. Com isso, as relações de gênero refletem concepções de gênero,
internalizadas tanto por homens quanto por mulheres. E é nesse sentido, enquanto
atividade educadora, que a cultura “exerce uma ação psicossomática que leva à
somatização da diferença sexual, ou seja, da dominação masculina” (BOURDIEU,
1998, p. 18).
Em decorrência dos efeitos dessa lógica binária, questionamentos ligados ao
gênero foram desenvolvidos pelas teóricas do feminismo contemporâneo, a partir da
década de 1970, com o propósito de buscar a compreensão e algumas possíveis
respostas à situação de desigualdade entre os sexos e, acima de tudo, entender como esta
situação atua na realidade cotidiana e interfere no conjunto das relações sociais. Desde
então, o gênero vem sendo utilizado como categoria analítica nos estudos feministas e,
segundo as palavras de Simone Pereira Schmidt, “a homogeneidade de categorias como
„masculino‟ e „feminino‟ passa a ser questionada, levando-se em conta seus significados
sociais diversos” (SCHMIDT, 2000, p. 31). De acordo com Teresa de Lauretis:
(...) o termo “gênero” é uma representação não apenas no sentido de que cada
palavra, cada signo, representa seu referente, seja ele um objeto, uma coisa, ou
ser animado. O termo “gênero” é, na verdade, a representação de uma relação,
a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Gênero é a
representação de uma relação (...) o gênero constrói uma relação entre uma
entidade e outras entidades previamente constituídas como uma classe, uma
relação de pertencer (...). Assim, gênero representa não um indivíduo e sim
uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo
por meio de uma classe (LAURETIS, 1994, p. 210-11).
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relações de gênero são estruturadas dentro de um sistema hierárquico de dominação, no
qual o homem (masculino) é o Sujeito e a mulher (feminino) é o Outro (constituída a
partir do homem), se dialogarmos com as ideias de Simone de Beauvoir. Esta distinção
torna possíveis a ordenação da vida social em função do masculino e o consenso a
respeito de sua importância e supremacia.
Ao apropriarem-se do termo e desenvolverem o conceito de gênero, as
feministas postularam a necessidade de distinguir, teoricamente, o sexo biológico do
gênero social, organizador das relações. A noção de gênero, neste sentido, possui um
duplo caráter epistemológico: por um lado, apresenta-se como categoria descritiva da
realidade social e confere uma nova visibilidade para as mulheres ao referir-se às
formas de discriminação e opressão, simbólicas e materiais; por outro lado, trabalha
como categoria analítica, ao possibilitar uma nova leitura dos fenômenos sociais.
Vale lembrar que, embora o conceito de gênero tenha adquirido força com o
movimento feminista e destaque enquanto instrumento de análise das condições das
mulheres, ele não deve ser utilizado como sinônimo de “mulher”. E, sim, para distinguir
e descrever tanto as categorias mulher e homem, como para examinar as relações
estabelecidas entre ambos; “um meio de decodificar o sentido e de compreender as
relações complexas entre diversas formas de interação humana” (SCOTT, 1990, p. 16).
Nessa perspectiva destaca-se o uso analítico do conceito, pois, lembrando a opinião de
Lia Zanotta Machado, “a novidade deste campo não é a sua temática, mas sim
perspectivas de análise” (MACHADO, 1994, p. 4).
Desse modo, seguindo a afirmação de Ruth Silviano Brandão de que a
“literatura e outras disciplinas se encontram em muitas encruzilhadas” (BRANDÃO,
2006, p. 11), tomaremos como base a teoria crítica feminista como perspectiva de
análise na leitura de “As cicatrizes do amor”, de Paulina Chiziane. Nesse conto, a
escritora moçambicana, primeira mulher a publicar um romance em seu país, nos
permite tal abordagem ao elaborar ficcionalmente uma problematização das relações de
gênero e do papel da mulher na sociedade contemporânea. Procura demonstrar, a partir
do relato da personagem Maria, a construção identitária e os processos necessários à
reconstrução da condição feminina, por meio de uma denúncia às opressões pelas quais
passa não só a personagem, mas grande parte das mulheres.
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Contudo, antes de voltarmos o nosso olhar para os elementos da narrativa que
sustentarão nossa análise, cabem algumas observações sobre a estrutura e a linguagem
do texto escolhido. Por se tratar de um conto, já carrega a concisão, a precisão, a
densidade e a unidade de efeito, da qual falaram Edgar Alan Poe e Tchékhov; é o
resultado de um rigoroso trabalho de seleção e de harmonização dos elementos
selecionados e de ênfase no essencial. Porém, ao deslizarmos por seu enredo, nos
deparamos com uma linguagem extremamente elaborada, com uma riqueza estilística,
típica de poemas. Há uma quantidade de figuras de palavras e de pensamentos que
emergem das páginas, podendo, a princípio, parecerem dissonantes, mas que, em
seguida, elaboram um acorde, colocando o leitor perante uma prosa poética de alta
qualidade. Um texto carregado de traços de oralidades locais, que se revela, a cada
leitura, num jogo de movimentos cambiantes, onde “a verdade sempre escapa, já que
está instalada na linguagem dupla e dividida, quando percebida na sua ambigüidade de
significante e significado, sujeito da enunciação e enunciado” (BRANDÃO, 2006, p.
12). Segundo a própria escritora:
Gosto de dizer que a minha literatura é isso: contar histórias. Aquilo que outras
mulheres fazem dançando e cantando, eu faço escrevendo, como as velhas que
através da via oral continuam a contar histórias à volta da fogueira. Eu apenas
trago a escrita, de resto não sou diferente das mulheres da minha terra, das
mulheres do campo. (Paulina Chiziane, Entrevista à Revista Maderazinco)
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
português (resultado da colonização), mas de conhecer várias manifestações e tensões
culturais de seu país. Essas experiências de vida, como as adquiridas por meio das
leituras de inúmeras obras de escritores africanos, foram fundamentais para a construção
da sua escritura. Em entrevista na Fliporto 2008, declarou:
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A festa segue “na delícia daquele paraíso de miséria” (CHIZIANE, s/d, p. 97)
até que alguém começa a ler um jornal velho que traz a notícia do abandono de duas
crianças. Nesse momento, gera-se uma polêmica sobre a responsabilidade daquele ato.
Os convidados colocam a culpa nas mães das crianças, sem sequer aventar qualquer
outra possibilidade: “–Veja isto, compadre. Duas crianças abandonadas pelas mães. (...)
– Alguém as deitou fora. As mulheres estão esperando que os homens tomem a sua
defesa (CHIZIANE, s/d, p. 97).
Se, como nos revela Rosiska Darcy de Oliveira, “o endeusamento da
maternidade se fazia acompanhar de toda uma ideologia de submissão, de conformismo,
de aceitação de fronteiras” (OLIVEIRA, 1991, p. 144), fica claro que esses “pseudo-
privilégios que tendem a camuflar a situação de injustiça” (PINTASILGO, 1981, p. 22)
trariam à mulher toda a carga de responsabilidade perante o filho, tornando-a culpada
por qualquer acidente.
Em meio à balburdia, Maria discorda de seus convidados e levanta seu
argumento: “ – A maldade nasceu antes da humanidade. A culpa cabe às mães, mas é de
toda a sociedade” (CHIZIANE, s/d, p. 97); sendo, em seguida, acusada por uma voz
masculina de estar cometendo um equívoco por culpa da embriaguez: “ – Não fuja da
verdade, comadre, que a culpa está com as mulheres. O que dizes é suruma de
bebedeira, estás embriagada, sim” (CHIZIANE, s/d, p. 97).
A repetição da sentença “a culpa está com as mulheres” (CHIZIANE, s/d, p.
97) ratifica o pensamento de Bourdieu sobre a ação exercida pela cultura na diferença
sexual, uma vez que “a voz de limão do homem duro era palha na fogueira tosca”
(CHIZIANE, s/d, p. 97).
Assim, no significado da expressão romana in vino veritas, a “suruma da
bebedeira” (CHIZIANE, s/d, p. 97) fez com que Maria revelasse um segredo antigo:
– O que vocês não sabem – disse Maria – é que cada nascimento tem uma
história e cada acção uma razão. Na minha juventude cometi o mesmo crime,
ou melhor, ia cometê-lo. Tudo por causa desse amor amargura, amor
escravatura, que transtorna, que enfeitiça, fazendo do amante a sombra do
amado (CHIZIANE, s/d, p. 97).
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
a vida inteira. Desse modo, numa perspectiva deleuziana, podemos entender essa
cicatriz como um signo da memória. Segundo o pensador francês:
A contingência desse encontro faz com que Maria reviva sua experiência
violenta: “Ergue os olhos para o céu na súplica do silêncio. A mente recua na trajectória
distante, mais veloz que a estrela cadente. Baixa os olhos para a terra infértil, salpicada
de ervas tisnadas” (CHIZIANE, s/d, p. 97) e, como se estivesse em uma arena, começa
o seu relato, que refaz o autoritarismo da supremacia masculina:
Lembro-me da noite sem lua, quando debaixo do cajueiro disse sim, ao homem
dos meus sonhos. O régulo de Matutuíne, meu pai, disse não a esse pobre, sem
gado para lobolar a filha do rei. Ao meu homem ultrajado não restou outra
alternativa senão procurar o lenitivo das mágoas do outro lado da fronteira, em
Johannesburg, deixando-me o ventre semeado. Nos nove meses de gesta,
minha alma em suplício consumiu facadas. Quinze dias depois do nascimento
da criança, o meu pai disse: fora desta casa (CHIZIANE, s/d, p. 98).
Vale atentar, na citação, para o fato de que, em momento algum, Maria aparece
como sujeito de seu próprio desejo, tampouco argumenta sobre o fato; esse silêncio
representa a submissão diante da lei. Isso se dá porque historicamente criou-se a
concepção essencialista de uma identidade feminina ou das mulheres, ou seja, uma
natureza comum a todas as mulheres (servil, frágil, incapaz). A essa diferença, com base
na biologização, está vinculado um projeto de exclusão, que vai além de colocar o
homem como o centro e a mulher como a margem; encontra-se, também, a formação
androcêntrica de uma identidade que constrói um sujeito unificado, autônomo, absoluto.
Essa construção, fundamentada no determinismo e na naturalização, fornece ao homem
o discurso e à mulher, o silêncio. Como esclarece Eduardo de Assis Duarte, tais
organizações hierárquicas e hegemônicas voltam-se, “portanto, não apenas para a
imposição de verdades tidas como essências absolutas, mas, sobretudo, para o
estabelecimento de procedimentos de controle social, cultural e político” (DUARTE,
2002, p. 13).
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Após ser colocada para fora de casa e desprezada por todos os amigos e
parentes, Maria, contrariando a visão essencialista e universalista de gênero, se destaca
como uma figura diretiva que almeja alcançar seu objetivo: reencontrar o seu “homem
dos sonhos”. Senão vejamos:
Amarrei a capulana bem firme; com o bebê bem seguro nas costas, jurei: os
empecilhos que obstam a minha estrada serão removidos pela minha mão.
Chegarei a Johannesburg, minha terra de promissão. Abandonei a casa no
ritual dos galos cerrando as cortinas vesperais. Segui o rasto do cruzeiro do
sul, caminhei dias, e noites suficientes para contar todas as estrelas do
firmamento (CHIZIANE, s/d, p. 98).
De repente o coração pulsou: uma moita cruzou o horizonte dos meus olhos.
Será ali, será ali, o cemitério da minha filha, e à noite, bandos de corvos
deliciar-se-ão com o corpo frágil do meu rebento, ai!...
(...)
Mergulhei na moita, paraíso ilícito. Os amantes também lá estavam,
protegendo os abraços dos olhares indiscretos, e eu nem os vi, empenhada que
estava na minha tarefa secreta. Adeus, fruto do prazer e dor; amor de fervor,
adeus! Abandonava o lugar em passos de fuga; o casal que me espiava lançou
gritos, alarmando os transeuntes que me rodearam. Uma velhota enxotou os
curiosos, levou-me à sua casa para tratar da criança. Nem com isso desisti de
meus intentos. (...) O sono venceu-me. No sonho vi a minha pequena já
crescidinha, rindo em gargalhadas rasgadas nos braços do pai. O choro da
criança interrompeu o meu sonho, transportando-me para o novo sonho desta
vez bem mais real: acriança sorria, vencendo a agonia. (...) Os espíritos do mar
venceram o mal, amém! Pelo sinal da Santa Cruz (CHIZIANE, s/d, p. 98-9).
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
encontrar o seu homem e conhecer aquilo que ela acreditou ser a “verdadeira felicidade”
(CHIZIANE, s/d, p. 99).
Perante toda a trágica estória, os ouvintes permanecem estáticos, pois “o relato
ultrapassa o limiar de uma recordação” (CHIZIANE, s/d, p. 98), é um fato como muitos
que já foram e outros que ainda virão. No entanto, como sugere a narradora, não há
compaixão dos ouvintes. Atrelados a um sistema ideológico, não conseguem
compreender o episódio por outro viés. Isso acontece porque, como nos explica o
filósofo francês Louis Althusser, a ideologia não é um “sistema de relações reais que
governa a existência de indivíduos e, sim, a relação imaginária daqueles indivíduos com
as relações reais em que vivem” (ALTHUSSER, 1971, p. 165). De acordo com a
narradora:
E, ao final, revela:
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Desta forma, o enfoque das relações de dominação e do uso do poder utilizados
pela ideologia hegemônica, em “As cicatrizes do amor”, toma importância e prioriza o
lugar das mulheres nesse contexto crítico, fazendo visível a diferença sexual num jogo
de ricas e criativas estratégias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
SCHMIDT, Simone. Gênero e história no romance português – novos sujeitos na cena
contemporânea. Porto Alegre: Edpucrs, 2000.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade, Porto
Alegre, 16: 5-12, jul-dez,1990.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 50-61, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
A ÁFRICA E O FEMININO EM PAULINA CHIZIANE
Title: África and the feminine in Paulina Chiziane
RESUMO:
O presente trabalho é parte dos resultados de pesquisas realizadas acerca da obra da escritora
moçambicana Paulina Chiziane, no decorrer de Estágio Pós-Doutoral, realizado na UFRJ, sob
a supervisão da Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. O enfoque principal versará
sobre a análise da ação das personagens femininas: Sarnau, Rami, Delfina e Maria das Dores,
dos romances Balada de amor ao vento, Niketche: uma história de poligamia e O alegre canto
da perdiz. Tais personagens, para além de suas complexidades estéticas, serão lidas como
representações dos dilemas culturais, históricos e sociais vivenciados pela mulher
moçambicana na atualidade. Como seres de “fronteira” que são, entre a tradição e os sistemas
culturais impostos pelos colonizadores, elas se movimentam reafirmando ou rejeitando os
valores patriarcais em voga em Moçambique. Se por um lado, a escritora espelha uma mulher
sofrida, oprimida e “decaída” do ponto de vista simbólico, por outro, ela nutre as suas
personagens femininas de muita força, sabedoria e determinação.
ABSTRACT:
This work is part of the results of studies conducted on the work of mozambican writer
Paulina Chiziane, during Stage Post-Doctoral, accomplished at UFRJ, under the supervision
of Prof. Dr. Carmen Lucia Ribeiro Secco Tinda. The main focus will focus on examining the
action of the female characters: Sarnau, Rami, Delfina and Maria das Dores, of the novels
Balada de Amor ao Vento, Niketche: uma história de poligamia and O alegre canto da perdiz.
Such characters, in addition to their aesthetics complexities, be read as representations of the
culturals dilemmas, historical and social experienced by mozambican woman nowadays. As
beings "frontier" that is, between tradition and cultural systems imposed by the colonizers,
they move reaffirming or rejecting the patriarchal values in vogue in Mozambique. On one
hand, the writer reflects a woman's suffering, oppressed and "fallen" of symbolic point of
view, on the other, it nurtures its female characters a lot of strength, wisdom and
determination.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
1990, e O alegre canto da perdiz, em 2008, me motivaram a fazer um estudo do conjunto da
obra da autora, buscando mapear a especificidade do feminino em Moçambique, a partir do
olhar da escritora.
Para tanto, optei por fazer um levantamento das personagens femininas, as heroínas
das histórias contadas. Conhecê-las foi a primeira tarefa, imaginá-las de forma articulada
umas com as outras só foi possível em uma etapa posterior. Rami, personagem central do
romance Niketche instigou-me a reler a Introdução histórica, escrita por Rose Marie Muraro,
para a edição de 1991, do livro O martelo das feiticeiras - o manual do inquisidor. Em tal
apresentação, a estudiosa demonstra com clareza o processo de desenvolvimento da sociedade
patriarcal e a conseqüente consolidação da hegemonia do poder do homem sobre a mulher, do
primitivismo ao capitalismo moderno.
Muraro nos relata que a própria visão de divindade, que era predominantemente
feminina nas sociedades primitivas, se desenvolve para o compartilhamento de deuses e
deusas, e chega ao seu ponto culminante com um deus único e masculino. O homem é feito à
sua imagem e semelhança e, só após, a mulher é feita do homem e de sua parte mais torta, a
costela.
A partir da leitura do conjunto da obra da escritora, percebe-se flagrantemente a sua
preocupação com o feminino, de um modo geral, e com a mulher moçambicana, em
particular. A escritora demonstra conhecer em profundidade as demandas político-jurídicas e
sociais relacionadas às mulheres de seu país, sem perder de vista questões histórico-culturais
muito importantes, como a poligamia. Esta prática social está retratada no conjunto de sua
obra. Algumas vezes, como em Balada de amor ao vento para questionar a cultura imposta
pelo colonizador, pois Sarnau amava Mwando, queria viver ao lado dele, e não se importava
em ser a sua segunda esposa. Este, totalmente assimilado à cultura ocidental cristã, prefere o
casamento monogâmico.
Tal narrativa refere-se à saga dolorosa e inquietante dessa heroína que viveu as
desventuras de um amor, que conheceu ainda na adolescência, mas que a trocou por outra,
rica e cristã. Após a sua primeira “balada de amor”, ela atravessou a juventude
experimentando todas as contradições do universo feminino moçambicano, sem perder as
esperanças de ser feliz.
Em Niketche, Rami, após descobrir os casos extraconjugais do marido Tony, reclama
direito iguais para todas as mulheres do marido, reivindica que este deveria curvar-se à
prática tradicional da poligamia, já que a sua responsabilidade com suas seis esposas deveria
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
ser equânime. Nesse romance, também, por mais que a crítica à poligamia seja evidente, há
um contraponto que reclama a tradição, pois Tony é um adúltero à moda ocidental e não um
polígamo à moda africana.
Rami se considerava casada dentro dos preceitos da monogamia, o que exacerbava o
seu sofrimento, já que recriminava a prática autóctone. Considerava-se educada e
cristianizada, mas, ao descobrir as outras esposas do marido, passou a questionar os valores e
os estatutos sociais em que acreditava.
A questão da poligamia faz parte da tradição de muitos povos moçambicanos,
certamente por influência árabe, e se constitui como prática social legalmente aceita. Mas
como sabemos, por mais que valorizemos a tradição e ressaltemos a sua importância, ela não
favorece as mulheres, nem no ocidente, nem no mundo africano. Claro está que a partir do
domínio do homem na história da humanidade e da conseqüente formação das estruturas
patriarcais, as mulheres em geral foram perdendo importância.
Em Ventos do apocalipse, outro romance da escritora, a poligamia corrobora com a
opressão e com a humilhação à mulher, pois a guerra e a fome tornam os homens mais
truculentos. Sianga, o régulo de Mananga, oprime a esposa Minosse e filha Wusheni. O
lobolo que já coisifica a mulher em épocas normais, em situações extremas, como em casos
de guerra, ganha maior importância e, por conseqüência, expõe mais ainda a mulher à
condição de mercadoria.
Em O alegre canto da Perdiz, a ação colonial modificou bastante o espaço da aldeia
das personagens Delfina e Maria das Dores, pois estas passam por muitas formas de
aviltamento. Ambas mãe e filha se prostituem em troca de comida. Esta última é vendida
ainda criança pela própria mãe, ao feiticeiro Simba. Muitos estudos realizados apontam
claramente que, com a chegada do colonizador no mundo africano e com a conseqüente
desestabilização dos sistemas autóctones de organização social, em muito piorou a situação da
mulher. É o caso retratado em O alegre canto da perdiz.
Se por um lado, a escritora espelha uma mulher sofrida, oprimida e “decaída” do ponto
de vista simbólico, por outro, ela nutre as suas personagens femininas de muita força
sabedoria e determinação. Sarnau, a sua primeira heroína, luta para superar o desprezo de
Mwando e a arrogância de Nguila, de quem foi a primeira mulher. Supera muitas
contradições, e no final, termina com Mwndo, e ainda tem forças para amá-lo. Rami desafia o
marido, se irmana às esposas de Tony com as quais passa a conviver e a dividir angústias.
Como cada esposa de Tony é de uma região de Moçambique, Rami, na vontade de conhecê-
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
las, amplia o seu conhecimento sobre o seu próprio país, já que cada uma delas é de uma
região.
Maria das Dores, como o nome já diz, sofre, mas abandona Simba, seu senhor e
opressor, perambula por Moçambique, durante a guerra e chega aos Montes Namulis, local
emblemático do romance, pois simboliza o locus de nascimento da humanidade. É na aldeia
próxima a esses montes que ela reencontra seus filhos e renasce para a vida.
Sabe-se que a realidade das mulheres dos países colonizados é bem diferente da
realidade das mulheres dos países centrais. Daí o cuidado quando se teoriza sobre questões de
gênero, tendo em vista que, se por um lado, ainda hoje, as mulheres urbanas européias ou
americanas ganham menos que os homens pelo mesmo trabalho realizado, por outro, as
mulheres pobres do chamado terceiro mundo, onde se inclui a africana e a latino-americana,
não apenas estão excluídas das benesses proporcionadas pelo desenvolvimento da ciência e da
tecnologia, mas sequer conseguem alimentar seus filhos.
Como afirma Martiniano J. Silva (1995, p. 34), numa reflexão sobre a mulher negra no
Brasil, mas que pode se estender às africanas: segundo ele, a dignidade da mulher negra teria
sido violentada, atingindo a honra no âmbito moral e sexual, através de uniões mantidas a
força, sob a égide do medo e da insegurança, onde as crianças eram concebidas legalmente
sem pai. Silva diz que é imperioso que não se confunda “a descaracterização de um povo pela
violência sexual com a hipótese de uma democracia racial.”
É oportuno observar em algumas obras de Chiziane, principalmente no romance O
alegre canto da perdiz, o que é analisado não apenas por Martiniano J. Silva, mas também por
Alberto Oliveira Pinto. Em seu artigo “O colonialismo e a coisificação da mulher”, esse
último estudioso diz que “a mulher africana foi sempre encarada pelos colonos portugueses
tão somente enquanto um instrumento de dominação sobre os espaços e sobre os homens
colonizados”. (PINTO, 2007, p. 48).
É relevante também a observação desse estudioso quanto à expectativa da mulher
africana ao se aproximar sexualmente do colonizador, já que esta buscava uma ascensão a
uma categoria social superior à que tinha nas suas sociedades tradicionais, concretizada, quer
através da passagem de escrava a serviçal ou da mudança da tanga para os panos próprios dos
meios urbanos, quer mesmo através da ilusão de ocupar o lugar da mulher branca. A
personagem Delfina de O alegre canto da perdiz passa por essa última situação, quando se
une ao português Soares.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Olga Iglesias (2007, p. 141), preocupada com as perspectivas para a mulher moçambicana
na entrada do novo milênio, afirma que no período da luta armada de libertação nacional
foram feitas importantes reflexões e estudos considerados "mais globais" sobre a situação da
mulher moçambicana, “pelo tratamento da problemática dos obstáculos à emancipação, pela
estratégia de inclusão da mulher nos centros de decisão e pelo envolvimento da mulher na
tarefa principal - a de combater pela independência de Moçambique, como igual, livre e
irmã”. Ela cita um fragmento do discurso de Samora Machel, presidente da FRELIMO,
pronunciado na primeira Conferência da Mulher Moçambicana em 1973, cujo título é: “A
libertação da mulher é uma necessidade da revolução, garantia de sua continuidade, condição
do seu triunfo.”
Iglesias salienta, contudo, que do ponto de vista histórico houve um período de grande
desestabilização, provocada pela guerra civil, logo na década a seguir à independência (25-06-
1975) e que se estendeu a todo país (1982-1992), provocando uma grave crise, uma miséria
sem limites, fome generalizada e falta de medicamentos. Ela ainda enfatiza que a vida em
Moçambique hoje é
uma questão muito frágil. A estatística oficial aponta para os trinta e oito anos
como, como esperança média de vida. Saiu-se da guerra civil há treze anos
(1992), mas prevalecem os fatores de fome, miséria e de falta de infra-estrutura que
garantam os bens mais essenciais à vida. (...) 54% dos moçambicanos encontram-
se em 2005 em situação de pobreza. (...) Do ponto de vista teórico e jurídico, há a
Constituição aprovada em 1990, que representa um grande avanço em relação à de
1975. Na Constituição estão salvaguardados os direitos universais, fundamentais do
indivíduo e dos cidadãos – o direito à vida, à dignidade da vida humana, o respeito
pela liberdade de expressão e de circulação, de religião, de associação. Está
também consagrada a igualdade dos cidadãos, a igualdade da mulher e do
homem. (IDEM, p. 144, grifos meu).
Apesar de todos os avanços consignados na lei maior do país, ainda seguindo Iglesias,
a Constituição ainda é só um belo programa, que só “o desenvolvimento sustentado e
integrado da sociedade poderá permitir realizar” A pesquisadora assevera, todavia, que,
apesar da crise, há esperança em um renascimento africano. O que pode ser comprovado,
segundo ela, pelas decisões dos novos chefes de estado, que produziram um importante
documento conhecido como NEPAD (Nova Parceria para o Desenvolvimento da África). Os
itens 67 e 68 do documento se referem a questões relativas ao desenvolvimento humano e
também aos direitos de igualdade da mulher em relação aos homens. Menciona o documento:
Promover o papel das mulheres em todas as atividades. (...) Realizar progressos
para assegurar a igualdade do gênero e capacitar as mulheres, através da eliminação
das disparidades sexuais no processo de matrícula na educação primária e
secundária até 2005; (...) Reduzir os rácios da mortalidade materna em três quartos
entre 1990 e 2015; Providenciar o acesso para todos os necessitados aos serviços de
saúde de reprodução até 2015. (NEPAD, documento assinado pelos líderes
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
africanos, em Abuja, Nigéria, em outubro de 1961, Apud IGLESIAS, 2007, p. 145-
6).
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
identidade de e por mulheres do terceiro mundo, mulheres de culturas não européia ou euro-
americana.
Carnen Lucia Tindó R. Seco (2007, p. 392) salienta que “na maioria das literaturas,
poucas foram as mulheres que conseguiram maior visibilidade para seus escritos” e que a
escrita feminina africana, em particular, foi quase inexistente no período colonial e mesmo no
período de luta de libertação nacional. É por isso que como diz John Rex (2007, p. 442- 3), o
ato de escrever para a escritora africana representa um projeto vital e central para a imagem
da própria mulher individualizada ou coletivamente concebida, “de modo que o
autobiográfico e o biográfico, a reportagem e a historiografia, o testemunhal e ficcional se
mesclam e se interpenetram.”
Tem razão John Rex, porque as personagens femininas de Paulina Chiziane são
totalmente cingidas à realidade moçambicana. São seres de fronteira entre a tradição e os
sistemas culturais impostos pelos colonizadores. Rami se vê impelida a conhecer “o
Moçambique da tradição” que já havia rejeitado, por força da assimilação. E nesse percurso
percebe a heterogeneidade de culturas. Sarnau, a mais doce personagem de Paulina, queria a
liberdade para amar, o que lhe confrontava com a tradição, já que os casamentos são
arranjados tendo em vista, primeiramente, o pagamento de lobolo. Delfina e Maria das Dores
são vendidas em troca de comida. Já nascem com a vida da aldeia totalmente modificada pela
presença colonial.
Delfina teve a sua sexualidade colocada a serviço do regime salazarista, serviu como
prostituta e desejava se relacionar com homens brancos como forma de renegar suas origens e
gerar filhos mulatos. Renega a tradição, mas acredita em feitiços e faz uso deles. Ambas, mãe
e filha são confrontadas com os “novos” valores coloniais e com os valores da tradição. Vê-
se que, para Paulina, escrever é também denunciar injustiças e dar voz a quem quase não tem,
que são as mulheres. É refletir sobre os traumas da colonização, da escravidão e das guerras.
É também pensar em projetos de reconstrução nacional e da vida comunitária. É pensar nos
espaços cidade e aldeia, passado e presente. Espaços e tempos que se polarizam e se
interpenetram, principalmente a partir de uma instituição africana muito forte que é a família.
Vê-se que a leitura do feminino em Moçambique, a partir das obras da escritora
Paulina Chiziane, requer, além do estudo das idéias feministas pós-coloniais - que privilegiam
as reflexões de raça e gênero, cidadania e identidade - uma pesquisa acerca das práticas
sociais e culturais das diversas etnias que habitam o território moçambicano, abrangido pelo
vasto espectro ficcional da obra da autora. Requer ainda um maior conhecimento acerca de
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
aspectos antropológicos e historiográficos do país e a disposição de percorrer caminhos nem
sempre seguros, já que as fontes são, em última instância, também interpretações, nem sempre
de vivências e experiências.
As personagens de Paulina são “forjadas” e “temperadas” na e pela dor, o que nos
permite afirmar que as ações desenvolvidas por elas, por um lado, representam os
sofrimentos, os desejos e as angústias das mulheres moçambicanas, mas também as crenças e
esperanças de dias melhores.
REFERÊNCIAS:
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 62-70, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
“NÃO SOU MESMO UMA FEMINISTA?”
A POLÍTICA DO CORPO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE
Title: “’Am I not a feminist?’ Body politics in Paulina Chiziane’s O Alegre Canto da Perdiz”
RESUMO:
Este artigo propõe uma leitura do romance de Paulina Chiziane, O Alegre Canto da Perdiz (2008),
a partir da conflitualidade entre classe, gênero e raça, enquanto conceitos social e culturalmente
construídos. Questionarei a possibilidade de este romance ser a nova expressão de uma écriture
féminine (CIXOUS, 1975) em Moçambique, defendendo que: 1. existe uma abordagem intencional
ao conceito de “falocentrismo” (DERRIDA, 1993) através de uma (re)escrita do corpo feminino; 2.
Chiziane desenvolve o jogo entre uma concepção particular e uma concepção universal (WITTIG,
1983) do conceito “mulher”; 3. é atribuído um significado simbólico à condição de mãe
(KRISTEVA, 1980), que se transforma numa fonte subliminar de opressão; 4. é possível perceber a
presença de uma expressão lésbica de amor, já que o texto dá forma ao conflito entre a rendição a
uma heterossexualidade imposta (“compulsory heterosexuality”. RICH, 1980) e a necessidade de
resistir e lutar contra a opressão da mulher que daí resulta.
Abstract: This paper proposes a reading of Chiziane’s novel O Alegre Canto da Perdiz (2008),
taking into account the intersections between class, gender and race, as socially and culturally
constructed concepts. I shall question whether this novel might be the latest expression of an
écriture féminine (CIXOUS, 1975) in Mozambique, showing that: 1. there is an intentional
approach to “phallogocentrism” (Derrida, 2000), in Chiziane’s (re)writing of the female body; 2.
Chiziane develops a specific interplay between a particular and a universal point of view (WITTIG,
1983) on the concept of “woman”; 3. motherhood is ascribed a symbolic meaning (KRISTEVA,
1980) and becomes a subliminal source of oppression; 4. it is possible to uncover a lesbian voice in
Chiziane’s narrative, as the text gives form to a conflict between the compliance with compulsory
heterosexuality (RICH, 1980) and the need to resist and struggle against women’s oppression as its
outcome.
KEY WORDS: Luso-African literature, Mozambican literature; Gender Studies; Feminist Studies.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 71-82, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
O conceito “mulher,” com sua incontornável determinação de contextos
sociais e políticos específicos, viria progressivamente dar lugar ao enraizamento de
um conflito entre representações ideológicas do feminino e a realidade quotidiana
das mulheres em Moçambique. A concepção político-ideológica de gênero,
desenvolvida pelo programa de Reconstrução Nacional da Frelimo, imediatamente
após a independência do país, em 1975, não contribuiu, na realidade, para
erradicar o posicionamento submisso da mulher na sociedade moçambicana. A
rejeição da poligamia, a condenação, quase moralista, da gravidez na adolescência,
bem como as novas estruturas sociais impostas com base no conceito marxista-
leninista de vida comunitária e reforma agrária, exerceram um impacto
determinante na organização familiar e, particularmente, no papel social, cultural e
político da mulher moçambicana. É, no entanto, fundamental, não negligenciar o
fato de que a consciencialização e participação política da mulher foram tornadas
realidade pelo projeto da Frelimo. Não obstante, algumas questões fundamentais
são, até hoje, pertinentes: de que forma esta nova realidade nacional correspondeu
efetivamente às necessidades das mulheres moçambicanas? De que modo se
posicionaram as mulheres, por exemplo, no contexto da guerra civil moçambicana,
que vitimou o país, após 1975, até 1992?
2
apelidar de uma “ausência presente”. Este conceito paradoxal remete para o
processo de silenciamento de vozes que, no entanto, não são desassociáveis de
corpos, atestando, assim, uma inegável fisicalidade.
Outra escritora moçambicana que surge nessa época é Lina Magaia que atribui
à guerra civil moçambicana uma dicção feminina, pois em seus escritos é a mulher
quem retrata a realidade caótica e cruel; há em seus textos um tom bastante
documental, assim como no seu romance de 1994, Delehta. Pulos na Vida. Lina
mostra os horrores da guerra e defende que a literatura de mulheres moçambicanas
não deve ser encarada exclusivamente sob um ponto de vista de avaliação estético-
literária, o que é algo bem polêmico.
As implicações políticas de sua escrita têm vindo a tornar-se cada vez mais
evidentes, particularmente através de sua capacidade de revelar o encontro entre os
conceitos de classe, raça e género. Essas questões conceptuais irão perpassar
também pela voz autoral feminina de outra escritora moçambicana: Paulina
Chiziane, que será o centro deste artigo.
Paulina publicou, até hoje, cinco romances, entre 1991 e 2008: Balada de
Amor ao Vento (uma edição da autora, de 1991; outra publicada em Portugal, em
2003), Ventos do Apocalipse (1999), O Sétimo Juramento (2000), Niketche, uma
História de Poligamia (2002), e O Alegre Canto da Perdiz (2008). Esses títulos
foram publicados, em Portugal, pela Editorial Caminho. Em Maputo, em 2008,
3
publicou pela Editora Índico o livro de contos intitulado As Andorinhas, obra que
se esgotou, imediatamente, logo após o lançamento.
4
4. é possível perceber, na narrativa, a presença de uma expressão lésbica de
amor, já que o texto dá forma ao conflito entre a rendição a uma
heterossexualidade imposta (“compulsory heterosexuality”, RICH, 1980), e a
necessidade de resistir e lutar contra a opressão da mulher que daí resulta.
A estória de Maria das Dores, uma mulher que aparece nua nas margens do
rio Limpopo, metaforiza a busca do entendimento da identidade, à medida que a
narrativa progride. A sua aparição desperta repulsa nas mulheres, “...porque o nu
de uma se reflecte no corpo da outra...” (CHIZIANE, 2008, p.33), e o seu
comportamento categoriza-a como uma mulher louca, que tem “um nome
belíssimo, mas triste. Reflete o quotidiano das mulheres e dos negros”
(CHIZIANE, 2008, p. 16).
But whatever one chooses to do on the practical level as a writer, when it comes
to the conceptual level, there is no other way around- one must assume both a
particular and a universal point of view, at least to be part of literature. That is,
one must work to reach the general, even while starting from an individual or
5
from a specific point of view. This is true for straight writers. But it is true as
well for minority writers. (WITTIG, 1983, p. 65)2
6
veiculando um encontro inter-racial, resultante e gerador de um conflito
identitário.
– Para quê essa tortura? És preta e ainda bem... Não faltará um branco para
morrer de amor por ti, minha filha. (CHIZIANE, 2008, p. 84).
7
informada por uma lógica de alteridade, posicionando a mulher como o “Outro” e,
assim, validando repetidamente o mito da costela de Adão.
8
de contextos relacionais entre mulheres, incluindo os estágios iniciais da relação
mãe-filha, O Alegre Canto da Perdiz pode ser considerado um romance lésbico.
Tal classificação não se justifica pela abordagem directa ao amor e / ou
sexualidade lésbica, mas sim pela estrutura temática da narrativa, construída a
partir de um sentido particular de cumplicidade, intimidade assexual e aliança
entre mulheres. A separação de Delfina da sua filha, Maria das Dores, à partida,
contrariaria este argumento. No entanto, o comportamento de Delfina sustenta-se
numa heterossexualidade compulsiva (RICH, 1986), bem como na lógica do
sistema capitalista. A oposição de Maria Jacinta ao comportamento da sua mãe
face à sua irmã, Maria das Dores, reafirma a ideia de apoio mútuo entre mulheres,
o qual encontra a sua expressão mais evidente na reconciliação final, que tem
lugar no desfecho da narrativa: os laços familiares são revelados e a complexa teia
contextual de relacionamentos é descortinada.
Notas:
1
O escritor queniano Ngugi wa Thiong’O’s (1993) discute as implicações sociais, culturais e
políticas da presença do conceito ideológico de “centro”, evidenciando as realidades neocoloniais
na África pós-colonial.
2
“Seja o que for que escolhamos fazer pragmaticamente enquanto escritores, a um nível conceitual,
não há possibilidade de contornar a questão: é inevitável assumirmos um ponto de vista particular e
universal, pelo menos para nos inserirmos no âmbito literário. Isto é, devemos trabalhar no sentido
de alcançarmos o geral, mesmo partindo de um ponto de vista individual ou especifico. Esta
9
realidade aplica-se a autores heterossexuais, mas é também verdade para autores pertencentes a
grupos minoritários”. (Minha tradução).
3
Essa construção conceptual é o argumento-base defendido pela teórica feminista Judith Butler, na
sua leitura do conceito “gênero”. (BUTLER, 1990).
4
The souls of black folk (Greenwich, Conn., Fawcett Publications, 1961).
5
The location of culture (New York &London, Routledge, 1994).
6
Em Black feminist thought. Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment (New
York, Routledge, 1991), Patricia Hill Collins apresenta um estudo dos processos de criação de
estereótipos do corpo feminino negro, com as suas inerentes consequências sociais, culturais e
políticas. Não obstante as diferenças contextuais inerentes às leituras do corpo feminino afro-
americano e do corpo feminino afro-moçambicano, encontramos, na “coisificação” do corpo da
mulher negra, um ponto comum aos dois cenários.
7
“A mulher deve-se escrever a ela própria: deve escrever sobre mulheres e trazer as mulheres para o
exercício da escrita, do qual elas foram tão violentamente afastadas, como dos seus próprios corpos”.
(Minha tradução).
Referências bibliográficas:
BHABHA, Homi. The location of culture. New York &London: Routledge, 1994.
BUNCH, Charlotte. Passionate politics: feminist theory in action. NY: St. Martin’s Press,
1987.
BUTLER, Judith. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York:
Routledge, 1990.
CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.
_________. Balada de amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
_________. Niketche. Uma história de poligamia. Lisboa: Editorial Caminho, 2002.
_________. O sétimo juramento. Lisboa: Editoral Caminho, 2000.
__________. Ventos do apocalipse. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought. knowledge, consciousness, and the politics
of empowerment. New York: Routledge, 1991.
DERRIDA, Jacques and Geoffrey Bennington. Jacques Derrida. Chicago: The University
of Chicago Press, 1993.
DUBOIS, W.B. The souls of black folk. Greenwich, Conn.: Fawcett Publications, 1961.
10
IRIGARY, Luce. to speak is never neutral. London & New York: Continuum, 2002.
KRISTEVA, Julia. Desire in language: a semiotic approach to literature and art. New
York: Columbia University Press, 1980.
MAGAIA, Lina Delehta. Pulos na vida. Maputo: Editorial Viver, 1994.
_________. Duplo massacre em moçambique. histórias trágicas do banditismo II. Maputo:
Cadernos Tempo, 1989.
_________. Dumba-nengue. Histórias trágicas do banditismo I. Maputo: Cadernos Tempo,
1987.
MOMPLÉ, Lilia Os olhos da cobra verde. Maputo: Associação dos Escritores
Moçambicanos, 1997.
11
12
TÍTULO: INVERSÕES E ESPELHAMENTOS CRÍTICOS EM PAULINA
CHIZIANE, A PARÓDIA COMO RECURSO ESPECULAR EM NIKETCHE: UMA
HISTÓRIA DE POLIGAMIA.
Title Inversions and critical mirror in Paulina Chiziane, the parody as especulate resort in
Niketche: uma história de poligamia
RESUMO:
Este artigo pretende analisar, sob perspectiva da paródia, os efeitos, inversões e possíveis diálogos do
romance Niketche: uma história de poligamia e textos da literatura universal como A Branca de Neve, Alice
no País das Maravilhas e a Bíblia Sagrada. Três interpretações que nos mostra um pouco do universo ficcional
de Paulina Chiziane.
ABSTRACT:
This article will look at in perspective of parody, effects, and possible reversals dialogues of the novel
Niketche: uma história de poligamia texts of world literature as Snow White, Alice in Wonderland and the
Holy Bible. Three interpretations that shows us some of the fictional universe of Paulina Chiziane.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 83-97, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
É nesse sentido que a fratura existente no espelho narrativo de Niketche faz com que
tenhamos a impressão de que os fragmentos especulares, as pequenas histórias, funcionem
como pedaços disformes do mosaico romanesco: ora percebidos, explicitamente, no
enunciado, ora apreendidos, subjetivamente, através da enunciação do romance. Cada
núcleo reflexivo da narrativa forma o grande gênero pluralizante e carnavalizado que é o
romance.
O romance de Paulina é híbrido: usa os recursos da paródia e entrecruza-os com
pequenas historietas que, africanamente, compõem o tear da narrativa, reinventando a
tradição oral. Mas como perceber os pequenos textos que surgem entrelaçados pelo enredo
polifônico de Paulina Chiziane? Esse questionamento pode ser respondido, quando
analisamos a obra da romancista moçambicana pelo viés de uma intertextualidade paródica.
O conceito de intertextualidade foi formulado por Julia Kristeva, ao referir que “todo texto
é absorção e transformação de um outro texto. No lugar da noção de intersubjectividade
instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética lê-se, pelo menos, como dupla.”
(KRISTEVA, 1977, p. 72). O jogo intertextual em Paulina é paródico, pois, além de ser um
discurso duplo, inverte cânones consagrados tanto da cultura moçambicana, como da
ocidental.
Sem dúvida, observando os diálogos articulados por Rami, vemos que o espelho é
recriado sob diversas leituras paródicas de obras clássicas da Literatura Universal. O leitor
de Niketche: uma história de poligamia, se puder gozar de um breve repertório de leituras
dos clássicos da literatura mundial, possivelmente irá perceber o diálogo com contos da
literatura infanto-juvenil e até mesmo com narrativas bíblicas. A fórmula de uma narrativa
marcada pelo exercício da intertextualidade, e envolvida por relatos especulares que exigem
a participação do conhecimento de mundo do leitor, faz de Niketche uma obra muito
visitada nas livrarias e bibliotecas de boa parte do mundo.
Uma Branca de Neve às avessas, uma Alice no país da poligamia e uma Eva estéril
e insubmissa fazem da narrativa em questão um puzzle de reflexos textuais capazes de
convidar o leitor a revisitar os textos originários dessas estórias infantis, em busca dos
possíveis diálogos. Na tentativa de decifrar o enigma perpetrado pela narradora e por sua
procura inconsciente pela identidade feminina perdida, surge um diálogo, especular e
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 83-97, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
subjetivo, e é, nesse contexto, que tentaremos estabelecer as relações intertextuais entre o
romance de Paulina Chiziane e as obras literárias por ela parodiadas.
O recurso da paródia se potencializa como instrumento questionador na escrita de
Paulina, no momento em que o leitor reconhece o mecanismo parodístico e confronta o
texto apropriado e o texto gerado. Para analisarmos esse potencial dialógico de Niketche,
vamos investigar a recorrência da figura do espelho ao longo da obra e analisá-la,
principalmente, nos diálogos entre Rami e o referido objeto, detectando as possíveis pontes
estabelecidas com o conto “Branca de Neve”, da suposta autoria dos irmãos Grimm.
O espelho, distorcido pela imagem e pela linguagem, invertido pelo estado de
humor da protagonista da obra, revelador da anima ferida e abandonada de Rami, funciona
como índice na narrativa de Paulina Chiziane, marcando, a cada aparição, um novo ponto
de partida para o desenrolar diegético.
Em muitos diálogos articulados pelo espelho personificado e Rami há um sinuoso
jogo intertextual, segundo o qual a temática questionadora do conto “Branca de Neve e os
sete anões” transita pelas páginas de Niketche: uma história de poligamia. É bem verdade
que as semelhanças dos processos de evocação do objeto especular estão longe de
configurar uma simples referência literária. Para além disso, fomentam uma experiência
lúdica muito particular, que apresenta o diálogo entre uma mulher, com baixíssima auto-
estima, e um espelho revelador da trágica dependência, fruto da sociedade patriarcal em
que a narradora-personagem vive.
O espelho evocado pela protagonista do romance, Rami, funciona como um
impulsionador da descoberta das múltiplas identidades femininas da personagem. Tal
descoberta se realiza por meio de questionamentos dirigidos ao espelho, os quais levam o
leitor dos clássicos infantis a recordar a história da rainha que, por vaidade excessiva e
insegurança sobre sua aparência física, indagava, diante de seu espelho mágico, acerca de
sua exclusiva beleza, esperando, sempre, por uma resposta positiva. Eis que surgia, no
écran, uma donzela mais formosa e donairosa que a rainha. Percebemos, assim, nesse
conto, que, enquanto o espelho fiel não instaurava a crise de identidade na majestade, a
soberana se tornava mais certa de sua incomparável beleza.
Rami, antes da descoberta de suas rivais, também fora ao espelho tentar enxergar a
mulher que era naquele momento: “Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado em
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 83-97, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
mim.” (CHIZIANE, 2002, p. 16) No romance, o primeiro contato com o objeto especular é
marcado por um diálogo que pode ser interpretado como a descoberta de sua própria
consciência, que estava adormecida pela ausência de reflexão sobre sua identidade
feminina.
É interessante observar que existe uma grande diferença na força motriz que leva a
rainha de “Branca de Neve” e Rami ao diálogo com o espelho conselheiro. Para a
majestade do conto de fadas, o motivo da aproximação com o objeto especular pode ser
entendido como um exercício de reiteração da sua importante posição social e política. Já
para Rami, o espelho é mais do que um instrumento de reiteração de uma identidade
construída anteriormente; ao contrário, ele reflete a descoberta inicial sobre quem ela
realmente é.
A partir de uma leitura do espelho, personificado no conto “Branca de Neve e os
sete anões”, o leitor é levado a comparar essa figuração do objeto especular, em Niketche, e
identificá-lo com possíveis diálogos que poderão vir a envolver ambas as narrativas. Neste
caso, o texto originário, que serve de referência de leitura, funcionará como um parâmetro
de interpretação da obra de Paulina Chiziane; diante da impossibilidade de interpretar de
maneira similar os dois textos dialogantes, o leitor é obrigado a refletir sobre as diferenças
ideológicas entre as duas narrativas.
O momento de descoberta, para Rami, se dá no primeiro contato com o espelho; aí,
a linguagem formal do espelho de Niketche pode ser comparada à do espelho do conto de
fadas. A utilização da segunda pessoa do singular durante a interlocução, além da escolha e
utilização dos pronomes, indica uma intencional semelhança estilística; negá-la significa
não perceber o diálogo existente no jogo ausência/presença. Observemos os diferentes
discursos referentes aos dois espelhos. No conto dos irmãos Grimm: “― É Vossa Realeza a
mulher mais bela desta redondeza.” (GRIMM. Apud: ESTÉS, 2005, p. 25). No romance de
Paulina Chiziane: “― Não sejas criança, gêmea minha. Ele cansou-se de ti e partiu.”
(CHIZIANE, 2002, p. 18). A utilização do pronome de tratamento “Vossa Realeza”, no
primeiro discurso, dá um tom formal ao diálogo entre o espelho e a rainha, enquanto que,
no segundo discurso, o vocativo “gêmea minha” imprime a idéia de descoberta, de
duplicidade do observador especular.
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O espelho de Niketche pode ser interpretado através de dois níveis. No plano do
enunciado, se apresenta como objeto criado para refletir imagens – metáfora esta, aliás,
bastante recorrente na ficção universal. Já no plano da enunciação, o referido objeto se
transforma em espelho da crítica, funcionando como ponte dialogante entre duas imagens
parecidas, mas não idênticas ou reiteradas. De um lado, a imagem do texto parodiado. Do
outro, a imagem “infiel”, cuidadosamente reformulada, deformada e, ainda assim, herdeira
de diversos elementos do texto parodiado.
Enquanto o espelho de “Branca de Neve” é estático e sombrio, um espelho
congelante, submisso à sua rainha, o objeto especular, em Niketche, baila frente à sua
interlocutora e celebra a dança “niketche”:
― Por que danças tu, espelho meu?
― Celebro o amor e a vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza
e a solidão. Piso para o fundo da terra todos os males que me torturam. A dança
liberta a mente das preocupações do momento. A dança é uma prece. Na dança
celebro a vida enquanto aguardo a morte. Por que é que não danças?
(CHIZIANE, 2002, p. 18).
A imagem projetada de Rami, com quem a protagonista dialoga, é a de uma mulher
que parece se distanciar das agruras da vida. Uma mulher segura que dança e, pisando forte,
enterra sua má sorte. Já o espelho da rainha do conto de fadas não transmite, sequer,
comentários acerca da sua personalidade, pois esse é frio, obediente, um espelho congelante
como aquele a que se refere Umberto Eco.
Outra leitura possível, que servirá para distinguir os dois planos envolvidos pelo
processo intertextual, pode ser aventada através da percepção sobre a cumplicidade dos
objetos especulares. Enquanto Rami desabafa as suas amarguras com o seu espelho “no
quarto frio”, o espelho da rainha tem a função, apenas, de informá-la acerca da existência
ou não de uma mulher mais bela do que a soberana. A subordinação que o espelho dos
irmãos Grimm transmite, ao responder aos questionamentos de sua interlocutora, é tão
“verdadeira”, no plano ficcional, que a rainha fica furiosa quando recebe uma informação
contrária àquela que estava esperando:
― Espelhinho, meu espelhinho, responde-mo com franqueza: Qual a mulher mais
bela de toda a redondeza?
O espelho respondeu:
― Real senhora, sois aqui a mais bela. Porém Branca de Neve é de vós ainda
mais bela!
A rainha estremeceu e ficou verde de ciúmes. E daí, então, cada vez que via
Branca de Neve, por todos adorada pela sua gentileza, seu coração tinha
verdadeiros sobressaltos de raiva. (GRIMM. Apud: ESTÉS, 2005, p. 25).
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Outra observação curiosa acerca do espelho observado em Niketche pode ser
extraída da cena referente ao beijo disparado por Rami na direção do espelho: “Tento
beijar-lhe o rosto. Não a alcanço. Beijo-lhe então a boca, e o beijo sabe a gelo e vidro. Ah,
meu espelho confidente. Ah, meu espelho estranho. Espelho revelador. Vivemos juntos
desde que me casei. Por que só hoje me revelas o teu poder?” (CHIZIANE, 2002, p. 19).
Esse beijo no espelho congelante evidencia uma tentativa de relacionamento de Rami com
o seu Eu; no entanto, esse beijo “sabe a gelo e vidro” por não ser possível encontrar no
outro a sua própria identidade. O excerto a seguir é um exemplo da tentativa de
aproximação de Rami ao seu Eu, “gêmeo”, procurando passar do primeiro estágio de
descoberta da identidade subjetiva para o segundo, no qual a imagem projetada pelo
espelho já não é confundida com a de outra pessoa:
Tento, com a minha mão, segurar a mão da minha companheira, para ir
com ela na dança. Ela também me oferece a mão, mas não me consegue
levar. Entre nós há uma barreira fria, gelada, vidrada. Fico angustiada e
olho bem para ela. Aqueles olhos alegres têm os meus traços. As linhas do
corpo fazem lembrar as minhas. Aquela força interior me faz lembrar a
força que tive e perdi. Esta imagem não sou eu, mas aquilo que fui e
queria voltar a ser. Esta imagem sou eu, sim, numa outra dimensão.
(CHIZIANE, 2002, p. 18).
Essa frieza do espelho, que evidencia uma distância espacial entre Rami e o seu Eu,
em Niketche, é um bom exemplo de inversão crítica do conto dos Irmãos Grimm, no caso o
texto parodiado. A sinceridade dos espelhos, em ambos os textos, é apresentada de
maneiras distintas. Se, por um lado, o espelho da rainha compromete-se em responder,
apenas, quem é a mais bela donzela do reino encantado, em Niketche, o espelho vai além
das indagações de Rami e, assumindo um discurso aparentemente conselheiro, pautado por
uma extrema sinceridade, ri-se da personagem principal, como podemos observar no
excerto seguinte:
― Diz-me, espelho meu: serei eu feia? Serei mais azeda que a laranja lima? Por
que é que o meu marido procura outras e me deixa aqui? O que é que as outras
têm que eu não tenho?
O espelho dá uma resposta muda e sorri.(...)
― Não! Não achas que emagreci um pouco?
― Emagreceste, sim.
Tomara que todas as mulheres gordas tivessem maridos que lhes dessem
desgostos. (CHIZIANE, 2002, p. 34).
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Os questionamentos de Rami frente ao seu espelho podem ser comparados ao da
rainha de “Branca de Neve”, se considerarmos a semelhança da linguagem utilizada no
diálogo e as indagações acerca da beleza de ambas as personagens. No entanto, enquanto a
preocupação da rainha parece ser estritamente estética, Rami precisa reencontrar os valores
culturais do seu contexto histórico-social, para, a partir daí, reconstruir a sua identidade.
Parodiando o título de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, pretendemos
estabelecer uma associação entre o fenômeno da passagem pelo espelho empreendida pela
personagem de Carroll e a conscientização identitária de Rami, que se faz através da
contemplação de sua imagem especular em direção ao encontro de seu eu profundo.
Por meio dos diálogos entre a protagonista e o espelho, revelador de sua dura
trajetória matrimonial, constatamos uma travessia do espelho em dois planos: a travessia da
intertextualidade, marcada pelos diálogos entre a narrativa de Niketche e de Alice no país
das maravilhas; a travessia realizada entre os planos da tradição e da modernidade, nos
quais se destacam os questionamentos de Rami diante das descobertas especulares que
evidenciam os reflexos de uma Moçambique multicultural.
A poligamia, atuando como mote central da narrativa, funciona como uma espécie
de metafórico abismo que se fende aos pés de Rami, pois a impulsiona em direção a uma
queda livre para dentro de si mesma. Se, para a Alice de Carroll, uma das portas se abre e
permite a passagem da personagem para o maravilhoso mundo da fantasia, para Rami, o
espelho é, inicialmente, o grande portal de suas angústias e, mais tarde, a chave para sua
independência econômica e sentimental em relação ao marido, Tony.
No que se refere à futura autonomia financeira de Rami, assistimos aos seus
reflexos também em relação a suas rivais, pois Rami se une a essas, o que efetiva a
instauração de uma nova perspectiva de organização social das mulheres de Tony e do
papel econômico destas dentro de suas respectivas famílias. Já a independência sentimental
é marcada por dois fatos que devem ser analisados na narrativa. O primeiro diz respeito à
noite de amor protagonizada por Rami e o “amante”, o futuro marido de Lu. O segundo está
ligado ao fato de a protagonista do romance cumprir o recriado ato do kuthinga* com o
irmão de Tony, em razão da suposta morte de seu marido.
O adultério, cometido consensualmente por Rami, com Vitor, amante de Lu, marca
profundamente o comportamento rebelde da protagonista que, a partir deste momento da
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narrativa, deixa de se queixar, como no início do romance, e começa a ignorar a escassez de
amor do marido. Podemos considerar que essa atitude identifica o princípio da
desarticulação do relacionamento conjugal da protagonista, assinalando também sua atitude
crítica de contestação à submissão feminina.
Comecei a freqüentar a casa da Lu. A partilhar segredos. O Vitor passou a
ser a sombra misteriosa perseguindo a sombra do meu ser. A lua que
brilha na fresta da minha janela. Excelente amante polígamo,
distribuindo-nos amor roubado, numa escala justa, tudo por igual.
(CHIZIANE, 2002, p. 91).
Num segundo momento, quando Rami se acreditava em estado de viuvez, volta a se
envolver intimamente com outro homem, além de Tony e Vitor. Nessa nova experiência, a
protagonista mergulha no mundo da poligamia instituída pelas matrizes ancestrais,
endógenas de sua cultura. Supostamente viúva, ela é “desposada” pelo cunhado. O kuthinga
– prática aceita e ditada pelas tradições moçambicanas locais – é o ato que marcará o
momento mais polêmico da diegese e será uma das chaves que abrirá as portas do desfecho
da narrativa de Paulina Chiziane.
No capítulo vinte e nove do romance, que descreve, paulatinamente, as impressões
da protagonista, antes de sua purificação como viúva, desenrola-se aquilo a que podemos
chamar de “desventuras de Rami no país da poligamia”. O excerto do romance, citado a
seguir, descreve como as mulheres da tradição moçambicana eram tratadas após a morte de
seus maridos:
Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os olhos dos meus cunhados,
candidatos ao sagrado acto, brilham como cristais. Cheira a erotismo no ar. A
expectativa cresce. Sobre quem estará a bendita sorte? Quem irá herdar todas as
esposas do Tony? Fico assustada. Revoltada. Minha pele se encharca de suor e
medo. Meu coração bate de surpresa infinda. Kutchinga! Eu serei tchingada por
qualquer um. (...) É confortante saber que tenho onde encostar o meu ombro sem
precisar de andar pelas ruas a vender os meus encantos diminuídos pelo tempo.
Incesto? Incesto não, apenas levirato. Incesto só quando corre o mesmo sangue
nas veias. (CHIZIANE, 2002, p. 211-212)
Segundo Henrique Junod, em seu livro Usos e costumes bantos, no qual recolheu
uma série de mitos e costumes das tradições dos povos de Moçambique, existia uma
infinidade de experiências que a viuvez podia proporcionar. Entre essas, era comum, dentro
de um sistema poligâmico tradicional, a primeira mulher ser entregue ao irmão mais velho
do esposo, embora pudesse ser rejeitado pela viúva em algumas situações particulares.
Junod informa, ainda, que havia a possibilidade de a mulher mais velha tomar por marido
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outro homem que não fosse de seu grupo étnico, mas tal atitude tenderia a despertar uma
incisiva oposição da família do morto, pois podia propiciar o começo do desaparecimento
da aldeia.
Outros rituais – fazer um corte ao lado da virilha da viúva; atear fogo a palhas
retiradas da palhota do marido morto, deixando os órgãos genitais da mulher serem
atingidos pela fumaça dessa pequena fogueira, apagando-a, posteriormente, com a urina –
fazem parte de diferentes práticas culturais moçambicanas descritas por Henrique Junod. O
termo kutchinga não é referido por esse estudioso dos usos e costumes moçambicanos, mas
menciona outros vocábulos para nomear práticas semelhantes e outras, bem diversas.
Diante dos questionamentos existenciais de Rami, voltamos a relembrar a trajetória
de Alice de Lewis Carroll, efetuando uma leitura que vê uma possível comparação entre
essas duas personagens femininas. Como sabemos, Alice cai lentamente no poço e, cada
vez mais distante da superfície, parece flutuar, enquanto cai. A menina, então, observa,
deslumbrada, vários objetos e pega alguns deles nas pequenas prateleiras que enfileiram o
grande túnel que a conduz ao “país das maravilhas”. Rami, por outro lado, ao mergulhar em
seu próprio abismo existencial, submerge, lentamente, nas armadilhas de um casamento
fracassado e vê, nas estantes guardadas pela tradição, alguns objetos curiosos, utensílios
que a auxiliarão durante as novas experiências e descobertas: “Fiz banhos de farinha de
milho. De pipocas. De sangue de galinha mágica. Soltei pombos brancos para me trazerem
de volta o amor perdido nos quatros cantos do mundo e nada! (CHIZIANE, 2002, p. 67)
É interessante analisarmos o momento da queda figurada de Alice, visto que, em
meio à confusão dos seus pensamentos, ouvimos sua voz indagar: “Essa queda nunca teria
fim? (...) “... sim, deve ser mais ou menos essa distância... mas então, qual seria a Latitude e
a Longitude em que estou?” (CARROLL, 1980, p. 42). Esse tipo de estrutura interrogativa,
que parece instaurar um monólogo com a própria consciência, assemelha-se ao modelo da
tradição oral articulado em Niketche. A narrativa é repleta de frases retóricas, o que lhe
garante uma singular dinamicidade e, com isso, faz da narradora sua própria interlocutora.
Em Alice no país das maravilhas, para reforçar a idéia de continuidade da ação,
Lewis Carrol utiliza, repetidas vezes, o verbo na forma gerúndia: “Caindo, caindo
caindo...”. Por sua vez, a instância autoral de Niketche utiliza, em vários momentos, a
iniciativa de confrontar o espelho, forçando a narradora-protagonista a lançar-se no abismo
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de sua identidade questionada e de seus dramas pessoais. A “queda” de Rami perdura
exatamente até o momento em que a personagem percebe que sua casa, seu casamento e
seus filhos já não correspondem ao esboço da constituição familiar que havia imaginado:
O Tony regressa a casa como um homem vencido, um desertor arrependido, filho
pródigo. Um traste, um homem morto. Depara com a casa vazia. Em passos
rápidos varre todos os compartimentos. Dá umas tantas voltas. Tem a sensação de
estar a caminhar num outro lugar que não é a sua casa. As salas parecem-lhe
campos de futebol de salão. No outro quarto vê os filhos sentados numa esteira
como prisioneiros numa cela. (...) Ele senta-se na grade e eu no chão.
(CHIZIANE, 2002, p. 225).
O espaço da casa, vazio e sem vida, é o fundo do poço. E, para quem chega nesse
patamar tão inferior, só existem dois caminhos possíveis: permanecer no fundo do poço,
esperando por uma ajuda que dificilmente chegará, pois o abismo é interno, pessoal; ou
arriscar diferentes maneiras de “subir”. Rami ensaia pequenos passos de subida, visando a
reerguer sua consciência, mas esbarra em sua própria dificuldade de saber quem é.
Podemos perceber, em alguns excertos do romance, que a personagem manifesta o desejo
de se descobrir através do reflexo do outro: “Tenho uma vontade enorme de conversar com
alguém que me compreende. Que me ama e me escuta. A minha mãe.” (CHIZIANE, 2002,
p. 191). Essa conversa com sua mãe é uma tentativa de emersão de sua consciência de
mulher, de mãe e de filha.
Se, para Alice, a possível saída do lugar estranho era representada pelas portas que
se abririam com uma “pequena chavezinha dourada”, para Rami, seu casamento poderia ser
“destrancado” pela chave da tradição, que, revestida pelo costume recriado da poligamia,
poderia abrir-lhe várias portas, dentre elas, aquela que a conduzisse à felicidade. As idas e
vindas da conselheira de amor dialogam com as muitas tentativas de Rami em abrir as
portas fechadas de sua identidade cultural relacionadas à tradição.
Depois de tentar abrir várias portas – a da poligamia, a do patriarcalismo, a do
lobolo, a do kutchinga, a das lulas, a dos polvos, a da incisão feminina e a dos ritos de
iniciação –, Rami descobre que nenhuma dessas passagens, ainda que representassem
grandes portais das tradições africanas, devolveriam a estabilidade familiar que tanto
almejava. Alice, em sua narrativa fantástica, vê um pequeno véu em um dos cantos da sala
das portas e, através dele, alcança a pequena porta que se abre. Rami, por sua vez, atravessa
o véu do seu próprio corpo, rompe com os tabus de sua criação cristã, adentra a pequena
porta de seu Eu, consolidando-o, de modo semelhante ao que ocorre no terceiro estágio da
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descoberta lacaniana do espelho, o estágio em que o observador de sua própria imagem,
descobre-se e percebe que o outro é somente seu reflexo especular.
Depois de atravessar a pequena porta, Alice experimenta da bebida que a deixa
pequena e esquece de pegar a chavezinha dourada que estava em cima da mesa. Mais uma
vez, a frustração da personagem é tanta, pois acabara de perder mais uma oportunidade de
sair do abismo maravilhoso, que ela se senta e chora. Esse episódio poderia ser mais um
fato isolado do desenrolar diegético, mas, para uma comparação com Niketche, o fato torna-
se importante, visto que o ato de chorar reflete a angústia frente ao desconhecido. Para
Alice, o mundo em que caíra; para Rami, a sua identidade.
Paro de chorar e volto ao espelho. Os olhos que se reflectem brilham como
diamantes. É o rosto de uma mulher feliz. Os lábios que se reflectem traduzem
uma mensagem de felicidade, não, não podem ser os meus, eu não sorrio, eu
choro. (CHIZIANE, 2002, p. 17)
Olho para minha mãe. Meu Deus, como ela chora. Será que o meu caso inspira
tanta tristeza? (Idem, p. 101)
Sinto uma vertigem. Tenho a garganta apertada mas resisto à grave tentação de
abrir a boca para não soltar os sapos que engoli a vida inteira. O sopro da minha
zanga é fogo de dragão, posso incendiar tudo. Só me apetece chorar (Idem, p.
152-153)
Não obstante o choro das personagens, mais uma vez são articulados os diálogos
introspectivos efetuados por essas protagonistas, o que reflete a multiplicidade de vozes que
as percorrem e compõem. Nesse fenômeno plurivocal, podemos observar que, dentro do
espelho dialógico, entram em contato os planos do consciente e do inconsciente:
(...) De quem será esta imagem que me hipnotiza e me encanta?
― Quem és tu? – pergunto eu.
― Estás cega, gémea minha. Por que choras tu?
(CHIZIANE, 2002, p. 17).
Podemos perceber, também, esse exercício auto-reflexivo no discurso da Alice de
Carroll:
Que é isso, não adianta chorar desse jeito!” – disse ela consigo, severamente – “É
bom parar com isso agorinha!” Geralmente dava bons conselhos a si mesma
(embora raramente os seguisse), e às vezes se repreendia com tal aspereza que as
lágrimas lhe vinham aos olhos: certa vez lembrou-se de dar um puxão nas
próprias orelhas, por ter trapaceado num jogo de croquet que jogava consigo
mesma, pois essa curiosa criança gostava muito de fingir que era duas pessoas.
(CARROLL, 1980, p. 45).
Após essas severas reprimendas, Alice vê-se diante do seguinte dilema: dividir-se
definitivamente em duas e aprofundar o diálogo consigo mesma ou tentar manter a inteireza
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de sua alteridade. Rami procura se dividir em cinco para que as vozes e as culturas
representadas por suas rivais venham a fazer parte da sua identidade, fortalecendo-a frente
ao desafio de sair do abismo existencial em que vivera durante os longos anos de
casamento. Assim como Alice, que buscava reencontrar o estado de equilíbrio pessoal, as
várias tentativas de Rami, ao recriar alianças familiares, unindo-se às outras esposas de
Tony, fizera dela um indivíduo propício a se entregar a novas experiências. Uma dessas,
parodiando também Alice no país das maravilhas, remete ao exercício da dança, ao estado
de expressão de aparente devaneio do corpo e da alma.
Alice observa a dança e penetra no espaço lúdico, através do jogo de xadrez,
vencendo a rainha de copas no tabuleiro. “― Que espécie de dança é essa? (CARROL,
1980, p. 111) “Deve ser uma dança muito linda – murmurou Alice, timidamente.” (Idem, p.
112). Já Rami, ensaia suas jogadas enigmáticas e, diante do que infere da tradição e da
independência de suas rivais, vê-se, também, independente de Tony e de suas esmolas
matrimoniais.
Para finalizar esse estudo comparativo entre Niketche e Alice no país das
maravilhas, observamos dois desfechos interessantes para as narrativas. Em Alice, o jogo
de xadrez surge no final da narrativa, quando a personagem principal, em vários lances e
jogadas, vence a rainha no tabuleiro.
Rami ultrapassa sua submissão em relação ao marido de maneira gradativa.
Primeiro, começa a descobrir-se por intermédio das aulas da “consultora de amor”,
marcadas pelo diálogo com determinadas tradições; em seguida, fortalece econômica e
sentimentalmente as suas rivais e a si própria, assumindo o papel central de primeira
esposa; é “tchingada” por Levy, irmão de Tony. Nessa ocasião, curiosamente, a
personagem recebe um nome parecido com o substantivo “levirato”, que é “a prática do
casamento de uma viúva com o irmão do seu marido falecido” (FERREIRA, 2000, p. 424);
Apesar de esse episódio se desenrolar nos últimos capítulos do romance e o
desfecho da narrativa caminhar para um fim trágico, encabeçado pelo arrependimento de
Tony, o ciclo vital parece ter sido perpetuado em Rami, através da gravidez, apontando
para um indício de esperança. A morte simbólica do marido polígamo pode ser considerada
o xeque-mate de Rami no tabuleiro de xadrez engendrado pela narrativa de Paulina
Chiziane. Quando Rami diz a Tony que espera um filho do levirato, observamos, com mais
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 83-97, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
clareza, a confluência entre as duas narrativas costuradas pela intertextualidade, a de
Paulina e a de Carroll, pois, se Alice vencera a rainha, Rami se livrara de seu “régulo”,
Tony, que, durante tanto tempo, fora o centro de uma poligamia recriada em termos
desleais. Entretanto, o texto do romance de Paulina não esgota suas estratégias
intertextuais. Outra possível releitura paródica é a bíblica, que propicia interpretações
eivadas de surpresas.
Rami, a narradora de Niketche, recorre, em muitos capítulos, às histórias bíblicas;
essas servem como pequenos marcos do romance, nos quais são questionados os costumes
europeizados e patriarcais, instituídos em detrimento do bem-estar e da socialização da
mulher. Uma outra Eva, espelhada, aqui, nos costumes bantos é descrita pela narradora, a
fim de aproximar essa figura bíblica de uma imagem mítica da mulher, presente em etnias
das culturas tradicionais moçambicanas:
Se a poligamia é natureza e destino, por favor, meu Deus, manda um novo
Moisés escrever a nova bíblia com um Adão e tantas Evas como as estrelas do
céu. Manda pôr umas Evas que pilam, esfregam, cozinham, massajam e lavam os
pés de Adão, assim em turnos. (...) Se não existe nenhuma deusa – meu Deus,
perdoa-me –, com tantas mulheres que o mundo tem por que não fica com umas
tantas dúzias? (CHIZIANE, 2002, p. 95-96).
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Retomando um dos motes centrais da narrativa, a configuração “moderna” da
poligamia, deparamo-nos com um discurso enunciador que, ao mostrar-se conhecedor das
mais significativas personagens bíblicas, alude às suas histórias para justificar esse tipo de
relacionamento afetivo e social. Na voz de Tia Maria, outra importante personagem de
Niketche, lemos a evocação de narrativas bíblicas, como já citamos anteriormente:
– Cada tempo a sua história – diz ela. – A prosperidade mede-se pelo número de
propriedades. A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande patriarca
deve ter várias cabeças sob o seu comando. Quando se tem poder é preciso ter
onde exercê-lo, não é assim? Abraão, Isaac, Jacob, foram polígamos, não foram?
Os nossos reis antigos também o foram e ainda são. Que mal é que há? Na Bíblia,
só Adão não foi polígamo. (CHIZIANE, 2002, p. 74).
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Título: MULHERES NEGRAS, SEXUALIDADES E A HERANÇA DAS RELAÇÕES
COLONIAIS: nuances reveladas em Balada de Amor ao Vento, de Paulina Chiziane, e O Olho
mais Azul, de Toni Morrison
Rafael César
Mestrando da UFF
E-mail: [email protected]
RESUMO:
O espaço conceitual da “raça” (enquanto fenômeno social, e não biológico) é fundamental para entender os efeitos do
colonialismo nas relações sociais estabelecidas ainda hoje. Não me refiro somente ao racismo explícito manifesto em
injúrias ou violências. Trata-se, mais amplamente, de todo um campo semântico relacionado à noção de raça, em que
podem estar envolvidas questões como religiosidade, moda, culinária, música, linguagem verbal, e, até mesmo, a
afetividade e a sexualidade. No presente trabalho, pretendo investigar as relações entre raça e gênero nos romances
Balada de amor ao vento, de Paulina Chiziane, e O olho mais azul, de Toni Morrison, escritoras que retratam tempos e
espaços diferentes, mas nos quais uma série de experiências relacionadas às construções sociais de raça e gênero ligam
as suas protagonistas, Sarnau e Pecola, respectivamente. Focando-me no exercício da sexualidade e da afetividade das
personagens, proponho que a presença ou a herança das relações coloniais produz contextos que atingem as mulheres
negras, atravessando espaços da África e da diáspora africana.
ABSTRACT:
The concept of "race" (as a social phenomenon, not biological) is critical to understand the effects of colonialism on the
establishment of social relations until nowadays. I refer not only to explicit racism manifest in injuries or violence. It is,
more broadly, an entire semantic field related to the notion of race, in which issues such as religion, fashion, cooking,
music, verbal language, and even affection and sexuality may be involved. In this work, I investigate the relationship
between race and gender in the novels Balada de amor ao vento, by Paulina Chiziane, and The Bluest Eye, by Toni
Morrison, writers who portray different times and spaces, but in which a series of related experiments related to social
constructs of race and gender bind their protagonists, Pecola and Sarnau, respectively. By focusing on the exercise of
sexuality and affectivity of the characters, I propose that the presence or the legacy of colonial relations produce
contexts that affect black women across spaces of Africa and the African diaspora.
As culturas negras têm usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o
único capital cultural que tínhamos. Temos trabalhado em nós mesmos como
em telas em representação.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 98-110, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
americano, Harry Reid, sobre uma possível vitória do então candidato Barack Obama. Para Reid,
Obama era uma boa opção e estava no páreo da corrida presidencial por ser um negro “'light-
skinned, with no Negro dialect, unless he wanted to have one” (em tradução livre, “de pele clara,
que não fala o dialeto negro, a menos que queira”). A frase foi dita em 2008, mas voltou à baila com
a recente publicação do livro Game change, dos jornalistas John Heilemann e Mark Halperin, sobre
os bastidores das eleições que deram aos Estados Unidos o seu primeiro presidente afro-americano.
O autor do presente trabalho, já há alguns anos bastante atento ao que diz respeito às
questões raciais no Brasil e no mundo, refletindo sobre a frase de Reid, refez o percurso de sua
própria – embora ainda curta – trajetória nos meios acadêmicos (uma escola de classe média alta da
zona sul e duas universidades federais), profissionais (uma ONG, uma editora, dois colégios e um
bom número de alunos particulares) e pessoais por que passou. Disparou em mim – peço licença
para a liberdade de usar a primeira pessoa, visto que se trata de uma experiência pessoal, e bastante
íntima –, com muita intensidade, a recorrência das inúmeras vezes em que, circulando em meios
predominantemente “brancos”, eu me esforçava para tornar evidente que, apesar de ser um
afrodescendente, tinha a pele bem clara, e buscava transparecer ainda mais a nulidade de minha
ascendência africana com a promoção de outros signos, dentre os quais um dos mais fortes (senão o
mais forte) era saber falar a “norma culta” da minha língua.
O tropo da raça é fundamental para entender os efeitos do colonialismo nas relações sociais
estabelecidas ainda hoje, como há muito tempo segmentos dos movimentos negros por todas as
Américas vêm apontando. E, a reboque dos estudos culturais e teorias pós-coloniais, os meios
acadêmicos brasileiros vêm entendendo a importância de incluir mais e mais teoria sobre o tema,
além de colocá-lo na pauta de investigações. Pensando justamente sobre essa pauta, é importante
não perder de vista que quando tratamos de relações raciais, não estamos falando apenas daquele
racismo explícito manifesto em injúrias ou violências muito evidentemente ligadas ao preconceito
racial, mas também sobre todo um campo semântico relacionado à noção de raça que, caso faça
parte da “raça inferior”, será pré-concebido quase sempre como inferior, distante da seriedade,
folclorizável. Neste campo semântico a que me refiro estão as religiões, a moda, a culinária, a
música, a linguagem verbal, dentre tantas outras coisas. Talvez pela experiência pessoal, creio que a
linguagem, nesse caso, seja um dos temas mais fascinantes. Experiência que, aliás, pude reconhecer
com ainda mais força no caso de minha mãe e meu avô, possivelmente porque, além das barreiras
impostas pela raça em tempos mais difíceis que o meu, ainda precisaram lidar com a pobreza.
Embora não venha a ser o tema central do trabalho que se desenvolverá, este será bastante
proveitoso como introdução, e elo entre África e diáspora africana, período colonial e período pós-
colonial.
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No posfácio a O olho mais azul, escreve Toni Morrison, a autora:
Minhas escolhas para a linguagem (oral, sonora, coloquial), minha confiança na plena
compreensão de códigos encravados na cultura negra, meu esforço para obter co-inspiração
e intimidade imediatas (sem nenhum texto explanatório e distanciador), bem como a
tentativa de moldar um silêncio ao mesmo tempo que o rompia, são tentativas de converter
a complexidade e a riqueza da cultura negro-americana numa linguagem digna da cultura.
(MORRISON, 2003, p. 216)
As colocações do senador Harry Reid e de Morrison, somadas ao fato de que hoje os EUA
têm um presidente negro, mostram como a grande dificuldade de subversão das heranças
colonialistas ligadas à raça não está tanto na cor da pele (embora qualquer indivíduo
afrodescendente saiba que as dificuldades são, de fato, bastante grandes), mas em todos os signos
abstratos que a envolvem. Esta problemática se dá em outros países alcançados pela diáspora
africana, evidenciando-se uma questão tipicamente “pós-colonial”. Índice disto é a nota do tradutor
da edição brasileira, Manoel Paulo Ferreira, sobre o trecho acima, na qual afirma que “Por razões
óbvias, a tradução não pôde reproduzir fielmente essas tentativas da autora. Fez-se todo o possível,
porém, para manter o tom “oral, sonoro e coloquial” (idem, ibidem). Entretanto, comparando a
edição brasileira com uma edição norte-americana, vemos que, mesmo ao longo dos diálogos, não
há, opostamente ao que o tradutor declara, a tentativa de manter o tom indicado. É o caso da cena
em que Pecola, a protagonista, e suas amigas são cercadas por alguns garotos que começam a
provocá-las. Vejamos, primeiro, o trecho em inglês, com fortes marcas do vernáculo negro norte-
americano, presente nas provocação proferidas pelas crianças: "Black e mo. Black e mo.
Yadaddsleepsnekked. Black e mo black e mo ya dadd sleeps nekked. Black e mo ..." (MORRISON,
1972, p. 55). A seguir, a tradução Manoel Paulo Ferreira: “Preta retinta. Preta retinta. Seu pai
dorme pelado. Preta retinta, preta retinta, seu pai dorme pelado. Preta retinta...” (MORRISON,
2003, p.69.)
Não bastasse a perda do efeito, que não é puramente estético, mas profundamente
significativo, já que se trata de um contexto fortemente racializado, para além disso é bastante
discutível a impossibilidade apregoada pelo tradutor de se fazer uma correspondência do black
english, como é conhecido por lá, com algo correspondente ao universo brasileiro. Tanto é possível
que um dos grandes esforços da recente safra de autores negros brasileiros, como Nei Lopes, vem
sendo a de identificar esse vernáculo de herança africana (com forte presença de palavras de origem
bantu, por exemplo, dentre outras estratégias, cf. CESAR, 2008) como forma de buscar uma estética
literária ligada a um universo negro. O problema maior, entenda-se, não é a dificuldade do tradutor
em empreender essa tarefa – é compreensível, embora não justificável, se pensarmos que toda a
cadeia de produção e recepção de textos literários no Brasil praticamente não inclui indivíduos
negros e o seu patrimônio cultural, simbólico; ironicamente, o país mais miscigenado do mundo
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tem um público-leitor quase “europeu”. Mas, sobretudo, sequer ter o trabalho de explicar tal
dificuldade (ela esgota-se no “Por razões óbvias”) ao traduzir o texto para a variante do português
falada no país que recebeu o maior número de africanos, em toda a história da escravidão, faz parte,
sem dúvida, de um processo de silenciamento.
Aqui começamos também a evidenciar os primeiros elos entre África e sua diáspora: o
trabalho de linguagem que buscasse a variante não-hegemônica (em termos de poder) foi um dos
principais motivos dos autores africanos de língua portuguesa na renovação de sua literatura a partir
dos anos 1960, principalmente. E para encerrar, por ora, a questão da linguagem, vejamos o que nos
diz Bell Hooks, acadêmica norte-americana:
Necessitando da língua do opressor para falar uns com os outros, eles não obstante
também reinventavam, refaziam essa língua de tal modo que ela falaria além das
fronteiras da conquista e da dominação. Nas bocas de africanos negros no chamado
“Novo Mundo”, o inglês foi alterado, transformado, e tornou-se uma fala diferente. O
povo negro escravizado pegou pedaços partidos do inglês e fez deles uma contralíngua.
Eles colocaram junto suas palavras de tal maneira que o colonizador tivesse de repensar o
significado da língua inglesa. (...) Para cada uso incorreto de palavras, para cada
colocação incorreta das palavras, era um espírito de rebelião que reivindicava a língua
como um local de resistência. Usar o inglês de uma maneira que rompeu o uso e o
significado padrões, de tal modo que o povo branco poderia freqüentemente não entender
a fala negra, fez do inglês muito mais do que a língua do opressor. (...) O poder dessa fala
não é simplesmente possibilitar resistência à supremacia branca, mas é também fabricar
um espaço para produção cultural alternativa e epistemologias alternativas – diferentes
maneiras de pensar e conhecer que foram cruciais para criar uma visão de mundo contra-
hegemônica. (HOOKS, 2008, pp. 859-60.)
Mas, como ainda completa a autora, esta mesma subversão ocorre por uma necessidade
infinita que qualquer indivíduo e grupo possui: o desejo de criar o seu espaço de identificação, de
pertencimento, através do qual possa buscar respostas para a fundamental pergunta: quem sou eu?
Reconhecer que nós nos tocamos uns aos outros na linguagem parece particularmente
difícil numa sociedade que quer que acreditemos que não há dignidade na experiência da
paixão, que sentir profundamente é ser inferior; pois dentro do dualismo do pensamento
metafísico ocidental, idéias são sempre mais importantes que a linguagem. Para cicatrizar
a fissura da mente e do corpo, nós, povo marginalizado e oprimido, tentamos retomar nós
mesmos e nossas experiências na linguagem. Nós procuramos construir um lugar para a
intimidade. Incapazes de encontrar tal lugar no inglês padrão, nós criamos a fala rompida,
imperfeita, desregrada do vernáculo. Quando eu preciso dizer palavras que fazem mais do
que simplesmente refletir ou se dirigir à realidade dominante, eu falo o vernáculo negro.
Lá, nesse lugar, nós fazemos o inglês fazer o que nós queremos que ele faça. Nós
tomamos a língua do opressor e a viramos contra ela mesma. Nós fazemos das nossas
palavras uma fala contra-hegemônica,liberando-nos nós mesmos na linguagem. (HOOKS,
2008, pp. 863-4)
Este trecho, na verdade, é uma re-afirmação do que dissera anteriormente quando soubera
que a família real estava à procura de uma mulher para o príncipe desposar, mostrando que o
sentido de beleza ligado às mulheres de pele mais clara já era algo realmente cristalizado no
contexto em questão: “A sorte andou à roda e caiu sobre mim. Este lobolo estava destinado à
Khedzi, mulher esbelta, de pele clarinha como os homens gostam, desde o nascimento escolhida
para esposa natural da família real”. (CHIZIANE, 2003, p. 37, grifos meus.)
O texto de Toni Morrison também é bastante enfático nessa relação entre beleza e
tonalidade de pele. A história de O olho mais azul nos dá a conhecer Pecola Breedlove, uma menina
negra que sente diariamente o estresse provocado pelo racismo, além de todo desmantelamento de
sua estrutura familiar e do sentido de comunidade entre os próprios negros da narrativa. Um dos
conflitos da história se dá com a chegada de Maureen Peal, uma mulata clara, à escola em que
estudam Pecola e suas amigas, todas de tonalidade de pele mais escura. Desde o início, a diferença
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de tratamento dado à nova aluna é visível aos olhos das personagens, e Pecola passa a nutrir por
Maureen a mesma raiva que tinha das bonecas brancas de olhos azuis, que ganhava e destruía.
Maureen, diferentemente de Pecola e suas amigas, era encorajada pelos professores a estudar; não
levava rasteiras dos meninos negros quando passava nos corredores; os meninos brancos não lhe
atiravam pedras durante o recreio; e até as meninas negras moviam-se para o lado quando ela queria
usar a pia do banheiro. Todo cuidado era oferecido a Maureen.
A apresentação de Maureen, no sentido do texto como um todo, é parte da estratégia da
narrativa em evidenciar que, diferentemente do que se pensa sobre os EUA – onde, acredita-se, o
limite entre negros e brancos estaria claramente definido –, as marcas da negritude, se têm maior ou
menor intensidade, podem dar espaços para a negociação da identidade. Mais do que isso, na
verdade, importa perceber o estilhaçamento das relações sociais quando uma menina que sofre
racismo no seu dia-a-dia sente raiva de uma semelhante sua (em termos políticos), que também
sofre racismo, certamente, mas em muito menor grau. O anseio de escapar do racismo (por parte de
Maureen), ou de fazer com que todos sofram juntos (por parte de Pecola), ambas procurando de
alguma maneira se defender, é evidenciado pela narrativa, e mostra o nível de complexidade do
problema. É assim que, numa conversa das meninas sobre sexo, Maureen percebe, por um ato falho
de Pecola, que esta já havia sido abusada por seu pai. Sabendo da “vantagem social” que detinha
sobre as outras meninas por ser mais clara, ter mais dinheiro e uma família estruturada (no enredo, a
relação entre racismo e abuso sexual é muito clara, tanto por parte da desestruturação da família,
como pela ausência de qualquer nível de valorização e cuidados com as meninas mais escuras),
Maureen inicia provocações que terminam em briga. Ela não se faz de rogada na hora de atirar sua
empáfia contra as meninas mais escuras, dizendo-lhes: “Eu sou bonita! Vocês são feias! Pretas e
feias, pretas retintas. Eu sou bonita!” (MORRISON, 2003, p. 77; grifos da autora.)
Fica muito claro, nos casos demonstrados acima, o entrecruzamento das questões de raça e
gênero. E um último trecho do romance de Chiziane pode-nos confirmar essa ideia. Quando a
rainha está em busca da princesa, e ainda não encontrou Sarnau, vai conhecendo várias pretendentes
ao cargo. Uma delas, Eni, é rechaçada em função de sua miscigenação e de seu clareamento
(especialmente em relação aos lábios): “A Eni? Sim, é bonita como eu gosto, mas aqueles lábios
vermelhos de mulata e rapé fazem a boca tão nojenta que parece o cu do macaco, não, não quero.”
(CHIZIANE, 2003, p. 37.). A única cena, pois, em que a mulher mais clara não é tida como mais
bela (e em que a antiga ofensa que compara negros a macacos é invertida, sendo dirigida à pessoa
mais clara do contexto), é justamente quando a voz discursiva é de outra mulher negra.
Mas como e por que ocorre este processo de subvalorização da pessoa de pele escura? O
tema, com efeito, é de interesse das duas autoras, que o demonstram de maneiras diferentes. O
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contexto de Chiziane, ainda de presença colonial (enquanto política oficial), mostra o colonizador
martelando o discurso da sua superioridade de diversas formas. Por vezes, através da linguagem
verbal, explícita, direta. Outras vezes, pelos usos e atribuições de poder: “Iam a caminho de Angola,
terra de degredo, da cana, do cacau e do café. Alguns deles eram condenados por crimes graves;
outros por caprichos sem fundamento e mais outros simplesmente porque eram negros.”
(CHIZIANE, 2003, p. 116.) Pela recorrência de ações como a indicada nesse trecho, ficava muito
evidente para as pessoas que ser negro não era uma coisa positiva no local onde viviam, um efeito
psicológico difícil de ser combatido à medida que o tempo passa e as relações de poder se
sedimentam. Também é bastante representativa a situação em que um colono português interrompe
o solene momento de um velório (cristão) de um homem negro, dizendo que enterrassem “o preto”
onde quisessem, pois eram todos de “uma raça de feiticeiros do diabo” (CHIZIANE, 2003, p. 127).
No caso de Morrison, os apagamentos relacionados à negritude e a supervalorização do
indivíduo branco são claramente relacionados a um efeito positivo que têm sobre as pessoas negras
de pele mais clara (como também percebemos, por tabela, no caso de Chiziane). O olho mais azul
busca chocar, demonstrando a crueldade deste processo, e como a própria população vítima se torna
algoz nessa trama. Assim fica patente, por exemplo, na cena em que a sra. Breedlove rechaça sua
própria filha para cuidar da filha da patroa branca. Quando Pecola e suas amigas chegam para falar
com a sra. Breedlove na casa da patroa, dão de encontro com a menina branca, que, amedrontada
com a presença das meninas negras, pergunta por sua empregada:
Em seguida, ao avistar uma torta na janela – ainda aguardando a mãe –, Pecola aproxima-se
para ver se a mesma estava quente. Mas, ao ouvir a menina branca exclamar por sua mãe quando
esta aparece, toma um susto, e deixa a torta cair sobre si e sobre a menina, queimando a ambas. O
desfecho é realmente forte.
“Sua louca... o meu chão, sujeira... olhe o que você... saia daqui agora isso... maluca...” (...)
A garotinha de rosa começou a chorar. A sra. Breedlove virou-se para ela. “Não, meu bem,
não. Vem cá. Ah, meu Deus, olhe o seu vestido. Pare de chorar. A Polly vai trocar o seu
vestido.” (...)
“Pegue essa roupa e suma daqui para eu poder limpar essa sujeira.” [dirigindo-se a Pecola]
Pecola pegou a sacola da lavanderia, pesada com a roupa úmida, e saímos às pressas.
Enquanto Pecola punha a sacola no carrinho, ouvíamos a sra. Breedlove acalmando a
garotinha loira de rosa e fazendo-a parar de chorar.
“Quem eram elas, Polly?
“Não se preocupe. Ninguém, meu bem.”
“Você vai fazer outra torta?”
“Claro que vou.”
“Quem eram elas, Polly?”
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“Quietinha. Não se preocupe. Não eram ninguém” (MORRISON, 2003, p. 111.)
Os pretos gritavam para outros pretos como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-
se tirano. O homem alcança as altura cavalgando nos ombros dos outros. A galinha no
poleiro caga despreocupada para as que estão embaixo, ignorando que no próximo pôr do
sol a situação pode inverter-se. (CHIZIANE, 2003, p. 118.)
“Preta retinta. Preta retinta. Seu pai dorme pelado. Preta retinta, preta retinta, seu pai
dorme pelado. Preta retinta...”
Eles haviam improvisado um verso composto de dois insultos (...) O fato de também eles
serem negros e de seus respectivos pais terem hábitos igualmente descontraídos era
irrelevante. Era o desprezo que sentiam pela própria negritude que fez irromper o
primeiro insulto. (MORRISON, 2003, p. 69; grifo meu.)
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modelo. (SOUZA, 1983, pp. 33-4.)
O negro, por razões óbvias, estará sempre distante do Ideal de Ego que lhe é colocado. Mas
as impossibilidades de ser correspondido nas relações simbólicas dominantes que se estabelecem
não se esgotam, é claro, no aspecto físico. Este é apenas o mais evidente. Para encerrar por ora essa
complexa questão, vejamos apenas como as relações de poder – em que estão em jogo valores
arbitrados por este contexto que tem como premissa não exatamente excluir o negro, mas colocar
como verdade e horizonte todo patrimônio simbólico relacionado ao Ocidente (e que, por
consequência, vai excluir a maior parte dos outros). Se a identidade implica uma relação em que o
indivíduo tem uma consciência de si próprio, e também a consciência do outro, é importante
observar que esta consciência de si e do outro é atravessada por inúmeros fatores que interferem
neste processo, como já vimos. É neste ponto que a formação de uma identidade “plena” por parte
do indivíduo negro fica prejudicada, bem como todas as suas relações sociais e, sobretudo, a
compreensão sobre si próprio, já que seu desenvolvimento está restrito por uma hegemonia
simbólica que não o inclui. Vejamos Muniz Sodré:
... toda e qualquer identidade constroi-se a partir das referências concretas de um
território, de uma sedentarização. A identidade ocidental apoia-se num território dito
“europeu”, mas que é de fato uma sedentarização no império, propulsionada pelo capital.
E a consciência (branca, imperial) do homem ocidental defende com zelo e ciúme a sua
marcação própria de território – em todas as instâncias de fechamento dos espaços-
tempos produtivos – onde é preciso incluir a superfície do corpo. (...) A cor branca extrai
a sua hegemonia do fato de deixar presente na realidade inteira do indivíduo – seja ele
rico ou pobre – a possibilidade de exercício de uma dominação, já que as identidades
constroem-se no interior de relações de poder assimétricas. Ela tende a esconder, no
essencialismo absolutista da pele, as relações históricas de poder – tanto as situações
imperiais ou coloniais quanto as condições sociais para a hegemonia socioeconômica de
um grupo determinado, real ou imaginariamente vinculado à civilização europeia.
(SODRÉ, 1999, pp. 260-263, grifos meus.)
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admite, seu grande amor é Phati. Phati é a mais desejada e, não coincidentemente, é a mais clara das
esposas. Não poderíamos presumir, sem nenhuma base, que é apenas por Phati ter a pele mais clara
que é mais amada, evidentemente. Mas o texto de Chiziane e também o diálogo com outros textos,
como é o caso de O olho mais azul, nos fornecem pistas suficientes – que já vimos anteriormente –
para que compreendamos o peso da pele clara nas relações de amor e, sobretudo, no cuidado
despendido para cada mulher. Efeitos do colonialismo.
Gislene Aparecida dos Santos, pesquisadora da área de Filosofia pela UNESP e autora de
Mulher negra, homem branco, explica que o ponto da sexualidade é uma marca forte para a
oposição de “civilização” e “barbárie”. O seu pensamento segue uma linha próxima à da
psicanalista Neusa Santos Souza, demonstrando uma interessante tendência aos estudos das
relações e representações raciais. Gislene Aparecida também investe na dimensão simbólica do ser
para explicar as fragilidades sociais e psicológicas com as quais o indivíduo negro – especialmente
o do sexo feminino – precisa lidar diariamente, numa batalha que é com os outros, mas também
consigo próprio. A autora chama de “perda da harmonia interna” o grande temor de quem – como é
o caso das mulheres negras – tem limitadas as suas possibilidades de ser no mundo, uma constante
dificuldade de “representar aquilo que é vivido” (SANTOS, 2004, p. 68). O irrepresentável se torna
castração.
Deste modo, entramos também na seara que compreende as relações entre o Eu e o Outro,
tão importante para entendermos os jogos de poder que estão presentes em quaisquer épocas e
espaços, mas que têm uma configuração especial – e muito ligada à ideia de raça – nos contextos
coloniais. A presença de pessoas de cores, origens e culturas diferentes (que ora dicotomizamos
como brancos e não-brancos, pois no contexto colonial pode incluir, além de negros, também os
índios) cria um cenário em que o Outro (não-branco) é um “duplo” negativo do Eu, que funciona
como garantia da manutenção da identidade hegemônica do último, uma vez que, colocados frente a
frente, o Outro possibilita “dar segurança ao Eu contra aquilo que horroriza, não pode mais ser
entendido como duplo e é tomado como um outro diferente e estranho” (SANTOS, 2004, p. 68). A
estratégia é comumente usada em momentos de definição de identidades coletivas, e há autores que
citam como exemplo até mesmo a grande difusão dos shows de horrores em circos europeus do
século XIX que apresentavam mulheres barbadas, homens-elefante, e assim por diante. O
espectador precisa assistir à existência de um indivíduo fora do padrão para ter certeza de que ele,
espectador, está dentro dos padrões vigentes, hegemônicos etc.
No caso do contexto colonial, o universo da sexualidade será importante para definir as
diferenças (e justificar, como sempre, as desigualdades) através de uma distribuição de “papéis
sexuais”, por assim dizer, de acordo com a cor da pele das mulheres. E a escravidão, neste caso,
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será uma das principais responsáveis por possibilitar a sedimentação deste jogo. Sonia Maria
Giacomini, em Mulher e escrava, explica que a figura da escrava desde sempre se opôs à figura da
mulher branca, e que houve uma densa construção simbólica para explicar isso. As mulheres
brancas, segundo o levantamento de textos feito por Giacomini, eram descritas como “gordas,
nédias, flácidas” (GIACOMINI, 1988, p. 76), e as escravas como tendo “boas coxas, bons dentes,
peitos salientes” (idem, ibidem), criando, assim, uma antítese entre um corpo feito para a inércia, e
outro para a ação. A nediez e gordura das mulheres brancas marcam a função social das mulheres
brancas, tanto como a agilidade e elasticidade das mulheres negras indicam o seu lugar na
sociedade. Mas é importante, ainda, entender que inércia e ação não se limitam ao universo do
trabalho, mas a todas as potencialidades do corpo, dentre as quais se inclui a sexualidade. As
mulheres escravas, então, podem naturalmente tornar-se provedoras de satisfação sexual aos seus
senhores (os patriarcas e seus filhos) durante os séculos de escravidão pelas Américas, pois tinham
o corpo “disponível” para tal atividade.
A mulher negra/escrava torna-se objeto sexual do branco, ao mesmo tempo em que lhe é
negada a possibilidade de relações familiares. A dicotomia criada pode ser resumida na assertiva de
Giacomini: “Senhoras, mães, castas, puras e brancas contrapõem-se a escravas, infanticidas,
sensuais, lascivas, imorais, sem religião e negras” (GIACOMINI, 1988, p. 77). Não à toa o senso
comum colocava o desejo sexual da mulher negra como interminável, insaciável, ideia que ainda
hoje tem bastante espaço e legitimação em conversas entre homens, bem como em ditos populares
do tipo “a negra para transar, e a branca para casar”. Como se sabe, muito da miscigenação
brasileira e nas Américas se deu pela violência sexual, sem a formação de famílias, e ainda hoje, nos
EUA, por exemplo, o percentual de mulheres negras que se casam é muito menor do que o
percentual de mulheres brancas (cf. FALUDI, 2008, p. 31). Os reflexos disto estão entre nós até
hoje, porque perdura a memória de tais relações. E é por isso que Gislene, em concordância com
Giacomini e retomando o conflito entre o Eu e o Outro, lembra que, nas relações sociais pautadas
pelo racismo colonialista, ou herdeiras do mesmo, seja em África, seja na diáspora, a
mulher negra aparece, por um lado, como ícone de desarmonia e, por outro, como forma
de manter a pureza da mulher branca (proteger sua pureza sexual).
(...)
A mulher negra, mesmo olhando para fora e, de certa forma excluída do círculo de
carinho, garantiria a pureza da mulher branca. (SANTOS, 2004, p. 70)
Nos dois romances em questão é possível assistir aos efeitos da construção que ora
levantamos. No caso de África, como já vimos, tem-se Sarnau, mulher preta, absolutamente
desvalorizada frente à sua rival Phati, mestiça e de pele mais clara. E no romance de Toni Morrison,
tudo ocorre de forma muito parecida. Em função dos diferentes estilos das autoras, novamente
vamos recorrer a um excerto tirado de Morrison para ilustrar as colocações de Santos e Giacomini,
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mas frisando que há total relação com o que Chiziane nos mostra em Balada de amor ao vento,
embora a última economize nas descrições e expresse muito mais pelos silêncios e interstícios de
seu texto. Em O olho mais azul, as mulheres pardas “travam batalha” contra sua própria negritude,
transformando o corpo e a sexualidade em um espaço de interdição ao sexo, que não pode ocorrer
com completa liberdade, sob pena de serem tais mulheres relacionadas à sua origem africana. Para
se aproximarem do universo das mulheres brancas, tudo deve ocorrer com mais recato:
Contraem o traseiro com medo de um balanço demasiado livre; quando usam batom,
nunca cobrem a boa inteira, com medo de que os lábios fiquem grossos demais, e
preocupam-se, preocupam-se, preocupam-se com as pontas dos cabelos. (...)
[O seu marido] deve penetrá-la sub-repticiamente, erguendo-lhe a camisola só até o
umbigo. Quando faz amor, deve sustentar o próprio peso nos cotovelos, em princípio para
não machucar os seios dela, mas na verdade para que ela não tenha que tocá-lo nem senti-
lo muito. (MORRISON, 2003, pp. 87-8)
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O próprio processo de surgimento das literaturas africanas de língua portuguesa – e
também a formação dos primeiros cursos, centros de estudos e pesquisadores do tema em África,
Portugal e Brasil – fez as literaturas africanas lusófonas, tradicionalmente relacionadas à literatura
portuguesa, se abrirem ao diálogo também com a literatura brasileira. Hoje, entretanto, sob os
auspícios das teorias pós-coloniais, todo tipo de ponte entre África e diáspora africana como um
todo torna-se mais valioso, possível e desejável. Cada vez mais, as literaturas africanas podem
servir de fonte de análise para pensar as literaturas das Américas, os textos africanos de outras
línguas, e também a realidade social dos países produtores de tais textos. É, pois, um caminho para
descobrirmos que as relações raciais guardam fortes semelhanças, seja na África, seja em países
diferentes da diáspora, como Brasil e EUA. Havendo diferença na superfície, é preciso reconhecer
as semelhanças que advêm de um mesmo profundo e antigo processo que ainda não se esgotou.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Metamorfoses 9. Lisboa; Rio de Janeiro: Editorial Caminho e Cátedra Jorge de Sena/UFRJ, 2008.
CHIZIANE, Paulina. Balada do amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: uma introdução ao estudo da mulher negra no Brasil.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
HOOKS, Bell. “Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens”. Tradução de Carlianne
Paiva Gonçalves, Joana Plaza Pinto e Paula de Almeida Silva. Estudos feministas. Florianópolis,
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MORRISON, Toni. The bluest eye. New York: Washington Square Press, 1972.
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SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 98-110, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 98-110, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
TÍTULO: AMAZÔNIA: VOZES EM NEGRITUDE
Title: Amazon: voices from the negro people
RESUMO:
Todas as vezes que falamos da formação cultural da Amazônia, vêm-nos à mente os traços da cultura indígena
e/ou cabocla. Pouco se tem explorado as afrofonias advindas do literário. Assim é que neste ensaio se
pretende mostrar as vozes da negritude nos poemas de Batuque, de Bruno de Menezes (1989/1963).
ABSTRACT:
Every time we discuss the cultural background in the Amazon, we envision in our mind the traces of the
indigenous and/or cabocla culture. Little have we delved into the afro-phonics from the literature. Therefore,
in this paper, it is intended to show the voices from the Negro People in the poems from Batuque, by Bruno
de Menezes (1989/1963).
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 111-117, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
ver chover no molhado. Mas chover no molhado, numa região atravessada pelas águas,
pode tornar-se, antes de um problema, uma solução.
* * *
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brasileira, sem citar este livro, é reforçar uma lastimável lacuna. E, mais que isso, é sonegar
uma expressão significativa da geografia poética brasileira.
Como vemos, se Bruno não alcançou o destaque que deveria, isso provavelmente se
deve à ausência de uma política cultural que nos tire, os amazônidas, do isolamento.
Se Batuque apresenta algo que inicialmente pode parecer piegas ao leitor de hoje (o
culto aos heróis da História dos vencedores: Princesa Isabel, Duque de Caxias, Visconde de
Rio Branco, ou, ainda, uma adjetivação desmedida: “ardor cívico”, “arrojo máximo”), é um
livro que se destaca como canal de uma voz indignada que brada – “farol e espelho”, no
melhor estilo preconizado por Sartre –, com conhecimento de causa, contra a opressão
imposta aos negros que sofreram (e infelizmente sofrem ainda) “a tragédia da raça”.
As habilidades verbais desse “poeta da lua” revelam uma poesia que evola, diante
do leitor, assonâncias, aliterações, entonação em sons nasais, bem como, em termos
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temáticos, faz a defesa da religião afro-brasileira e dos valores étnicos dos negros. Tudo
isso faz de Batuque um livro sui generis. Não é demais lembrar Édson Coelho (O Liberal,
25/10/96), também poeta, conterrâneo de Bruno, que se refere ao autor de Bailado Lunar
como “mestre das palavras percussivas”: “... as ancas que vão num remanso rolando/ no
tombo do banjo...”
Mas, ao que tudo indica, o que dá um tom que difere Batuque dos demais livros de
poemas negritudinistas brasileiros é a sua “arquitetura” amazônica. Evidenciam-se, nos
poemas desta antologia, o perfume das ervas da mata, a liquidez das águas barracentas da
bacia amazônica, o malabarismo dos “corpos lisos lustrosos” dos negros que exalam
eroticidade, pessoas que têm um pé na Amazônia, mas não cortaram o cordão umbilical que
os atava à África-mãe. Após este livro, torna-se difícil, pelo menos entre nós, a exploração
da temática da negritude, mantendo-se o mesmo tom de expressividade.
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Na esteira do enunciado, tanto os versos de Bruno de Menezes, quanto os dos poetas
africanos transformam as palavras em “punhais” que se erguem para gritar denúncias e
indignações. São vozes de África, como ouvimos no poema “Epopéia”, de Francisco José
Tenreiro: “Não mais a África – da vida livre – e dos gritos agudos de azagaia! (...) Foste
homem perdido/ em terras estranhas. // No Brasil/ ganhaste calos nas costas/ nas vastas
plantações de café” (TENREIRO, In: ANDRADE,1975, p.137-8). E também vozes do
Brasil: “Ó negro arrancado do torrão congolense/ (...) Foste quem plantou partidas de cana/
Na terra da América/ que o engenho ainda hoje mastiga rangendo” (MENEZES, 1993, v. 1,
p. 245).
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Nos antológicos versos do poema “Batuque”, Bruno de Menezes, entre aliterações e
sinestesias, traz à cena o ritual do batuque, assinalado pelo sensualismo e pela denúncia: “E
o batuque batendo e a cantiga cantando/ lembram na noite morna a tragédia da raça/ (...) O
batuque rebate rufando banzeiros/ As carnes retremem na dança carnal!... ” (MENEZES,
1993, p.216).
Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Mário Pinto de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais.
Lisboa: Ed. Sá da Costa, 1975. v. 1.
COELHO, Édson. “Bruno de Menezes, mestre das palavras percussivas”. In: “Caderno Cartaz”, O
Liberal. Belém, 25/10/1996.
FARES, Josse & NUNES, Paulo. Transmares: vozes em diálogo (ensaios sobre literatura
portuguesa, literatura africana de expressão portuguesa e outras interfaces). Belém: EDUNAMA,
2008.
JACOB, Célia (org.). Asas da Palavra, revista de Graduação do curso de Letras da UNAMA,
vol.10. Belém: EDUNAMA, 2006. v. 5 e v. 10.
JORGE, Sílvio Renato. “José Craveirinha: e a busca da palavra moçambicana”. In: SEPÚLVEDA,
Maria do Carmo & SALGADO, Maria Teresa (org.). África e Brasil: letras em laços 1. São Caetano
do Sul: Yendis, 2006.
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MENEZES, Bruno. Obras completas de Bruno de Menezes. Belém: Secretaria de Cultura do
Pará,1993. v. 1 (Obra poética).
SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o Racismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1965.
VERANI, Dalva. “Agostinho Neto: o lugar da poesia em tempo de luta”. In: SEPÚLVEDA, Maria
do Carmo & SALGADO, Maria Teresa (org.). África e Brasil: letras em laços 1. São Caetano do
Sul: Yendis, 2006.
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TÌTULO: UANHENGA XITU: MUNDOS EM CONFRONTO DE UMA
TERRA CHAMADA ANGOLA
Rita Chaves
Doutora, Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
USP
RESUMO:
Em Uanhenga Xitu o exercício literário é mais uma maneira de apresentar Angola, território que ajudou a
transformar em país. A criatividade no uso da língua, o compromisso com a realidade que o cerca e a
convicção de que é preciso transformá-la, sem dúvida, projetam-se em seus textos e ressoam em suas
narrativas: Manana, Maka na sanzala, Os sobreviventes da máquina colonial depõem, O ministro e Mestre
Tamoda. Ao estabelecer uma ponte com alguns de seus predecessores, como é o caso de António de Assis
Júnior, investe na consolidação de uma tradição literária que se articula com a idéia de nacionalidade que
defende.
ABSTRACT:
In Uanhenga Xitu the literary exercise is one more way of presenting Angola, a territory which he helped to
transform in a country. The creativity in the use of the language, the commitment with the reality that
surrounds him, and the conviction that it is necessary to transform it, without a doubt, are projected in his
texts and resound in his narratives: Manana, Maka na sanzala, Os sobreviventes da máquina colonial
depõem, O ministro e Mestre Tamoda. When establishing a bridge with some of his predecessors, as it is
the case of António de Assis Júnior, he invests in the consolidation of a literary tradition that articulates
with the idea of nationality he defends.
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O compromisso com a realidade que o cerca e a sua convicção de que é preciso
transformá-la, sem dúvida, projetam-se em seus textos, repercutindo em sua fatura. Em
cada um deles temos reiterada a convicção de um autor que se demite aprioristicamente
de polêmicas que envolvam a discussão entre o projeto voltado para uma literatura
nacional e o desejo de pertencer à linhagem dos chamados universais. Sua posição é
inequívoca: conhecer e dar a conhecer Angola evidenciam-se como propostas definidoras
das muitas narrativas que nos tem oferecido. Diante de seu compromisso com a terra e
suas gentes, ele não hesita, sequer, em desqualificar o seu próprio trabalho no que diz
respeito à dimensão literária que deveria apresentar. É ele mesmo, cioso de seu projeto,
quem explicita os caminhos da desmitificação, ao afirmar:
Literatura fazem os homens possuídos de muita bagagem acadêmica, isto é,
segundo a minha maneira de ver, são os homens que frequentaram liceus e
universidades, que assimilaram muita matéria no campo científico, econômico e
social, que têm uma visão global e ampla das idéias da Humanidade. Ao passo
que nós, que o nosso liceu foi no arranjo da estrada, carregar sacos, apanhar
algodão, rachar lenhas, e o pagamento bofetada e pontapé no rabo, pela máquina
colonial, e a Universidade foi a cadeia, compreendendo-se, portanto, que o que
mais podemos oferecer aos leitores são as imagens que recolhemos durante
esses anos de observação directa dos factos vividos na sanzala, sem preocupar-
nos com rendilhados e o estilo de bom português de verdadeiros escritores.
(XITU, 1980, p. 13)
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Desse modo, e se o terreno era o da literatura, a questão da língua não podia deixar de
merecer atenção.
O nosso autor, como tantos do continente africano, viveu, certamente, o drama da
escolha, ou antes, da impossibilidade da escolha. Em nome mesmo da unidade, os
escritores africanos do século XX, e os de Angola entre eles, viram-se confrontados com
o dilema de escrever na língua daqueles que haviam semeado a cisão. Ou seja, não seria
sequer conveniente fugir da língua portuguesa. Sua proposta, no entanto, não poderia
dobrar-se às linhas da submissão a um código, também ele instrumento de dominação.
Para Uanhenga Xitu, um dos procedimentos a adotar era o afastamento da norma culta,
numa operação que traduz a busca de ruptura com um padrão linguístico que no
continente africano era e ainda é, muitas vezes, visto como um mecanismo de dominação.
E a História credencia, com firmeza, essa desconfiança que concebe a língua europeia
como uma espécie de armadilha contra a qual é necessário precaver-se.
Não se encerra aí, contudo, a sua proposta. Em seu caso, a contraface da ruptura é
o desejo muito claro de um encontro com aqueles dos quais e aos quais procura falar, o
que nos leva a perceber uma nítida preocupação didática. É essa vontade grande de ser
compreendido que salta das palavras presentes na Introdução de Maka na sanzala:
Quando me lembro de estampar uma história ou um conto no papel, o
sentimento de que me rodeio é convencer-me de que estou diante de ouvintes
que aguardam com entusiasmo o momento de me escutar e me julgar.
Então arranjo uma posição cômoda para melhor narrar a história, sem atender a
que, no meio da minha gente, há alguns auditores que me podem influenciar,
inibindo-me de continuar a narração. (XITU, 1979, p.9)
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Como sinais dessa coerência temos outros indicadores. Um deles é a escolha do
espaço que, em seus textos, volta-se para além das áreas urbanas. Distanciando-se da
maioria dos autores angolanos, sua geografia preferencial está fora de Luanda, sobretudo
da cidade de asfalto. O musseque, quando surge, é uma espécie de lugar evocativo das
tradições africanas e de resistência ao ritmo das mudanças. De certo modo, o musseque
que ali vemos é uma extensão da sanzala inserida no terreno da cidade sobre a qual
muitos personagens deitam seu olhar desconfiado. Seu chão está principalmente nas
zonas rurais, longe das cidades, porém é muito interessante observar que nesse
afastamento não se ensaia a busca de um essencialismo. Não se nota qualquer movimento
empenhado em aí localizar a pureza de um mundo ainda não maculado pelas trocas
culturais que o colonialismo acabou por impor aos povos africanos.
De uma obra tonificada pela pré-definição de certas linhas, poderíamos esperar
uma dose grande de homogeneidade, todavia a leitura de seu conjunto deixa, antes,
transparecer a diversidade de problemas abordados. São muitas as questões, são muitas as
perspectivas escolhidas pelos narradores, são muitos os cenários por onde transitam os
também muitos personagens carregados de sentido na condução dos enredos. E todos
esses aspectos lá estão mediados por um especial tratamento conferido à língua, que é,
indiscutivelmente, um dos vetores da obra de Uanhenga Xitu. No seu modo de lidar com
ela, revelam-se traços de uma criatividade apta a espelhar o caráter de movimento que
seu trabalho comporta.
Se na escolha do espaço rural, Uanhenga Xitu se demarca da linha predominante
na Literatura Angolana, a composição de um universo mesclado, como o que vemos em
seus textos, o faz muito próximo de seus companheiros de escrita. O campo por onde
circulam seus personagens nada tem a ver com o paraíso imaginado, onde as coisas
funcionam segundo as regras da harmonia e da felicidade. A engrenagem colonial não
poupou as zonas afastadas e no ambiente apresentado assomam os sinais das
contradições, dos impasses, das iniquidades que povoam o mundo dos homens. Nesse
aspecto, textos como Maka na sanzala e Manana estruturam-se como discursos sinuosos,
no qual se combinam as referências do real e os elementos que asseguram o processo de
ficcionalização que deve seduzir o leitor.
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Da sua opção resulta também a tentativa de recuperar, ainda que só no imaginário,
a situação de interlocução que a tradição oral propicia. É essa uma de suas matrizes e daí
o gosto pela articulação entre a oralidade e os movimentos que a escrita reivindica. Como
decorrência temos muitas vezes o fio narrativo entrecortado, como se a voz do narrador
perseguisse o ritmo sincopado da fala.
Presente nas várias ocasiões em que se dirige ao público na forma de prefácios e
dedicatórias, o autor faz questão de esclarecer que é movido pela vontade de captar a
língua que a sua gente usa, recuperando-a em seus volteios e desvios, tornando-a um
instrumento de comunicação e expressão de um mundo pautado pela mudança. A
interferência do quimbundo cumpre, pois, o papel de assegurar não o desejo de retroceder
no tempo à procura de uma origem mitificada, mas a consciência da mesclagem que o
processo histórico impôs. Tal consciência barra o caminho às idealizações, permitindo,
sem dúvida, que aflorem os sintomas de uma sociedade que se confronta com um
universo de misturas, onde as fronteiras são difusas.
Nesse aspecto, Uanhenga Xitu estabelece uma ponte com alguns de seus
predecessores como é o caso de António de Assis Jr., autor de um romance muito
significativo na história do gênero em Angola. Em O segredo da morta – romance de
costumes angolenses, publicado em livro nos anos 1930, temos um painel da dinâmica
sócio-econômico-cultural da pequena burguesia que, no fim do século XIX, se formava
na região de Icolo e Bengo. A abordagem dos problemas, dos dilemas e das contradições
de certos segmentos permite que se tenha uma ideia de grupos sociais importantes na
composição da identidade cultural que se processava em Angola ocupada pelo
portugueses. A estrutura híbrida desse terreno é uma das linhas de força da narrativa de
Assis Jr., questão retomada por Uanhenga Xitu que também centra seu olhar nos mundos
multifacetados que se organizam no confronto de diferentes cosmologias. O que é curioso
é que sua adesão ao mundo dos subalternizados não determina a oclusão de modos de ver
o problema da justiça, do direito, do equilíbrio entre os homens.
O choque entre mundos diversos pode ser, por exemplo, encontrado em textos
como Manana e Os sobreviventes da máquina colonial depõem, duas narrativas em que a
visada crítica não destaca o par colonizado/colonizador. O alvo é sempre a forma
corrompida de ver o mundo, mas ela, embora esteja conotada com a opressão colonial,
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não é privilégio do que vem de fora. Em Manana, o protagonista é uma espécie de anti-
herói que carrega consigo as marcas de um comportamento malandro que não vacila
diante das trapaças que precisa exercitar para atingir seus objetivos, especialmente a
conquista de uma jovem a quem esconde o fato de já ser casado. Marido infiel que
exercita o jogo do conquistador, Felito Bata da Silva traz em seu comportamento os
traços da alienação de quem vive perdido entre ordens diferentes e faz da sobrevivência –
com as vantagens que nela se abrigam – o seu deus maior.
Em seu percurso inscrevem-se os passos do assimilado que não alcançou a
conscientização que seria vivamente saudada pelos nacionalistas da já citada "Geração de
50". Desconsiderando a validade de um projeto coletivo, Felito protagoniza ações
individuais visando tão-somente ao seu bem-estar e, para tal, não hesita em jogar com as
regras, em torcer princípios, em tentar conciliar o que seriam os paradigmas da tradição e
os da modernidade. Em seu projetinho pessoal, tudo se pode encaixar, como muito bem
apontou Fernando Martinho:
Felito não está interessado em mudar o mundo; aceita, ou antes, para sobreviver,
para se mover na enganadora liberdade por que optou, finge aceitar as estruturas
sociais vigentes - é um conformista, e com o seu conformismo consegue a
consideração dos velhos, dos representantes do mundo tradicional, também eles
vítimas da alienação que o colonialismo a todos estende. (MARTINHO, 1979, p.
142)
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claramente os dados da realidade a ser ficcionalizada para ser melhor compreendida; daí
a relevância da língua literária que, bem trabalhada, permite o jogo de espelhos entre o
real e a fantasia, alimentando fortemente o caráter ambíguo da literatura, isto é, uma de
suas características fundantes. Em se tratando do continente africano, esse jogo se renova
e intensifca, como afirma Almiro Lobo :
Esta relação próxima entre o texto e o real engendrado é devedora também da
faceta híbrida desse discurso e do carácter 'mestiço' do universo cultural africano
do período pós- Conferência de Berlim. A língua literária passa a constituir
deste modo, um espaço multiforme, propulsor e depositário desse hibridismo.
Híbrida enquanto marca de um processo de fixação da memória individual e
colectiva - a escrita - , e porque subsidiária do resgate da oralidade da sociedade
tradicional africana. Multiforme porque espaço de interacção e rejeição de
mundividências que cada língua contém, palco de transferências e adaptações de
níveis conceituais diferentes, cenário de convívio de línguas, linguagens e
tempos diversos, lugar de construção de um discurso ambíguo. (LOBO, 2002, p.
23)
As colocações de Almiro Lobo, que estão num texto sobre Assis Jr. e o seu O
segredo da morta – romance de costumes angolenses, ajudam-nos a compreender a
complexidade da obra de Uanhenga Xitu, o seu modo de apreender realidades em
movimento, a sua forma de construir cenas em que diversos tempos culturais se
confrontam e os atos são vivenciados por personagens às vezes um tanto aturdidos pelos
impasses que essas mesclagens geram.
Num mundo tão misturado, fica difícil o estabelecimento de juízos pré-definidos,
isto é, perde o sentido a clássica oposição entre colonizados e colonizadores. Atestar a
inviabilidade do sistema colonial é um compromisso verticalmente assumido, mas o gesto
implica ir além da acusação aos estrangeiros. Ceder a voz a um português que se recusa a
entrar no jogo que a metrópole sustenta pode ser uma atitude produtiva, como se dá em
Os sobreviventes da máquina colonial depõem, em que o personagem principal é José
Benedito dos Anjos das Quintas e Celeiros do Rei, jovem nascido em Portugal que decide
emigrar para a África, levando na bagagem o desejo de aventura com que muitos
desembarcavam nos portos do continente:
Ir à África, conhecer outros mundos, viver a natureza na sua pureza. Neste
Portugal antes dos Romanos, Árabes e outros povos que aqui passaram e
viveram nada mais de novo pode oferecer à minha visão. Abandonarei os
estudos e sei que darei um golpe duro aos meus pais.
(XITU, 1980, p.39)
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Se a decisão do deslocamento para aquelas terras distantes que o mobiliza parece
semelhante à de milhares e milhares de outros, o itinerário do nosso personagem vai logo
surpreender. O encanto misterioso "das árvores de dimensões e comprimentos
descomunais, do Zoo da Gorongosa, dos matagais que nunca viram o sol, dos filões de
diamantes e de ouro" ( XITU, 1980, p. 38) será substituído pela experiência concreta de
um universo em que as relações sociais se pautam pela opressão e pelo egoísmo.
Diferentemente daqueles que se empenham em caçar vitórias, aproveitando-se das
extraordinárias facilidades inerentes à posição de colono, José das Quintas e Celeiros do
Rei entra em choque com as estruturas dominantes e em seu roteiro conturbado fica
patente a verdadeira natureza do projeto que mantém a África ocupada.
Se em Maka na sanzala, a grande oposição se verifica entre diferentes grupos de
africanos e em Manana temos o conflito entre tradição e modernidade sob a ótica do
assimilado, em Os sobreviventes da máquina colonial depõem estamos diante de um
personagem que rompe com o que seria o seu destino de privilegiado e elabora um
discurso desvelador das iniquidades desse mundo que o discurso colonial insiste em
prolongar e enaltecer. Mais uma vez, estamos diante de um personagem forte, cuja tônica
reside na sua capacidade de surpreender aqueles que seriam os seus pares na tarefa de
civilizar as "terras viciosas". Sua insistência em compreender e até partilhar certas regras
do universo tradicional africano não pode sequer ser tolerada pelos outros colonos que
para ali vieram "fazer a África".
Curiosamente, a narrativa reúne alguns dos muitos elementos que caracterizam os
textos que compõem a chamada literatura colonial. O tema da viagem e a escolha de um
protagonista branco e português seriam algumas dessas marcas. A elas se aliam as
indicações da África como um território de paisagens excepcionais e como um destino de
exceção, como se pode ver na inquietação da mãe de José: “Na véspera da viagem a mãe do José
das Quintas não dormiu. Para a África iam os condenados de vários crimes ou os que tentavam a
sorte de novos-ricos ou os governantes e os que fossem destacados em missão de serviço .”
(XITU, 1980, p. 41)
Peculiar em sua decisão, José vai-se demarcar da maioria de personagens da
literatura colonial, ao estabelecer uma forte ruptura em relação àquele que seria o seu
grupo natural. O interesse amoroso por uma moça negra e a decisão de cumprir os rituais
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próprios da família a que se pretende ligar vão constituir uma fonte de conflitos e definir
a sua marginalização. Tais fatos, entretanto, cumprem a tarefa de expor a hipocrisia do
discurso colonial, na medida em que revelam a dose de racismo que está na base das
relações entre colonos e colonizados. O desprezo pelo patrimônio cultural do africano, o
total desrespeito pela diferença, a extraordinária taxa de violência refletida na vigência do
trabalho contratado – essa nova forma de escravidão –, tudo isso ganha energia quando
denunciado pela voz de quem veio da metrópole e dela deveria sentir-se representante.
Na surpresa que o recém-chegado experimenta diante da covardia atualizada nas
mais diversas formas de exploração, o narrador projeta a inviabilidade da ordem social
que o colonialismo impõe. Disponível para compreender o outro, José, aos olhos dos
colonos, se torna incômodo e, na rede de conflitos que se sucedem, o leitor vai
percebendo a impossibilidade de um sistema, cujo fracasso está em sua própria raiz. Ao
expor a falta de lógica do código que rege as relações entre os homens, a narrativa
convida-nos a refletir sobre a necessidade de transformação. Longe de confirmar os
estereótipos sobre os quais se constrói a ideia de superioridade do homem branco e da
grandeza da civilização ocidental, o desenvolvimento do enredo vem, com firmeza,
reiterar a afirmação de Todorov de que "Em cada país, o que se chama de sabedoria nada
mais é que a loucura que lhe é própria.” (TODOROV, 1993, p. 29).
Ao colocar os diferentes mundos em confronto, Uanhenga Xitu procura expor o
que há de negativo em cada um deles, oferecendo interessantes painéis dos vários
universos culturais com que se teria de compor o tecido sócio-cultural de uma Angola
independente. A abordagem de situações em que se projetam os movimentos de pessoas e
grupos de um universo partido constitui uma matriz de revelações de um mundo que
precisa ser encarado de frente para que se possa construir a sua própria mudança. A
originalidade dos procedimentos adotados traduz o outro compromisso: o compromisso
com a invenção de que a arte se nutre para melhor cumprir aquilo que entendemos como
sua função social, tarefa a que o escritor nunca quis renunciar, atualizando, a cada tempo,
o amor por Angola a que nos referimos no início desse texto.
Como não é raro no panorama dos países africanos de língua portuguesa, a
trajetória do escritor mistura-se às atividades do cidadão que tem na atuação política um
modo de se inserir na realidade tão complexa de sua gente. Conhecido pelos livros que
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publicou, Uanhenga Xitu (ou Agostinho Mendes de Carvalho) é também reconhecido
pelas funções que ocupou na vida pública de Angola após a independência, bem como
pelo pesado tributo que pagou – em anos e anos de prisão no tenebroso Tarrafal de
Santiago – ao compromisso com a luta pelo fim do sistema colonial. Ministro, deputado,
escritor, ele exercitou a sua cidadania, expondo-se a erros e acertos que marcam a vida
daqueles que participam vivamente de um processo histórico pautado por conturbadas
viragens. Dessa conturbada história de Angola, ele vivenciou momentos decisivos e,
mergulhado no chão de sua terra, converteu em ficção impressionantes experiências
vividas ao longo dos tempos. Assim se fez um “mais-velho”, a quem os leitores das
literaturas de língua portuguesa querem continuar a ouvir com atenção e respeito.
NOTAS
* Texto publicado no livro O Homem da Quijinga – livro em homengam a Uanhenga Xitu, pelo editorial
Chá de Caxinde, em Luanda.
REFERÊNCIAS:
ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. Luanda: UEA, s/d.
LOBO, Almiro. “O segredo da morta – multiplicidade discursiva e hibridismo cultural”.
In: PROLER, n.2. Maputo, jan./fev 2002.
MARTINHO, Fernando. “Críticas ao livro Manana.” In: XITU, Uanhenga. Maka na
sanzala. Lisboa: Edições 70, 1979.
TODOROV, Tzevetan. Nós e os outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993
XITU, Uanhenga. Maka na sanzala. Lisboa: Edições 70, 1979.
__________ . Manana. Lisboa: Edições 70, 1978.
___________. Os sobreviventes da máquina colonial depõem. Lisboa: Edições 70, 1980.
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ENTRE LUZ E SOMBRA
A sombra desliza
por detrás dos vimes
celebra-se a hora
os mortos abandonam os vivos
para viver em paz
por entre as veias finas da terra.
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SE EU FOSSE MULHER...
Se eu fosse mulher, não aceitaria flores pelo dia 8 de Março. Ia querer flores todos os
dias. Flores que não custam dinheiro nenhum. Ia pedir a flor que vem dentro duma
palavra de afecto, dum sorriso franco, de um toque de carinho, a flor que desabrocha
dentro da descoberta comum de um novo programa de gestão doméstica, a flor da
reconciliação fora da cama, a flor do reconhecimento pelo trabalho de muitos anos em
prol da família, do Estado, da empresa, da comunidade e, sobretudo, ia exigir a flor do
diálogo permanente na base do respeito mútuo.
Há cem anos que celebramos o 8 de Março, pela igualdade dos géneros. Nós, os
homens, abrimos mão de parte do nosso domínio machista sobre os bens comuns e as
relações sociais. Hoje, as mulheres já votam, são chefes de Estado (a mamã Ellen
Johnson-Sirleaf é a nossa primeira), são deputadas, dirigem empresas, pilotam aviões e
naves espaciais e até já contamos com algumas mulheres milionárias. A norma não é
mais a mulher à sombra do tecto doméstico, mas a mulher em busca do seu lugar ao sol.
No entanto, os estudos da ONU e dos Estados Membros apontam ainda desigualdades
inadmissíveis para a nossa era de cidadãos do Cosmos e uma continuidade, parcamente
reduzida, da violência multifacetada do homem contra a mulher.
Neste mês dedicado à mulher, o exemplo de Wangari Maathai vem reavivar as nossas
consciências. Hoje em dia, é arrepiante ouvir relatos das nossas mulheres sobre a
exigência de favores sexuais em troca do emprego ou de benefícios e condições
inerentes ao exercício da profissão naturalmente previstos no estatuto do posto de
trabalho. É uma epidemia social que as mulheres ou as organizações femininas, como a
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 130-131, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
OMA, sozinhas, não conseguirão resolver. Maria Fernanda Carvalho Francisco,
Secretária Adjunta da União Nacional de Trabalhadores Angolanos – UNTA, defende,
em entrevista publicada no sítio /www.meusalario.org/ que “o aumento de mulheres nos
sindicatos é uma arma para combater violações dos direitos das mulheres no local de
trabalho, principalmente casos de assédio sexual (…)” São dela estas palavras: “O
assédio sexual em Angola é um assunto muito delicado pois não pode ser mensurável.”
Segundo aquela dirigente sindical, “a nossa lei não prevê pena legal contra o assédio. E
por isso mesmo as mulheres têm dificuldade de apresentarem queixa”.
O assédio sexual no trabalho é, por isso, um facto juridicamente relevante, que pode
estar subjacente à Lei de Probidade Administrativa, mas que se silencia entre as quatro
paredes dos gabinetes e que tem levado certas práticas de determinados „bosses‟ do
sector público e do privado a caírem, não já no domínio da corrupção, mas no da
perversão (sexual). Facto esse que, pela sua abrangência e ameaça ao desenvolvimento
nacional, cai no âmbito da exigência da “tolerância zero” preconizada pelo nosso Mais
Alto Mandatário.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 130-131, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
DA REJEIÇÃO À AFIRMAÇÃO
Chó do Guri
Era ainda uma menina de nove anos, quando senti o sul a escorregar-se debaixo dos pés.
Logo percebi a necessidade de encontrar um norte. Flutuava como um objecto inflável
na busca de coordenadas. Nessa idade comecei a viver no mundo da ruindade que
miúdos e graúdos me ofereciam. Não tinha amigos ou as amizades eram efémeras. O
desalento e a dúvida deram-me momentos de angústia. Por obrigação, lia partes de
livros que me emprestava a professora de língua portuguesa na escola preparatória,
Dona Luísa de Gusmão. O texto lido era analisado na aula seguinte, para que
pudéssemos compreender qual a função da escrita e a necessidade da leitura, além da
chamada moral de cada história, e assim me vi envolvida na leitura e na escrita. Entre
outras coisas, era o que nos dizia a professora: ler, ler bastante, não só para enriquecer o
vocabulário, mas para ter maior discernimento. Cedo compreendi como se tornava
importante esta forma de comunicação e informação de que o ser humano muito precisa
para abrir horizontes. Devido a alguns factores de ética social, fui-me transformando
numa pessoa introvertida. A escrita e a leitura tornaram-se uma das formas para o
reencontro do meu orgulho escamoteado. Descobri uma forma de poder expressar o que
pensava sem ter de me sentir agastada com os dizeres e gestos enfadonhos dos outros
meninos; mas sempre atenta aos males que aconteciam aos outros. Durante algum
tempo, sofri com as brincadeiras de mau gosto dos outros meninos, quiçá influenciados
pelos comportamentos das professoras. Uns copiavam os outros e também vinham fazer
troça de mim, que nunca reagi aos insultos. Se reagia, era chorando e assim acontecia
com frequência. Havia alturas em que não saía da sala de aulas durante os intervalos e
nestes períodos rabiscava os meus sentimentos nas folhas de papel dos meus cadernos.
Nelas eu podia contar o que acontecia e me preocupava. Elas, sim! Não iam divulgar o
que eu desabafava. Depois de preencher a folha, arrancava-a do caderno, dobrava-a e
guardava debaixo do meu colchão, para voltar a ler depois que a agonia passasse. Esta
forma de proceder foi-se tornando um hábito. Tinha de lutar contra os preconceitos para
ser aceita pelos meus colegas de escola e, sem saber, a escrita passou a ser uma forma
de terapia. Certo dia, antes de terminar a aula, a professora entregava as provas que
fizéramos na semana anterior, e o meu coração começou a bater forte ante a exaltação
dos meninos que obtinham notas positivas, impondo-se em mim a dúvida. Uns e outros
esticavam o pescoço a tentar espreitar a nota de cada um. À medida que ela chamava os
alunos, minha ansiedade crescia e, para meu desconforto, a certa altura, pareceu-me vê-
la de mãos vazias. Os colegas viraram-se para mim, com semblante de insinuação
maldosa, e as lágrimas invadiram-me os olhos. Confesso que pensei que a minha prova
tinha-se perdido ou que a professora fosse dizer que eu não a havia realizado. Enquanto
eu limpava as lágrimas com as pontas dos dedos, vi-a pegar numa folha de papel. Disse,
sem me dar tempo de pensar noutra coisa: - Meninos prestem bem a atenção. Aqui está
um exemplo de uma boa composição, feita com cabeça, tronco e membros. É da vossa
colega Maria de Fátima. Vou lê-la. Quando terminou de a ler, realçou a forma da escrita
e teceu algumas considerações como bom exemplo a seguir, sem deixar de me chamar
atenção para um possível melhoramento: - Muito bem, Maria de Fátima, mas não te
envaideças e procura fazer sempre melhor. As respostas de gramática não te dariam
grande nota; por isso, esforça-te mais a estudar o que tens dificuldades, porque, quanto à
escrita, penso teres um domínio que poucos têm. Entregou-me a prova voltou a elogiar-
me e incentivou-me a continuar. Os meus colegas ficaram boquiabertos, enquanto eu,
radiante de felicidade, apenas agradecia os elogios. Recuperara a minha identidade.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 132-134, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Compreendi que o mais belo das coisas é o conhecimento. Desde essa altura, fui-me
tornando a fazedora de quadras ou versos a pedido dos colegas, que viam em mim
capacidades para escrever palavras convencionais para agradar amigos e familiares em
dias especiais. O tempo foi passando, saí do preparatório para o liceu e dei de caras,
outra vez, com a história que me apoquentava. Desta vez, em outras figuras que me
faziam recordar o passado amargurado, e continuei a agarrar-me àquilo que me dava paz
de espírito: ia observando e anotando tudo o que me atordoava. Daí por diante, o tempo
não mais parou e eu continuei a viver os percalços da vida, anotando o bem e o mal que
me causavam e fui me tornando mais eu. Veio a revolução e com ela a independência de
Angola. Por motivos alheios a minha vontade, parei de estudar aos dezesseis anos e
retomei os estudos aos vinte e três. Concluí o pré-universitário em Luanda, em 1986, e,
em 1987, fui dar continuidade dos estudos em Lisboa. A saudade do meu país apossou-
se de mim. Continuei a escrever poesia melancólica. Regressei ao país em 1993.
Cheguei, eufórica, com a esperança de ver os meus poemas publicados. Trazia comigo
um número suficiente de poesias para a feitura de livro e queria vê-los publicados.
Mostrei-os, primeiro, a vários escritores que encontrei em Luanda; uns simplesmente
procuraram desmotivar-me; outros, aos quais aqui deixo registado o meu apreço e
agradecimento, felicitaram-me pelo feito e encorajaram-me a seguir o meu caminho.
Entre eles estão duas grandes figuras, Carlos Pimentel, poeta e escritor, e Ricardo
Manuel, poeta, cançonetista e livreiro, que escreveu no prefácio do livro que intitulei
Vivências: “Impressionou-me sobremaneira o tom dolorido de como todas estas queixas
femininas foram expostas aos olhares humanos (ou desumanos?); para que tentar
remediar maleitas sociais que, alguns/ muitos senhores/ donos do Mundo teimam ou não
conseguem revalorizar?!” O apelo à preservação do meio ambiente e a chamada da
atenção à criança são temas patentes neste livro. Dirigi-me a várias instituições a pedir
apoio, convencida da boa vontade de pessoas que podem e deviam ajudar a desenvolver
e incrementar a cultura do país que é Angola. O que me pareceu ser mais fácil tornou-se
difícil. Foram longas esperas, muitas promessas e um sem número de humilhações. Não
desisti! Pela mãozinha da senhora Luísa Fançony, uma luz se abriu no fundo do túnel e
eis que recebo o cheque da empresa Trirumo com a simpatia dos senhores Guilherme
Mogas e Rui Amaro e vejo publicado o livro de poesia com o título acima referido em
1996. Como o título nos diz, Vivências é um resumo, que faz denúncias, rejeita a dor,
sacrifício, desilusão, como um espaço, onde imprimo sentimentos marcantes. Fiquei
satisfeita, porém não dei salvas de alegria. Era só a primeira etapa. Ganhara consciência
da fraca solidariedade das pessoas ligadas às instituições de cultura pela poesia ou
talvez pela literatura, mas eu vou insistindo na escrita poética, porque, assim, o meu ego
me dita e, agora, reafirmo, não desistirei. No ano 2000, seleccionei entre os restantes e
os mais recentes poemas para um novo livro que intitulei de Morfeu, o retrato de um
amor perdido que me levou à solidão, à tristeza, à vontade de renascer e reconquistar a
esperança. Foi uma edição da autora. Desta feita, a saudade ainda persiste e continuo a
trilhar os mesmos passos; rebusco o passado ao encontro do presente e novamente vou
revivendo a minha inocência nas marcas que o tempo deixou. E surge o livro de poemas
Na Boca Árida da Kyanda, da Editora Kilombelembe, prefaciado pela Doutora
Inocência Mata. Neste livro está patente a perturbadora visão da realidade da mulher
angolana nas ruas de Luanda. Poemas, como “Lamento da Zungueira”, “Deixem-na
Respirar”, “Ser Mulher”, “Kuwaba Nzogi”, espelham bem o sofrimento da mulher a
quem, voluntária ou involuntariamente, procuro dar ou emprestar a minha voz. Há nos
poemas que escrevo o amor empático e solidário. Penso que ninguém deve viver sem
prestar atenção ao mundo que o rodeia, porque a força das coisas está em cada um de
nós. Podendo fazer o que nos é possível, ajudaremos o mundo a transformar-se. Hoje a
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 132-134, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
minha poesia me incita a reclamar, a cobrar, a negar, se necessário for, porque eu e ela
somos cúmplices uma da outra, intrinsecamente. Por isso, acredito que os poetas,
enquanto seres humanos, partilham das mesmas emoções. As diferenças existem no
ponto como cada um perspectiva, na vida social, estas emoções. O desenvolvimento
físico aliado ao psicossocial, no percurso de cada um, é muito importante no retrato das
emoções sentidas da mesma maneira, mas reportadas de maneiras diferentes. A poesia é
esta força que contribui para mudanças comportamentais nas sociedades
“politicamente” corretas. Em Angola, todas as mudanças, para o bem-estar social e
espiritual, acontecem muito lentamente, mas eu tenho fé que daqui a mil anos alguém se
lembrará deste meu contributo.
Luanda, 7 de fevereiro de 2010.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 132-134, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
DO LIVRO AINDA INÉDITO ESTRANGEIRA CONDIÇÃO
Estrangeira condição
diz Ela
10
a noite cobre-me
lenta em seu lençol de murmúrios
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 135-136, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
e os lábios vermelhos adoçam
pequeninas uvas pretas
sentem este silêncio
em ti abraçado
(Ana Mafalda Leite. Do livro ainda inédito Estrangeira Condição)
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 135-136, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
MULHER
Fatima Langa
Encontrei-te
nas bocas saciadas da família
Em pedaços de percurso
entre camiões e fronteiras
Encontrei-te
também no sono reparador do teu lar
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 137-139, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Que semeaste em cada viagem arriscada
A pé, de chapa ou de boleia
Entre insultos, violência e abusos
respondes com um sorriso
CRIANÇA
Fátima Langa
Tu ! Que a ninguém pediste para vir ao mundo.
Tu! Que és o fruto daquele grande amor!
Daquele amor que leigos e jurados testemunharam
Daquele amor fogoso, de muita mentira
Daquele amor selvagem
Daquela violência que, marcou tua mãe para todo o sempre
Por tudo isso criança
Muito amor e muita rejeição te marcam.
Então não vejo?
Vejo sim criança!
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 137-139, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Vejo quando divagas com a manada a procura de pasto.
Chova, troveje ou debaixo do sol árido estás ali!
Vejo nas grandes escolas lá da cidade alta
Quando logo pela manhã, bem equipado, o carro te deixa a porta do colégio
Quando desces do Chapa e cuidadosamente atravessas as largas Avenidas
Quando te metes naquela modesta rua a caminho da escola
Quando com camisola e sapatilhas rotas lutas por vencer a pobreza
Quando passo por ti ali no passeio encostado a padaria com uma bacia vendendo badjias
Quando com uma caixa de papelão repleta de quinquilharias interpelas a todos
Tentando ganhar qualquer coisinha.
Quando junto ao semáforo te aproximas de cada carro pedindo uma moeda
Ó criança..
Ergue a cabeça
Ergue a cabeça e grite bem alto pelos teus direitos
Grite e lute com todas as armas e forças pois,
Criança! Tu és o nosso amanhã
O País conta contigo o amanhã
Abril 2005
Fátima Langa
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 137-139, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
POEMAS SOLTOS
Amelia da Lomba
Nem sorrisos nem afagos trazem a amizade sincera e a leal doutro tempo
da cobiça;
pela mágoa
2.
Honra na fé e na esperança?
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 140-142, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
VITI, O PASSARINHO
a escuridão o engolir
Ainda ontem, como era forte o meu Pai! Como era forte minha Mãe...
Sentia-se órfão de Pais vivos. Pais sem força, que deixavam partir a casa...
Que todos pisoteavam, com o mesmo medo que vira nos olhos do Pai
também...
O pior que se pode fazer a uma criança é tirar-lhe a confiança no poder protector dos pais.
Um dia vi meu Pai esbofeteado, por um jovem embriagado a quem chamara a atenção.
Limpou a face com as costas das mãos, olhou para mim, abraçando-me pelo ombro e disse para
a multidão:
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 140-142, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
“Conheci o seu Pai. Viemos no mesmo barco. Se a minha filha aqui presente tivesse sentido
medo, eu, ainda assim doente teria que me bater com ele, até deixá-lo numa cama de hospital,
para onde iríamos os dois talvez...
Mas, minha filha está sem medo nos olhos; por isso vou me retirar com a certeza de que
dormirei tranquilo, com a memória amiga deste ”perdido”.
Meu Pai, para mim era um gigante, naquele tempo, com apenas 1.70m.
Anos mais tarde, já mulher e Mãe, com apenas 37 anos, recordei-lhe do episódio, Ele riu-se
encabulado e disse-me:
“Jamais deves deixar alguém macular a tua consciência, para não perderes o sono...
Eu preferi sempre dormir. Quando alguém me quisesse fazer como ele, eu sempre preferia o
sono. Desde moço. Eu gosto de dormir!”
Papá viria a falecer, cinco dias depois, sentado numa cadeira de braços; meu filho o encontrou
numa manhã, sem vida, no quarto, e fui eu quem fechou os seus olhos selando para sempre um
pacto de amor, para com a minha consciência.
Amélia da Lomba
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 140-142, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
COM A CABEÇA À TONA DA ÁGUA
Escritora angolana
O calor intenso e sufocante da tarde tinha deixado lugar a uma doçura de fim
de tarde. As sombras alongavam-se. Um vento ligeiro soprava da lagoa. O
sol preparava-se para desaparecer e tinha deixado já o centro de céu. Os
mercadores e motoristas cansados estavam sentados à sombra preparados
para beber o vinho de palma refrescante. Os comerciantes de comida
alimentavam-se com o que restava. Os motoristas de caminhão andavam,
preguiçosamente, em volta dos seus veículos, verificando uma coisa aqui,
outra acolá, como se não tivessem pressa de partir para a longa viagem.
Buchi Emecheta
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 143-146, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
modernidade. Como se o romance fosse a um tempo tributário das formas fixas do
conto tradicional que a oralidade preservou e, numa estratégia de sobrevivência, se
apropriasse das vantagens da escrita do romance moderno.
Em 1972 publica o primeiro livro (In The Ditch), trabalho autobiográfico sobre as
aventuras de uma nigeriana, mãe de cinco filhos, estudante de sociologia e escritora nas
horas vagas.
Abandono, solidão e frio não impedem que Adah (a personagem chave do romance) se
aplique em sua formação, na alimentação das crianças e na expiação do sacrifício de
expor o seu orgulho à caridade pública e à incompreensão de uma Europa hostil.
Francis deixou-a acabar antes de dizer: O meu pai não é partidário da ida das
mulheres para o Reino Unido. Mas, tu compreendes, tu pagarás a minha
deslocação, tomas conta de ti e das crianças e, dentro de três anos, eu estarei de
volta. O meu pai diz que aqui tu ganhas mais que a maioria das pessoas que
vivem em Inglaterra. Para que perder um bom lugar para ir para Londres?!
Dizem que Londres se parece com Lagos...
Com um humor requintado e fino, Buchi Emecheta constrói o seu segundo romance –
Cidadão de Segunda Classe, sobre as relações homem X mulher, e o fato de às
mulheres ser negada uma educação universitária. As obras seguintes da escritora
recuperam espaços, viagens, ligações na Nigéria e, nessas complexas ligações, as
diferenças entre litoral e interior, não esquecendo o papel da colonização inglesa e da
ação dos missionários das diversas congregações. Os dois acontecimentos históricos são
habilmente ligados à fixação da mulher à casa e aos filhos, à sua submissão ao marido e
ao poder.
As mulheres Ibo (das quais Buchi Emecheta descende) foram as principais atoras dos
processos conhecidos como “A GUERRA DAS MULHERES”.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 143-146, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Wole Soyinka, o poeta, dramaturgo e novelista, prêmio nobel da literatura, dá-nos um
relato vivo dessas manifestaçãoes no seu trabalho autobiográfico Ake, ou os anos da
Infância:
É o regresso a Ibuza: “Uma aldeia cujos habitantes, segundo dizia a lenda, já viviam
nessa parte do que hoje é Ibuza antes dos Ibos orientais chegarem... mas o orgulho local
mantinha-se: os seus habitantes ainda se consideravam filhos do solo, embora este de há
muito tempo lhes houvesse sido tirado debaixo dos pés”...
Organizado em torno dos problemas da maternidade, esse livro rememora a mãe, a mãe
da mãe, as primeiras comoções da maternidade, a morte na infância, o marido e suas
esposas, a participação da Nigéria na segunda guerra mundial com a mobilização dos
homens para sítios dos quais nunca tinham ouvido falar:
As mulheres ficam de novo sozinhas com os seus filhos. Assim foi toda a vida de Nnu
Ego:
Histórias contadas depois disseram que Nnu Ego, até na morte, era uma
mulher má, visto que, embora muitas mulheres lhe pedissem que as tornasse
férteis, nunca satisfazia tais pedidos. Pobre Nnu Ego, que nem depois de
morta teve paz. Apesar disso, muitas pessoas reconheciam que ela dera tudo
aos seus filhos. A alegria de ser mãe era a alegria de tudo dar aos filhos –
diziam.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 143-146, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Da obra de Buchi Emecheta destacam-se A Menina Escrava (escrito em 1977) e
traduzido e editado pela Caminho em 2000, Titch the Cat, 1979, Nowhere to Play,1980;
The Moonlight Bride,1980, On our Freedom,1981, Destination Biafra,1982, Gwendolin
,1990, entre inúmeros outros títulos que incluem peças de teatro e histórias para a
infância.
Com a Cabeça à Tona da Água, (título de uma novela escrita e publicada em 1986), sua
autobiografia, Buchi Emecheta resume a vida de uma mulher na diáspora, a sua luta
pela sobrevivência e a conquista de um estatuto há muito almejado, o de escritora a
tempo inteiro.
Terminamos a nossa jangada que hoje nos levou para lá do Niger e das várias Nigérias,
onde as alegrias da maternidade podem ser ainda hoje a condenação à morte e a prazo
de uma mulher (Amina do nosso descontentamento) com as palavras de Ojebeta, a
menina escrava:
– Obrigada, meu novo dono. Agora sou livre na tua casa. Não podia desejar
melhor senhor.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 143-146, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Ana Paula Tavares
Nasceu na Huíla, sul de Angola, em 30 de outubro de 1952. É historiadora com o
grau de Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e com grau de Doutora
em História. Em Angola publicou Ritos de Passagem (poemas), UEA, 1985. Em Cabo
Verde, Praia, O Sangue da Buganvília (crônicas), em 1998. Na Editorial Caminho
publicou: em 1999, O Lago da Lua (poemas), seguido, em 2001, de Dizes-me Coisas
Amargas como os Frutos (poemas), em 2001, obra galardoada com o Prêmio Mário
António de Poesia-2004 da Fundação Calouste Gulbenkian; em 2003, Ex-Votos
(poemas) e, em 2004, A Cabeça de Salomé (crônicas). Publicou em 2007, Manual para
Amantes Desesperados (poemas). Tem participação com poesia e prosa em várias
antologias em Portugal, Brasil, França, Alemanha, Espanha. Publicou alguns ensaios
sobre História de Angola.
Ritos de Passagem
(1.ª edição, 2007)
«Outras Margens», n.º 0
Com ilustrações a preto e branco
O Lago da Lua
(1.ª edição, 1999)
«Caminho da Poesia», n.º 65
Ex-Votos
(1.ª edição, 2003)
«Outras Margens», n.º 20
A Cabeça de Salomé
(1.ª edição, 2004)
«Outras Margens», n.º 33
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 147, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Ana Mafalda Leite
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 148, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Amélia da Lomba
De nome próprio Maria Amélia Gomes Barros da Lomba do Amaral, a escritora nasceu
a 23 de Novembro de 1961, na província de Cabinda, tendo já publicado, entre vários
títulos, os livros: Ânsia (1995), Sacrossanto Refúgio (1996), Cacimbo (2000), Espigas
do Sahel (2004), Noites Ditas à Chuva (2005), Sinal de Mãe nas Estrelas (2008).
Colaboradora do Jornal de Angola, onde tem publicado vários textos poéticos, é um dos
rostos visíveis da geração de escritores surgida na década de 80, ao lado de Ana Paula
Tavares. É membro da União dos Escritores Angolanos, órgão no qual já ocupou
diversos cargos diretivos.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 149, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Chó do Guri
Resumo bibliográfico
Obras publicadas:
Contos – Bairro Operário – A minha história, 1998; Songuito & Katite – do sonho à
realidade, 2009.
Outras publicações:
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 150, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Fátima Langa
Fátima José Correia Langa nasceu a 24 de junho de 1953, em Bahanine, uma pequena
povoação do interior da província de Gaza, em Moçambique. É oriunda de uma família
alargada.
Até aos seis anos, falava apenas o chope, sua língua materna, e, só mais tarde, aprendeu
o português, em Manjacaze, onde fez os estudos primários.
Desde a infância, sempre cultivou o hábito de contar estórias à volta da fogueira, na sua
língua materna.
Sem nunca pensar em publicar, quando aprendeu a língua portuguesa falada e escrita,
começou a escrever contos.
Passou, desde então, a enviar contos e poemas para as páginas culturais de alguns jornais
e revistas.
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 151/152, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X
Paticipou também de várias conferências humanitárias nas cidades do Cabo e
Johannesburg , na Àfrica do Sul, e Solowêzi, na Zâmbia.
Fátima Langa
Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 151/152, jan/jul 2010. ISBN 2176-381X