Batista VB DR Assis PDF
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Volume 1
ASSIS
2018
VALDIRENE BARBOZA DE ARAÚJO BATISTA
Volume 1
ASSIS
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp
Para Maria Paula, Ana Júlia e Emanuely, minhas filhas, presentes de Deus;
Esta tese, que é o ponto de chegada de minha jornada de pesquisadora, contou com a
contribuição de diferentes aliados – amigos, familiares, colegas de trabalho – que, de modo
generoso, de alguma maneira, ofereceram contribuições importantes até que se chegasse ao
final deste percurso. Deixo aqui materializada minha especial gratidão:
a meu irmão Luiz Henrique, que me ajudou, sempre com generosa disposição, no
levantamento inicial dos livros de Giselda Laporta Nicolelis, ao lado de meu marido, Josélio;
à Rafaela Stopa, minha querida amiga, com quem compartilho a paixão pelo ensino da
literatura, pelos preciosos, generosos e significativos momentos de interlocução, sempre
acompanhados de lúcidos e ponderados apontamentos que se fazem presentes na tessitura desta
tese;
a Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira e a Márcio Roberto Pereira, pelas valiosas,
pontuais e substanciosas contribuições dadas por ocasião do Exame Geral de Qualificação;
a Alice Áurea Penteado Martha, a Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, a Luciana
Brito e a Juvenal Zanchetta Junior, pelas mesmas pontuais, valiosas e substanciosas
contribuições dadas ao trabalho na banca de defesa;
a João Luís Ceccantini, mentor desta jornada, pela confiança depositada em mim e pela
sempre pontual, amiga, segura, vigorosa e encorajadora orientação;
a Josélio, meu maior aliado, por tanto amor, por tanto apoio, por tanto tudo.
Mudaram as estações
Nada mudou
[...]
Estamos indo de volta pra casa
Renato Russo (1960-1996)
BATISTA, Valdirene Barboza de Araújo Batista. A jornada o herói nas narrativas juvenis de
Giselda Laporta Nicolelis. 2018. 2. v. Tese (Doutorado em Letras). – Faculdade de Ciências e
Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2018.
RESUMO
Desenvolvida na esfera das pesquisas sobre literatura juvenil brasileira contemporânea, esta
tese de doutoramento tem como objeto de estudo 42 narrativas de autoria da escritora paulista
Giselda Laporta Nicolelis (1938) que circulam sob essa rubrica. No contexto desta investigação,
os títulos escolhidos são agrupados em três grandes categorias narrativas (narrativas de
aventura, narrativas sociais e narrativas psicológicas), segundo os moldes propostos por
Ceccantini (2000). Com o objetivo de alcançar uma compreensão geral do universo ficcional
criado por Nicolelis, o trabalho acompanha a jornada dos heróis nicolelianos, realizando uma
análise sistemática dos elementos temáticos e formais das narrativas que compõem o corpus,
bem como discute questões relativas à produção, circulação e consumo da literatura juvenil
dessa escritora, sob o amparo teórico de Pierre Bourdieu (2007) acerca do mercado de bens
simbólicos. Essa análise evidenciou que as narrativas da escritora são representativas de certa
linhagem da literatura juvenil brasileira de cunho realista/verista (Zilberman, 2003), em que os
heróis (e, por extensão, seus leitores) são lançados na jornada contemporânea das mazelas
sociais oriundas do subdesenvolvimento da sociedade brasileira – na sua vertente urbana,
capitalista e industrializada –, estando sempre afastados das posições de poder. Na tentativa de
resolver problemas sociais indissolúveis, guiados por um narrador de visão adultocêntrica, os
heróis são inseridos no contexto de dicotomias que perpassam a literatura infantojuvenil desde
suas origens. Dentre elas, são destacadas: a assimetria adulto/criança; discurso utilitário X
discurso literário; realismo X fantasia; normatividade X ruptura. Ainda que se note a tentativa
de inovação no nível temático, a presença preponderante de padrões literários tradicionais no
nível formal faz com que essas narrativas não ultrapassem geralmente certos propósitos
pedagogizantes. Assim, Nicolelis, ainda que almejando libertar e conscientizar seus leitores,
muitas vezes, não alcança, no plano literário, a representação do homem em toda sua
humanidade, enclausurando seus heróis na permanência do status quo social contemporâneo.
Além dos pesquisadores já mencionados, a pesquisa tem como referencial teórico estudos
desenvolvidos por Candido (1972; 2011), Perrotti (1986), Campbell (1997), Novaes (1984;
2000; 2006), Colomer (2003), Cruvinel (2009), Luft (2010), Souza (2015), Vogler (2015), entre
vários outros.
ABSTRACT
Developed in the research area of contemporary Brazilian young adult literature, this
dissertation has as its object of study 42 narratives written by Giselda Laporta Nicolelis (1938),
which circulate under this rubric. In the context of this investigation, the chosen titles are
grouped into three major narrative categories (adventure narratives, social narratives, and
psychological narratives), according to the models proposed by Ceccantini (2000). In order to
reach a general understanding of the fictional universe created by Nicolelis, this dissertation
follows the journey of her heroes through a systematic analysis of both thematic and formal
elements of the narratives that compose the corpus, as well it discusses issues related to the
production, circulation and consumption of the author’s young adult literature, theoretically
grounded in Pierre Bourdieu’s (2007) work about the market of symbolic goods. This analysis
evidenced that the author's narratives are representative of a certain lineage of Brazilian
realist/veristic literature (Zilberman, 2003), in which heroes (and, by extension, their readers)
are launched in a contemporary journey of the social illness derived from the underdevelopment
of Brazilian society - in its urban, capitalist, and industrialized dimension -, always away from
the positions of power. In the illusory and quixotic attempt to solve indissoluble social
problems, guided by a narrator which has an adultcentric point-of-view, the heroes are inserted
in the context of dichotomies that pervade both children's and young adult's literature since its
origins. Among them, we can highlight the following: the asymmetry between adult and child;
utilitarian discourse versus literary discourse; realism versus fantasy; normativity versus
rupture. Although the attempt to innovate at the thematic level can be noticed, the preponderant
presence of traditional literary patterns at the formal level shows that these narratives do not
usually exceed certain pedagogic purposes. Thus, although Nicolelis aims to provide a sense of
freedom and to raise awareness in her readers, she often does not reach the representation of
man in all his humanity in the literary plane. As a consequence of that, some of her characters
are cloistered in a permanent status quo. Beyond the authors already mentioned, this research
has as theoretical background studies developed by Candido (1972; 2011), Perrotti (1986),
Campbell (1997), Novaes (1984; 2000; 2006), Colomer (2003), Cruvinel (2009), Luft (2010),
Souza (2015), Vogler (2015), among others.
Key-words: Young adult literature; Giselda Laporta Nicolelis; Hero’s journey; Verismo;
Utilitarian Discourse.
BATISTA, Valdirene Barboza Batista de Araújo. La Jornada del héroe en las narrativas
juveniles de Giselda Laporta Nicolelis. 2018. 2. v. Tesis (Doctorado en Letras). Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2018.
RESUMEN
Palabras clave: Literatura juvenil brasileña; Giselda Laporta Nicolelis; Jornada del Héroe;
Verismo; Discurso Utilitario.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Lista 1 Levantamento dos livros publicados por Giselda Laporta Nicolelis de 1974
até 2016........................................................................................................... 22
Lista 2 Balanço quantitativo da produção infantojuvenil de Giselda Laporta
Nicolelis.......................................................................................................... 29
Lista 3 Livros de Giselda Laporta Nicolelis que ainda circulam no mercado editorial
brasileiro......................................................................................................... 29
Lista 4 Corpus definitivo da pesquisa......................................................................... 35
Lista 5 As três grandes categorizações narrativas feitas por Ceccantini e suas
respectivas subdivisões................................................................................... 43
Lista 6 Corpus definitivo com a relação de gêneros narrativos predominantes........... 44
SUMÁRIO
(v. 1)
INTRODUÇÃO............................................................................................... 15
6 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 289
6.1 Obras de literatura infantil e juvenil de Giselda Laporta Nicolelis.................. 289
6.2 Entrevistas e depoimentos de Giselda Laporta Nicolelis................................. 292
6.3 Obras teóricas.................................................................................................... 292
SUMÁRIO
(v. 2)
7 APÊNDICE...................................................................................................... 308
INTRODUÇÃO
1
Nesse estudo, pretendi compreender os objetivos, interesses e necessidades de implantação desses quatro
projetos, cuja análise de alguns aspectos formais e conteudísticos do conjunto de documentos produzidos no
âmbito da implantação e desenvolvimento de cada um deles mostrou que, embora cada qual tenha as suas
características próprias, é possível observar uma série de fenômenos imbricados em suas configurações textuais.
Destacam-se, entre eles, os fatos de que os quatro projetos foram criados para tentar sanar um problema
diagnosticado por sistemas avaliativos externos à escola; foram elaborados e/ou receberam assessoria de
professores das universidades paulistas, centros de pesquisas e/ou pesquisadores da área de Educação ou de Letras;
funcionaram como cursos de atualização e aperfeiçoamento do quadro de profissionais da educação,
modernamente chamado de curso de formação continuada; e funcionaram como divulgadores de teorias,
disseminando diferentes pressupostos teóricos e práticos sobre leitura e seu ensino na rede pública estadual
paulista.
2
Expressão usada por Maria do Rosário Longo Mortatti em Os sentidos da alfabetização: São Paulo, 1876-1994
(2000).
16
também ficou entre os seis autores dos livros de literatura infantojuvenil mais vendidos no
portal eletrônico de sebos Estante Virtual3.
Apresentando-se como escritora vocacionada e criadora, ao longo de sua carreira,
Nicolelis escreveu mais de 120 livros entre ensaios, crônicas, contos, novelas, romances e
coletâneas diversas. Diante dessa vasta produção, é inegável que a autora ocupa um lugar bem
definido no sistema literário contemporâneo de livros destinados a jovens adolescentes
brasileiros, no qual estão envolvidos variados sujeitos: escritores, editores, leitores, educadores,
pais, estudantes.
Conforme já constatou João Luís Cardoso Tápias Ceccantini em tese de doutoramento
defendida em 2000, nesse mercado, que foi consolidado entre nós a partir da segunda metade
do século XX, a multiplicação de escritores tem se dado em progressão geométrica, e a
publicação das obras tem ocorrido em ritmo acelerado e frenético. Recentemente, o mesmo
pesquisador, no artigo “Mentira que parece verdade: os jovens não leem e não gostam de ler”,
publicado no livro Retratos da leitura no Brasil 4, lançado em 2016, reforça a ideia de que esse
segmento continua em compasso de crescimento. Ele afirma que:
3
Endereço eletrônico: https://www.estantevirtual.com.br/.
17
Nesses termos, tal configuração ilumina e justifica o tipo de investigação como a que
aqui se apresenta, uma vez que os já mencionados crescimento e fortalecimento do mercado de
livros para jovens abriram as portas para novos escritores, o que, como salientou esse mesmo
pesquisador, torna essa área carente de estudo mais sistematizado. Na ótica de Ceccantini
(2000), que desenvolveu estudo pioneiro sobre o específico juvenil, no campo da historiografia,
já há estudos pertinentes sobre a literatura infantojuvenil e destaca os realizados por Nazira
Salem, Leonardo Arroyo, Marisa Lajolo e Regina Zilberman. Em geral, esses pesquisadores
propuseram “leituras diacrônicas, apresentando a produção infanto-juvenil brasileira de forma
minimamente sistematizada, organizada e a partir de uma visão de conjunto.” (CECCANTINI,
2000, p. 190).
Ainda sob sua visão, por ser um fenômeno relativamente novo entre nós, com um século
de existência, é necessário olhar atentamente para esse mercado e, de maneira especial, para a
produção destinada a adolescentes e jovens, já que a literatura infantil vem recebendo dos
estudiosos, nas últimas décadas, um olhar mais atento. Nesse sentido, investigações como esta
se fazem fundamentais, sobretudo, porque além de contribuir para o avanço da crítica literária,
podem trazer um alento a educadores, familiares e mediadores de leitura de modo geral, haja
vista o desejo que têm, não raro de serem orientados a respeito dos títulos a serem selecionados,
seja para presentear um leitor mirim, seja para atuar no processo de formação leitora de um
estudante dessa faixa etária.
Assim, esta investigação vai ao encontro de diversos trabalhos desenvolvidos, pelo
Brasil afora, por vários pesquisadores, filiados a diferentes instituições de ensino superior que
procuram compreender o estatuto da literatura infantojuvenil brasileira, com foco em seus
temas e formas, em boa parte das vezes, por meio de análises específicas de livros
infantojuvenis sob diferentes enfoques. Geralmente, esses estudiosos se preocupam em
oferecer aos mediadores de leitura parâmetros para escolher, dentre as obras disponíveis no
mercado, aquelas que possibilitam a experimentação, pelo leitor em formação, do prazer pela
fruição estética de livros de boa qualidade.
Esse objetivo está claro nas três publicações da ANEP (Associação Núcleo Editorial
Proleitura) que tem como intuito trazer ao público um conjunto de reflexões sobre a ficção
brasileira que circula entre nós nas últimas décadas sob a rubrica específica literatura juvenil.
Trata-se dos livros Narrativas juvenis: modos de ler (1997), organizado por Maria Alice Faria,
Narrativas juvenis: outros modos de ler (2008), cuja organização é de João Luís Ceccantini e
Rony Farto Pereira e Narrativas juvenis: geração 2000 (2012), que também é organizado por
João Luís Ceccantini, mas, desta vez, com a companhia de Vera Teixeira Aguiar e de Alice
18
Nessa direção, não há como negar que os estudos desenvolvidos nos centros de
pesquisas e nos cursos de pós-graduação têm produzido reflexos positivos nas ações destinadas
ao fomento do livro e da leitura no cenário educacional brasileiro. A literatura, como já foi
mencionado acima, mesmo ocupando status de igualdade em relação aos demais gêneros
discursivos, passou a ser concebida como uma forma particular de representar e de “dar forma
às experiências humanas.” (BRASIL, 1998, p. 26).
Em geral, é pautando-se nessa premissa que o governo brasileiro criou diversas ações
voltadas para a democratização do acesso ao livro no Brasil, particularmente em contexto
escolar, espaço de formação e de desenvolvimento humano de modo sistematizado, entre as
quais destacam-se: o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), o PNBE (Programa
Nacional da Biblioteca Escolar), o fórum da Câmara Setorial do Livro, Literatura e Leitura, o
Projeto Fome de Livro (iniciativa do MEC/ Biblioteca Nacional), o PNLEM (Programa
Nacional do Livro no Ensino Médio), o Programa de Formação do Aluno e do Professor Leitor
e o Vivaleitura – Ano Ibero-americano da Leitura (2005), o Programa Nacional de Incentivo à
Leitura (PROLER). Somam-se a essas iniciativas os diversos projetos de fomento à leitura
realizados por todo o país, com a promoção de oficinas, cursos, palestras e eventos artístico-
culturais das mais diferentes naturezas, visando ao fortalecimento do debate em questão. Todas
essas iniciativas foram cruciais para a instituição do Plano Nacional do Livro e Leitura no Brasil
(PNLL), criado pelo governo brasileiro em 10 de agosto de 2006.
A consolidação do mercado brasileiro de livros também é um fator fundamental dentro
desse processo. O governo vem desde 2004 implementando ações para o barateamento do livro
no Brasil com o objetivo de possibilitar que mais pessoas possam comprá-lo. João Luís
Ceccantini aponta em “Leitores iniciantes e comportamento perene de leitura” alguns aspectos
importantes da configuração desse setor, que se desenvolveu de forma assombrosa nos últimos
anos, lançando mão de diferentes recursos e tecnologias para ampliar o mercado de livros entre
nós. Por outro lado, o mercado editorial brasileiro ainda está voltado para uma pequena parcela
da população, realidade que, visivelmente, o governo brasileiro vem tentando transpor já há
alguns anos. Basta considerar o fato de que este, ainda que possam ser feitas algumas ressalvas,
continua a ser o maior cliente desse mercado editorial, enviando “livros didáticos, literários,
paraliterários e técnicos para as escolas brasileiras por intermédio de diferentes programas do
MEC, implementados pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação – FNDE.”
(SANTOS, NETO, RÖSING, 2009, p. 10).
Assim sendo, considerando que o PNBE vem sendo implementado, desde 1997, com o
objetivo de agenciar o acesso à cultura e o incentivo à leitura nos estudantes e docentes por
20
4
A análise dos elementos formais e temáticos do corpus foi feita com base na grade de pesquisa, elaborada a
partir das proposições de Ceccantini (2000), que compõe o Apêndice deste estudo.
21
Pierre Bourdieu (2007), alimentando as necessidades psicológicas “de ficção e de fantasia” dos
jovens que a esses livros têm acesso.
Importante enfatizar que até chegar ao formato de investigação como o que aqui se
materializa, o projeto de pesquisa apresentado ao curso de Doutorado do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, em 2013,
sofreu algumas alterações. A princípio, a intenção era compor uma bibliografia completa de
Giselda Laporta Nicolelis e de sua obra infantojuvenil, analisando e buscando compreender em
que medida seus livros se sustentam como textos de boa qualidade literária. Todavia, o contato
gradativo com a obra da autora, levou-me à constatação de sua volumosa produção5, fato que
poderia impedir o atendimento dos objetivos iniciais propostos, frente ao limite de tempo e de
outras variantes envolvidas no processo de realização de uma pesquisa de doutoramento.
Segundo a própria escritora, em depoimento concedido ao já mencionado Museu da Pessoa,
disponível na internet, em 2008, já havia publicado 125 livros, entre poemas, ensaios, contos,
novelas e romances, incluindo, aproximadamente, a participação em 12 antologias. Na esfera
desta investigação, depois de um intenso trabalho de pesquisa6, consegui chegar a um total de
120 livros, sendo estes publicados de 1974 até 2016, excluindo as antologias.
Na lista que segue, os livros encontrados são apresentados, acompanhados de
informações, como a data da primeira edição, nome da editora, número de páginas, a categoria7
informada no livro (infantil, juvenil ou adulto) e algumas observações, estando os livros
agrupados de cinco em cinco anos.
5
Convém afiançar que para a elaboração do projeto de pesquisa já tinha a noção de que a autora teria várias
publicações, visto que a quinta edição, revisada e atualizada do Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil
Brasileira, de 2006, de Nelly Novaes Coelho, já apresentava, de modo sucinto, a análise de 44 livros dessa
escritora. Todavia, não supunha que chegasse a um número tão expressivo.
6
A pesquisa foi feita na internet, sobretudo, na rede de sebo literário Estante Virtual e nos portais de diferentes
editoras, na dissertação Bibliografia de narrativas juvenis brasileiras de 1945 a 2004, de Luci Haidee Magro, no
Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira, produzido por Nelly Novaes Coelho, e nos paratextos
constantes nos exemplares lidos.
7
Para fazer a divisão em categorias, tomei como base a ficha catalográfica dos livros analisados, posto que nelas,
com vistas a delimitar o público-alvo, ao lado da categorização genérica “infantojuvenil” sempre aparece a rubricas
juvenil ou infantil. Em alguns livros não há categorização de público.
22
Lista 1 – Levantamento dos livros publicados por Giselda Laporta Nicolelis de 1974 até 2016
Publicações de 1974 a 1979
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
1 Coruja Lelé 89 1974 Do Escritor Infantil
2 A sementeira 110 1975 Mundo Musical Adulto Publicado
originalmente
como romance
adulto
3 Domingo, dia de 85 1976 Vértice / Salesiana Infantil
cachimbo
4 A prefeitura é 66 1977 Pioneira Infantil
nossa
5 O Brasão do 88 1979 Pioneira Juvenil
Lince Dourado
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
6 O segredo da 112 1980 Brasiliense/Atual Juvenil
casa amarela
7 Um dono para 73 1980 Moderna Infantil
Buscapé
8 A menina de 30 1981 Pioneira/ Saraiva Infantil
Arret
9 A serra dos 99 1981 Brasiliense / Atual Juvenil
homens-
formigas
10 O fio da meada 106 1981 Pioneira Juvenil
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
33 A mão tatuada 73 1985 Atual Juvenil
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
57 Histórias 69 1990 Scipione Juvenil Livro de
verdadeiras contos
58 Time runners 66 1990 Abril Juvenil
os viajantes do
tempo 4 – a
idade das
trevas
59 Uma turma do 24 1990 Abril Infantil
barulho
60 No fundo do 47 1991 Livros Tatu Infantil
quintal
61 O portão do 70 1991 Moderna Juvenil
paraíso
62 O rato que riu 16 1991 Moderna Infantil
do rei
63 A saudade da 65 1992 Vale Livros Juvenil
casa do pai
25
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
73 De passo em 56 1995 Moderna Infantil
passo
74 Mudando de 85 1995 Moderna Juvenil
casca
75 Não pise nos 144 1995 Rosa dos Adulto Ensaio de
meus sonhos tempos alcance
psicológico
76 O mistério 95 1996 Saraiva Juvenil
mora ao lado
77 Em busca do 79 1996 Moderna Juvenil
pai
78 Cinderela 47 1997 Moderna Infantil Adaptação
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
88 Paixão 31 2000 Moderna Juvenil
proibida
89 O preço do 168 2001 FTD Juvenil
sucesso
90 A voz do 62 2002 Scipione Juvenil
silêncio
91 Amor não tem 111 2002 FTD Juvenil Reescrita de A
cor cor do azeviche
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
97 Como é duro 112 2005 Quinteto/ Juvenil
ser diferente! Scipione
98 Poliana moça 80 2006 Escala Juvenil Adaptação do
livro de Eleanor
H. `Porter
99 Sem medo de 112 2006 Atual Juvenil Reescrita de Em
viver busca do pai
100 O blog da 136 2007 Atual Juvenil
família
101 O sol é 117 2007 Saraiva Juvenil
testemunha
102 Olhe! 20 2008 Porto de Ideias Infantil Coleção Nossos
5 amigos: Os
Sentidos!
103 Cheire! 20 2008 Porto de Ideias Infantil Coleção Nossos
5 amigos: Os
Sentidos!
104 Ouça! 20 2008 Porto de Ideias Infantil Coleção Nossos
5 amigos: Os
Sentidos!
105 Prove! 20 2008 Porto de Ideias Infantil Coleção Nossos
5 amigos: Os
Sentidos!
106 Pegue! 20 2008 Porto de ideias Infantil Coleção Nossos
5 amigos: Os
Sentidos!
107 Quem quer um 24 2008 Atual Infantil
elefante
branco?
108 Saindo da 104 2008 FTD Juvenil
plateia
109 O tigre na 125 2009 Saraiva Juvenil
caverna
110 Papel de pai 92 2009 Atual/ FTD Juvenil
1ª
Títulos Páginas Editora Categoria Observações
Edição
111 De sonhar 83 2010 Saraiva Juvenil
também se vive
112 Três paixões 72 2010 ATUAL Juvenil Adaptação de
Tristão e Isolda',
de Béroul e
Gottfried de
Strassburg,
28
'Cyrano de
Bergerac', de
Edmond
Rostand, além de
escrever 'O
Profundo Céu
Azu...
113 A barata diz 20 2010 Porto de ideias Infantil
que tem
114 Olha para mim 56 2011 Editorial 25 Juvenil
115 A conquista da 91 2012 Saraiva Juvenil
vida
116 Canta sabiá 23 2012 Formato Infantil
117 O maior de 112 2013 Cia das Letras Juvenil Coautoria com
todos os – Claro Miguel Nicolelis
mistérios Enigma
118 Nos Bastidores 88 2015 FTD Juvenil
da Realeza
119 Quem te viu, 56 2016 Scipione Juvenil
quem te vê
120 Todos os 88 2016 Editora do Juvenil Livro de contos
sonhos do Brasil
mundo
Essa volumosa produção trouxe à luz outro problema que dificultou o cumprimento dos
objetivos iniciais desta pesquisa. Trata-se do desencontro de informações importantes acerca
da produção8 literária dessa escritora, sobretudo, em relação à obtenção de dados técnicos de
sua obra, que são, em geral, esparsos demais. Durante o período de levantamento de sua
produção literária, não observei muita preocupação por parte das editoras em organizar
sistematicamente os dados técnicos das publicações, prejudicando, com isso, a composição de
uma história mais consistente dos livros por elas publicados.
Essa lamentável constatação já havia sido feita por Magro (2006), que lamentou o
“descaso” com a história literária em nosso país, assim escrevendo:
8
Por, pelo menos, cinco vezes tentei entrar em contato, via e-mail, com a autora para o esclarecimento de
determinadas dúvidas sobre a sua produção literária surgidas, sobretudo, no momento do levantamento do estado
da questão, no entanto, nunca obtive resposta. Cabe frisar que seu endereço eletrônico foi fornecido pela própria
autora, por intermédio da secretária da União Brasileira dos Escritores (UBE).
30
As dificuldades apontadas por Magro também foram observadas por mim, em especial,
quando busquei informações a respeito das primeiras edições dos livros publicados por
Nicolelis. É justo observar, entretanto, que assim como Magro chama a atenção para a
organização dos registros empreendidos pelas editoras Nacional e Melhoramentos, também
constatei organização nos registros da Editora Salamandra. Um exemplo dessa organização, é
a ficha bibliográfica disponível no livro Da cor do azeviche, segunda edição, que colaborou
muito com o meu trabalho investigativo. Ali consta o registro de 32 livros dessa autora em
ordem cronológica, além de alguns dados profissionais. Nessa ficha, também constam
informações sobre a primeira edição, nome das editoras, prêmios conquistados e a cidade onde
o texto foi publicado.
Um fator que igualmente pode ser apontado como um dos sobressaltos na esfera de
trabalhos investigativos como o que aqui se apresenta é o trânsito dos escritores por variadas
editoras. No caso de Nicolelis, ao longo das mais de quatro décadas como escritora, ela passou
por mais de 40, incluindo grandes e pequenas editoras, tendo publicado livros em editoras do
Rio de Janeiro (capital e interior), São Paulo (capital e interior), Minas Gerais, Paraná. Suas
publicações mais recentes foram feitas em editoras com sede em São Paulo. Atualmente
trabalha, sobretudo, com as editoras Moderna e Saraiva
No trecho que segue, Nicolelis fala sobre seu trânsito entre variadas editoras:
31
[...] às vezes eu tô numa editora, ela outra compra (sic). É como se um reino
comprasse outro. Então, eu vou junto com as pulgas, com o mobiliário. Eu
tenho livro agora pela Moderna, pela Saraiva, que comprou a Atual, comprou
a Formato, comprou a Siciliano agora também. Eu tenho livro pela Editora do
Brasil, pela FTD, que tinha acordo com a Quinteto, também juntou tudo, pela
Scipione, pela Escala. Agora a Positivo, do Paraná. E assim vai. Mas a maior
parte estão na Moderna, FTD e Saraiva. (NICOLELIS, 2008, n.p.)
Cabe observar que determinados livros foram publicados por mais de uma editora, tendo
alguns deles sofrido modificações no momento em que isso ocorreu. O livro Em busca de pai,
por exemplo, foi publicado pela primeira vez pela Editora Moderna em 1996 e, em 2006, pela
Editora Scipione, com o título Sem medo de viver. Neste caso, a alteração constatada foi apenas
no título, mas há situações em que a versão original sofre várias modificações textuais, como
as que foram identificadas na configuração textual de O brasão do lince dourado, que foi
publicado pela primeira vez em 1979 pela Editora Scipione e, mais tarde, em 1998, foi reeditado
pela mesma editora com o título O fantasma da torre.
Nessa mesma direção, as variadas informações desencontradas a respeito de seus
primeiros livros também fazem parte dos elementos que dificultaram atingir os objetivos
originais da pesquisa. Em muitos deles não consta a data da primeira publicação e, em alguns,
nem mesmo a da edição a qual pertence, além de, em certos casos, não possuírem ficha
catalográfica. É o caso da 3ª edição de Domingo - Dia de Cachimbo, na qual não há informação
alguma. No exemplar lido, a título de ilustração, há apenas a informação de que o texto foi
ganhador do Prêmio Monteiro Lobato de Literatura Infantil 1974, sendo este concedido pela
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo.
Informações desencontradas também fazem parte da história do livro A sementeira que,
de acordo com o que está escrito na contracapa de Domingo - Dia de Cachimbo, na seção
dedicada à autora, foi publicado pela primeira vez em 1975, pela Editora Mundo Musical. Já
no artigo “Da cor do pecado”, de Edith Piza, há a menção de que a narrativa A sementeira teria
sido publicada em 1973. A obra em questão, a princípio foi concebida como romance adulto e,
em 1984, foi publicada pela Atual Editora como literatura infantojuvenil, tendo recebido o título
de Nos limites dos sonhos. Na nova publicação, a narrativa recebe alterações, sobretudo, no
âmbito da linguagem de algumas personagens que, anteriormente, possuem linguajar bastante
regionalizado e na reescrita tal marca tende a desaparecer. Vale destacar que em Nos limites do
sonho há a informação de que o livro teria sido ganhador do Prêmio Fernando Chinaglia de
Ficção em 1974, sem mencionar que, na época, era intitulado A sementeira.
32
Buscando uma saída para lidar com a questão, essa mesma pesquisadora, optou por
sugerir categorias considerando níveis de conhecimento/domínio da leitura9 e não faixas etárias.
Para ela, os livros infantis são aqueles destinados a pré-leitores (dos 2 aos 5 anos), leitores
iniciantes (a partir dos 6/7 anos) e leitores-em-processo (a partir dos 8/9 anos). Já os
infantojuvenis se destinam aos leitores fluentes (a partir dos 10/11 anos), e os juvenis, para
leitores críticos (a partir dos 12/13 anos).
Essas formulações iluminam a questão, mas mesmo assim a classificação ainda é frágil,
uma vez que se recorrermos ao Censo Escolar das escolas públicas, por exemplo, veremos que
nem sempre a idade do aluno corresponde à série escolar na qual deveria estar matriculado.
Podemos muito facilmente encontrar estudantes com 13, 14, 15 ou até 16 anos no 6º ano do
Ensino Fundamental que ainda não são leitores fluentes, mas que podem ter maturidade
emocional advinda de suas experiências de vida.
Seja como for, para as editoras, esse problema parece ter sido muito bem resolvido com
o emprego da categorização ampla “infantojuvenil”. Hoje é possível encontrar, pelo menos,
sete nomenclaturas para denominar os livros destinados a crianças e jovens adolescentes:
“literatura infantil e/ou juvenil”, “literatura infanto-juvenil”, “literatura infantojuvenil”,
“literatura infantil/juvenil”, “literatura infantil e juvenil”, ou apenas “literatura infantil” ou
“literatura juvenil”. É apropriado mencionar que, de certo modo, as próprias editoras tendem a
delimitar os livros de Nicolelis supostamente infantil ou juvenil, uma vez que nos índices para
catálogo sistemático quando este é considerado pela editora infantil, em geral, é rubricado: 1.
Literatura infantil, 2. Literatura infantojuvenil; quando é juvenil, tende a aparecer o contrário:
1. Literatura infantojuvenil, 2. Literatura juvenil.
Na esfera dessas duas divisões, foi possível observar duas tendências estilísticas: nos
livros em que aparece a rubrica infantil, as temáticas abordadas recebem um tratamento lúdico,
9
As orientadoras pedagógicas Maria José Nóbrega, Alfredina Nery e Rosane Pamplona parecem trabalhar na
perspectiva de Nelly Novaes, pelo menos é o que evidenciam as categorizações que aparecem nas variadas
atividades desenvolvidas por elas para o trabalho em contexto escolar com livros da escritora Giselda Laporta
Nicolelis. Nessas propostas didáticas, explicitadas em catálogos online da editora Moderna, há a indicação da série
para a qual o livro se destina. Em geral, neles se concebe como leitores críticos, os jovens adultos ou alunos de 7ª
e 8ª séries (8º ou 9º ano) e como leitores fluentes, os de 5ª e 6ª séries (6º ou 7º ano). A classificação “leitores
iniciantes” também aparece nesses catálogos, porém não é mencionada a série escolar a que se destina.
34
com exploração, na maior parte das narrativas, de elementos mágicos e fabulísticos, nas quais,
em geral, as personagens vivenciam diferentes situações aventurescas, sozinho ou em grupo,
pressupondo, com isso, que a infância é uma fase de ludicidade e de entretenimento. No total,
conforme já foi mencionado, identifiquei 35 livros nos quais predominam tais peculiaridades.
Já os livros destinados ao público jovem pressupõem um leitor com a criticidade desenvolvida
e com capacidade de reflexão de modo mais profundo sobre temas oriundos das contradições
da sociedade urbanizada e capitalista pós-moderna, numa perspectiva mais realista, bem como
com competência para compreender a visão de mundo neles defendida.
Entre as narrativas que cataloguei como juvenis, deixei de fora do corpus todas as que
a autora escreveu em parceria com outros escritores, as que fazem adaptações de textos
clássicos da literatura e as curtas, isto é, as que, de meu ponto de vista, poderiam ser muito
facilmente definidas como contos, considerando a definição conferida a esse gênero por Júlio
Cortázar, em “Alguns aspectos do conto e do conto breve e seus arredores” (2006), sobretudo,
ao que diz respeito à extensão reduzida, à brevidade do tempo e do espaço, como também, pela
visível intenção da autora em construir um texto marcado pela intensidade, concentrado em
único episódio. No conjunto encontrei apenas duas narrativas com tais características, sendo
elas: Nuestra América (1998) e Paixão proibida (2000). Do mesmo modo, as coletâneas de
contos e crônicas independentes foram exclusas da análise.
Nesse sentido, seguindo o critério usado por Ceccantini (2000), optei por analisar as
narrativas longas, as quais, em geral, no âmbito da produção literária de Nicolelis, tendem a ter
características de uma novela, nos moldes definidos por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1969),
não apenas pela extensão mediana (em média 100 páginas), mas, especialmente, por centrar-se
na ação. Há de lembrar ainda a sua estrutura simples, com concentração temática em torno do
conflito vivenciado pelo protagonista e pelo número relativamente restrito de personagens, cujo
tempo é bem mais veloz que no romance. Ainda como critério de delimitação, a modelo de
Magro (2006), estabeleci como corpus deste trabalho as narrativas constituintes de número
acima de 70 páginas, com vistas a tornar a investigação mais produtiva. Ao final, cheguei a um
total de 42 narrativas, as quais apresento abaixo:
35
Delimitado o corpus, foi necessário repensar os objetivos iniciais da pesquisa, visto que
a leitura dos livros produzidos por Nicolelis em confronto com o resultado de estudos
desenvolvidos acerca das tendências de temas e formas assumidas pelas narrativas juvenis
contemporâneas evidenciou que não justificaria mais avaliar a qualidade literária de sua obra.
Grosso modo, se o ponto de vista de partida da análise for o da crítica especializada, como o de
Regina Zilberman, Edmir Perrotti, João Luís Ceccantini, entre muitos outros, sua literatura
certamente não se sustenta como uma obra de boa qualidade literária, situando-se na zona
periférica da produção infantojuvenil brasileira. Isso porque sua autora parece estar muito mais
preocupada em instruir o leitor do que possibilitar a ele o prazer estético pela gratuidade da arte
literária. Na obra, os elementos formais que a estruturam parecem estar muito mais ligados a
fatores externos, de intenção utilitária e ideológica, do que aos internos, conforme preconiza
Candido (2011).
Do mesmo modo, desperta interesse o fato de Giselda Laporta Nicolelis ter despontado
e se consolidado nesse mercado justamente entre as décadas de 1970 e 1980, momento em que
ocorre o boom da literatura não apenas na esfera quantitativa, como na qualitativa. Face a essa
constatação, ao lado de meu orientador, João Luís Ceccantini, tracei um novo caminho para o
projeto de pesquisa. Desta vez, considerando o baixíssimo grau de inovação da linguagem
literária observado em suas narrativas, daí que o objetivo passou a ser a compreensão do
discurso literário de Giselda Laporta Nicolelis no âmbito dos quadros da literatura escrita para
os jovens adolescentes, considerando a comunicação literária como “um sistema vivo de obras,
agindo umas sobre as outras e sobre os leitores.” (CANDIDO, 2011, p. 84), e como bem
simbólico que está sujeito às relações de produção, circulação e consumo, como preconiza
Pierre Bourdieu (2007).
Realizar um estudo por essa ótica, pressupõe o reconhecimento da arte literária como
um fenômeno discursivo, visto que, sendo produzida por sujeitos que recebem influências do
tempo e do espaço nos quais estão inseridos, a comunicação será sempre um produto da
linguagem. Todorov (1980), ao discutir a questão, afirma que é necessário introduzir o conceito
de literatura como discurso, uma vez que ela faz o uso da linguagem, denominador comum de
37
todas as produções escritas. Todavia, a literatura não faz uso da linguagem cotidiana com foco
na função referencial da linguagem. Por meio da ficção, no caso das narrativas, o escritor,
representa uma visão de mundo e de ser humano empregando a linguagem de forma elaborada
e, conforme salienta Candido, mesmo que a comunicação literária possua autonomia de
significado, esta não se “desliga das suas fontes de inspiração no real, nem anula a sua
capacidade de atuar sobre ele.” (1972, p. 87). Nela, o real é transposto para o ilusório por
intermédio do trabalho estilizado da linguagem, propondo um tipo arbitrário de ordem para as
coisas, os seres, os sentimentos, combinando um elemento de manipulação técnica a um outro
que pertence a uma realidade natural ou social. Para ele, isso implica uma atitude de gratuidade.
Portanto, a arte, produção humana, só pode ser compreendia em suas relações dialógicas com
outros textos e na articulação com outros campos: o contexto de produção, a crítica literária, a
linguagem, a cultura, a história, os destinatários, as exigências do mercado, o sistema literário.
Nesse sentido, o projeto literário de Nicolelis só pode ser compreendido, considerando-
o como um produto da linguagem, que representa uma determinada visão de mundo em dado
tempo histórico. Para tanto, como já foi afirmado, a análise das escolhas temáticas e formais
feitas pela autora é fundamental, pois é a partir da harmonia entre conteúdo e forma, como
preconiza Candido (2011), que se realiza a representação simbólica da realidade.
A opção por acompanhar a jornada dos heróis nicolelianos, aqui entendida como a
trajetória feita pelos protagonistas (sozinhos ou em grupo) se justifica porque, em concordância
com o ponto de vista de Flávio Kothe (1985), compreender o percurso de um herói é estratégico
para decifrar o texto como contexto estruturado verbalmente. Para esse estudioso, rastrear esse
percurso é procurar as pegadas de um sistema social vigente nas sociedades historicamente
estruturadas em classe, posto que toda obra literária, em maior ou menor grau, possui as marcas
da ideologia do escritor, bem como recebe influências da época e do sistema dominante no
momento em que o texto foi escrito. Compreender quem são os heróis das narrativas
nicolelianas, bem como o tipo de jornada atravessada por eles, é o primeiro passo para entender
o mundo narrado por Giselda Laporta Nicolelis.
Para Joseph Campbell, em O herói de mil faces, nas histórias universais, das quais são
exemplos os mitos gregos, os contos de fadas e as “lendas majestosas” da Bíblia, é possível
observar a recorrência de um padrão nuclear na aventura do herói: “um afastamento do mundo,
uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida.” (CAMPBELL,
1997, p. 40). Com base em pressupostos psicanalíticos, esse antropólogo chamou a atenção para
os estágios clássicos da aventura universal que, segundo ele, ajuda a compreender o significado
38
Toda boa história reflete a história humana total, a condição humana universal
de ter nascido neste mundo, que consiste em crescer, aprender, lutar para se
tornar um indivíduo e morrer. As histórias podem ser lidas como metáforas de
uma situação humana geral, com personagens que incorporam qualidades
arquetípicas universais, compreensíveis para o grupo e também para o
indivíduo. (VOGLER, 2015, p. 64)
Em linhas gerais, segundo Campbell (1997), as histórias dos heróis apresentam três
estágios, nos quais podem ocorrer variadas fases. O primeiro estágio é denominado pelo
estudioso “A partida”, que também pode ser entendido como separação. Na esfera desse estágio
poderão ocorrer, no mínimo, cinco ações: 1) “O chamado da aventura”, ou os indícios da
vocação do herói; 2) “A recusa do chamado”, ou a temeridade de se fugir de Deus; 3) “O auxílio
sobrenatural”, manifestado pelo auxílio dado por uma figura protetora; 4) “A passagem para o
primeiro limiar”, isto é, um guardião; e 5) “O ventre da baleia”, momento em que o herói é
jogado para o desconhecido. O segundo estágio, intitulado “Iniciação”, é subdividido nas
39
seguintes fases: 1) “O caminho das provas”; 2) “O encontro com a deusa”, ou benção da infância
recuperada e do amor, que é a própria vida; 3) A mulher como tentação”, é a realização e a
agonia do destino; 4) A sintonia com o pai”; 5) “A apoteose”; e 6) “A benção última”. Já no
terceiro estágio, denominado por Campbell de “O retorno”, o herói poderá passar pelas
seguintes fases: 1) a recusa do retorno; 2) “A fuga mágica”; 3) “O resgate com auxílio externo”;
4) “A passagem pelo limiar do retorno”; 5) “O senhor dos dois mundos”; e 6) “Liberdade para
viver”.
No capítulo IV – “As chaves” – do livro supracitado, o estudioso apresenta uma síntese
ilustrada da jornada do herói mitológico:
A partir dos estudos de Campbell, Vogler (2015) sintetiza a jornada do herói da seguinte
forma: Heróis são introduzidos no mundo comum, onde recebem o Chamado à Aventura. No
primeiro momento, eles ficam relutantes ou recusam o chamado, mas são incentivados por um
Mentor a cruzar o Primeiro Limiar, e entram no Mundo Especial, onde encontram Provas,
Aliados e Inimigos. Eles se aproximam da Caverna Secreta, cruzando um segundo limiar onde
passam pela Provação; tomam posse da Recompensa e são perseguidos no Caminho de Volta
40
ao Mundo Comum; cruzam o terceiro limiar, vivenciam uma Ressurreição e são transformados
pela experiência. Ao final, retornam com o Elixir, uma benção ou tesouro para beneficiar o
Mundo Comum.
Ainda que Campbell tenha pensado originalmente na jornada do herói de narrativas
mitológicas, com base em seus estudos, Vogler elaborou um guia prático para escritores da
atualidade fundamentado nos padrões atemporais de Campbell. De acordo com esse roteirista
da literatura de entretenimento produzida em Hollywood, a jornada do herói não é uma fórmula
fixa, mas uma forma, uma vez que no “íntimo de cada artista existe um lugar sagrado onde
todas as regras são deixadas de lado ou esquecidas deliberadamente, e nada mais importa senão
as escolhas instintivas do coração e da alma do artista.” (VOGLER, 2015, p. 19).
O roteirista ainda afiança que os estágios da jornada do herói podem ser perceptíveis em
todos os tipos de histórias, independentemente da representação da ação física “heroica” ou
aventuresca. Concebendo o herói como o protagonista, ele assinala que a história de um herói
é sempre uma jornada, podendo ser conduzida a um espaço físico, como um labirinto, uma
floresta ou uma caverna, uma cidade ou um país estrangeiro, mas também transportada ao
espaço interior da mente, do coração, do espírito e do reino dos relacionamentos pessoais.
No caso deste estudo, conforme já foi mencionado, a proposta é acompanhar a trajetória
dos heróis nicolelianos, a partir da análise de alguns elementos formais e temáticos,
considerando algumas questões: em que mundo vivem (realidade social) esses heróis? Para
quais universos são transportados durante suas jornadas? Que provas precisam enfrentar? Quem
são seus aliados/mentores? Como se dá o caminho de volta para a casa?
Sendo assim, para desenvolver esta análise, face ao corpo volumoso, lancei mão da
grade de estudo de narrativas proposta por Ceccantini (2000), que sofreu algumas adaptações
graças aos interesses, objetivos e necessidades deste estudo. A grade, além de oferecer maior
segurança ao desenvolvimento da pesquisa, em função do rigor na descrição previsto por ela,
permitiu a obtenção de uma visão geral da ficção juvenil dessa escritora, que ora é apresentada
aqui.
Conforme Ceccantini (2000), a aplicação da grade pode evitar que uma avaliação
impressionista se sobreponha à objetividade, de modo especial, em estudos que possuam um
corpus mais extenso. A grade elaborada por esse pesquisador para analisar 27 narrativas juvenis
contemporâneas, premiadas entre os anos de 1978 a 1997, foi composta de 26 campos, sendo
eles: 1. Obra; 2. Ano da 1ª Edição; 3. Gênero; 4. Resumo da Ficção; 5. Organização da
Narrativa; 6. Final da Narrativa; 7. Personagens Principais; 8. Personagens Secundárias; 9.
Tempo Histórico; 10. Duração de Ação; 11. Espaço Macro; 12. Espaço Micro; 13. Voz; 14.
41
Foco Narrativo; 15. Linguagem; 16. Tema Central; 17. Temas Complementares; 18. Família;
19. Escola; 20. Ler, Escrever Literatura; 21. Ilustrações; 22. Outros; 23. Comentário Crítico;
24. Classificação; 25. Faixa Escolar; 26. Prêmio(s) Recebido(s).
Partindo da grade de Ceccantini, para desenvolver este estudo, analisei 19 campos, a
saber: 1. Livro; 2. Categoria (adulto, infantil, juvenil ou infantojuvenil rubricado no livro)10; 3.
Ano da 1ª Edição; 4. Gênero; 5. Resumo da Narrativa; 6. Organização da Narrativa; 7.
Personagens Principais; 8. Personagens Secundários; 9. Tempo (histórico, cronológico ou
psicológico); 10. Duração da ação; 11. Espaço Macro; 12. Espaço Micro; 13. Voz Narrativa;
14. Foco Narrativo; 15. Temática Central; 16. Temas Complementares; 17. Linguagem; 18.
Pedagogismos; 19. Outras observações. A redução do número de itens a serem analisados se
justifica pelo fato de a aplicação da grade, neste estudo, focar o projeto artístico/literário de
Giselda Laporta Nicolelis. Do mesmo modo, o acréscimo do campo “Pedagogismos” justifica-
se pela já mencionada vertente pedagógica que predomina na literatura dessa escritora.
Isso posto, resta ainda uma outra questão a ser tratada: trata-se de esclarecer os critérios
utilizados para a análise das narrativas do corpus. A aplicação da grade de leitura levou a
observação de que na produção literária de Nicolelis sobressai-se três grandes tendências de
categorias narrativas, tal como foi proposto por Ceccantini (2000), a saber: narrativas de
aventuras, narrativas psicológicas e narrativas sociais. Há de notar que, naquele momento,
esse pesquisador deixou evidente as dificuldades e os riscos corridos no processo de
categorização das narrativas, mesmo que de forma ampla, pois não há como negar o caráter
híbrido do texto literário. Conforme relata o pesquisador, nenhum outro campo de análise
ofereceu tanta dificuldade como esse, exigindo dele diversas reformulações no processo de
classificação. Em suas palavras:
10
Esse campo foi utilizado para a categorização inicial da produção literária de Nicolelis; como o corpus deste
estudo é constituído apenas de narrativas juvenis, ele não aparece nas grades que constam no Apêndice (volume
2).
42
dominante para cada uma das obras analisadas na primeira linha do campo.
(Ceccantini, 2000, p. 312)
Isso ocorre porque, conforme salienta Tzevan Todorov (1980), os gêneros vão sofrendo
modificações, a partir das necessidades sociais e culturais do homem de cada tempo e espaço,
adentrando e recriando outros gêneros discursivos, transformando-se, desse modo, em uma
infinidade de outros gêneros. Em sua perspectiva, a origem de um gênero vem sempre de outro
gênero, na medida em que vai sendo transformado a partir de um gênero antigo. Assim ele
escreve:
Assim, ainda que a maior parte das narrativas constantes no corpus, pelos motivos já
apresentados, aproxime-se mais do gênero novela, optei por denominá-las aqui pelo termo
genérico “narrativa”, seguindo o mesmo critério adotado por Ceccantini (2000) no momento
em que analisou 27 narrativas premiadas. Fundamentando-se nos estudos de Jean-Marie
Schaeffer (1989), de Wolfang Kayser (1976), de Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1983), de
Paulo Medeiros e Albuquerque (1979), de Flávio Kothe (1994), entre outros, esse pesquisador
analisou as narrativas em questão aplicando categorizações elaboradas com base em critérios
semânticos e sintáticos; no interior das narrativas foram indicados subgêneros, “tomando por
base oposições de sentido, num caso, e da forma, no outro.” (CECCANTINI, 2000, p. 85).
Ceccantini afirma que, para a elaboração da tipologia com ênfase no critério semântico,
lançou mão de recursos que permitiram a aproximação “de um modelo genérico já amplamente
conhecido, de modo a facilitar a comunicação com o maior número de leitores possível.”
(CECCANTINI, 2000, p. 85). Ele relata que elaborou tal tipologia a partir da subdivisão
genérica proposta por Kayser (1976) para o romance, fazendo adaptações às especificidades da
literatura juvenil e do corpus estudado por ele.
43
Lista 4 - As três grandes categorizações narrativas feitas por Ceccantini e suas respectivas subdivisões.
O pesquisador ainda acrescenta que, no que diz respeito ao critério sintático, isto é, aos
elementos formais da narrativa, chegou-se a apenas três categorias que foram apontadas pelo
corpus analisado, a saber: narrativa epistolar, narrativa-diário e narrativa de contos. No corpus
desta pesquisa apareceu apenas a narrativa-diário, referente ao livro Macapacarana, que é o
mesmo livro que faz parte do corpus analisado por Ceccantini na ocasião.
44
Vale ainda esclarecer que, com exceção da narrativa de cavalaria, todas as demais
categorias divididas por Ceccantini em subgêneros foram observadas em pelo menos um dos
120 livros identificados. Igualmente é significativo mencionar que entre esses textos
identifiquei uma narrativa indianista11, categoria que não foi observada no conjunto de livros
premiados analisados por Ceccantini.
Necessário se faz notar que, independentemente da categoria narrativa predominante
encontrada, nos livros de Giselda Laporta Nicolelis as nuances de mistério se fazem presentes
em boa parte deles. Tal técnica narrativa pressupõe uma tentativa de fisgar o leitor, fenômeno
próprio da indústria cultural em que se insere a produção juvenil dessa escritora, nos moldes
propostos por Bourdieu (2007), tendo em vista a clara intenção da autora em atingir o “grande
público” com sua escritura.
A lista a seguir apresenta o corpus definitivo com os gêneros narrativos predominantes,
segundo a categorização proposta por Ceccantini (2000):
11
Trata-se do livro O resgate da esperança, que foi publicado em 1994 pela Editora Scipione, cujo tema central
é a aculturação indígena.
45
Narrativa psicológica
33 Como é duro ser Quinteto/ Scipione Narrativa psicológica: narrativa de formação
diferente! Narrativa social: narrativa de crônica urbana
Narrativa-diário
34 Sem medo de Atual Narrativa psicológica: narrativa de formação
viver Narrativa social: de crônica urbana
No conjunto dos 42 livros analisados, na perspectiva deste estudo, oito podem ser
filiados à linha de aventura, dezoito à psicológica e dezesseis à linha narrativa social
preponderantemente. Há de se enfatizar que, apesar disso, de modo geral, as novelas de Giselda
Laporta Nicolelis são recheadas de mistério e de muita ação. Como bem se sabe pelos
estudantes do gênero, uma fórmula conhecida para atrair a atenção dos leitores em formação,
com grandes possibilidades de introduzi-los no universo da leitura.
Destarte, para materializar meu discurso em relação à ficção juvenil de Giselda Laporta
Nicolelis, elaborei uma Introdução mais extensa e panorâmica, o que se justifica pelas muitas
variáveis, de cunho teórico e prático, subjacentes à problematização e ao desenvolvimento deste
trabalho, cujo corpus, como já se sabe, é bastante volumoso.
Em seguida, no primeiro capítulo, situo a produção literária juvenil de Giselda Laporta
Nicolelis no contexto dos estudos desenvolvidos sobre esse gênero, tecendo reflexões acerca
do estatuto do específico juvenil dentro do campo mais amplo da literatura, bem como trazendo
à luz alguns aspectos de sua carreira profissional e de sua obra na esfera do mercado editorial
brasileiro. Os apontamentos sobre a literatura juvenil focalizam os matizes, mais
especificamente os temas e formas, nela mais vislumbrados na contemporaneidade sob a ótica
de variados estudiosos. Fundamentam o capítulo em questão, em especial, as pesquisas
47
realizadas por João Luís Ceccantini (2000), Teresa Colomer (2003), Nelly Novaes Coelho
(1984; 2006), Larissa Warzocha Fernandes Cruvinel (2009), Gabriela Fernanda Cé Luft (2010).
Nos segundo, terceiro e quarto capítulos, busco a compreensão do mundo narrado na
literatura de Nicolelis, com base na análise dos elementos temáticos, estruturais e estilísticos
das narrativas do corpus, seguindo a jornada de seus heróis, com foco em três momentos: a
partida, que é quando o herói é chamado para a vivência da aventura; a iniciação, que diz
respeito as várias aventuras do herói ao longo de seu itinerário aventuresco; e o retorno,
momento em que o herói volta para a casa munido de poderes e conhecimentos apreendidos no
decorrer de sua jornada. Entre os teóricos que fundamentam a análise podem ser mencionados
Joseph Campbell (1997), Christopher Vogler (2015), Coelho (2000), Zilberman (2003).
Nesses três capítulos, com base nos elementos formais e temáticos e na trajetória
seguida pelos heróis nicolelianos, apresento um balanço geral das peculiaridades observadas na
esfera de cada uma das três grandes linhas observadas na produção juvenil de Nicolelis
(narrativas sociais, narrativas de aventura e narrativas psicológicas), analisando o modo como
a escritora lida com questões sempre muito caras à literatura juvenil, entre elas, as relações
adulto-criança, ruptura-normatividade, discurso estético-discurso literário e realismo-fantasia.
A intenção é avaliar de que modo Nicolelis dialoga, rompe ou mantém a tradição.
Com base na concepção de literatura como representação simbólica de uma dada visão
de mundo, no último capítulo, “Entre clausura e liberdade (à guisa de conclusão)”, situo a
produção literária dessa escritora no sistema literário juvenil, apresentando uma leitura possível
sobre a compreensão desse seu lugar, como também da configuração textual de sua obra, cujas
especificidades foram observadas ao longo do processo investigativo. Nesse capítulo final,
como suporte teórico, além de outras teorias importantes, destaco as proposições de Antonio
Candido (1972; 2011) e Pierre Bourdieu (2007).
48
Com vistas a compreender, analisar e avaliar a produção literária infantil e/ou juvenil
como um campo específico do conhecimento, nas últimas décadas, diferentes pesquisadores,
isolados ou em grupos de pesquisas de variadas universidades brasileiras, vêm desenvolvendo
trabalhos importantes a respeito dessa literatura que é germinada no Brasil entre os séculos XIX
e XX, com a difusão de Contos Nacionais para Crianças, cuja publicação é de 1882 , conforme
aponta Nelly Novaes Coelho em seu Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil
Brasileira, com base nos estudos de Leonardo Arroyo (1968). Esse, por exemplo, é o intuito do
projeto “Interstícios: literatura juvenil e formação do leitor – arte e indústria cultural”,
desenvolvido por um grupo de pesquisa formado por quatro universidades: PUCRS, UNESP,
UFG e UEM. Sob a liderança de Vera Teixeira de Aguiar, o grupo objetiva organizar trabalhos
de pesquisadores de quatro Programas de Pós-Graduação de diferentes regiões do país (PUCRS,
UNESP/Assis, UEM e UFG). Em texto de apresentação disponibilizado no portal do Catálogo12
é possível ler que as pesquisas catalogadas são realizadas em torno da temática literatura juvenil
e leitura, com vistas ao fortalecimento dessa área em seus Programas, além de pretender
contribuir para sua plena consolidação nos estudos da pós-graduação.
Nesse mesmo portal eletrônico, é possível ler que esse grupo de pesquisadores objetiva
a produção de uma pesquisa coletiva, original e sistemática sobre o tema; a realização de uma
reflexão mais profunda sobre a existência de um específico juvenil dentro do campo mais amplo
da literatura, propondo investigações verticais sobre o estatuto do gênero; o desenvolvimento
de uma metodologia alternativa de leitura da literatura juvenil na escola. Para tanto, o grupo
organiza um banco de textos narrativos brasileiros e um programa de acesso às etapas do
trabalho, de maneira que o professor tenha condições de escolher e planejar materiais e
atividades de leitura para seus alunos: Lista de Referências, Obras em Destaque e Banco de
Atividades.
12
Disponível no endereço eletrônico: (http://www.literaturajuvenilempauta.com.br/index.htm).
49
juvenil. Ele encontrou, nas primeiras décadas do século XX, um caminho para a inovação dos
textos escritos para crianças e jovens adolescentes, rompendo, “pela raiz, com as convenções
estereotipadas e abre as portas para as novas ideias e formas que o novo século exigia.”
(COELHO, 2006, p. 47).
O levantamento de Santos, igualmente, revela a importância dos estudos de Antonio
Candido para a compreensão da literatura infantojuvenil brasileira, bem como para entendê-la
como fenômeno pertencente a uma “cadeia produtiva”, na qual estão envolvidas diferentes
variáveis e sujeitos, como escritores, leitores previstos, mercado editorial, pesquisadores, pais,
professores. Além disso, suas proposições também oferecem elementos importantes para
justificar e defender a presença da comunicação literária em contexto escolar por parte de
diversos pesquisadores.
No que tange à presença da literatura infantil/juvenil na escola e nos espaços públicos,
a pesquisadora salienta que, considerando, sobretudo, os trabalhos desenvolvidos por
estudiosos da USP, esta justifica-se com base na proposição candiana que vislumbra o caráter
humanizador do texto literário. Em geral, os pesquisadores entendem a comunicação literária
como um bem incompressível, capaz de fornecer ao homem os elementos para o conhecimento
do mundo e do ser, tal como defende Antonio Candido.
Em direção análoga, a pesquisadora Maria Alice Faria, no livro Parâmetros
Curriculares e Literatura: as personagens de que os alunos realmente gostam (1999) também
dá aos estudos implementados por Candido um lugar de destaque no contexto das pesquisas
realizadas sobre o ensino da literatura no Brasil e salienta que esse intelectual e importante
estudioso brasileiro desenvolveu pioneiramente estudos destinados à sociologia da literatura.
Ela também destaca a atuação das pesquisadoras gaúchas Regina Zilberman, Maria da Glória
Bordini e Vera Teixeira de Aguiar, principalmente por terem realizado estudos precursores
nessa área, voltando-se para a sociologia da literatura e da leitura, divulgando entre nós os
autores que tratam da recepção de texto, como Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Roman
Ingarden. Faria enfatiza ainda que Magda Soares e outros, desde os anos 60, já “procuravam
novos caminhos para a pedagogia da leitura na escola e valorizavam a sociologia da literatura
[...]” (FARIA, 1999, p.10).
É significativo lembrar que as proposições de Antonio Candido se fazem presentes nas
razões que levaram João Luís Ceccantini a denominar o conjunto de 27 livros por ele analisados,
pertencentes à literatura juvenil brasileira premiada entre os anos de 1978 e 1997 de “estética
da formação”. A primeira razão para tal denominação se justifica pela temática da qual se ocupa
a maior parte da literatura juvenil: “a busca da identidade e o processo de amadurecimento do
52
jovem, do ponto de vista físico, intelectual, emocional, ético, entre outros aspectos [...]”
(CECCANTINI, 2000, 435-436). A segunda razão encontra-se ancorada na predestinação do
público leitor, uma vez que, com base na psicologia do desenvolvimento, o jovem é ainda um
ser em formação, e a terceira razão, do ponto de vista desse estudioso, é de visada mais ampla
e surge para substituir o termo “literatura pedagógica”, vertente que predominou durante longo
tempo na literatura destinada a crianças e jovens. Segundo Ceccantini, nas obras analisadas se
encontra uma outra vertente: a da formação não meramente pedagógica. Nesse sentido, o termo
“estética da formação” vai se remeter a
uma das funções fundamentais da literatura de todos os tempos, como tão bem
soube caracterizá-la Antonio Candido num texto hoje já clássico “A literatura
e a formação do homem” – em que aponta três funções básicas para a
literatura: a psicológica, a formativa e a de conhecimento do mundo e do ser.
(CECCANTINI, 2000, p. 437)
possível saída, do ponto de vista da terminologia, seria chamar esse leitor em formação que se
encontra na zona fronteiriça13 entre a infância, adolescência e a juventude de jovem adolescente.
As tensões associadas à delimitação e compreensão da faixa etária adolescência,
conforme apontam Pereira e Ceccantini (2008), também estão refletidas nos matizes dialéticos
que perpassam o gênero infantojuvenil desde as suas raízes, o que lhe confere “uma
instabilidade particular”, cuja compreensão não depende de qualquer esforço interpretativo.
A percepção desse mercado editorial em particular trouxe para diversos escritores uma
situação desconfortável, posto que, do ponto de vista de muitos deles, literatura é literatura e
ponto, não aceitando nenhuma adjetivação, ou seja, não gostam de ver seus textos “rotulados”
por setores do mercado editorial. A título de ilustração, o escritor Gustavo Bernardo, como
afiança Souza (2015), tem postura bastante reticente em relação ao enquadramento de seus
textos na categoria juvenil especificamente. Nessa mesma direção, a escritora Ana Maria
Machado escreveu no livro Contracorrente que o termo literatura infantil “não tem nada a ver
com textos para crianças” (2009, p. 13). Para ela, o que importa é o substantivo literatura, “arte
da palavra, beleza, ambiguidade, polissemia, qualidade de texto [...]” (2009, p. 13). Em sua
perspectiva, o adjetivo amplia o sentido do substantivo, dando a ideia de que esses textos
também podem ser lidos por crianças. Em contrapartida, conforme também salienta Souza
(2015), Jorge Miguel Marinho não se sente incomodado com rótulo juvenil de sua produção.
Em consonância com o pensamento de Ana Maria Machado, em Por uma literatura sem
adjetivos, María Teresa Andruetto afirma que o
que pode haver de “para crianças” ou “para jovens” numa obra deve ser
secundário e vir como acréscimo, porque a dificuldade de um texto capaz de
agradar a leitores crianças ou jovens não provém tanto de sua adaptabilidade
a um destinatário, mas, sobretudo, de sua qualidade, e porque quando falamos
de escrita de qualquer tema ou gênero o substantivo é sempre mais importante
que o adjetivo. (ANDRUETTO, 2012, p. 61)
13
Em termos de faixa etária, a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e A adolescente (ECA),
considera a criança o cidadão que tem até 12 anos incompletos, sendo os que têm acima dessa idade e menos de
18 anos, considerados adolescentes. O documento não trata do termo “juventude”.
55
Para Souza (2015), a grande novidade da atualidade é que mais de 40 anos depois do
reconhecimento do boom da literatura infantil e juvenil é que esses dois setores separam-se e o
segmento juvenil passou a ser um subgrupo à parte, com selos editoriais, coleções, séries e
escritores especializados no público jovem. Em suas palavras:
Pensar desse modo implica considerar a relação de dependência entre escritor e público
para o qual a obra é endereçada, como também todas as variantes subjacentes nessa relação.
Em terras brasileiras fica evidente que a expansão do mercado editorial de livros infantojuvenis
tem estreita relação com os ideais republicanos do país redemocratizado, no qual a
aprendizagem da leitura e da escrita passou a ser a condição básica para o desenvolvimento do
indivíduo em várias direções e, consequentemente, da nação.14
Para colocar em prática tal ideal, como se sabe, o governo brasileiro começou a investir
sistematicamente na compra de livros e na implantação de variados projetos e programas
voltados para essa finalidade. Em consequência disso, as editoras passaram a investir na
produção, particularmente, de publicações destinadas a atender não apenas ao gosto do leitor
em formação, como também do adulto que compra o livro, no caso, os representantes das
instâncias governamental, escolar e familiar.
Nesse sentido, esse mercado passa a ser muito atraente, especialmente pela possibilidade
de rentabilidade certa. Em 2009, conforme aponta Luft, com base em dados informados pela
Associação Nacional de Livrarias (ANL), o faturamento do setor de livros destinados a crianças
e jovens foi o que mais cresceu, firmando-se como um dos segmentos economicamente mais
relevantes do setor editorial no país. Sobre isso, Ceccantini escreve em sua dissertação de
14
A implementação da Lei 5692/71 (Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) foi crucial nesse processo,
pois foi responsável pela ampliação de quatro para oito anos da obrigatoriedade da educação escolar, tempo que
foi ampliado mais tarde pela Lei 9394/96.
58
mestrado Vida e paixão de Pandonar, o cruel, de João Ubaldo Ribeiro: um estudo de produção
e recepção:
Necessário se faz salientar que a possibilidade de rentabilidade oferecida por esse setor
em crescimento aponta para o caráter mercadológico do livro. Por outro lado, esse cenário
também abriu as portas para uma importante renovação estético-ideológica na literatura
destinada a crianças e jovens, uma vez que muitos escritores talentosos promoveram a
renovação nesse mercado, mesmo que atraídos pela possiblidade de lucratividade. É o caso, por
exemplo, do que ocorre com a produção juvenil do supracitado João Ubaldo Ribeiro. Em
entrevista concedida a Ceccantini (1993), o escritor afirma que o livro Vida e paixão de
Pandonar, o cruel, narrativa de reconhecida qualidade estética, nasceu na ocasião em que uma
editora paulista solicitou a ele um texto que deveria ser composto de 40 laudas,
aproximadamente, para jovens na faixa etária de catorze anos. Ele relata que na época receberia
pelo texto o que considerava uma fortuna, não se lembra exatamente quanto, mas sabe que era
um bom dinheiro.
Sobre isso, Nicolelis, apesar de afirmar constantemente que escreve por prazer e
vocação, reconhece que a literatura juvenil é uma fatia muito boa em termos profissionais. Em
entrevista também concedida a Ceccantini (2000), afirma que, enquanto alguns autores
consagrados diziam para ela que venderam tantos mil exemplares para o público adulto, ela já
havia vendido milhões para o público infantojuvenil, posto que o livro destinado ao público
adulto é mais caro do que o destinado a crianças e jovens adolescentes.
A autora constantemente comenta que muitos de seus livros nascem por encomenda.
Para o Museu da pessoa (2008), por exemplo, Nicolelis afirma que Um Dono Para Buscapé
(1982), livro que já teve mais de 60 edições e com venda superior a 300 mil exemplares, foi o
primeiro livro infantil da Editora Moderna. Na época, a editora contatou vários escritores e ela
foi a primeira a responder. Nessa mesma entrevista, salienta que escrevia diariamente e que
59
Nesses termos, o escritor é o profissional das letras que comercializa o fruto de seu
trabalho, como qualquer outro profissional de diferentes áreas. Tal constatação não está mais
em discussão, posto que, conforme afiança Ceccantini (2011), após ser motivo de intensos
debates e críticas no cenário cultural brasileiro nas últimas décadas, o pedagogismo
escancarado, que instrumentaliza a obra literária sem menor constrangimento, talvez já não
tenha muito espaço na produção mais recente. Atualmente, o que parece estar em jogo é em que
medida a literatura para jovens, arte da palavra, tem sido afetada por essa configuração, uma
vez que, na condição de bem simbólico, atua no processo de formação de meninos e meninas
em fase escolar.
Essa renovação, todavia, como observa Perrotti (1986), não significa a total extinção do
discurso utilitário nas obras infantis e juvenis que circulam no mercado editorial brasileiro,
tendo em vista que ainda é possível encontrar textos munidos de um discurso que objetiva muito
mais atuar junto ao leitor em formação, com vistas a inculcar nele certos valores, em geral,
representativos da ordem social dominante, do que proporcionar a ele a fruição estética gratuita.
Para esse pesquisador, que cunhou o termo “utilitarismo às avessas”, muitas vezes, o
discurso pedagógico também pode aparecer nos textos literários de forma camuflada e afirma
que a partir da década de 1970, muitas narrativas produzidas em terras brasileiras possuem
natureza contraditória, visto que caminham entre a tradição e o novo. Se no nível temático elas
negam o pedagogismo, assumindo um teor libertário, tomando o partido da criança e
defendendo seu ponto de vista, valores, interesses e anseios, no nível formal, predomina o
pedagogismo de maneira velada. Isso porque, no modo de narrar, continua a predominar o
discurso de mão única, persuasivo e fechado, que ainda é proferido sob o ponto de vista do
adulto, o que para Edmir Perrotti, distancia-se completamente da essência do texto literário.
Um exemplo desse tipo de constatação, de acordo com a análise do estudioso, é o livro A
curiosidade premiada, de Fernanda Lopes de Almeida.
Diante de tal cenário, nota-se que à medida que esse mercado editorial tem se expandido,
conforme afiançam Ceccantini e Pereira (2008), também tem aumentado o movimento em torno
da discussão sobre o estatuto da literatura juvenil em várias direções. Frequentemente, as obras
produzidas nesse setor são colocadas à prova “quanto a sua autonomia estética quanto a sua
capacidade humanizadora, segundo uma problematização que recusa qualquer abordagem
pasteurizada e apaziguadora, deixando emergir sem pudor vasta gama de forças contraditórias
e nem por isso menos legítimas.” (CECCANTINI; PEREIRA, 2008, p. 9).
Em busca da definição e compreensão das especificidades da literatura juvenil
brasileira, variados pesquisadores têm se fundamentado em estudos nacionais e internacionais.
61
Em geral, tais investigações têm encontrado congruências que vão em vários sentidos, é o que
aponta, por exemplo, os estudos desenvolvidos por pesquisadores, como Larissa Warzocha
Fernandes Cruvinel, Gabriela Fernanda Cé Luft e João Luís Ceccantini. A título de ilustração,
para refletir sobre as especificidades da literatura juvenil, Cruvinel (2009) fundamentou-se em
estudos realizados por Delbrassine (2002, 2006), Sandra Beckett (1997), Geffard-Lartet (2005)
e Danielle Thaler (2002). Já Luft (2010), encontra pontos em comum entre as especificidades
da literatura juvenil brasileira contemporânea com as narrativas estudadas por Teresa Colomer,
em Catalunha, no final do século XX.
Do mesmo modo, Ceccantini, ancorado na tradição dos estudos de literatura comparada,
identificou um movimento de aproximação e de distanciamento na literatura juvenil brasileira
e na literatura juvenil galega que, segundo ele, “pode ser bastante fecundo para uma
compreensão mais vertical de um e de outro.” (2010, p. 80). De modo geral, essa aproximação
é positiva e aponta caminhos interessantes para a compreensão do que vem a ser esse campo
específico, ressalvando, evidentemente, as particularidades socioculturais e históricas
específicas de cada país.
Nas últimas décadas, têm sido produzidos no cerne de diversos cursos de graduação,
pós-graduação e centros de pesquisas trabalhos significativos sobre o assunto. Para
exemplificação, a pesquisadora Nathalia Costa Esteves, em dissertação de mestrado intitulada
Heróis em trânsito: narrativa juvenil brasileira contemporâneas e construção de identidades,
defendida em 2011, fez o levantamento de vários estudos realizados em diferentes programas
de pós-graduação, cujo objeto de pesquisa é a literatura juvenil. Além do estudo realizado por
Ceccantini (2000), ela destaca a pesquisa de Malu Zoega de Souza, cuja pesquisa deu origem,
entre outros trabalhos, ao livro Literatura Juvenil em questão: aventura e desventura de heróis
menores (Cortez, 2001).
Segundo a pesquisadora, na Universidade Estadual de Maringá, tanto os alunos da
graduação como os da pós-graduação vêm se dedicando à pesquisa nessa área por meio de
projetos de iniciação científica e outras modalidades de pesquisa, e destaca as dissertações de
mestrado: Os colegas, de Lygia Bojunga Nunes: um estudo da recepção no ensino fundamental,
desenvolvido por Berta Lúcia Tagliari, em 2005; Marina Colasanti: longe ou perto do querer
do leitor?, realizado por Márcia Juliane Valdivieso Santa Maria, em 2006; E as meninas
cresceram: a construção da personagem feminina nas obras de Ana Maria Machado, produzido
por Sílvia Maria Rodrigues Nunes Cantarin, em 2008.
Do mesmo modo, Esteves assinala que no programa de pós-graduação da Universidade
do Estadual Paulista - UNESP de Assis também há pesquisas na área juvenil relevantes e chama
62
Tudo menos ser gorda: a literatura infanto-juvenil e o dispositivo da magreza (2006). Na USP
de São Paulo são ressaltadas as pesquisas desenvolvidas por Maria Sílvia Pires Oberg, orientada
por Edmir Perrotti e intitulada A mediação sociocultural reguladora: a ficção juvenil brasileira
contemporânea entre a educação, a arte e o mercado (2000) e a de Laís de Almeida Cardoso,
Percurso do órfão na literatura infantil/juvenil, da oralidade à era digital: a trajetória do herói
solitário (2006). Esteves destaca ainda o trabalho de Rosa Maria Cuba Riche, professora da
Universidade Federal Fluminense, cujo título é Literatura infanto-juvenil contemporânea:
texto/contexto, caminhos/descaminhos.
Como se pode perceber, os títulos das teses e dissertações levantadas por Esteves
evidenciam a estreita relação entre as literaturas infantil e juvenil, dada a frequente ocorrência
da terminologia infantojuvenil que, conforme mencionado anteriormente, é capaz de supor um
público leitor mais abrangente. Em geral, as pesquisas levantadas estudam a literatura
infantojuvenil sob diferentes enfoques, destacando-se entre eles: relações entre texto e leitor,
com foco na recepção de textos, comumente de autores consagrados dessa área, como também
no oferecimento de contribuições teóricas e metodológicas na esfera do ensino da literatura;
análise das relações entre literatura juvenil, como fenômeno produzido pela indústria cultural,
e as exigências do mercado editorial; discussão sobre a dualidade: arte e pedagogia; análise das
principais especificidades da literatura juvenil contemporânea, entre outras. Independentemente
do enfoque, o texto literário é o principal objeto de estudo, especialmente, a literatura premiada,
que, a priori, representa o que tem de melhor nessa área.
Em linhas gerais, predominam nesses estudos a visão de que o texto literário não é o
espaço para a transmissão de princípios didatizantes e moralistas, especialmente em uma
sociedade redemocratizada como a nossa. Ao escritor, fica o desafio de construir, na
materialidade do texto literário, pontos de vista em que os leitores em formação se reconheçam
na condição de criança ou de jovem adolescente, superando “a visão do adulto, sua autoridade,
sua influência e ideologia.” (TURCHI, 2004, p. 39).
Apesar disso, conforme já foi mencionado, estudos de variados pesquisadores,
evidenciam que textos literários com as características elencadas por Turchi continuam vivos
no mercado e convivem, de certo modo, pacificamente com textos nos quais está subjacente
uma proposta emancipadora, aspecto que já foi apontado por João Luís Ceccantini quando
chamou a atenção, na década de 90, para o evidente papel desempenhado pelo mercado sobre
a produção literária, por meio de uma complexa gama de variáreis. Segundo ele, nesse contexto,
três aspectos se sobressaem: “1) a aproximação – por vezes fusão – da literatura com a
comunicação de massa, pressionada pela dinâmica especulativa do mercado; 2) a manutenção
64
da tradição pedagógica da literatura infanto-juvenil, ainda que adaptada a uma nova realidade
histórico-social; 3) a importante renovação estético-ideológica que acompanha a expansão do
setor.” (CECCANTINI, 1993, p. 14).
No que diz respeito à convivência de textos de vertente pedagógica e os de
predominância estética no mercado editorial, a pesquisa de Cruvinel (2009) traz elementos que
iluminam a discussão. A pesquisadora investiga as especificidades das narrativas juvenis
brasileiras contemporâneas partindo da hipótese inicial de que há, nas obras voltadas para
jovens, uma preocupação em configurar um processo de educação para a vida, uma
preocupação própria do chamado Bildungsroman (romance de formação), um gênero que tem
como modelo principal Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
Segundo a pesquisadora, nessa obra, a educação humana está centrada em preceitos que
fogem dos ensinamentos puramente utilitários para levar o protagonista a um processo de
amadurecimento causado pelo enfrentamento das provas próprias da existência. A estudiosa
analisou várias narrativas pertencentes à Série Vaga-Lume, da Editora Ática, uma coleção
pioneira no Brasil na publicação de narrativas voltadas para o jovem leitor, e também dos
romances finalistas do prêmio Jabuti, selecionados pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) nos
anos de 2006 a 2008, na categoria “Melhor livro juvenil”.
A sua investigação demonstra que, em geral, as obras analisadas procuram seduzir o
leitor em formação, com estratégias que se ligam a escolhas temáticas e formais, e o tema da
educação é uma vertente importante, uma vez que ao final das provas enfrentadas, a personagem
jovem tende a ter um acréscimo em sua experiência de vida. A pesquisadora detectou ainda que
no que concerne aos aspectos formais, “há narrativas que se aproximam das experimentações
artísticas que marcam os gêneros literários na modernidade e narrativas mais presas aos padrões
tradicionais e que optam por prender o leitor com técnicas consagradas e que não oferecem
grandes dificuldades para a compreensão da obra literária.” (CRUVINEL, 2009, p. 149).
Tais vertentes foram divididas por ela em duas categorias: “narrativas juvenis ao lado
da modernidade” e “narrativas juvenis imersas na modernidade”. Os livros constituintes da
Série Vaga-Lume e alguns finalistas do prêmio Jabuti foram situados na esfera das “narrativas
juvenis ao lado da modernidade”, sobretudo, por possuírem uma estrutura narrativa tradicional,
em que as certezas absolutas em relação à ordenação da realidade operam, estando estas bem
próximas dos romances do século XIX.
Já a categoria “narrativas juvenis imersas na modernidade” pode ser atribuída às obras
finalistas do prêmio Jabuti. Na maior parte delas, a pesquisadora detectou a presença de ruptura
com um modelo tradicional de romance, incorporando em sua estrutura formal procedimentos
65
15
Trata-se da tese intitulada Le roman pour adolescents aujourd’hui: écriture, thématiques et réception, defendida
em 2005 e publicada em 2006, que, segundo Cruvinel (2009), busca compreender os rumos que tem tomado a
produção da literatura juvenil na contemporaneidade.
66
não lhe dá amor. Do mesmo modo, segundo Alice Áurea Penteado Martha, no artigo “Temas e
formas da narrativa juvenil brasileira contemporânea, no conjunto das obras juvenis analisadas
por ela, tanto no plano temático como no formal, observa-se a representação da juventude por
meio da exploração dos conflitos vivenciados nessa fase da vida.
Vale mencionar que, no conjunto dos livros juvenis escritos por Nicolelis levantado ao
longo deste processo investigativo, a maior parte deles apresenta o jovem como herói. No
entanto, é pertinente observar que levantei 13 narrativas que possuem como protagonistas
unicamente personagens adultas e, em várias outras, o protagonismo é dividido entre jovens e
adultos. Nessas narrativas, a temática tende a ser bastante genérica, nada tendo (ou tendo muito
pouco) a ver com o universo juvenil, pelo menos, numa escala mais ampla. A serra dos homens
formigas, por exemplo, narra a odisseia de seis homens que deixam suas famílias e tomam o
mesmo pau-de-arara rumo ao famoso garimpo da Serra Pelada. Ali eles vão vivenciar diferentes
(des)aventuras até chegar o dia de voltar para a casa.
Já em Na boleia de um caminhão são narrados os problemas vivenciados pelos
caminhoneiros brasileiros que precisam enfrentar momentos difíceis todos os dias na rotina do
transporte rodoviário. A ação é concentrada em Chicão e em seu ajudante, Zé, que juntos vivem
uma série de situações tentando ajudar as vítimas de um grave acidente. A opção pela
abordagem de temas amplos parece pressupor um leitor já capaz de compreender e de lidar com
temáticas mais complexas, que enfrenta a “dura realidade da vida” e está aberto para outras
realidades que não a dele próprio.
Outra característica das narrativas juvenis contemporâneas que vem sendo apontada nos
estudos atuais sobre o gênero é o distanciamento das narrativas tradicionais, sobretudo, no que
concerne aos aspectos formais, do qual é exemplo a investigação desenvolvida por Teresa
Colomer que analisou 150 narrativas publicadas em língua catalã ou espanhola (mas não
necessariamente de autores espanhóis), cujos resultados estão materializados no livro A
formação do leitor literário16. Conforme já foi mencionado, essa nuance também foi
identificada por Ceccantini (2000) e ratificada por Luft em 2010, particularmente, quando o
objeto de análise é a literatura juvenil brasileira contemporânea premiada. De modo sintético,
o estudo de Colomer partiu, segundo ela, de dois pressupostos:
16
Segundo Cristina Marias Vasques, em resenha produzida sobre esse livro em 2007, A formação do leitor literário
foi premiado em 2003 como melhor livro teórico, pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLIJ) –
seção brasileira da International Board on Books for Young People (IBBY), responsável pelo Prêmio Hans
Christian Andersen, o maior da literatura infantil mundial. Este foi traduzido por Laura Sandroni, renomada
escritora e crítica literária brasileira, fundadora da FNLIJ e foi distribuído aos professores da rede estadual paulista
de ensino por meio do programa Leituras do Professor.
68
A autora afirma que, em relação aos gêneros literários adotados, os temas e os valores
tratados encontram-se em estreita relação, de modo que as mudanças efetuadas se manifestam
na ampliação temática e na diversificação dos tipos de desfecho produzidos, nas características
dos imaginários, nos personagens e cenários narrativos utilizados, na modificação da narrativa
de tradição oral e na adoção de modelos gerados pela literatura para adultos. Ainda segundo
ela, a consequência disso é o vislumbramento, nas narrativas atuais, da fantasia, do humor, do
jogo literário, da psicologização e da ruptura de tabus temáticos, “assim como, também, que os
valores que apresenta respondem aos valores educativos em auge nas sociedades altamente
industrializadas e às formas de ‘pedagogia invisível’ que os transmitem” (2003, p. 376).
Em relação à construção da narrativa, a estudiosa afirma que observou os seguintes
traços:
Tais traços, na visão da pesquisadora, contribui para enfatizar “a narrativa atual como
uma forma literária escrita, em consonância com os traços próprios da cultura audiovisual e das
tendências culturais definidas como ‘pós-modernidade’.” (COLOMER, 2003, p. 376).
Já no que diz respeito ao aumento da complexidade incorporado às narrativas infantil e
juvenil atuais, essa tendência foi observada pela introdução de modelos literários que
pressupõem novas condições de enunciação. No entanto, este ponto parece especialmente
condicionado pelo princípio de compreensibilidade que rege este tipo de literatura. A
pesquisadora esclarece que as complicações produzidas nas narrativas são limitadas em relação
a suas possibilidades e tendem a considerar os pressupostos sobre a idade do leitor para o qual
o texto se dirige.
Quanto ao que se refere ao grau de participação concedido ao leitor na interpretação da
obra, Colomer afirma que a leitura mais participativa foi derivada das muitas das características
adotadas pelas obras atuais, entre elas: 1) a presença de ambiguidades no significado,
principalmente na relação entre os elementos reais e fantásticos das obras; 2) o estabelecimento
de perspectivas narrativas distanciadas através do humor; 3) a utilização de referências
70
intertextuais e a opacidade outorgada aos elementos construtivos da obra, que passam a formar
parte da mensagem; 4) a diminuição do controle explícito da narrativa por parte da figura do
narrador em sua forma tradicional.
Quanto ao último item apontando por Teresa Colomer – a consolidação da literatura
como forma escrita –, para a pesquisadora, esse processo é proveniente das características
constatadas nos itens anteriores.
diversidade de temáticas trabalhadas. O período analisado por ela supõe uma época
especialmente ativa no processo de modernização das narrativas juvenis, o que se deu,
sobretudo, pela ênfase na função literária, graças ao impulso experimental que “ampliou os
limites em relação aos condicionamentos anteriores sobre o que se considera adequado e
compreensível em obras dirigidas a jovens.” (LUFT, 2010, p. 173).
Embora as narrativas juvenis brasileiras contemporâneas tenham sofrido esse processo
de modernização, que se deu a partir do início da década de 1980 aproximadamente, como já
se disse, variados escritores, entre eles Giselda Laporta Nicolelis, continuaram a produzir textos
pautados nos princípios do discurso utilitário, cuja ênfase se dá muito mais na temática, na
transmissão de certos valores instituídos e na conservação de técnicas narrativas tradicionais do
que nos elementos estéticos. Tal apontamento poderá ser vislumbrado nos capítulos dedicados
à análise dos 42 livros da autora eleitos como corpus deste trabalho investigativo.
Eu botei na minha cabeça que eu ia ser escritora. Então, eu queria ser escritora
profissional. Como o meu pai tinha uma escola, então, praticamente a gente
dirigia essa escola. Então, eu casei. Então, eu tinha, digamos, eu tive muita
sorte porque eu tive uma infra-estrutura que me permitiu só ficar escrevendo.
Porque geralmente o escritor no Brasil, ou no mundo todo, ele é professor, ele
é bancário, ele é médico, ele é advogado. Então, ele escreve nas horas vagas.
E eu botei na minha cabeça que eu queria ser uma escritora profissional. Até
o Enio Guazzelli brincava "Você é o único escritor profissional que eu
conheço". Porque eu tinha uma infra-estrutura familiar, que eu tinha um
rendimento que eu podia ficar escrevendo. E até teve uma época que eu tentei
ser redatora. Eu fui procurar emprego em firma de publicidade, essa coisa e
73
tal, como redatora. Você sabe que uma vez eu fui numa firma aqui em São
Paulo e era um senhor, ele falou: "Não contrato mulher. Não contrato mulher".
Mas estou falando de 30 anos atrás. "Não contrato mulher". E outra coisa, eu
ia procurar emprego, "Você tem experiência?" "Você tem experiência?" Eu
dizia: "Mas, como? Se é o meu primeiro emprego, como é que vou ter
experiência?" "Ah, mas a gente não contrata também quem não teve o
primeiro emprego". Então, ficava nesse paradoxo. Eu não tinha o primeiro
emprego, não me contratavam ou porque eu era mulher. Eu falei: "Ó, quer
saber de uma coisa? Acho que o meu destino não é ser funcionária de ninguém.
E como eu sempre fui muito rebelde, muito questionadora, eu falei: "Acho que
eu não vou durar muito, não", porque eu não sou muito de ficar fechada dentro
do lugar. Porque a minha mãe foi funcionária pública a vida toda, inclusive eu
tenho um livro que eu conto isso. Então, aquilo de eu chegar, ver aquelas
pessoas sentadas ali anos a fio, 20, 30 anos sentada no meu mesmo lugar,
trabalhando com a mesma coisa. Aquilo me dava uma agonia. Não dá. Não
era pra mim. Não era pra mim. Então, eu sempre tive um espírito muito liberto
e tudo o mais. Então, eu falei: "Não. Se o meu destino é ser escritor, eu vou
tentar até conseguir". E até que eu consegui. (NICOLELIS, 2008, n.p.)
publicado pela editora Comunicação; Prêmio Escrita de Literatura Infantil – 1979 – São Paulo
e Fernando Chinaglia de Literatura Infantil/1980 –
Rio de Janeiro, pelo livro Onde mora o arco-íris?, publicado pela editora Pioneira; Prêmio
Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro/1985, na categoria Literatura Juvenil, em parceria com
Ganymedes José, com o livro Awankana, da editora Saraiva. Em Estúdio 44 é trazida a
informação de que Névoa Fria também foi agraciado com menção honrosa no Prêmio Fernando
Chinaglia II de poesia17.
Das antologias em que Nicolelis participou, consegui identificar dez ao longo do
processo investigativo, sendo elas: Estórias, Bichos! (Volume 1 e 3), antologias infantis
publicadas pela Editora do Escritor na década de 1970; Contos jovens 3, lançado pela Editora
Brasiliense em 1976, cujo primeiro volume é de 1974; Vôo Vetor, antologia de poesia também
lançada na década de 1970 pela Editora do Escritor; Estúdio 44, coletânea de contos igualmente
publicado pela Editora do Escritor. Em 2005, Nicolelis participou das antologias Poesia:
varinha mágica e Quem conta um conto, ambas publicadas pela Editora Harbra e organizadas
por Nelly Novaes Coelho. A autora participou ainda, de acordo com informações constantes no
blog Lista de livros, alimentado por Daniel Medeiros Padovani, das antologias Em revista -
volume 4 (1974), Meio-dia, revista de ficção (1978) e Sete faces da escola (1998).
É bom observar que, de sua vasta produção literária, muitos livros produzidos
individualmente, em coautoria ou com participação em antologias, organizadas por diferentes
sujeitos, já estão fora de circulação. Na já mencionada entrevista concedida ao Museu da
Pessoa, a autora afirma que 65 dos 125 livros (incluindo a sua participação em antologias) que
havia publicado até aquele momento estariam vivos. Entretanto, em pesquisa realizada em sites
de busca na internet, consegui identificar 55 títulos em circulação no mercado editorial, como
demonstra a lista que segue:
17
Vale informar que esse livro não foi encontrado ao longo deste processo investigativo, nem mesmo no portal
eletrônico do sebo literário Estante Virtual, no qual os demais livros foram levantados.
75
Lista 6 – Livros de Giselda Laporta Nicolelis que ainda circulam no mercado editorial brasileiro.18
18
Convém informar que a lista acima foi elaborada a partir de pesquisa feita nos sites de busca
www.buscape.com.br e www.bondfaro.com.br. As informações a respeito de número e ano da edição atual dos
livros em circulação foram obtidas nas livrarias nas quais eles estão à venda, sobretudo, na Saraiva. Do mesmo
modo, o portal eletrônico da Agência Brasileira do ISBN (International Standard Book Number) www.isbn.bn.br,
foi fundamental para obtenção das informações em questão.
76
A lista supracitada aponta que menos de 50% da obra de Giselda Laporta Nicolelis
resistiu às demandas de um mercado editorial cada vez mais exigente, que a partir da virada do
século XX para o XXI, como lembra Borelli (1996), fundamentada em depoimento de Fernando
Paixão, passa a buscar não apenas qualidade literária, como também a eficácia de relação e
comunicação com o leitor.
Não se pode negar que do ponto de vista da comunicação com o leitor, sobretudo, com
o leitor adulto (pais e professores que compram e/ou legitimam o valor cultural do livro
infantojuvenil), Nicolelis possui uma relação satisfatória. Todavia, do ponto de vista estético,
sua produção deixa a desejar, conforme será possível verificar nos capítulos que seguem, o que
pode ser justificado pelas fortes marcas ideológicas presentes em sua obra e concessões
mercadológicas que faz, com vistas a atender à demanda, especialmente, escolar. Do ponto de
vista da escritora, a não sobrevivência de toda a sua produção literária no mercado editorial
deu-se porque alguns deles foram destratados, outros, ela não quis reeditar ou ficaram datados.
Seja como for, ao longo de sua carreira, Nicolelis escreveu muito, e uma das
justificativas para essa vasta produção literária é que, para a autora, escrever é uma terapia e
77
uma fonte inesgotável de prazer. Na seção “Autor e Obra”, disponível em Um dono para
Buscapé, ela escreve:
Por que escrevo livros? Ah, eu adoro escrever! A minha vida não teria o menor
significado sem literatura. É a válvula de escape do meu vulcão interior. Sou
agitada, curiosa, irreverente; fui o terror dos professores porque falava e fazia
perguntas o tempo todo.... Já era vírus do escritor, sabe como é? E continuo
do mesmo jeito, querendo virar tudo do avesso para contar depois nas minhas
histórias. Por isso é que faço tantos livros! (NICOLELIS, 1983, n. p.)
O resultado dessa ânsia por escrever não poderia ser outro senão essa vasta produção
literária que, conforme já mencionado, vai em várias direções: publicações individuais e em
coautoria, participação em antologias diversas, reescritas de títulos que deixaram de ser
editados, adaptações de grandes clássicos da literatura infantil e juvenil, escrita de contos,
poesias, crônicas, ensaios, autobiografia, romances e novelas.
Na mesma medida, é necessário ressaltar que Giselda Laporta Nicolelis também exerce
papel ativo no âmbito do fomento da leitura e não raro ministra palestras em escolas em que
seus livros são adotados, sejam elas públicas ou particulares. Nessas palestras, comumente, a
autora explora as temáticas discutidas em suas narrativas, o que, segundo ela, rendeu-lhe até
uma biblioteca que leva o seu nome. Quando indagada, em 2012, pela Editora Saraiva sobre o
papel da escola e da família na formação de leitores, dá a seguinte resposta:
Uma casa onde as pessoas leem é um bom começo para que a criança seja
estimulada a ler. A família que assina um jornal, revistas, que tem uma
biblioteca, é um ótimo exemplo – eu, por exemplo, costumo dizer que minha
casa era uma ilha cercada de livros por todos os lados, inclusive os de História
do Brasil que minha mãe adorava e que ainda guardo com carinho, livros
raros, esgotados. A escola também tem um grande papel estimulador da leitura
desde que o texto seja adequado para a faixa etária a que se destina. Durante
toda a minha vida de autora tive e tenho o maior prazer de fazer palestras pelo
Brasil, tanto em escolas públicas quanto particulares onde meus livros são
adotados. Tenho até uma biblioteca com o meu nome dado pelos alunos a cuja
inauguração compareci – os alunos perfilados no pátio cantando o hino
nacional foi uma das maiores emoções da minha vida: fiquei arrepiada.
(NICOLELIS, 2012, n.p.)
78
Ilustra o comentário acima os vários depoimentos que podem ser encontrados na rede
social Skoob a respeito dos livros dessa autora. Nessa rede, que tem o objetivo de agregar livros
lidos por leitores brasileiros, uma leitora que se identifica como Tati Ribeiro, escreveu em 28
de junho de 2010 o seguinte comentário a respeito da narrativa Espelho maldito (1998):
“Bacana/Nossa! Eu li esse livro há muito tempo. Ele foi adotado como livro extraclasse no meu
colégio. Ainda lembro da história, gostei muito dele.”
(https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/5236/edicao:6360). Esse comentário também
ratifica a informação de que os livros de Giselda Laporta Nicolelis se fazem fortemente
presentes no âmbito escolar.
Tal fato evidencia o duplo destinatário das narrativas produzidas por Nicolelis: o adulto,
geralmente representante da instituição escolar (professores, coordenadores pedagógicos,
diretores), que busca no texto literário um meio de proporcionar a educação dos jovens, como
também muitos pais que buscam na literatura uma função utilitarista, e o adolescente que gosta
de ler textos unívocos, com estruturas lineares e temas transparentes.
Ao fazer essa opção, Giselda Laporta Nicolelis, como também os editores de seus livros,
afastam sua obra do campo erudito, nos moldes concebidos por Bourdieu (2007), para situá-la
no campo da indústria cultural. Do ponto de vista desse crítico, no campo erudito, são
produzidas obras pautadas nos princípios da gratuidade e originalidade, cuja legitimação se dá
pelos próprios produtores de bens culturais (os pares), como também por intelectuais advindos
de instâncias, como: a crítica (representantes da academia, no nosso caso, professores -
pesquisadores universitários, ligados a grupos de pesquisas de graduação e pós-graduação),
revistas especializadas, museus e programas governamentais, em geral, dirigidos por
intelectuais ligados às universidades. Os critérios de avaliação passam, essencialmente, pelo
nível de elaboração estética (estilísticas e técnicas) em relação a textos anteriores, como também
pelo seu valor cultural. Por outro lado, as produções do campo industrial obedecem à lei das
demandas e da concorrência para a conquista do maior número de receptores. Nesse sentido,
sua legitimidade é concedida com base nos critérios da concorrência, fundamentada, em
especial, conforme os interesses do grande público.
À primeira vista, é possível levantar a hipótese de que a autora em questão não espera
aprovação da crítica literária, haja vista o distanciamento vislumbrado entre as aspirações da
crítica em relação ao texto literário juvenil contemporâneo de qualidade e o projeto
artístico/literário contemporâneo de Nicolelis. Essa constatação pode ser vislumbrada na esfera
das premiações obtidas pela autora que se concentram entre as décadas de 1970 e 1980,
momento em que a literatura infantojuvenil nacional está se consolidando em meio às amarras
80
19
Expressão usada por Teresa Colomer (2003, p. 169).
81
A citação acima sinaliza que o centro do projeto literário de Nicolelis está na temática,
o que também ficou evidente na análise das 42 narrativas do corpus. É por meio da discussão
de assuntos polêmicos e urgentes pertencentes à realidade imediata do leitor que vive nos
centros urbanos e concernentes à classe média que, com uma linguagem acessível e estrutura
linear, cronológica e simples, ela tem conseguido conquistar muitos jovens adolescentes, pais
e professores que buscam na literatura emoção, reflexão, conhecimento, diversão e formação
em várias direções. E ainda que a intenção utilitária de seu projeto literário seja alvo de acirradas
críticas na esfera acadêmica, conforme será apontado no subtítulo que segue, isso não foi um
obstáculo para a sua carreira bem-sucedida no mercado editorial brasileiro de livros infantis e
juvenis.
À primeira vista, Nelly Novaes Coelho é uma das primeiras pesquisadoras a chamar a
atenção para os textos de Giselda Laporta Nicolelis sob a ótica da estética literária. Em seu já
citado Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, encontram-se analisados
44 livros dessa autora; na primeira edição desse dicionário, datado de 1983, essa pesquisadora
analisou 16 livros de Nicolelis de forma mais detalhada e criteriosa. Já em sua quinta edição,
revisada e atualizada (2006), a autora acrescentou as análises de 28 livros, desta vez de modo
bem mais sintético.
A busca pelo aperfeiçoamento, do ponto de vista de Nelly Novaes Coelho (1984), marca
a produção literária de Giselda Laporta Nicolelis que, já na década de 1980, havia conquistado
lugar bem definido “nos quadros” da literatura destinada a crianças e jovens. Vale lembrar que
Coelho não tem apreço pela sua primeira produção literária voltada para o público infantil e,
por isso, a considerou imatura e incipiente, bem própria de quem ainda está à procura. Coelho
aponta diferentes falhas em Coruja Lelé, entre elas a linguagem demasiadamente elaborada
para a compreensão dos pequeninos, a sua inabilidade ao compor a teia narrativa, uso de
informações desnecessárias, ênfase em comportamentos negativos para as crianças e nas
diferenças de classe e hierarquia entre os seres, além das falhas de reestruturação da narrativa.
Enfática, essa pesquisadora afirma que esse livro “ganharia muitíssimo se fosse reescrito...”
(COELHO,1984, p. 293).
82
O mesmo não ocorreu com o seu segundo livro, Domingo, dia de cachimbo, publicado
em 1976. Ganhador do Prêmio Monteiro Lobato de Literatura – Secretaria de Cultura de São
Paulo, na visão de Nelly Novaes Coelho, nessa narrativa Nicolelis “praticamente venceu a
distância que vai do tentar ao conseguir. Seu domínio na manipulação literária enriqueceu-se
substancialmente, porque sua proposta também cresceu em significação.” (COELHO, 1984, p.
293).
Já a primeira narrativa juvenil de Nicolelis é considerada por Coelho uma experiência
acertada, uma vez que consegue em O brasão do lince dourado (1977), narrativa de mistério e
aventuras, oferecer ao leitor jovem (e ao adulto também) “uma boa distração de leitura, em
linguagem cuidada e viva, no ritmo alternado de aceleração ou lentidão, conforme avança a
intriga. E principalmente estimulando-lhe a curiosidade, - condição básica para toda e qualquer
evolução cultural do indivíduo.” (COELHO, 1984, 295). Tendo sido reeditado sob o título O
fantasma da torre, em 1998, para essa pesquisadora, nele Nicolelis teve uma experiência bem
lograda, sobretudo, pela verossimilhança da trama, fundindo dados da vida atual (intercâmbio
cultural entre diferentes países) com dados históricos da sociedade brasileira (expedições
bandeirantes).
Sumariamente, a respeito do conjunto da obra de Nicolelis, do ponto de vista de Novaes,
a sua “linha de criação literária prende-se à realidade do cotidiano em todos os seus níveis e
áreas. Daí que a pesquisa in loco seja o ponto de partida da maioria de seus livros.” (COELHO,
2006, p. 295). Corroborando com essa ideia, Luiz Fernando França, em “Desconstrução dos
estereótipos negativos do negro em Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, e
em O menino marrom, de Ziraldo”, publicado em 2008, também situa a narrativa de Nicolelis,
mais especificamente os livros Um sinal de esperança e Da cor do azeviche, na linha de textos
que buscam representar a realidade cotidiana. Segundo esse pesquisador, no âmbito das
narrativas as quais teve acesso em seu trabalho investigativo, cujo tema é a problematização do
negro, ele posiciona os livros em questão na linha dos que tematizam o preconceito racial frente
à realidade social.
O fato de Nicolelis explorar os temas sempre latentes da realidade cotidiana aproxima
seus textos do universo escolar, posto que, em certa medida, sua literatura possibilita a
discussão de determinados temas sempre caros para a escola e a família, como: sexo,
homossexualidade, drogas, gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis,
entre tantos outros. A vertente pedagógica das narrativas juvenis escritas por Nicolelis é,
certamente, um fator preponderante para a adoção de seus livros em variadas escolas
particulares. É muito comum a presença de um ou dois de seus títulos em listas escolares
83
disponibilizadas na internet. A autora tem consciência disso e parece apreciar tal situação. A
esse respeito, ela tece o seguinte comentário em entrevista concedida ao Museu da Pessoa:
A citação acima evidencia que a autora reconhece a vertente pedagógica de seus livros,
assumindo, de certo modo, que a tônica de suas narrativas está predominantemente na temática
e parece considerar isso um ponto positivo, uma vez que trata sempre de temas tabus que vão
ao encontro das necessidades da esfera escolar, concepção que situa sua obra no campo da
indústria cultural. Sendo assim, considerando o campo de produção e circulação dos bens
simbólicos de que trata Bourdieu (2007), como já foi apontado no tópico anterior, mesmo que
a academia não legitime a produção literária de Nicolelis, a escola, em especial a privada, tem
sido fundamental em seu processo de legitimação e circulação, principalmente, porque seus
textos vêm ao encontro dos interesses pedagógicos dessa instituição, o que reforça o caráter
paradidático20 da obra dessa escritora.
20
Segundo Menezes & Santos (2001), podem ser denominados paradidáticos todos os livros e materiais que, sem
serem propriamente didáticos, são utilizados com essa finalidade, sendo adotados de forma paralela aos materiais
convencionais, sem substituir os didáticos. Sua função é tratar um assunto de modo mais lúdico que os didáticos
84
Muitas vezes, seus livros vão ao encontro dos interesses de diferentes projetos e
programas governamentais, é o caso, por exemplo, do livro Pássaro contra a vidraça (1992 )
que foi enviado para as escolas paulistas na esfera do projeto “Prevenção também se ensina”,
da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, que tem como objetivo reduzir as condições
das vulnerabilidades de seus estudantes em relação à gravidez na adolescência, às
DST/HIV/Aids, ao uso de álcool, tabaco e outras drogas, às situações de violência e que
estimule o reconhecimento e respeito à diversidade sexual. O livro em pauta discute, entre
outros temas, o uso de drogas entre adolescentes e a relação entre pais e filhos.
Em direção análoga, seguem os catálogos lançados pela Editora Saraiva nos últimos
anos, nos quais estão incluídos vários livros publicados por Nicolelis, estando os títulos de
literatura infantojuvenil separados por temas e gêneros. A título de exemplificação está o
catálogo lançado por essa editora em 2013 por ocasião da Campanha da Fraternidade, no qual
estão inseridas obras de literatura infantil, juvenil e apoio didático que objetivam auxiliar o
trabalho docente em sala de aula, a partir do tema “Fraternidade e Juventude” e do lema “Eis-
me aqui, envia-me”. Dos 40 livros infantojuvenis que compõem o catálogo em questão, cinco
foram escritos por Nicolelis.
Se tal configuração tem afastado a obra de Nicolelis do centro dos estudos literários sob
o ponto de vista estético, ela tem suscitado o interesse daqueles que analisam a comunicação
literária sob a ótica dos estudos culturais. Isso porque seus textos podem oferecer variadas
possibilidades de análise, particularmente, pelo caráter de engajamento social que atravessa tais
obras. De acordo com as proposições de Ana Carolina Escosteguy em “Os estudos culturais”,
essa corrente de pesquisa, de origem britânica, explora temáticas ligadas a questões de gênero
e identidades, sejam elas étnicas, sexuais, de classes, geracionais, temáticas recorrentes na obra
de Nicolelis.
Os livros O amor não escolhe sexo, Macapacarana, O sol da liberdade, Um sinal de
esperança, Da cor do azeviche, Quando chegar a sua vez, por exemplo, já foram estudados ou
mesmo apenas mencionados em determinados estudos, em função das temáticas que discutem,
bem como por causa do modo como representam determinados estratos sociais.
e, dessa forma, serem eficientes do ponto de vista pedagógico. A importância desses livros em contexto escolar
aumentou, principalmente, no final da década de 90, a partir da implementação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), que estabeleceu os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e orientou para a abordagem de
temas transversais relacionados ao desenvolvimento da cidadania. Dessa forma, abriu-se espaço para o aumento
da produção de obras para serem utilizados em sala de aula, abordando temas como Ética, Pluralidade Cultural,
Trabalho e Consumo, Saúde e Sexualidade. Da mesma forma, a sua utilização aumentou na rede pública de ensino
a partir da descentralização dos recursos do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e a decisão de alguns
Estados, como São Paulo, de investir nesse tipo de livro.
85
21
De acordo com informações disponíveis no portal da Secretaria de Educação do Estado do Paraná, esse programa
oferece cursos e atividades nas modalidades presencial e a distância para milhares de professores do Quadro
Próprio do Magistério (QPM) da rede estadual de ensino, por meio de parcerias com Instituições de Ensino
Superior do Paraná. Criado em parceria com a Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o
Programa tem o intuito de beneficiar os professores com progressões na carreira, como também melhorar a
qualidade da educação oferecida a milhares de crianças, jovens e adultos das escolas públicas paranaenses.
86
livro (na mesma faixa etária que ela), não está desenvolvida como personagem. “Nós não a
conhecemos em sua interioridade, não temos pontos com que nos associar a ela. Seu conflito é
apenas esboçado – iria ela se identificar com o país que seus pais diziam ser o seu? – fazendo
que o leitor jovem não participe dele.” (RUIVO, 2017, p. 75).
Do ponto de vista dessa pesquisadora, talvez, por essas questões, a autora tenha optado
por não reeditar o livro Quando chegar a sua vez. A esse respeito é possível também levantar
a hipótese de que o exílio parece ser um tema datado, não indo, portanto, ao encontro dos
interesses dessa escritora que demonstra gostar de tratar em suas obras de temas da atualidade.
Da perspectiva de Andréa Garcia Zelaquett, que desenvolveu estudo sobre a obra de
Bartolomeu Campos Queirós, cujos resultados estão materializados em sua dissertação de
mestrado, defendida em 2003, o foco na temática, perceptível na obra de Nicolelis, é totalmente
prejudicial ao imaginário do leitor. Ali, essa pesquisadora situa Queirós, ao lado de outros
escritores, como Angela Lago, Antônio Barreto, Carlos Nejar, Marina Colasanti e Cláudia
Pacce, na esfera dos autores que escrevem textos na linha do imaginário, o que para ela é um
dos elementos fundamentais da literatura infantil. Já Giselda Laporta Nicolelis, assim como
Álvaro Cardoso Gomes, Edson Gabriel Garcia, Francisco Marins, Ganymédes José
posicionam-se no campo dos escritores que escrevem livros com objetivo primordialmente
didático e pedagógico, cujas narrativas têm sempre o mesmo enredo, geralmente histórias
policiais, envolvendo suspense, mistério. Para ela, muitos “desses escritores escrevem visando
ao retorno financeiro. Assim, produzem muitos livros em um curto espaço de tempo.”
(ZELAQUETT, 2003, p. 4).
Nessa mesma linha de análise, estão as proposições de Maraní Bertanha. Fundamentada
no Materialismo Cultural, proposto por Raymond Williams, ela desenvolveu dissertação de
mestrado no âmbito do programa de Pós-Graduação em Tecnologia, na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná, intitulado A tecnologia na literatura infantojuvenil:
possibilidades de leitura em obras brasileiras contemporâneas, em 2013, na qual, por intermédio
da análise de diferentes obras da literatura infantojuvenil produzidas entre 1999 e 2010,
objetivou investigar as relações entre tecnologia e cultura, entendendo que estas produzem
reflexões profundas sobre a sociedade e seu modo de vida.
Além disso, a pesquisadora também pretendeu questionar o papel histórico assumido
por esse gênero, buscando levantar possíveis formas de representação da tecnologia na
produção contemporânea e defender sua importância como produção literária. Em seu trabalho,
são mencionados dois livros de Nicolelis “O amor não tem cor (2002), que se propõe a discutir
racismo e adoção, e As portas do destino (1998), que discute as dificuldades de ser mãe solteira,
88
Por conta das conclusões a que chegou no Comentário Crítico supracitado é que
Ceccantini classificou Macapacarana como um livro de qualidade literária regular.
Numa perspectiva mais positiva, as pesquisadoras Risonelha de Sousa Lins e Rosangela
Vieira Freire igualmente analisaram uma narrativa produzida por Nicolelis, cujos resultados
estão materializados no artigo “Espaço e constituições identitárias em Sonhar é possível?”. Com
base nos estudos bakhtinianos sobre cronotopia (1998), nas concepções de espaço postuladas
por Bachelard (1999) e D’Onofrio (2004) e nas relações entre subjetividade e espaço, apontadas
por Tuan (1983) e Abdala Júnior (1995), as pesquisadoras analisaram a categoria espaço como
elemento emblemático no livro Sonhar é possível?, publicado por Nicolelis em 1994.
89
em uma dinâmica marcada por relações contraditórias e hierarquizadas de gênero, raça e idade,
com os quais interagem o concreto de seus trabalhos. Segundo a pesquisadora:
A conclusão a que chega Piza concatena com o perfil tradicionalista de Nicolelis que
não consegue fugir da estereotipação de certos modelos comportamentais.
Assim, no contexto dos esparsos e reduzidos estudos desenvolvidos sobre a literatura de
Nicolelis levantados no âmbito deste trabalho investigativo, é possível afirmar que sua obra
ficcional tem despertado interesse maior de pesquisadores que desenvolvem estudos literários
sob a ótica dos estudos culturais e da formação do leitor, sobretudo, pelas temáticas ali
discutidas. Ainda que em muitos desses estudos seja reconhecido o caráter (para)didático de
suas narrativas, o que parece sobressair é a figuração literária dos estratos marginalizados
socialmente, sob diferentes enfoques.
Do ponto de vista da elaboração estética, suas narrativas não têm tido muito a oferecer
aos estudos literários, principalmente, por não apresentarem grandes inovações estilísticas e
estruturais. Ao não acompanhar, em especial, as formas atuais da literatura destinada aos jovens
adolescentes, sua obra tem sido relegada ao patamar de “paraliteratura’, “paradidático” e/ou de
“literatura trivial. Isso, contudo, como já apontado, não impede a sua circulação no mercado
editorial e em ambientes escolares. Nesse sentido, como discute Souza (2015), esse tipo de
literatura de viés mercadológico e pedagógico tem a homologação não apenas do leitor em
formação que tem os seus horizontes de expectativas atendidos no projeto literário de autores
que seguem a mesma linha de Nicolelis, como também da escola que, não raro, busca na
literatura um meio de formação sistematizado, bem próximo dos interesses escolares que
22
A falta de pontuação no fragmento em questão pode ser justificada pela má qualidade do xerox disponibilizado
na internet, que não permitiu a sua legibilidade.
91
continua a primar pelo viés pedagógico e conservadorismo temático, técnicas que satisfazem,
sobretudo, o leitor adulto.
Analisar como esses pressupostos se materializam no projeto artístico/literário de
Giselda Laporta Nicolelis nas narrativas do corpus é o objetivo dos capítulos que seguem,
procurando compreender, mesmo que de forma panorâmica e limitada, de que modo a vertente
literária tradicionalista permanece em suas narrativas, por intermédio da jornada de seus heróis,
no momento em que a literatura endereçada aos jovens é marcada pela inovação.
92
às relações entre os seres humanos – nas conflituosas fronteiras entre natureza e cultura.”
(BORELLI, 1996, p. 189).
No livro A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções, mais especificamente no
artigo "Por uma literatura brasileira de entretenimento (Ou: o mordomo não é o único culpado)",
José Paulo Paes (1990) defende que a coragem e habilidade do herói aventureiro preenche a
carência de aventura e emoção da vida cotidiana. Isso explicaria, em parte, o sucesso desse tipo
de narrativa não só com os jovens, mas também com adultos já formados, provavelmente
iniciados no mundo da “literatura séria” por meio da leitura de textos ficcionais que privilegiam
o lado aventuroso do homem.
No Dicionário de Termos Literários, organizado pelo português Carlos Ceia (2009),
Maria Fátima Albuquerque assegura que o atendimento aos horizontes de expectativas de seus
leitores faz com que estes manifestem preferência pelo gênero, sobretudo pelas narrativas em
série. Segundo ela, em Portugal, as coleções que lideram o mercado livreiro juvenil são livros
de aventura. Pode-se afirmar que o mesmo ocorre em terras brasileiras, haja vista a lista dos
livros mais vendidos da revista Veja em 201723. Nela, narrativas de aventura, como: A profecia
das sombras, De Rick Riordan (Editora Intrínseca), AuthenticGames - A batalha contra Ender
Dragon, de Marco Túlio (Editora Astral Cultural), e vários livros da série Harry Potter, de J. K.
Rowling (Editora Rocco), apareceram, em diversas semanas, entre os mais vendidos no setor
infantojuvenil ao longo do ano. As narrativas da série Harry Potter, sem dúvida, são as mais
recorrentes nas listas de livros dessa revista nesse segmento.
A crítica especializada costuma afirmar que os primeiros livros de aventura que fizeram
sucesso entre os brasileiros pertenceram às coleções Terramarear e Paratodos, que, já nas
décadas de 1930 e 1940, encarregaram-se de veicular livros de entretenimento que, segundo
Souza (2003), havia inspirado muitos dos escritores românticos brasileiros, entre eles, José
Manuel Macedo, Manoel Antônio de Almeida e José de Alencar.
O livro Guarani, de Alencar, por exemplo, circulou nessas coleções com toda a
idealização da natureza e dos selvagens (norte e sul-americanos), representação literária própria
do Romantismo em sua vertente ufanista e patriótica, como narrativa de aventura, portanto, de
entretenimento. Souza (2003) ainda salienta que essas duas coleções foram alvo de diferentes
adaptações feitas por variados e renomados escritores brasileiros: Monteiro Lobato, Manuel
Bandeira, Godofredo Rangel, entre outros.
23
Essa constatação foi feita por meio do acompanhamento mensal da lista dos livros mais vendidos no setor
infantojuvenil publicada pela revista em questão no seguinte endereço eletrônico: http://veja.abril.com.br/livros-
mais-vendidos/infantojuvenil/.
94
Em geral, os estudiosos costumam localizar os anos finais do século XIX como o berço
da narrativa de aventuras, cuja origem se entronca, como aponta Paes (1990), na tradição da
chamada "novela toscana", uma forma artística inaugural do gênero, que tem como principal
representante a novela Decameron, de Boccaccio. Para ele, o romance de aventuras seria uma
espécie de tataraneto das velhas sagas que preservam as memórias de seus feitos.
Convencionalmente, como ressalta Borelli (1996), a narrativa de aventuras se constitui
de um conjunto de regras que a caracteriza como tal. Na composição desse gênero, pouco
importa se os eventos narrados estejam histórica e socialmente localizados nem mesmo que
possam reproduzir informações advindas da realidade. Assim, quando se pensa em narrativas
de aventuras, como lembra Souza (2003), vem à mente as histórias de heróis que, muitas vezes,
estão em viagem a terras exóticas, expostos a perigos que serão vencidos ao final da narrativa,
graças à sua habilidade e coragem, devolvendo ao leitor à situação de alívio.
Geralmente, apresentam-se como temas típicos do gênero: viagem, traição, vingança,
prisão, fuga. Essa autora também esclarece que o gênero se configurou como clássico a partir
do século XIX, principalmente na Europa e Estados Unidos.
José Paulo Paes concorda que o propósito confesso do romance de aventuras não é
despertar a consciência crítica do leitor para a problemática do mundo e da vida, mas sim
“entreter-lhe a imaginação, fazendo-o esquecer a banalidade do cotidiano para reviver as
proezas dos heróis de ficção.” (PAES, 1990, p. 15). E traz à luz a observação feita por Tzvetan
Todorov, no livro As estruturas narrativas, a respeito do romance policial: a de que o gênero
tem as suas normas e aquele que não as segue, tentando “embelezá-lo” acaba por fazer
“literatura” e não romance policial. Daí também que, na visão desse escritor, a crítica bem-
pensante tem relegado a ficção aventureira, tão popular no século XIX, ao plano da
subliteratura, chamada eufemisticamente de "paraliteratura" pelos franceses, cujos sucessores
naturais são as histórias de espionagem e de ficção científica.
Em relação ao “divertimento” proporcionado aos leitores pela ficção aventureira, Paes
adverte que o especialista Jean-Yves Tadié, em sua obra Le roman d'aventures, apresenta como
principal expoente do gênero Joseph Conrad, romancista, cujas obras de ficção são
caracterizadas pela complexidade de estrutura e dificuldade de leitura. O estudioso salienta que
apenas com muito esforço sua obra poderia ser entendida como "divertimento", “pelo menos
em comparação com o proporcionado por autores como Júlio Verne, R. L. Stevenson, H. Rider
Haggard, Fenimore Cooper, Rafael Sebastiani ou a Baronesa Orczy.” (PAES, 1990, p. 15).
Em solo brasileiro, esse poeta e crítico literário, chama a atenção para a atuação de
Monteiro Lobato que, em certa altura da carreira, resolveu abandonar de vez a literatura para
adultos para se dedicar inteiramente à literatura infantojuvenil, escrevendo narrativas de
aventuras. Paes ressalta o nível de excelência alcançado pelos textos de aventuras de Lobato,
feito que, em sua perspectiva, não teria sido alcançado por nenhum outro autor. Ele ainda
destaca que essa é a única área da “literatura brasileira de entretenimento que permaneceu
imune à voga do best-seller traduzido, é de se pensar se o exemplo e a contribuição de Lobato
não teriam sido decisivos para tanto.” (PAES, 1990, p. 35).
José Paulo Paes também chama a atenção para a importância da literatura de
entretenimento, na qual se insere as narrativas de aventura, para o processo de formação de
leitores, sobretudo em uma país de público ledor reduzido, como é o caso do Brasil. Do mesmo
modo, ele afiança que da massa de leitores da literatura de entretenimento é que surge a elite de
97
leitores da cultura erudita. Em sua ótica, “nenhuma cultura realmente integrada pode se
dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa
literatura de entretenimento.” (PAES, 1990, p. 37). No que tange aos textos de aventuras de
Nicolelis, além dos momentos de distração, eles tendem a oferecer aos leitores reflexões sobre
valores e comportamentos necessários para a boa convivência social em tempos atuais.
Historicamente, a respeito da desvalorização da literatura de entretenimento pela crítica,
Vitor Manuel e Silva lembra que os romances medieval, renascentista e barroco, já marcados
pelas nuances aventurescas, eram considerados pela elite bem-pensante da época “uma obra
frívola, cultivado apenas por espíritos inferiores e apreciado por leitores pouco exigentes em
matéria de cultura literária.” (SILVA, 1969, p. 260). Em contrapartida, esse mesmo estudioso
assinala que, nesse período, o gênero exerceu um papel importante no processo de formação de
novos grupos de leitores. O romance barroco, por exemplo, respondendo ao gosto e às
exigências corteses do público do século XVII, em especial o feminino, possibilitava a leitura
de muitas e muitas páginas de longas e complicadas narrativas de aventuras sentimentais,
semeadas por discussões eruditas sobre o amor.
Silva (1969) salienta que o consumo ávido da literatura romanesca e das narrativas de
aventuras heroico-galantes explica a gigantesca extensão de alguns romances desta época. Para
ilustrar a afirmação, em 1637, o romance Polexandre, de Gomberville foi vendido em cinco
grossos volumes com o total de 4409 páginas. Igualmente, o pesquisador chama a atenção para
o espetacular êxito editorial de certos romances: Le gare dei disperati, de Marino, foi um
romance que alcançou dez edições em breves anos.
Em tempos atuais, contrariando o senso comum de que os jovens não leem textos longos
e nem se interessam por textos que não estejam ancorados na realidade está o “fenômeno Harry
Potter” que, segundo Ceccantini (2011), quebra vários tabus na esfera das discussões sobre a
formação do leitor mirim. A série, cujo primeiro título é Harry Potter e a pedra filosofal, foi
publicada por J. K. Rowling, em 1997, na Inglaterra, e levou muitos jovens brasileiros a
devorarem essa narrativa que apresenta características próprias das narrativas de aventura e
policial.
As proposições de Ceccantini (2011), de Paes (1990) e de Silva (1969) ratificam, pois,
a importância que tem as narrativas de aventuras no processo de formação de leitores ao longo
da história do livro e da leitura em variadas culturas e contextos sociais diversos. A esse
respeito, Souza (2003) reflete que o fato de a indústria cultural atender aos interesses do público
não significa que deixa de se preocupar com a formação de seus leitores. Ademais, há de
98
lembrar que tais livros podem ser a porta de entrada para a leitura de textos mais complexos,
sobretudo, quando isso ocorre pela mediação de um professor.
A mesma pesquisadora lembra que quando a imprensa foi descoberta no século XIX,
graças ao desenvolvimento tecnológico e industrial ocorrido naquele momento, o romance pôde
se desenvolver e com isso os autores “diversificaram formas e criaram estratégias para atender
aos diferentes segmentos da sociedade que se modificava, movida pela crescente
industrialização.” (SOUZA, 2003, p. 28). Com a urbanização acelerando-se, novos valores
eram apreendidos pelos escritores e casas de edições e, assim, um novo público ia sendo
formado. Nesse momento, para essa mesma estudiosa, reina a esperança do progresso e de um
futuro melhor, o que justifica a expansão do gênero, haja vista a presença do herói que passará
por uma trajetória repleta de medo, angústias, incertezas e riscos que ao final o levará à coroação
por ter superado seus limites.
No ponto de vista de Paes (1990), o romance de aventuras é um exemplo típico do
Bildungsroman, entendendo esse termo nos moldes propostos por Massaud Moisés, para quem
essa modalidade de romance é construída em torno das experiências sofridas pelas personagens
ao longo do período de formação ou de educação em direção à maturidade. Para exemplificar
suas ideias, Paes toma como modelo A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, que é uma
espécie de modelo de romance de aventuras. Em suas palavras:
especialmente, de modo explícito ou figurado, a ilha deserta - a Ilha dos Amores [...]
(FERREIRA, 1996, p. 77).
Ao longo da história da literatura, muitos escritores se debruçaram na escritura do
gênero. A pesquisadora Ana Lúcia Santana organizou para o Portal InfoEscola uma lista de
autores e obra da literatura universal de aventura, conforme consta a seguir:
24
Para a consulta de uma leitura mais pormenorizada de cada livro, verificar grade constante no Apêndice
(volume 2).
101
Desde que aprendi a ler, aos 7 anos, sempre fui um “rato de biblioteca”: li e
leio tudo o que me cai nas mãos, inclusive bula de remédio. Sempre fui
“vidrada” em histórias de mistério. Li toda a obra traduzida para o português
daquela incrível escritora inglesa, Agatha Christie – dizem que ela mandava o
mordomo comprar maçãs e depois encher a banheira, aí ela ficava comendo
maçãs e criando histórias. Dizem também que, quando ela saía do banho, o
número de cabinhos de maçãs na borda da banheira era igual ao número de
capítulos do próximo livro... Li também livros de Ellery Queen, que todo
mundo pensava que era uma pessoa só, mas na realidade eram dois irmãos que
usavam o mesmo pseudônimo. Tudo que caía nas minhas mãos, tendo espião
e detetive, eu “devorava”. Um dia, comprei um livro com cem histórias
policiais. Levei para a praia... que maravilha! O mundo podia acabar que eu
não desgrudaria dele. Adoro filmes policiais também, principalmente aqueles
“de tribunal”. O meu maior sonho é ter um livro meu transformado num
roteiro de filme. (NICOLELIS, 2003, p. 107)
Necessário se faz mencionar que os primeiros livros publicados por Nicolelis para o
público infantojuvenil são textos preponderantemente marcados pela aventura25. É a partir de
1981, com a publicação de Rumo à liberdade e A Serra dos homens formigas que a autora vai
mudando a sua linha de escrita. Ainda que ao longo dos mais de 40 anos de carreira, as
narrativas sociais e psicológicas sejam predominantes na produção literária de Nicolelis, vez ou
outra, a escritora publica textos de linha mais aventureira, como é o caso de Nos bastidores da
realeza, publicado em 2015.
Tendo em vista que, conforme já salientou Coelho (2006), a linha de criação literária de
Nicolelis tem como ponto de partida a pesquisa in loco, as narrativas de aventuras produzidas
por Nicolelis não pretendem apenas oferecer ao leitor momentos de entretenimento, diversão e
evasão. Em meio a esse movimento, elas também objetivam oferecer a ele matérias para refletir
25
Trata-se de Coruja lelé (1974); Domingo, dia de cachimbo (1976); A prefeitura é nossa (1977); O brasão do
lince dourado (1979); O segredo da casa amarela (1980); Um dono para Buscapé (1980); A menina de Arret
(1981).
102
sobre os problemas urgentes da sociedade capitalista contemporânea, com vistas a incitar o seu
público a uma tomada de posição.
Em certa medida, essa proposição sempre esteve presente na narrativa de aventuras.
Como aponta o itinerário dos estudos de Malu Zoega Souza, nela está implícita a “crença nas
possibilidades de o homem poder dominar a natureza, controlar o destino, a si mesmo e aos
outros.” (2003, p. 27). A grande questão é que nos textos produzidos por Nicolelis essa crença
está explícita, seja na voz do narrador, predominantemente onisciente, seja no discurso das mais
variadas personagens, protagonistas ou não.
Os dados levantados na grade evidenciam que, com exceção de Nos bastidores da
realeza26, todos os demais livros de aventura que constituem o corpus pertencem a uma coleção.
O mesmo ocorre em relação à ilustração, sendo que somente a narrativa O corpo de Deus não
é ilustrada. Em Nos bastidores da realeza o projeto gráfico é bem mais apurado que nos demais,
sendo este significativo para o processo de construção de sentidos da narrativa: as ações
ocorridas durante o dia são descritas em páginas claras; as narradas à noite estão dispostas em
páginas escuras. As obras de arte que constam na seção Galeria também são importantes, uma
vez que várias delas se tornarão personagens da história narrada. Do mesmo modo, chama a
atenção a presença de uma lista bibliográfica nos livros Nos bastidores da realeza, O sol da
liberdade e O corpo morto de Deus27, fator que acena o caráter documental e científico dessas
narrativas.
Seguindo uma característica própria da literatura, nas narrativas de aventuras de
Nicolelis também pode ser observado o hibridismo de gêneros. Conforme lembra Borelli,
fundamentada em diferentes estudiosos do gênero, como Tadié, Calvino e Vincent-Buffault, o
entrelaçamento e a interpenetração de gêneros são próprios desse modelo ficcional. Segundo
essa estudiosa, “Todo romance pode ser uma aventura e pode também conter elementos
fantásticos, pitadas de erotismo, da picaresca e enigmas policiais.” (1996, p. 190). Nas
narrativas em questão, observa-se, em cinco delas, a presença da narrativa social, estando quatro
delas desdobradas no subgênero crônica urbana, como segunda categoria de gênero dominante,
e uma em que prepondera o subgênero narrativa de geração. Tal constatação vai ao encontro da
concepção de literatura defendida por Nicolelis: à literatura cabe uma função social. Traços da
26
Vale informar que no exemplar lido, publicado em 2015, não consta que o livro pertença a uma coleção. No
entanto, em sites de vendas, há a informação de que ele pertence à Coleção Quero Mais, da Editora FTD.
27
Ainda que seja comum escritores comentarem acerca de pesquisas que realizam para escrever textos ficcionais;
é o caso, por exemplo, de Umberto Eco que revela em Pós-escrito a O nome da rosa ter pesquisado muitas e
muitas páginas sobre a Idade Média antes de escrever o livro em questão, não me parece acertado apresentar a
Bibliografia ao leitor. Ao fazer isso, o escritor traz para o texto literário um caráter demasiadamente documental,
o que prejudica consideravelmente os elementos estéticos.
103
categoria narrativa psicológica foram diagnosticados apenas no livro O mistério mora ao lado,
no qual o narrador-protagonista Lucas, à medida em que desvenda o enigma em torno dos
vizinhos misteriosos, vai aos poucos também aprendendo a lidar com os problemas que assolam
as famílias contemporâneas, como também as relações sociais, interpessoais e amorosas,
constatação que possibilita ao jovem maturação psicológica.
Dos oito subgêneros identificados por Ceccantini (2000) na esfera da subdivisão da
narrativa de aventuras feita a partir de critérios semânticos (narrativa policial, narrativa de
mistério, narrativa de cavalaria, narrativa histórica, narrativa de terror, narrativa de ficção
científica, narrativa fantástica e narrativa folclórica/popular), observei quatro nos oito livros
analisados, a saber: narrativa policial (quatro recorrências), narrativa de mistério (três
recorrências), narrativa histórica (três recorrências) e narrativa fantástica (uma recorrência).
Com exceção das narrativas Nos bastidores da realeza, cuja essência é a fantasia, e de
O sol da liberdade, que tem como mote o papel do negro na construção do Brasil a partir da
recuperação da trajetória geracional de um rei ioruba, todas as demais se constroem em torno
de um mistério, isto é, de um enigma que, na visão de Sandra Lúcia Reimão, atua como
elemento desencadeante da narrativa policial, “e a busca de sua solução, a elucidação, o explicar
o enigma, o transformar o enigma em um não-enigma é o motor que impulsiona e mantém a
narrativa; quando se esclarece o enigma, se encerra a narrativa.” (1983, p. 11).
Por conta disso, na perspectiva dessa estudiosa, seria mais apropriado denominar o
gênero policial de romance de enigma, posto que tal narrativa parte sempre desse elemento. Tal
configuração pode ser muito facilmente observada nos textos de aventuras que pertencem ao
corpus. Entendido como sinônimo da palavra mistério nesta tese, o enigma é a mola propulsora
dessas narrativas, desvendado o enigma, elas são encerradas.
Reimão (1983) também indica que a narrativa policial tradicional apresenta sempre um
crime, um delito e alguém disposto a desvendá-lo. Todavia, a presença desses elementos não é
suficiente para a classificação de narrativas como pertencente ao gênero policial, pois é
necessário que haja um determinado modo de articular o texto, bem como de construir a relação
do detetive com o crime e com a narração28.
Os textos policiais de Nicolelis tendem a seguir as transformações ocorridas na narrativa
policial de enigma clássica que, na perspectiva de Reimão (1983), se caracteriza pela presença
28
A narrativa policial de enigma clássica tem como pai Edgar Allan Poe (1809 – 1849), criador de textos
modelares, como Os crimes da rua Morgue, O assassinato de Marie Roget e A carta roubada. É de Poe também
a criação do detetive exponencial do gênero: Chevalier Dupin, o qual é seguido por Sherlock Holmes, de Connan
Doyle.
104
A análise da jornada dos heróis das histórias de aventuras de Nicolelis se inicia pela
observação do grupo de personagens principais que compõem o corpus, sendo este elemento
formal entendido aqui, conforme já se observou, como uma “transfiguração de uma realidade
humana”, que é transportada para a dimensão da “realidade estética/literária”, em consonância
106
com o que defende Coelho (2000). Nesse sentido, compreender quem são os heróis dessas
histórias, bem como o tipo e a trajetória de aventura vivenciada por eles, é o primeiro passo
para compreender o mundo narrado por Giselda Laporta Nicolelis, entendendo, por exemplo, a
que sistema social a leitura de suas narrativas pode transportar os leitores em formação.
Já escreveu Antonio Candido em “A personagem do romance” que, como entidade
ficcional, as personagens desempenham papel fundamental em um romance, posto que “o
enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem
exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e
valores que o animam.” (2005, p. 53-54). Para o crítico, são três os elementos centrais do
desenvolvimento novelístico: o enredo e a personagem, que representam a sua matéria; e as
ideias, que representam o seu significado.
Na mesma direção, Yves Reuter (2002) assinala que, de certa maneira, toda história é a
história das personagens. São elas que permitem, assumem e vivem as ações, ligando-as entre
si e lhes dando sentido. “A personagem é o elemento decisivo na efabulação, pois nela se centra
o interesse do leitor. Adultos e crianças, todos nós ficamos presos àquilo que acontece às
personagens ou àquilo que elas são.” (COELHO, 2000, p. 74)29.
As histórias de Nicolelis são povoadas por uma quantidade expressiva de personagens,
na narrativa histórica O sol da liberdade, a título de ilustração, há mais de 100, entre
personagens principais e secundárias30. Isso pode ser justificado porque, nesse texto, o narrador
acompanha o percurso histórico de nove gerações do príncipe ioruba Ajahi por mais de 150
anos.
A análise dos campos da grade Personagens Principais e Resumo da Narrativa evidencia
que Nicolelis tende a criar personagens próximas não apenas do universo do adolescente, como
também do adulto, estimulando neles a projeção e identificação, portanto uma estratégia
mercadológica. Pais, professores, estudantes, advogados, médicos são os tipos de personagens
mais recorrentes no conjunto do corpus em questão. Sobre os elementos escolhidos pelo
escritor, física e espiritualmente, para compor suas personagens no plano do universo ficcional,
Candido (2005) afirma que essa seleção está atrelada à concepção que preside o romance e às
29
Mesmo sendo uma construção textual, algumas personagens são tão marcantes que passam a fazer parte do
imaginário coletivo de alguns grupos sociais como se fossem pessoas reais, resultado da força criativa de um
escritor. É o caso, por exemplo, de Capitu: personagem que há mais de um século é motivo de debates, dentro e
fora do meio acadêmico, graças ao talento de seu criador Machado de Assis. Ainda que o leitor tenha dela uma
visão fragmentada, cujas marcas principais são os “os olhos de ressaca” e “ar de cigana obliqua e dissimulada”,
“ela existe, com maior integridade e nitidez do que um ser vivo.” (CANDIDO, 2005, p. 79).
30
Tendo em vista que esta investigação objetiva produzir uma leitura possível das narrativas juvenis que compõem
o corpus por meio da análise da jornada de seus heróis, com base na análise dos elementos formais da narrativa,
as personagens secundárias não foram analisadas neste momento.
107
intenções do romancista. Mesmo que ao fazer tal afirmação Candido esteja pensando no
romance, é possível estendê-la para a composição de personagens em narrativas de modo geral.
Sendo assim, nas palavras desse estudioso:
sobrinha do prof. Lidenbrock, um ‘perfil nítido’, visto que só a aventura é que ‘lhe dá seu rosto,
seu significado, seu ser verdadeiro.’” (PAES, 1990, p. 14). Em sua ótica:
estereotipadas: jovens idealistas, com atitudes exemplares de bons filhos e alunos; pais
trabalhadores que, apesar dos defeitos, amam, respeitam e sempre são companheiros de seus
filhos. A protagonista da narrativa central da já citada O corpo morto de Deus, por exemplo, é
um arquétipo da mulher moderna. Mãe do garoto Lucas, de nove anos, Eleanor é uma mulher
de 36 anos, divorciada, independente financeira e profissionalmente. Além de dar conta da
educação do filho sozinha, consegue gerenciar de forma satisfatória o orçamento doméstico, o
trabalho e ainda lida bem com as questões amorosas.
Algumas personagens poderiam ser facilmente lembradas por seus leitores em função
de alguns contornos e características singulares, como é o caso de Fuinha, o detetive
atrapalhado, e Matilde, a governanta intrometida, ambas personagens de O fio da meada. A
figura do vizinho misterioso aparece em três livros, a saber: Iaiá, a vizinha misteriosa da casa
onde a família de Carlos e Lucy foram passar as férias em Serra Negra no enredo de Vale das
vertentes; seu Evaristo e os sobrinhos, os vizinhos misteriosos de Lucas, protagonista de O
mistério mora ao lado; seu João, o vizinho misterioso do campinho onde a turma de Wanderlei
jogava bola em O segredo da casa amarela.
Seguindo a tendência das narrativas contemporâneas que, segundo Coelho (2000),
passaram a incorporar o espírito comunitário em oposição ao espírito individualista, as
narrativas de aventuras de Nicolelis são constituídas por “grupo-personagem”, ou
“personagem-coletiva”, ainda que, como salienta Campbell (1997), todo o sentido do mundo
atual esteja no indivíduo e não no grupo. Com exceção do protagonista de Nos bastidores da
realeza que vivencia a aventura sozinho, nos demais textos, o herói sempre está acompanhado.
Em geral, um herói recebe o “chamado” para a aventura, que pode se dar de variadas formas: o
recebimento de um objeto estranho em uma situação inusitada, como o que ocorre com Luciana,
uma das personagens principais de O fio da meada; uma viagem de férias em família; um
intercâmbio cultural; a chegada de vizinhos estranhos no bairro, ou a mudança drástica de vida,
como a ocorrida com Ajahi, que de príncipe ioruba, herói de O sol da liberdade, torna-se um
escravo em terras brasileiras depois da morte do pai durante uma batalha. Ao herói, aos poucos,
vários aliados ou até mesmo outros heróis vão se juntando. Em O segredo da casa amarela, por
exemplo, é Wanderlei o primeiro a se atentar para a movimentação misteriosa da casa amarela;
no final, praticamente quase todos os moradores da rua estavam envolvidos no caso.
Para Ceccantini (2000), nas narrativas infantojuvenis brasileiras, o modelo
“personagem-coletiva” foi instaurado por Lobato na década de 1920, com a turma do Sítio do
Picapau- Amarelo, e hoje é largamente utilizado em vários produtos da indústria cultural, em
especial, pelos protagonistas que se repetem em outras obras, constituindo-se as famosas séries.
110
Vale lembrar que nas narrativas que compõem o corpus de Ceccantini (2000), em cerca
de 70% delas predomina a presença exclusiva de um único protagonista que encabeça a
narrativa. O fato de a maior parte das narrativas analisadas por Ceccantini filiarem-se à linha
de narrativas psicológicas pode justificar o predomínio dos protagonistas únicos, uma vez que
esse gênero se interessa pela análise introspectiva das personagens, bem como pelo seu processo
de amadurecimento.
As três narrativas que são protagonizadas por “turmas”, no conjunto de obras analisadas
por esse pesquisador, filiam-se ao gênero narrativas de aventuras. São elas: O incrível roubo da
loteca (1978), de Stella Carr, O assassinato do conto policial (1989), de Paulo Rangel e Sangue
fresco (1982), de João Carlos Marinho. Na visão de Ceccantini (2000), as duas primeiras
narrativas são de qualidade regular, posto que tendem a seguir as características estruturais e
estilísticas tradicionais do gênero: caracterização de personagens estereotipadas e superficiais,
com pouco aprofundamento psicológico, predominância do discurso pedagógico e de
construções lineares e previsíveis, caracterização, vale notar, que também prepondera nas
narrativas de Nicolelis aqui analisadas. A terceira, todavia, recebe avaliação altamente positiva;
em suas palavras:
Com Sangue fresco, João Carlos Marinho consegue uma especial proeza:
construir um texto que tanto se sai bem como literatura de entretenimento
quanto resiste a leituras mais exigentes. De um lado, a obra, seguindo a
tradição da narrativa de aventuras, aposta suas fichas na ação ininterrupta, no
ritmo ágil, no constante deslocamento espacial, no suspense, no embate entre
heróis e vilões, ingredientes, todos, que convidam à leitura fluente e
descompromissada e tem tudo para seduzir o leitor iniciante ou aquele que
busca apenas distração ligeira. De outro lado, a obra opta por não aceitar a
circunscrição às leis da narrativa de aventuras típica, preferindo ousadia, ao
assumir clave intensamente paródica e um discurso carnavalizado até as
últimas consequências. Rompem-se, assim, os limites da aventura pela
aventura e criam-se condições para que o texto se abra para múltiplas
significações. (CECCANTINI, 2000, p. 140)
Conforme já foi mencionado, com exceção de Nos bastidores da realeza que possui um
protagonista individual31, nos demais livros, os protagonistas são integrantes de um grupo, que
podem estar ligados por laços familiares, de amizades ou até mesmo pelo grau de
conhecimento/habilidade que cada personagem pode oferecer para a resolução de um
determinado problema. Isto pode ser ilustrado pela aproximação das diferentes personagens que
atuam na trama narrativa de O corpo morto de Deus, na qual algumas personagens estão ligadas
conforme o grau de formação acadêmica e profissional que cada personagem pode colocar à
disposição em função da descoberta da identidade do serial killer.
À medida que Eleanor, coordenadora editorial de uma renomada Editora, vai
percebendo que os capítulos recebidos semanalmente fazem parte de uma narrativa policial,
cujos crimes vão acontecendo na vida real, ela vai, aos poucos, envolvendo outras pessoas no
caso. A princípio, o caso é exposto a seus patrões e a dr. Olegário, o advogado da editora,
pessoas para as quais ela deve satisfação, uma vez que está subordinada a elas
profissionalmente; depois o caso é compartilhado com um representante da lei: o delegado de
polícia dr. Bóris; em seguida com dr. Décio, um amigo psicanalista, cuja formação
acadêmica/científica vai ajudar a compreender a mente psicopata do assassino e, por último,
são acionados o conhecimento empírico e as habilidades de Vasques, um ex-colega de
faculdade, agora detetive particular, com quem Eleanor vai vivenciar uma relação amorosa mais
tarde. Todos, de alguma maneira, dão algum tipo de contribuição no processo de resolução da
sequência de assassinatos. É por intermédio dos capítulos que chegam semanalmente a Eleanor
que as pistas acerca dos assassinatos são passadas ao delegado de polícia dr. Bóris, que dá
encaminhamento oficial à investigação, enquanto, paralelamente, Eleanor, ao lado de Vasques,
também tenta desvendar o enigma, sempre com a ajuda do amigo psicanalista.
Esse espírito de cooperação e solidariedade observado nas narrativas de aventuras que
compõem o corpus desloca, no caso das narrativas com subgênero policial, o papel central do
detetive, representante da lei ou não. Em todas elas há a presença de um delito. No entanto, nem
sempre este é solucionado absolutamente por um policial/detetive, mesmo que ele se faça
atuante nesse processo. Ao lado do representante oficial da lei, responsável por manter a ordem,
há um grupo de pessoas envolvidas que, mesmo correndo risco de vida, estão dispostas a
contribuir para que a harmonia social se reestabeleça.
Os detetives/policiais de Giselda Laporta Nicolelis podem ou não ser profissionais.
Alguns são sérios, outros cômicos, mas todos são pessoas comuns, sujeitas a cometer erros. É
31
Convém lembrar que, nesse livro, há uma “turma” de personalidades históricas que contam ao protagonista a
História do Brasil de modo “divertido”.
112
o caso de Fuinha, o detetive de O fio da meada, um homem elétrico e narigudo, que às vezes
fica embaraçado, perdendo a linha de raciocínio com a presença da governanta intrometida e
prepotente que, ao final da história, torna-se a sua noiva.
No livro O mistério mora ao lado, a presença da figura do detetive/policial é muito
secundária, embora seja um representante da lei que dá cabo da investigação. Na narrativa,
mesmo havendo referências de que essa investigação estivesse ocorrendo, ela não é focada pelo
narrador onisciente. É por meio da leitura de um jornal que o avô de Lucas, um advogado
criminalista aposentado, fica sabendo do misterioso sumiço de dinheiro de clientes de um
determinado banco, crime que está sendo investigado pela corporação policial.
É a partir desse conhecimento que Lucas soluciona o enigma em torno dos vizinhos
estranhos e calados, de hábitos noturnos. E ainda que o crime já estivesse sendo investigado
pela polícia, quem desvenda o enigma para o leitor é o narrador-protagonista Lucas, com base
na informação passada pelo avô. É a partir daí que o jovem monta o quebra-cabeça e desvenda
o enigma que ele e os colegas estavam tentando solucionar há algum tempo. O diálogo
apresentado abaixo ilustra essa informação:
O avô ligou não sei para quem e ficou um tempão falando. Ardido de
curiosidade, ouvi que ele repetia toda a história, o nosso quebra cabeça.
Quando desligou, parecia satisfeito.
[...]
– Na mosca, Lucas! – disse, pondo o fone no gancho. – Acabaram de prender
o funcionário do banco que estava se preparando para escapar e ele deu todo
o serviço. O endereço dos cúmplices confere. A polícia já está vindo para cá.
(NICOLELIS, 2001, p. 90)
Em Vale das vertentes, todo o mistério envolvendo Iaiá, a quem os vizinhos apelidaram
de “louca da serra”, e Danda, uma velhinha com mais 100 anos de idade que não queria morrer
sem antes encontrar o tesouro enterrado por seus antepassados na gruta do Morro Verde, só foi
desvendado a partir de um trabalho em equipe. Além da família, que é formada pelo casal Carlos
e Lucy, pela avó materna Lucília e pelas filhas Simone, Patrícia e Janete, e Ápia, uma cadelinha
muito serelepe, fazem parte da turma que participa dessa aventura os caseiros João e Ana e os
amigos: Xexa, Ana Luísa, Regina, Lique, Bidu, Regina e André.
Portanto, observa-se nessas narrativas uma evidente tendência a valorizar o trabalho
coletivo e a solidariedade em detrimento do individualismo, uma postura que segue na direção
daquilo que seria “politicamente correto”, pelo menos no plano discursivo, no seio da sociedade
capitalista industrializada que potencializa a constituição de sujeitos competitivos e
individualistas.
Ao que se refere à quantidade de personagens adultas e adolescentes que atuam como
personagens principais nas tramas narrativas construídas por Nicolelis, as adultas são a maioria,
constatação que pode ser explicada pelos motes de algumas narrativas, como é o caso das já
mencionadas O sol da liberdade e O corpo morto de deus. No primeiro livro, a autora discute
o papel relegado ao negro no processo de construção do país; nessa narrativa não há
personagens adolescentes, a mais próxima da juventude é Elisângela, a jovem universitária,
estudante de jornalismo, representante da nona geração de Ajahi. No caso da segunda narrativa,
há duas crianças, Luca, o filho de Eleanor, e Alana, filha de Vasques, porém esta exerce papel
secundário. Há também, na narrativa encaixada que integra esse livro, a retratação da infância
do serial killer de modo a lhe oferecer elementos para a compreensão de como traumas infantis
podem levar à construção de uma mente psicopata.
Das 73 personagens que assumem papéis importantes na economia narrativa, 30 são
jovens adolescentes, 41 são adultas e duas são crianças. Entre as personagens principais
aparecem ainda um animal (Ápia, a cachorrinha serelepe de Vale das vertentes), dois objetos
(uma lamparina e uma reprodução do dirigível número 6, ambos personagens de Nos bastidores
da realeza) e 20 personalidades históricas, todas constantes em quadros da Galeria do Museu
onde o protagonista de Nos bastidores de realeza faz uma viagem imaginária pela História do
Brasil Colônia.
Das 41 personagens principais adultas, 19 são mulheres e 22, homens. Destarte, um
número equilibrado. O mesmo equilíbrio não ocorre na esfera da distribuição do gênero entre
as personagens adolescentes. Das 30 personagens adolescentes que pertencem ao grupo de
personagens principais, 20 são meninos e rapazes e 10 são meninas, constatação que também
115
foi feita por Rosemberg (1984) e Ceccantini (2000) em seus estudos voltados para a
configuração do gênero. É importante lembrar que a personagem M.X., assassina em série de
O corpo morto de Deus apenas se revela como mulher nas últimas páginas do livro. Até um
determinado ponto, todos os fatos levavam a crer que o assassino pertencia ao sexo masculino,
o que é bastante interessante, uma vez que não se esperava de uma mulher atitudes tão violentas.
Do mesmo modo, convém trazer à luz que, na narrativa encaixada que consta nesse livro, o
assassino é uma personagem andrógina, que ora mata travestida de mulher, ora, de homem.
Na ótica de Fúlvia Rosemberg, a predominância de personagens masculinas no conjunto
de 168 livros infantojuvenis brasileiros editados ou reeditados entre 1955 e 1975 pertencentes
à amostra investigada por ela na década de 1980, apresenta as chaves para um universo sexista.
O resultado de seu estudo revelou não apenas a presença inferior da mulher como personagem
das narrativas analisadas, como também na esfera da autoria dos livros destinados a esse
público. Além disso, a pesquisadora identificou que a posição/função social desempenhada pela
personagem feminina nessas narrativas também é inferior à masculina. Sobre isso ela escreve:
Ainda que, no conjunto de livros premiados analisados por João Luís Ceccantini, o
número de mulheres-escritoras tenha sido ligeiramente superior em relação ao número de
homens-escritores, a extensão de personagens masculinas é bastante desproporcional ao de
femininas: “uma proporção de aproximadamente 74% de personagens masculinas para 26% de
personagens femininas, ou, em outros termos, cerca de 1 mulher para cada 3 homens.”
(CECCANTINI, 2000, p. 341).
Na perspectiva desse pesquisador, uma hipótese que pode justificar a predominância de
personagens masculinas em narrativas juvenis é a tentativa de ampliação do público leitor, haja
vista a conhecida resistência dos meninos em ler narrativas construídas em torno de
protagonistas femininas. A esse respeito ele escreve:
116
É bem conhecida dos que trabalham com a leitura junto aos jovens a
resistência que costumam oferecer os meninos e, sobretudo, os rapazes para a
leitura de narrativas construídas em torno de protagonistas femininas,
resistência que é produto da educação recebida e dos preconceitos de seu meio
de origem em relação aos papéis masculino e feminino. Ao passo que, no caso
da leitura por parte das meninas e jovens, a resistência é bem menor, quando
não ocorre mesmo o contrário – a adesão à leitura de narrativas protagonizadas
por heróis masculinos, que, encarnando o mito do “príncipe encantado”, ao
qual cabe eternamente esperar, acabam por catalisar diferentes níveis de
desejo, fantasia e identificação, regidos também, naturalmente, pelos preceitos
de uma educação castradora e restritiva, muitas vezes toda ela voltada para a
sintonia com o universo masculino. Ora, do ponto de vista do escritor, por que
correr o risco de não ser lido pelos garotos, se os protagonistas-homens
agradariam igualmente a uns e outros?... (CECCANTINI, 2000, p. 342)
No ponto de vista de Fúlvia Rosemberg, ainda que essa discrepância possa ser explicada
por razões comerciais, o que pode ser até aceitável, adotar essa postura no “universo simbólico”
é reforçar ainda mais a visão sexista que predomina na sociedade. Para ela, afirmar que um
livro, cujas capa, título e herói remete a seres masculinos seja neutro, universal, ao passo que
um “livro feminino” seria destinado a um público específico, por isso, sendo rejeitado por
meninos, “significa incorporar, também, neste universo simbólico, o gueto sexual e a misogenia
que povoam a vida religiosa, escolar, política, profissional e cultural.” (ROSEMBERG, 1984,
p. 91).
Seguindo esse mesmo itinerário, no tocante ao sexo dos protagonistas/heróis, as
narrativas de aventura de Nicolelis também são superiormente protagonizadas por personagens
masculinas, o que parece demonstrar a sintonia da autora com a fórmula já conhecida de
diversos escritores de querer abarcar o maior número de leitores possíveis, inclusive de adultos,
posto que nessas narrativas, como já foi enfatizado, nota-se a intenção de equalizar a atuação
das personagens adultas e de jovens adolescentes na economia narrativa. Em O corpo morto de
Deus, por exemplo, a protagonista é uma mulher adulta, ao passo que as duas crianças que
compõem o grupo de personagens desempenham papéis secundários nos acontecimentos
narrados.
É significativo observar que no enredo de algumas narrativas que compõem o corpus,
em certa medida, nota-se a materialização de uma visão tradicional de que meninos e rapazes
tendem a ter atitudes mais traquinas do que meninas e moças, portanto propensas à vivência de
aventuras. Em O segredo da casa amarela e O mistério mora ao lado, por exemplo, “o melhor
da aventura”, isto é, os momentos de tensão provenientes das aventuras (riscos de morte,
117
2.3.2 O espaço
Segundo Vogler (2015), a maior parte das histórias tira o herói de um mundo comum e
trivial e o transporta ao que ele denomina “Mundo Especial”, que é para o herói novo e estranho.
Na perspectiva de Campbell (1997), a transferência do herói do seio da sociedade para uma
região desconhecida se dá sob variadas formas: um erro, o acaso quando o herói está
caminhando a esmo, a atração para um fenômeno desconhecido, enfim, há inúmeras
possibilidades de o herói ser chamado para a aventura. Nas narrativas que constituem o corpus
das histórias de aventura, a curiosidade é o principal elemento responsável por introduzir os
aventureiros no espaço da aventura: é a curiosidade que faz Eleanor continuar a ler os capítulos
da narrativa policial que semanalmente lhe chega pelos correios em O corpo morto de Deus;
do mesmo modo, foi a curiosidade que levou os heróis de Vale das vertentes a querer descobrir
os mistérios em torno da gruta Morro Verde e da louca da serra. Com exceção, de Ajahi, herói
de O sol da liberdade e o protagonista de Nos bastidores da realeza, que foram introduzidos na
aventura abruptamente, sem opção de escolha, uma vez que o primeiro foi vendido por um
capataz, arbitrariamente, para um traficante de escravos, e o segundo ficou preso no museu sem
perceber, os demais não resistiram ao chamado da aventura por causa da curiosidade.
A análise do corpus evidenciou que prepondera o espaço urbano como cenário de
aventura. Ainda que o espaço macro na maior parte das narrativas do corpus esteja
indeterminado e sem grandes preocupações com a sua caracterização, há certas referências que
permitem afirmar que a capital São Paulo, local de origem da autora, é o principal cenário nas
narrativas de Nicolelis. Apenas em uma outra narrativa o espaço macro está explicitado, como
é o caso Vale das Vertentes que deixa evidente que a narrativa é ambientada em São Paulo e
Serra Negra. Na maior delas, a identificação desses espaços se deu em decorrência de algumas
referências esparsas ao longo do texto, como o nome de algum aeroporto, um local público de
fácil reconhecimento. Tal estratégia, conforme afiança Ceccantini (2000), permite que a ação
119
possa ser representada em qualquer cidade do planeta. Além disso, como também já salientou
esse pesquisador, as vagas referências funcionam como fator de verossimilhança, que permitem
a pronta identificação do leitor com o ambiente representado.
Nesse sentido, essa escritora segue uma tendência que tem predominado na ambientação
das narrativas contemporâneas escritas para o público infantojuvenil, que deixou para trás a
ambientação ruralista, predominante até os anos de 1950. Somente em Vale das Vertentes, a
aventura ocorre num condomínio fechado de Serra Negra, situado numa montanha afastada da
cidade, portanto mais próximo do ambiente rural.
De modo geral, com base nos apontamentos de Coelho (2000), é possível afirmar que o
espaço, nessas narrativas, tem o objetivo principal de dar verossimilhança e realidade às ações
narradas, sem exercer maiores influências, podendo ser muito facilmente trocado por outro.
Apenas um ou outro cenário desempenha uma função mais pragmática, como é o caso do
casarão e da gruta Morro Verde, onde residem as misteriosas personagens Iaiá e Danda, em
Vale das Vertentes, ou o castelo misterioso do conde Aragão V, em O fantasma da torre.
No primeiro livro mencionado acima, a título de ilustração, o conflito narrativo está
atrelado às condições do espaço, sendo a curiosidade e o desejo em desvendar os mistérios que
rondam o casarão e a gruta Morro Verde o conflito central da história. Ali o cenário serve de
instrumento para a ação narrativa e ajuda a caracterizar a personagem, em particular, Iaiá. É
conveniente trazer à tona que a visão negativa que os outros moradores do condomínio têm a
respeito de Iaiá está estreitamente ligada com a descrição do espaço em que ele mora. O próprio
narrador onisciente adianta essa constatação: “Um enorme casarão, maltratado, vidros rachados
e telhas faltando. O mato crescia à vontade em torno da casa, como se os próprios moradores
fizessem questão de um certo aspecto selvagem, que propiciava o isolamento.” (NICOLELIS,
1983, p. 52). Em outro momento, uma personagem ratifica esse diagnóstico: “– Também, você
colaborou, né? – falou Lucília. – Sua casa está praticamente caindo aos pedaços, vidros
quebrados, telhas faltando, todo esse mato em volta...” (NICOLELIS, 1983, p. 61).
Isso leva a uma outra constatação no âmbito do corpus: o cenário desempenha apenas a
função de trazer realidade para a história narrada, ele não recebe descrições. Todavia, quando
funciona como elemento determinante do desenrolar da história, o narrador descreve para o
leitor alguns pormenores. Isso ocorre em Vale das Vertentes e O fantasma da torre,
especialmente.
A análise também evidenciou que, com exceção de Nos bastidores da realeza na qual a
ação acontece em um único espaço, nas demais narrativas, aparecem vários cenários, em
especial os espaços sociais, o que pode levar a algumas abstrações em relação ao “mundo”
120
narrado por Nicolelis. Tanto o espaço do mundo comum, onde vivem os protagonistas antes do
embarque na aventura, como o do mundo especial, onde elas vivenciam a aventura, remetem o
leitor a espaços fechados: a casa, a escola, o local de trabalho, o museu, o condomínio fechado,
o casarão, sobretudo nos textos em que as personagens pertencem à classe média. Em nível
simbólico, essa escolha pode dar a ideia de proteção e segurança aos heróis, o que, se dá pela
presença da família nos eventos aventurescos. Mesmo que o jovem adolescente seja exposto
aos perigos, a família está próxima para protegê-lo.
Os espaços abertos aparecem, especialmente, em O sol da liberdade e O segredo da
casa amarela. A segunda denuncia os problemas sociais que ameaçam o crescimento saudável
de adolescentes pertencentes à classe social pobre, como, por exemplo, o trabalho infantil. É no
espaço aberto do campinho, lugar de diversão e de liberdade, que o herói Wanderlei observa a
misteriosa movimentação na casa amarela. Mais tarde, é no espaço aberto das ruas de uma
cidade não determinada, que Zarolho e Wanderlei são expostos ao submundo do jogo de bicho
e do tráfico de drogas, mesmo sem ter consciência disso.
Nessa narrativa, o espaço aberto representa a possibilidade de exposição aos perigos
sociais diversos a que as crianças brasileiras pobres estão expostas em bairros periféricos. O
fato de dona Malvina ter de trabalhar para sustentar a casa desde a morte do marido, impede-a
de acompanhar de perto todas as ações do filho protagonista, o que faz com este “cresça solto”
pelas ruas da vila, logo, estando exposto a riscos variados. No caso da narrativa em questão,
Wanderlei e sua turma embarcam numa aventura perigosa, envolvendo sequestros, lavagem de
dinheiro, tráfico de drogas, trabalho infantil, assassinatos.
Em O sol da liberdade, o confronto entre as ações ocorridas em espaços abertos e
fechados revela a própria condição contraditória vivenciada pelo negro marginalizado: é no
espaço fechado de suas casas que os negros planejam, sonham e vivenciam o espaço de
liberdade; é no espaço aberto que seus sonhos e planos são demolidos pelo branco, ratificando
a sua condição de oprimido. É no espaço da floresta africana que, em 1825, Namonim, o rei
ioruba, convoca seus guerreiros, entre eles, Ajahi, seu filho primogênito, para uma grande
batalha contra tribos inimigas, na qual ele é derrotado. Igualmente, é no espaço aberto da praça
pública de Salvador que, em 1835, Ajahi, depois de sete anos planejando, em espaços fechados,
uma grande revolução, é delatado, torturado e decapitado, ao lado de outros quatro líderes do
movimento revolucionário. Também é no espaço aberto que Elisângela, a única neta do Rei
Momo Carlão, aguarda a passagem do cortejo fúnebre de Tancredo Neves para finalmente dar
providências ao funeral do avô, que morre solitário em casebre de cortiço, depois de ter dado
significativas contribuições à música popular brasileira.
121
Ao que diz respeito aos espaços fechados, nas narrativas cujos aventureiros pertencem
à classe média, esses espaços direcionam a aventura para, pelo menos, duas direções: a da
representação de problemas interpessoais e sociais diversos, evidenciados, em particular nas
narrativas que incorporam traços do modelo crítico, proposto por Zilberman (2003). Em O
corpo morto de Deus, a título de exemplificação, a clausura vivida pela personagem M.X., que
foi afastada de sua genitora ainda na infância quando os pais se separaram em decorrência de
uma traição cometida pela mãe, trouxe à personagem andrógina sérias consequências. O fato
de a personagem ter vivido em uma casa de luxo, estudado em melhores colégios, feito curso
de música, teatro e medicina, não impediu que ela se tornasse uma psicopata e uma assassina
em série.
Já nas narrativas filiadas ao modelo eufórico, os espaços fechados tendem a direcionar
a aventura para algum tipo de aprendizagem, em boa parte das vezes, relacionado a conteúdos
escolares. Em Vale das vertentes, a aventura na serra leva os aventureiros a saber um pouco
mais da história dos escravos brasileiros; em Nos bastidores da realeza, o herói passa uma noite
no Museu de História e entra em contato com a história do Brasil Colônia, contada pelas
próprias personagens históricas; em O fantasma da torre, os protagonistas se aventuram pelo
itinerário dos bandeirantes brasileiros. Em geral, nessas narrativas a trama se desenvolve com
bastante leveza.
Em linhas gerais, os mistérios e enigmas a serem desvendados nesses espaços urbanos
denunciam, com diferentes graus de intensidade, os problemas aos quais os moradores das
grandes e pequenas cidades industrializadas e tecnológicas estão sujeitos: sequestros
relâmpagos, roubos, crimes cibernéticos, assassinatos, isolamento social, o que é uma tendência
natural da literatura. Sobre isso, Sandra Lúcia Reimão afiança que a configuração da narrativa
policial está estreitamente ligada ao contexto histórico e social do momento em que o gênero
foi criado por Egar Allan Poe, em 1840. Segundo ela, a atração pela seção de jornal “fato
diverso” que trazia ao leitor os dramas individuais, via de regras banais, e os crimes
aparentemente inexplicáveis das cidades industriais influenciou consideravelmente nas
temáticas e na ambientação das narrativas policiais. “O desafio do mistério aliado a um certo
prazer mórbido na desgraça alheia e ao sentimento de justiça violada que requer reparos, são
basicamente os elementos geradores da atração e do prazer na leitura deste tipo de narrativa.”.
(REIMÃO, 1983, p. 12-13)
Em Vale das Vertentes, todo o mistério envolvendo Iaiá, a louca da serra, foi justificado
pelo afastamento social, explicação que é dada pela própria personagem quando indagada pela
jovem Janete acerca das razões desse isolamento:
122
– Solidão, minha filha. Eu não quis me casar, foi uma opção consciente da
minha parte. Enquanto meus pais viveram, viajávamos muito; a vida era
movimentada. Depois que eles morreram fui me isolando com as minhas
coisas, meu laboratório fotográfico, e o povo estranhava demais; daí essa
bobagem toda de “louca da serra”. (NICOLELIS, 1983, p. 63)
queriam abrir mão de estar presentes em evento que seria crucial para isso, menos Luciana,
como se pode ler no fragmento que segue:
Nota-se que o isolamento da personagem Luciana ocorre não por negação dos valores
difundidos pela família, e sim por afirmação. Passar no vestibular, em particular de medicina,
é sintomático da autoafirmação dos interesses das famílias de classes médias, que almejam para
seus filhos o status de ocupação das melhores posições sociais. Há, na postura de Luciana, um
exemplo de aceitação dos valores e princípios disseminados no âmago familiar, em especial, a
partir do século XVIII, a ponto de recusar a vivência de experiências aventurescas que um
jovem do cotidiano dificilmente recusaria.
Nessa mesma direção, está a constatação de que o ambiente escolar ocupa papel
importante no âmbito da representação do espaço no interior das narrativas de aventuras,
também funcionando como o espaço do mundo especial. Tal aspecto liga a literatura de
Nicolelis ao conjunto de livros que fizeram parte do corpus da pesquisa de Rosemberg (1984).
Conforme já mencionado, para essa pesquisadora, predominou no resultado obtido a
configuração de uma literatura carregada de ideologias, valorizando, sobretudo, os valores
transmitidos pela família e pela escola. É esclarecedor mencionar que a escola ocupou espaço
secundário no corpus estudado por Ceccantini (2000), dado que acena para a busca da libertação
das ideologias transmitidas pela narrativa tradicional.
Ainda que a escola apareça como cenário efetivo dos acontecimentos narrados em
menos da metade do corpus (três narrativas), a valorização desse espaço é vazada em diferentes
acontecimentos da trama narrativa, como também nas falas das personagens e do narrador
onisciente. Ilustra essa afirmação a passagem em que Wanderlei está para ser contratado pelo
bicheiro João como office boy. Contudo, o trabalho deveria ser conciliado com o horário
escolar, uma vez que frequentar a escola, nessas narrativas, é uma condição primordial para a
124
emancipação dos sujeitos. O diálogo que segue entre Wanderlei, seu João e Zarolho é
representativo dessa ideologia:
Wanderlei rodeou a casa, sozinho e a medo. Tudo quieto àquela hora da tarde,
quase noite, o campinho agora deserto da molecada que jogara futebol a tarde
inteira.
Uma vontade roída de entrar lá dentro, descobrir o mistério daqueles homens
mal-encarados. Lembrou do conselho da mãe. Bobagem, mãe é assim mesmo,
cismada, ainda mais ela que é mãe e pai ao mesmo tempo, vive assustada
gritando pelos filhos, enquanto enrola os doces e salgados.
O que podia acontecer? Vai ver era tudo cisma dele e do Zarolho, na casa não
tinha mistério nenhum, era só uma gente feia, ninguém tinha culpa de ser feio,
mas ele precisava tirar a dúvida, ah, isso ele precisava. Era curioso por
natureza. Dona Belinha, professora lá da escola, até lhe pusera um apelido.
– Menino xereta!
Mas, se ninguém fosse xereta, como é que ficava o mundo? Ela mesma não
tinha explicado que foi a curiosidade que movimentou tanto cientista, tanto
descobridor, tanta gente que mudou o mundo, que virou o mundo de cabeça
pra baixo por causa das descobertas que fez? Tudo pela xeretice. Vai ver
quando ela dizia que ele era um menino xereta estava fazendo elogio e não
botando defeito, porque curiosidade só podia ser sinal de inteligência.
(NICOLELIS, 2003, p. 9)
125
2.3.3 O tempo
do filme estadunidense Night at the Museum (2006), que no Brasil foi intitulado Uma Noite no
Museu, em uma história textualizada em 79 páginas, o leitor vai acompanhar a aventura de um
garoto que foi visitar o Museu de História da cidade ao lado de seus colegas e da professora.
Em certo momento, ele acaba se distanciando da turma e, distraído, observa as pinturas da
galeria quando ouve uma voz saindo de um dos quadros; é D. João VI que inicia uma conversa
com ele. A partir daí outras personalidades históricas ganham vida e começam a contar ao
menino alguns detalhes da História do Brasil de modo particular. Entre essas personagens estão
Napoleão Bonaparte, Dona Carlota Joaquina, Dom Pedro I, D. Pedro II e várias outras.
O menino não percebe a hora passar e, por conta disso, fica preso no Museu, fato que
lhe introduz numa experiência fantástica: passa boa parte da noite conversando com diversas
personalidades históricas e com alguns objetos que também ganham vida. Quando o dia
amanhece, o garoto se junta a outro grupo de alunos que está em visita ao Museu. Ao final do
dia, contudo, quando a professora reúne os alunos da última escola para ir embora, ele não
consegue sair do local, ficando prisioneiro em um quadro ali exposto.
A narrativa não possui divisão de capítulos, apresenta estrutura simples e linear, com
predominância da ordem cronológica na sequência narrativa e das relações lógico-causais. É a
única, no conjunto de narrativas de aventura analisadas, que explora elementos fantásticos;
apesar disso, o tempo histórico é contemporâneo, fazendo referência a um dia de visita escolar
a um museu, cuja ambientação se dá em espaço macro não definido. A exploração do tempo
kairós, isto é, do tempo qualitativo, que na mitologia grega representa “a vivência do momento
especial” pode levar o leitor à percepção de que quando uma ação é feita com prazer, o tempo
não é sentido. Nesse sentido, uma ideia presente na narrativa é que quando o conhecimento é
levado ao estudante de modo divertido e descontraído, ele não vai sentir o peso da obrigação
de ter que aprender algum conteúdo escolar.
Nas últimas páginas do livro há uma seção intitulada “Que história é essa?” na qual essa
ideia é materializada, assumindo, nesse sentido, o caráter paradidático do livro, como é possível
observar nos trechos que seguem:
Ler este livro foi uma experiência diferente, não foi? Como deve ter notado,
não se trata de um livro de História como você está acostumado a ler e a
estudar. Isso não quer dizer que as histórias sejam inventadas, apenas fruto da
imaginação da autora. Não, esses personagens, os da família real e os outros,
realmente existiram e viveram em Portugal, no Brasil, na França e em outros
lugares. A novidade é a maneira de contar. [...]. Assim, você conheceu um
pouco mais da história da realeza. Olhar fatos e personagens históricos desse
128
Nas demais narrativas, a ação se dá em ritmo acelerado, cujas ações substituem umas às
outras sem muita demora, acarretando, com isso, maior velocidade aos eventos narrativos,
configuração que é própria dos textos de aventura. A duração dos eventos narrados está atrelada
ao descobrimento dos mistérios e enigmas; seguindo uma tendência do gênero, desvendados os
mistérios e enigmas, as narrativas terminam.
É comum a autora lançar mão do recurso de manipulação do tempo denominado “salto”
que, na visão de Coelho (2000), é o recurso da condensação temporal. Com ele, o narrador pode
avançar vários dias, meses e anos. Nas narrativas de Nicolelis esse recurso é usado para atender
mais diretamente ao interesse da ação narrativa, como se nota no trecho que segue, extraído de
O fantasma da torre: “Abril passou, maio arrastou-se na primeira quinzena, mas finalmente
chegou o dia 16, noite de lua cheia. Há dias, os garotos observavam o aumento sensível do
satélite. A ansiedade era enorme, compartilhada pelos pais, frei Miguel e Mariana.”
(NICOLELIS, 1998, p. 77).
Esse recurso também é empregado nos últimos capítulos, em geral, as narrativas
apresentam um salto no tempo de um, dois ou até mais meses, conforme as necessidades da
economia narrativa, com vistas a trazer para o leitor o rumo tomado pelas personagens. A título
de ilustração, em Vale das Vertentes, narrativa em que as ações também são dispostas em ritmo
acelerado, cujo tempo histórico é atual, embora ele não esteja explicitamente definido, o
essencial da ação dura um pouco mais de um mês, que é o tempo em que a família se prepara
para fazer a viagem de férias, a descoberta dos mistérios em torno de dona Iaiá e Danda, bem
como da gruta Morro Verde. No entanto, no último capítulo, há um avanço temporal de alguns
meses no qual Lucília, a avó materna, recebe uma carta de Iaiá em que faz um convite a ela
para conhecer a Europa. A narrativa termina com a família e os amigos no aeroporto de
Congonhas se despedindo das duas mulheres para a viagem que duraria nove semanas.
É conveniente relatar que ainda que seja possível situar a maioria das narrativas de
aventuras ao momento atual, sendo estas contemporâneas ao momento em que foram
publicadas, em nenhuma delas há menção do ano em que a ação ocorre. O que leva a essa
conclusão são as esparsas referências que aparecem ao longo dos textos, permitindo situá-los
num determinado tempo histórico. Em Fio da meada, por exemplo, a menção à Telesp,
129
possibilita inferir que o tempo histórico da narrativa é contemporâneo ao momento em que foi
publicado. Nesse período, essa empresa era a operadora de telefonia do grupo Telebrás no
estado de São Paulo, antes da privatização no final da década de 1990, quando foi adquirida
pela Telefônica. Do mesmo modo, há referência à fita cassete, que também era um objeto
comum na época. Em O mistério mora ao lado, o fato de os criminosos serem crakers, do
mesmo modo, é elemento que permite situar a narrativa em contexto contemporâneo à
publicação do livro, década de 1990, momento em que houve a expansão da internet e, em
consequência, de crimes ligados a essa nova tecnologia da informação e comunicação.
Para Ceccantini, esse “desenraizamento temporal” ocorre por algumas razões: forma de
atualização da literatura juvenil em relação ao que já ocorria, desde o Modernismo, na literatura
adulta, a qual ele chama de “outra literatura”, que pretende ter o mínimo de vínculo com a
realidade empírica imediata; “a preferência mais pela sugestão do que pela indicação precisa;
o gosto pelo vago, pelo fragmentário, pelo descontínuo.” (CECCANTINI, 2000, p. 336). Vale
lembrar que quando a narrativa é reeditada, as marcas temporais são atualizadas. O segredo da
casa amarela, por exemplo, foi publicado pela primeira vez em 1980, momento em que a moeda
corrente era o cruzeiro, na edição de 2003, a moeda foi atualizada para real. A atualização das
marcas temporais permite maior identificação por parte do leitor com os acontecimentos
narrados.
Quanto à duração da ação, a narrativa histórica O sol da liberdade é a que apresenta
duração maior: 160 anos; esta é seguida por O mistério mora ao lado, cuja duração é cinco ou
seis meses; O fantasma da torre, O corpo morto de Deus e O fio da meada duram por volta de
três meses; Vale das Vertentes e O segredo da casa amarela, por volta de um mês e Nos
bastidores da realeza, a ação dura apenas um dia. Dessas, somente em uma narrativa o tempo
da aventura é o das férias escolar/trabalho ou da viagem, como nas narrativas tradicionais. Vale
notar que em O mistério mora ao lado, a aventura começa quase no fim do período letivo,
atravessa as férias (provavelmente de julho) e se desenrola em período letivo.
Nesses termos, a aventura, o fato inesperado acontece em meio às atividades do dia a
dia (trabalho, estudo, namoro), de modo que mundo comum e mundo especial se interpenetram.
Um exemplo disso, está na condição da heroína de O corpo morto de Deus: ao mesmo tempo
em que Eleanor se aventura na busca pela investigação da identidade misteriosa do serial killer,
ela precisa lidar com as questões relacionadas aos universos profissional, familiar, amoroso
feminino. Há de notar, entretanto, que no momento em que Andreia, sua secretária, é vítima de
uma tentativa de assassinato, cujas circunstâncias indicam que Eleanor seria o alvo da ação, a
coordenadora editorial pede uns dias de afastamento do trabalho.
130
Conforme afirma Campbell, tendo cruzado o limiar da aventura, o herói é inserido com
toda a força no caminho das provas, passando por “paisagem onírica povoada de formas
curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas” (1997, p.
102). É nesse momento que, de acordo com Vogler (2015), o herói encontra naturalmente novos
desafios e provas, fazendo aliados e inimigos e, em consequência, começa a aprender as regras
do jogo. A observação, ainda que superficial e genérica, dos campos da grade Tema Central,
Temas Complementares e Pedagogismo evidencia que, nas narrativas aqui analisadas, as provas
e os inimigos a serem enfrentados pelos heróis estão diretamente ligados aos temas nelas
discutidos, sendo estes originados do seio da sociedade contemporânea em suas vertentes
capitalista, urbanizada e industrializada, como já foi salientado em diferentes momentos deste
texto.
As narrativas O Vale das Vertentes, O fantasma da torre, O fio da meada, O segredo da
casa amarela, Nos bastidores da realeza apresentam uma média de 22 temas complementares;
em contrapartida, essa média sobe para 60 quando observado o campo Temas Complementares
dos livros O mistério mora ao lado, O corpo morto de Deus e O sol da liberdade. Nesta, há a
ocorrência de mais de 80 temas, incluindo a temática central. Em algumas narrativas está
explícita a intenção da autora em querer incitar no leitor algum tipo de reflexão, como também
131
a adesão à determinada visão de mundo. Isso fica explícito nas contracapas e na seção Autor e
Obra, elementos paratextuais nos quais a autora comenta abertamente acerca das razões que a
levaram a escrever os seus livros. Em O sol da liberdade, a autora escreve em texto de
Apresentação do livro:
O motivo pelo qual escrevi este livro – O sol da liberdade – foi ratificar a
importância da raça negra na formação do povo brasileiro. Segundo alguns
historiadores, no período do tráfico de escravos vieram para a América perto
de 9,5 milhões de africanos: cerca de 40% para o Brasil; 6% para os Estados
Unidos; 18% para a América Hispânica; 17% para o Caribe Inglês; e 17% para
o Caribe Francês. O Brasil foi o último país do mundo a abolir o tráfico.
Atualmente, os Estados Unidos possuem 30 milhões de negros, 12% da
população. Segundo o IBGE, entre negros e pardos o Brasil tem o
correspondente a 44% da população, o que o torna o segundo país negro do
mundo, depois apenas da Nigéria.
Imaginem, agora Salvador, capital da Bahia (e do Brasil até 1763), no começo
do século XIX, incluindo as populações dos arredores, o maior centro urbano
do país, e talvez do Novo Mundo, com 115 mil habitantes: 52% de negros,
sendo 20% libertos; apenas 28% de brancos; e 20% de pardos.
Imaginem, também, os negros da etnia ioruba, que exerciam as mais diversas
profissões, movimentando-se à vontade pela cidade. Convertidos ao
islamismo, que condena a escravidão, falando e escrevendo em árabe,
politizados e ávidos pela liberdade. Chamados de malês, fizeram, desde 1807,
várias revoluções urbanas, das quais a mais famosa foi a de 1835. Essas
revoluções únicas, no Brasil e no Novo Mundo, porque os quilombos eram
rurais.
Fascinante, não é? Nenhum escritor resistiria. Aproveitando o tema, recriei a
saga de uma família negra, desde a África, em 1825, até São Paulo, 1985: 160
anos de História do Brasil, com rigorosos dados históricos e as devidas
licenças ficcionais.
A vocês entrego o resultado de muitos meses de trabalho e paixão: boa leitura!
(NICOLELIS, 1994, n.p.)
A longa, porém necessária citação, confirma o caráter pedagógico desse livro, cujo mote
está na História do Brasil. Nele, todo o enredo está a favor da temática, as ações das
personagens, espaço e tempo estão a serviço da defesa da tese da autora. O fato de Nicolelis
apresentar ao leitor as razões que a levaram a escrever a narrativa traz a ele o conforto e consolo
de que trata Ferreira (2003), uma vez que tendo essa informação, ele fará a leitura, certamente,
produzindo uma interpretação ligada à tese da autora, sem maiores reflexões, o que prejudica o
caráter polissêmico de toda linguagem literária.
Tal postura pode ser observada em relação aos livros O segredo da casa amarela e O
corpo morto de Deus, narrativas em que a autora sai explicitamente em defesa de uma tese. Nas
132
demais, ainda que se observe tal postura, em especial nas falas das personagens e do narrador,
a temática discutida no livro, os mistérios e enigmas que a envolvem, bem como a linguagem
descontraída de seus narradores, podem amenizar o tom professoral que perpassa suas histórias.
Seja como for, as narrativas de aventura de Nicolelis conduzem o herói e o leitor para uma
jornada do conhecimento, sobretudo, de temas que amedrontam a sociedade contemporânea, o
que não é o papel da literatura.
Desse modo, em linhas gerais, tomando como base unicamente o campo Temas
Complementares, observa-se duas direções no conjunto das histórias que se filiam à linha de
narrativas de aventura: alguns temas são recorrentes, aparecendo em pelo menos 50 % do
corpus, estando entre eles temas universais como: amor, ódio, vingança, medo X coragem,
traição, sonhos, morte, perigo. Paralelamente, há determinados temas/assuntos que aparecem
em decorrência da temática central. A título de exemplificação, em Nos bastidores da realeza,
a História do Brasil Colônia contada de modo divertido parece estar no centro dessa obra. Por
conta disso, aparecem, ao longo do texto, alguns temas advindos da temática central, como, por
exemplo: a sociedade patriarcal; as dificuldades enfrentadas pela embarcação portuguesa
quando a família real veio para o Brasil; o calor das terras brasileiras; a mulher vista apenas
como parideira; o grande número de filhos que as famílias possuíam antigamente; a morte
precoce no Brasil colonial; a falta de saneamento básico e de remédios nesse período; a febre
puerperal; nepotismo; a falta de hábito de tomar banho; a praga do frade; os casamentos
arranjados, entre outros.
No total, aparecem mais de 200 temas complementares, descontando as repetições.
Sumariamente, os temas complementares que aparecem nessas narrativas seguem em diferentes
direções, estando todos eles, em maior ou menor grau, ligados ao contexto da sociedade
contemporânea, a saber: relações interpessoais (amizades, relações entre pais, filhos e irmãos,
relação entre vizinhos); o mundo do trabalho (greve, desemprego vocação profissional, a
condição dos aposentados, desvalorização profissional das profissões ligadas à arte, relação
entre patrões e empregados, trabalho infantil, confiança profissional ); cultura e educação (a
importância da educação para a emancipação dos sujeitos, linguagem, literatura,
metalinguagem, vestibular); problemas sociais atuais (saúde, preconceito, autorracismo,
corrupção, sequestro relâmpago, desigualdade social, aumento da criminalidade, crimes
tecnológicos, a luta pela sobrevivência, riqueza X pobreza); comportamento, atitudes e
sentimentos (caridade, covardia, curiosidade, solidão, fidelidade, trabalho em equipe,
persistência, solidariedade); adolescência (paquera, namoro).
133
No que tange à temática central (ou temáticas centrais), nota-se três vertentes, estando
duas delas atreladas ao que Ceccantini (2000) observou em cerca de 14% das narrativas
estudadas por ele. Em algumas das histórias estudadas por esse pesquisador, os temas
sequestros, mistérios criminais e aventuras, terceira linha temática mais recorrente em seu
corpus, apresenta-se mais como assunto do que propriamente um tema, pois a estes entrelaçam
alguma outra questão central. É o caso de O outro lado do tabuleiro, de Eliane Ganem, que não
se limita ao problema do sequestro da menina Alice, para questionar o quadro de desigualdades
sociais, à proporção que a investigação se desenvolve. Paralelamente, foi observado por ele
outras narrativas em que não há a intenção de questionar um tema de modo prioritário, a
proposta é apresentar ao leitor apenas uma história de sequestro, aventura ou crime. Ilustra essa
vertente o livro O incrível roubo da loteca, de Stella Carr, a qual se atém ao mistério do
inescrupuloso ganhador da loteria, sem manifestar maiores questionamentos no eixo central da
narrativa.
As constatações de Ceccantini podem ser facilmente vislumbradas no conjunto do
corpus aqui analisado. Em narrativas, como O Vale das Vertentes, O fio da meada e O fantasma
da torre, mesmo que nelas estejam entrelaçados variados temas complementares, a proposta é
apresentar ao leitor uma história de aventura, recheada de mistério e enigmas. Nas narrativas O
corpo morto de Deus, O mistério mora ao lado e O segredo da casa amarela, outros temas
centrais sobrepõem ao mote do mistério e da aventura. Em O segredo da casa amarela, a título
de exemplificação, à medida que os heróis Wanderlei e Zarolho vão investigando o caso do
mistério dos moradores da casa amarela, a temática central vai se apresentando ao leitor: o jogo
de bicho e suas nefastas consequências para a sociedade, sobretudo, para os adolescentes
moradores de bairros periféricos, que precisam trabalhar muito cedo, estando, por conta disso,
expostos a situações de risco diversas. É este, pois, o inimigo a ser enfrentado pelos heróis da
história.
Já os livros Nos bastidores da realeza e O sol da liberdade exemplificam a terceira
tendência observada: a aventura se dá pela viagem feita pela História do Brasil, sem mistérios
ou enigmas a serem desvendados. No primeiro, esta se dá pela fantasia e de forma lúdica, já na
segunda, o percurso feito parte da pesquisa científica sobre a História da Escravidão no Brasil.
Vale relembrar que os livros O fantasma da torre e Vale das Vertentes também tematizam a
história nacional: as expedições bandeirantes e a história dos quilombos, respectivamente.
Desse modo, dois temas centrais preponderam no corpus analisado: a aventura e o
mistério, e a identidade nacional, transfigurado na História do Brasil em várias vertentes: os
grupos quilombolas, a escravidão, expedições bandeirantes e colonização portuguesa. Em
134
Essa configuração é muito facilmente observável na maior parte das narrativas que
constituem o corpus, forma de representação que vai ao encontro do que foi denominado por
Regina Zilberman de “modelo eufórico”, cuja obra de Érico Veríssimo é exemplar, uma
maneira de representação literária que “privilegia os valores da existência doméstica,
encerrando nela as personagens infantis.” (ZILBERMAN, 2003, p. 209). Nesse modelo,
transparece “uma euforia com a vida administrada pela família, que lega a seus rebentos os
principais padrões da sociedade.” (ZILBERMAN, 2003, p. 209).
A euforia presente nesses textos se revela pela preponderância de uma representação
bastante positiva da família, sendo esta, nas narrativas em análise, um “porto seguro” para o
jovem adolescente, lugar onde pais, filhos, irmãos e avós, na maior parte das vezes, vivem
sempre em harmonia. Essa configuração pode ser observada muito explicitamente em O
fantasma da torre, O fio da meada e Vale das Vertentes. Nelas, mesmo que os jovens
adolescentes sejam os primeiros a serem chamados para a aventura, a família não fica de fora
dela, sempre acompanhando, orientando e ajudando os heróis a solucionar os mistérios e
enigmas a serem desvendados. Em Vale das Vertentes e O fio da meada, torna-se muito
comprometedor sobrepor a atuação de um membro sobre o outro, em função dos papeis
igualitários que eles assumem na trama narrativa. Sendo assim, os heróis são a própria família.
Nas narrativas O segredo da casa amarela, O mistério mora ao lado e na narrativa
central de O corpo morto de Deus, a representação da família já se aproxima mais do
“modelo crítico” que, segundo Zilberman (2003), é uma vertente mais engajada em que as obras
destinadas a crianças e adolescentes objetivam denunciar os desiquilíbrios ocorridos no interior
da unidade doméstica. O comentário feito pelo narrador-protagonista de O mistério mora ao
lado elucida essa constatação: “Nessa hora lembrei do que um psicólogo amigo do pai disse um
dia, em casa: ‘Família fica muito bonita em retrato na parede’. Na hora achei estranho, mas
agora... até que parecia verdade.” (NICOLELIS, 2001, p. 73). Todavia, assim como no modelo
eufórico, esse modelo ainda fecha seus heróis no círculo familiar, mesmo que eles se sintam
incomodados e desajustados. Em O sol da liberdade, o herói é cada membro da família, que em
momentos históricos e sociais diferentes, vivem a opressão de uma sociedade brasileira racista,
que desconsidera toda a contribuição dada pelo negro na construção do país e que, por conta
disso, faz dele um marginalizado, que precisa diariamente lutar para conquistar seu espaço,
ainda que sob a forma de “Rei Momo”.
No caso das narrativas de Nicolelis, o que se nota é que ainda que os heróis reconheçam
desiquilíbrios e contradições imersos no âmago familiar, o jovem adolescente não quer
necessariamente se libertar do ambiente doméstico e sempre encontra na figura de algum ente
136
da família alguém em quem confiar. É o caso, por exemplo, da relação de cumplicidade vivida
por Lucas e seu avô materno em O mistério mora ao lado. Nessa narrativa, os pais e irmãos do
herói nem chegam a desconfiar de que ambos (neto e avô) são os principais responsáveis pela
resolução do mistério que cerca os sobrinhos de seu Evaristo, que eram na verdade crackers.
Em O segredo da casa amarela, filho e mãe estão em constante tensão, posto que dona
Malvina, com a intenção de proteger Wanderlei, tenta, o tempo todo, impedi-lo de se aventurar
pelos mistérios que rondam a casa amarela, afirmação da qual a citação que segue é ilustrativa:
Portanto, ainda que a mãe tenha tentado impedir o filho de atender ao chamado da
aventura, aos poucos, ela também se vê envolvida em tal peripécia em função da curiosidade e
da necessidade de protegê-lo. Nesse sentido, o jovem está mais uma vez amparado pela família
no percurso da aventura. Cabe lembrar, todavia, que nem todos os pais dos aventureiros têm
137
conhecimento do que os garotos fazem para tentar desvendar os mistérios da casa amarela,
como se nota na seguinte passagem: “– Se minha mãe sabe disso... – gemeu o Pedro.”
(Nicolelis, 2003, p. 88). Nessa mesma direção, com exceção de dona Malvina, as demais
personagens adultas assumem papéis secundários nessa narrativa.
Vale ainda lembrar que o narrador onisciente toma sempre o cuidado de evidenciar a
preocupação dos pais em relação aos filhos e destes em relação aos pais. Para ilustrar, em O
corpo morto de Deus, sempre que a heroína precisa se ausentar de casa, esse narrador tem a
preocupação de justificar ao leitor quais procedimentos Eleanor adotará em relação ao filho,
como se pode observar nos fragmentos que seguem: “No dia do espetáculo, Eleanor saiu mais
cedo da editora, para não arriscar ficar presa no trânsito. Vasques já levara, como haviam
combinado, Luca para a casa da avó.” (NICOLELIS, 1999, p. 135); “Apesar de Eleanor não
estar muito animada, Vasques a convenceu a ir. Luca ficaria em segurança na casa da avó.”
(NICOLELIS, 1999, p. 131); “Combinaram para sexta-feira à noite, dali a dois dias. Ela queria
um tempo para se preparar. Viria de táxi para o trabalho e sairiam no carro dele após o
expediente. O Luca passaria a noite na casa de um amiguinho.” (NICOLELIS, 1999, p. 46).
Em contrapartida, os filhos também são companheiros dos pais, compreendendo suas
limitações e problemas. E, por conta disso, estão dispostos sempre a ajudar. Wanderlei é o
principal ajudante de dona Malvina em O segredo da casa amarela. Apesar dos conflitos, o
herói está sempre atualizando a mãe a respeito das descobertas que fazem no caso da casa
amarela. Na mesma direção, vai a relação de Lucas com os pais em O mistério mora ao lado.
O herói se preocupa com a crise financeira pela qual passa a família, prontificando-se
rapidamente a ajudar:
Ajudar a família (e o próximo) traz sempre aos heróis uma sensação de bem-estar:
“Fiquei feliz, porque, de alguma forma, estava ajudando.” (NICOLELIS, 2001, p. 75).
Isso posto, mesmo que haja, em algumas das narrativas que compõem o corpus, um
movimento que sinaliza a busca pela libertação do ambiente doméstico, ao final, os heróis
sempre voltam para a proteção de seus lares. É ali, apesar de alguns impasses, o lugar de
segurança, proteção e amor. De outro lado, os pais são, preponderantemente, os principais
mentores e aliados: auxiliam, orientam e cuidam dos heróis, sobretudo a mãe.
Cabe levantar que, em direção contrária ao que foi diagnosticado por Zilberman (2003),
no que tange à ausência da figura materna nas narrativas filiadas ao modelo eufórico, aqui as
mães desempenham papel crucial como elemento regulador da vida familiar. São mulheres
independentes que ora ajudam o marido no sustento da família, ora assumem elas próprias essa
responsabilidade, como é o caso de dona Malvina, que é viúva, e de Eleanor, que é divorciada.
No caso da mãe de Lucas, herói de O mistério mora ao lado, diante da crise financeira
pela qual atravessa a família, a mãe toma a decisão de voltar a trabalhar. Por ter um filho ainda
bebê, não pode trabalhar fora, circunstância que a leva a montar o seu próprio negócio de
comida congelada em sua casa, sendo Lucas o seu ajudante principal. Nesse sentido, além de
cumprir o papel de educar e cuidar dos quatro filhos e de administrar a vida doméstica, ainda
passa a prover, mesmo que temporariamente, a vida financeira da família, função que, do ponto
de vista da narrativa, deveria ser desempenhada pelo pai. Essa configuração, em certa medida,
destoa um pouco dos textos filiados ao modelo eufórico analisados por diversos pesquisadores,
em que, em geral, predomina a representação de uma figura paterna à qual é atribuída a
responsabilidade por regular “a vida familiar, ordenando suas concepções existenciais e o
mundo vivendi.” (ZILBERMAN, 2003, p. 210).
Nas narrativas que compõem o corpus da aventura, algumas figuras paternas são até
ridicularizadas: é o caso de Carlos, o pai protagonista de O Vale das Vertentes, que raras vezes
têm a sua opinião considerada, chegando a vivenciar diversas situações cômicas, promovidas,
sobretudo, pelas peripécias da serelepe cachorrinha Ápia. A figura paterna em O corpo morto
de Deus é representada de modo trágico na narrativa encaixada, posto que o trauma infantil que
leva a personagem M.X. a se tornar uma psicopata serial killer é atribuída ao pai, um empresário
famoso, que é assassinado pela própria filha. Em O mistério mora ao lado, o músico da
prefeitura municipal José, pai do protagonista Lucas, não é valorizado e respeitado pela esposa
em função da sua profissão, uma vez que além de não ganhar bem, vive com o salário atrasado.
Conforme já foi mencionado, a falta de dinheiro é o que leva a mãe a tomar algumas atitudes
drásticas, passando a se responsabilizar provisoriamente pelo orçamento doméstico. Nesse
139
sentido, as narrativas de aventuras de Giselda Laporta Nicolelis seguem uma tendência desse
modelo ficcional que, do ponto de vista de Albuquerque, incorporam os conflitos e percalços
de heróis adolescentes que mesmo vivenciando conflitos familiares diversos, encontra na
instituição familiar um espaço de acolhimento. Sobre isso a pesquisadora escreve:
2.4.2 A linguagem
Nas últimas décadas, o modo como os escritores têm representado a linguagem nos
textos literários tem chamado bastante a atenção de diferentes estudiosos da literatura
infantojuvenil, em especial, porque ela é um dos fatores determinantes no processo de
construção estética do texto, conferindo a ele (ou não) verossimilhança. Igualmente, é pela
140
leitura do texto literário que, segundo Bordini e Aguiar (1993), o indivíduo tem a oportunidade
de reconstruir todo o universo simbólico encerrado nas palavras, concretizando-o com base em
suas vivências, por meio do trabalho com a linguagem.
No que diz respeito à travessia dos heróis em sua jornada, o trabalho com a linguagem
se mostra fundamental, posto que a comunicação literária pode ser entendida como uma reserva
de vida paralela que o leitor nem sempre consegue experimentar na vida real, o que contribui
para a formação de sua personalidade, do mesmo modo que promove o conhecimento do mundo
e do ser, como salientou Candido (1972).
A análise do campo Linguagem mostra que predomina nas narrativas de aventuras do
corpus o uso da linguagem realista, isto é, que intenciona mimetizar as experiências passíveis
de serem vividas no mundo real. Apenas a linguagem do livro Nos bastidores da realeza foge
desse tipo de construção, na qual há a fusão entre a linguagem realista e a simbólica,
constituindo num tipo de hibridismo que, do ponto de vista de Coelho, vai denominar “Realismo
Absurdo” ou “Realismo Mágico”, “no qual o cotidiano mais comum passa a conviver com um
elemento estranho ou maravilhoso, que ali é visto como absolutamente natural.” (2000, p. 83).
Nessa narrativa em questão, o protagonista se relaciona com as personagens históricas e objetos
de forma natural. Passar uma noite inteira no museu sem perceber a hora passar, esquecendo-
se da professora, de colegas e da família, pode ser metafórico do “aprender brincando”.
Das técnicas ou processos narrativos discutidos por Coelho em Literatura infantil:
teoria, análise e didática (descrição, narração, paráfrase, diálogo, monólogo, dissertação,
digressão, comentários), predomina no corpus da aventura a narração, entendida como uma
técnica de quem relata um processo participando, inclusive emocionalmente, daquilo que está
sendo contado, pois se sente senhor dos segredos e do dinamismo dos acontecimentos. Para
essa pesquisadora:
– Vocês estão muito sossegados, sabem? Eu não dou um centavo pelo Fuinha.
Vou até onde trabalha a dona Regina saber alguma coisa. De mim ninguém
vai desconfiar. Volto assim que puder. Luciana esquente o jantar, Ana
Carolina recolha a roupas do varal e Rodrigo ponha a mesa, por favor. Seu
Fábio, não esqueça de tomar seu remédio. Tchau. Matilde. (NICOLELIS,
1981, p. 34 – 35)
O primeiro parágrafo dessa citação poderia, sem problemas, ter sido proferido por um
narrador em terceira; neste caso, a primeira pessoa só se diferencia da terceira pelas marcas
verbais próprias desse tipo de narrador (primeira pessoa do discurso). Fora isso não há marcas
literárias significativas que as individualizem.
No registro do herói Lucas, de O mistério mora ao lado, podem ser observadas nuances
do purismo linguístico, provocando na fala desse narrador incoerência e inverossimilhança na
linguagem:
Acontece que na rua morava um cara que nunca foi muito bom da bola,
coitado. Todo mundo sabia disso e maneirava quando ele se punha a falar.
Principalmente porque a mulher dele era uma pessoa muito boa e os filhos
também. O cara era perito em contar histórias mirabolantes. A preferida, que
eu já ouvira dezenas de vezes, é que recebera de herança joias muito valiosas
que ele guardava num cofre de banco. (NICOLELIS, 2001, p. 46)
Como lembra Maria Alice Faria, esse tipo de manipulação da linguagem beira ao
ridículo, prejudicando consideravelmente a verossimilhança linguística, principalmente, porque
a escritora não consegue incorporar no plano da linguagem literária gírias, a coloquialidade ou
mesmo frases desestruturadas com naturalidade. Isto faz lembrar um outro problema que
impede as narrativas em questão de adquirir um bom nível de linguagem, problema que também
foi levantado por Faria (s. d.) em livros como Lígia, menina..., de Manoel Carlos Rubira e O
brinquedo misterioso, de Luís Galdino. Trata-se do uso de aspas nas expressões coloquiais, o
que pode denotar estigmatização da linguagem, posto que ao lançar mão desse recurso, o autor
está alertando o leitor que o termo em questão foge às normas gramaticais.
Ilustra essa constatação a fala extraída de O segredo da casa amarela: “– Tá ficando
corajoso, hein, ‘meurmão’? – riu Jaime. – Inteligente e corajoso, que é, tomou banho de lua?”
(NICOLELIS, 2003, p. 87). É curioso que em outros momentos aparecem certas marcas de
145
oralidade que não são grafadas com aspas, como: “praquele”, “s’imbora”, “noutra”, dado que
leva a um outro tipo de estigmatização, pois “meurmão”, sendo uma gíria tem valor linguístico
inferior às marcas de oralidade, que desse ponto de vista, poderia ser “aceitável”. Também vale
constatar que nem sempre esse procedimento é adotado; as gírias paulistas “meu” e “pô”, por
exemplo, aparecem em várias narrativas sem essa estigmatização gráfica.
No conjunto, apesar das ressalvas a serem feitas, o registro das personagens em O corpo
morto de Deus e O sol da liberdade consegue ser mais fluente. Embora nesses livros, em vários
momentos, a tentativa de fusão do português formal com o coloquial não fique tão convincente,
de modo geral, isso se dá de maneira mais natural. O trecho que segue é um exemplo do que
pode ser considerado um diálogo fluente nas narrativas em questão:
– Bobagem Carlão – discordou o Foca. – Tem mais essa não. Mulher, homem
é tudo igual... a gente agora não faz diferença não...
– Esqueceu que eu tenho oitenta anos, rapaz? No meu tempo, mulher a gente
tratava assim com muito carinho, sei lá como se fosse flor... agora é que as
mulheres tão ficando igual aos homens, querem fazer tudo igual, sei não, sei
não...
– Não me venha dizer que você é machista, Carlão. – O Foca riu. – As
mulheres têm direito, ué, se têm capacidade igual, por que não exercer os
mesmos cargos, serem pessoas inteiras...
– Eu sei, tô só comentando... eu mesmo tenho uma bisneta, você precisa
conhecer, é colega sua, tá estudando em faculdade de Comunicação. Boa
garota, é isso aí que você falou, ela é feminista... (NICOLELIS, 1994, p. 122-
123)
Ainda que no fragmento acima esteja explícita a intenção da autora de propor ao leitor
uma discussão sobre o papel social da mulher, a construção desse diálogo demonstra uma
tentativa da autora de mimetizar a fala cotidiana no plano da realidade social atual.
Há ainda de notar que as palavras estrangeiras, em várias narrativas, são grafadas em
itálico, estratégia que demonstra respeito pelas normas acadêmicas de escrita. No livro O
fantasma da torre pode chamar a atenção do leitor as frases e expressões em inglês (sempre em
itálico) ditas pela jovem americana Mary Anne todas às vezes em que ela se encontra nervosa
e excitada, como, por exemplo, “– My God! The count’s treasure” - berrou Mary Anne,
desabafando finalmente as lágrimas que começaram a escorrer pelo seu rosto.” (NICOLELIS,
1998, p. 82). Tais expressões, embora não sejam acompanhadas de tradução, poderão ser
compreendidas pelo jovem leitor, com poucas exceções, em função de uma ou outra explicação
que podem aparecer nas falas do narrador ou das personagens logo que elas são proferidas,
146
como se observa em “– What time is it? / Faltavam quinze para as quatro.” (NICOLELIS,
1998, p. 35).
Assim, ao que diz respeito à manipulação da linguagem do corpus de aventura, esta não
conseguiu acompanhar as inovações sofridas pelo gênero ao longo de sua existência,
permanecendo presa à concepção tradicional de ensino de língua que tem no texto literário o
exemplo da “boa linguagem”, paradigma que, do ponto de vista de Faria (s. d.), apenas dá
mostras da alienação do escritor, uma vez que não reconhece as transformações naturais
sofridas pela língua ao longo do tempo.
Conforme já foi discutido no capítulo anterior, um dos destaques dados pela crítica
especializada na esfera da configuração da literatura juvenil contemporânea, é a incorporação
das demandas linguísticas contemporâneas por grande parte de novos escritores. Contudo, ainda
que o herói nicoleliano tente subverter esse modelo de linguagem mais purista em algum
momento, a família e a escola, como principais mentores e aliados no percurso da jornada,
insistem em mantê-lo no universo do purismo linguístico idealizado. Em Vale das Vertentes, o
diálogo entre pai e filha é representativo dessa afirmação: “– Vai ser um ‘sarro’ ela dentro do
carro...” (NICOLELIS, 1983, p. 10) ou em: “– Como é, pai, a gente ‘vamos’ ou não ‘vamos’?
– falou Simone. / - ‘A gente vai’, se a Ápia sair – corrigiu o pai.” (NICOLELIS, 1983, p. 12).
O diálogo, igualmente, evidencia a estigmatização entre a linguagem culta e a coloquial,
comprovada na metalinguagem materializada no discurso do pai que corrige a filha em relação
à forma adequada de fazer a concordância verbal, bem como pelo uso de aspas nas expressões
que fogem do padrão culto da língua, valorizado tanto pela família burguesa, como pela escola,
instituição responsável por preservar a língua purista.
Deste modo, os heróis nicolelianos tendem a respeitar com demasiada frequência as
normas gramaticais: exploram a ênclise e a mesóclise nas colocações pronominais, usam o
pretérito mais que perfeito em falas cotidianas, empregam adequadamente o modo verbal
imperativo. Alguns apresentam vocabulário exageradamente rebuscado, certamente uma
herança da tradição do gênero, o que, sob a ótica de Faria (s. d.), é um dos maiores equívocos
dos livros de ficção voltados a crianças e jovens, posto que esse tipo de manipulação da
linguagem está preso a uma concepção tradicional de ensino de língua que valoriza a linguagem
purista em detrimento da linguagem realmente falada pelo jovem em seu cotidiano.
147
2.5 A volta para casa com o elixir da sabedoria: mais conhecimento, mais cultura
Nas narrativas míticas, o ciclo completo da jornada do herói termina com o seu retorno
com o troféu transmutador da vida: “o Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta
ao reino humano, onde a benção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da nação,
do planeta ou dez mil mundos.” (CAMPBELL, 1997, p. 195). Às vezes, esse troféu, que é
chamado por Vogler de elixir, pode ser um tesouro que foi conquistado na aventura: amor,
liberdade ou o conhecimento de que o mundo especial existe, podendo ser possível sobreviver
a ele. Em algumas situações pode ser apenas voltar para casa com uma história para contar.
Levar algo para casa no caminho de volta da “Provação da Caverna Secreta” é uma condição
para que o herói não esteja fadado a repetir a mesma aventura, embarcando “na mesma tolice
que causou os problemas no início.” (2015, p. 57).
A observação dos campos da grade “Resumo da Narrativa” e “Organização da
Narrativa” aponta que, de modo geral, como é comum nos desfechos das narrativas de
aventuras, resolvido o enigma, a narrativa termina. Em algumas delas, há a inserção de um
capítulo denominado Epílogo, cujo intuito é apresentar ao leitor o rumo tomado na história
pelas principais personagens depois de um ou dois meses dos acontecimentos narrados. Essa
configuração é recorrente nas narrativas filiadas ao subgênero policial ou mistério, entre elas:
O fio da meada, O fantasma da torre e Vale das Vertentes. Nelas, em geral, o final é fechado e
feliz, sendo os heróis conduzidos para o mundo comum de modo bastante descontraído e
eufórico pela mediação do narrador, ao estilo do excerto que segue:
Querida Lucília,
Feliz a hora em que você e sua família vieram passar férias nas Vertentes.
Digo feliz, porque vocês mudaram a minha vida. Eu vivia isolada, sem amigos
nem distrações, e havia perdido o gosto por tudo. Você bem viu o estado da
casa, a própria desolação.
Vocês todos e, principalmente você, Lucília, fizeram-me compreender o
quanto estava desperdiçando minha vida. Comecei pela casa e agora estou
cuidando de mim mesma. Por isso, escrevo esta carta.
De repente, me bateu uma vontade louca de viajar, rever os lindos lugares que
tanto amei na juventude, em tempos felizes. Tenho tudo para isso, menos o
principal: companhia. Danda é muito velha, Maria ficará cuidando dela.
Então, me lembrei de você, querida amiga. Aceita ver a neve comigo, com
todas as despesas pagas? Afinal, estou convidando e não aceito desculpas.
Assim você completará seu trabalho, ajudando-me a recuperar, de vez, o
prazer de viver.
O Janjão não sai mais aqui de casa. Ele adora a Danda e vice-versa. O João e
a Ana idem. Cada vez mais, reencontro velhos amigos e faço novos, e lhes
garanto: o povo já não me chama de “louca da serra”. Agora sou,
simplesmente, dona Iaiá.
Aguardo breve resposta (afirmativa, espero).
Recomendações a toda família.
E o carinhoso abraço da amiga-irmã,
O sol a pino, arde sobre as cabeças, mergulha seus raios férvidos, contagiando
a terra com a sua luz... o cortejo vem vindo... o carro vermelho, coberto de
coroas de flores coloridas...logo mais passará pelo cortiço, se cruzarão ambos,
presidente e sambista – mortos no mesmo dia -, um aclamado pelo povo, o
outro desconhecido desse povo que ele cantou nos seus sambas, pelas
madrugadas de garoa...
A multidão se comprime mais, quer romper os cordões de isolamento... os
guardas, de mãos dadas, contêm o povo... pelo rosto de Elisângela começam
a correr lágrimas quente, lúcidas, graúdas ... ela chora por tanta coisa... por
todos os que se foram e por todos que ainda virão...
Da névoa do tempo/ancestral os tambores iorubas tocam/chamando para a
luta...
“NÃO VAMOS NOS DISPERSAR...” (NICOLELIS, 1994, p. 134 - 135)
Ainda que esse formato seja muito aparente nas narrativas em terceira pessoa, nas
escritas em primeira, os conselhos aparecem na fala direta das personagens. Nas narrativas com
narrador em terceira pessoa, os conselhos também são visualizados na fusão do discurso deste
com o dos personagens, por intermédio do discurso indireto livre, como também pode aparecer
no discurso científico que, geralmente, emerge de um ato de leitura e pesquisa realizado pelas
152
personagens. Em O corpo morto de Deus isso é muito recorrente. Com o objetivo de tentar
compreender a mente do assassino em série que escolheu Eleanor para ser sua interlocutora,
essa coordenadora editorial recorre aos livros e a Décio, seu amigo psiquiatra, sendo ambas
fontes de conhecimento científico. É exemplo dessa constatação a passagem que segue:
Ao longo da narrativa, são transcritas várias passagens de textos aos quais Eleanor
recorre para compreender a mente de um psicopata. Ocorre, entretanto, que tal técnica parece
deixar as marcas da voz da própria escritora, que, na seção “Por que escrevi este livro”,
constante nas últimas páginas da obra em questão, relata ter pesquisado muito antes de compor
a trama narrativa. Ali, ela explica ao leitor o contexto de produção da narrativa, como podemos
ler na citação que segue:
Explicar sobre as razões que levaram a compor suas narrativas é uma prática comum de
Giselda Laporta Nicolelis. Ao fazer isso, a autora traz segurança a seus leitores, além de
conforto e consolo, como lembra Ferreira (2003), uma vez que esses comentários e explicações
podem orientar a compreensão e interpretação de seus leitores, mantendo-os em zona de
segurança. Postura igual tem os seus narradores que, por intermédio da onisciência, mesmo
estando fora da história, demonstram ter conhecimento pleno dos fatos, conflitos, segredos e de
tudo o que se liga ao universo interno ou externo das personagens, conhecendo, inclusive, o
passado, o presente e o futuro delas. Apesar dessa constatação, em alguns momentos, essa
entidade ficcional opta por ter uma visão limitada, omitindo algumas informações de seus
leitores, “não se permitindo invadir a mente das personagens, e contando apenas o que vê.”
(CARVALHO, 1996, p. 208). A opção por esse tipo de visão pode ser justificada pela intenção
da autora em criar um clima de suspense, estratégia própria das narrativas de aventuras.
No que diz respeito à onisciência, ela também é revelada no modo de narrar, quando faz
questão de demonstrar sua presença como ser que guia e conduz as personagens, sobretudo, nos
textos escritos em terceira pessoa. Destarte, o mentor dos heróis. Isso também é revelado na
forma como as falas das personagens são registradas, preponderando o discurso direto, tanto
nas histórias que são contadas em primeira como nas que estão em terceira pessoa. A princípio,
a opção por essa forma de organização do discurso pode deflagrar a ideia de que as personagens
se revelam ao leitor pelo o que falam e pelo modo de se expressarem, provocando o efeito do
real na construção do diálogo. No entanto, a constante mediação do narrador nesses diálogos,
faz com que essa ideia seja descartada, posto que ele é o guia e mentor maior do discurso das
personagens. Mesmo que em menor grau, nas narrativas escritas em primeira pessoa, o narrador
também faz intromissões nas falas das personagens, o que pode ser observado com maior
frequência em Nos bastidores da realeza.
Do mesmo modo, a voz narrativa está presente no discurso indireto livre que é
empregado, particularmente, em O corpo morto de Deus, cuja obra explora o universo
psicológico das personagens, trazendo à tona, por meio de “diálogo imaginário” o que vai na
mente de suas personagens. Nele, as vozes do narrador e das personagens se misturam, técnica
que também pode revelar as marcas de um narrador que não quer dissimular a sua presença, tal
154
como sua autora, que também faz questão de se revelar ao leitor por meio de explicações e
comentários acerca de seus textos literários.
No conjunto do corpus, o discurso indireto é empregado em escala bem menor, sendo
utilizado, em especial, com dois propósitos: o primeiro objetivo é sumarizar acontecimentos já
ocorridos na narrativa que, porventura, algumas personagens ainda não tiveram acesso, do qual
é exemplo a passagem que segue, extraída do livro O fantasma da torre:
O sumário é uma técnica de narrar bastante utilizada nas narrativas do corpus, sendo
menos empregada apenas em Nos bastidores da realeza. Tal recurso pode ser justificado pelo
fato de os textos de aventura estarem centrados na ação e, conforme sublinha Ives Reuter em A
análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração, o sumário permite enfatizar os momentos
essenciais, economizando a narrativa, recurso que também vai ao encontro dos leitores jovens
que tendem a gostar de leituras mais velozes.
Assim como foi revelado na esfera da manipulação da linguagem, a relação do narrador
em primeira pessoa com a matéria narrada não apresenta muitas diferenças em relação ao de
155
terceira pessoa, em qualquer uma dessas categorias narrativas é possível observar o desejo
manifestado pelo narrador de deixar a sua marca como o contador da história que chega ao
leitor. Nesse sentido, o mundo narrado chega ao leitor pela mediação do narrador onisciente.
Tal configuração tem estreita ligação com a literatura romântica, cujos narradores em primeira
pessoa e em terceira, segundo Coelho (2000), em essência, não apresentam diferenças: todos se
configuram como oniscientes. A estudiosa sustenta que em “livros destinados ao povo ou às
crianças em geral, o recurso do narrador em 1ª pessoa visa apenas dar maior verdade ao relato
mas não tem nenhuma diferença do narrador onisciente em 3ª pessoa.” (p. 137)32.
Na análise das narrativas em questão, ficou bastante aparente a similaridade entre essas
duas categorias de narrador. Isso é gritante na postura do narrador-protagonista de Nos
bastidores da realeza. No trecho que segue, por exemplo, o registro do narrador em primeira
pessoa poderia pertencer a um narrador em terceira pessoa muito tranquilamente:
A citação acima elucida muito bem a afirmação sobre a presença de um narrador único
nas narrativas, que se observa também pela linguagem elaborada e professoral. Ali, a mediação
dos diálogos é feita da mesma forma que ocorre em textos cujos narradores estão em terceira
pessoa. Cabe lembrar que as construções sintáticas e o tom formal da linguagem do adolescente
torna inverossímil o discurso desse narrador em primeira pessoa. Em O mistério mora ao lado,
livro em que a linguagem é explorada com maior descontração, a aparente onisciência do
narrador-protagonista parece estar disfarçada em determinadas explicações justapostas aos
acontecimentos testemunhados, como se nota em: “Lá dentro, dava para perceber, as luzes
32
É conveniente lembrar que essa pesquisadora salienta que a partir do século XX o foco narrativo em primeira
pessoa passa a ser decisivo no processo de renovação da literatura destinada às crianças.
156
ficavam sempre acesas. Mas nem sinal dos clientes. Só mesmo o visitante noturno, que nós
apelidamos de ‘o vampiro da noite’.” (NICOLELIS, 2001, p. 64, grifo nosso).
Assim, ao assumir sua função de contador de história, os narradores dos textos de
aventura de Nicolelis, em maior ou menor grau, evocam um modelo de mundo a ser narrado e
direciona herói e leitor na travessia desse mundo, assumindo diferentes funções convergentes,
conforme lembra Reuter (2002):
• a de comunicador (dirige-se ao leitor, agindo e mantendo contato com ele): “Vou
levar o livro para o teacher ler e depois tentar publicá-lo, mas com pseudônimo,
claro! Seguro morreu de velho, né?” (NICOLELIS, 2001, p. 95);
• a de metanarrador (comenta o texto apontando para a sua organização interna):
“Aprendi rapidinho o tal editor de texto e me diverti um bocado escrevendo este
livro. E, ainda que não seja um conto de fadas, tem um final feliz.”
(NICOLELIS, 2001, p. 94);
• a de testemunha (manifestada no grau de certeza ou de distância que o narrador
possui em relação à história que conta): “Com agulha de platina ou não,
pertencente à rainha ou não, ela faria o vestibular de medicina pra valer, quer
dizer, pra passar. Agora só faltavam poucos dias para a primeira fase da
FUVEST.” (NICOLELIS, 1983, p. 60);
• a de modalizador (manifestada nos sentimentos que a história ou sua narração
provoca no narrador): “Os bombeiros tiraram a custo o cadáver. E o Wanderlei
viu tudo. O corpinho gelado na beira do tanque, os olhos muito abertos, a cara
inchada e roxa... horrível!” (NICOLELIS, 2003, p. 54);
• a de avaliador (refletida nos julgamentos do narrador sobre a história): “Quem
é que desgrudava dali? Até dona Malvina esqueceu massas e doces e ficou
tagarelando com as conhecidas, que ninguém é de ferro.” (NICOLELIS, 2003,
p. 55);
• a de explicador (interrompe o curso natural da história para trazer informações
ao leitor consideradas necessárias para compreender o que vai se passar): “O
nome Pítia era derivado de Piton, o dragão mítico, o qual fora morto através do
arco (transe) e da flecha (viagem) pelo deus Apolo.” (NICOLELIS, 1999, p.
127);
• a de generalizador ou idealizador (manifestada na emissão de juízos sobre a
sociedade e sobre as pessoas): “A beleza era assim: ninguém tão belo como
157
Tarcísio passaria despercebido. A beleza atrai por si mesma, e isso pode ser uma
benção quanto uma maldição, dependendo do caso.” (NICOLELIS, 1999, p. 53).
De modo geral, os narradores nicolelianos assumem sua onisciência, sendo a história
guiada pela sua própria perspectiva, podendo dizer e lançar luz a tudo o que é necessário para
a compreensão da trama narrativa. Apesar disso, ele não esconde a simpatia que sente por
determinadas personagens. Em O segredo da casa amarela, por exemplo, fica claro que o
narrador focaliza os eventos narrativos a partir do ponto de vista de Wanderlei e de Zarolho,
manifestando simpatia por ambos, como também compaixão pelo fato de os dois garotos
estarem expostos aos problemas sociais diários vivenciados nos bairros periféricos, como, por
exemplo, ter de trabalhar para ajudar a família, sem deixar de estudar. Isso se nota pelos vários
comentários, explicações e julgamentos tecidos pelo narrador ao longo do texto.
Já em Vale das Vertentes, o narrador onisciente, com pleno conhecimento de todos os
aspectos que envolvem a vida das personagens, revela possuir particular simpatia pelo ponto de
vista dos membros da família de Carlos, o que não o impede de focalizar as demais personagens
desde que sejam trazidos à tona aspectos que sejam pertinentes para a economia narrativa.
Aqui, por vezes, ele se comporta como narrador intruso, desses que fazem comentários,
julgamentos e interpretações das ações narradas.
Portanto, nas narrativas de aventuras de Nicolelis, os heróis são guiados pelo grande
mentor que é o narrador. É ele o articulador discursivo que orienta e conduz os leitores para o
mundo narrado, um mundo onde os adolescentes são afetados pelos malefícios e benefícios da
sociedade contemporânea. “Ao leitor implícito é oferecido um mundo já interpretado e,
consequentemente, tem-se como projeção um leitor real que aceite os valores do adulto,
transmitidos pela voz do narrador.” (FEBA, 2015, p. 17-18). Sequestros, assaltos, violência,
isolamento social, o desafio de ser aprovado em vestibular, desvalorização profissional,
desajustes familiares, preconceitos, são alguns dos problemas com os quais os heróis precisam
aprender a lidar, na travessia da aventura a eles colocada. Todavia, eles não estão sozinhos: a
família, apesar dos paradoxos que podem emergir em seu âmago, será sempre a sua principal
aliada na grande aventura da vida.
158
Ao discutir a literatura realista e a fantasista na esfera dos textos escritos para crianças,
Nelly Novaes Coelho salienta que à medida que o conhecimento científico do mundo vai sendo
apropriado pelo homem, o que lhe dá a possibilidade de explicar os fenômenos pela razão ou
pelo pensamento lógico, essa mesma tendência vai sendo incorporada pela literatura. Assim,
esta vai também incorporando uma “atitude científica” para representar a “verdade do real”. A
necessidade de mostrar à criança a “nova verdade” conquistada pela sociedade romântica-
burguesa faz com que a literatura destinada a esse público, nesse período, esteja centrada no
realismo cotidiano: “narrativas que se constroem com fatos reais (facilmente identificados na
vida cotidiana ou na história), de que a obra da Condessa de Ségur é modelo.” (COELHO, 2000,
p. 53).
Nesse cenário, aos poucos, com base em fatos e em suas leis, o cientificismo se impõe
como única possibilidade de conhecimento, o que propicia que o Realismo passe a dominar a
literatura como forma privilegiada de revelar o mundo, excluindo a vertente fantasista que até
159
então preponderava nas narrativas voltadas para o público infantojuvenil. Sobre isso, essa
pesquisadora escreve:
Desde finais do século XIX até meados dos anos 50, diferentes correntes do
pensamento cientificista se têm sucedido na cultura moderna (positivismo ou
materialismo; pragmatismo ou utilitarismo; personalismo, behaviorismo,
socialismo, etc.). Embora cada corrente tenha seus fundamentos e suas
características próprias, todas se igualam na tendência realista e
experimentalista: recusam taxativamente qualquer possibilidade de
conhecimento que pretenda ir além da experiência concreta ou sensível, seja
a dos fatos positivos e da matéria, seja a do jogo das relações sociais (indivíduo
X sociedade), etc. (COELHO, 2000, p. 53)
Ainda sob o ponto de vista dessa pesquisadora, no âmbito do novo pensamento que
passava a fundamentar a sociedade com base na mentalidade racional, o indivíduo passa a ser
valorizado pelo que ele é, sabe, ou faz, independentemente da classe social a qual pertence.
Assim, o sujeito culto, que tem o conhecimento das coisas, passa a ser valorizado, sob a
premissa de que todos os indivíduos devem ter direitos iguais de autorrealização. Daí o início
das discussões sobre a obrigatoriedade da escola.
Paralelamente, Teresa Colomer lembra que a urbanização e a industrialização ocorridas
no século XIX levam os menores às fábricas e às ruas das grandes cidades, o que faz com que,
nas classes mais abastadas, se difunda “uma certa compaixão social pelas duras condições de
vida da infância, ao mesmo tempo que se idealizavam os traços de inocência e pureza intrínseca
atribuídos a esta etapa da vida.” (COLOMER, 2017, p. 159). Tal cenário vai influenciar
consideravelmente a produção literária infantojuvenil desse momento, possibilitando a criação
de histórias de órfãos, com diferentes variações sobre a candura infantil e juvenil, conquistando
o coração endurecido dos adultos. A pesquisadora espanhola lista muitos livros que foram
escritos sob o enfoque social em variadas vertentes (descrições históricas familiares e escolares,
como também denúncias sociais diversas), estando entre eles obras destinadas ao público adulto
também. A saber: Sans famille (1869, Sem família) do francês Hector Malot, Heidei (1884) da
suíça Johana Spyri, O pequeno Lorde (1886) e O jardim secreto (1910) de Frances Hodson
Burnett; Oliver Twist (1839) ou David Copperfield (1850), de Charles Dickens, Tom Brown’s
Schooldays (1857), de ted Hugues, Gianetto (1836), de L. A. Parravicini, Cuore (1836,
Coração), de Edmond D”Amicis, entre várias outras narrativas.
160
Numa primeira fase, a matéria literária resulta de uma fusão entre o registro
do real e a invenção do maravilhoso. Nessa época, o mundo real (modificado
aceleradamente pela revolução industrial que se expandia) revela-se aos
homens cada vez mais fantástico, devido aos novos e espantosos modos de
viver que a máquina punha ao alcance de todos. Com o avanço do
racionalismo cientificista e tecnológico, os contos de fada e as narrativas
maravilhosas passam a ser vistas como “histórias para crianças”. Há um novo
maravilhoso a atrair os homens; aquele que eles descobrem não só o próprio
real (transformado pela máquina) mas também em si mesmos, no poder da
inteligência humana. (2000, p. 119)
161
A esse respeito, os estudos de Zilberman (2003) apontam que a partir da década de 1970,
os acontecimentos de ordem social e política também levou diferentes “homens das Letras” a
se juntar em torno de um ideal comum, o que desencadeou o já mencionado boom da literatura
infantojuvenil. Muitos desses escritores aderiram a um programa de perspectiva realista na
criação dos textos, do qual o exemplo maior é a Coleção do Pinto, da Editora Comunicação, de
Belo Horizonte, cujo editor era André Carvalho.
A pesquisadora salienta que o intuito dessa coleção era mostrar ao leitor mirim “a vida
tal qual ela é”, visando à ampliação de sua visão de mundo. A coleção conta com quatro títulos:
O menino e o pinto do menino, Os rios morrem de sede, ambos de Wander Piroli, O dia de ver
meu pai, de Vivina de Assis Viana, e Pivete, de Henry Corrêa de Araújo. Nessas histórias são
focalizadas as seguintes questões:
Para Zilberman, tais temas, que também povoam os contos destinados a crianças,
escritos por João Antônio, Rubem Fonseca, Wander Piroli, não dizem respeito apenas à
literatura infantil, mas estão ligados à vida brasileira moderna, urbanizada que é afetada pelos
percalços do crescimento econômico desigual. Do mesmo modo, a pesquisadora afirma que,
nesses textos, as personagens, sendo elas pivetes ou oriundas da classe média, tendem a ocupar
um lugar inferior na sociedade. Em geral, todas estão afastadas do mecanismo de poder, o que
atesta sua impotência destas diante de uma engrenagem que as sacrifica.
Assim, essas narrativas tocam no problema, mas não conseguem resolvê-los, posto que
no “plano da realidade” tais questões se colocam como indissolúveis. Na mesma direção, em
geral, nesses textos predominam o ponto de vista do adulto, o que parece ser flagrante do
discurso utilitário que busca no texto literário um meio de manobrar o leitor em formação,
incutindo-lhe determinadas ideias, conforme assinala Perrotti (1987). Além disso, tendo em
vista a pretensão dos escritores em serem fiéis ao pensamento lógico, em geral, as narrativas
realistas tradicionais têm caráter documental. “Daí as longas explicações; constantes
162
Nesse sentido, o que parece estar em jogo nos textos literários que objetivam tratar da
realidade é a própria concepção que o artista tem dessa palavra. Como já afirmado, a criação
literária é fruto da visão de mundo de um artista, essa visão é sempre fragmentada, já que na
atualidade não mais se tem a ilusão dos escritores realistas de que seria possível retratar a
realidade com total fidelidade. O homem moderno vive em meio a um universo dilacerado,
fragmentado, repleto de informações que se torna impossível ter uma visão totalitária das
coisas, por isso falar em representação da realidade é sempre muito complexo, pois vem sempre
à tona a pergunta: qual realidade se representa? O que vem a ser realidade?
O conhecimento enciclopédico diz que a palavra realidade vem do latim realitas e
significa “coisa”. Em senso comum pode ser definido como tudo o que existe e pode ser
perceptível pela ciência, pela filosofia ou por qualquer outro sistema de análise, concepção que
parece estar materializada nos textos literários de Nicolelis. Nesses termos, se a palavra
realidade significa tudo o que existe, pode-se inferir que é real tudo aquilo que existe dentro ou
fora da mente, portanto, a ilusão e a imaginação são reais, já que existem dentro da realidade
interna do ser, no mundo das ideias.
A questão da realidade como representação ou interpretação de uma verdade, na cultura
ocidental, é uma polêmica que tem origem na Antiguidade Clássica, com as teorias de Platão e
Aristóteles quando tentaram conceituar mímesis. Para os dois filósofos gregos, o termo significa
imitação, contudo, em Platão, a mímesis adquire um caráter falso e perigoso da realidade,
conforme defendem alguns estudiosos da obra desse filósofo. Segundo Alfredo Bosi: “A arte
está para o real, assim como o real está para a idéia, que, na metafísica de Platão, é a instância
absoluta. Arte: sombra de um reflexo.” (Bosi, 1985, p. 29).
Já para Aristóteles, a mímesis seria a imitação de uma ação, principalmente por meio do
drama que, na tragédia, teria efeito catártico. Aristóteles rejeita o mundo das ideias, nele, a arte
assume a função de representação do mundo, não apenas como cópia fiel da realidade, mas
como objeto autônomo que se compõe em experiências semelhantes à vida. O filósofo grego
desenvolve esses conceitos em seu canônico estudo denominado Poética, no qual escreveu
sobre a tragédia.
Alfredo Bosi, ao discutir a arte como forma de conhecimento, retoma a discussão dos
filósofos gregos sobre mímesis e defende seu caráter diverso:
Quanto ao realismo do século XX, afim com uma ciência mais complexa e
mais perplexa que a positivista, não se contenta em reproduzir os temas e as
técnicas do verismo do século XIX. Propõe-se uma tarefa ousada: construir
obras que possam atravessar os reflexos da vida presente para se construírem
em projeto de uma realidade futura. Uma arte verdadeira e revolucionária a
um só tempo. Uma arte que produza a imagem densa e dramática de uma
Humanidade em mudança, carente, dominada, mas rebelde. Uma arte na qual
a consciência mais lúcida do universal penetre a representação mais viva de
cada particular. (BOSI, 1985, p. 47)
166
Do ponto de vista dos estudos contemporâneos sobre as narrativas juvenis, os textos que
conseguem incorporar em sua estrutura formal os elementos próprios da modernidade, dos
quais são exemplos a experimentação e o rompimento com a tradição, são os que conseguem
se libertar das amarras de um determinado tempo e espaço para dialogar com homens de todos
os tempos, concepção que também pode ser verificada nas proposições de Bosi na passagem
supracitada. A título de ilustração, a literatura produzida por Lygia Bojunga e Bartolomeu
Campos Queirós tem conseguido fazer isso de modo bastante eficiente.
Resta agora analisar como a escritora Giselda Laporta Nicolelis lida com essas questões
na esfera da construção dos elementos internos das 16 narrativas socais que compõem o corpus.
As narrativas sociais de aventuras que compõem o corpus deste estudo somam um total
de 16 livros, correspondendo a 38% dos títulos analisados, sendo eles: A serra dos homens
formigas (1981); Sonhar é possível? (1982); Na boleia de um caminhão (1983); Sangue na raia
(1984); A mão tatuada (1985); De volta à vida (1993); As portas do destino (1997); Predadores
da inocência (1997); Reféns do paraíso (1999); Amor não tem cor (2002); Melhores dias virão
(2002); Ponte sobre o abismo (2003); Um dia em tuas mãos (2003); O sol é testemunha (2007),
Saindo da plateia (2008) e Papel de pai (2009). No conjunto analisado, observa-se que as
produções de narrativas sociais estão concentradas entre as décadas de 1980 e 2000. Todos os
exemplares analisados possuem ilustrações, oito deles pertencem a uma coleção e a maior parte
foi publicada pela Quinteto Editorial (cinco livros no total).
Dos quatro subgêneros levantados por Ceccantini (2000) na esfera da subdivisão da
narrativa social feita a partir de critérios semânticos (narrativa de crônica urbana, narrativa de
crônica rural, narrativa-reportagem e narrativa de geração) prepondera a narrativa de crônica
urbana. Dos dezesseis títulos que constituem o corpus, treze deles filiam-se a esse subgênero;
os outros dois, pertencem ao subgênero crônica rural, tendo sido ambos publicados na década
de 1980. São eles: A serra dos homens-formigas e Sangue na raia. Nas narrativas Melhores
dias virão e Saindo da plateia foram observadas características da narrativa-reportagem,
sobretudo, em suas estruturas. Na primeira narrativa, a trama chega ao leitor por intermédio de
uma entrevista concedida a um repórter não identificado na história, pelo jovem protagonista
que usa o pseudônimo Lenilson, já a segunda incorpora a estrutura dissertativa de um trabalho
167
escolar, resultado de uma pesquisa sobre o tema violência, que se originou de diferentes
entrevistas feitas pelos adolescentes Arthur, Melina e Vanessa.
Em 50% das narrativas não são perceptíveis traços das narrativas de aventura e/ou
psicológica; em 43% é observada a presença da narrativa de aventura como segunda categoria
de narrativa predominante, desdobradas, em sua maioria, nos subgêneros policial ou mistério,
o que pode ser explicado, com base em depoimentos dados pela autora, pelo fascínio que tem
pelas histórias de mistério porque, segundo ela, desenvolvem o raciocínio lógico. Além disso,
mesmo tratando em seus textos de temas caros à sociedade, entre eles, o tráfico de drogas,
sequestros, violência, preconceito em suas várias vertentes, a exploração dos gêneros policial e
mistério, pode proporcionar ao leitor um meio de entretenimento, o que é representativo de sua
postura profissional.
Apenas no livro De volta à vida são perceptíveis traços das narrativas psicológicas, com
filiação ao subgênero narrativa de formação. Há ainda de assinalar que em A serra dos homens-
formigas, Nicolelis lança mão da técnica narrativa encaixada, recurso que não foi bem
aproveitado pela autora, de acordo com Coelho (1984). Ali, Daniel, um dos seis garimpeiros
que se tornaram amigos durante uma odisseia vivida em Serra Pelada em busca de riqueza,
escreve um livro durante suas folgas no garimpo. Na perspectiva dessa estudiosa, a presença de
uma história dentro da outra deve criar entre ambas uma “tensão dialética” que não é observada
nesse texto.
É significativo salientar que em nenhuma das histórias que compõem o corpus das
narrativas sociais a autora explora a vertente fantasista. Deste modo, inscrevendo-se na área
que Coelho (1984) intitula “Literatura – Verdade”, cuja matéria literária é a “realidade-em-
bruto”, isto é, a pesquisa in loco, nessas narrativas, Nicolelis propõe ao jovem leitor variadas
reflexões sobre diversos temas.
168
Sobre isso, a autora salienta que basta dar a ela um mote, ou seja, um tema, para que
possa escrever um livro, o que se ratifica pelo seu já comentado hábito de compartilhar com
seus leitores, em textos de apresentação dos livros ou na seção “Autora e Obra”, as razões que
a levaram a escrevê-los. Em linhas gerais, um mote/tema pode nascer de uma solicitação de
algum editor, de um problema social recorrente, de uma conversa, de um segredo revelado a
ela por algum jovem em diversas situações cotidianas, de uma visita em escola. Logo, várias
são as origens dos temas que servem de inspiração para compor suas narrativas sociais. Em
relação à escritura do livro O sol é testemunha, Nicolelis escreve:
“Dê um mote que valha a pena, e eu escrevo um livro”, costumo dizer. O mote
é o tema que pode desencadear o processo criativo. Neste caso, quem me deu
o mote foi o editor da Saraiva, Rogério Carlos Gastaldo de Oliveira, quando
sugeriu que eu lesse uma pesquisa sobre os garotos envolvidos com o tráfico
de drogas, nas favelas cariocas.
Entusiasmada com o assunto, num impulso escrevi o primeiro capítulo. Deixei
descansar um pouco, para ver se valia a pena continuar... Ao reler o texto, não
tive dúvida: a história, como massa de pão, tinha fermentado, crescido,
merecia ir “para o forno”. (NICOLELIS, 2012, p. 119)
Sobre o mote que deu origem ao livro Amor não tem cor, ela afirma:
Amor não tem cor nasceu de uma conversa que tive com uma garota. Filha de
alemão e de mãe brasileira, negra, ela me confessou que “não se encaixava”,
por ser mestiça. Cada vez que ela precisava levar um(a) amigo(a) ou um
namorado à sua casa, era aquele drama. “O que eu devo fazer?”, me
perguntava. Avisar antes ou esperar surpresa no rosto deles?” (NICOLELIS,
2002, p. 112)
e fim da trama narrativa e com predomínio das relações lógico-causais entre as partes do texto.
No plano estrutural e temático, elas tendem a dialogar com as dicotomias que perpassam a
configuração das narrativas infantojuvenis desde suas origens, ligando-se, do ponto de vista
formal, muito mais à tradição do que à modernidade. Ainda que seja observada uma tentativa
de inovação formal em uma ou outra narrativa, da qual é exemplo Sonhar é possível?, em que
o conteúdo é materializado na estrutura da narrativa e não simplesmente no tema discutido, na
maior parte delas, o que se narra se sobrepõe ao modo de narrar, conforme poderá ser observado
nos tópicos que seguem, um projeto bem próximo dos livros de linha verista constante na
Coleção do Pinto de que trata Zilberman (2003).
Essa constatação evidencia que a concepção de realidade de Nicolelis está ligada, em
especial, a de vários escritores realistas do século XIX, sobretudo, a dos que acreditavam que
lançando mão, por exemplo, da descrição pormenorizada dos fatos, estariam apreendendo a
realidade em sua totalidade. Por meio de estruturas narrativas predominantemente simples e
lineares, amalgamadas a descrições e divagações temáticas detalhadas, suas narrativas almejam
representar os problemas sociais diversos aos quais está exposto o indivíduo na sociedade
contemporânea, principalmente, o que pertence à classe média, com vistas a provocar nele
algum tipo de posicionamento em relação aos temas discutidos por seus narradores e
personagens.
Nos tópicos que seguem, na mesma direção do que foi feito no capítulo anterior,
apresento uma possibilidade de leitura das narrativas sociais que compõem o corpus, com base
no percurso feito pelos heróis dessas narrativas, por meio da análise dos elementos temáticos e
formais que preponderam no processo de construção desses textos.
Parafraseando (e retomando) Reuter (2002) quando afirma que toda história é a história
das personagens, as histórias de cunho social de Nicolelis são as histórias de muitas e muitas
personagens, na sua maioria de personagens adultas. A análise dos campos Personagens
Principais e Resumo da Narrativa, ainda que superficial e genérica, mostrou que, no conjunto,
170
são quase 100 personagens; desse número, 67% são homens e 33% mulheres. Já os jovens
adolescentes somam um total de 34, sendo 62% de personagens femininas e 38% de
personagens masculinas. Apenas duas crianças atuam como personagens principais, e um
animal – a égua Janaína – pode ser assim considerado no âmbito da trama narrativa de Sangue
na raia.
Essa configuração aponta alguns matizes na esfera da transfiguração da realidade
humana transportada para a dimensão da “realidade estética/literária”. A primeira diz respeito
à direção contrária seguida pelas narrativas juvenis contemporâneas já aqui mencionadas: a
juventude como protagonista da trama. Conforme ressalta Ceccantini (2000), a inserção de um
protagonista-jovem, no primeiro momento, pode funcionar como um elemento de identificação
mais imediata por parte do leitor que se pretende atingir, no caso, o jovem adolescente. Desse
modo, essa mesma configuração confirma a dupla modalidade de público que a literatura de
Nicolelis pode pretender atingir: adultos e adolescentes, em geral, os que estão inseridos na
esfera educacional, como professores e estudantes, espaço em que circula, predominantemente,
sua literatura. Necessário se faz lembrar que, nas narrativas de aventuras de Nicolelis, as
personagens adultas também são a maioria.
Outra questão a ser levantada é a maciça superioridade de personagens masculinas no
âmbito da representação de personagens adultas, e a superior porcentagem de recorrência de
personagens femininas adolescentes em oposição ao número reduzido de personagens
masculinas. Além das questões comerciais discutidas no capítulo anterior, fundamentadas nos
estudos de Ceccantini (2000) e Rosemberg (1984), uma hipótese que pode explicar essa
configuração está ligada aos motes que dão origem a esses textos que, em geral, nascem de
problemáticas da vida cotidiana brasileira. Em A serra dos homens-formigas, por exemplo, a
autora se propõe a discutir as dificuldades enfrentadas pelos garimpeiros até que se consiga
realmente encontrar ouro em Serra Pelada, mote que favorece a criação de personagens
masculinas para fazer parte do grupo de personagens principais que, na narrativa em questão,
são seis garimpeiros: Severino, Crespo, Valdinei, Josias, Branco, Daniel e Josafá.
Contribui para o número maior de transfiguração de personagens masculinas a própria
noção de realidade ligada ao século XIX, uma vez que se pretende representar, no plano
literário, “a vida tal qual ela é”, neste caso, transpondo para o nível do simbólico, conforme já
constatou Rosemberg (1984), as mesmas injustiças, preconceitos, sexismo, e toda sorte de
contradições sociais que podem ser encontrados na vida cotidiana. Como as narrativas sociais
são povoadas por personagens que representam, em especial, as profissões ocupadas pela classe
média, como médicos, advogados, juízes, detetives, delegados, que são, tradicionalmente, mais
171
ocupadas por homens, essa mesma configuração vai, naturalmente, refletir no volume de
representatividade de personagens masculinas e femininas nessas histórias de cunho verista. Há
de se notar que as profissões/funções de professor, coordenador pedagógico e diretor são
predominantemente ocupadas por mulheres, o que parece ser mais um tipo de estereotipação
social. Vale destacar que, para Coelho, esse tipo de “literatura-verdade” pretendida por
Nicolelis pode tanto levar o jovem leitor a repudiar as mazelas do “mundo-cão”, por meio de
sua criticidade, quanto pode ser um “elemento a mais para enfatizar a presença do mundo-cão,
como único e irremediável caminho a ser seguido.” (1984, p. 307).
No que tange à quantidade maior de protagonistas femininas, os motes/temas que dão
origem à trama narrativa também podem explicar tal configuração. Tem-se a impressão de que,
do ponto de vista do projeto literário de Nicolelis, a aventura está mais ligada ao espírito
masculino do que ao feminino. No caso das narrativas sociais, alguns temas ali discutidos
colocam a jovem adolescente em maior situação de risco, o que propicia a criação de
personagens femininas, bem como revela e reforça o senso comum da vulnerabilidade da
mulher, “sexo frágil”, diante de variados problemas sociais. É o caso do que ocorre no livro
Predadores da inocência, no qual são discutidos temas, como: prostituição, tráfico de drogas e
turismo sexual. Nele, nove adolescentes fazem parte das personagens principais, ao lado de
cinco adultas; destas, duas personagens são masculinas e três, femininas.
Pais, professores, estudantes, advogados, delegados, médicos, assim como revelou a
configuração textual das narrativas de aventuras, também são os tipos de personagens mais
recorrentes no conjunto do corpus em questão, reiterando a intenção da autora de transpor para
a realidade literária os conflitos sociais vivenciados pela sociedade no contexto da
contemporaneidade. Para tanto, da mesma maneira que foi diagnosticado no conjunto do corpus
analisado em capítulo anterior, Nicolelis lança mão de personagens planas. A justificativa para
a predominância desse tipo de personagens nas narrativas de aventura se deu em função de o
foco centrar-se na ação em detrimento da análise psicológica. Há de notar que o mesmo foco
foi constatado com preponderância nos livros que constituem o corpus das narrativas sociais,
pois, mesmo que possam ser observados alguns traços de análise psicológica nesta ou naquela
personagem, em geral, isso está a favor da tese defendida nas obras. Em boa parte dos casos,
essa análise chega ao leitor pela voz do narrador, por intermédio do discurso indireto livre, que
parece representar a voz da própria autora. Ilustra essa observação o excerto que segue, extraído
do livro Predadores da inocência:
172
No quarto, sobre a cama, o lindo vestido mandado fazer por Elisângela espera
por ela. Algumas horas antes já preparam, maquiam como se fosse artista,
pronta para entrar num palco. Tudo novo da cabeça aos pés, tal qual princesa.
Só que ela não passa de uma prisioneira à mercê dos seus algozes. Não lhe foi
pedido consentimento para nada, simplesmente foi sequestrada e trazida a esse
lugar terrível.
Quando ouvia falar que uma garota sumira, nunca imaginou que tal coisa
existisse. Pensava sempre que ela havia fugido de casa, estava por aí,
trabalhando em algum lugar. Qualquer dia voltaria. Eram histórias distantes
do seu mundo, da sua vida de estudante. Agora se dá conta de que há todo um
submundo, onde se trama contra garotas como ela. Quanto mais jovem e
bonita, melhor preço no “mercado”.
A escravidão fora abolida há muito tempo, mas continuava num país dito
civilizado, onde raptava-se garotas para realizar espetáculos dessa espécie. E
em certas partes do mundo, ela também sabia, ainda se vendiam e compravam
mulheres....
Lembrou com um misto de raiva e indignação aquele caso que ouvira. O chefe
de sua mãe viajara para um país estrangeiro, juntamente com a esposa, muito
bonita. Fora abordado por um homem que queria trocá-la por cem camelos.
Como o marido, estarrecido, recusasse a oferta, o outro até a ameaçou de
morte. Foi um custo escaparem do tal lugar.
Na época, quando a mãe lhe contou a história, ela até riu, divertida. Parecia
piada. Agora sente na pele o pavor. Olha-se no espelho, mal se reconhece sob
a maquiagem. Parece mais velha do que é, só os olhos assustados indicam sua
verdadeira idade. Se ao menos pudesse ser um pássaro, para sair voando pelas
grades da janela...
Mas ali está ela, à espera do nefando leilão. Se conseguir escapar, será por
verdadeiro milagre. Ainda lhe restam algumas horas... ela resistirá até o último
minuto, não se submeterá facilmente. (NICOLELIS, 1997, p. 129 - 130)
ser alcóolatra ou da jovem que foge de casa por causa da educação autoritária, em especial, do
progenitor. Esses são, pois, os heróis das narrativas sociais de Giselda Laporta Nicolelis.
A demasiada preocupação da escritora em discutir as temáticas sociais sempre urgentes
faz com que o enredo e a atuação das personagens sejam construídos de modo bastante trivial.
Pouquíssimas são as narrativas em que se pode destacar o trabalho artístico com a linguagem,
nos moldes esperados de um texto com qualidade literária, com base nos parâmetros atuais. É
significativo chamar a atenção para o livro Sonhar é possível?; nele, Nicolelis consegue
desenvolver a temática com mais sensibilidade, de maneira bem menos didatizante, merecendo
maior destaque no que se refere ao estilo e à estrutura. Nessa obra, é possível perceber traços
de intertextualidade com O cortiço, de Aluísio Azevedo, posto que ambos os autores, em suas
obras, trazem à luz, por meio da forma, uma “amostragem” da cruel condição de muitas pessoas
que vivem em situação de degradação. Na narrativa de Nicolelis, está em pauta a realidade
degradante de mais de 150 pessoas, entre crianças, adolescentes, velhos, homens e mulheres,
moradoras em um casarão do Bexiga, espólio de um milionário, alugado por dona Márcia, uma
“grã-fina” que só vai até o local para recolher o dinheiro do aluguel. Ali, as personagens não
são apresentadas de modo idealizado, mas construídas a partir das próprias contradições
humanas.
Há de se observar que, nas narrativas em análise, já não aparece o tom descontraído
presente em várias narrativas do corpus de aventura nem as personagens dotadas de
caraterísticas peculiares, como o detetive atrapalhado ou a governanta intrometida de O fio da
meada. Em contrapartida, o espírito comunitário, predominante na maior parte dos livros de
aventura analisados, continua nos títulos que compõem o corpus de narrativas sociais. Em
Predadores da inocência há um grupo de personagens trabalhando para solucionar o caso do
sequestro da menina Oldinete. O semelhante ocorre em A serra dos homens-formigas, onde o
grupo de garimpeiros vive de forma colaborativa; em Na Boleia de um caminhão, um grupo de
caminhoneiros e moradores de uma pequena cidade próxima à rodovia SP 270 se une para
construir uma ponte sobre o Riacho das Pedras, que caiu depois de fortes chuvas. Portanto, uma
configuração que confirma a tendência da autora em valorizar e incorporar em seus textos o
espírito comunitário em detrimento do espírito individualista, uma tentativa de seguir em
direção contrária ao sentimento individualista do mundo atual.
Quanto ao chamado do herói para o percurso de sua jornada, observa-se duas tendências.
O “chamado” pode estar ligado a uma questão social mais ampla, que faz parte dos interesses
do homem contemporâneo, por exemplo: o desejo de melhorar as condições econômicas, a
vontade de ser pai/mãe, a luta pela implementação de algum projeto de vida. Em Amor não tem
174
cor a vida conjugal de Jéfferson e Marijane era bastante tranquila até que um dia a esposa foi
despertada para o desejo de ser mãe. É a partir “desse chamado” que o conflito narrativo é
desencadeado, pois como o casal tinha dificuldade para gerar um filho biológico, decidiu-se
pela adoção. Foi quando Marijane manifestou o desejo de adotar Deusdado, um garotinho
negro, que veio à tona o preconceito racial do marido, e ao mesmo tempo toda a história de
miscigenação racial da família de Jéfferson, fato desconhecido da esposa.
A outra forma de “chamado” nasce de um problema social específico, como: a saída da
cadeia depois de ter sido preso injustamente, uma ponte que se quebra durante uma viagem, o
desaparecimento de uma filha, a proposta de realização de um trabalho escolar. Em A mão
tatuada, depois de ter ficado preso durante 15 anos por causa de um erro judiciário, José sai da
prisão e é acolhido apenas pela madrinha Carmela, uma velha senhora de quase 80 anos, que o
ajuda a arrumar um emprego e a prosseguir com sua vida. No entanto, o desejo de justiça o
lança numa aventura policial em busca do verdadeiro assassino do vigia Malaquias.
Agora já não é mais a curiosidade ou o acaso que mais comumente introduzirá o herói
no universo de sua jornada, como foi diagnosticado na maioria dos livros de aventuras
analisados. Aqui, a jornada do herói está condicionada às exigências e desafios impostos ao
homem contemporâneo, em cujo percurso o herói nunca está sozinho. A travessia é feita sempre
em companhia de um(a) amigo(a), namorado(a), mãe, pai, diretora da escola, professora.
As exceções são José, de A mão tatuada, e Beto, de O sol é testemunha, que, numa
perspectiva bastante subjetiva, podem ser considerados protagonistas-únicos na esfera do
corpus em questão. Ainda que nem todas as histórias sejam protagonizadas pela turma, os heróis
raramente são únicos, há, no mínimo, uma dupla de protagonistas, portanto, de heróis.
Predadores da inocência e Sonhar é possível? são os livros que mais possuem protagonistas,
dada a atuação igualitária de diversas personagens na trama narrativa.
No primeiro livro, a título de ilustração, as personagens vão se juntando em torno de um
problema comum e cada uma desenvolve papéis específicos na resolução do conflito. A saber:
um certo dia, Valéria chega em casa e vê a sua filha mais velha – Suelen – arrumando as malas
para ir morar com Anaíse, uma aliciadora de garotas para a prostituição e tráfico de drogas, que
se passava de estudante no colégio onde a garota de 13 anos estudava. Absurdada com a
situação, Valéria, ao lado da filha, vai até o colégio verificar quem seria Anaíse, uma vez que a
filha apenas sabia o nome da moça. Logo depois que chegaram ao colégio, chega Alzira, cuja
filha Oldinete, uma amiga de Suelen, havia desaparecido, deixando um bilhete avisando que
iria embora de casa para trabalhar em uma boutique, emprego arrumado pela aliciadora de
menores. No entanto, ela foi parar em um táxi com Big Ma, espécie de gerente geral do tráfico
175
e de lá para uma chácara localizada em um estado não identificado, de onde Oldinete conseguiu
fazer uma ligação para Suelen para tentar avisá-la a respeito do ocorrido. Foi a partir dessa
ligação que a polícia da cidade foi acionada, juntamente à secretaria de segurança.
Paralelamente, dr. Gilson, advogado e patrão de Valéria solicitou que Liu, um detetive de sua
total confiança, saísse à procura de Oldinete. Enquanto isso, Suelen, também dando uma de
detetive, pediu ajuda a Melissa, líder da gangue das 13, que também elaborou um plano para
desmantelar a quadrilha a que Anaíse pertencia. E assim, aos poucos, mais e mais personagens
vão se envolvendo na trama narrativa.
Na mesma direção das narrativas de aventuras filiadas ao subgênero policial, a função
central do detetive no processo de investigação de um crime é compartilhada com outras
personagens que, ao lado da polícia, arriscam suas vidas para manter a ordem e a paz social.
Nessas histórias, a figura da polícia, investigadores e delegados é representada de maneira séria,
positiva e idealizada. Essas personagens trazem conforto e amizade às famílias dos que são
afetados por algum tipo de desiquilíbrio social que necessite de intervenção policial. O diálogo
que segue, extraído do livro Ponte sobre o abismo, ilustra essa afirmação:
– Que esperança o senhor está me dando, doutor Raul. Eu não sei o que
aconteceu com o Moacir, ele já era radical antes, mas agora... Como é que,
por puro moralismo e preconceito, ele pensa em virar as costas por
antecipação para uma jovem e sua filha que podem ser até do seu próprio
sangue? Eu não aceito isso de forma nenhuma.
– Isso será uma coisa que a senhora terá de encarar, dona Alzira, com muita
ponderação e critério – aconselhou o delegado. – Pode levar até a uma ruptura
familiar, concorda? Só a senhora pode avaliar se vale a pena assumir esse
risco... (NICOLELIS, 2003, p. 103)
Portanto, assim como nas narrativas analisadas em capítulo anterior, no corpus das
histórias de linha social e verista, a cooperação e a solidariedade são defendidas como valores
essenciais a serem conservados nas relações sociais no contexto da sociedade contemporânea.
Nesse sentido, os heróis transfigurados nesses textos são os que enfrentam os desafios e
desiquilíbrios sociais, econômicos, políticos que afetam consideravelmente toda a sociedade,
independentemente da classe social, da idade, da cor ou credo dos indivíduos. Os valores
defendidos por Nicolelis, logo, justificam a transposição, para o plano da literatura, de heróis
não apenas jovens, mas de adultos também. Fica evidente nesses textos, que os adultos são os
responsáveis pelo desenvolvimento sadio da criança e do adolescente, orientando-os,
176
3.3.2 O espaço
Nas narrativas sociais, diferentemente do que ocorre nas de aventuras, nas quais, em
geral, os heróis são levados para o mundo especial movidos pela curiosidade ou pelo acaso,
agora, eles são retirados do mundo comum, na maioria das vezes, em razão de um desiquilíbrio
social: um erro judiciário, o desaparecimento de alguém, a descoberta do tráfico de droga em
ambiente escolar, o contato com algum tipo de preconceito. É uma entrada que desestabiliza a
vida do herói, e sua jornada se dá rumo à resolução do problema, que nem sempre é solucionado.
Em Reféns do Paraíso, a professora Celeste mantinha a sua rotina diária de diretora de uma
escola pública de periferia com mais de dois mil alunos, que todos os dias precisa lidar com os
problemas próprios de uma grande unidade escolar. Certo dia, quando está tentando resolver o
caso do relacionamento amoroso entre a aluna Gessilene com o professor Clodoaldo é que a
jovem tenta abrir seus olhos para problemas mais graves que estariam ocorrendo na escola. A
partir desse momento, a coisas se precipitam: a aluna Maíra desaparece da escola e de casa, e a
professora Regiane descobre, com a ajuda de algumas estudantes, que a menina de 12 anos está
morando com Skull, um jovem que se enche de esteroides e anabolizantes, que a princípio é
tido como o responsável pelo tráfico na escola. Quando descobre que sua escola está tomada
177
pelo tráfico, Celeste não mede esforços para resolver o problema e, no percurso dessa jornada,
terá de enfrentar variadas situações de riscos.
A análise dos campos “Espaço Macro” e “Espaço Micro” apontou alguns caminhos no
que diz respeito à representação do espaço nessas narrativas. Com exceção dos cenários das
narrativas Sangue na raia e A serra dos homens-formigas, nas quais predomina o espaço rural,
nas demais prepondera o urbano como cenário da jornada do herói, acompanhando, pois, uma
tendência seguida pelas narrativas juvenis contemporâneas, conforme afiança Ceccantini
(2000). Apenas em dois livros o espaço macro está indeterminado; São Paulo, cidade onde
Nicolelis nasceu, é, por excelência, o espaço macro nas narrativas sociais; muitas vezes, os
acontecimentos também ocorrem em mais de um cenário macro. Pará, Rio de Janeiro, Goiás,
Estados Unidos, Nova Iorque, Ribeirão das Almas, são cenários que, igualmente, aparecem nas
histórias que compõem o corpus. Em As portas do destino, os dois amigos Rodrigo e Gidaílson
que cresceram juntos, sendo este o filho da empregada e aquele, o da patroa, apesar da grande
amizade existente entre ambos, separam-se ainda na adolescência, porque Rodrigo não
conseguiu superar o amor que sentia por Aline, filha de Rivail, seu padrasto, com quem
Gidaílson namorava. Um longo tempo passou, os dois jovens se tornaram importantes cientistas
e um dia eles se encontraram em um congresso ocorrido em alguma cidade, provavelmente, dos
Estados Unidos. Ali eles ficaram um bom tempo conversando sobre as saudades da infância, as
mágoas já superadas, os problemas sociais brasileiros e americanos e sobre o sonho de
transformar a realidade brasileira.
Da mesma maneira que foi constatado nas narrativas de aventuras, aqui não são
observadas grandes preocupações com a caracterização do espaço; em geral, este está a favor
da temática discutida ou da tese defendida na narrativa. Nesse sentido, o cenário macro, por
exemplo, está ligado à frequência com que determinado problema social ocorre nas grandes
metrópoles, em geral, São Paulo ou Rio de Janeiro. Quando Nicolelis discute problemas
relacionados a moradores de favelas, o espaço macro é o Rio de janeiro; mesmo que em alguns
momentos não esteja determinado, certas referências permitem fazer tal afirmação. Em
Melhores dias virão, por exemplo, o jovem de 21 anos, cujo pseudônimo é Lenilson, narra a
um jornalista a história de como foi parar no mundo da criminalidade quando ainda era morador
da favela Cantagalo.
Em A serra do homens-formigas e Sonhar é possível?, nota-se uma preocupação maior
com a construção literária do espaço. Nas duas obras a representação desse elemento da
estrutura narrativa é significativa para a construção de sentidos do texto. A metáfora constante
no primeiro livro, por exemplo, “homens-formigas”, é uma alusão direta à peregrinação feita
178
por centenas de homens que seguiram rumo à Serra Pelada em busca de riqueza durante o
momento em que o livro foi publicado, passando a viver como animais:
escola/faculdade (diretoria, sala dos professores, sala de aula, banheiro, cantina); local de
trabalho (escritórios de advocacia, bancos, clínica médica, delegacia, hospitais, padaria).
Também os locais da cidade, como bares, vielas, praças, prédios, esquinas, ruas são lugares
onde se desenrolam os acontecimentos. Os automóveis igualmente são bastante utilizados
nessas narrativas como cenário.
No que tange à figuração do mundo narrado, mundo comum e mundo especial, assim
como nas narrativas de aventuras, personagens e leitores são transportados, sobretudo, a
espaços fechados, que no corpus em questão denunciam as contradições presentes nas relações
sociais e familiares em vários níveis. Aqui, em direção contrária ao conjunto de narrativas
analisadas em capítulo anterior, espaços fechados, como a casa e a escola, por exemplo, já não
mais representam total tranquilidade, confiança e proteção ao indivíduo, independentemente da
idade. Essas instituições vão aos poucos sendo afetadas pelos problemas sociais
contemporâneos diversos, trazendo insegurança e prejudicando o percurso de crescimento do
herói, perdendo a representação romantizada e idealizada predominante no corpus da aventura.
Ilustram essa afirmação os fragmentos que seguem, ambas extraídas do livro Reféns do paraíso,
em que se narra questões relacionadas ao tráfico de drogas em ambiente escolar e as
consequências disso para os adolescentes que, muitas vezes, são seduzidos pela possibilidade
de dinheiro fácil, e para aqueles que tentam enfrentar o problema:
A diretora pediu que a moça sentasse. Foi direto ao assunto, objetiva e dura:
perguntou se Neuza conhecia o paradeiro da filha, e se sabia que ela estava
metida com uma gangue da pesada cujo chefe, o tal Sócrates, era o namorado
da garota. Só omitiu, por não poder ainda provar nada, o assunto das drogas.
Neuza, meio sem jeito, confirmou que a garota saíra de casa; aliás, desde
algum tempo perdera totalmente o controle sobre a filha, que passava várias
noites fora sob o pretexto de estar na casa de amigas ou da avó paterna. Ela,
Neuza, vivera uns tempos com José, filho de Jacinta, rapaz mais novo que ela.
Desse relacionamento nascera Maíra. Logo o rapaz pulara fora, deixando-a
praticamente sozinha para criar a menina. Como ele não tinha emprego fixo
nem carteira assinada, fizera o mínimo: apenas o registro em cartório com o
nome dele. De resto, Maíra nunca vira um tostão do pai, nem para comida,
roupa ou material escolar. (NICOLELIS, 1999, p. 62)
A denúncia acerca dos desequilíbrios que afetam os espaços sociais, como a escola e a
família, não impede que, em boa parte dos textos analisados, essas duas instituições, mesmo
que reconhecendo suas limitações, estejam dispostas a cumprir suas funções de protetoras e
cuidadoras do jovem adolescente, uma disposição preconizada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente em tempos atuais.
Em relação aos espaços abertos que aparecem nessas narrativas, em linhas gerais, no
plano simbólico, observa-se duas direções. No primeiro momento, conforme foi diagnosticado
na configuração de algumas narrativas de aventuras, esses cenários podem representar o perigo
e até riscos de vida para os heróis. Alguns protagonistas, negando os valores éticos promulgados
pela família e pela escola, lançam-se em espaços abertos nos quais vão ser expostos a
determinadas situações que afetarão consideravelmente suas vidas. Em Predadores da
inocência, é no espaço aberto do pátio escolar que Anaíse aliciava as garotas da escola para a
possiblidade de realização de seus sonhos, em especial, de serem modelos, quando o intuito era
inseri-las no mundo do tráfico, prostituição e turismo sexual. Do mesmo modo, é num espaço
181
aberto que Oldinete, Melissa e Ashley, todas personagens desse mesmo livro, foram
sequestradas. Também foi no espaço aberto do haras da família de Pedro, melhor amigo de
Cézar, o herói de Um dia em tuas mãos, que este traiu a namorada Luísa, entregando-se a uma
paixão desenfreada por Ingrid, irmã do amigo:
No decorrer dos dias, como se estivesse aprisionado numa teia invisível, Cézar
descobriu-se completamente envolvido pela presença marcante de Ingrid. Ele,
que jamais havia montado um cavalo, aprendeu a cavalgar para acompanhá-
la em longos passeios pela fazenda. Fazia qualquer coisa para estar ao lado
dela.
[...]
Saíam pela manhã, logo após o café. Depois de cavalgarem por algum tempo,
apeavam, e, sentados à sombra de alguma árvore, conversavam muito,
trocavam idéias sobre o que cada um esperava da vida. (NICOLELIS, 2002,
p. 67)
Tanto Cézar quanto Oldinete, mais tarde, arrependem-se das decisões que tomaram
nesses espaços, pois a menina saiu de casa sem avisar a mãe e acabou embarcando em um carro
que a levaria para a prostituição, enquanto o jovem universitário, arrependeu-se profundamente
de ter se deixado seduzir pelos encantos de Ingrid, pois em menos de um mês ele descobriu a
grande besteira que fez ao trocar a namorada por uma garota extremamente obsessiva e
ciumenta.
Por outro lado, na configuração de várias narrativas, o espaço aberto também pode
representar a busca pela libertação ou até mesmo a fuga dos problemas enfrentados pelos heróis
em ambientes fechados que os sufocam, podendo ser ali um momento decisivo para uma
tomada de decisão acerca do conflito que os atinge. É em um espaço aberto que, em De volta à
vida, a jovem adolescente Alandra tem a coragem de exigir da mãe uma tomada de decisão em
relação ao pai que é um alcóolatra, como pode ser observado na citação que segue:
Alandra abre a porta do carro, num supetão, e sai correndo... Clarissa não sabe
o que fazer. As buzinas tocando atrás dela, o farol agora verde. A muito custo
encosta o carro num lugar proibido, tira o Cássio do cinto de segurança, se
põem a correr atrás de Alandra, que já virou a esquina...
Quando conseguem alcançá-la, sem fôlego. Alandra chora, sentada numa
pedra. Felizmente entrara numa rua sem saída e fora obrigada a parar.
[...]
Alandra levanta-se decidida:
182
– O que você pretende fazer? Passar a vida inteira nesse inferno? Deixar que
ele destrua toda a nossa vida?
– Ele é doente, Alandra, não tem consciência do mal que causa a nós e a si
mesmo. Não consegue parar de beber... é como se desse um curto-circuito na
cabeça dele; precisa de ajuda...
– Mas como, e não aceita ajuda e se acha o dono do mundo, o maior. Você
ainda vem defender o Otávio? Já esqueceu a vergonha que faz você passar lá
no seu emprego, e a vergonha que eu passo na escola? Odeio ele, queria que
ele morresse! (NICOLELIS, 2002, p. 30)
criminalidade, Beto é honesto, trabalhador e cultiva o sonho de formar-se em Direito para ter
um futuro melhor para ele e sua mãe, uma mulher batalhadora, que trabalha como faxineira. É
no espaço de seus barracos que muitos moradores se protegem da violência e desejam uma
condição de vida melhor.
É preciso afirmar que, de modo geral, no que se refere à figuração dos espaços fechados
nos quais são ambientadas as ações sociais, sobretudo, nos textos em que há protagonistas
adolescentes, nota-se que a sua função, em geral, está ligada à tese ou à crítica que se pretende
fazer por meio da história construída, bem como ao modo de representação. Seguindo a mesma
direção das narrativas de aventuras, nas sociais, os heróis também residem, predominantemente,
em casas; o apartamento funciona como cenário em pouquíssimas narrativas, como é o caso de
Amor não em cor, em que Marijane e Jefferson moram em um pequeno apartamento.
Nas narrativas em que a representação verista do contexto social vai ao encontro do
modelo eufórico, segundo a perspectiva de Zilberman (2003), os espaços micros (ambiente
doméstico, escola e trabalho, especialmente), tendem a funcionar como espaço de diálogo,
solidariedade, cooperação, onde diferentes sujeitos unem-se para a resolução (ou, pelo menos,
para buscar um meio de amenizá-los) dos problemas enfrentados, apesar de todos os
contratempos, ou até mesmo da impossibilidade de solucioná-los definitivamente.
Em relação a isso, em Amor não tem cor, cuja trama narrativa gira em torno do
preconceito social e do autorracismo, os espaços fechados ambientalizam momentos decisivos
para a busca dos problemas enfrentados. É, sobretudo, na sala, durante as refeições que isso
ocorre. A título de ilustração, a promoção de um jantar familiar foi o primeiro passo dado por
Marijane quando descobriu que o marido, que é mestiço, mas que se autodeclara branco,
escondeu dela, por vários anos, a existência dos avós maternos, especialmente porque
acreditava que a esposa não aceitaria o fato de sua avó ser negra. Daí a tentativa da esposa de
promover a aproximação familiar por meio de um jantar. A princípio, o autorracismo do marido
também se justifica pelo fato de a avó materna de Marijane também ser preconceituosa. A
passagem que segue ilustra essa constatação:
– Olhe, dona Rosa, a mãe é sua. Eu gostei demais de dona Mercedes e, como
ela é minha hóspede, a coisa mais natural do mundo será oferecer esse jantar,
não acha?
– Acho, desculpe...
– Deixe pra lá, dona Rosa. Não deve ser fácil viver dividida, né? Está na hora
de ficar inteira... E, cá pra nós, a senhora fica linda de cabelo crespo.
Um suspiro é a resposta do outro lado da linha. (NICOLELIS, 2002, p. 57-58)
Ao final do jantar, ainda que este tenha sido o primeiro passo para o enfrentamento dos
desafios postos, sobretudo a Jefferson, as provações continuam. Além de aceitar a sua origem
étnica, terá de vencer o preconceito de adotar um filho negro, posto que a esposa, a quem tanto
ama, não abandonaria essa ideia tão facilmente. Assim, em geral, nas narrativas em que há uma
representação mais eufórica da família, ainda que os conflitos interpessoais sejam trazidos à
luz, o ambiente doméstico resguarda a esperança de que todos os problemas podem ser
solucionados e/ou amenizados com diálogo e respeito ao outro. Nessas narrativas tendem a
predominar espaços micros, como: cozinha, escritórios, salas de aula, sala dos professores e
diretoria. Tais cenários evidenciam a importante participação que a instituição escolar
desempenha no processo de enfrentamento dos conflitos iniciados no seio familiar, bem como
revelam a relação positiva com o ambiente profissional. O patrão de Marijane, um importante
advogado, por exemplo, na narrativa supracitada, é o seu melhor amigo. Foi em conversa com
ele que a esposa de Jefferson teve o desejo de ser mãe despertado, além de ter sido ele quem
lhe trouxe à tona o segredo do marido. Doutor Otávio é o principal conselheiro de Marijane,
inclusive é frequentador de sua casa.
Nas narrativas filiadas ao modelo crítico, ao contrário, os ambientes sociais e familiares
denunciam a instabilidade instaurada na família, como instituição social que passa por profunda
crise, portanto, incapaz de promover o crescimento saudável dos filhos. Ilustra essa afirmação
as ações ambientadas em espaços domésticos na narrativa De volta à vida. Ali, o ambiente
familiar é espaço de constantes desentendimentos, violência, opressão e anulação do eu, o que
leva à negação desse espaço. A menina Alandra, em vários momentos, afirma ter vergonha de
levar seus colegas em sua casa porque tem medo de que eles descubram que seu pai é alcóolatra.
Várias são as cenas ocorridas nesse ambiente que podem confirmar essa leitura:
– Aliás já tentou, não é? Muito fácil, tão simples, o que você pretendia! Dar
um tiro na cabeça! Que maravilha! Seus filhos iam adorar a cena. É isso que
você quer para eles? Um pai suicida? Que prefere se matar a enfrentar a vida?
Que tipo de homem é você, afinal? (NICOLELIS, 2002, p. 40)
Em outro momento:
Otávio pega uma garrafa e, num gesto teatral, atira-a na parede. Clarissa não
se mexe no sofá, apenas observa. Quer ver até onde ele pretende chegar com
tal espetáculo. Uma a uma, Otávio vai atirando as garrafas, que se espatifam
contra a parede e os móveis da sala. Em breve, o cheiro de bebida se torna
insuportável.
Espantados com o barulho, Alandra e Cássio descem correndo as escadas:
– O que aconteceu, mãe, você está bem? – perguntam atordoados.
– Tudo bem, crianças, voltem para a cama. Eu já subo – diz Clarissa,
impressionada por não sentir nenhuma emoção. Está fria, estática, quase
indiferente. (NICOLELIS, 2002, p. 41- 42)
Como sinaliza a citação acima, é conveniente afiançar que, nas narrativas sociais, as
ações ambientadas em quartos adquirem uma dimensão mais simbólica, em direção diferente
do que ocorre na maior parte do corpus de aventura, nas quais tais ações tendem a funcionar
apenas como fator de verossimilhança.
Ainda considerando a representação do espaço na narrativa supracitada, é no espaço do
quarto que Alandra consegue esquecer por um tempo a crise enfrentada pela família em
decorrência do alcoolismo do pai, o que se dá, em especial, pelo exercício da escrita de poesia:
“Alandra sobe até seu quarto, abre o caderno de poesias. Está quase cheio. Uma centena delas.
Então escreve, perdida no tempo e no espaço.” (NICOLELIS, 2002, p. 64). Luciana, uma das
protagonistas da narrativa de aventuras O fio da meada, ao contrário, abstém-se de viver
momentos aventurosos em família em razão do vestibular, atitude que confirma valores
defendidos pela família de classe média da qual ela faz parte. Nesse sentido, enquanto Luciana
vive em harmonia com a sua família, Alandra nega, repudia e deseja afastar-se do ambiente
doméstico do qual faz parte.
O quarto, nessas narrativas, em diversos momentos, ambienta ações em que os heróis se
voltam para si próprios, refletem sobre atitudes tomadas, reflexão que, muitas vezes, indica o
caminho certo a seguir, sobretudo, depois de uma decisão tomada erroneamente. Em Um dia
em tuas mãos, no capítulo “Sem ninguém”, depois de sofrer as consequências por ter se deixado
seduzir por Ingrid, instigado pela tia, Cézar, em seu quarto, resolve tomar uma decisão:
186
Ele ficou mudo de espanto. No quarto, deitou-se só para passar mais uma noite
em claro, pensando em tudo o que a tia dissera. Não é que, no seu jeito rude,
ela acendera uma luz na escuridão? Era isso o que ele ia (devia) fazer: ainda
que parecesse impossível, ele tentaria reatar com Luísa. (NICOLELIS, 2002,
p. 78)
E ainda:
Em 70% dos livros que constituem o corpus das narrativas sociais, as ações são
ambientadas em espaços escolares também, o que é um claro e expressivo sinal de valorização
dos valores disseminados por essa instituição, aspecto que mais uma vez encontra consonância
com os resultados obtidos pela pesquisa de Rosemberg (1984) sobre a literatura infantojuvenil
de vertente tradicionalista. Novamente, a representação do espaço encerra a jornada do herói
num mundo especial regido pelas mesmas regras do mundo comum: um espaço carregado de
ideologias e valores que só fazem aprisionar o herói nas dicotomias e contradições da sociedade
contemporânea.
3.3.3 O tempo
portas do destino, e outras em que os acontecimentos não duram mais que um dia. Em Sonhar
é possível?, por exemplo, a ação dura apenas 24 horas.
No processo de representação literária do tempo, do mesmo modo que foi percebido em
capítulo anterior, há aspectos que se aproximam tanto das narrativas contemporâneas, quanto
das tradicionais. A coincidência entre o tempo histórico da narrativa e o momento em que a
obra foi publicada, traço que prepondera no corpus, é um ponto de aproximação com as
narrativas analisadas por Ceccantini (2000). Já a supremacia do tempo linear e cronológico,
empregado apenas para projetar verossimilhança à história narrada, tem sua raiz nas narrativas
tradicionais.
Ainda que o tempo cronológico seja predominantemente mais explorado no conjunto
das narrativas sociais, em diversos livros, o tempo psicológico também é desenvolvido, em
especial, quando o narrador, por intermédio do discurso indireto livre, traz à luz o universo
interno das personagens em momentos de divagações. A passagem que segue exemplifica o
modo como esse tempo é explorado nas narrativas do corpus:
Cézar passou a pior noite de sua vida; debateu-se durante horas, tentando
chegar a uma conclusão em relação aos seus sentimentos.
Recordou quando conhecera Luísa, no cursinho, e julgara que ela fosse a
mulher da sua vida. Sofrera muito no afã de conquistar seu amor. O dia
maravilhoso em que chegara todo apavorado para conferir a lista dos
aprovados no exame vestibular, o companheirismo da colega, a alegria de se
saber incluído na tal lista, finalmente, o impulso de se declarar a Luísa.
(NICOLELIS, 2003, p. 70)
No livro De volta à vida, o tempo psicológico é bastante explorado. O trecho que segue
pertence a uma sequência de três páginas em que Alandra, durante a aula de História, perde-se
em seu pensamento, não vendo o tempo cronológico transcorrer:
causa dos ciúmes da garota. A relação não vai adiante, e depois de um ano de afastamento,
Luísa e Cézar reatam o namoro, ficam noivos e se casam logo depois que terminam a faculdade.
As coisas estavam indo bem até que Cézar consegue uma vaga para estudar em uma
universidade localizada em Nova Iorque, uma oportunidade para se especializar em
neurocirurgia; mesmo não querendo muito, Luísa acompanha o marido. Depois de três anos, a
esposa retorna ao Brasil e Cézar continua nos Estados Unidos. Tempos depois, ele também
volta ao país de origem para ocupar uma vaga de neurocirurgião deixada por seu antigo
professor que acaba de se aposentar. Curiosamente, o primeiro paciente a ser atendido por Cézar
é o senhor Gumercino, seu antigo chefe e amigo, que agora revela a ele o segredo que envolvia
as suas saídas vespertinas da repartição, durante anos a fio. Graças às saídas misteriosas do
chefe, Cézar conseguia se dedicar ainda mais aos estudos, posto que esse momento era sinônimo
de folga para todos.
Textualizada em 110 páginas, nessa narrativa, é possível observar muitos avanços
temporais, que são verbalizados ao leitor pelo narrador onisciente, responsável por conduzi-lo
para os principais acontecimentos de sua jornada, até que o herói finalmente consiga realizar o
sonho de ser neurocirurgião, como podemos notar nos excertos seguintes: “À medida que o
tempo passa, até mesmo o doutor Gumercino, com seu jeito enérgico, parece interessado nos
seus estudos.” (NICOLELIS, 2003, p. 26); “Nos dias que se seguiram, só fez evitar a colega.
Ela agia normalmente, como se nada tivesse acontecido.” (NICOLELIS, 2003, p. 49); “Os dias
que se seguiram foram de pura euforia. Doutor Gumercino mais os colegas da repartição
congratularam-se com Cézar. Era como se a vitória do rapaz fosse de toda a seção.”
(NICOLELIS, 2003, p. 54); “Dias e dias passou nessa caminhada noturna, única hora que lhe
sobrava para procurar emprego.” (NICOLELIS, 2003, p. 57); “O tempo passou sem que se
dessem conta; estavam agora no quinto ano da faculdade de medicina.” (NICOLELIS, 2003, p.
66); “Um mês passou sem que Cézar tivesse a menor noção do tempo.” (NICOLELIS, 2003, p.
68); “Os dias que se seguiram foram estranhos. Ao mesmo tempo em que sentia alívio por se
ver livre do controle impulsivo de Ingrid, Cézar desenvolveu angustia terrível, fruto de uma
solidão esmagadora.” (NICOLELIS, 2003, p. 78); “Seis anos se passaram, mas ainda há muito
o que fazer; logo, logo, começa a segunda etapa, talvez a mais difícil: a residência médica [...]”
(NICOLELIS, 2003, p. 82); “Ao completarem sete anos de casados, apesar das cobranças de
Izilda, o casal permanecia sem filhos.” (NICOLELIS, 2003, p. 88); “Seis meses depois, lá
estava ela descendo do avião, passando pela imigração e encontrando Cézar, que já a esperava,
ansioso, no saguão de um dos aeroportos de Nova York.” (NICOLELIS, 2003, p. 96); “Cinco
191
juvenil de representar o tempo de modo vago e fragmentário. Mesmo que seja possível levantar
a hipótese de que o tempo histórico das narrativas sociais do corpus seja contemporâneo ao
período em que foram publicadas, não há nelas a explicitação exata desse tempo.
Do mesmo modo que nas narrativas de aventuras, aqui os mundos comum e especial se
interpenetram: a rotina dos heróis, na maioria das narrativas, precisa acontecer paralelamente,
ainda que sob as interferências da nova realidade vivenciada no mundo especial. Em Ponte
sobre o abismo, face à impotência de não saber a respeito do paradeiro da filha Larissa, que
desapareceu sem deixar nenhum recado, o casal Alzira e Moacir tenta prosseguir a rotina do
mundo comum que foi desestabilizada pelo transporte abrupto a um mundo especial cheio de
medo, insegurança e desespero. Ilustra essa constatação o fragmento que segue:
Alzira, por sua vez, depois do desespero dos primeiros dias, instituiu que,
enquanto esperavam por notícias da filha, a única salvação era tentar levar
uma vida normal, mesmo que isso parecesse impossível. Obrigava-se a
levantar e ir para a escola, todos os dias. Às vezes, perdia-se nos pensamentos
durante as aulas, como se seu corpo estivesse ali presente, mas a mente fosse
parar em outro lugar muito distante; os alunos relevavam tudo isso, debitando
o comportamento estranho da professora ao seu drama pessoal. (NICOLELIS,
2003, p. 49)
Seguindo a mesma direção das narrativas de aventuras, nas narrativas sociais, conforme
sinaliza a análise dos campos Tema Central, Temas Complementares e Pedagogismo, as
193
provações e inimigos a serem vencidos pelos heróis também estão diretamente ligados aos
temas nelas discutidos. Fortalecido se tornará o herói que, ao final de sua jornada, tiver
aprendido a lidar com os problemas sociais oriundos da sociedade contemporânea, em suas
vertentes capitalista, urbanizada e industrializada.
Ainda que tecida de modo superficial e genérico, a análise dos três campos da grade
supracitados evidenciou que, no conjunto, o leitor entra em contato com mais de 700 temáticas,
incluindo temas centrais e complementares. Amor não tem cor e Sangue na raia são os livros
nos quais aparecem menos temas complementares, no total 17 em cada um deles, e Saindo da
plateia, o que tem mais: 85. Nesta última narrativa, chama a atenção a sua organização: Arthur,
Melina e Vanessa são três adolescentes e amigos inseparáveis, que desenvolvem uma pesquisa
escolar sobre violência social em vários níveis. Para investigar o tema, eles levantam dados e
entrevistam diferentes pessoas que, de algum modo, possuem relação com o tema, entre eles:
familiares, professores, alunos, médicos, pais de alunos, pessoas envolvidas com drogas. Nos
relatos, depoimentos e entrevistas vêm à tona as histórias de violência experienciadas pelas
diferentes personagens. Ao final, depois de várias discussões, os jovens chegam à conclusão
de que o caminho para enfrentar a questão da violência na sociedade é a conscientização e a
ação de todos os indivíduos. No plano estrutural, a narrativa toma a forma de um trabalho
científico e está organizada em prólogo, introdução, relatos, discussão do assunto, entrevistas,
dados e estatísticas, reflexão e conclusão do trabalho.
No caso dessa narrativa, o leitor entra em contato com o tema pela voz das próprias
personagens que anunciam que estão desenvolvendo um trabalho escolar sobre a temática
violência. Nas demais, os temas centrais estão materializados nas ações desenvolvidas em cada
história, estando, muitas vezes, explicitados pela autora na seção “Autora e Obra”, como
também nas sinopses dos livros. Já os complementares, em boa parte dos livros de narrativas
sociais, seguem três direções: há os que estão atrelados especificamente ao tema central; os que
estão voltados à defesa de determinados valores e virtudes universais, comumente, recorrentes
no conjunto do corpus; e há os que parecem surgir acidentalmente no fluxo narrativo, o que
representa uma oportunidade para ensinar algo ao leitor.
A título de ilustração, na esfera da primeira característica levantada, Na boleia de um
caminhão apresenta como tema central a importância do trabalho do caminhoneiro brasileiro.
A partir daí são perceptíveis vários temas complementares na tessitura do enredo, todos ligados
a essa profissão, portanto, ao tema central, estando entre eles: prudência na estrada; a má
qualidade de materiais utilizados na construção de pontes; os perigos das rodovias;
sumiço/sequestro/assassinato de caminhoneiros durante o horário de trabalho; frases de para-
194
choque; doenças causadas por essa profissão; uso de rebite; a importância de se ter um sindicato
de caminhoneiros.
Ao longo do desenvolvimento do enredo, outros temas complementares surgem na
esfera da mensagem positiva que se pretende passar ao leitor, o que fica evidenciado, por
exemplo, no espírito de solidariedade e liderança que acomete o herói diante de uma situação
de conflito. Sumariamente, na narrativa em questão, o caminhoneiro Chicão e seu ajudante de
boleia, Zé, estão levando uma carga de banana para o Mato Grosso, quando precisam
interromper a viagem devido à queda da ponte sobre o Riacho das Pedras em função das fortes
chuvas. Até que a ponte pudesse ser consertada, muitos outros caminhoneiros e motoristas de
automóveis ficam ilhados à espera de socorro. Diante de tal situação, Chicão passa a organizar
o grupo para que todos possam ficar bem até que consigam sair dali, sobretudo, em relação à
alimentação, uma vez que também havia várias crianças entre eles.
Ao lado de Rosnei, Zé e Expedito, Chicão consegue atravessar uma boçoroca e chega
do outro lado da ponte caída, avistando uma casa nos arredores, para onde se dirigem em busca
de ajuda. Lá são acolhidos, gentilmente, pelo casal Maria e Juca; no momento em que o homem
está de saída para levar Chicão para a cidadezinha mais próxima, aparece um grupo de
motoqueiros que vai até o local movido pela curiosidade, uma vez que a notícia da ponte caída
já havia se espalhado. Querendo ajudar, os motoqueiros levam todos até a prefeitura da
cidadezinha mais próxima. Lá, o prefeito Mundo, que já está tomando providências para
resolver o problema da interdição da estrada, diante da demora da chegada do socorro, aceita a
proposta de Chicão de construir uma ponte provisória para que, pelo menos, os automóveis
pudessem atravessar. Com a ajuda de várias pessoas da cidade, a ponte provisória é construída
e muitos conseguem seguir viagem. No entanto, os caminhoneiros tiveram de ficar esperando
a chegada do DER para a construção de uma nova ponte que suportasse o peso dos caminhões
e, finalmente, pudessem voltar para as suas casas.
Como se pode notar, fica latente, no resumo, a mensagem positiva que ser quer passar
ao leitor, incentivando a tomada de atitudes solidárias e generosas, o que se verifica
preponderantemente no corpus das narrativas sociais. No bojo dessa narrativa, foram
levantados variados temas complementares, estando entre eles: trabalho; capitalismo; o papel
social de mulheres e homens; a falta de médico em cidades pequenas; saúde pública; os
imprevistos da vida; descaso com a coisa pública por parte do governo; coragem; liderança;
solidariedade; liberdade; saque; desumanidade; adaptação às circunstâncias; as surpresas da
vida; crenças; religiosidade; coração de mãe X coração de pai; sonhos de uma vida melhor;
união; segredos; milagres; risco de morte para pagar dívidas; abuso de antibiótico; efeitos
195
vontade do pai para ser resolvido. Mesmo tentando, Otávio tem dificuldade de largar a bebida,
porque não consegue superar uma grande frustração: a perda de status social que a família tem
durante um bom tempo de sua vida. Depois de muitas brigas, ameaças de divórcio, humilhações
e do gradativo afastamento dos filhos e da esposa, Otávio, finalmente, decide parar de beber,
mas antes tenta o suicídio. A parada repentina leva-o a uma grave crise de abstinência, o que
faz com ele fique um bom tempo internado. Quando sai do hospital, continua o tratamento em
um ambulatório público e entra no grupo Alcoólicos Anônimos. Aos poucos, Otávio começa a
reconquistar o respeito da esposa e dos filhos, consegue um emprego. A sua condição de
empregado possibilita-lhe a oportunidade de retomar o papel de chefe de família, que há muito
está sendo ocupado por Clarissa. Seu primeiro pagamento é usado para oferecer a Alandra uma
festa de 15 anos.
Como se pode verificar, a tese defendida por Nicolelis em De volta à vida está latente
em seu enredo, traço igualmente perceptível em variadas narrativas sociais. Como já foi
apontado, ao entrar em contato com uma história que confirma o que a autora já sinalizou nos
elementos paratextuais, o leitor pode se sentir mais seguro e confortável durante o processo de
leitura, posto que não é exigido dele esforço intelectual. De modo geral, nessas narrativas, nos
discursos do narrador onisciente ou das personagens são ventiladas determinadas informações
que estão claramente a favor da tese defendida pela autora. No capítulo XII desse mesmo livro,
por intermédio da conversa entre Gilson, um plantonista de os Alcóolicos Anônimos, e Otávio,
podem ser vislumbradas algumas das razões que levam à autora a defender a importância dos
AA para o processo de recuperação de um alcóolatra, além de oferecer ao leitor uma aula sobre
o assunto. A passagem que segue apresenta uma parte desse diálogo:
por que resolveu parte da irmandade. Os outros cento e dez minutos são para
ouvir. Após a reunião, geralmente temos uma pequena confraternização, com
café, bolo, bolachas, pra descontrair, fazer amigos...
– Deixe ver se entendi – Otávio começa a relaxar. – Eu chego, sou
apresentado, falo durante dez minutos. Posso usar meu verdadeiro nome ou
pseudônimo. E vocês têm fichas, arquivos? Controle dos membros?
– Não temos controle algum – continua Gílson. – Cada um é livre pra vir e
voltar quantas vezes quiser, e a vida inteira, se for o caso. Agora, preste
atenção: a principal exigência é que venha abstêmio, não tenha bebido um
gole...
– Mas é essa exatamente a parte que me interessa. – Como vou conseguir essa
tão esperada abstinência? Apenas falando por alguns minutos e ouvindo o
resto do tempo?
– Esse é o mapa da mina – sorri Gílson. – Você se compromete, como todos
nós, a não beber por vinte e quatro horas. O passado já morreu, o futuro não
existe. Você tem pela frente essas vinte horas... aqui, agora!
– E no dia seguinte? – interrompeu Otávio.
– No dia seguinte, a mesma coisa. Você faz a sua decisão de não beber por
vinte e quatro horas... e assim todos os dias. Só que o seu compromisso não é
para a vida toda, é por aquelas vinte e quatro horas. Olhe pra mim: sou um
alcoólatra, tanto faz. Alcoólico quer dizer que tem álcool, eu até prefiro a
palavra alcoólatra...
– O que adora álcool? – arrisca Otávio.
– Exatamente. Isso é o que a palavra quer dizer, em si. Mas por experiência
própria, sei que o alcoólatra não adora o álcool, ele até sabe, como no seu caso,
o que acarreta para sua vida; o alcoólatra idolatra o que ele pensa que o álcool
faz por ele. Na verdade, ele apenas exacerba o que o indivíduo já é. Se for
agressivo; se for um carente afetivo, ficará ainda mais carente e assim por
diante...
– Vinte e quatro horas sem beber. Me parece genial! – confessa Otávio. – Mais
alguma coisa que eu deva saber? (NICOLELIS, 1993, 80 -81)
33
Sinteticamente, esse estudioso defende, com base, em especial, na análise de narrativas produzidas por
Dostoievski, que o texto polifônico se configura como uma obra aberta, em que suas personagens são
multifacetadas, não podendo ser encerradas no enredo unicamente. Em contraposição ao romance polifônico está
o monológico, em que as personagens são concebidas com base na realidade concreta que se pretende representar
ou da temática posta no enredo, tal como se constroem as personagens nicolelianas predominantemente.
198
sendo assim, o protetor, conselheiro e aliado nem sempre advém do ambiente doméstico. Nessas
narrativas, os professores, coordenadores e diretores são os principais conselheiros dos heróis,
seguidos pelos patrões e colegas de trabalho e/ou escola.
O mesmo ocorre com o garoto Risadinha em Sonhar é possível?, que prefere trabalhar
para um traficante de drogas, negando os conselhos da mãe e de demais adultos que moram no
cortiço, recusa que acaba o levando para a FEBEM. No trecho que segue, abstraído de um
diálogo ocorrido entre Josefa, mãe de Risadinha, com vários moradores do cortiço, há o
reconhecimento do fracasso da família diante da educação do menino, e as consequências
sofridas por ele por não ter ouvido os conselhos recebidos:
Nesse sentido, ainda que a família continue a exercer papel relevante no percurso dos
heróis nicolelianos, esse ambiente doméstico já não tem mais a conotação positiva que
predomina nas narrativas de aventuras, agora são reveladas todas as contradições e desarmonia
presentes nesse espaço que já não mais propicia o crescimento saudável dos adolescentes,
chegando até mesmo a ser negado pelos heróis. Em Ponte sobre o abismo, por exemplo, Larissa,
a filha de Alzira e Moacyr, desaparece sem deixar nenhuma pista, nunca mais voltando para a
casa. Ainda que sejam levantadas hipóteses de que a garota poderia ter sido sequestrada ou
fugido com o namorado traficante, nada se confirma ao longo da narrativa. No último capítulo,
fica sugerido que Larissa teria fugido de casa, uma vez que depois de algum tempo de seu
desaparecimento, em lugar não determinado, ela teria sido reconhecida por um funcionário de
uma banca de jornal, mas essa questão também não é resolvida, permanece o mistério para o
leitor e para as personagens. A narrativa termina da seguinte maneira:
200
– É ela, patrão, tenho certeza. O que a gente faz agora? Avisa a polícia? O
senhor tem computador em casa, com internet, não tem? Se eu fosse o senhor,
eu acessava o site das pessoas desaparecidas, pegava o telefone da família da
Larissa e ligava avisando que ela apareceu por aqui.
– Você acha mesmo? Será que não vão pensar que é trote? Sei não, se
acreditarem ainda pode ser pior, isso aqui vai ficar fervendo de repórteres...
– E daí, patrão? A gente fica até famoso, aparece na televisão e ainda ajuda a
família da garota. Vamos nessa? Dou maior força, afinal eu que vi a Larissa...
– Tem certeza mesmo?
– Juro em cruz, patrão. É ela sem tirar nem pôr. Está doidinha pra saber mais
notícia do caso, já imaginou? Ganhar uma irmã assim de repente... Garanto
que ficou roída de ciúme e quer voltar para casa, mas está dando um tempo...
– Você tem imaginação demais, cara, errou de profissão, devia ser escritor de
livro de mistério. Depois, ainda nem saíram os resultados dos exames,
esqueceu?
– Mas garanto pro senhor que tá todo mundo na torcida pra dar positivo, e a
Jéssica ser mesmo a Lucília. Como é patrão, vamos nessa ou vai amarelar?
– Mais respeito, rapaz. Eu vou pensar... também preciso de um tempo, tá
legal? (NICOLELIS, 2003, p. 124 -126)
presença do adulto se mostra crucial para a resolução dos problemas do adolescente na maioria
dos livros em que há protagonistas adolescentes. Em 57% deles, a escola aparece como a
principal aliada da família para lidar com os problemas sociais que afetam a funcionalidade
dessa instituição. Basta relembrar, por exemplo, que em De volta à vida, foi à escola que
Clarissa recorreu quando percebeu que a dependência de álcool de Otávio estava afetando o
desenvolvimento emocional da adolescente Alandra. Da mesma maneira, foi a instituição
escolar que apoiou Maíra quando a jovem se envolveu com um traficante na narrativa Reféns
do paraíso, e também foi essa mesma instituição que confortou a mãe de Suelen quando, em
Predadores da inocência, a garota estava prestes a ser sequestrada por uma quadrilha de
traficantes de pessoas.
Em todos os livros do corpus de narrativas sociais, há a presença de um núcleo familiar,
mesmo que este não faça parte do grupo de personagens principais; do mesmo modo, a escola
está representada por alguma personagem pertencente a essa instituição em 72% das narrativas.
Faz-se necessário enfatizar que, nas que não têm personagens que representem a escola, os
conhecimentos e valores preconizados por essa instituição são legitimados como caminhos
seguros a serem seguidos pelos indivíduos a favor de sua emancipação. Em Sonhar é possível?,
a freira Ângela diz ao menino Risadinha: “- Por que não estuda, meu filho? Tua mãe me disse
que te matricula e você não aparece na escola.” (NICOLELIS, 1982, p. 40).
Por esse ângulo, mesmo que muitos heróis tentem se libertar da visão adultocêntrica,
raramente conseguem. Há de observar que no livro Ponte sobre abismo o motivo do
desaparecimento da jovem adolescente Larissa não fica claro, fica a sugestão de que teria fugido
de casa em função do autoritarismo do pai. Além disso, essa personagem não atua no presente
da narrativa, o leitor entra em contato com ela pela mediação do narrador onisciente que, em
especial, por meio do discurso indireto livre, traz à tona as angústias dos pais que tiveram a
filha desaparecida. Portanto, a adolescente não tem voz. Sendo assim, não se pode afirmar que
tal representação se filie ao modelo emancipatório de que trata Zilberman (2003), no que se
refere à representação da família, visto que, de acordo com essa estudiosa, nesse modelo há a
recusa da intermediação entre criança e realidade. Em textos literários escritos nessa
perspectiva, o herói assume uma posição de autonomia em relação a uma instância superior e
dominadora, como é o caso da obra de Lygia Bojunga em que as personagens infantis e juvenis,
com recorrência, conseguem se libertar do ambiente doméstico de maneira questionadora,
saindo fora desse espaço para experimentar novos contextos.
Além disso, quando os heróis voltam para a casa não significa o reconhecimento da
superioridade desse ambiente, uma vez que esse retorno nem sempre é bem aceito por eles. Em
202
Não digo que não estou feliz com o Reílson, eu adoro o garoto! Todo mundo
ama aquele menino, ele é uma graça! Mas paguei um preço muito alto – e a
Pétula mais ainda – por aquele sorriso maroto agora cheio de dentes: uma
adolescência conturbada, sem tempo pra baladas, cheia de responsabilidades,
203
que meus pais não deram moleza, e a situação da família da mãe do garoto
também contribuiu pra coisa ficar mais pesada pro meu lado e pra minha
família. (NICOLELIS, 2010, p. 91, grifo nosso)
filha desaparecida – poderia estar viva. Todavia, Moacir rejeita a jovem, sobretudo, por ela ter
sido usuária de droga e por ter um filho recém-nascido. A situação também não se resolve.
A falta de solução para várias questões discutidas é um dos traços das narrativas sociais
do corpus, o que pode causar uma paralisia nos heróis e, por extensão, em seus leitores. Como
já salientou Regina Zilberman acerca da literatura realista infantil, ao tratar de temas sociais de
forma demasiadamente verista, o escritor pode cair em determinadas armadilhas, posto que ele
teria que contar com recursos que ainda não existem, já que tais problemas, também no plano
da realidade cotidiana, não têm solução aparente. Assim a autora pergunta: “como nomear as
causas profundas da situação que vive e como propor uma ação que o retire da apatia que se
verifica ao final do texto e que seja ao mesmo tempo compatível com a condição infantil?”
(ZILBERMAN, 2003, p. 200). Uma das saídas aparentes encontradas por Nicolelis para lidar
com questões que não podem ser resolvidas, é o já discutido tratamento romântico e idealista
que se observa em boa parte das narrativas, uma forma de propagar uma mensagem de
esperança e de otimismo diante da vida e do ser humano.
Há ainda de trazer à tona que, acentuando uma direção que já foi percebida nas
narrativas de aventuras, a mulher também tem um papel de extrema relevância dentro da
família: nas 16 narrativas sociais há, pelo menos, uma personagem mãe que faz parte do grupo
de personagens principais, possuindo marido ou não. Em contrapartida, em 50% das narrativas
sociais, a figura paterna está ausente, quando isso ocorre, as mulheres, divorciadas ou viúvas,
são as progenitoras, garantindo o sustento do lar e a educação dos filhos. Muitas vezes, a
representação do pai ganha dimensão negativa: ele pode ser um alcóolatra, um autoritário, um
mulherengo, um aproveitador.
Nesses termos, mesmo que possam ser observados traços do modelo eufórico na
representação da família nas narrativas sociais, como os que são perceptíveis em obras, como
Papel de pai, Amor não tem cor, Sangue na raia e Um dia em tuas mãos, o espaço doméstico
já não mais é representado como um lugar paradisíaco. Do mesmo modo, ainda que um ou outro
membro da família possa inspirar confiança aos heróis, a instituição familiar já não é mais a
sua principal aliada no processo de travessia de sua jornada. Agora os heróis vão contar,
sobretudo, com a ajuda dos membros que representam o espaço escolar e o ambiente de
trabalho, o que não significa a ausência total da família, ao final da jornada, na maioria dos
casos, os heróis ainda desejam a volta para casa, apesar do reconhecimento das limitações desse
ambiente.
205
3.4.2 A linguagem
Embora não seja obrigatória, a residência médica (com duração de até cinco
anos, no caso de um neurocirurgião) é importante porque, de certa forma,
funciona como uma pós-graduação para o médico recém-formado. O próprio
médico decida se quer fazer residência; nesse caso, passa por um treinamento
supervisionado relacionado à sua área de especialização. O profissional que
opta por não fazer a residência pode abrir uma clínica particular ou participar
do Programa de Saúde da Família, atuando como clínico geral em postos de
saúde de pequenas cidades do interior, ou ainda dedicar-se à pesquisa ou aos
cursos de especialização ou de mestrado e doutorado em áreas laboratoriais.
(NICOLELIS, 2003, p. 82)
reuniu a mídia numa entrevista coletiva e revelou toda a história, omitindo alguns detalhes. E.
principalmente, pediu que se desse publicidade ao número para a denúncia anônima de abusos
sexuais contra crianças e adolescentes: 0800-99-0500.” (NICOLELIS, 1997, p. 165).
Apesar do caráter documental que prevalece nas narrativas sociais, é preciso mencionar
que, em várias delas, a autora deixa marcas da linguagem poética, que se revela pela exploração
da conotação e da subjetividade, traço que minimiza um pouco a objetividade da linguagem
realista, conseguindo, pois, um bom nível de trabalho com a linguagem, apesar de possíveis
ressalvas a serem feitas. Isso é bem mais perceptível em Sonhar é possível?, conforme ilustra a
seguinte passagem: “Sandrinha sai a galope, contente de poder ajudar no drama que ela
sabe/adivinha vai lá dentro do quartinho, com a sensibilidade que desenvolveu com seu próprio
problema, intuindo a dor alheia, os profundos caminhos da mágoa e da desesperança.”
(NICOLELIS, 1982, p. 58).
Em O sol é testemunha, ainda que estejam presentes digressões e explicações de cunho
científico, a exploração da coloquialidade e de elementos poéticos consegue dar à linguagem
da obra mais leveza e fluência. A passagem que segue ilustra essa afirmação:
Ele nem precisava ter dito isso. Beto não se arrepende mesmo, nem espera
nada em troca. Libertar o sujeito lhe deu até uma sensação de alívio. Pensa
como Vó, acha sequestro uma coisa medonha, uma crueldade sem tamanho –
tirar o cara da vida dele sem mais nem menos, jogar num cubículo, às vezes
até acorrentado, sem poder ir ao banheiro fazer as necessidades ou tomar
banho – cruz credo! Como um ser humano é capaz de fazer isso com outro?
Precisa ter perdido toda a humanidade mesmo! (NICOLELIS, 2009, p. 85).
dizer, só abaixo do ‘home’.” (NICOLELIS, 2009, p.116, grifo nosso). Nota-se na fala da
personagem Maicon uma tentativa de fusão entre as linguagens coloquial e culta, que não
consegue mimetizar, no plano literário, a realidade linguística daqueles que se pretende
representar, o que apenas intensifica a estigmatização entre essas duas modalidades de
linguagem e, por conseguinte, entre o civilizado e o rústico, conforme já apontou Candido
(1972).
Quanto às técnicas utilizadas no processo de manipulação da linguagem, predomina,
assim como no corpus de narrativas de aventuras, o narrador que conta a história manifestando
poder sobre todos os acontecimentos, ao mesmo tempo em que são exploradas as técnicas de
descrever, comentar, dissertar e dialogar. As três primeiras técnicas narrativas são percebidas
com maior preponderância no registro do narrador, já a última, no das personagens. Com
exceção de O sol é testemunha, em que se verifica equilíbrio entre o emprego dos discursos
direto, indireto e indireto livre, nas demais narrativas, prevalece o discurso direto na
organização das falas das personagens. Convém lembrar que, embora o uso intensivo de
diálogos possa dar aos registros orais maior objetividade, com maior possibilidade de alcançar
o efeito do real, uma vez que as próprias personagens podem se revelar ao leitor, em geral, tal
revelação não deixa de passar pela mediação do narrador, como se pode observar no diálogo
que segue:
Portanto, mais uma vez o narrador nicoleliano revela a sua face protetora e orientadora,
característica que o coloca também na condição de mentor dos heróis das narrativas sociais.
Aqui, as técnicas narrativas comentário e dissertação estão bem mais acentuadas do que nas
narrativas de aventuras, constatação que se justifica pela intenção verista desses textos, como
também pelas teses claramente defendidas em maior parte deles. Ao longo dos acontecimentos
208
narrativos, o narrador faz interferência pessoal, por meio das quais ele expõe seu ponto de vista
a respeito dos fatos narrados, seja de forma abreviada (dissertação), seja de modo mais longo
(comentário). Nas duas situações, ele deixa vazar sua intenção ideológica e/ou informativa,
como se verifica no trecho abaixo:
– Pelo contrário, madrinha, tá tudo tão engasgado aqui dentro que eu tenho
necessidade de falar mesmo. Eu sou inocente do crime pelo qual me
condenaram, eu vivo dizendo isso, ninguém me acredita...
– Mas você foi preso em flagrante, meu filho...
– Mas não fui eu, entende, não fui eu. Foi um azar incrível que eu tivesse
chegado bem na hora em que aquele homem foi morto a traição, sem nenhuma
possibilidade de defesa. Ou então...
– Ou então... – a madrinha ficou curiosa. – Você tem alguma ideia, meu filho?
– Tenho sim, tia Carmela. Alguém que sabia que eu já fora condenado, que
era muito fácil me incriminar e mandar para a cadeia. Sem direito a prisão
albergue, tendo mesmo que me ferrar na pena quase toda... Eu pensei muito
nesses quinze anos de prisão, alguém armou uma cilada dupla, para a vítima
e para mim, e está rindo sozinho até hoje... (NICOLELIS, 1985, p.10)
A médica falou que, assim como as mães trabalhadoras têm licença de vários
meses após o parto para cuidar do bebê, seria interessante que as escolas
também providenciassem algum tipo de licença para mães estudantes... Parece
até que, nas universidades, havia uma previsão nesse sentido. Porque o
aleitamento materno é fundamental, e se dura por vários meses melhor ainda.
Mas se a Pétula tinha tanto leite que podia ser retirado com a tal bombinha,
com paciência, aos poucos, o bebê aceitaria a mamadeira.
De qualquer forma, a consulta foi um sucesso e a Pétula ficou encantada com
a doutora Raquel – era realmente uma pessoa muito gentil e acolhedora, eu
sempre adorei a minha médica. Agora, já pai, acho que tinha chegado o
momento de consultar outro tipo de médico, aliás, era o que eu devia ter feito
antes de começar a me comportar como adulto, sem ter tido orientação
nenhuma. A gente se atira na água sem saber nadar, e aí se ferra. Pelo menos
filho não é doença, né? (NICOLELIS, 2009, p. 74)
211
linguagem cotidiana para o plano da literatura não consegue mimetizar o português padrão do
momento em que tais narrativas foram publicadas. Nicolelis, visivelmente, supervaloriza a
linguagem culta e o conhecimento científico. Ao mesmo tempo em que seus narradores e
personagens conduzem o leitor para uma viagem rumo à busca de soluções para problemas
sociais emergentes, cujo caminho mais sólido é conhecimento científico, o leitor também entra
em contato com a modalidade culta da língua. Tal configuração encerra sua obra na concepção
tradicional de ensino de língua e de manipulação de linguagem, cuja vertente já não é bem-
vinda do ponto de vista da crítica literária atual.
Nas narrativas sociais, a aventura conduz seus heróis para questões, na maior parte das
vezes, indissolúveis; daí que, na volta para a casa, nem sempre seus heróis conseguem
ultrapassar plenamente as provas e inimigos a eles impostos. Essa dificuldade de resolução dos
problemas é própria das narrativas de cunho verista, segundo Zilberman (2003), uma vez que
estas não conseguem dar conta de resolver as irregularidades nelas denunciadas, sobretudo, as
que abordam questões de cunho social.
No âmbito do corpus, com base na análise, ainda que subjetiva e genérica, dos campos
Resumo da Narrativa e Organização da Narrativa, distante do que predomina na maioria dos
livros de aventuras, em que, comumente, há um final feliz; resolvido o enigma, acaba-se a
narrativa, mesmo que não tenha sido encontrada uma resolução satisfatória para o conflito
narrativo. Aqui o que prevalece é o final que nem sempre encerra as questões postas ao herói.
Todavia, a história termina, preponderantemente, com uma mensagem de esperança. A maior
parte de seus heróis (e, por acréscimo, os seus leitores) retornam da aventura com o sentimento
de que é preciso o engajamento social e político para que a sociedade possa ser um lugar melhor
para se viver, onde todos possam ter o direito de exercer a sua cidadania. A citação que segue,
extraída das páginas finais de Reféns do paraíso, é bastante representativa dessa visão positiva
e idealizada que pode ser percebida nas narrativas sociais nicolelianas:
213
É pela mediação do narrador adulto que seus heróis (independentemente da faixa etária)
são conduzidos rumo a uma aprendizagem sobre a vida e sobre o outro que, no plano formal,
se dá pelo emprego do discurso indireto livre e pela linguagem técnica, respeitosa das normas
éticas e da norma padrão do português, inclusive ao que diz respeito ao politicamente correto
na esfera das questões sobre gênero, como se observa em: “[...] quando o fato de ter um (a)
filho (a) professor (a) na família devia ser motivo de orgulho!”.
Embora as questões relacionadas ao tráfico de drogas não tenham sido plenamente
resolvidas na esfera narrativa, a postura de Celeste pode servir como modelo de força e
perseverança na luta diária contra tais problemas no plano externo. Nessa mesma direção, está
a reflexão feita por Marijane sobre o preconceito racial em Amor não tem cor:
– Talvez, vovó, talvez. Sabe, quando dirijo ou ando pelas ruas e vejo os
funcionários mais humildes: lixeiros, entregadores, reparo que continuam
sendo todos mestiços ou negros, um arremedo da escravidão...Eu só
acreditarei numa democracia racial no Brasil quando as universidades, o
Congresso, os fóruns, os quartéis se encherem de alunos, congressistas, juízes
e promotores, generais negros ou mestiços. Quando até mesmo um presidente
negro for eleito neste país, que, é o segundo país negro do mundo, depois da
Nigéria, sabia? Li outro dia numa revista. (NICOLELIS, 2002, p. 55 – 56)
O mesmo procedimento pode ser verificado nas duas narrativas escritas em primeira
pessoa constantes neste corpus: Melhores dias virão e Papel de pai. Na primeira, o narrador-
protagonista, que usa o pseudônimo Lenilson, um jovem que se envolveu com a criminalidade
precocemente e que, depois de quase ter sido morto por um grupo de extermínio, fugiu para
uma cidade do interior. Ao terminar o depoimento concedido a um jornalista, ele explicita o
seu otimismo em relação à vida recomeçada na nova cidade. Como não consegue resolver os
problemas a ele impostos na trama narrativa, fica a esperança de reencontrar Nereide, a
namorada grávida, de quem se separou por ocasião da fuga, bem como o desejo de oferecer
uma vida melhor para a mãe, empregada doméstica, moradora de uma favela do Rio de Janeiro.
Nas páginas finais do livro, é possível ler:
Às vezes eu ligo pra coroa, só pra ela saber que eu estou vivo e bem, mas não
dou meu endereço nem nada, por precaução. Como tenho salário e gasto certo,
sempre mando uma grana pra ajudar nas despesas. Meu sonho é um dia tirar
a mãe do batente, coitada.
Da Nereide não tive notícia, mas não foi por falta de tentar, mano. Mas é
difícil, porque não tenho referência nenhuma, nem endereço ela deixou. Então
não posso escrever carta ou mandar telegrama. Podia telefonar que seria mais
seguro – mas pra onde?
Meu filho, se nasceu, está agora com uns três anos; já deve estar correndo por
aí, falando quase tudo. Será que ele aprendeu a dizer “papai”?
Às vezes eu sonho que estou chegando em casa, e a Nereide vem correndo,
com o nosso filho nos braços, pra me receber ... Acordo molhado de suor, e
até choro, não tenho vergonha de dizer.
Algum dia eu vou encontrar a Nereide. Será que ela ainda espera por mim? Só
desejo que ela não tenha me esquecido ou, muito pior, esteja vivendo com
outra pessoa, a quem meu filho vai chamar de pai.
Enquanto isso vou tocando a vida... Por influência do seu Giuseppi, que é um
homem muito bom, eu até voltei a estudar, no curso noturno. Quero dominar
as letras para escrever uma carta bem bonita para a Nereide e o meu filho.
(NICONELIS, 2013, p. 74)
Vai perguntar pra quem? Pra mãe, jamais. Ela nem sabe que foi ele quem
libertou o empresário. Pro Maicon, que mandou soltar o homem do cativeiro?
Mas se ele também nem sabe por onde anda o irmão! Pro próprio cara que foi
sequestrado? Pois se, na surpresa do encontro, nem perguntou telefone nem
nada. Mas por que razão perguntaria?
“E se for?”
Pra piorar a situação, Beto ainda relembra a frase dita pelo homem, assim que
se viu libertado do cativeiro: “Você não vai se arrepender do bem que fez
hoje?”. Então, supondo que seja mesmo verdade o que ele imagina, o que pode
fazer nas atuais circunstâncias? Desistir do emprego, por uma questão de ética,
pra não aceitar jogo marcado: aquela história de dá cá, toma lá?
Pelo visto, não é só Mãe quem vai ter de viver com um dilema na consciência!
(NICOLELIS, 2012, p. 108 – 109)
No conjunto, 40 % das obras estudadas deixam por resolver algum tipo de mistério, um
recurso que pode aguçar a curiosidade do leitor perante os fatos narrados, ao mesmo tempo em
que o tira da zona confortável em que a maior parte das narrativas sociais o encerra, pois agora
é exigido dele um pouquinho mais de esforço interpretativo. A opção pelo final aberto também
pode ser um sinal de tentativa de inovação nas narrativas de Nicolelis, com a incorporação da
ideia de inacabamento e da dúvida, condição própria do ser humano, posto que, no corpus de
narrativas de aventuras, predomina o final fechado, com predominância do final feliz.
Do mesmo modo, nos livros A mão tatuada e Sangue na raia verificou-se a preocupação
em criar o efeito da circularidade com um final que retoma a história inicial. Na primeira
narrativa, a história se inicia e termina da mesma forma. No primeiro capítulo quem está sendo
libertado é José, no último, é Rebolo, um amigo do protagonista. Para tanto, a autora usa
praticamente o mesmo texto nos dois capítulos, recurso que produz o efeito do círculo vicioso,
ou seja, da história se repetindo, conforme ela, de fato se repete com tantas e tantas pessoas
injustiçadas Brasil afora. Portanto, leva Rebolo para o mesmo mundo de insegurança, abandono
e injustiças para onde o herói foi bruscamente transportado na situação inicial do texto.
Entretanto, como José já passou pela mesma situação que o amigo, ele está mais fortalecido e
capaz de apoiá-lo em seu processo de inserção social, pós-prisão, convencendo-o de que é
preciso ter a esperança de que as coisas podem ser melhores:
217
O grande portão rangeu ao ser aberto. A luz do sol incidiu em cheio nos olhos
de Rebolo, mais que isso, aquele cheiro de liberdade que vinha de fora...
No outro lado da rua enxergou José, que veio vindo sorridente, mãos
estendidas:
– Como é, companheiro, pronto para a luta?
– Puxa, José, que surpresa! Tô morto de medo, camarada, não tenho nem pra
onde ir. Eles tascam a gente na rua, como se jogassem uma trouxa de roupa
suja... parece até que torcem pra gente voltar!
– Tira o ódio do teu coração, mano – sorriu José. – Tô aqui pra te ajudar. Já
falei com o dono da padaria onde eu trabalho, tem outra vaga lá, e a gente
arruma um quarto e cozinha pra você ficar... ânimo, companheiro, tudo vai dar
certo. O importante é estar livre!
Sorriram um para outro. Começava a chover, uma garoa fina, estranha, porque
o sol brilhava – as gotas de chuva pareciam luzidia cascata de luz iluminando
o caminho... (NICOLELIS, 1985, p. 71 -73)
narrativa. Tal configuração pode ser observada, preponderantemente, nos livros que têm como
segunda categorização a narrativa de aventuras, com filiação aos subgêneros narrativa policial
ou narrativa de mistério, o que se justifica pela própria intenção desses gêneros em criar um
clima de suspense no texto, estratégia própria dos textos de aventuras.
Aqui a presença do narrador onisciente ecoa na mediação dos diálogos que chegam até
o leitor, pelos discursos indireto e indireto livre, mais uma vez revelando o caráter mediador
dessa entidade que orienta e conduz as personagens que, aparentemente, não tem condição de
falar por si só, necessitando, pois, de um ser que faça isso. Nessas narrativas, assim como nas
narrativas de aventuras, é muito raro o discurso das personagens chegar ao leitor sem a
mediação do narrador, estando ele fora ou dentro da história. Em geral, o emprego do discurso
indireto aparece nesse corpus em menor proporção que os outros dois; agora, em direção um
pouco diferente do que foi observado nas narrativas de aventuras, o emprego do discurso
indireto, ainda continua servindo para sumarizar acontecimentos de que o leitor já tem
conhecimento ou para ajudar a criar um clima de mistério no texto.
Em As portas do destino, o leitor já sabe que a tentativa de Arminda e Gidaílson de
morar com o pai em Goiás havia sido frustrada. Quando Arminda voltou para a casa de Cláudia,
a explicação dada por ela à família da patroa foi bastante sumarizada, como se pode notar em:
“Quando foram colocados a par dos acontecimentos, também Rivail concordou que fora a
melhor coisa a fazer. Era muita humilhação.” (NICOLELIS, 1997, p. 124). O emprego dessa
técnica também tem a função de dar voz a algumas personagens, como é o caso do que ocorre
com Jéssica, a jovem suspeita de ser também filha do casal Moacir e Alzira em Ponte sobre o
abismo; sua história é revelada ao leitor, preponderantemente, pelo discurso do outro, como se
nota no trecho abaixo:
João Manuel, sem maiores delongas, pôs o casal a par de suas descobertas.
Além de Jéssica, a garota internada na enfermaria do hospital reservada para
dependentes de drogas, ser extremamente parecida com a foto de Larissa,
tirada da internet, sua idade correspondia à da filha deles.
Foi além. Contou que confidenciara algo interessante; o motivo maior que a
levara a sair da casa dos pais foi ter descoberto, por acaso, ser filha adotiva.
Isso lhe causara grande revolta, mais uma razão para fugir com o namorado.
Inclusive, ela não permitira que o hospital fizesse contato com sua família,
pelo fato de sentir vergonha por ter ficado desfigurada; esperava poder fazer
uma operação plástica restaurar o rosto. Só então teria condições psicológicas
para reatar os antigos laços com amigos e familiares. (NICOLELIS, 2003, p.
94)
219
A técnica do sumário é bastante utilizada neste corpus, recurso que agiliza a leitura,
dando maior velocidade aos acontecimentos narrados, o que também é uma boa estratégia para
fisgar os leitores mais jovens.
Vale informar que, apesar de os acontecimentos serem apresentados de forma veloz,
com enfoque nas ações, em muitos momentos, a história é atrasada com a inserção de digressões
e descrições que visam esclarecer e informar o leitor acerca da temática discutida nos textos em
questão. Assim, além de acompanhar as histórias dos heróis, o leitor também recebe uma aula
sobre diferentes assuntos: ética, cidadania, saúde, cultura, educação e muito mais.
É importante relembrar que, independentemente da posição situada pelo narrador no
âmbito da história (dentro ou fora), resguardadas as particularidades de cada categoria de
narrador, a postura de ambos é muito semelhante: manifestam o desejo de ter o controle sobre
a matéria narrada, semelhante ao apontado por Carvalho (1996) em relação ao comportamento
das narrativas realistas de Lannoy Dorin, nas quais esses dois tipos de narrador possuem
comportamento único: ambos revelam sua onisciência. Mais um aspecto que prende as
narrativas nicolelianas à literatura tradicional do século XIX que, conforme já foi salientado,
do ponto de vista de Coelho (2000), nesse momento, não havia tanta diferença entre narrar em
1ª e em 3ª pessoa. Isso é perceptível, sobretudo, na esfera da manipulação dos diálogos,
conforme é possível observar nas citações que seguem:
Como se pode perceber, o modo de mediar os diálogos nos dois trechos são idênticos,
no entanto, o primeiro é conduzido pelo narrador-protagonista de Papel de pai, e o segundo,
220
pelo narrador situado fora da história em Amor não tem cor. Portanto, um narrador único, que
também se revela pelo uso da linguagem mais formal no momento de mediar os diálogos.
Seguindo esse mesmo itinerário, assim como foi observado nas narrativas de aventuras, nas
narrativas sociais, as diferentes, porém convergentes, funções assumidas pelo narrador,
propostas por Reuter (2002), também podem ser verificadas:
• a de comunicador (mantém contato com o leitor, dirigindo-se a ele diretamente):
“Então é isso aí, gente boa. Devagar e sempre, que filho é bom na idade certa,
senão é pedra no meio do caminho onde a gente tropeça, vá por mim.”
(NICOLELIS, 2010, p. 92);
• a de metanarrador (comenta o texto apontando para a sua organização interna):
“Foi legal conhecer você, mano; mais legal ainda saber que vai escrever a minha
história. Quero contar tudo o que passei na vida. Quem sabe, sirva pra abrir os
olhos de outros como eu.” (NICOLELIS, 2009, p. 3);
• a de testemunha (manifestada no grau de certeza ou de distância que o narrador
possui em relação à história que conta): “Era só uma questão de tempo. Ele – tal
qual o seu ídolo, Poirot – iria até o fim! (NICOLELIS, 1997, p. 166);
• a de modalizador (manifestada nos sentimentos que a história ou sua narração
provoca no narrador): “Na semana seguinte será seu aniversário. Ela fará quinze
anos. Tanto tempo que não faz festa! Afinal, quem convidaria?” (NICOLELIS,
1993, p. 98);
• a de avaliador (refletida nos julgamentos do narrador sobre a história): “Fora a
condição financeira que o levara a ser informante da quadrilha; a mulher grávida,
o cartão de crédito vencido, a despesa com o parto... Ele sentia muito, estava
arrependido, faria qualquer coisa pra desfazer o mal cometido.” (NICOLELIS,
1999, p. 115);
• a de explicador (interrompe o curso natural da história para trazer informações
ao leitor consideradas necessárias para compreender o que vai se passar): “Dias
difíceis. Otávio continua internado. Clarissa vai regularmente ao hospital e traz
notícias... O quadro do delirium tremmens é terrível: uma sudorese intensa;
tremores por todo o corpo, que atingem até a língua; taquicardia, febre. Uma
emergência séria. Onde o paciente corre o risco de vida.” (NICOLELIS, 1993,
p.58);
221
Ainda que alguns escritores já tenham demonstrado interesse com a análise psicológica
de suas personagens em séculos anteriores, no âmbito da literatura universal, é no final do
século XIX e nos primeiros anos do século XX que essa preocupação se acentua. Segundo
Silva (1969), isso se deu em decorrência da crise e da metamorfose do romance moderno em
relação aos modelos de narrativas consideradas clássicas. Nesse momento aparecem os modelos
de análise psicológica de Marcel Proust e Virgínia Woolf, bem como as narrativas de grandes
dimensões míticas de James Joyce, construídas em torno dos arquétipos, além das narrativas
simbólicas e alegóricas de Kafka, além das narrativas psicológicas de Dostoievsky. O romance
tradicional, cujo representante maior, do ponto de vista de Silva, é Balzac 34, oferece ao leitor
um retrato físico, psicológico e moral da personagem logo nos capítulos iniciais, definindo-a,
de forma que quem lê o texto possa se familiarizar com a personagem, do mesmo modo que
lembrar dela facilmente.
Ainda sob a perspectiva desse pesquisador português, na narrativa psicológica moderna,
em direção contrária à seguida pela narrativa tradicional, a personagem é condenada em
proveito do estudo de seu universo interno, dissolvendo-a para melhor se apreender o estado
psicológico. Ali, a preocupação do romancista recai sobre o desvelamento da complexidade e
profundidade do eu, por intermédio da criação de uma linguagem que seja capaz de traduzir as
contradições e o ilogismo do mundo interior do indivíduo, cuja análise se volta para os
conteúdos ondeantes, fragmentados, evanescentes e absurdos da consciência. O estado
psicológico das personagens é materializado na ausência de um enredo uniforme e sistemático
que se observa em narrativas de cunho mais tradicional, sendo estas construídas, superiormente,
com episódios que sucedem a outros episódios. Nas psicológicas, essa configuração dá lugar
34
Em diversos momentos, Nicolelis afirma ter lido muitos livros desse escritor e também salienta que, assim como
Balzac saía nas ruas de Paris com um caderninho e encostando nas pessoas para ouvir o que as pessoas falavam
para compor seus textos, ela também é uma escritora-jornalista que faz muitas entrevistas antes de produzir suas
histórias.
223
ao subjetivismo, ao fluido e ao nostálgico, ainda que, muitas vezes, aos olhos do leitor, pareçam
“absurdamente fragmentários e incoerentes.” (SILVA, 1969, p. 286).
Na esfera da literatura infantil e juvenil atual, do ponto de vista de Teresa Colomer, os
conflitos psicológicos têm tido uma presença opressora, percepção que demonstra uma
mudança notável em uma literatura que foi construída “tradicionalmente sobre a aventura
externa, o preceito sobre as condutas e a falta de caracterização psicológica dos personagens.”
(COLOMER, 2017, p. 2017). A pesquisadora aponta que as temáticas mais abordadas nas
narrativas psicológicas têm variado conforme a idade de seus destinatários; os problemas
derivados das crises de amadurecimento, bem como os conflitos provenientes da tomada de
consciência do mundo exterior, são os mais recorrentes. Sobre isso, ela escreve:
A pesquisadora espanhola salienta que nem sempre foi fácil escrever textos de vertente
psicológica para o público infantil e juvenil, pois, se os conflitos internos são descritos
diretamente, sem a mediação de metáforas, a angústia sentida pela personagem poderá se
reproduzir na recepção do leitor. Daí que a regulação do impacto emocional tem sido um dos
desafios impostos aos escritores de narrativas psicológicas, sendo a “desdramatização
humorística” um dos principais caminhos para solucionar a questão.
Outro problema enfrentado pelos escritores, ainda sob o ponto de vista dessa estudiosa,
é alcançar a verossimilhança da voz narrativa sem perder o controle da mensagem moral. Para
tanto, os autores tendem a ceder a voz aos protagonistas, usando, em especial, a primeira pessoa,
recurso que nos primeiros passos da literatura infantil e juvenil só era utilizado nos relatos em
que um adulto recordava algum acontecimento vivido, demonstrando nessa retrospectiva a
compreensão sobre o ocorrido, como acontece com David Copperfield, de Charles Dickens, por
exemplo.
224
introspecção, serão mais facilmente digeríveis para os leitores em formação se houver nelas
elementos de ação, “do dinamismo e dos estratagemas próprios da narrativa de aventuras ou da
pesquisa e da sondagem do meio próprias da narrativa social. Ainda que ao fazer isso, no caso
de inusitadas e pouco orgânicas combinações, viesse a acarretar desiquilíbrio na unidade
narrativa.” (CECCANTINI, 2000, p. 314).
Para o pesquisador, a presença superior de narrativas psicológicas na esfera da literatura
juvenil brasileira premiada pode ser justificada em razão do preconceito da academia por
narrativas de aventura e narrativas sociais. A primeira, como já foi mencionado no capítulo dois
desta tese, por estar voltada essencialmente para a diversão e evasão, o que faz dela um “gênero
menor”, na visão da crítica bem-pensante, conforme assinala José Paulo Paes (1990); e a
segunda, pela tendência nela apresentada de preocupar-se mais com abordagens ideológicas do
que com o apuro formal, posto que está atrelada, particularmente, às representações de cunho
mais verista e mimético.
O crescimento da produção de narrativas psicológicas na literatura juvenil, ainda que
não tenha se dado de forma tão assombrosa como se verifica no corpus analisado pelo
pesquisador também se justifica pela forte presença de narrativas psicológicas na literatura não
infantil e/ou juvenil, entre as décadas de 70, 80 e 90, seguindo, logo, uma tendência literária
nacional. O estudioso lembra de alguns autores cuja produção dessa vertente é expressiva, a
saber: Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Nélida Piñon, João Gilberto Noll, Raduan
Nassar, Carlos Sussekind.
A opção por uma vertente psicológica, do ponto de vista de Ceccantini, talvez tenha sido
provocada por um espírito de época proveniente do “próprio estágio do capitalismo tardio,
ligado à descrença nas grandes ideologias messiânicas e projetos sociais de grande visada e à
supervalorização do indivíduo, da subjetividade e das egotrips.” (2000, p. 317). O resultado
disso foi uma “psicologização” que afetou (e ainda afeta) diversas áreas, como a do trabalho,
do comportamento, da indústria cultural, da escola e, por conseguinte, da literatura juvenil.
Ainda sob a ótica desse estudioso, a presença da narrativa psicológica na produção
juvenil reflete uma “atualização estética”, já que traz para o universo da literatura escrita para
jovens uma tendência já corriqueira na “literatura adulta” desde a virada do século XX, uma
disposição que preza pelo experimentalismo de autores mais ousados. Do mesmo modo,
também serve para atender às demandas do mercado editorial voltado para esse público que,
cada vez mais, está ligado a projetos escolares. Para atender a esses projetos, esse segmento do
mercado, já há algumas décadas, “busca títulos literários que dêem conta de temas psicológicos
específicos, para os quais existe público certo e garantido, e que serão trabalhados por uma
226
legião de educadores e psicólogos.” (CECCANTINI, 2000, p. 318), sendo também o filão das
chamadas de “obras de comportamento”. Apenas para citar alguns autores que escreveram
narrativas psicológicas e que tiveram suas obras premiadas: Ary Quintella, Ana Maria
Machado, Pedro Bandeira, Jorge Miguel Marinho, Vilma Arêas, Vivina de Assis Viana, Isabel
Vieira, Ângela Carneiro, Lygia Bojunga, Bartolomeu Campos Queirós, sem deixar de fora a
própria Giselda Laporta Nicolelis, que foi premiada com o livro Macapacarana, em 1982.
Isso posto, resta analisar como Nicolelis lida com as questões próprias das narrativas
psicológicas na configuração dos livros do corpus filiados a essa vertente, proposição que se
desenvolverá nos tópicos seguintes deste capítulo.
apareça superiormente como subgênero principal, também pode aparecer como subgênero
secundário.
Dos livros que constituem o corpus de narrativas psicológicas, somente em Nos limites
do sonho não se verifica preocupação com o desenvolvimento e com a aprendizagem humana
e social, bem como com o amadurecimento do herói. Nessa narrativa, por exemplo, Donana, a
protagonista, às vésperas do matrimônio, recebe uma carta escrita por Francisco, seu futuro
marido, relatando a impossibilidade de realização do casamento, uma vez que já era casado. A
partir de então, Donana chega à beira da loucura, diante da frustração de não ter tido o sonho
de mulher realizado. Dominada pela decepção e pelo desejo sexual reprimido, a protagonista
vivencia momentos de delírios em que sua alma de mulher recatada e devota é transfigurada
pelo fogo e desejo de uma prostituta.
Quanto aos demais subgêneros filiados à linha narrativas psicológicas, podem ser
observados traços das narrativas de memórias em seis obras; em três delas há a presença de
características de narrativas sentimentais e somente uma, mais especificamente De sonhar
também se vive, pode ser circunscrita ao subgênero narrativa fantástica, o que se justifica pela
presença de dois amigos imaginários – a voz e as letras do computador – que acompanham o
herói Vitor em toda a sua trajetória de menino sonhador.
No que se refere à segunda categorização, nota-se que quase 80% das narrativas filiam-
se às narrativas sociais, com predominância do subgênero narrativa de crônica urbana,
reforçando a afeição da autora pela pesquisa in loco, estratagema próprio da narrativa social.
As narrativas de aventuras aparecem como terceira categorização somente em duas narrativas,
sendo elas: O caminho de Ísis e Macapacarana. Cabe notar ainda que, quanto aos subgêneros
estabelecidos por Ceccantini (2000) com base em critérios sintáticos, em cerca de 40% das
narrativas psicológicas prepondera a narrativa-diário em seu processo de estruturação.
Embora a presença da narrativa psicológica, como aponta Ceccantini (2000), represente
uma atualização estética, marcada pelo experimentalismo ousado de variados escritores, que se
revela especialmente nos aspectos formais, as narrativas psicológicas de Nicolelis que
compõem o corpus, apresentam configuração mais ou menos semelhante ao que já foi levantado
no feitio das narrativas de aventuras e narrativas sociais. Em linhas gerais, possuem estrutura
simples, cuja matéria narrada chega ao leitor em ordem cronológica com progressão temporal
linear. Apesar disso, vale mencionar que, vez ou outra, é perceptível a tentativa de inovação no
modo de narrar, em especial nas que se filiam ao subgênero narrativa de memória. Em O preço
do sucesso, por exemplo, é empregada a técnica flashback em seu processo de composição.
228
Nessa mesma direção, importa afiançar que a maioria das narrativas psicológicas
também pode ser dividida em partes, sendo os capítulos curtos, numerados e/ou titulados, com
fácil identificação do começo, meio e fim da trama narrativa e com predomínio das relações
lógico-causais entre as partes do texto, o que não impede que, em algumas obras, seja verificado
o final aberto e momentos de emprego da livre-associação.
O estado psicológico das personagens nicolelianas chega ao leitor por meio da
exposição de sua subjetividade e das angústias sentidas, superiormente, sob a mediação do
narrador, sobretudo, pelo emprego do discurso indireto livre, pela exploração do tempo
psicológico e pelo manuseio da linguagem poética. No último capítulo de Sem medo de viver,
denominado “Quando chega a hora”, o narrador onisciente focaliza as divagações da heroína
em relação à sua trajetória de vida, bem como ao seu futuro:
mencionado no tópico anterior, um dos principais desafios impostos a eles foi o alcance da
verossimilhança da voz narrativa e da linguagem no processo de representação da interioridade
infantil e juvenil. Mesmo que essa pesquisadora afiance que tais dificuldades já tenham sido
superadas pelos escritores contemporâneos, na configuração textual das narrativas psicológicas
de Nicolelis elas ainda podem ser vislumbradas, conforme poderá ser constatado, em especial,
nas seções destinadas à análise do narrador e da linguagem
Apesar disso, faz-se necessário informar que a autora dá sinais de tentativa de inovação
formal de seus textos, aspecto que fica evidente no feitio de variadas narrativas, por meio da
incorporação de elementos próprios do universo adolescente no momento em que seus livros
foram escritos. Em O blog da família, por exemplo, o narrador-protagonista é um blogueiro que
narra a internautas o dia a dia de sua família. A estrutura da narrativa em questão objetiva
mimetizar os aspectos conteudísticos e estilísticos de um blog, um diário pessoal
disponibilizado na internet.
Com base na análise integrada dos itens levantados na grade, nos tópicos seguintes,
percorrendo o mesmo itinerário dos dois capítulos anteriores, analiso a jornada dos heróis
nicolelianos no âmbito das narrativas psicológicas de Giselda Laporta Nicolelis.
e em O tigre na caverna, o protagonismo é desempenhado pela avó que rememora a sua história
e a de sua família desde os tempos de menina.
Logo, em direção contrária ao que foi observado nas narrativas de aventuras e nas
narrativas sociais, em que é muito recorrente a presença de heróis adultos, aqui, o protagonismo
é assumido pela juventude preponderantemente. Nesse sentido, as narrativas psicológicas de
Nicolelis seguem uma tendência das narrativas juvenis atuais, que buscam a identificação mais
imediata com o leitor, como salienta Ceccantini (2000), do mesmo modo que salienta as
peculiaridades desse gênero que visa colocar em evidência a subjetividade do adolescente. Se
se pretende colocar em pauta os conflitos existenciais adolescentes, é natural que eles sejam os
heróis das histórias contadas, independentemente da faixa etária e gênero. Apesar disso,
necessário se faz afirmar que os membros da família continuam a ocupar lugar de destaque no
núcleo de personagens principais, o que também sinaliza o caminho a ser seguido por seus
heróis: uma jornada de amadurecimento, em cujo processo a família desempenha função
relevante. Da mesma forma, tal configuração reafirma o duplo destinatário que a literatura de
Nicolelis busca atingir: adultos e adolescentes.
Em geral, os heróis adolescentes das narrativas psicológicas são oriundos da classe
média, sendo boa parte estudantes de escolas particulares, cujos pais exercem profissões
diversas: pilotos de avião, psicólogos, engenheiros civis, garimpeiro, coordenadores editoriais,
professores, médicos, advogados. As personagens ligadas à justiça (delegados, juízes,
policiais), bastante recorrentes nas narrativas de aventuras e nas narrativas sociais filiadas aos
subgêneros narrativas policiais e/ou narrativas de mistério, agora são substituídas por
personagens oriundas da esfera da saúde, em especial, médicos(as) e enfermeiras. Isso
certamente se justifica pelos motes temáticos que dão origem a muitas narrativas psicológicas:
distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia, bebê de profeta, gravidez na adolescência,
aids, entre outros.
É significativo enfatizar que, embora o gênero privilegie a interioridade e a
introspecção, as personagens continuam manifestando características próprias das personagens
chamadas de planas pela crítica especializada, desenho que também pode ser vislumbrado no
corpus de narrativas de aventuras e de narrativas sociais. Desfilam nas histórias algumas
personagens com comportamentos bastante tipificados e dicotômicos, tais como: o adolescente
de classe média alta de vida fútil; o adolescente de classe média alta com consciência política
e social; os pais que trabalham fora e descuidam da educação dos filhos; os pais que mesmo
exercendo suas profissões conseguem dispensar cuidados aos filhos; as mães que não dialogam
231
com suas filhas, especialmente, sobre assuntos tabus, sexo, por exemplo; as mães que mantêm
um diálogo aberto com suas filhas.
Há de notar também que a maior parte dos heróis adolescentes apresenta postura
bastante idealizada, nem sempre conseguindo representar, no plano literário, o comportamento
de um adolescente. Ilustra essa afirmação o comportamento assumido por Pirata, o protagonista
de O blog da família, um jovem bastante inteligente, que se comporta como professor diante de
seus leitores internautas. Ao longo da narrativa, Pirata dá uma aula aos leitores sobre diferentes
assuntos. Língua Portuguesa, Leitura, História, Pluralidade Cultural e Cidadania, são as áreas
mais discutidas por ele sem seu blog; o trecho que segue ilustra a afirmação:
Então, moçada, o negócio é ler bastante para não pagar mico em vestibular,
na faculdade, na roda de amigos, com estranhos, namorada, e, mais tarde,
quando for falar em público, defender uma tese etc. A palavra tem força,
galera, vale uma espada ou um sabre.
Concordo que português é fogo. A palavra princesa, por exemplo, a gente
começa com aquela perna do p, toda elegante, depois a tentação é lascar um
z; além de som ser igual, combina mais. Eu mesmo já escorreguei na tigela e
trombei com cafajeste, escrevendo a primeira com j e o segundo com g;
quebrei a cabeça procurando no dicionário a palavra regorgitar até cair a ficha
e encontrar a grafia certa: regurgitar. Sem falar nos tempos verbais...
(NICOLELIS, 2007, p. 40-41).
dessas narrativas seja bastante recorrente a presença, ao lado dos heróis, de amigos,
namorados(as) e familiares, sobretudo, pais e avós. Em geral, eles têm um projeto de vida que
passa, em especial, pelos valores defendidos pela escola e pela família, mesmo que, em alguns
momentos, suas escolhas não estejam afinadas com os valores defendidos por algum
representante das instituições familiar e escolar.
Ilustra a constatação apresentada acima, o enredo de Pântano sob o sol, texto filiado ao
subgênero narrativa de formação, que oferece ao leitor a história de Sérgio Ricardo, um jovem
de quase 18 anos, filho de pais divorciados, que mora com a avó Sofia, o “avodrasto”
Yamamoto e Marina, sua irmã apenas por parte de mãe. Sem que a família soubesse, o jovem
chegou a ser viciado em drogas, mas conseguiu se libertar do vício, apaixonando-se pela
música, profissão que, do ponto de vista do avô, pertence a vagabundos, como é o caso do pai
de Sérgio Ricardo que, dizendo-se artista, sumiu no mundo abandonando-o, sem nunca dar
notícias. Por isso, o desejo do avô é que o jovem siga a sua profissão: engenheiro civil. No
entanto, o jovem quer mesmo é cursar música. Sem que o avô saiba, com a ajuda da avó, ele
consegue comprar uma guitarra, e se matricula num conservatório musical. Um dia, entretanto,
Yamamoto descobre, fato que o deixa muito aborrecido. A gota d’água foi descobrir que ao
invés de indicar Engenharia Civil como primeira opção no vestibular, o jovem escolheu música.
Todavia, aos poucos, o neto vai conseguindo convencer o avô de que merece um voto de
confiança. Paralelamente, Sérgio Ricardo vivencia diferentes experiências: a amizade com
Vasso, uma jovem grega com quem se corresponde por cartas, com os amigos chilenos
emigrados e com a turma do cursinho; a paixão por Tamara, que o troca por Guru, seu melhor
amigo; as apresentações artísticas de sua banda, Liberança, bem com a possibilidade de gravar
um disco, entre tantas outras experiências.
Para Coelho (2006), Pântano sob o sol, narrativa produzida pós período ditatorial, traça
um painel vivo dos sonhos, perplexidades e decepções que são inevitáveis aos jovens que estão
à procura de seus caminhos, além de revelar uma juventude aberta a “novos ventos”, com garra
para lutar por seus ideais.
Chama a atenção o enredo de Nos limites do sonho, livro que tem como subgênero
predominante a narrativa sentimental e foi publicado, em 1975, como romance adulto. Mesmo
que ele possa ser lido por um jovem adolescente, a matéria ali narrada não parece representar o
interesse temático do público juvenil, dado que não impede a sua circulação sob essa rubrica.
Trata-se, conforme já foi informado, da história de Donana, uma solitária e religiosa professora,
moradora de uma cidadezinha do interior de um estado não determinado. Por ter dedicado boa
parte de sua vida ao ensino de crianças residentes em diferentes áreas rurais, a protagonista
233
nunca chegou a se casar, até que aos 43 anos conhece o seu primeiro e único amor – Francisco
–, um vendedor ambulante de 50 anos. Às vésperas do matrimônio, ela recebe uma carta escrita
pelo futuro marido em que relata a impossibilidade de realização do casamento, uma vez que
já é casado. A partir de então, diante da frustração e do desejo sexual reprimido, Donana chega
à beira da loucura, vivenciando momentos de delírios. Entrelaçados ao conflito central, ligam-
se vários outros que são experienciados por diversas personagens de uma pacata cidade
interiorana.
No que diz respeito ao chamado do herói adolescente para o percurso de sua jornada,
geralmente, eles tendem a se originar dos problemas provenientes das crises de
amadurecimento, dos conflitos oriundos da tomada de consciência do mundo interior e exterior,
bem como da luta pela conquista de seu espaço nas relações interpessoais em várias direções.
Em Como é duro ser diferente!, por exemplo, a protagonista Layla é desafiada, no mundo
especial, a aprender a lidar com as diferenças e com as situações inesperadas impostas pela
vida, desafio que é vencido ao final de sua jornada, como se pode perceber pelo enredo dessa
obra.
Pertencente à classe média, Layla é uma adolescente de 16 anos, que se acha inferior a
seus colegas por causa de sua aparência: cabelos crespos, olhos sem cor definida, gordinha e
usa aparelho nos dentes, sentindo-se deslocada nos meios escolar e familiar: na escola por não
ser uma CNM, expressão que, de acordo com a protagonista, significa “cabe no meio”, pois não
possui o mesmo biótipo de maior parte dos alunos que lá estudam, e na família, por não
corresponder àquilo que, de seu ponto de vista, os pais esperam dela. Para a protagonista, o pai
é lindo e o considera um paizão; ele é piloto de avião e está sempre em viagem. Com a mãe, ao
contrário, Layla vivencia uma relação conflituosa, por considerá-la chata e muito autoritária.
Ao longo da narrativa, a heroína vai contando a história de cada um de seus amigos que,
assim como ela, são discriminados por não serem CNM: o Lúcio, por querer ser bailarino; a
Carol, por ser loira; o Pedro, por ser inteligente; a Tatiana, por ser mestiça; a Jéssica, por ser
pobre; o Reinaldo, por ser baixo; a Milena, por ser magra; o Bruno, por ser tímido, a Marina,
por ser disléxica. Layla também narra a sua paixão por Pedro, o jovem mais inteligente da
escola e tudo o que faz para conquistá-lo, inclusive começa a se corresponder com ele, via e-
mail, com o pseudônimo Garota Apaixonada.
Apesar dos conflitos vivenciados diariamente, sua vida está caminhando naturalmente,
quando recebe a notícia de que os pais pretendem se separar porque Rogério se apaixona por
outra; Layla entra em crise, pois jamais esperava que isso pudesse acontecer. A jovem então
passa a rejeitá-lo, vai para a casa da avó e fica por lá alguns dias. Aos poucos, vai aprendendo
234
a lidar com a situação, fica mais próxima de sua mãe. Na perspectiva da narradora-protagonista,
todo o sofrimento vivenciado, em especial o que se deu em decorrência da separação dos pais,
trouxe a ela amadurecimento.
Igualmente é preciso destacar que, ligada a questões interpessoais, a transposição do
herói do mundo comum para o mundo especial também pode estar atrelada a uma questão
social, é o caso do que ocorre em O portão do paraíso em que a menina Taís, que tinha uma
vida tranquila, passa a viver um pesadelo em decorrência de uma gravidez precoce que, de
acordo com seu próprio relato, deu-se em decorrência da falta de informação e de diálogo com
a mãe. Tudo começa com a chegada do primo Gelcimar, que sai do interior para trabalhar em
São Paulo, ficando instalado em sua casa. Ao ver o jovem que já tinha 20 anos, Taís sentiu
paixão à primeira vista, sentimento que também foi experimentado pelo rapaz; aos poucos os
dois se aproximam, e quando já está trabalhando, o primo leva a menina Taís para passear no
parque, comer pipoca e andar nos brinquedos. O primo trabalha à noite e passa as tardes com a
garota, encantados um com o outro, iniciam um namoro sem a família da garota saber.
Um dia, Gelcimar seduz a prima, que é uma garota bastante inocente, tem relações
sexuais com ela e a engravida. Como Taís não tem conhecimento algum sobre sexualidade,
embora vivesse insistindo para que a mãe conversasse com ela sobre o assunto, não tem noção
do que estaria acontecendo. Quando começou a passar mal na escola, a coordenadora Márcia
logo desconfiou e comunicou sua mãe, que ficou desconsolada com a situação, e o pai mais
ainda, começando até a beber para esquecer a grande vergonha que acometeu sua família.
Pressionado pelo tio para se casar, Gelcimar desaparece sem mesmo mandar notícias à sua
família no norte. Assustada com toda a situação, Taís fica perdida, pois não sabe como lidar
com a questão, pois a mãe não a orienta, conforme deveria.
O preconceito enfrentado na escola faz com que a heroína pare de estudar e também
perca as amizades de Cejane, Deolinda e Miracê, já que as mães das amigas passam a considerar
Taís uma má influência para suas filhas. Forçosamente, a jovem adolescente tem de aprender a
lidar com a nova situação até o dia do nascimento da filha. Nesse período, com a ajuda de dona
Márcia, a garota adquire grande conhecimento sobre ciclo menstrual e meios de evitar uma
gravidez indesejada. Sua filha Taísa nasce e, apesar de ainda ser muito nova, amadurece com a
situação, volta para a escola e fica na esperança de que um dia apareça em sua vida um príncipe
encantado que aceite, com amor e carinho, mãe e filha.
Assim, em geral, a introdução do herói no universo de sua jornada estará sempre atrelada
aos conflitos próprios do processo de amadurecimento e de compreensão do mundo interno e
externo. Do mesmo modo que foi levantado no corpus de narrativas de aventuras e narrativas
235
sociais, os heróis também são acompanhados de perto por outras personagens, que pode ser um
amigo, um membro da família ou algum profissional da instituição escolar, mesmo que em
alguns momentos essa ajuda seja recusada. Convém ainda notar que predomina o protagonista-
único na esfera das narrativas psicológicas, o que pode ocorrer em função do interesse desse
gênero pelo universo subjetivo do indivíduo. Em Quando chegar a sua vez e em A conquista
da vida os conflitos vivenciados pela família tem maior relevância do que os individuais; em O
blog da família as relações familiares também merecem destaque.
4.3.2 O espaço
A análise dos campos Espaço Macro e Espaço Micro aponta que, acompanhando a
tendência que se observa nas narrativas juvenis contemporâneas, nas narrativas psicológicas de
Giselda Laporta Nicolelis também predomina o espaço urbano, estando São Paulo explicitado
como espaço macro em 33% das narrativas. Na maior parte delas, o equivalente a 61%, o espaço
macro não está explicitado, porém as várias referências espalhadas pelos textos permitem
igualmente localizá-las em São Paulo, o espaço de origem da escritora. O espaço rural aparece
apenas em Macapacarana. Além dessa metrópole, Rio de Janeiro, Amazônia e Amapá também
são exemplos de espaços macros presentes na esfera das narrativas psicológicas.
Do mesmo modo que foi levantado no conjunto de narrativas sociais e de narrativas de
aventuras, não se observa grande preocupação com a caracterização do espaço nas narrativas
psicológicas. Via de regra, esse elemento formal tende a funcionar apenas como fator que
garante verossimilhança da matéria narrada, seguindo, portanto, uma tendência da literatura
universal, que tende a situar a ação vagamente num universo urbano, sem descrições
pormenorizadas desse elemento, seja do ponto de vista físico, seja do social, conforme salienta
Ceccantini (2000). Igualmente, nas narrativas em questão, são oferecidas ao leitor diferentes
referências espaciais contemporâneas, o que possibilita a pronta identificação com o ambiente
representado e com a realidade dos fatos narrados.
Apesar da neutralidade na caracterização do espaço, em especial das cidades onde são
ambientadas as ações, vez ou outra, nesta ou naquela narrativa, nota-se uma conotação negativa,
principalmente da cidade grande. A passagem que segue, extraída de Pântano sob o sol, ilustra
essa afirmação:
236
Nesta semana, a violência que anda solta pela cidade tocou a gente de perto,
aqui em casa. A coisa foi com o sobrinho de Helena, que passa os fins de
semana na casa da irmã dela que tem vários filhos. Sábado à noite, o Jaime,
de 14 anos, saiu para uma festinha nas vizinhanças, com dois amigos. Anda
todo mundo apavorado com os assaltos e crimes, mas como deixar de sair?
Vai todo mundo viver em casa, como num convento? (NICOLELIS, 1984, p.
53)
Mas eu tinha tanta pergunta presa na garganta: Por que saía aquele sangue de
mim?”; “Por que era coisa de mulher?”; Por que acontecia aquilo?”
A mãe nem deu confiança. Voltou pro tanque cheio de roupa. O sonho dela de
ter uma máquina de lavar roupa que nunca acontecia. (NICOLELIS, 1991, p.
14)
mesma idade de Igor. Mesmo que relutante no princípio da conversa, sua interlocutora fica boa
parte da noite ouvindo as confidências do jovem protagonista. Sobre as razões que levaram
Igor ao universo das drogas, desabafa:
Olha, eu não sou um cara mau, não sou marginal, só fiquei ligado nesse
negócio de drogas. Fiquei dependente, mas é tudo uma questão de cabeça,
entende? Se a minha cabeça andasse legal, não tinha chegado nisso.
Primeiro que eu me sentia muito sozinho, já falei isso, mas nunca é demais
repetir. Era uma solidão muito grande, como se eu estivesse perdido no
mundo. É gozado falar assim, porque sempre tive o Rogério e a Renata, mas
até parece que não tinha, uma sensação esquisita.
Acho que é porque eles não conversavam muito comigo, não tinha diálogo
aqui em casa. Gostaria que eles sentassem comigo e perguntassem: “Tudo
bem, filho? Tá tudo legal com você? Ou tá ruço? Pintou bobeira?”
(NICOLELIS, 1992, p. 32)
Na cantina, traçamos a maior e mais suculenta pizza que pode existir na face
da Terra. Mas o melhor foi que batemos altos papos regados a guaraná.
A Viviane conta que a revista está indo muito bem; ela foi elogiada pelo seu
trabalho e teve até o contrato renovado.
Fico contente com a notícia ... Vem em boa hora, porque a Viviane, admita ou
não, está de moral baixo. Quem não estaria, tendo sido trocada por uma mulher
com quase a metade de sua idade?
Voltamos bem alegres do jantar, e ainda ficamos ouvindo música até a hora
de dormir. Com a correria do trabalho dela e dos meus estudos, faz tempo que
a gente não sai em dupla, sem horário para voltar.
Vou dormir mais tranquila, tentando não pensar no meu pai. Até esqueço de
fazer o feitiço habitual do Pedro; lá na casa da vó também não fiz. Quando
lembro, já estou quase pegando no sono. Ainda penso: ‘Deixe pra lá, assim
ele sente a minha falta”.
No dia seguinte, logo cedo, dou de cara com o Pedro no corredor. Ele responde
ao meu cumprimento e pergunta, como sempre, se está tudo bem, mas parece
meio desligado.
De uma coisa eu tenho certeza: não vou dar moleza para homem nenhum, nem
mesmo para o Pedro. Vai saber se ele não vai me botar pra escanteio, no
futuro, como o Rogério fez com a Viviane?
Só espero que ela não marque bobeira e arrume também um garotão para
desfilar por aí. Ia ser gozação demais para minha cabeça...
Acho que cresci de repente. Sofrer amadurece a gente na marra. (NICOLELIS,
2005, p. 104)
Nessas narrativas, como também foi levantado nas narrativas sociais e em algumas
narrativas de aventuras, o quarto dos heróis ambientam ações em que se desencadeiam
momentos de reflexões, de isolamento social, de idealização de seus projetos de vida, bem como
abrigam seus segredos mais pessoais. Em algumas narrativas, a casa dos avós, a casa de praia,
o mar, também ambientam ações em que os heróis, isolados do meio social e familiar, voltam-
se para dentro de si na tentativa de compreender a si próprio, ao outro e ao mundo.
No que diz respeito à representação do ambiente escolar nas narrativas psicológicas, é
preciso dizer que aqui este espaço não é tão significativo como se verificou nas narrativas
sociais, nas quais os membros dessa instituição exercem papel de relevância na orientação e
condução de seus heróis. Aqui, nota-se duas direções no processo de figuração: nas narrativas
em que as famílias dos heróis possuem menos poder econômico, os representantes da instituição
escolar (professores, diretores e coordenadores pedagógicos) são mais atuantes, por conta disso,
fazem parte do grupo de personagens principais; nas narrativas em que os heróis jovens
pertencem à classe média, os representantes da escola, normalmente, desempenham papéis
secundários. Apenas para ilustrar essa afirmação, em O portão do paraíso, como a mãe da
menina Taís não tem condições de orientá-la, inclusive em razão de sua condição social, quem
cumpre esse papel é dona Márcia, a coordenadora pedagógica da escola onde a protagonista
240
estuda. Igualmente, em Sem medo de viver, a heroína Cris, que também é de origem pobre,
move um processo judicial de reconhecimento de paternidade contra Luís, um rico empresário
com quem sua mãe teve um caso extraconjugal que resultou em seu nascimento. Na esfera desse
processo, seu professor de biologia – Carlos – foi o seu principal orientador.
Nota-se que, na maior parte das narrativas psicológicas em que os heróis pertencem às
classes média ou alta, o espaço escolar funciona como um elemento que pode garantir a
identificação do leitor com os acontecimentos narrados. Tal como na realidade cotidiana, é
nesse espaço que o herói adolescente experimenta sentimentos diversos ligados a variadas
experiências interpessoais, em especial, as que se atrelam às relações amorosas e às de amizade,
como também às contradições advindas da relação com o adulto, do mesmo modo que seus
leitores potencialmente os experimentem no plano da realidade. Em Pântano sob o sol, por
exemplo, o herói e o amigo apaixonam-se pela mesma garota; é no ambiente escolar que Sérgio
Ricardo se dá conta disso, conforme comprova a passagem seguinte: “O Júnio, de longe, olha
calado, com ar de tristeza no rosto, será impressão? Será que o nosso guru está a fim da mina
também?” (NICOLELIS, 1984, p. 33).
Cabe notar que, nessas narrativas, em momento algum os heróis negam os valores e
ideologias defendidos pela escola, ao contrário, eles os reiteram em seus discursos em diversos
momentos. Todavia, nesta ou naquela narrativa, comentam, discutem e julgam determinadas
posturas de alguns representantes da instituição escolar, sobretudo, a de professores. Ilustra essa
afirmação mais uma vez um trecho do já citado livro Pântano sob o sol: “Agora a gente assiste
às aulas de mãos dadas, um barato. Venho pro cursinho como se entrasse no céu. Que se lixe o
professor de Física; ferre-se o bigodudo professor de Química. Venho para ver a Tamara, sentir
o cheiro bom que vem dela [...]” (NICOLELIS, 1984, p. 33). Já em Os guerreiros do tempo, a
família da jovem Bianca, portadora do vírus HIV, precisa brigar judicialmente pela
permanência da filha no colégio onde estuda, pois a diretora, com medo da reação dos demais
pais, pede a sua transferência. No entanto, sabendo do caso, a direção de uma outra escola a
convida para estudar lá, mas antes é feita uma reunião com pais, alunos e professores para tratar
do assunto. No dia, é realizada uma palestra com três infectologistas que se dispõem a esclarecer
as dúvidas a respeito do vírus HIV.
Significativo se faz apontar que, assim como foi constatado nas narrativas sociais e nas
narrativas de aventuras, os heróis moram predominantemente em casas; o apartamento aparece
em pouquíssimos enredos e, normalmente, são habitados pelos amigos ou parentes dos
protagonistas. No que se refere à figuração desses dois espaços nas narrativas do corpus, chama
a atenção o que ocorre em De sonhar também se vive, sobretudo ao que se refere à representação
241
simbólica do ambiente doméstico. A saber: Vitor é um garoto doente e sonhador que foi
abandonado na calçada quando ainda era um recém-nascido. Seu maior sonho é ter uma família,
com vários irmãos, sonho que é incentivado pela tia Rita, a funcionária do abrigo onde ele mora
e também por seus dois amigos imaginários: a voz e as letras do computador.
Um dia, por ocasião de sua participação em um concurso de redação na escola, ele
conhece Gilberto, um escritor, com quem desenvolve uma bonita amizade. Certa vez, o escritor
resolve adotá-lo. O herói então passa a morar em um apartamento onde leva uma vida tranquila
e harmônica, porém, para ele, a família ainda está incompleta. Daí que Vitor faz de tudo para
que seu pai adotivo encontre uma mãe para ele, até que um dia, Gilberto se apaixona por Luana,
a mãe de Maurício, o melhor amigo de Vitor. Para completar a alegria do menino, Luana tinha
três filhos e não demorou muito ela e Gilberto se casaram e se mudaram para uma grande casa,
com os quatro filhos, um cachorro e um gato.
No começo, tudo ia bem, mas, aos poucos, os problemas próprios de uma família
começaram a surgir e, depois de alguns conflitos, Gilberto e Vitor decidem dar uma chance
para os filhos de Luana e procuram trabalhar em prol de um ambiente harmônico. Tudo ia
caminhando bem, até que Luana engravida, o que desperta no menino diferentes sentimentos,
entre eles: ciúme, angústia e insegurança. Certo dia, ele ouve uma conversa entre os filhos de
Luana que o deixa muito abalado, levando-o a fugir de casa, mas Gilberto o encontra no abrigo
onde viveu boa parte de sua vida e consegue devolver ao menino a segurança de que ele precisa
para continuar a crescer de forma saudável.
Assim, enquanto as experiências que Vitor teve no apartamento onde morou com
Gilberto proporcionou a ele momentos de paz, aconchego e tranquilidade; as vivenciadas na
casa trouxeram a ele desequilíbrio emocional, o que forçou o seu amadurecimento frente à
compreensão das contradições intrínsecas às relações familiares.
Quanto à figuração dos espaços abertos nas narrativas psicológicas, verifica-se que eles
podem adquirir diferentes conotações, conforme o mote temático que dá origem à escritura do
texto literário. Em De sonhar também se vive, por exemplo, para o pequeno herói Vitor, que foi
abandonado ainda recém-nascido, em uma calçada, tendo, em razão disso, que viver boa parte
de sua infância em um abrigo, esse espaço aguça sentimento de tristeza e revolta. Daí que seu
maior sonho é ter uma família grande, com pai, mãe, irmãos e animais domésticos.
Em direção parecida, o espaço aberto do garimpo, onde o herói de Macapacarana passa
as férias escolares com o pai, acompanhado do amigo Tocha, também é representativo da
tomada de consciência e de amadurecimento. Isso, porque o jovem Gerson Luiz, de forma
abrupta, se muda de São Paulo para Macapá em função do trabalho do pai, deixando para trás
242
os amigos e a namorada, tendo que se adaptar a uma nova realidade. No garimpo, o protagonista
vive experiências marcantes junto aos trabalhadores do garimpo, o que permite que seu retorno
para a sua casa, em Macapá, encerre um ciclo de amadurecimento, permitindo a ele a abertura
para novas experiências de vida.
Em algumas narrativas, o espaço aberto pode adquirir uma conotação negativa, é o que
ocorre em Espelho maldito, na esfera de uma ação desenrolada com a personagem Carolina,
uma jovem pertencente à classe média alta e apelidada pelos amigos de Bárbie em razão de sua
beleza. Num dia de rodízio de carros para a sua mãe, ela teve de voltar da escola de ônibus,
situação que a expôs ao perigo, posto que dentro do transporte público a garota foi forçada por
um homem a descer do veículo e a segui-lo até um matagal, onde quase é estuprada se não fosse
pela chegada de Zeílton, que desconfiou da situação e os seguiu até o local do pretenso crime.
Em O amor não escolhe sexo, Marco Aurélio, o jovem protagonista, em busca de respostas para
as suas dúvidas que tem em relação à sua identidade de gênero, vivencia diversas
(des)aventuras, inclusive sofre um acidente de moto que o deixa hospitalizado por vários dias,
quando sai de casa nervoso, à noite, e sem rumo pelas ruas agitadas da cidade de São Paulo.
Ainda referente à representação simbólica do espaço aberto nas narrativas psicológicas,
em Quando chegar a sua vez, esse cenário tem uma conotação bastante saudosista, uma vez
que nessa obra é contada a história de um casal, Arnaldo e Beatriz, que depois de dois anos
presos e dez anos exiliados na França, voltam ao Brasil acompanhados das filhas Marussia e
Ljola. O reencontro com a família permite a Arnaldo matar as saudades da jabuticabeira no
quintal, da casa, que pouco tinha sofrido modificações, da comida brasileira, especialmente, do
gosto dos pratos preparados por Pia, uma funcionária doméstica. Ao mesmo tempo, as histórias
narradas por Luís, seu pai, e pela avó Maria Luíza faz com que Beatriz e as filhas conheçam
um pouco mais a história da família de Arnaldo, em especial, a da bisavó italiana Paula, mulher
que teve a coragem de escolher o próprio marido num momento em que a figura feminina não
tinha voz. O fragmento apresentado abaixo descreve o momento do reencontro de Arnaldo com
o ambiente doméstico deixado para trás em função do exílio:
– Ah, minha velha casa! – Arnaldo correu pelo quintal como um garoto de
doze anos. – Vem, Marussia, vem Ljola! – As garotas correram atrás do pai.
O casarão, num dos antigos bairros de São Paulo, permanecia impávido,
rodeado de apartamentos e lojas comerciais. Imenso quintal com árvores
frutíferas, e a velha jabuticabeira – sorriu. Puro milagre!
Arnaldo subiu pelo tronco, arfante, desacostumado ao exercício. Parou no
meio, enquanto, embaixo, a família ria:
243
Cabe ainda lembrar que, diferentemente do que foi levantado no corpus das narrativas
de aventuras e das narrativas sociais, aqui as clínicas médicas, os laboratórios, os hospitais, os
ambulatórios também são espaços que possuem uma conotação positiva na esfera das matérias
narradas. Mesmo que alguns heróis recusem a ajuda oferecida por profissionais desse espaço,
comumente, é ali que eles encontram consolo, conforto, segurança e orientação, sobretudo,
quando os conflitos vivenciados estão atrelados à saúde. Em Os guerreiros do tempo, no
processo de enfrentamento do vírus HIV, as orientações e o apoio dados pelo médico
infectologista, dr. Saulo, foram cruciais para a heroína Bianca e para a sua família. Da mesma
maneira, a enfermeira Rita de Cássia foi a única que conseguiu convencer Anuska, uma das
protagonistas de Espelho maldito, de que estava sofrendo do distúrbio alimentar anorexia e que
necessitava de tratamento adequado. Embora seus familiares, amigos e até Michel, por quem
Anuska era apaixonada, tivessem tentado convencê-la disso, nenhum deles havia conseguido
até então.
Destarte, como também ficou evidenciado no corpus das narrativas de aventuras e das
narrativas sociais, a seleção dos ambientes, no plano literário, atrela-se aos motes temáticos que
motivaram a produção do texto literário. Contudo, eles não deixam de ser representativos da
visão de mundo que está materializada na tessitura de cada uma das narrativas analisadas.
4.3.3 O tempo
Da mesma maneira que foi levantado no corpus das narrativas de aventuras e das
narrativas sociais, na manipulação do tempo, há elementos que aproximam as narrativas
psicológicas de Nicolelis da literatura tradicional destinada ao público infantojuvenil, como
também evidenciam matizes que beiram os textos literários juvenis contemporâneos. Em geral,
são recorrentes algumas características, entre elas: o emprego do tempo para garantir a realidade
da história; a localização das ações em tempo contemporâneo ao período histórico em que a
obra foi publicada; a presença da linearidade e as variadas elipses temporais na sequência das
ações narradas. Nessa mesma direção, como foi verificado no trabalho com a manipulação
244
desse elemento formal nas narrativas sociais, aqui a duração da ação narrativa também é
bastante diversa. Para exemplificar, em Pássaro contra a vidraça, o essencial da matéria
narrada dura cerca de horas, em tempo correspondente a uma longa conversa ao telefone, e há
as que duram mais de 30 anos, conforme se verifica em A conquista da vida e em O preço do
sucesso. Nos livros em que a ação dura muito tempo, ocorrem várias elipses temporais.
Igualmente se faz necessário informar que, nas narrativas psicológicas, Nicolelis
também lança mão do “desenraizamento temporal”, traço que, segundo Ceccantini (2000),
revela uma tendência da narrativa juvenil de representar o tempo de modo vago e fragmentário.
Nesse sentido, embora o tempo histórico das narrativas psicológicas sejam facilmente
identificáveis como contemporâneas ao momento em que foram publicadas, em razão das
diversas referências que vazam na tessitura das obras, muito raramente esse tempo está
determinado.
Quanto à exploração dos tempos cronológico e psicológico, na ordenação da matéria
narrada, verifica-se que a ação segue a ordenação temporal cronológica, no entanto, em relação
às narrativas de aventuras e narrativas sociais, aqui o tempo psicológico é explorado com maior
recorrência, o que se justifica em virtude do interesse pela análise psicológica do indivíduo.
Nas narrativas em que o narrador se situa fora da história, o tempo psicológico vem à luz,
sobretudo, pela escavação do universo interno das personagens, o que, comumente, ocorre pelo
emprego do discurso indireto livre, em geral, quando se utiliza flashbacks e divagações. Já nas
histórias contadas pelo narrador-protagonista, isso ocorre a partir do monólogo interior. Em
Nos limites do sonho, Nicolelis consegue desenvolver um bom trabalho com a manipulação do
tempo, no último capítulo, por exemplo, denominado “A sementeira”, o leitor vai acompanhar
o fluxo de consciência de Donana, onde se revela um misto de sentimentos negativos, incluindo
a dor e a decepção, que vêm à luz depois que a protagonista é iludida com a promessa de um
casamento que nunca se realizou. Dominada pelo desejo de que tudo tenha sido um sonho, em
gesto que beira à loucura, no dia do casamento, Donana põe o vestido de casamento, segue para
a igreja e lá se perde entre os limites do sonho, imaginação e realidade.
É preciso afiançar que mesmo que não tenha sido observada grande preocupação
estética na representação literária do tempo, nesta ou naquela narrativa, é possível identificar
traços que fogem do desenho que é predominante no corpus. No livro O tigre na caverna, por
exemplo, estão presentes dois tempos históricos: um atual, em que avó e neta dialogam sobre
as lembranças familiares, sob a mediação de um narrador situado fora da história; outro, em
que os acontecimentos são rememorados pela própria narradora-protagonista. Na obra em
questão, predomina o tempo psicológico, posto que os fatos rememorados acompanham o fluir
245
Ao saber do caso, os avós também entraram na justiça com uma ação conta a
clínica, porque o primeiro exame para comprovar a paternidade do artista foi
realizado na mesma clínica onde Priscila e os gêmeos também tinham se
submetido ao exame de DNA pela primeira vez.
246
Sara, definitivamente conosco. Tão apegada à neta que não faz mais sentido
deixar a casa. E com ela o Menino, o amigo brincalhão embaralhando nas
pernas da velha Tina, que reclama: – Este cachorro me deixa louca!
André na sua noite de formatura da Faculdade de Medicina. Na plateia a
família toda, unida, batendo palmas. O olhar brilhante de Mahara
contemplando o irmão tão amado, o abraço apertado no fim da festa: – Vem
cá, minha bonequinha!
Que foi que mudou? Alexia sempre firme, velha árvore em que nos
amparamos todos, recuperando as energias. Niedja e a escola, um porto amigo.
E dra. Lúcia ainda acompanhando Mahara, como se ela não fosse agora uma
moça e sim a tenra criança que levamos ao seu consultório, desesperados e
aflitos.
Tiago cursando a Faculdade de Direito. Como André, é bom aluno, aplicado
aos estudos. Os dois nunca nos deram trabalho, praticamente caminharam
sozinhos durante esses anos em que tivemos uma dedicação quase exclusiva
em relação à Mahara. Mas eles entendem isso, que a irmã precisa mais dos
pais, desse amor em tempo integral, da devoção que não se esgota no dia-a-
dia, mas antes se renova, como as estações do ano. (NICOLELIS, 1989, p. 59-
60)
E ainda:
O tempo passou rápido, penso... Rápido demais. Seria mais fácil se ela ainda
fosse minha meninazinha de tranças que eu levantava para o alto para fazê-la
rir. Mas não devo ser egoísta. Mahara cresceu como crescem as plantas e as
aves, embora sua mente tenha ido bem mais devagar, prisioneira numa torre
de marfim...
Ela conseguiu tantas coisas, meu Deus, como ela lutou nesses anos todos! Da
frágil boneca que mal conseguia ficar em pé, não falava e recebia toda a
comida na boca, agora mesmo sozinha sobreviveria, pois no seu universo
familiar ela tudo controla, com segurança e dignidade.
Só sei que a amo e jamais pude imaginar que a amaria dessa forma: não o
amor glorioso dos primeiros dias ou meses, de jactâncias fáceis e sonhos
gratuitos, porém um amor maduro e humilde que me tem mantido durante
esses anos em que a vi crescer e lutar enquanto crescia... Tentando entender
as razões ocultas que movem o destino. De alguma forma ela estava destinada
a nós, para que também crescêssemos com sua presença, aceitando-a como é
e, em decorrência, aceitando o dom da vida!
Na verdade, eu gostaria de ser um rio... Ancestral, correndo livre por terras
distantes... E como um rio eu veria muitas coisas e imaginaria outras e teria
talvez as respostas para minha sofrida perguntas... Porque, a minha espera,
haveria – com certeza – o profundo mar azul: os olhos de Mahara.
(NICOLELIS, 1989, p. 71)
Por fim, resta observar que, igualmente ao que foi constatado na configuração das
narrativas sociais e de aventuras, nas narrativas psicológicas, o mundo comum e o mundo
especial se entrelaçam, numa jornada em que as provações e desafios impostos aos heróis
desestabilizam sua tranquilidade do inicial. Agora, o tempo é um elemento crucial no processo
de amadurecimento dos heróis nicolelianos.
que agora há uma exploração maior do modo como o protagonista lida com a questão a ele
imposta no enredo, numa perspectiva mais subjetiva, daí que aqui se note uma maior exploração
do tempo psicológico. Em linhas gerais, reiterando o que já foi afiançado, em todas as
narrativas, o leitor vai acompanhar o processo de amadurecimento do herói nicoleliano em meio
a relações interpessoais coercitivas e paradoxais vivenciadas não apenas com o adulto, mas
igualmente com seus pares.
Desconsiderando as repetições, no conjunto das 18 narrativas do corpus, observou-se
mais de 580 temas complementares e 37 temas centrais, uma quantidade bem menor do que foi
identificado no corpus das narrativas sociais, no qual foi identificado mais de 700 temas. Vale
lembrar que foram analisados 16 livros filiados a esse gênero. Macapacarana e Nos limites do
sonho são os livros em que se verifica o menor número de temas complementares, por volta de
20 em cada um, já O blog da família, narrativa em que Pirata, o jovem protagonista diariamente
oferece a seus leitores internautas aulas sobre variados assuntos, é a que mais possui temas
complementares em sua tessitura; no total 62 temas foram levantados.
Normalmente, nas narrativas psicológicas aparecem mais de um tema central e, tal como
foi levantado na configuração das narrativas sociais, muitos motes temáticos são explicitados
ao leitor na seção destinada à autora nas últimas páginas das obras estudadas. Essa configuração
pode ser constatada nas histórias de cunho psicológico que possuem as narrativas sociais como
segundo gênero predominante, normalmente, elas se filiam ao subgênero narrativa crônica
urbana. Nessa seção, a autora tende a defender uma tese sobre o tema em questão, inclusive
aponta caminhos para o seu enfrentamento; sua visão de mundo, com maior ou menor
intensidade, aparece transfigurada na tessitura da obra ficcional. Exemplifica essa afirmação o
conjunto de observações que podem ser feitas com base na configuração textual de Espelho
maldito. Na seção dedicada à autora, Nicolelis escreve sobre as razões que a levaram a escrever
o livro, como se constata abaixo:
Escrevi este livro por vários motivos. Um deles talvez seja a fartura de dietas
para emagrecimento estampadas nas revistas, incluindo até – o que achei
extraordinário – “palmilhas emagrecedoras”! Outro motivo é discutir a
síndrome que “ataca!” garotas adolescentes: a maioria quer ser modelo ou
artista, ou ambos. Outras, mesmo sem essa pretensão, também correm atrás
do mesmo objetivo: “precisam ser magras”. Colocaram na cabeça que “ser
magra” corresponde a ser bonita, ter sucesso, dinheiro, amor, felicidade. E
“ser gorda” – ai, meu Deus! – exatamente o contrário: ser feia, desconhecida,
humilhada, pobre, infeliz. Enfim, uma desgraça.
250
Motivadas por esse ideal de beleza que querem obter a qualquer custo, ainda
que o biótipo de cada uma seja diferente – digo cada uma, porque a incidência
entre mulheres é muito maior que entre homens, apesar de existir também
entre eles –, as garotas entram em regime cada vez mais cedo na vida, às vezes
até com dez anos! Sem perceber, esse regime sai de controle e transforma-se
em anorexia – quando pessoas se recusam a comer – ou enveredam pela
bulimia – quando a pessoa come e depois vomita o que comeu –, ambas
doenças graves, que podem levar inclusive à morte, por desnutrição, parada
cardíaca etc.
Por coincidência, assim que terminei este livro, encontrei uma de minhas
personagens – a Anuska – num colégio. Fizemos um trato: se procurasse
ajuda, eu dedicaria o livro a ela.
Espero sinceramente que você, Juliana, e tantas outras criem coragem e sejam
muito poderosas e felizes, assumindo o seu próprio corpo, ele é aliado, não
um inimigo. Cada pessoa é única e tem o direito de ser feliz, independente de
peso, altura, tamanho do nariz, cor de pele, opção sexual, religião, etnia.
Um mundo onde todos fossem iguais seria um grande tédio, não é mesmo?
Benditas sejam as diferenças! (NICOLELIS, 2002, p. 111, grifo da autora)
jovem adolescente adquire a consciência de que está sofrendo do distúrbio alimentar anorexia.
Com o apoio da família, dos médicos e de Michel, seu pretenso namorado, Anuska aceita a sua
condição de doente e aos poucos vai se recuperando. Francine, ao contrário, não se convence de
que está doente e continua com as mesmas atitudes. Resultado: consegue emagrecer e conquista
o papel principal no espetáculo de balé, porém, no dia da apresentação artística, que ocorre no
último capítulo, a jovem desmaia no palco, indo mais uma vez parar no pronto-socorro, desta vez
o leitor fica sem saber o destino de Francine, mas o narrador faz a ele a seguinte pergunta:
“‘Como alguém se permite chegar a esse ponto?’ Na cabeça de cada um baila, como borboleta
sôfrega de luz, a pergunta inevitável...” (NICOLELIS, 2002, p. 109).
Assim, o enredo sinaliza, mais especificamente no comportamento de Anuska e
Francine, duas posturas dicotômicas no modo de encarar o problema discutido na trama narrativa:
uma positiva e outra negativa. Cabe afiançar ainda que Nicolelis, tal como foi prometido, dedica
o livro a Juliana, a estudante que, segunda a autora, também sofre de anorexia. Assim ela escreve:
“Para Juliana, que seja feliz, aceitando o seu corpo.”
Significativo se faz mencionar que essa configuração em que a autora defende uma tese
na tessitura do texto literário de forma declaradamente pedagógica, cujo ponto de vista defendido
está explicitado nos registros de seus narradores, como também no comportamento de suas
personagens, é menos recorrente no conjunto das narrativas psicológicas e de aventuras do que
no das narrativas sociais. No caso das narrativas psicológicas, isso pode ocorrer, em particular,
em função de esse gênero estar mais voltado para a introspecção do que para a composição de
um determinado cenário social. Isso não quer dizer, entretanto, que tal traço não possa ser
verificado no corpus. Em O portão do paraíso, Os guerreiros do tempo, A conquista da vida e
em O amor não tem sexo, por exemplo, é possível identificar páginas e páginas em que são
oferecidas ao leitor muitas informações científicas sobre as temáticas centrais nelas defendidas,
sendo elas: gravidez na adolescência, aids, fertilização in vitro e homossexualidade,
respectivamente. Vale lembrar que tais informações são fruto do intenso trabalho de pesquisa
que, segundo a própria autora, é realizado por ela quando está diante de algum tema desafiador.
Na quarta narrativa supracitada, por exemplo, seu trabalho de escavação sobre o tema é
materializado na ação do protagonista. De acordo com o narrador onisciente, na busca pela
descoberta de sua verdadeira identidade sexual, Marco Aurélio realiza também um amplo
processo investigativo, como se pode ler no fragmento abaixo:
252
Aflito, lê, vira páginas e mais páginas, confronta livros. Quer ter uma idéia,
ainda que genérica, sobre o assunto. Descobre que há teorias que apontam para
causas orgânicas: hormonais, neurológicas ou genéticas. Ele até dramatiza a
coisa para entender melhor, tendo em vista que as experiências a respeito
foram feitas com ratos em laboratório. Causa hormonal: de repente faz de
conta que é um feto macho, entre o quarto e o sétimo mês de gestação, dentro
do útero materno. Esse feto, “provavelmente por fadiga materna ou drogas”,
sofre uma deficiência do hormônio andrógeno (testosterona), o que ocasiona
uma falta de organização de áreas do hipotálamo, as quais, por sua vez, irão
determinar o seu comportamento masculino na idade adulta. Isso significa que
a falta desse hormônio o levará talvez a um comportamento feminino.
(NICOLELIS, 1997, p. 79)
narrativas premiadas analisadas por Ceccantini (2000). Ligados a esses temas, ecoam outros
que estão diretamente ligados a essa fase da vida, os quais refletem as relações contraditórias
com os pares e com os adultos, a saber: conquistas e desilusões amorosas, preconceito, amizade,
o primeiro amor, a separação dos pais, a nova configuração do namoro na sociedade atual,
projetos de vida, projetos profissionais, escola, vestibular, conflitos familiares diversos, falta de
diálogo entre pais e filhos, maldade infantil, bulliyng, sexo, a busca pela liberdade, preocupação
com a aparência. Sentimentos como medo, angústia, solidão, ciúme, insegurança, saudade,
sofrimento, dúvida, do mesmo modo, são bastante recorrentes no corpus.
Dos mais de 580 temas complementares levantados, oitenta e dois deles aparecem, no
mínimo, em dos livros, alguns deles podem ser identificados em até oito narrativas. A título de
ilustração, os temas confiança, doenças sexualmente transmissíveis, machismo, medo, morte,
solidão e tempo, podem ser vislumbrados em quatro narrativas; curiosidade, metalinguagem,
saudades e sexo seguro, em cinco; amizade, ciúme e namoro, em seis; preconceito e sonho, em
oito; o tema amor, em suas várias modalidades, ecoa em 13 livros. Verificou-se que a maior
parte dos temas levantados aparece uma única vez no conjunto do corpus. Abolição dos
escravos, abandono de criança e de mulheres grávidas, acne, alcoolismo, alienação, ambição,
arrependimento, arte, a aula de biologia, autenticidade, autoestima, cães terapeutas, celibato,
clonagem, concepção de felicidade, dificuldade para arrumar emprego depois dos 40 anos, são
alguns dos temas que são abordados em uma única narrativa.
Comumente, os temas complementares que aparecem em único livro são
desdobramentos da temática central. A título de exemplificação, em Nos limites do sonho foi
levantado como temas centrais a frustração amorosa e valores morais de cidades interioranas.
Atrelados a estes, emergem alguns temas que são discutidos apenas nessa narrativa, estando
entre eles, o modo de vida de moradores de cidades do interior; a dura realidade enfrentada
pelos professores para exercer o magistério em cidades do interior no início do século XX;
castidade X luxúria; religiosidade; celibato; comportamento subversivo de padres; desejo de ser
mãe; parto caseiro; a realidade de vendedores ambulantes.
Na esfera unicamente dos temas centrais, como já foi sinalizado, a busca da identidade,
o processo de amadurecimento e outros que se atrelam às relações com os pares (amizade,
relações amorosas) e adultos são preponderantes, daí que a maioria das narrativas psicológicas
do corpus estejam filiadas ao subgênero narrativa de formação. Em algumas obras, nota-se que
os temas centrais abordam problemas sociais contemporâneos de origem diversas, estando entre
eles: drogas, aids, criança abandonada, negação de paternidade, homofobia, gravidez na
adolescência, a ausência dos pais, a nova configuração familiar no contexto da modernidade,
254
abandono de idosos em asilos. Há aquelas em que a autora discute questões mais específicas,
ligadas, aparentemente, a uma discussão em voga no momento em que a obra foi escrita, como
é o caso dos temas altas habilidades, esoterismo, inseminação artificial, a criança com
deficiência intelectual e sua relação com a família e a sociedade, distúrbios alimentares: bulimia
e anorexia. Ecoam ainda no âmbito de temas centrais, nas narrativas psicológicas, aqueles que
estão ligados a valores éticos, individuais e comportamentais universais, tais como: idealismo,
a busca pela liberdade, sonhos/projeto de vida, respeito às diferenças individuais, resistência,
preservação da memória e reminiscências familiares. Por fim, é preciso dizer que algumas
narrativas colocam em pauta temas bem diversos, como as consequências das escolhas feitas
ao longo da vida, amor proibido, a liberdade com responsabilidade, o processo de resistência,
as mudanças, o modo de vida das cidades do interior e saudades.
No que diz respeito ao papel assumido pelos mentores e aliados na jornada do herói das
narrativas psicológicas, observa-se algumas variações em relação ao que foi levantado no
corpus das narrativas de aventuras e das narrativas sociais. A principal delas é que embora aqui
os heróis também contem com a ajuda do adulto no processo de enfrentamento dos inimigos e
das provas a eles impostas, a recusa da ajuda não é mais sinônimo de “castigos”, ou seja, isso
não resulta necessariamente no fracasso do herói de modo que seja necessária a retomada das
orientações dos mentores para que o protagonista conquiste a felicidade e tenha sucesso. A
representação que mais se aproxima desse modelo punitivo é o caso de Francine, que sofre as
consequências por ter ignorado os conselhos dados pela amiga Anuska, pela mãe Débora e pela
médica Alana. Todavia, o final aberto deixado na narrativa é muito mais um convite para
reflexão do que uma sentença, fica a questão para o leitor: teria valido a pena tanto sacrifício,
uma vez que tendo conseguido realizar o seu sonho, Francine não conseguiu dele usufruir?
Em muitas narrativas ocorrem situações semelhantes a que acontece com Sérgio
Ricardo, herói de Pântano sob o sol, que sofre pressão do avô Yamamoto para seguir a sua
profissão de engenheiro civil quando a verdadeira paixão do jovem é a música. Nesse caso, o
jovem não hesitou e, escondido do avô e com o apoio da avó Sofia, investiu em seus ideais.
Isso, no entanto, não eximiu o herói do enfrentamento da questão, como se constata na
passagem que segue:
Às seis da tarde, pintei eu, o campeão! Moído, estourado, derretido! Nem bem
adentrei o recinto do lar, me cercaram como charretes:
– Como foi, tudo bem, respondeu tudo certo, passou mal, deu dor de barriga,
comeu o chocolate, desmaio, tava calor, foi ao banheiro, colou?
255
– SILÊNCIO!
Silêncio total. O herói (sir Lancelot em pessoa) desaba no sofá. Vem a mãe
biológica com bolo e cafezinho para levantar as forças combalidas, a mãe de
plantão me enxuga a testa, a Marina me tira os sapatos e até o velho diz
sorridente (ele sabe sorrir).
– Calma, meu filho, você tem chance. Trouxe os gabaritos?
Voz da razão, Saquei que era a hora exata de dizer a verdade para ele. Gozado
isso, quando a gente sente que é a hora. Olhei bem pro velho, – me sentido
sobre uma bomba-relógio prestes a explodir, enquanto um bando de piranhas
me espera lá embaixo: Vem que tem! – e falei:
– Olha, velho, eu fui muito bem...
– Sabia, você entra fácil em Engenharia Civil...
– Só que eu não vou entrar.
– Como não vai entrar? Você acabou de dizer que...
– Fui muito bem e trouxe os gabaritos aqui pra conferir.
– Então que conversa boba é essa?
– Não é conversa boba. Eu não vou entrar simplesmente porque não pus, em
primeira opção, Engenharia Civil. Eu pus Música.
O velho caiu sentado no sofá, branco. Ele que é puro amarelo. Pensei até que
fosse dar um troço nele. Ficou me olhando, uns bons segundos, em silêncio.
Aliás o silêncio foi geral. A gente podia até ouvir uma mosca voando. Aí ele
falou:
– Sacanagem tua, Sérgio Ricardo. Isso não se faz...
– Sacanagem mesmo, – concordei, ainda sentado na bomba-relógio, enquanto
as piranhas cantavam alegrinhas: Vem, vem, vem, ainda tem...! – A gente só
faz dessas quando não tem outro jeito, né? Foi culpa sua mesmo, eu não quero
ser engenheiro, eu quero ser músico!
A Marina fechou a boca que ela tinha aberto, só pra dizer:
– Puxa, mano, que coragem!
Santa Marina. O velho olhou para ela, olhou pra mim, continuou pensando.
Ele que se achava tão dono da verdade, pô, o senhor da verdade absoluta, era
capaz de encontrar Deus no caminho e dizer: “O Senhor está errado, eu é que
sei o que está certo...” Pois o velho parou pra pensar e depois disse:
– Saiam, por favor, eu e o Sérgio Ricardo vamos ter uma conversa de homem
para homem...
Meu estômago subiu pra boca, pensei: “Saio da bomba e caio na dentuça das
piranhas, bela coisa. Não vai sobrar nem ossinho pra lulu escovar os dentes.
Devagar tchurma, trinca de mintchura, tá?”
A piranhada só de tocaia: Tchatchatchatchatcha...
A turma foi saindo de fininho e a Helena ainda me olhou da copa como se
dissesse: “Güenta aí, negão!” Fácil né? Com o velho ali na frente, aquela
cara com olho miudinho dele e a certeza de que é ele quem manda em tudo, o
rei coroado da taba paulistana.
– Existe alguma chance de você pegar Engenharia Civil?
– Coloquei em segunda opção, mas é muito difícil. Foi só pra fazer média –
respondi, olhando bem nos olhos dele.
– Tudo bem – ele retribuiu o olhar e eu até gelei, – você quis assim e assim
vai ser. Pode ser até que eu estivesse errado em insistir na Engenharia Civil
(uau, ele disse errado!) quando você deseja tanto a Música. Tudo bem. Entra
na Faculdade de Música, e vai ser músico. A vida é tua, meu filho. Agora,
você vai ter de decidir, se quer ser músico pra valer, ou se vai ser um
vagabundo se dizendo músico, pois há muita diferença...
Minha Nossa Senhora Aparecida, o velho tem sensibilidade! Enrustida, mas
tem. Olhei bem pra cara dele e disse:
256
São diversas as relações estabelecidas entre o herói, seus aliados e mentores, o que fica
mais evidente no corpus de narrativas psicológicas é que, mesmo recebendo o apoio deste ou
daquele aliado, a tomada de decisão está, predominantemente, nas mãos do próprio herói. Nesse
sentido, os pares (amigos e namorados/namoradas) e adultos (pais, professores, avós, tios)
desempenham muito mais o papel de aliados do que de mentores. Em Pássaro contra a vidraça,
a título de ilustração, Igor, o protagonista, para tentar lidar com o seu drama existencial conta
com o apoio de Juliana. No entanto, o papel desta é muito mais de ouvinte do que de alguém
que aponta soluções a serem seguidas. Das 77 páginas em que a história é textualizada, o
diálogo entre ambos acontece em aproximadamente 13 páginas, nas demais, o único que fala é
Igor. Ao final, a interlocutora põe nas mãos do herói a responsabilidade de mudar ou não de
vida. O diálogo que segue ilustra essa constatação.
– É... às vezes eu penso nisso... Ser livre desse pesadelo deve ser legal. Não
ter medo que todo mundo descubra, de ir preso por ser mula, a vergonha dos
coroas... tudo no jornal... Puxa, deve ser bom viver desse jeito.
– Pois tente, cara, tente... Ainda é tempo, saia do beco, encare a luz! Pode ser
duro no começo, mas depois... vai valer a pena... Sabe o que disse um grande
poeta? “Nesta vida morrer não é difícil. O difícil é a vida e seu ofício...”
– Essa, agora. Você vem com poesia, corta essa, Juliana... O máximo que
posso prometer é que vou pensar no assunto, tá bom? Você foi legal e eu
agradeço, eu vou pensar no assunto.
– Vai pensar mesmo, tem certeza?
– Vou, vou pensar em tudo o que você me disse e no que está acontecendo
com minha vida... Mas não sei se vou ter toda essa garra que você falou, não...
– É a tua vida, cara, só você pode decidir. O futuro tá te esperando... Vai
depender só de você... ser um vencedor ou ser um candidato à overdose...
(NICOLELIS, 1992, p. 73-74, grifo da autora)
Em alguns casos, o herói nem chega a compartilhar seus problemas com alguém, a
solução advém de suas próprias experiências, muitas vezes, fruto do acaso, como também
257
acontece com Sérgio Ricardo, o herói de Pântano sob o sol, que em certo momento de sua vida,
sem que a família soubesse, chegou a ser dependente de drogas:
Foi então que não quis. Foi um troço até engraçado, aquilo. Acordei de
madrugada, uma vontade louca de puxar fumo, e eu não tinha nenhum, nem
fino, quanto mais grosso. Fui beber água, o estômago embrulhou, corri a
vomitar no lavabo. Foi aí, enquanto me debulhava todo, no silêncio da
madrugada, que comecei a pensar no que estava fazendo da minha vida. E
nem era só erva, tinha também aqueles comprimidos que a turma conseguia
com farmacêutico sacana, ou então com marginal que roubava farmácia,
depois revendia a peso de ouro pra meninada trincar de pedra. Eu ia bem! Ia
fazer o quê com a minha vida? Porra!
Então a vitrola tocou no vizinho, altíssima, um blue americano, daqueles que
entram fundo na gente; e a música foi entrando no meus ouvidos e eu pensei:
Sai dessa, cara, acha uma motivação de vida, se engaja na música, mostra para
o velho de que você é capaz de alguma coisa, melhor que ser office-boy de
luxo no escritório dele... (NICOLELIS, 1984, p. 25)
Em alguns casos, ainda que o herói procure ajuda, nem sempre ele a encontra, como se
verifica em O portão do paraíso, em que apesar da insistência de Taís, sua mãe, reproduzindo
a postura de sua progenitora, não oferece o apoio de que a jovem adolescente necessita, o que
resulta na gravidez precoce da adolescente:
– Mas a vida da gente não é faz de conta, né, vó? Aa vida da gente é todo dia.
A gente precisa saber a verdade sobre o nosso corpo, o que pode acontecer
com ele, não é?
– Isso mesmo, Taís, você está certa. – A vó me olhou bem de frente. – Nossa,
minha neta, você sabe das coisas mais que eu! (NICOLELIS, 1991, p. 50-51)
herói aceita suas orientações, em outros, elas são recusadas totalmente. Seja como for, é sempre
no seio da família que vai acontecer a intermediação entre o adolescente e a realidade,
confirmando a sua função de aliada na jornada do herói adolescente. O grande problema é que,
conforme já foi levantado no corpus das narrativas de aventura e das narrativas sociais, essa
intermediação é feita predominantemente por meio de procedimentos narrativos que
materializam a visão adultocêntrica que perpassa a literatura infantil e juvenil desde as suas
origens europeias, dificuldade que, segundo Colomer (2017), já foi superada por diferentes
escritores contemporâneos que se dedicam à escrita de narrativas infantis e juvenis de vertente
psicológica.
4.4.2 A linguagem
A análise do campo Linguagem apontou que, em comparação com o que foi levantado
nas narrativas sociais, nas narrativas psicológicas, Nicolelis consegue desenvolver um trabalho
melhor com a representação literária da linguagem. Isso porque, em vários livros, a escritora
lança mão de uma linguagem de cunho mais poético, observada, em especial, no fluxo de
consciência e nos demais momentos de divagações, conduzidos pelo narrador-protagonista ou
pelo narrador onisciente. Em outros momentos, a autora procura apresentar algumas marcas
linguísticas e recursos de estilo que visam dar um tom mais coloquial à linguagem, em especial
a do jovem, público com quem ela pretende dialogar. Em linhas gerais, nas narrativas Nos
limites do sonho, Pântano sob o sol, O preço do sucesso, Sempre haverá um amanhã, De sonhar
também se vive e O tigre na caverna, apesar de algumas ressalvas a serem feitas, a escritora
obtém mais sucesso no trabalho com a manipulação artística da linguagem.
Em De sonhar também se vive, o narrador onisciente vai acompanhando a jornada do
pequeno herói Vitor, revelando ao leitor, a conta gotas e com simpatia, o universo interno do
menino que sonha em ser amado e em ter uma família, como se verifica na passagem abaixo:
Logo que Vitor foi levado ao abrigo, um pássaro ou o vento largou uma
semente no pátio. A semente vingou, as raízes se entranharam na terra e
nasceu uma árvore que crescendo junto com o menino...
Vitor gostava de sentar embaixo dessa árvore; sentia-se protegido ali, talvez
porque suas origens fossem semelhantes: ele, encontrado numa caixa de
papelão; ela nascida de uma semente largada por acaso na terra úmida.
260
E ainda:
Vitor iria à escola junto com esses garotos. Xi, aí a coisa pegava, porque ele
não queria sair da escola onde a professora contava aquelas histórias lindas.
Mas no sonho a gente sempre dá um jeito, né, não? Podia pedir ao pai que
construísse a casa deles no mesmo bairro da escola em que ele estudava. Daí,
também ficaria perto do abrigo e de vez em quando poderia visitar os amigos
que havia deixado lá, principalmente a tia Rita, tão carinhosa.
Perfeito! (NICOLELIS, 2010, p. 19)
Nesses termos, ainda que seja possível fazer tais apontamentos positivos nos livros
supracitados, a análise sistematizada dos elementos da grade evidenciou que, em geral, o
trabalho com a manipulação da linguagem fica comprometido, sobretudo, nas narrativas
psicológicas em cuja tessitura ecoa, como segunda categoria, o gênero narrativa social,
subdividido no subgênero narrativa de crônica urbana. Nesse caso, conforme já ficou evidente,
a necessidade da autora em oferecer informações técnicas e científicas sobre o tema social
desenvolvido na obra, unicamente para contribuir com a tese ali defendida, atrasa a trama
narrativa e prejudica acentuadamente o trabalho com a linguagem literária. Essa afirmação se
justifica, particularmente, porque, ao lançar mão desse recurso, o leitor poderá sentir que está
diante de uma cartilha informativa e não de uma obra ficcional.
Em O portão do paraíso, depois que a protagonista aprende, com dona Márcia, os
conteúdos científicos que envolvem o seu drama existencial, sente a necessidade de dividir com
seu diário todo o conhecimento adquirido. Essa estratégia parece ser apenas um pretexto para
instruir os leitores, visto que é esse diário a narrativa pela qual se tem acesso à história da
menina Taís. Vale observar também o tom idealizado da linguagem da narradora, que
demonstra ter um conhecimento científico bastante elaborado sobre ciclo menstrual e
sexualidade, sem que se ecoem falhas de memórias próprias da escrita espontânea, o que, mais
uma vez, dá à obra um caráter documental:
Mas deixa eu contar, direitinho, uma coisa muito importante que a dona
Márcia me explicou: como funciona o ciclo menstrual. Ele dura mais ou
menos vinte e oito dias, às vezes trinta, vai depender e cada mulher. Na metade
desse ciclo, lá pelo décimo quarto ou décimo quinto dia, é que o óvulo fica
maduro e sai pra fazer a viagem. Se namorar nesse dia, é que existe o risco
maior de gravidez. E, mesmo dois dias antes ... Porque o espermatozoide vive
ainda umas quarenta e oito horas dentro do corpo da mulher, depois que ele
entrou. Se o atraso do óvulo coincidir, dá gravidez também. (NICOLELIS,
1991, p. 45)
Ao longo da narrativa, há vários momentos em que a narrativa é atrasada para que Taís
possa oferecer ao leitor uma aula. Essa configuração também pode ser observada, em especial,
nas seguintes narrativas: O amor não escolhe sexo, O blog da família, A conquista da vida e Os
guerreiros do tempo.
O hibridismo linguístico artificial causado pela mistura do coloquial com a norma culta
é, sem dúvida, a pior fraqueza levantada no âmbito do trabalho com a linguagem nas narrativas
263
nicolelianas. Ainda que se pretenda mimetizar a fala do jovem contemporâneo, a narração nem
sempre parece convincente e muitos diálogos soam como inverossímeis. A heroína da narrativa
O caminho de Ísis, por exemplo, em certa altura do enredo fala sobre seus sonhos profissionais
em linguagem bastante idealizada e incoerente com a sua faixa etária, como se verifica a seguir:
A certa altura da conversa, Igor passa a narrar o seu drama pessoal à Juliana, assumindo
ele próprio a voz da narração, reproduzindo diálogos que teriam sido presenciados por ele, a
partir, também, do emprego do discurso direto. Tal técnica parece representar uma falha
ficcional, posto que, considerando o contexto em que Igor relata a sua história, uma conversa
ao telefone, seria mais apropriado a utilização do discurso indireto. Do mesmo modo, as
264
intervenções feitas nos diálogos, com os verbos de elocução, não conseguem mimetizar o ritmo
fluente de um relato. A passagem que segue elucida essas constatações:
– Deixa eu falar da minha mãe – ele começou. – Ela se chama Renata, é loira
de olhos verdes, uma gatona. Anda na última moda, vaidosa como ela só.
Nunca vi minha mãe desarrumada, com o cabelo fora do lugar. Até parece
modelo de revista.
É formada em faculdade, mas não trabalha, o Rogério diz que ela não precisa
disso, que ele é bastante homem pra sustentar mulher e filho.
A mãe só vive, quer dizer, bate perna o dia inteiro. Faz compra, tem aula de
natação, ginástica, vai ao clube, cabelereira. Um dia até perguntei:
– Renata, você não gostaria de trabalhar? A mãe do Pedro trabalha, é um
barato, ela é médica.
– Como, trabalhar? – A mãe fez uma cara assusta, foi até gozado.
– É, trabalhar, Renata – insisti. – Até parece que você veio de outro planeta...
A mãe fez um discurso: que o pai não deixava ela trabalhar, que bem que ela
tinha tentado anos atrás – antes de ele nascer, claro, porque depois ficou difícil,
empregada era coisa cada vez mais rara, carecia o maior cuidado, senão
colocava ladra dentro de casa e...
– Mas você tem duas empregadas há anos... E eu já cresci. Você pode
trabalhar, ia ser uma boa.
– Pra quem? – A mãe arregalou os olhos verdes, muito bem delineados com
rímel.
– Ora, pra você, pra todo mundo.
– Bobagem. Seu pai não deixa.
– Mas você nem tenta.
A Renata pegou a chave do carro em cima da mesa e foi à luta, quer dizer, foi
à festa de aniversário da filha de uma amiga, numa casa de chá badalada.
Fiquei sozinho em casa, com as empregadas. Aliás, eu ficava sozinho quase o
tempo todo. Sentia saudade do vô Leonardo, que morou uns tempos com a
gente depois que ficou viúvo. Meu vô era legal, gostava de contar histórias da
mocidade dele, conversava muito. Depois que o vô também partiu, fiquei
ainda mais sozinho.
Meu pai é empresário, mas pensa que ele vive na moleza? Dá um puta duro,
levanta às seis, às sete já está esquentando o carro lá na garagem...
A Renata nem acorda. Só vai aparecer lá pelas onze, banho tomado, o café na
mesa esperando por ela: papaia cortado no meio, torradas quentes. A Lena faz
tudo direitinho.
Quando eu volto do colégio, a mãe já está saindo, toda arrumada, na maior
estica, pra almoçar com as amigas, fazer compras, todo dia o mesmo babado,
não sei como ela não enjoa, pô! (NICOLELIS, 1992, p. 13-14)
Cabe afiançar que terminado o relato de Igor, a voz da narração é devolvida ao narrador
que se situa fora da história. Chama a atenção o fato de o registro do narrador onisciente e do
narrador-protagonista, no caso Igor, apresentar a mesma configuração, diferenciando-se apenas
pelo emprego da conjugação verbal correspondente a cada uma dessas pessoas e também pelos
265
limites naturais impostos à visão da primeira pessoa que, a princípio, deve ser limitada. Ocorre
que, na obra em questão, Igor demonstra ter onisciência tal como um narrador de fora da história
possui, o que, conforme já foi apontado, parece não mimetizar uma conversa ao telefone. Da
mesma forma, seu registro, considerando a já referida situação comunicativa, é muito idealizado
e planejado, fazendo reflexões que talvez não tivesse condições de tecer, principalmente, em
razão de sua fragilidade emocional. A passagem que segue ilustra essa constatação:
O que posso fazer agora? Você aí, me diga. Posso ir me drogando sem parar,
pra não perder essa sensação de euforia, de ver o mundo azul, um grande arco-
íris de estrelas? E me drogando e drogando... até errar a dose como o Sérgio,
e apagar como a chama de uma vela que a gente aperta o pavio.
Seria tão fácil apagar...Daí, garanto, ia ser outro rebuliço como o de hoje lá na
escola ... O colégio de novo em polvorosa, o pessoal correndo de um lado pro
outro, como formigas num formigueiro destruído: “O que foi, o que não foi?
quando foi?” (NICOLELIS, 1992, p. 67)
Convém ainda apontar que, seguindo o mesmo itinerário percorrido pelas narrativas de
aventuras e pelas narrativas sociais, na maioria dos livros de vertente psicológica, o registro do
narrador situado fora da história é produzido dentro da norma culta, com a exploração de
construções sintáticas elaboradas e emprego sistemático do pretérito mais que perfeito. Apesar
disso, nota-se sua intenção de estar próximo de seus heróis, o que se verifica pelo emprego do
discurso indireto livre e pelas muitas explicações, interpretações e comentários que ecoam ao
longo da narração. Em contrapartida, o recorrente uso do discurso indireto livre eleva a
linguagem das personagens ao plano do erudito, constatação que reafirma a legitimação de
processo de manipulação da linguagem ligados à tradição dos textos escritos para crianças e
jovens.
Em muitas situações, no registro do narrador-protagonista jovem também vazam
palavras de cunho mais purista, o que mais uma vez demonstra a valorização do português
culto. Em O blog da família, por exemplo, a linguagem do narrador-protagonista Pirata é
fluente, objetiva e acessível, porém culta, a julgar pelas várias construções sintáticas
demasiadamente elaboradas que refletem em seu registro, característica que não representa a
linguagem de um jovem de 17 anos, sobretudo em postagens de internet. Mediante as pretensas
críticas dos internautas em função de sua linguagem e do vasto conhecimento científico que
possui, o blogueiro escreve:
Quanto ao meu blog, tem gente reclamando que meu papo é muito cabeça. Já
contei que fui criado numa livraria, mamei leite e livros ao mesmo tempo.
Então escrevo bem, galera, porque leio muito... Se não fica só aquela coisa de
“vamos nessa”, “viajar na maionese”, “cabeça de pudim”, “saquei o lance”,
“fui”, e por aí...
E tem mais: quem não lê, passa uns apertos no trabalho. Teve um advogado
que representava um dos três réus de uma causa. Quando chegou a vez de ele
falar, disparou: “Como são três réis”. Até o juiz, nosso conhecido, caiu na
risada.” (NICOLELIS, 2009, p. 40)
O fato de valorizar o padrão culto da língua portuguesa não impede que Pirata use gírias,
abreviações e outras expressões mais coloquiais, tornando sua linguagem híbrida. Há também
de lembrar que em suas postagens, ele não usa o internetês, o mesmo não ocorre nas respostas
dadas aos internautas, como se nota no diálogo que segue, o que também pode não ser
convincente, uma vez que os comentários dos internautas são feitos no mesmo espaço em que
Pirata faz suas postagens diárias:
267
Vale lembrar que em Como é duro ser diferente!, ainda que sejam exploradas
expressões próprias da linguagem coloquial, tanto no registro da narradora-protagonista quanto
no das demais personagens estão refletidas expressões que demonstram a valorização da norma
culta. No vocabulário da narradora adolescente, a título de ilustração, desfilam vocábulos, como
os que seguem: “compungido”, “infame”, “atenuar”, “cerrado”, “opuseram”, “decodificar”,
“interveio”.
Portanto, ao que se refere à manipulação da linguagem no corpus de narrativas
psicológicas, mesmo que em vários momentos Nicolelis tente buscar soluções linguísticas
apropriadas para dar o tom da linguagem jovem, a explícita e demasiada valorização da norma
culta, em variadas situações, só faz alienar seus heróis (e, por conseguinte, seus leitores) porque
não consegue mimetizar, no plano literário, suas demandas linguísticas. Daí que, muitas vezes,
suas falas e atitudes pareçam idealizadas, artificiais e pouco convincentes.
gravidez precoce e de todas as implicações que isso acarreta, chega ao final da narrativa
sentindo-se mais amadurecida. No último capítulo, ela escreve em seu diário: “Afinal, o que
eu quero ser quando crescer? Quer dizer, quando crescer mais um pouco, porque já me sinto
uma moça feita. Depois de tudo que passei, parece que sou tão mais velha!” (NICOLELIS,
1991, p. 67).
Na tessitura das histórias analisadas fica a mensagem positiva de que apesar dos
sobressaltos impostos pela vida é preciso que o herói siga seu caminho com esperança, ainda
que acompanhado pelo medo, dúvida, insegurança e pela falta de coragem. Essa configuração
é perceptível especialmente nos finais das narrativas que possuem como gênero secundário as
narrativas sociais, como também aponta o final da supracitada O portão do Paraíso:
Não quero que a Taísa passe por minha irmã. Quero que todo mundo saiba
que ela é minha filha. Fui eu que fiquei barriguda que nem podia cortar a unha
do pé. Fui eu que me senti como um abacate maduro quando sai o caroço...
Ela é minha filha, pô! Tá registrada assim lá no cartório. Quem gostar, gostou.
Quem não gostar, paciência, que se dane!
Mas, voltando ao príncipe, meu diário... A Taísa então vai dizer: “Tô indo,
mãe...” E vem com a malinha dela (a minha, claro, já estava pronta há um
tempão!).
Então nós saímos os três (o príncipe não tem mala, ou tem?) pelo portão...
– Tem certeza de que aqui é o paraíso, príncipe?
– Tenho, Taís. Aqui é o paraíso.
– Mas nem parece, quer dizer, parece a minha rua. Tudo igual como sempre.
Como é que pode ser o paraíso?
– Porque a gente passou pelo portão, já disse.
– Mas era o portão da minha casa...
– Por isso mesmo, Taís... O paraíso não é um lugar fácil: ele é difícil, cheio de
desafios, de dúvidas... Se não fosse assim não seria um paraíso, seria um lugar
muito sem graça, não é?
– E dá pra ser feliz? – (essa pergunta vou fazer com certeza)
Mas sabe, meu querido diário, acho que já sei a resposta. Posso ser feliz sim,
muito feliz, porque agora eu aprendi a gostar de mim!... (NICOLELIS, 1991,
p. 69-70, grifo da autora)
Apesar dos percalços impostos pela nova realidade de Taís, experimentados no mundo
especial, mesmo tendo de assumir responsabilidades próprias de uma mãe, é necessário que ela
retome a vida cotidiana de uma adolescente de sua idade, no mundo comum, que inclui família,
escola, amigos:
269
Mudei muito, sabe, meu diário? Descobri que gosto do meu nome... Fiz treze
anos. Logo que a Taísa nasceu, mas não teve festa nem nada. Acho que, se
convidasse, não vinha ninguém mesmo.
Resolvi dar um jeito na minha vida. Tomei coragem e fui lá na escola falar
com a dona Márcia. Ela ficou toda contente:
– Veio pra ficar, Taís?
– Não sei não, dona Márcia, tenho medo.
– Medo do quê?
– Do que vão falar, a senhora sabe...
A dona Márcia me olhou bem de frente:
– Você tem que se decidir, Taís. Ou ficar o resto da vida trancada dentro de
casa, ou então começa tudo de novo...
– É isso aí, quero começar tudo de novo.
– Pois então, o primeiro passo é voltar pra escola. Sem estudo, ninguém faz
nada na vida. Pelo menos o primeiro grau você precisa ter. E o segundo, se
possível. Bom mesmo seria você fazer os dois.
– Mas já está na metade do ano, como é que vou voltar agora?
– Não tem importância, Taís. Talvez você não passe de ano, mas de qualquer
forma estará convivendo com os amigos. Isso também é importante. Tanto
quanto estudar.
– Então a senhora acha que posso voltar mesmo?
– Não só pode como deve. A vida é assim, Taís. A gente tem de encarar de
frente. Não se pode fugir o tempo todo.
Então é isso, meu diário. A partir de amanhã eu volto pra escola. Seja o que
Deus quiser! Estive pensando: se a Cejana, a Deolinda e a Miracê forem
amigas de verdade, continuarão sendo amigas, porque o que vale mesmo é a
sinceridade.
Se elas acharem que sou má companhia, paciência. Vou ter de arrumar outras
amigas. O mundo é tão grande, cheio de gente. Impossível que não consiga
outras amigas. Pelo menos uma eu já tenho: a Jacirese. (NICOLELIS, 1991,
p. 64-65)
Olho no espelho: do lado de lá, Arantxa me sorri, como dizendo: “Alô, como
vai?” Do lado de cá, respondo: “Estou bem.” O que é estar bem?
É conseguir do mais recôndito de mim mesma essa coragem feita de fogo, que
começa pequena e trêmula, como chama de uma vela, que qualquer vento
balança. Mas mesmo essa chama é fogo e, porque resiste, se fortalece. Assim
é a minha coragem. A pequena chama de vela talvez se transforme num vulcão
de erupção permanente, que me mantenha viva.
Porque Arantxa me olha e agora está séria; já não sorri como antes. Ela me
questiona: seu silêncio, do outro lado do espelho, está cheio de perguntas.
Muitas, eu sei, sem respostas. O que ela quer saber eu também quero, porque
somos a mesma pessoa – não somos? Mas, de alguma forma, também somos
duas, porque nem sempre me reconheço no seu olhar irônico, e, quem sabe,
ela também não me reconheça no medo dos meus olhos. (NICOLELIS, 1994,
p. 83-84)
270
Amadeu não acreditava no que via. Dentro da caixa, amarelecidas pelo tempo,
dezenas de cartas, endereçadas à Beatriz. Nem precisava virar o envelope e
olhar o remetente: a letra era sua em todas elas. As cartas que ele escrevera
por anos a fio, da capital, da Itália, de outros países, que jamais haviam sido
respondidas e – inacreditável! – jamais também foram abertas, mantendo-se
aparentemente invioladas...
– Eu não entendo. Você nunca abriu as minhas cartas, por quê?
– Porque eu jamais recebi as suas cartas, Amadeu – falou Beatriz com voz tão
dolorida que parecia conter toda a desilusão do mundo.
– Como não recebeu? – Ele não entendia mais nada.
– Foi ela, minha mãe... Como ela pôde? Escondeu suas cartas, Amadeu, todo
esse tempo... Foi só hoje que ela me entregou essa caixa, enquanto me pedia
perdão. – Beatriz respirou fundo, como a tomar coragem. – Que idiota eu fui,
achando que você tinha me esquecido, não se lembrava mais de mim, que
havia traído o seu juramento de vir me buscar um dia...
– Foi por isso que você não foi ao jantar? – perguntou Amadeu suavemente.
– Eu pensei que você tivesse me esnobado todos esses anos. Afinal você agora
é um homem famoso, Amadeu. O que poderia querer com uma mulher como
eu, tão sofrida e infeliz?
– Eu a proíbo de dizer isso. Beatriz! O que a sua mãe fez foi uma coisa
horrível, indesculpável. Mas eu também pensei que você não respondia
minhas cartas porque havia me esquecido. Sofri muito com isso, pode crer. Só
parei de escrever quando soube que você havia se casado.
Beatriz encarou-o, ele mergulhou naqueles olhos verdes. Em seu coração, ela
ainda era a frágil garota de cabelos loiros por quem se apaixonara e da qual
jamais se esquecera...
– Mas ainda está em tempo! – falou num arrebatamento. – Eu aceito sua
proposta!
– Proposta? Que proposta? – respondeu Beatriz, sem entender a quem Amadeu
se referia.
– A que você me fez, há mais de trinta anos, na avenida das mangueiras.
Lembra? (NICOLELIS, 1988, p. 146-147)
Assim, os heróis das narrativas psicológicas voltam para a casa mais fortalecidos e
amadurecidos, com a esperança e a certeza de que é possível sempre recomeçar o ciclo da vida,
e ainda que nem sempre seja possível alcançar as soluções para os dramas humanos
271
obra Macapacarana, em que o jovem Gérson Luiz narra o início de sua amizade com o índio
cozinheiro do garimpo onde passa as férias escolares ao lado de seu pai, do amigo Tocha e de
outros garimpeiros:
tradição que, segundo salienta Coelho (2000), é bastante latente na literatura infantil e juvenil
do século XIX. Do mesmo modo, fica latente o caráter prático, utilitário e conselheiro,
sobretudo, do narrador que está situado fora da história, que, visivelmente, também se aproxima
do narrador clássico tratado por Benjamin (1986), postura que ecoa mais fortemente nas
narrativas que tem como segundo gênero a narrativa social.
No que tange à verificação da presença desses dois tipos de narradores na mesma
história, é preciso dizer que esse formato pode ser verificado em O pássaro contra a vidraça,
A conquista da vida e em O tigre na caverna. Como já foi levantado no tópico anterior, na
primeira narrativa, esse recurso não é convincente, uma vez que quando Igor passa a relatar o
seu drama existencial para Juliana, assume a condição de um narrador onisciente, reproduzindo
e fazendo a mediação de diálogos organizados em discurso direto, cujo comportamento não
consegue mimetizar uma conversa ao telefone. Na segunda narrativa, no Prólogo e no Epílogo,
a voz da narração é de Priscila, a menina que nasceu do terceiro embrião congelado de Haroldo
e Solange antes da morte do casal em um acidente de avião. No início do texto, em conversa
direta com o leitor, a narradora esclarece que vai contar a história de seus pais, cuja inspiração
é proveniente de um momento de contemplação de uma foto do casal, como se verifica em:
“Meu pai e minha mãe, que prazer me dá olhar esta foto. Ao mesmo tempo, me causa uma
tristeza infinita, porque não tive a felicidade de conhecê-los... Eles morreram antes de eu
nascer.” (NICOLELIS, 2012, p. 7). No primeiro capítulo a história do casal começa a ser
desenvolvida sob a perspectiva de um narrador onisciente, situado fora da história, que, em
momento algum dá pistas de que seja Priscila, sobretudo, porque ela também é uma personagem
na esfera da matéria narrada, como se verifica na passagem que segue:
De repente o telefone tocou. Ela foi atender. Uma voz de menina disse:
– Quero falar com a Viviane.
– Sou eu, quem está falando?
A voz do outro lado da linha se identificou:
– Aqui é a Priscila.
O coração de Viviane acelerou; ainda bem que ela estava próxima a uma
cadeira. (NICOLELIS, 2012, p. 61)
No Epílogo, Priscila retoma a voz da narração e discorre sobre o efeito causado nela por
estar diante da foto dos pais, como se confirma em:
274
Olho a foto e me emociono: como vocês eram lindos! Meu pai e minha mãe.
Tão jovens e sorridentes, com um futuro radioso ainda pela frente.
Será que vocês sequer imaginariam que dois embriões seriam implantados no
útero da Viviane e que nasceriam gêmeos, Gabriel e Luísa?
E que, depois de alguns anos, os avós doariam o terceiro embrião, que seria
implantado no útero da Fátima e do qual eu, Priscila, também nasceria?
(NICOLELIS, 2012, p. 83)
Vale destacar que a técnica do sumário também é utilizada no corpus das narrativas
psicológicas. Aparentemente, esse recurso é utilizado com o intuito de dar maior velocidade à
matéria narrada como forma de prender a atenção do leitor, da mesma maneira que permite a
centralização no que se concebe ser o essencial da matéria narrada. Igualmente, cabe lembrar
que, ao final das narrativas, comumente, ocorrem elipses temporais, cujo objetivo é esclarecer
o rumo tomado pelas personagens, o que oferece maior consolo e conforto ao leitor, como
defende Ferreira (2003).
Por fim, é preciso informar que, da mesma maneira que foi verificado nas narrativas de
aventuras e nas narrativas sociais, nas narrativas psicológicas também podem ser vislumbradas
as variadas funções assumidas pelo narrador, propostas por Reuter (2002):
275
Uma vez acompanhada a jornada dos heróis nicolelianos, por meio da análise dos
elementos formais e temáticos das 42 narrativas que compõem o corpus, com foco na partida,
na travessia e no retorno desses heróis, é possível tecer uma leitura que, evidentemente, não é
a única, mas que pode oferecer contribuições para a compreensão do projeto literário de Giselda
Laporta Nicolelis no âmbito da literatura juvenil brasileira, mesmo que de modo panorâmico.
Para tanto, é preciso recuperar algumas das questões dicotômicas que se ligam ao gênero desde
a sua origem, questões que já foram levantadas neste estudo, mas que, neste momento, se fazem
necessárias para apoiar a argumentação aqui proposta, entre elas, destaco: a assimetria
adulto/criança; discurso utilitário X discurso literário; realismo X fantasia; normatividade X
ruptura.
Importa também retomar a ideia de que a literatura, como preconiza Bourdieu (2007),
insere-se no mercado de bens simbólicos e, como tal, recebe influências de todas as variantes
que afetam as relações de produção, circulação e consumo. Assim como se faz particularmente
importante enfatizar que as relações estabelecidas entre escritor e público podem ser
determinantes na configuração de uma obra, como defendia Candido já em meados da década
de 1950. Na esfera da análise aqui realizada, tanto os elementos internos da obra de Nicolelis,
quanto os externos, evidenciam que seu projeto literário se situa no campo da indústria cultural
por dois motivos ao menos. O primeiro está relacionado à visível preocupação da autora em
atender às demandas desse mercado editorial, em particular no que tange às necessidades
temáticas, ligadas a projetos escolares de formação do jovem que lá está. O segundo, que
certamente é influenciado pelo primeiro, diz respeito à estrutura tradicional – unilateral e
monofônica – que predomina em suas narrativas. Nelas, certezas absolutas em relação à
ordenação da realidade operam, aproximando-as dos romances de tese do século XIX, como
também dos livros destinados a crianças e jovens produzidos desde os seus primórdios.
Verifica-se, assim, a reiteração de tendências marcantes apontadas em estudos pioneiros
sobre narrativas juvenis brasileiras realizados nas últimas décadas, tais como o conjunto de
textos examinados por Rosemberg (1984); as narrativas de Lannoy Dorin, estudadas por
Carvalho (1996); A mina do tesouro, de Maria José Dupré, analisada por Ferreira (2003);
algumas narrativas consideradas de qualidade “regular” do corpus estudado por Ceccantini
(2000). Se o ponto de partida for as duas categorias formuladas por Cruvinel (2009), as
narrativas nicolelianas podem ser situadas na esfera das narrativas juvenis que estão “ao lado
277
Ao longo dos 45 anos de carreira, Nicolelis propôs-se discutir com seus leitores não
apenas temas universais, sempre atualizados, como também outros tópicos temáticos
diretamente associados ao tempo histórico em que suas histórias foram criadas. Defendeu, com
sua ficção, variadas teses, conforme se procurou delinear ao longo deste trabalho por meio do
desnudamento da configuração textual da maioria das narrativas que fazem parte do corpus
estudado. Nesse sentido, é preciso afiançar que o projeto literário nicoleliano conforta e consola
não apenas seus leitores, mas também a escritora, já que lança mão sempre da mesma fórmula,
em certa medida segura, uma vez que seu foco principal está no tema e não na forma, como
foi possível constatar nos três últimos capítulos desta tese. Assim, a renovação alcançada pela
autora dá-se na esfera temática, posto que, conforme salienta a própria autora, é só oferecer a
ela um mote que valha a pena para que possa escrever um livro.
No itinerário das narrativas tradicionais que produz a escritora, mesmo que seja
perceptível a tentativa, em alguns momentos, de oferecer ao leitor uma ou outra inovação
quanto aos elementos formais, fica patente que a obra ficcional de Nicolelis privilegia “o que
dizer” e não “o como dizer”. O resultado dessa concepção materializa-se na estrutura sempre
repetitiva de suas narrativas, sinalizando como traço marcante da carpintaria literária da
escritora a contenção de quem resiste a inovar e a romper com a normatividade.
As análises aqui apresentadas põem em evidência a função desempenhada pelas
categorias tempo e espaço na ficção juvenil de Nicolelis, que é quase sempre a mesma: garantir
a verossimilhança dos enredos em pauta. Da mesma maneira, a concepção da linguagem no
conjunto da obra se demonstra homogênea e conservadora: a linguagem empregada pelo
narrador corresponde quase sempre à vertente “culta” e a de suas personagens se revela híbrida:
ao mesmo tempo que deseja representar a espontaneidade da fala cotidiana, suas personagens,
independentemente da idade e da classe social à qual pertencem, não conseguem se
desvencilhar de certos padrões estabelecidos pela língua de visada mais purista, a qual é
divulgada, legitimada e defendida pela escola. Em seus registros, que, em determinados
momentos, estão mais ligados ao discurso escrito do que ao falado, há, recorrentemente, o
emprego de expressões e construções sintáticas de cunho formal, como o emprego do pretérito
mais que perfeito e de certas colocações pronominais, das quais é exemplo expressivo a ênclise.
Destaca-se ainda no conjunto da obra a presença reiterada de um narrador onisciente, de
visão adultocêntrica que, independentemente de pertencer à primeira ou à terceira pessoa,
possui comportamento único, sempre mediando e controlando as ações e falas das personagens.
Mesmo quando é empregado o discurso indireto livre, em que se fundem as vozes do narrador
e das personagens, o ponto de vista do narrador reverbera associando-se às personagens. Ao
279
usar esta técnica, ainda que a escritora mais uma vez assuma ser a porta-voz daqueles que,
segundo sua concepção, não são ouvidos pela sociedade, nas narrativas da autora as
personagens acabam por ser apresentadas ao leitor a partir de uma visão unilateral, monofônica
e quase sempre idealizada. Filia-se, portanto, aos modelos de textos literários monológicos
identificados por Bakhtin (2011), nos quais os elementos formais estão a serviço das ideologias
defendidas por um dado autor.
Seguindo esse itinerário, a observação integrada dos elementos aqui abordados levou à
percepção de que, com sua obra ficcional, a escritora elege um duplo destinatário: o jovem
adolescente em formação, em especial o estudante da rede particular de ensino, ambiente em
que seus livros, aparentemente, encontram maior espaço para circulação, assim como a esfera
dos pais, professores, agentes educacionais diversos, coordenadores editoriais e demais adultos
que se interessem pelas temáticas abordadas em seus livros.
Essa constatação não é difícil de ser confirmada, posto que, como se procurou deixar
claro nas análises aqui apresentadas, Nicolelis, comumente, seja em entrevistas concedidas, seja
na seção “Autora e Obra”, muitas vezes inserida em seus livros, relata ao leitor as razões que a
levaram a escrevê-los, estratégia que busca trazer conforto a seus leitores. Em geral, ela concebe
que o escritor (e, por conseguinte, a literatura) tem um papel social a ser cumprido, função que
ela cumpre, de seu ponto de vista, por intermédio das histórias que cria, sendo estas, muitas
vezes, nascidas sob encomenda de algum editor como produto de algum projeto editorial que
visa suprir determinada necessidade de mercado.
Por causa disso, os enredos de suas narrativas são, via de regra, contemporâneos ao
momento histórico em que foram publicadas, aspecto que tende a “prendê-las” ao período em
foram escritas, deixando-as razoavelmente datadas e impedindo que muitos delas sejam
reeditadas no contexto de um mercado editorial que busca de forma contínua alguma
“inovação”. Isso, certamente, ratifica e explica o dado apresentado na Introdução deste trabalho
sobre a sobrevivência de menos da metade dos mais de 120 livros publicados por Nicolelis ao
longo de seus 45 anos de carreira. A serra dos homens formigas, por exemplo, que narra, de
forma documental, a odisseia de garimpeiros em busca de riqueza em Serra Pelada, pode
parecer – do ponto de vista do mercado – não fazer muito sentido para o leitor atual.
Nessa mesma direção, ficou evidente que a escritora assume o viés paradidático de sua
obra e admite que seu intuito, ao escrever para os jovens adolescentes, intenciona não apenas
proporcionar a eles entretenimento, mas também almeja atuar em seu processo de formação,
oferecendo-lhes informações que possam ajudá-los a se desenvolver de forma saudável. Vale
lembrar que esse ideal perpassa o projeto literário dessa escritora desde o início de sua carreira,
280
tendo sido já sinalizado o fato de que, em 1974, na contracapa de seu primeiro livro infantil –
Coruja Lelé – ela anuncia que, por meio da literatura, além de entretenimento, almeja oferecer
a seus leitores um “banhozinho de cultura”, no intuito de aumentar seus conhecimentos. Não
causa espanto, portanto, que em 1994, 20 anos depois de sua estreia na literatura infantil, na
seção “Autora e Obra” de Guerreiros do tempo, livro que tem como temática principal a aids e
suas formas de prevenção/tratamento, a escritora, além de assumir o seu papel de formadora,
conclame todos os envolvidos nesse processo a cumprir sua parte: “Temos todos – pais,
educadores, escritores – que dar as mãos e ir à luta! Conscientizando nossos jovens de que a
administração da liberdade, que inclui a sexualidade, deve ser feita de forma responsável.”
(NICOLELIS, 1994, p. 88). Também quarenta anos depois da estreia, sua motivação para a
escrita literária continua a mesma: oferecer aos leitores uma aula divertida sobre a História do
Brasil Colônia é a intenção que está subjacente à criação de Nos bastidores da realeza, narrativa
publicada em 2015, conforme foi analisado no capítulo três.
Por esse viés, não se pode negar que o projeto literário de Nicolelis é coerente, posto
que materializa a concepção de literatura defendida por ela: arte que tem uma função social,
sendo o escritor, em seu ponto de vista, o porta-voz dos marginalizados e oprimidos. Para a
escritora, o papel da literatura é “fazer o leitor viajar, subir num tapete mágico, obrigar a pensar,
ter ideias, formar um juízo de valor, como dizem na Filosofia. Desenvolver o pensamento
crítico a respeito de si mesmo e do mundo.” (NICOLELIS, 2000, p. 135). Logo, em sintonia
com a concepção atual herdada das transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas
nas sociedades europeias do século XVIII, nas quais os membros da família burguesa passam
a ter funções distintas, cabendo ao adulto zelar pelo crescimento saudável das crianças e
adolescentes, Nicolelis assume, por meio de sua obra, o seu papel de agente formador e
orientador do jovem adolescente que necessita de cuidados especiais. Daí que, ao retornarem
da jornada, os heróis nicolelianos estejam sempre munidos do “elixir” do conhecimento, que
contempla, em linhas gerais, duas direções: a primeira, que se insere na aquisição de
conhecimentos culturais e de valores humanos sempre universais, levando seus heróis ao
aprendizado da necessidade de buscar a convivência ética, harmoniosa, solidária, esperançosa
entre os seres humanos; a segunda, que conduz para a aprendizagem de conhecimentos
científicos, artísticos, históricos, que, em suas obras, são fundamentais para o desenvolvimento
intelectual, linguístico, social, político e cultural de seus heróis (e, por extensão, de seus
leitores).
O caráter paradidático das narrativas nicolelianas fica ainda mais exposto quando a
autora salienta que muitos de seus livros foram escritos com a intenção de ajudar os professores
281
a lidar com certas temáticas em sala de aula. Exemplo substantivo é a narrativa O amor não
escolhe sexo, cujo assunto principal é a homossexualidade. Escrito na década de 90, conforme
depoimento da autora, esse livro foi adotado e debatido em contexto escolar e nasceu a pedido
de docentes que não sabiam como lidar com a questão em sala de aula. Assim, a função de
educar e instruir, do ponto de vista dessa escritora, diz respeito não apenas à família e à escola,
mas também ao escritor que endereça seu texto ao público infantojuvenil.
Em entrevista concedida a Ceccantini (2000), Nicolelis diz acreditar que no contexto
familiar atual, os pais trabalham o dia todo e delegam à escola a educação de seus filhos,
responsabilidade que também sobra para os escritores. Em sua perspectiva, o escritor precisa
manter um canal eficiente de diálogo com o jovem, ensinando a ele cidadania e ética,
mostrando-lhe que vale a pena ser honesto, cumprir seus deveres e lutar por seus direitos. Sob
a ótica da autora, o escritor não pode se restringir ao âmbito da história meramente policial ou
de ficção científica; é necessário discutir a realidade, aguçar debates e polêmicas. Essa
percepção justifica o fato de os membros da família e/ou da escola serem os principais aliados
e mentores na jornada dos heróis nicolelianos. Em linhas gerais, nas narrativas filiadas ao
modelo eufórico de representação familiar, concebido por Zilberman (2003) – que pode ser
vislumbrado preponderantemente nas narrativas de aventuras produzidas pela escritora – a
família ocupa esse papel de orientação. Já no caso das narrativas filiadas ao modelo crítico, essa
função é exercida principalmente pela escola, uma vez que nelas a família é afetada por
significativa moléstia social contemporânea: o fato de os pais trabalharem e ficarem fora de
casa o dia todo, deixando os filhos aos cuidados da escola.
Tal configuração, se de um lado afasta a literatura de Nicolelis do campo erudito, uma
vez que não dialoga com as especificidades dos bens simbólicos produzidos nessa esfera
(Bourdieu, 2007), cuja originalidade formal e gratuidade cultural são os principais elementos
que os caracterizam, fazendo deles uma obra de arte, de outro, é justamente o caráter utilitário
de sua literatura, que faz com que Nicolelis seja cada vez mais legitimada e valorizada pela
instância escolar. Ou seja, é isso que possibilita que seus textos sejam lidos por variados
sujeitos, atuando, desse modo, em seu processo de formação leitora e também humana. Mesmo
que esta pesquisa não tenha avaliado sistematicamente a recepção dos textos de Nicolelis por
jovens leitores, nem mesmo consiga medir a amplitude do universo de leitores alcançado por
essa produção ficcional, os depoimentos da autora, bem como os de leitores que comentam seus
textos em variados sites e blogs, permite afirmar que a circulação e a leitura de sua obra se dão,
predominantemente, sob a mediação da escola.
282
Com vistas a confirmar tal apontamento, chamo a atenção para o blog Mithys of Schooh
(sic), que foi criado com o intuito de mostrar os trabalhos realizados pelos alunos do 8º ano D,
do Colégio da Polícia Militar. Nele há um resumo sobre o livro Blog da família, que é seguido
por diversos comentários representativos de que a narrativa chegou a seus leitores pela
mediação escolar35:
Embora não esteja em discussão a recepção do livro supracitado, vale observar que este
é recebido por seus leitores de variadas formas (por sinal, muito interessantes), sinalizando que
as intenções ideológicas e educacionais da obra nicoleliana podem, em determinados
momentos, ser frustradas, percepção que não invalida o papel desempenhado pela instituição
escolar no processo de divulgação da obra da escritora, posto que seu projeto de formação está
35
A citação em questão conserva a grafia original.
283
afinado com os objetivos pedagógicos dessa instituição. Cabe notar que isso está igualmente
evidenciado no espaço, muitas vezes predominante, ocupado por personagens adultas no grupo
de personagens principais das narrativas que compõem o corpus estudado.
Mesmo que os estudos contemporâneos apontem que o protagonismo na literatura
infantojuvenil atual esteja sendo desempenhado por personagens jovens, nos textos literários
de Nicolelis nem sempre isso ocorre. Observou-se que, sobretudo nas narrativas de aventuras e
em algumas narrativas sociais que também se filiam (num segundo nível) ao gênero aventura,
em especial as associadas aos subgêneros policial e mistério, que fica difícil a eleição de apenas
um herói/protagonista. Em muitas dessas narrativas a personagem coletiva prepondera, posto
que ali o narrador, preponderantemente de visão onisciente, acompanha a jornada de um
grupo/equipe que trabalha em função de um objetivo comum, sendo seus integrantes ligados
por variados laços: familiar, amizade, escolar, profissional.
O herói individual vai aparecer, sobretudo, nas narrativas psicológicas e em várias
narrativas sociais, filiadas ao subgênero crônica urbana. Nessas narrativas, resguardadas as
provações específicas que cada herói precisa enfrentar, em geral de ordem social diversa:
alcoolismo, gravidez na adolescência, preconceito, drogas, é acompanhado o percurso de um
herói, oriundo da classe média ou popular que, estando em posição inferior, precisa lutar para
conquistar seus sonhos ou enfrentar seus medos e problemas, ideal que passa
predominantemente pelos valores defendidos pela família burguesa e pela escola. Em geral,
esses heróis pretendem ser médicos ou advogados, e para tanto se dedicam ao estudo com
afinco, apesar de todos os problemas sociais que os afetam, quando pobres, conciliando o
trabalho e a escola. Ao final, são sempre agraciados pela aprovação no vestibular,
preponderantemente, da USP. Nessas narrativas, amadurecer significa trabalhar em prol de um
projeto de vida, que passa pela apropriação do conhecimento racional e humanístico.
Apesar do protagonismo, convém reiterar que heróis jovens das narrativas de Nicolelis
são acompanhados de perto por mentores e aliados, predominantemente adultos, que os ajuda
a enfrentar os desafios impostos pela sociedade contemporânea, conforme se procurou
demonstrar nas análises aqui apresentadas. Há que se relembrar que dos 120 livros identificados
ao longo do processo dessa pesquisa, em 13 deles, mesmo que possam aparecer uma ou outra
personagem jovem, elas desempenham papel bastante secundário. Isso ocorre, por exemplo, em
A serra dos homens-formigas, Mão tatuada, Na boleia de um caminhão ou Nos limites do
sonho.
Esse fenômeno confirma a importante atuação das editoras na determinação do público
idealizado de um livro ao categorizá-lo como infantil, juvenil ou adulto. No caso dos livros
284
citados, a julgar pelas temáticas neles discutidas num primeiro plano, é admissível afirmar que
eles não estão endereçados especificamente ao público jovem. Contudo, por circularem nos
catálogos das editoras como literatura juvenil, são lidos sob essa ótica. Vale enfatizar que Nos
limites do sonho foi publicada na década de 1970 como romance adulto. É significativo ainda
mencionar que esse fenômeno também sinaliza o tipo de leitor idealizado por Nicolelis que,
segundo ela, em entrevista disponibilizada no já mencionado livro Blog da família, é inteligente,
curioso a respeito de tudo, aberto para a aprendizagem do que ela chama “cultura humanista”.
Um exemplo destacado pela escritora é o de que conhecer “o passado, por meio da História, é
entender o presente e estar preparado para o futuro.” (NICOLELIS, 2009, p. 129).
Pode-se considerar que Nicolelis escreve para quem quer aprender, porque também está
disposta a ensinar. Daí sempre ser convidada para ministrar palestras em diferentes escolas, por
onde seus livros circulam; comportamento semelhante têm seus narradores e personagens
quando discursam a seus leitores sobre diferentes temas. Portanto, essas entidades ficcionais
funcionam, no plano literário, como um duplo da autora, porque divulgam a seus leitores a sua
visão ideológica sobre o mundo. Em Como é duro ser diferente é reiterada a concepção de
Nicolelis sobre a função social do escritor: “Numa das aulas ela falou que os escritores são
importantes porque têm um papel social – eles dão voz aos excluídos, aos que não podem ser
ouvidos. Muitos até, em seus livros, são quase profetas do futuro, como o Júlio Verne.”
(NICOLELIS, 2005, p. 74).
Com alguma liberdade de pensamento, pode-se afirmar que a literatura de Nicolelis
assemelha-se ao comportamento dos escritores românticos que, à sua época, escreviam à moda
dos pregadores, conferencistas de academia e oradores (Candido, 2011). Mesmo que seus textos
tenham sido escritos para serem lidos, sua intenção é convencer e levar o leitor a uma tomada
de posicionamento diante de questões sociais ou humanas consideradas urgentes, como
evidencia a interpretação dos dados coletados nos campos Temática Central, Temáticas
Complementares e Pedagogismos que integram a grade utilizada no conjunto da pesquisa, todos
eles associados à garantia da aprendizagem e ao amadurecimento de seus heróis na travessia e
no retorno para o mundo comum. Num paratexto de Como é duro ser diferente, a autora afirma
que ele foi escrito a partir de palestras proferidas por ela em escolas de todo o país, “quando a
autora teve a oportunidade de constatar o comportamento cruel de certos jovens que colocam
apelidos pejorativos em seus colegas, incentivando a discriminação.” (NICOLELIS, 2005, p.
111).
O que fica patente na jornada dos heróis nicolelianos é que, em especial nas narrativas
que tratam de problemas sociais indissolúveis, mesmo não conseguindo enfrentar totalmente as
285
provações impostas no mundo especial, eles voltam para o mundo comum mais amadurecidos.
Isso fica evidenciado no final aberto de muitas das narrativas sociais e das narrativas
psicológicas que compõem o corpus. Vale relembrar que o pseudônimo Arantxa, adotado pela
heroína diante do espelho em Guerreiros do tempo, metaforicamente, representa o
amadurecimento da jovem Bianca, portadora de HIV, que se fortalece quando resolve enfrentar,
com o apoio da família, da escola e de um médico especialista, a sua condição de cabeça
erguida: “Somos guerreiros, um tanto indefesos, porque o inimigo está sempre à espreita, e não
nos deixa sequer a opção de recuar. Impelidos ao campo de batalha, temos de encarar o inimigo
frente a frente.” (NICOLELIS, 1994, p. 85).
Assim, os heróis nicolelianos, bem como seus leitores, são lançados na jornada
contemporânea das mazelas sociais oriundas do subdesenvolvimento da sociedade brasileira –
na sua vertente urbana, capitalista e industrializada. Em seus livros, em particular nas narrativas
sociais e nas narrativas psicológicas que compõem o corpus, são reconstruídos os dramas
indissolúveis vivenciados diariamente por diferentes sujeitos. Prostituição infantil, sequestro,
alcoolismo, tráfico de drogas, violência generalizada, preconceito em suas várias vertentes,
aids, gravidez na adolescência, ausência dos pais, corrupção, conforme verificou-se, são
algumas das moléstias sociais que lançam seus heróis num mundo especial, repleto de
provações, as quais só podem ser enfrentadas por meio do conhecimento enciclopédico e pela
solidariedade humana.
Dialogando com as conclusões de Rosemberg (1984) em seu trabalho seminal no campo
da literatura infantil brasileira – Literatura infantil e ideologia –, pode-se dizer que as narrativas
nicolelianas ensinam muito e, por conseguinte, seus heróis aprendem muito, haja vista a gama
de informações que vazam na tessitura de sua obra, resultado do intenso trabalho de pesquisa
realizado pela autora. A pesquisa in loco é, sem dúvida, o principal recurso utilizado por
Nicolelis para compor suas histórias, principalmente, quando possuem por mote questões de
ordem social. Em variados momentos, ela afirma que diante de um projeto editorial, seu ou de
alguma editora, escava tudo o que é possível sobre o tema para em seguida produzir o texto.
Daí a inserção de uma bibliografia de apoio em vários de seus livros, dado que reforça o caráter
documental de sua obra, principalmente porque seu trabalho investigativo é elucidado ora no
discurso de seus narradores, ora no de suas personagens. Esse tipo de informação é oferecido
ao leitor, frequentemente, na seção “Autora e Obra”, buscando tornar o texto mais
compreensível ao leitor e orientando sua interpretação. O que também – fica implícito –
facilitaria a seleção dessas narrativas para fazer parte de algum projeto escolar.
286
enfrentadas por ela rumo ao seu crescimento não conseguem ultrapassar as barreiras da
realidade.
Por fim, é preciso sublinhar que, como já apontou Zilberman (2003), a exploração da
realidade imediata em livros voltados para crianças e jovens com a tentativa de despertar neles
a consciência crítica, pode até ser louvável. Todavia, a literatura demasiadamente realista acaba
por incorrer em certo equívoco, por não conseguir dar conta dos problemas nela apontados. A
repetitividade de finais abertos levantada no conjunto de narrativas do corpus que tratam dessas
questões de cunho social, expressaria em certa medida esses impasses, aparentemente sem
solução, restando a seus heróis a esperança de que o futuro possa ser melhor.
No entanto, parafraseando Candido (1972), enquanto existirem na sociedade situações
de injustiça, violência, desigualdade de classes, pobreza e todas as formas de moléstias sociais,
o discurso pedagógico na literatura infantojuvenil continuará a existir, pois muitos escritores,
como é o caso de Nicolelis, acreditam que denunciando em seus textos tais mazelas estarão
contribuindo com um projeto de uma sociedade melhor, o que, certamente, pode ser válido.
Sob essa perspectiva, faz sentido defender a ideia de que Giselda Laporta Nicolelis
desempenha um papel social importante junto a seus leitores, informando-os e conscientizando-
os acerca da necessidade de adotar atitudes positivas e solidárias em prol de uma sociedade
mais justa e igualitária, sobretudo em tempos em que o individualismo e o egoísmo estão muito
latentes nas relações interpessoais. No entanto, acreditar que a literatura por si só possa ser a
panaceia que vai resolver os problemas humanos sempre urgentes, pode ser uma ilusão e
traduzir uma visão bastante quixotesca, pois, como já apontou Antonio Candido (1972) – muito
sabiamente –, a atuação da comunicação literária no processo de formação humana se dá de
forma arbitrária, entre luzes e sombras, altos e baixos
Para Regina Zilberman, quanto aos autores que exploram a fantasia, ao contrário,
conseguiriam contribuir de forma muito mais significativa para a emancipação do leitor em
formação, “já que o recurso ao maravilhoso pode superar as barreiras impostas por sua
representação naturalista do espaço e do tempo.” (ZILBERMAN, 2003, p. 201-2), dando a ele
condições para desempenhar um papel transformador, por meio da identificação “com a
personagem que rompe os limites impostos pela sociedade repressora.” (ZILBERMAN, 2003,
p. 202). Numa linha semelhante de pensamento, como defendem Bordini e Aguiar (1993), pela
leitura do texto literário, o indivíduo tem a possibilidade, a partir do trabalho artístico com a
linguagem, de reconstruir todo o universo simbólico encerrado nas palavras, ao mesmo tempo
em que pode concretizar esse universo com base em suas vivências pessoais. Desse modo, a
literatura atua na formação do ser não apenas pela realidade imediata, mas, em especial, pela
288
reserva de vida paralela nela encerrada que, na maior parte das vezes, o leitor não pode, não
consegue ou não sabe experimentar na vida real, contribuindo para a formação de sua
personalidade, assim como promovendo o conhecimento do mundo e do ser, como preconiza
Candido (1972).
Tais ponderações conduzem à ideia de que Nicolelis, ainda que almejando libertar e
conscientizar seus leitores, muitas vezes não alcança, no plano literário, a representação do
indivíduo em toda sua humanidade, enclausurando seus heróis na permanência do status
quo social contemporâneo, típico de uma sociedade na qual preponderam os valores defendidos
pela classe social dominante. Seus heróis, portanto, estariam presos às amarras da sociedade
brasileira – em suas vertentes capitalista, urbanizada e industrializada –, enredados em ações
que servem para assegurar a superioridade do sistema vigente ao que tange ao desenvolvimento
social e humano, cujas raízes se encontram nos ideais da sociedade europeia do século XVIII,
onde também se fixam os modelos tradicionais dos elementos estruturais e estilísticos que
predominam na ficção, sobretudo no que diz respeito à construção literária da linguagem e do
narrador.
Na literatura juvenil de Nicolelis, os heróis, mesmo que ocupando posições inferiores e
enfrentando provações diversas, alcançam sua felicidade e autorrealização, tanto no plano
individual quanto social, preponderantemente pelo trabalho em equipe, pela solidariedade, pela
perseverança e pela apropriação racional de todo conhecimento humanístico, linguístico,
histórico, artístico e científico produzido pela humanidade ao longo de sua história. Tais
aspectos dão corpo ao projeto literário de Nicolelis destinado aos jovens, correspondendo, em
certa medida, aos valores idealizados pela escola e pela família burguesa. O que, entretanto,
não invalida o mérito da escritora no processo de formação dos jovens leitores brasileiros.
289
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Volume 2
ASSIS
2018
308
7 APÊNDICE
7.1.4 Macapacarana
4 Resumo da narrativa Chicón é um senhor de setenta anos que cuida com bastante
dedicação e dispêndio do Haras Casa Branca. Sua maior relíquia
é Janaína, uma égua puro-sangue que nasceu no mesmo dia em
que seu último neto, Chiquinho. Aos poucos, a égua vai se
tornando uma grande campeã de corrida, porém, o criador de
cavalos não respeita o tempo de descanso que deveria ser
considerado entre uma corrida e outra, apesar da insistência de
seus familiares, dos veterinários do Haras e demais funcionários,
como também de Marcão, o seu jóquei. Um dia, Vince, um
veterinário que sempre prestava serviço para Chicón o alertou de
que a égua não poderia participar de um turfe, pois estava
suspeitando de que ela estivesse com uma bronquite que
caminhava para uma pneumonia. Ignorando a orientação médica
e pedidos de todos, Chicón colocou Janaína para correr, teimosia
que leva o animal a ter um final trágico. Um dia, em sua casa, o
dono do Haras estava envolvido pelas lembranças e lamentando
a morte de Janaína, pensando em que errara em relação à égua,
quando Cirino, um de seus empregados, invade seu escritório,
eufórico, para trazer a notícia de que acabava de nascer uma nova
potranca; a alegria reacende o ânimo de Chicón, que parece
vislumbrar o nascimento de uma nova campeã de turfe.
5 Organização da No conjunto, a narrativa, que é constituída de 18 capítulos apenas
narrativa numerados, possui uma estrutura linear, com encadeamento
lógico-causal e cronológico, com foco na história de Janaína e de
seu criador. Todavia, nos capítulos 8 e 12, essa linearidade é
quebrada para tratar da saga do veterinário Vince e de seu cavalo
Cantil, que é filho de uma égua de linhagem, que estava
condenada a puxar carroça. Para evitar essa sina, Vince compra
a égua de seus antigos donos, trata dela até que um dia nasce
Cantil, que também se tornaria mais tarde um grande campeão.
O amor e o respeito ao tempo do cavalo corredor, evidenciados
nesses dois capítulos, se contrapõem à teimosia e pressa que
Chicón tem de fazer de Janaína uma campeã de turfe. Nesse
sentido, essas duas narrativas paralelas se entrecruzam para
apontar duas posturas diferentes em relação à criação dos cavalos
de corrida. No último capítulo, é usada a técnica do
retrospecto/flashback, quando depois da tragédia ocorrida, o
347
defender: / - É o jeito dele, não liga, meu filho. Claro que ele
gostou do menino. E depois Francisco também era o nome do teu
avô!”. (NICOLELIS, 1984, p. 8). Adiante, o leitor tem acesso ao
que o filho de Chicón está dizendo ao telefone. O discurso
indireto livre é empregado com bastante recorrência, colando
plenamente a visão do narrador a dos protagonistas, chegando a
fundir as vozes de modo que não se saiba quem fala ou pensa.
14 Temática Central Imprudência X prudência em relação aos cavalos de corrida.
15 Temas Teimosia; família; amor; dedicação; relação patrão - empregado;
complementares persistência; autoritarismo; trabalho X família; paixão por
cavalos; ser humano X animal; sacrifício de animais; destino;
gratidão; liberdade; astúcia feminina; consequências;
arrependimento.
16 Linguagem A linguagem é o ponto mais fraco da narrativa. A do narrador se
filia ao padrão culto da língua portuguesa ao mesmo tempo em
que tenta se apropriar dos matizes coloquiais da linguagem,
narrando os fatos como se estivesse conversando com leitor,
como se observa em: “Por sorte havia remédio em estoque na
farmácia do haras, chegado junto com as vacinas. Rebecca nem
reagiu à nova injeção, já tomara tantas.... Parecia cada vez mais
fraca e débil, rejeitou até a água que Lauro agora lhe punha na
boca com as mãos em concha”. (NICOLELIS, 1984, p. 41). A
das personagens intenciona mimetizar as classes sociais as quais
pertencem os seus falantes, além de tentar fundir a linguagem
mais purista com a espontaneidade própria da língua falada,
técnica que causa artificialidade, em muitos momentos, como se
verifica na conversa ocorrida entre Lauro, Chicón e Cirino na
ocasião em que a égua Janaína seria levada para o haras de
Galvão para acasalamento: Lá fora, começavam os preparativos.
O caminhão que levaria Janaína estava encostado e o motorista à
espera. Daniel vistoriava a potranca, que já fora escovada e
lavada com pano embebido em álcool. No dia anterior, Carlos já
lhe passara a grosa nos cascos, deixando-a reta e aprumada como
queria Chicón. Cirino comentou: / - Parece noiva se aprontando
pro altar. Deixa eu ir junto, Chicón! / - E quem toma conta disto?
/ -Ué, a dona Mariquinhas. / - Ela já tem o escritório pra cuidar.
Você fica com o resto... / -- Mas o Lauro vai... / - Lógico que eu
vou – disse o garoto. – A Janaína só obedece a mim. Se eu não
for, ela é capaz de estranhar e ... / - Não precisa tanta justificativa
– apartou Chicón. – Eu disse que você vai e pronto. / Gigante
apareceu, embrulho na mão. / - Dá para o patrão entregar para o
Marcão, lá na escola de jóqueis? Foi a mãe dele quem mandou. /
- Claro. Leva lá no caminhão, diz pro motorista guardar com
cuidado. Algum recado, Gigante? / - Que estamos morrendo de
saudades dele, que, quando puder, venha ver a gente....
(NICOLELIS, 1984, p. 54). Nota-se também clara dualidade
entre essas duas modalidades linguísticas que fica marcada no
uso de aspas em problema de concordância verbal cometido no
349
Passando o bigode pela orelha, alisando suas costas, sua nuca, ela
mergulhada em penumbra.” (p. 79). A narrativa é projetada a
partir da mistura de diferentes tempos e modos verbais, com
maior utilização do presente do indicativo, pretérito perfeito,
imperfeito e mais que perfeito, como também das formas
nominais gerúndio e particípio.
14 Temática Central Frustração amorosa; valores morais de cidades interioranas e
seus efeitos.
15 Temas O modo de vida de cidades do interior; a dura realidade
complementares enfrentada pelos professores para exercer o magistério em
cidades do interior aparentemente a partir de meados do século
XX; traições; fofocas; castidade X luxúria; solidão;
religiosidade; realidade triste de quem é abandonado em um
asilo; o preconceito enfrentado pelas mulheres; exploração no
trabalho; gravidez de mulher solteira; celibato; comportamento
subversivo de padres; desejo de ser mãe; saudades; memória;
namoro; desejo; sensualidade; parto caseiro; a realidade de
vendedores ambulantes.
16 Linguagem Mesmo que se possa fazer algumas ressalvas, de modo geral, a
autora conseguiu fazer um bom trabalho em relação à linguagem,
o que se justifica pelo fato de o registro mimetizar experiências
passíveis de serem vividas no mundo real cotidiano. Tal efeito se
desencadeia, especialmente, pelo uso do discurso direto, uma vez
que tal técnica dá à personagem a possibilidade de falar por si só,
revelando-se com autonomia. Do mesmo modo, o emprego do
discurso indireto livre permite a ocorrência do monólogo interior,
que visa a mimetização da expressão dos pensamentos,
sensações, emoções das personagens, através da voz narradora.
Para tratar dos devaneios e fantasias da protagonista, como
também do monólogo interior das demais personagens; a autora
abusa dos períodos curtos, frases nominais e interrogativas e das
fragmentações, o que também dá à narrativa toques de
poeticidade, com tom bastante melancólico e dramático, como se
observa em “Faltava tão pouco, pra eu ser mulher, me fizesse
mulher amada, me deixasse conhecer o instante, atravessar a hora
da entrega. Queria tanto deixar em teus braços o manto da virgem
que carrego há tanto tempo, pesando mais que mortalha.” (p. 46).
A linguagem do narrador é elaborada, notando-se em sua fala
uma tendência a empregar uma linguagem mais purista, como no
uso de colocações pronominais formais, com várias ocorrências
de ênclises e dos pronomes oblíquos átonos: “Sai do chuveiro,
enxuga-se.” (p. 13); “Convidara meia cidade para o casamento
[...]. O amor chegara tarde para ela [...]. Entrara para tomar café
[...]” (p. 1). Os coloquialismos e a espontaneidade própria da
oralidade (“pra”, “me empresta”) são mais evidenciados nas falas
das personagens, o que não impede que as contrações também
possam aparecer na fala do narrador, particularmente, quando se
lança mão do discurso indireto livre. Há a tentativa de
354
11 Espaço micro A sala do diretor do presídio; os vários ônibus que José pegou
para se locomover nas ações narrativas; a casa de dona Carmela;
a padaria de seu Manoel; o metrô e a estação do Brás; o prédio
que foi construído no lugar da antiga construção onde o crime
ocorreu; o bar da esquina.
12 Voz narrativa O narrador situa-se fora da história. Há predomínio na utilização
do discurso direto, com várias ocorrências do discurso indireto
livre e com raríssimas aparições do discurso indireto.
13 Foco narrativo O narrador demonstra ter conhecimento ilimitado sobre o
universo das personagens, trazendo as informações necessárias
para a compreensão dos eventos narrativos, evidenciando visível
simpatia pelo protagonista. Por conta disso, as ações narradas
acompanham a perspectiva de José, sendo revelado ao leitor todo
o universo interior e exterior, bem como o seu passado empírico
e angústias. Predomina, na obra, os verbos conjugados no
358
10 Espaço macro A menção ao aeroporto de Cumbica permite afirmar que seja São
Paulo.
11 Espaço micro Maternidade; a casa de Mahara; a escola regular; a escola
especializada em deficiência; a escola de Niedja; o consultório
de dra; Lúcia; a clínica de dr. Paulo; o aeroporto de Cumbica; o
aeroporto dos Estados Unidos; a faculdade onde Daniel
trabalhava; a última escola na qual Mahara estudou.
12 Voz narrativa A voz narrativa predominante é a de Daniel, o narrador
personagem. Mesmo que os eventos narrativos sejam contados a
partir da perspectiva do pai protagonista, há certo equilíbrio entre
o discurso indireto livre e o discurso direto. Em geral, ele cede a
voz aos demais personagens, permitindo que elas mesmas narrem
os eventos narrativos que ele presenciou.
13 Foco narrativo A focalização é predominantemente a do narrador-protagonista,
e mesmo que a voz seja cedida aos demais personagens nos
diálogos, o que predomina é a sua visão sobre os fatos ocorridos.
Ao final da narrativa, por exemplo, os dois irmãos de Mahara
dizem ao pai estarem dispostos a cuidar dela, quando necessário,
mas Daniel diz que não é possível contar com eles, uma vez que
já têm suas próprias vidas, como se lê em “Não, não posso contar
com eles. Tenho de contar comigo e com Samanta. Tina e mamãe
estão velhas, não resta mais ninguém. “(p. 68). Portanto, todos os
eventos narrados passam pelo crivo de sua subjetividade,
expressando neles seus valores, sua visão de mundo e seu modo
pessoal de enxergar as questões e de se relacionar com eles. O
uso intenso de verbos conjugados no presente dá ao leitor a
impressão de que os fatos se desenrolam diante de seus olhos, o
que pode aproximá-lo ainda mais do drama vivenciado pelo
narrador-protagonista.
14 Temática Central A criança com deficiência mental e a sua relação com a família e
a sociedade.
15 Temas A diferença de temperamentos entre os casais; as variadas formas
complementares de manifestações de emoções; a imagem idealizada da mulher; a
frieza de alguns estudantes de medicina; saudades; amor;
mudanças; o amadurecimento trazido pelo sofrimento; sonhos; a
dificuldade em se tomar decisões; integração; o caminho a ser
percorrido até que se possa realizar um sonho; a busca pela
identidade; o deficiente mental também pode se apaixonar;
cooperação; a união de pessoas que vivenciam os mesmos
problemas; as associações de pais que têm filhos deficientes; a
dificuldade de inserção do deficiente no universo do trabalho; a
influência de aspectos culturais no processo de construção da
identidade feminina e masculina; planejamento familiar;
gravidez indesejada; aborto; pai de primeira viagem; trabalho X
família; a relação entre sogras e genros/noras; novas tecnologias
a serviço da medicina; a felicidade trazida pela chegada de uma
criança; amor à primeira vista; educação dos filhos; intuição,
368
convida para estudar lá, mas antes ela convida pais, alunos e
professores para uma palestra com três infectologistas que se
dispõem a esclarecer as dúvidas a respeito do vírus HIV. Foi
quando Bianca viu o desânimo de Lauro para enfrentar o vírus,
entregando-se aos poucos a uma depressão, chegando até
mesmo a ser internado em razão de uma grave pneumonia, é que
ela encontrou forças para viver, entregando ao tempo o seu
destino.
5 Organização da A narrativa é organizada em 14 capítulos, todos intitulados
narrativa “Tempo”, sendo estes acompanhados de numerais cardinais, a
começar pelo número zero: “Tempo: 0”, “Tempo: 1”, “Tempo:
2”, sucessivamente. A autora usa a técnica do flashback para
narrar a história de Bianca/Arantxa; o primeiro e o último
capítulos situam-se no presente, e os demais, no passado,
recuperando acontecimentos ocorridos dois anos antes.
6 Personagens Bianca/Arantxa; Gastão e Rita, os seu pais; a avó Carolina;
principais Lauro, o namorado de Bianca; Saulo, o médico infectologista.
7 Personagens Seu Jeremias, o porteiro da escola; Verônica, a garota sardenta
secundários e metida; Priscila, amiga de Bianca; o dentista charlatão e sua
secretária; a enfermeira; Leandro e Laércio, irmão de Lauro; o
parente de Lauro que precisou de doação de sangue; a
enfermeira do doutor Leandro; doutora Márcia; doutor Saulo,
renomado infectologista; a diretora da escola onde Bianca
estuda, Adélia, melhor amiga da mãe de Bianca; a diretora do
colégio que acolheu Bianca; os pais que estavam na reunião do
colégio ; a mulher que fez pergunta para o médico palestrante.
8 Tempo (histórico, O tempo histórico não está determinado, mas há referências que
cronológico ou permitem situar a narrativa em tempo contemporâneo ao
psicológico) momento que foi escrito o texto, década de 90, período em que
a discussão sobre a AIDS foi bastante latente na sociedade
brasileira.
9 Duração da ação Os acontecimentos narrados acompanham mais de dois anos da
vida da narradora protagonista.
10 Espaço macro Indeterminado, provavelmente São Paulo.
11 Espaço micro A casa de Bianca; apartamento de Priscila; o apartamento do
amigo de Lauro; a clínica médica; a clínica de Laércio; a casa
de Lauro; o restaurante onde Bianca e Verônica se encontraram;
a clínica de doutor Saulo; a enfermaria; o mercado; os dois
colégios onde Bianca estudou.
12 Voz narrativa A voz narrativa é a da narradora-protagonista; ao longo do
texto, na organização dos diálogos, predomina o discurso direto,
com algumas ocorrências do discurso indireto.
13 Foco narrativo Os acontecimentos chegam ao leitor pela perspectiva da
narradora-protagonista, condição que dá a ela uma visão
limitada; no entanto, em alguns momentos, ela se comporta
382
10 Espaço macro São Paulo; Goiás; Alguns país da América (Estados Unidos)
12 Voz narrativa O narrador está fora da história, com emprego equilibrado dos
discursos direto e indireto livre.
13 Foco narrativo O narrador é heterodiegético onisciente, visto que além de
possuir conhecimento ilimitado acerca do universo interior e
exterior de todas as personagens, também narra na perspectiva de
todas as personagens, trazendo à tona todos os conhecimentos
que sejam significativos para a compreensão dos eventos
narrativos por parte do leitor. A postura do narrador é de quem
quer a todo momento dar conselhos, denunciar e propor reflexões
acerca do drama vivenciado por Marco Aurélio, bem próxima da
postura de narradores tradicionais. De modo geral, ele intenta
convencer o leitor de que o ser humano é muito mais do que a
sua orientação sexual. O emprego recorrente de verbos no
presente e no gerúndio pode aproximar o leitor da situação
dramática apresentada na obra. O pretérito perfeito também é
bastante empregado na narrativa.
14 Temática Central A necessidade de libertação da tradição social e cultural
homofóbica que perpassa variados setores da sociedade.
15 Temas Diferentes questões ligadas à vida cotidiana em uma metrópole
complementares como São Paulo: furtos de moto; prudência no trânsito; trabalho;
rotina familiar e escolar; primeiro amor; desencontros amorosos;
amor X amizade; dúvidas; angústia; invasão de privacidade,
namoro; perdão; arrependimento; respeito; generosidade;
companheirismo; primeira consulta ginecológica; iniciação
sexual, métodos contraceptivos; doenças sexualmente
transmissíveis; camisinha feminina; formas de contaminação da
aids; sexo seguro; importância da fidelidade amorosa; atividade
sexual; questionamento sobre o cumprimento das leis oficiais,
religião; diferença de idades entre casais; homofobia; divórcio e
suas consequências; golpe do baú; vestibular; projeto e carreira
profissional; machismo; preconceito; terapia; pesquisa; as causas
científicas e históricas da homossexualidade; a construção social
e cultural da sexualidade; as contradições humanas.
16 Linguagem Ponto fraco da narrativa, a linguagem é muito técnica, o que pode
fazer com o leitor se sinta diante de um manual de instrução,
apesar do emprego constante de figuras de linguagem, sobretudo,
de metáforas, que tende a construir um universo mais literário. A
ânsia por tentar oferecer ao leitor as causas históricas e científicas
da homossexualidade, como também de outros assuntos ligados
ao universo juvenil, pode ser responsável por essa deficiência
narrativa. Observa-se a tentativa de tentar incorporar as
demandas linguísticas do momento em que o texto foi escrito. No
entanto, em algumas situações, há exagero até na seleção de
algumas palavras, pesadas demais para alguns leitores mirins,
prejudicando com isso o imaginário, que é fundamental para o
desenvolvimento do leitor em formação. Na narrativa, a
linguagem científica se mistura com a ficção por meio da
introspecção, ocorrida, sobretudo, a partir das leituras que Marco
395
12 Voz narrativa A voz situa-se fora da história; predomina o discurso direto sobre
o indireto na construção dos diálogos. O discurso indireto livre
também é explorado na narrativa.
13 Foco narrativo Mesmo que o narrador onisciente demonstre simpatia pelas
personagens Anuska, Francine, Zeílton e Carolina, quando
necessário, traz à tona a perspectiva de todas as demais
personagens com vistas a oferecer ao leitor informações que
tornem legíveis a matéria narrada. Esse narrador de visão
ilimitada, narra, comenta, explica e emite diferentes opiniões ao
longo da sequência narrativa.
14 Temática Central Distúrbio alimentares: anorexia e bulimia; amadurecimento.
15 Temas Obesidade na adolescência; ditadura da magreza; efeito sanfona;
complementares regime; o sonho de ser modelo; tipos de obesidade; maldade;
apelidos pejorativos; paquera e namoro; transformações
emocionais na adolescência; obsessão por beleza; exemplo dado
pelos pais; a moda voltada para pessoas magras; ausência dos pais;
excesso de trabalho; virgindade; sexo; doença sexualmente
transmissíveis; sexo seguro; relacionamento entre pais e filhos;
rebeldia; sonhos profissionais; excesso de liberdade; a
dificuldades enfrentadas pelas bailarinas; problemas emocionais;
quantidade X qualidade de tempo dedicado aos filhos; amizade;
atritos entre mães e filhos; devaneios; paixão adolescente; rodízio
de carro; poluição; assalto; violência urbana; trânsito intenso;
estupro; linchamento; crime contra a mulher; heroísmo;
coincidência; condenação de inocentes; aparência X essência; o
receio das mulheres em denunciar seus agressores; fantasia X
realidade; reconciliação; a importância da família no processo de
recuperação de um doente; amor.
16 Linguagem Linguagem ágil, acessível, fluente, porém, em muitos momentos,
artificial e inverossímil, posto que diversos registros apresentam
expressões e construções próprias da norma culta ao lado da
linguagem coloquial de modo artificial, não representando a
naturalidade da linguagem falada.
17 Pedagogismos Na seção dedicada à autora, Nicolelis deixa claro que foi levada a
escrever o livro em questão por variados motivos, destacando-se
entre eles os seguintes: o excesso de campanhas voltadas para o
emagrecimento e o desejo de discutir com seus leitores a bulimia
e anorexia, duas síndromes que, naquele momento, estavam
atacando as adolescentes, sobretudo, modelos e artistas.
18 Outras O livro foi ilustrado por Daisy Startari; apresenta uma epígrafe de
observações Jorge Lima, extraída de Antologia poética, Canto IV – As
aspirações e foi oferecido a Juliana, estudante que, segundo
Nicolelis, estaria vivenciando na realidade cotidiana os mesmos
problemas vivenciados por Anuska.
403
1 Livro NICOLELIS, Giselda Laporta. Amor não tem cor. São Paulo:
FTD, 2002. 111 p. (Série Espelhos)
2 Ano da 1ª edição 2002.
3 Gênero Narrativa social: narrativa de crônica urbana.
4 Resumo da narrativa Marijane e Jefferson são casados há algum tempo e, embora já
tenham tentado várias vezes, ainda não tem filhos. Um dia, a
esposa, a partir de uma conversa com Sr. Otávio, patrão e
amigo, tem o desejo de ser mãe despertado a tal ponto que chega
a pensar em adoção. O marido, que é mestiço, mas que se
autodeclara branco, a princípio recusa a ideia, mas com a
insistência de Marijane, acaba aceitando adotar uma criança,
desde que esta seja recém-nascida, branca e de olhos azuis. Para
a mulher, a cor ou a idade da criança pouco importa, o problema
é que ela fica encantada, em visita a um orfanato, com Deusdado,
um garoto de dois anos da cor parda. A partir daí, começam as
tribulações, pois Jefferson se recusa a aceitar a criança, porém
acaba sendo obrigado a adotá-la, sobretudo, quando Marijane
descobre que ele é autorracista, porque escondeu dela por vários
anos a existência dos avós maternos, especialmente porque
acreditava que a esposa não aceitaria o fato de a avó materna ser
negra, portanto, possuindo vergonha de sua própria origem
étnica. Além do autorracismo do marido, a avó materna de
Marijane também é preconceituosa, mas aos poucos Deusdado,
já adotado, vai conquistando o coração durão de dona Carolina,
que é quem acaba ficando com ele depois do horário da escola,
período em que a neta está trabalhando. Depois de um tempo,
Marijane engravida e dá a luz à pequena Carolina.
5 Organização da A narrativa é organizada em 18 capítulos, todos titulados e
narrativa numerados por extenso. Os títulos sintetizam as principais ações
desenvolvidas em cada capítulo que se estruturam de forma
simples e linear.
6 Personagens Marijane e Jefferson; Laura e Fábio, os pais de Marijane; dona
principais Rosa e seu marido, pais de Jéfferson; dr. Otávio; Deusdado; dona
Mercedes e seu Jorge, avós de Jéfferson; dona Carolina;
7 Personagens Daniel, o neto de dr. Otávio; a servente; Zuleide; o vigia; os três
secundários office-boys; a senhora de idade; a funcionária do banco; os
clientes; dr. Alberto, o gerente do banco; Mário, o colega de
trabalho de Jéfferson e sua namorada; o taxista; a freguesa de
dona Mercedes e Felícia, sua emprega; a esposa de dr. Otávio;
dona Dalva; as crianças do abrigo; a menina de olhos tristes; dr.
Pantei, o pediatra; o gerente da loja; a professora Luciana e a
420
8 Tempo (histórico, A julgar por várias referências, é possível afirmar que o tempo
cronológico ou histórico da narrativa é atual; prepondera a manipulação do
psicológico) tempo cronológico na esfera da apresentação dos
acontecimentos, mas o tempo psicológico também é explorado,
sobretudo no último capítulo, “Quando chega a hora”, onde o
narrador onisciente focaliza as divagações da heroína em
relação à sua trajetória de vida: “Deitada na cama, em silêncio,
Cris aconchega-se como um feto retornando ao útero materno,
cálido, na penumbra. E, como num filme, vê a própria vida
desfilar perante seus olhos... (p. 101). E ainda: “O filme
continua em sua cabeça ... Agora imagina-se num grande
público, de toga, ao lado de uma centena de colegas. O tempo
passou rápido, nem se deu conta disso devido à devoção total à
faculdade, nos seis anos de curso. Como sempre, foi uma aluna
brilhante.” (p. 106). Ao final das oito páginas que constituem o
capítulo, a heroína finalmente dorme: “Cerra os olhos. E, quase
dormindo, ainda se lembra dos contos de fadas que a mãe lia
para ela na tenra infância. Todos, sem exceção, ensinavam:
‘quando chega a hora... chega a hora’”.
9 Duração da ação O essencial da ação dura quase dois anos. No Epílogo há o
avanço de mais um ano.
10 Espaço macro Está indeterminado, mas tudo indica que seja São Paulo.
11 Espaço micro O shopping recém-inaugurado; lanchonete; a casa da casa de
Cris; a escola: sala de aula e sala dos professores; assistência
jurídica; o laboratório; o carro de Claudionor; à frente da escola.
12 Voz narrativa O narrador situa-se fora da história. Predomina o emprego do
discurso direto; há várias ocorrências do discurso indireto e do
indireto livre.
13 Foco narrativo Trata-se de um narrador onisciente, que cede a voz às
personagens frequentemente e que, embora apresente ponto de
vista favorável à protagonista, por ela demonstrando simpatia,
de acordo com as necessidades da economia narrativa, não se
furta de focalizar o universo interno de todas as personagens.
Esse narrador tem presença ativa na história, por intermédio dos
julgamentos e opiniões que emite, como também pelo emprego
do discurso indireto livre, uma vez que colando sua visão a da
protagonista, as vozes se fundem sem que se saiba quem fala ou
pensa, como se observa na passagem que segue: “Como poderia
confiar, logo no primeiro momento que conheceu o Claudionor,
se somente aprendera que o mais rico sempre se aproveita do
mais pobre. Que o homem quer apenas tirar vantagem da
mulher, fazer-lhe ‘mal’? Que o preço do amor (da entrega mais
íntima) se traduzia no abandono e em cicatrizes mais
profundas? (p. 102).
14 Temática Central A busca pela identidade e pelo reconhecimento da paternidade.
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