O Homem Após Freud e Lacan - Filipe Pereirinha

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O Homem após Freud e Lacan

O HOMEM APÓS FREUD E LACAN

por

Filipe Pereirinha*

Resumo: A psicanálise não trata do homem enquanto homem, mas enquanto Sujeito. É a proposta
de Lacan no seguimento de Freud. Mas o que é o Sujeito para Lacan? E por que razão ele inventa
o termo Parlêtre para substituir o de Sujeito? Eis algumas das questões que nos orientam e às quais
procuramos responder.
Plavras-chave: Lacan; Sujeito; Parlêtre.

Abstract: Psychoanalysis is not about the human being as human being, but as a Subject. It is the proposal
of Lacan following Freud. But what is the Subject for Lacan? And why he invents the «Parlêtre» term
to replace the Subject? Here are some of the questions that guide us and which we intend to answer.
Keywords: Lacan; Subjet; Parlêtre.

Pretende-se, então, falar do Homem. Nada mais pertinente, uma vez que falar
do Homem é falar de nós, da nossa condição: nem deuses nem animais, antes uma
corda esticada entre ambos, como diria Nietzsche.
Confesso, porém, que me ocorreu, ao ler o título deste Colóquio, uma per-
gunta: será que o Homem existe? E não me refiro sequer às visões mais alarmistas
sobre o futuro do homem. Veja-se, por exemplo, o que dizia Stephen Hawking, o
conhecido físico, em 2014, numa entrevista que deu à BBC: «Penso que o desen-
volvimento de uma inteligência artificial completa poderia pôr fim à humanida-
de… Uma vez que os homens tivessem desenvolvido a inteligência artificial, esta
descolaria sozinha e se redefiniria cada vez mais depressa. Os humanos, limitados
por uma lenta evolução biológica, não poderiam rivalizar e seriam ultrapassados.»1
Não falo, contudo, desse lugar. Convém saber o lugar de onde se fala. Limito-
-me a situar a questão a partir de Freud e Lacan: o inventor da psicanálise e um
dos seus mais importantes seguidores. É o meu pequeno contributo para a reflexão.

*
ACF – Portugal.
1
Citado por Laurent, E., in: «La societé de la défiance numérique». Cause du désir. nº 90., Paris:
Navarin Éditeur, 2015, p. 73.

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E a pergunta que me ocorre em primeiro lugar é esta: o que vem para La-
can no lugar do Homem? Eu diria, simplificando: o Sujeito. Sobretudo na fase
inaugural do seu ensino, digamos durante os anos cinquenta do século XX. Mas
o Sujeito, nesta época, não é visto por Lacan como um ser, antes como uma falta
-em-ser. Dizendo de outro modo: para aquele que fala e é falado, o ser é algo de
problemático, escorregadio, faltoso. Se alguém pergunta quem sou, por exemplo,
arrisca-se a cair num embaraço interminável. Se uma psicanálise fosse uma inda-
gação ôntica ou ontológica sobre si mesmo não teria fim. Nem todos os nomes
do mundo, parafraseando Saramago, conseguiriam dar conta do que um Sujeito
é. Porque um Sujeito é apenas, na verdade, uma fenda, um hiato que existe entre
dois significantes. Por exemplo num lapso: quando se quer dizer uma coisa e sai
outra. Onde está o Sujeito neste caso? Precisamente no deslize entre a primeira
e a segunda palavra: a que pretendíamos dizer e a que dissemos efetivamente. O
Sujeito resulta de um tal deslize. Mais do que uma causa, ele é um efeito.
Daí que, nesta primeira fase, Lacan se interesse muito por Hegel e pela questão
do desejo. O desejo é a metonímia do Sujeito. Quer dizer: uma vez que este, em
si mesmo, não tem ser, é uma falta-em-ser, o desejo põe a circular essa falta sob o
modo de uma insatisfação. O que falta em ser ao sujeito torna-se causa de desejo.
Assim, o desejo vai de um objeto ao outro, de uma coisa a outra, mas nada
o satisfaz, nada o contenta, a não ser momentaneamente. Ser descontente é ser
homem, como já Pessoa afirmava. O capitalismo incorporou esta lógica no seu
modo de funcionamento, fazendo da insatisfação estrutural do sujeito um motor de
consumo. Na verdade, como Hegel destacou, nomeadamente na famosa dialética
do senhor e do escravo, mais do que um objeto propriamente dito, o desejo visa
sobretudo um outro desejo. É um desejo de reconhecimento. Daí que Lacan, nesta
primeira época, citando Hegel, costumava repetir que O desejo do homem é desejo
do Outro. Embora seja igualmente importante sublinhar que nem o Sujeito nem
o desejo são a última palavra no ensino de Lacan. Se é que tem sentido falar de
última palavra num ensino, como este, que não parou de devir.
Por isso, mais tarde, durante os anos setenta, Lacan inventou um neologis-
mo, Parlêtre, que substitui em certa medida o termo Sujeito.2 Tal como a palavra
indica, mais do que a falta-em-ser do Sujeito, como acontecera até aí, aponta-se
agora para o ser. Não um ser abstrato, digamos, mas um corpo: um corpo falante,
que fala e é falado.3 Mas o que é um corpo para a psicanálise?

2
Cf. Pelissier, Y. et al., 789 Néologismes de Jacques Lacan. Paris: EPEL, 2002, p. 70-71.
3
Cf. Miller, J.-A. «L’inconscient et le corps parlant», Scilicet. Paris: École de la Cause freudienne,
2015, p. 21-34.

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A biologia, como sabemos, ocupa-se do corpo. A neurobiologia põe em des-


taque os mecanismos neuronais que gerem este corpo e lhe permitem adaptar-se e
sobreviver. Mas só até certo ponto. Se abandonarmos um recém-nascido, por mais
impressionante que seja a maquinaria biológica, ele não sobrevive. De um certo
ponto de vista, todo o homem nasce prematuro. É o que Freud chamava o desam-
paro ou a dependência (Hilflosigkeit) do recém-nascido relativamente a um outro
ou outros que cuidem dele e lhe permitam sobreviver.4 E essa condição marca-lhe
um destino. Ou, para dizê-lo em termos hegelianos, uma alienação fundamental.
Não só porque depende estruturalmente do Outro para sobreviver como, por essa
mesma razão, lhe fica em grande medida sujeito. Afinal, não conseguimos viver
sem os outros. Como dizia Eduardo Lourenço há algum tempo, numa entrevista:
«Por mais dependentes que estejamos dos artefactos que inventámos, nós só temos
existência em relação com os outros, no espelho dos outros. Não há nenhuma coisa
mirífica que possamos inventar que suprima a única relação que nos importa a
cada um de nós, que é a de uns com os outros.»5
Mas o que é o outro? Antes de mais, para Lacan, o Outro, que ele escreve
com letra maiúscula, é sobretudo um lugar que pode vir a ser ocupado por esta ou
aquela pessoa, embora não se confunda ou reduza a nenhuma delas. Mais do que
a pessoa em concreto, um pai ou uma mãe, por exemplo, é o que pode dizer-se
ou que é dito nesse lugar. Ou seja: a função da fala no campo da linguagem. E
isso afeta grandemente o corpo.
Um pequeno exemplo. Certo dia, quando se preparava para realizar um
exame na escola que frequentava, A. teve subitamente um ataque de pânico e
ansiedade. Tal aconteceu quando, ao preencher o cabeçalho da folha de prova, foi
interrompido por um vigilante que lhe disse: «Com essa letra nem sequer vão ler
o teu exame!». Tal bastou para desencadear nele uma crise grave que se traduziu
em inúmeros desarranjos no corpo: dores, vómitos, suores, enfim. Foi levado para
o hospital e sujeito a uma série de exames mas não se detetou nada de anormal.
Nenhuma causa de ordem física estivera, portanto, na origem da crise. O que
perturbara então o seu corpo de maneira tão súbita e radical? Filho único, A. era
sujeito a uma constante pressão dos pais. Era comum ouvir frases do género: se
não estudas, não consegues. Nós estamos a pagar demasiado, por isso não podes
falhar. Tens de conseguir!
Os ditos que provêm do Outro, neste caso os pais, não fazem apenas laço,
permitindo o advento de um Sujeito, com sua margem de liberdade frente àquilo

4
Cf. Freud, S., Inhibition, symptôme et angoisse. Paris: P.U.F., 2002.
5
Lourenço, E., Entrevista, Revista Ler, verão 2015, pp. 37.

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que o objetiva, mas também podem tornar-se, para usar um termo de Freud, num
Supereu cruel e obsceno que o pressiona até ao pânico. Mas não será este excesso
um bom indicador de que alguma coisa entrou em crise ao nível do Outro, desse
Outro suposto apaziguar, pacificar, fazer laço entre os seres falantes?
Há alguns anos, Jacques-Alain Miller e Éric Laurent, dois psicanalistas
franceses, animaram conjuntamente um seminário intitulado: O Outro que não
existe e as suas comissões de ética.6 Por um lado, tratava-se de fazer um
diagnóstico da época com base num enunciado lacaniano: O Outro não existe.
Quer dizer: existiram ao longo do tempo, no lugar do Outro, toda uma série de
discursos, narrativas, ficções supostas garantir o bom funcionamento da ordem
social, política, educativa, etc., mas tais ficções têm vindo a ruir uma após outra.
E a questão é a seguinte: o que vem ocupar o lugar do Outro quando este fica
vazio? A segunda parte do título do seminário dá-nos uma preciosa indicação:
as comissões de ética, que proliferam hoje um pouco por todo o lado, são, por-
ventura, um modo de responder à inexistência do Outro. Mas não são o único.
Se quisermos, há respostas a nível imaginário, simbólico e real, para usar três
importantes categorias lacanianas.
A nível do imaginário, a coisa parece clara: há atualmente uma inflação do
olhar. Gérard Wajcman, filósofo, escritor e psicanalista, resumiu-o desta forma
em 2010: «Trata-se de ver tudo, sempre, e de dar tudo a ver. Nascimento do olho
universal, do olho absoluto.»7 Em praticamente todos os domínios da existência,
assistimos hoje a uma tal inflação. Nada pode ficar oculto. A transparência,
muitas vezes em nome do politicamente correto, tornou-se um imperativo que
tudo devassa.
O que é o homem, afinal, neste início do século XXI? É aquele para quem
a obscuridade se tornou problemática, deixou de ser evidente. A justiça lida ago-
ra com um novo problema: conseguir que as grandes empresas, como o Google
ou o Facebook, por exemplo, apaguem certas informações indesejadas deste ou
daquele utilizador. Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, do interior
recôndito do nosso corpo ao astro mais longínquo, parece que nada escapa à fúria
do olho absoluto.
Neste aspeto, a realidade suplantou a ficção. Quando estava a ser preparado
para assistir a uma série ininterrupta de filmes violentos, parte substancial da
terapia de aversão a que é sujeito, Alex, o protagonista do romance A Laranja

6
Laurent, E., Miller, J.-A., «L’autre qui n’existe pas et ses comités d’éthique», La Cause Freudienne,
nº 35. Paris: Navarin Seuil, fevereiro 1997, p. 7-20.
7
Wajcman, G., L’oeil absolu. Éditions Denoël, 2010, p. 19.

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Mecânica, diz o seguinte: «(…) foi quando me puseram tipo uns grampos na tes-
ta, deixando-me as pálpebras todas puxadas para cima e eu deixei de ser capaz
de fechar os olhos por mais que tentasse.»8 Eis uma nova forma de violência: a
impossibilidade de fechar os olhos. Como se o instante de ver, como diria Lacan,
fosse esticado, eternizado, repuxado ao infinito, sem tempo para compreender ou
concluir o que quer que seja.9
O problema de Alex não é tanto não poder fechar os olhos durante o trata-
mento a que é sujeito, pois em menos de quinze dias estará fora da prisão, como
lhe prometem, mas que o mundo cá fora esteja também a mudar inexoravelmente.
Ele é apenas a vítima número um, o pioneiro de uma série. Mais cedo ou mais
tarde, todo o mundo acabará vítima deste horror: não poder fechar os olhos. Ver, ser
visto, fazer-se ver: é todo um novo programa, um novo credo. E ninguém escapa!
Até porque seria politicamente incorreto e suspeito todo aquele que procurasse
defender a obscuridade na era da transparência, da visibilidade absoluta. Teria
com certeza algo a esconder, a proteger… Como se já não ter nada a esconder
fosse mais recomendável! Ou não fosse precisamente quando nada se encontra
escondido que o problema se torna ainda mais inquietante, como diz o narrador
de um romance de Ernst Junger.10
A nível do simbólico, na falta de uma palavra pacificadora, cresce o impulso
da escrita, do relatório, da avaliação. Tudo deve ser avaliado, quantificado, medido.
Nada do que hoje se faz pode ser feito sem registo. Tal como se exige, ao nível
do imaginário, um olho absoluto, capaz de tudo ver, o simbólico carece de um
leitor absoluto, suposto tudo ler. Um leitor ideal que, na verdade, não existe. As
máquinas substituem-se cada vez mais aos homens nesta tarefa hercúlea, pois eles
são incapazes de ler a maior parte do que exigem que se escreva e registe. Se a
pulsão de tudo ver, ao nível do imaginário, esquece que há um real impossível
de ver, a pulsão de tudo registar, a nível simbólico, tende a esquecer que há um
real impossível de escrever.11
Aliás, o próprio estatuto do simbólico tem vindo a mudar: tradicionalmente
ligado à fala e à linguagem, ele é agora, e cada vez mais, o palco do número.
Como dizia recentemente Henri Verdier, «a criação de uma imagem numérica cada
vez mais exaustiva do real, por meio de dados, símbolos que não são significantes,
conduzir-nos-á um dia a analisar diferentemente as fronteiras entre o simbólico,
o real e o imaginário? O real e o simbólico estariam em vias de selar uma nova

8
Burgess, A., Laranja Mecânica, Lisboa; Editora Objetiva, 2012, p. 152.
9
Lacan, J., «O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada», Escritos, op. cit., pp. 197-213.
10
Cf. Junger, E., O Problema de Aladino. Lisboa: Edições Cotovia, 1989, p. 10.
11
Cf. Lacan, J. (1972-1973), Le Séminaire, Livre XX, Encore. Paris: Seuil, 1999, p. 183.

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aliança? O simbólico estaria em vias de se hipertrofiar, tornando-se o real uma


hipótese inútil?»12
Que o real não seja uma hipótese inútil, pelo menos por enquanto, é o que
se depreende do sofrimento, do mal-estar ou da queixa do Sujeito, tanto a nível
individual como coletivo. Um exemplo é o dilema entre a liberdade e a seguran-
ça, que Zygmunt Bauman, entre outros, tem vindo a sublinhar nos últimos anos.
Resumidamente, ao contrário da época de Freud, em que o Sujeito reivindicava
mais liberdade, tendo-a conseguido em grande medida, hoje há vários indícios,
segundo o autor, que parecem mostrar exatamente o contrário. Confrontado com
um real cada vez mais desbussolado, angustiante, o sujeito prefere sacrificar muita
da sua liberdade em nome da segurança.13
Mas também a este nível, do real, há hoje, na falta do Grande Outro, respostas
inéditas. Quando falamos de real, em Lacan, não se trata da realidade quotidia-
na, material ou psíquica. Toda a realidade é já enquadrada, organizada, ordenada
pelo simbólico e pelo imaginário. Não é isso o real lacaniano. O real é antes o
que resiste, escapa ou perturba essa realidade, essa ordem. Digamos, o que faz
sintoma e, como tal, é impossível de reduzir quer ao imaginário (onde é suposto
tudo ver) quer ao simbólico (onde é suposto tudo registar). Um sintoma tem um
núcleo duro que resiste porque inclui uma certa modalidade de satisfação ou de
gozo (jouissance), como diz Lacan. E a questão do gozo é crucial para saber de
que falamos quando falamos de real.
Em 1974, num programa de televisão vertido em texto, Lacan, contra os ventos
e marés da época, profetizou uma escalada do racismo. Vale a pena segui-lo de
perto. Diz ele: «No descaminho (égarement) do nosso gozo há apenas o Outro para
o situar, mas na medida em que estamos separados dele. (…) Deixar esse Outro
entregue ao seu modo de gozo, eis o que seria possível não lhe impondo o nosso.
(…) Acrescentando-se a isso a precariedade do nosso. (…) Deus, recuperando a
força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno
do seu passado funesto.»14
O que nos diz esta passagem admirável? Desde logo que, para situarmos o
nosso gozo, no seu descaminho ou precariedade, precisamos de um Outro, mas
só na medida em que nos separamos dele. Se o Outro não existe, a nível simbó-
lico, inventamos um Outro real que permita situar esse gozo. De que forma? Por
exemplo, concebendo-o como aquele ou aqueles que nos impedem de gozar como

12
Verdier, H., «Big data: du nouveau dans l’ordre symbolique», Cause du dédir, nº 90. Paris: Navarin
Éditeur, 2015, p. 79.
13
Cf. Éric Laurent, «La societé de la défiance numerique», La Cause du désir, nº 90, op. cit., p. 70-71.
14
Lacan, J., «Televisão», Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 533.

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gostaríamos, que gozam melhor do que nós ou, enfim, que nos incomodam, abor-
recem ou perturbam com o seu modo de gozo. E o problema é que hoje, na era
da globalização, quando o mundo parece tornar-se demasiado pequeno para tanta
gente, já não dá para enviar para longe aqueles que nos incomodam, que podem
ser os mais próximos, os vizinhos do andar de cima ou de baixo, que fazem muito
barulho, que riem demasiado alto para o nosso gosto.
Freud, num texto de 1925, afirma que tendemos a introjetar tudo o que é
bom, ou seja, prazeroso ou agradável, e a excluir para longe de nós tudo o que é
mau, sendo que mau, neste caso, significa ao mesmo tempo exterior e estranho,
ou até mesmo estrangeiro.15
Há alguns anos, tendo-me deslocado ao Brasil para um Colóquio, reparei, ao
chegar ao hotel, que havia um pequeno livrinho com um texto, na verdade uma
oração, como rapidamente me apercebi, cujo título era o seguinte: o estranho em
nossa casa. Fiquei, desde logo, tocado por este título. Se me perguntarem o que
dizia a oração, não faço a mínima ideia. Há frases tão poderosas que abafam tudo
o resto. Mas o título ficou indelevelmente gravado em mim. Como se ele pudesse
nomear não só o que é o homem para si mesmo, um estranho em sua casa – como
Freud tão bem sublinhou – mas igualmente a nossa condição, a condição humana,
neste início do século XXI.
Se a tendência para excluir o que nos é estranho não desapareceu e este
convive cada vez mais connosco, que novas formas de exclusão se perfilam no
horizonte ou estão já em curso?
Para complicar ainda mais o cenário, como dizia Lacan, o retorno funesto
de Deus não pressagia nada de bom. Veja-se o exemplo de certos grupos funda-
mentalistas que, em nome de Deus, perpetuam o ódio ao Outro, esse Outro que
não goza como nós e por isso tem de ser destruído.
Não admitindo em si mesmo o estranho, acabamos por encontrá-lo num
Outro. O que é abolido do simbólico, como dizia Lacan da psicose, retorna no
real, por vezes de maneira funesta. É com este real que temos de lidar cada vez
mais. Para o pior ou para o melhor. Nada está garantido de uma vez por todas.
Mas é do que soubermos ou conseguirmos fazer desse real que depende o nosso
futuro. O futuro do homem.

15
Freud, S., «La Négation», in Chemama, R. (Org.), La Psychanalyse. Paris: Larousse, 1996, p. 469-471.

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