A Inserção Do Negro e Seus Dilemas - Joel Rufino Dos Santoa
A Inserção Do Negro e Seus Dilemas - Joel Rufino Dos Santoa
A Inserção Do Negro e Seus Dilemas - Joel Rufino Dos Santoa
A Inserção do Negro
e seus Dilemas
JOEL RUFINO DOS SANTOS
O QUE É NEGRO 1
Os positivistas advertiam que qualquer estudo, de ciência exata
ou humana, deve começar pelo esclarecimento dos nomes. O que se
está querendo dizer quando se diz “negro”? Que é um “negro” (e da
mesma sorte o que é um “branco”, um “moreno”, um “pele vermelha”,
etc.)?
1 Este capítulo está calcado em parte no meu texto “A luta organizada contra o racismo”. Atrás
do muro da noite, Brasília, FCP-MINC, 1994.
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2 O termo “raças invisíveis” foi usado inicialmente por Claude Lévi-Strauss em 1971.
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3 IANNI, Octavio. Raças e classes sociais. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 46.
4 Lévi-Strauss lembra o caso famoso de F.B. Livingstone que demonstrou como o surgimento
da malária e a subsequente difusão da siclemia na África Ocidental resultaram da introdução da
agricultura ali: a caça ou a destruição da fauna e o desbastamento intensivo provocaram a forma-
ção de terras paludosas e poças d’água, que por sua vez favoreceram a reprodução de mosquitos
contaminadores, obrigando esses insetos a se adaptar ao homem, convertido no mamífero mais
freqüente a que podiam atacar, levando em consideração outros fatores, como as taxas variáveis
de siclemia segundo os povos, foi possível sugerir hipóteses plausíveis sobre a época em que
determinados grupos se estabeleceram ali, sobre a movimentação de tribos e até sobre as datas
relativas em que eles adquiriram técnicas agrícolas.
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5 “A própria noção regional de bugre não constitui por si só um anátema contra o índio e um
sintoma de sua alienação?” . OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Do índio ao bugre. Rio de Janei-
ro, Francisco Alves, 1976, p.p. 8-9.
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O NEGRO BRASILEIRO
Nosso senso comum tende a ver a história do negro brasileiro
como sucessão de três grandes capítulos: aceitação da escravidão,
marginalização e integração. Já o negro organizado na luta contra
o racismo (movimentos negros) a vê como sucessão de rebeldia,
marginalização e luta organizada contra o racismo. Como toda visão
do passado, são ambas parciais e ideológicas — não se trata do
passado verdadeiro (até onde se pode falar disso), mas da percepção
do passado desde um certo ângulo do presente. Por outras palavras:
a forma de inserção na sociedade atual condiciona a visão histórica.
Tratemos, pois, para começar, dessas duas inserções: a do negro
militante de movimento negro; e a do negro (ou preto) comum,
advertindo desde já que a “verdade histórica” aparece tanto numa
visão quanto na outra.
9 É interessante notar, de passagem, que a equação racial, na visão comum brasileira, se reduz a
brancos versus negros, não abarcando outras “raças”. Tanto é assim que os movimentos negros,
em geral, relutam em buscar alianças com o movimento das nações indígenas, e outros menores.
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11 O tema raça/classe na estrutura social brasileira tem vasta bibliografia. Ver, entre outros, G.
DE OLIVEIRA, Lúcia Helena e outras. O ‘ lugar’ do negro na força de trabalho, Rio de Janei-
ro, IBGE, 1980; SILVA, Nelson do Valle e. “O Preço da Cor: Diferenças Raciais na Distribuição
da Renda no Brasil”, in “Pesquisa e Planejamento Econômico”, X (abril de 1988); HASENBALG,
Carlos A . Discriminação e Desigualdades Rraciais no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
12 Ver, entre outros, SOUZA, Amaury de. “Raça e Política no Brasil Urbano”, in “Revista de
Administração de Empresas”, XI ( outubro-dezembro de 1971).
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13 Sobre “grupos específicos” e sua razão de ser, MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a
mau cidadão?, Rio de Janeiro, Conquista, 1980, p. 168 e seguintes.
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14 São inúmeros os depoimentos sobre a “animalização” do negro escravo. Ver, entre outros:
DARWIN, Charles. Viagem de um naturalista ao redor do mundo, Rio de Janeiro, Sedrega, s/
data, 1° volume, pp. 44-45.
124 Joel Rufino
15 Sobre a distinção entre escravo como classe e escravo como condição civil, ver, entre outros:
FREITAS, Décio. Escravos e senhores-de-escravos, Caxias do Sul, Choronos, 1977.
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I. Quanto à estratégia:
1. Enfrentamento individual ou coletivo, sem formação de
comunidade alternativa;
2. Fuga coletiva, com a formação de comunidade alternativa
(quilombo);
3. Participação em rebelião de outrem;
4. Rebeliões pela tomada do poder;
II. Quanto á tática:
1. Ações criminosas
2. Guerra de movimento;
3. Guerrilhas;
4. Conjurações;
5. Insurreições.
e mocambo, cerca, terra dos pretos, parecem ter sido os apelativos mais
comuns.
QUILOMBOS C ONTEMPORÂNEOS
Há por todo o país um sem número de comunidades (ou coisa que o
valha), suficientemente coesas e isoladas da sociedade global e, em grau
variável, da própria sociedade regional, remanescentes de antigos
quilombos, ou instaladas por latifundiários decadentes no final do século
XIX, ou ainda mais raramente resultantes de “invasões” recentes, para
que se possa falar em quilombos contemporâneos — expressão talvez
preferível àquela que a constituição de 1989 consagrou, no artigo 68, das
disposições transitórias (em que manda a União emitir títulos definitivos
de posse em seu benefício), como “remanescentes de quilombos”.
19 FRY, Peter. Para inglês ver. Rio de Janeiro, Zahar, 1982, p. 129.
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geral (como o da Casa das Minas, de São Luís). Elas constituem famílias
rituais, representam certo padrão de geração e distribuição de renda
contraposto ao da sociedade envolvente. Reelaboram sem cessar, numa
palavra, o que a antropologia chama estratégias de sobrevivência, conjunto
de maneiras adaptativas às situações sócio-econômicas desfavoráveis. Eis
a visão de uma especialista: “Esses ‘terreiros’ constituem verdadeiras
comunidades que apresentam características especiais. Uma parte dos
membros do ‘terreiro’ habita no local ou nos arredores do mesmo,
formando às vezes um bairro, um arraial ou um povoado. Outra parte de
seus integrantes mora mais ou menos distante daí, mas vem com certa
regularidade e passa períodos mais ou menos prolongados no ‘terreiro’
onde eles dispõem às vezes de uma casa ou, na maioria dos casos, de um
quarto numa construção que se pode comparar a um ‘compound’. O
vínculo que se estabelece entre os membros da comunidade não está em
função de que eles habitem num espaço: os limites da sociedade egbé não
coincidem com os limites físicos do ‘terreiro’. O ‘terreiro’ ultrapassa os
limites materiais (por assim dizer pólo de irradiação) para se projetar e
permear a sociedade global. Os membros do egbé circulam, deslocam-se,
trabalham, têm vínculos coma sociedade global, mas constituem uma
sociedade ‘flutuante’, que concentra e expressa sua própria estrutura nos
‘terreiros’.[...] ‘Compound’ é um termo comumente aplicado, na Nigéria,
a um lugar de residência que compreende um grupo de casas ou de
apartamentos ocupados por famílias individuais relacionadas entre si por
parentesco consangüíneo”20.
Se é certo que durante todo o tempo a maioria dos negros foi escrava,
houve sempre, sobretudo nas cidades, e a parir de 1800 (para tomar uma
data), ponderável franja de homens negros livres — os pretos forros das
devassas e crônicas coloniais. Preto ou negro não foi, em princípio, uma
classe. Classe era o escravo de eito, o proletário escravizado criador da
riqueza de que viviam os demais, inclusive muitos negros e até mesmo
escravos possuidores de escravos. Esse não contava com a solidariedade
20 ELBEIN, Juana. Os nagô e a morte. Petrópolis, Vozes, 1977, 2a ed., pp. 32 - 33.
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O C ASO DO M ARANHÃO
Tomando o Maranhão como caso, em meados do século XIX a
decadência do Norte agrícola estava consumada, a ponto de erigir-
se em ideologia — a ideologia da decadência, como chamou um
sociólogo 23. Grandes lavradores, intelectuais e administradores da
província viam o seu passado como sucessão de três grandes etapas:
a gentilidade, de imobilismo e estagnação (até cerca de 1760); a
prosperidade, de expansão e enriquecimento ( até cerca de 1840);
e, por fim, a decadência, em que o compasso de desenvolvimento
maranhense se torna inversamente proporcional ao do Sul e
Sudeste.
24 São trabalhos clássicos sobre a lavoura maranhense: ABRANCHES, João Antônio Garcia
de, Espelho crítico político da província do Maranhão, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1822;
GAIOSO, Raimundo José de Souza, Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura
do Maranhão, Rio de Janeiro, Livros do Mundo Inteiro, 1970; BRANDÃO, F. A . , A escrava-
tura no Brasil. (Precedida de um artigo sobre agricultura e colonização no Maranhão), Bruxe-
las, Typ. H. Thiry-Vass Buggenhout, 1865; XAVIER, Manuel Antônio, Memórias sobre o deca-
dente estado da lavoura e comércio da província do Maranhão e outros ramos públicos que
obstam a propriedade e aumento de que é suscetível, Rio de Janeiro, I.H.G.B., 1956.
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25 Um bom resumo dessa questão está em B. DE ALMEIDA, Alfredo Wagner, op.cit., no capí-
tulo “Quilombos, Selvagens e facinorosos: Pânico na Capital e no Sertão”.
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O que quer que tenha vindo antes da doação e seus papéis, é sempre
lembrado como sujeição, cativeiro, privação de liberdade, entendida
primeiro que tudo como falta de terra, desorganização da família, trabalho
sem descanso, castigo sistemático. Nada muito diferente da memória geral
do cativeiro que teme o negro por toda parte: sofrimento caótico, quase
inapreensível pela lembrança. O negro passa a existir quando ganha a
terra e isto aconteceu ao mesmo tempo em que “gritaram liberdade” e,
desde então, instalados e “sem sujeição” se tornaram parentes entre si.
Datar o tempo histórico em que se deu essa passagem, nos vales quentes
dos grandes rios maranhenses, não é difícil, como vimos: quase nunca
antes de 1850 e raramente depois de 1888.
26 Sobre a paranóia dos papéis, fora do Brasil, ver HOBSBAWN, Eric J., Peasant land
occupations, Londres, Oxford, Past and Present, 1974.
27 A designação é de CORREIA LIMA, Olavo, Isolados negros do Maranhão, São Luís,
Gráfica São José, 1980.
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28 Sobre a expropriação das comunidades rurais negras do Maranhão por intermédio da pecuá-
ria, ver, entre outros, SOARES, Luís Eduardo, Campesinato: idologia e política, Rio de Janei-
ro, Zahar, 1981.
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dizer que ele possuía o equipamento básico (ou ao menos uma parte
dele) para decolar. Teria decolado não fossem mais fortes as
circunstâncias econômicas, políticas e ideológicas adversas da
sociedade global e do momento histórico.
Recife, Vila Rica), instalara-se nos serviços urbanos uma camada de libertos
(em geral por alforria). O que, no fim do século XIX, impediu esse grupo
proporcionalmente numeroso de artesão de se transformar em burguesia?
Ou feita a pergunta de oura maneira: por que o negro artesão livre do
século XIX não se promoveu a burguês, ou pequeno-burguês, do século
XX?
“Q UILOMBO”
É impossível saber se as duas visões da história do negro no Brasil (a
dos negros politizados e a dos negros comuns) se compatibilizarão no
futuro. Se acontecer, os movimentos negros ganharão outra amplitude,
passando a influir nos rumos da nação (entendida aqui, sumariamente,
como poder nacional). A história, contudo, se reescreve sem cessar: eis
uma contingência que inclui até mesmo os que se empenham, num
determinado momento, em liquidar as tolas e preconceituosas “versões
oficiais”.
Ora, essa visão e a “cultura da festa” que dela deriva, se chocam com
a reivindicação do “direito à história”. Além disso se alegou que
“Quilombo” reabilita Ganga Zumbi (e, secundariamente, o algoz Jorge
Velho) e diminui Zumbi. Eis de volta os emblemas da aceitação-rejeição, o
mais antigo e recorrente dilema da inserção do negro na sociedade
brasileira. De fato, se definimos herói como “o que encarna dramaticamente
29 A Casa Branca foi a matriz dos terreiros de candomblé da Bahia (fundado por volta de
1830). Vinha sendo “invadido” pela especulação imobiliária e estava em situação física precá-
ria. A mobilização da opinião pública em sua defesa, bem como a demonstração do seu papel
histórico, acabou por acionar os órgãos federais competentes.
30 Sobre o caráter dionisíaco do negro, em contraste com o branco, ver , entre outros, o prefácio
de Gilberto Freyre para O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, Rio de Janeiro, Civiliza-
ção Brasileira, 1964.
31 MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís, Rio de Janeiro, José Olympio, 1970.
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A NAÇÃO INCONCLUSA
Éramos, com efeito, ao terminar o século passado, uma nação
inconclusa. O exército, como corpo profissional, orgânico, presente em
todo o território, só se constituiu entre 1865 e 70. A escravidão, que deixava
a esmagadora maioria da população fora da cidadania, só se aboliu em
1888. O voto universal, salvo para analfabetos, é de 1891. A federação,
idem. O que, desde então, chamamos unidade nacional se concluíra —
com um rastro de sangue sem paralelo em toda a América — apenas em
1845, com a liquidação da república farrroupilha. E, enfim, só com a
lavoura cafeeira, por volta de 1860, demos o primeiro passo na direção de
uma economia cuja renda gerada se acumulasse, em maior parte, no
interior do país.
mesmo dos partidos políticos que tendem, por vez o histórico, a encará-
los como meros instrumentos de ação política.
Está visto que a crise de fundo brasileira não se esgota nesses pontos
aflorados. Ocorre apenas que a crise da Nação — ou melhor: dos projetos
de nação elaborados até aqui, e das suas subcrises, como a da concepção
de cultura e civilização brasileiras — se apresenta mais visivelmente como
desafio à reflexão dos movimentos negros que a de outros. Pois bem diante
dela, esses movimentos poderiam se manter alheios (de fato,
enganosamente alheios), e isolar-se, acabando por sucumbir; ou poderiam,
ao contrário, se colocar no seu epicentro, inserindo-se nele e, ao contribuir
para sua superação, superar-se também. Na verdade, existem as duas
tendências no interior dos movimentos negros.
RESUMO
Neste ensaio o autor analisa a questão do negro no Brasil, partindo de uma
conceituação terminológica e passando por considerações históricas, antropológicas e
sociais, incluindo-se considerações políticas. O autor argumenta que elementos de dife-
renciação entre raças humanas, além das morfológicas, pretos, brancos e amarelos têm
costumes diferentes e se relacionam de maneiras diferentes com a natureza e entre si, mas
tais diferenças, em geral estereotipadas, objetivamente nada tem a ver com o patrimônio
genético que os grupos acumulam a partir da reserva comum da raça humana.
ABSTRACT
In this essay, the author analyze the question of the colored people in Brazil, starting
from the current terminolgy, and going through historical anthropological and social
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approaches. The author shows that there are several elements of differentiation among
human races other than the morphological ones. Blacks, whites, and yellows have different
ways of developing their relationship with each other and with nature and such differences,
generally stereotyped, objectively do not have anything to do with the genetic heritage
accumulated by all groups of the humankind.
O Autor
JOEL RUFINO DOS SANTOS. Professor da Faculdade de Letras e da Escola de Co-
municação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do Comitê Científico
Internacional do Programa Rota do Escravo da UNESCO. Entre outras obras, é autor dos
livros “O que é racismo” (Ed. Brasiliense), “História, histórias” (FTD) e “Quem fez a Re-
pública” (FTD).