Do Direito Da Família Ao Direito Das Famílias

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Do direito de família ao direito das

famílias
A repersonalização das relações familiares no
Brasil

MÔNICA TERESA COSTA SOUSA


BRUNA BARBIERI WAQUIM

Sumário

1. Introdução. 2. A família antiga: da religião ao patrimonialismo. 3. O(s)


moderno(s) conceito(s) de família. 4. Conclusões.

Mônica Teresa Costa


1. Introdução
Sousa é doutora
em Direito pela Tratar sobre o assunto “família” contemporaneamente nos evoca a
Universidade Federal
de Santa Catarina. imagem de pais e filhos reunidos em um lar acolhedor, em um ambiente
Avaliadora do MEC/ de fortes laços, respeito e cuidado.
INEP. Professora da
Universidade Federal
Porém, essa visão que hoje temos da família decorre, na verdade, de
do Maranhão. um longo processo de construção e reconstrução da função da família
na história, pois a cada momento vivido pela sociedade, de acordo com
Bruna Barbieri Waquim
a respectiva cultura, a família e seus membros tiveram um papel e uma
é mestranda em
Direito e Instituições importância.
do Sistema da Justiça No Brasil, durante muitos séculos, o modelo legal e, portanto, legíti-
da Universidade
Federal do Maranhão. mo de família era aquele constituído pelo casamento religioso ou civil.
Especialista em Direito Ainda que boa parte da população não possuísse os recursos financeiros
de Família e Sucessões
necessários para arcar com os custos da solenidade do casamento, ou que
e em Direito Civil e
Direito Processual Civil. não professasse a fé católica, ou simplesmente não desejasse a autorização
Presidente do Instituto do Estado para a constituição de uma família, as entidades formadas à
Brasileiro de Direito
de Família – Seção do margem da lei eram, da mesma forma, marginalizadas pelos Poderes
Estado do Maranhão. Públicos, sendo alvo de grande preconceito na sociedade.
Servidora pública do
Tribunal de Justiça do
Da adoção pelo Estado de um modelo único para a formação de
Estado do Maranhão. uma família decorreram inúmeros desdobramentos com a mesma carga

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preconceitual e restritiva de liberdades. Por definições jurídicas decorrentes das indefini-
exemplo, os filhos, para serem considerados ções legislativas.
legítimos, deveriam nascer no seio de um casa- A partir da ótica de Amartya Sen, é possível
mento válido. Mesmo se nascessem de genitores chegar à conclusão de que, a despeito dos ín-
solteiros, a ausência do vínculo do casamento dices oficiais de desenvolvimento econômico
lhes contaminava com a pecha de ilegítimos, e social, a expansão das liberdades individuais
bastardos ou espúrios. no Brasil, decorrente da repersonalização das
A família tradicional brasileira, assim, pos- relações familiares, não deve ser desconsiderada
suía duas funções bem delimitadas no espaço para afirmar o sucesso do desenvolvimento da
social: a de legitimar a transmissão do patrimô- sociedade brasileira.
nio e a procriação. Tais funções expressavam as
características da própria sociedade da época, 2. A família antiga: da religião ao
patriarcal, patrimonialista, hierarquizada, in- patrimonialismo
dividualista e com pouca preocupação com o
bem-estar social. O vocábulo utilizado, em cada época e cul-
Mas a dinâmica da vida social, aliada às tura, para denominar o que hoje entendemos
grandes revoluções do século XX, permitiram por família também evoluiu à medida que a
a desconfiguração do perfil tradicional não noção de entidade familiar se transformava, e
só da família como da própria sociedade. A o significado dos vernáculos ajuda a esclarecer
industrialização, o movimento feminista, o o que o termo “família” representou em cada
ingresso da mulher no mercado de trabalho, a momento histórico.
descoberta de formas artificiais de reprodução, Na Antiguidade Clássica, a reunião de pes-
o surgimento do Estado Democrático de Direito soas em uma família recebia o nome de epístion,
contribuíram para derrubar os paradigmas até que significa “aquilo que está junto ao fogo”
então vigentes no Brasil, acarretando com isso (COULANGES, 2004).
a transformação da mentalidade das pessoas e Isso porque o que ligava os membros de
dos institutos jurídicos e políticos. uma família não era o afeto nem o sangue, mas
No presente artigo, foi realizado um levan- o culto à mesma religião doméstica, simbolizada
tamento bibliográfico sobre o escorço histórico pela chama dos rituais de adoração aos manes
da família no âmbito mundial e no Brasil, para (COULANGES, 2004).
traçar as mudanças sofridas na sua caracteriza- A religião da época baseava-se em duas
ção e qualificação. categorias de deuses: os superiores, ligados aos
A seguir, buscou-se pontuar quais mudan- fenômenos naturais e conhecidos por todos,
ças foram significativas para a expansão das e os deuses inferiores, domésticos ou manes,
liberdades individuais no âmbito da família, e que eram os antepassados de cada família que
o que tais mudanças representaram no cenário passavam a ser adorados (MADALENO, A.;
da sociedade brasileira. MADALENO R., 2013).
Por meio de pesquisa jurisprudencial, foram Era um tempo em que a adoção não só era
analisados alguns dos julgamentos do Superior bem aceita como incentivada, para preservar a
Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Fe- adoração dos ancestrais. Por meio do casamen-
deral que demonstram como o Poder Judiciário to, a esposa abandonava os seus antepassados
tem-se comportado diante das demandas por e passava a cultuar os manes de seu esposo,

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não existindo a possibilidade de cultuar duas família retiravam sua subsistência (VENOSA,
linhagens de deuses, o que significaria pertencer 2013).
a duas famílias (COULANGES, 2004). Dessas transformações não se eximiu o
Quando falecia o patriarca, seus filhos Brasil. Gilberto Freyre, na aclamada obra “Casa-
varões adquiriam personalidade e passavam a -Grande & Senzala”, traça um primoroso retrato
constituir outras famílias, nos quais passavam a da família tradicional brasileira, influenciada
assumir a condição de pater familias. O conjun- pela colonização portuguesa.
to dessas famílias formava a família communi Gilberto Freyre (2003) destaca que a for-
jure, formada pelos parentes por linha mascu- mação patriarcal do Brasil é explicada menos
lina, pois o parentesco materno não produzia em termos de raça e religião do que em termos
efeitos jurídicos (NADER, 2013). econômicos, de experiência de cultura e de
Com o crescimento da população e o de- organização da família.
senvolvimento das relações interpessoais, os A casa-grande patriarcal era fortaleza, cape-
casamentos deixaram de ser realizados entre la, escola, oficina, santa casa, harém, convento
os membros de um mesmo grupo para serem de moças, hospedaria e até mesmo banco. Na
realizados entre membros de grupos (ou gens) hierarquia patriarcal, a memória dos mortos
diferentes (MADALENO, A.; MADALENO R., da família era cultivada abaixo dos santos e
2013), quebrantando o laço religioso como for- acima dos vivos, por meio de retratos, tranças
mador de uma entidade familiar e instituindo e cachos guardados, em um culto doméstico
os laços cognatícios (nome e consanguinidade) que lembra o dos antigos gregos e romanos
como elemento formador de uma família (PES- (FREYRE, 2003).
SOA, 1997). Foi a família, no sentir de Freyre (2003), a
A religião doméstica, em declínio, foi pau- verdadeira responsável pela colonização brasi-
latinamente substituída pela ideia de família leira, pois era a unidade produtiva que fornecia
como espaço para a transmissão de patrimô- o capital para desbravar o solo, que instalava as
nio, como se extrai do termo que passou a ser fazendas, comprava os animais para a lavoura
utilizado para denominar uma família: famel, ou o engenho, e que constituía o capital social
da raiz latina famul, que significa servo ou que se desdobrava na política, por meio da
conjunto de escravos pertencentes ao mesmo aristocracia colonial mais poderosa já vista na
patrão (FARIAS; ROSENVALD, 2010). América.
No cenário do Direito Romano, permaneceu Laurentino Gomes reforça esse retrato,
a figura do paterfamilias – o patriarca. O patriar- afirmando que a sociedade conservadora, ca-
ca adquiria bens e administrava o patrimônio tólica e patriarcal da tradição cultural brasileira
familiar (domenica potestas), exercia o poder representava parte da herança ibérica e portu-
sobre as pessoas dos filhos (patria potestas), guesa. A submissão da mulher era um traço
sobre a mulher (manus) e sobre os escravos tão característico que influenciou até mesmo a
(dominica potestas), ou seja, centralizava a auto- arquitetura das casas, que possuíam janelas por
ridade familiar e patrimonial (PESSOA, 1997). trás, por meio das quais as mulheres, que nunca
Aproximando-se da Idade Média, a família saíam de casa, podiam observar a rua sem serem
adquiriu natureza econômica, transformando- vistas (GOMES, 2013).
-se em unidade de produção. Cada lar era uma O casamento religioso e, após a proclama-
pequena oficina, da qual todos os membros da ção da República e a edição do Decreto no 180,

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o casamento civil eram as únicas formas válidas de instituição de uma
família, sendo qualquer outro modelo familiar marginalizado pelo Estado,
pela Igreja e pela sociedade. Da adoção do modelo familiar único pelo
casamento, garantidor da função maior de transmissão de patrimônio e
reprodução, decorria também a distinção da natureza de filhos legítimos
e ilegítimos, de acordo com as circunstâncias do seu nascimento.
Carlos Pianovsky Ruzyl esclarece que (2005, p. 118-119):

“A família patriarcal, extensa e transpessoal emerge como discurso le-


gitimador de uma dada condição social, que se avalia pela estirpe. [...]
Trata-se de uma família que tem por funções, na perspectiva aludida mais
acima, a transmissão do status e do patrimônio, servindo como fonte de
manutenção de poder político, com a criação de laços de dependência.
Para o atendimento dessas funções, a estabilidade do corpo familiar é
essencial, de modo que os laços de solidariedade se mantenham firmes.
O responsável por essa função é o patriarca, que centraliza a direção da
família, a esposa tem papel definido nessa estrutura familiar como de
subordinação, papel este para o qual é criada desde a mais tenra infân-
cia. As filhas devem, pois, ser criadas para ocuparem seu papel de boas
esposas no âmbito da família de seus futuros maridos. O desenvolvi-
mento das virtudes das ‘boas moças’ é fator indispensável à obtenção de
casamentos – e alianças – vantajosos com outros fazendeiros e homens
de posse, ‘bem nascidos’, de modo a assegurar a manutenção do status e
da condição econômica [...]”.

Esse cenário começa a ser transformado a partir da Revolução In-


dustrial, quando as indústrias passaram a assumir a função de produção
econômica antes exercida pelas famílias. O espaço familiar começa a
perder a característica de unidade de produção e passa a ser considera-
do paulatinamente um espaço para o desenvolvimento moral, afetivo,
espiritual e de assistência recíproca entre seus membros (ALMEIDA
JUNIOR, 2004).
Trazendo a discussão para o campo do Direito, é certo que nos séculos
XVIII e XIX predominava o individualismo e a igualdade formal. No
chamado Liberalismo, a preocupação era a garantia jurídico-formal dos
direitos e liberdades fundamentais, sendo papel do Estado atender seus
fins econômicos e estando a propriedade privada no topo da valoração
dos bens jurídicos (PEREIRA; ALEMAR, 2010).
Para que fosse possível prestar tais garantias, o Direito Privado recebeu
a necessária codificação, visando assegurar a ordem social sob o prisma
do individualismo. Impregnada pelo liberalismo jurídico, a codificação
tinha como fonte única o Estado, concebendo o homem como sujeito
abstrato (PEREIRA; ALEMAR, 2010).
Sob essa inspiração foi editado o Código Civil de 1916, consolidando
a proteção legal à família tradicional da época: matrimonializada, patriar-

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cal, hierarquizada, heteroparental, biológica e institucional, vista como
unidade de produção e de reprodução (MADALENO, 2011).
Fabio Anderson de Freitas Pedro (2012) também reforça que o Código
Civil de 1916 teve como marcos teóricos a propriedade e a família pa-
triarcal, como pressupostos da hierarquização social que se observava na
sociedade brasileira, de intensas contradições e desigualdades. O principal
valor ali consignado era o individualismo, como desenvolvimento dos
ideais liberais da época, o que demandava uma intensa codificação das
normas da vida privada com o objetivo de proteger essa esfera do Estado,
alimentando, assim, a dicotomia Direito Público – Privado.
Como ressalta Silvio de Sávio Venosa (2013, p. 6), “o Código Civil
brasileiro de 1916 foi dirigido para a minoria da Casa-Grande, esquecendo
da Senzala. Esse, de qualquer forma, era o pensamento do século XIX”.
A partir do pós-Primeira Guerra Mundial, o Estado Liberal começa
a ser substituído pelo Estado Social de Direito, ou Estado do Bem-estar,
o que modifica a visão até então dominante do Direito Privado, que se
conformava em garantir a igualdade formal. Com o Estado do Bem-estar,
a igualdade perseguida era a substancial (PEREIRA; ALEMAR, 2010).
Por conseguinte, a realidade do século XX, acompanhada pela
devida pressão social, exigiu a edição de estatutos para suprir as falhas
ou omissões do Código Civil, os quais passaram a complementar ou
revogar o contido na codificação. Assim, a descentralização do sistema
de Direito Privado passou a atender as emergências sociais (PEREIRA;
ALEMAR, 2010).
Fabio Anderson de Freitas Pedro (2012) relembra que, àquela época, o
modelo do Código Civil de 1916 tinha sido edificado sobre a valorização
do individualismo e, por conseguinte, o movimento de Codificação pre-
tendia alçar o Código Civil a norma máxima na esfera privatista, buscando
dentro da dicotomia público-privado uma das justificativas teóricas da
supremacia do Código Civil para as relações privadas.
Já a Constituição Federal, prossegue o autor, embora tivesse reconhe-
cidamente o papel de Lei mais importante do sistema normativo de um
país, ficava relegada a uma função de mera representatividade de ideais e
princípios, enquanto o Código Civil representava a efetividade das normas
a serem seguidas pela sociedade. Numa clara inversão simbólica, o Có-
digo Civil representava o instrumento jurídico de maior relevância para
a sociedade, visto que as condutas humanas estavam em bojo definidas
do ponto de vista privado.
Vários movimentos influenciaram a edição de outras normas ordi-
nárias para atender aos novos anseios de igualdade material: os movi-
mentos feministas, o individualismo moderno, o desejo de felicidade
e liberdade pessoais, a inclusão da mulher no mercado de trabalho, o

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fim da indissolubilidade do casamento, tudo isto contribuiu para uma
mudança paradigmática, deixando de ser a família um núcleo essencial-
mente econômico e de reprodução para se tornar um espaço de afeto e
solidariedade (PEREIRA, 2005).
Assim, afloraram, ao longo da vigência do Código de 1916, inúmeros
documentos legais que buscavam, cada um, regular uma área específica
da vida privada, gerando “a formação de um polissistema com a edição
de um conjunto de regras ocupando espaços que o Código Civil já não
conseguia preencher” (PEDRO, 2012, p. 79).
Essas leis esparsas foram alcunhadas de “legislação extravagante” e
“demonstram que o Código Civil não tem o condão de prever todas as
condutas humanas, o que em espécie de fato é impossível a qualquer
ordenamento que venha edificado em um sistema sem flexibilidade”
(PEDRO, 2012, p. 80).
Na jurisprudência se percebia uma ainda maior dilatação de direitos,
pois os casos da vida real, na omissão da legislação vigente, eram resol-
vidos pelo Judiciário com base em princípios gerais do Direito, a fim de
garantir às entidades familiares marginalizadas e às relações não insti-
tucionalizadas (como as uniões estáveis, famílias monoparentais, filhos
gerados por meio da biotecnologia) o acesso a direitos fundamentais,
principalmente à dignidade.
Havia, assim, a necessidade de que na Carta Magna da República se
dispusessem os valores e princípios fundamentais que representassem
os reais anseios da população como um todo, sem esquecer as minorias
que adotavam padrões de vida não tradicionais.
Nesse contexto, Rolf Madaleno comenta (2011, p. 4):

“A Constituição Federal de 1988 realizou a primeira e verdadeira grande


revolução no Direito de Família brasileiro, a partir de três eixos: a) o da
família plural, com várias formas de constituição (casamento, união es-
tável e a monoparentalidade familiar); b) a igualdade no enfoque jurídico
da filiação, antes eivada de preconceitos; e c) a consagração do princípio
da igualdade entre homens e mulheres.”

A antiga ideia de família-instituição, com proteção justificada por si


mesma, importando não raro violações dos interesses das pessoas nela
compreendidas, foi então derrubada pelo conceito de família-instrumento
do desenvolvimento da pessoa humana, evitando qualquer interferência
que viole os interesses dos seus membros. A família passa a existir em
razão de seus componentes, e não estes em função daquela (FARIAS;
ROSENVALD, 2010).
Autores como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010)
e Rolf Madaleno (2011) situam esse momento histórico de transformação

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às vésperas da promulgação da Constituição da Na Constituição de 1988, rompendo a
República Federativa do Brasil de 1988, mas tradição na escrita, o artigo 226 desvencilhou-
o certo é que a superação dos paradigmas da -se da adoção de um modelo único de família
família tradicional brasileira, e principalmente, legítima para prescrever, tão somente, que “A
do seu modelo único de legitimação, é fruto de família, base do Estado, tem especial proteção
um longo processo sociocultural, econômico do Estado”.
e histórico. Ao ser retirada a qualificação “família cons-
E o estopim desse processo pode ser buscado tituída pelo casamento” da disposição consti-
na consolidação da ideia de eficácia horizontal tucional, a Constituição de 1988 inaugurou o
dos direitos humanos, em que as liberdades e ga- princípio da pluralidade das formas familiares,
rantias fundamentais passam a inspirar também segundo o qual qualquer grupamento humano
as relações privadas, e não apenas as relações baseado no afeto, no respeito e na consideração
entre a Administração Pública e os cidadãos (a mútuos poderia ser reconhecido como família,
chamada eficácia vertical dos direitos humanos). mesmo que o casal não fosse casado entre si.
Essa tendência permitiu o surgimento do A quebra do modelo único familiar cons-
fenômeno da repersonalização das relações de tituído pelo casamento foi seguido de outras
família, representado pela valorização do ser mudanças paradigmáticas, no tocante à filiação,
humano sobre o patrimônio na família, como planejamento familiar e assistência aos mem-
defende Paulo Lôbo (2004): bros mais vulneráveis da família, por meio das
demais prescrições dos parágrafos do artigo 226
“A família, ao converter-se em espaço de e dos artigos 227 a 230 da Constituição Federal.
realização da afetividade humana e da Ademais, a atenção despertada pelo legisla-
dignidade de cada um de seus membros,
dor constituinte de 1988 em elevar o Direito de
marca o deslocamento da função econômica-
-política-religiosa-procracional para essa Família ao âmbito constitucional, cujas regras
nova função. Essas linhas de tendência jurídicas até então eram buscadas na legislação
enquadram-se no fenômeno jurídico-social ordinária, abriu espaço para que toda a princi-
denominado repersonalização das relações
piologia da Constituição de 1988 se prestasse
civis, que valoriza o interesse da pessoa hu-
mana mais do que suas relações patrimoniais. ao serviço da nova configuração das famílias,
O anacronismo da legislação sobre família particularmente os princípios fundamentais da
revelou-se em plenitude com o despontar dos dignidade da pessoa humana e da cidadania,
novos paradigmas das entidades familiares.” além dos objetivos fundamentais de construir
uma sociedade livre e solidária, garantindo o
Essa nova forma de pensar a família foi bem de todos, sem preconceitos ou qualquer
cristalizada na Constituição Federal de 1988, forma de discriminação (artigos 1o e 3o da
que rompeu com a dogmática jurídica até então Constituição Federal).
utilizada nas Cartas Constitucionais. Antes de A partir de 1988, então, podemos vislum-
1988, todas as Cartas Magnas prescreviam, em brar uma nova tábua de valores oriunda das
síntese, que a família formada pelo casamento relações familiares que passam a se fincar no
deveria receber especial proteção do Estado, e afeto e na realização pessoal do indivíduo
a essa afirmação se resumiam, ao estabelecer (MADALENO, 2011), e não mais no interesse
o modelo único familiar, constituído pelo do Estado e/ou da Igreja de regular a procriação
casamento. e a transmissão do patrimônio.

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Nesse sentido, despontam transformações na realidade sociojurídica
brasileira, que merecem aprofundamentos.

3. O(s) moderno(s) conceito(s) de família

Como ressaltado por Farias e Rosenvald (2010), a família tem seu


quadro evolutivo atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade,
mutável de acordo com as novas conquistas da humanidade e descober-
tas científicas, não sendo crível, nem admissível, que esteja submetida
a ideias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante,
nem a suposições incertas de um futuro remoto. Como bem pontuam os
autores, família é realidade viva a ser sempre adaptada aos valores vigentes.
A família não existe apenas porque o Direito a reconhece e a norma-
tiza, e tampouco as mudanças na família se operam simplesmente porque
a lei foi alterada. Antes, as alterações na família precedem a alteração
das normas jurídicas, que apenas contemplam as mudanças que foram
consolidadas com o tempo (RUZYK, 2005).
A partir da Constituição de 1988, que consagrou o fenômeno da reper-
sonalização das relações familiares, a chamada família constitucionalizada
passou a ser configurada por dois aspectos fundamentais:
a) qualquer grupamento humano baseado no afeto pode ser consi-
derado (e protegido) como família, independentemente de os membros
serem ligados pelo casamento ou por laços consaguíneos;
b) todos os membros da família, independentemente do gênero, da
idade ou das escolhas de vida, merecem ser respeitados, protegidos e ter
suas potencialidades saudavelmente desenvolvidas no espaço familiar.
Como desdobramento da dinâmica social, essas transfromações
representaram em concreto duas inovações jurídicas principais:
a) o reconhecimento de outras formas de família que não a matri-
monializada, como a formada pela união estável, famílias monoparentais
(formada por um dos genitores e sua descendência) e até mesmo anapa-
rentais (sem hierarquia entre os membros, como a família formada por
duas irmãs solteiras), famílias homoafetivas, entre outras; e
b) a afirmação da socioafetividade como elemento de configuração
da filiação, para permitir o reconhecimento de filhos que tenham essa
qualidade pública mesmo que não compartilhem do mesmo material
genético daqueles considerados genitores, inclusive para permitir fa-
mílias pluriparentais, em que a filiação biológica convive com a filiação
socioafetiva.
Essa ampliação do conceito de família, agora plural e de significativa
concretização dos direitos fundamentais da pessoa humana, tem sido
abrangida pelas mais diferentes esferas dos Poderes Públicos.

78 Revista de Informação Legislativa


Lourival Serejo (2014) aponta que o artigo cidas pelo ordenamento jurídico brasileiro,
16 da Lei no 8.213/1991, que dispõe sobre os incluindo até mesmo a família unipessoal.
planos de benefício da Previdência Social, rela- Daí concluir Lourival Serejo (2014, p. 29)
ciona como dependentes do segurado não só o que “o Direito de Família vai para onde a família
cônjuge, companheiro, filho menor de 21 anos for e renova-se com a mesma velocidade”.
não emancipado ou que seja inválido, também A superação do modelo familiar único,
os pais, o irmão não emancipado, menor de constituído pelo casamento, vem corrigir uma
21 anos não emancipado ou que seja inválido, desigualdade social há muito debatida no seio
o enteado e o menor tutelado, demonstrando jurídico, quanto à parcela da comunidade que
um conceito de família com um alcance social, não dispõe de recursos financeiros para arcar
inspirado pelos princípios de solidariedade e com os custos da solenidade, ou que apenas de-
fraternidade. seja a liberdade de escolher a forma de conduzir
A Lei no 10.836/2004, de instituição do Bol- seus interesses privados, inclusive na opção de
sa Família, considera como família a unidade como constituir uma família.
nuclear, eventualmente ampliada por outros Olga Krell (2008, p. 51), analisando a histó-
indivíduos que com ela possuam laços de pa- ria do concubinato no Brasil até sua evolução
rentesco ou de afinidade, que forme um grupo para o instituto da união estável, tece o seguinte
doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se panorama:
mantém pela contribuição de seus membros.
A Lei Maria da Penha (Lei no 11.340/2006), “Um dos fatores de fomentação e promoção
nessa mesma linha, considera como família a do concubinato no Brasil foi a inexistência
do divórcio até 1977, que obrigou os egressos
comunidade formada por dois indivíduos que
do casamento falido a buscarem uma nova
são ou se consideram aparentados, unidos por formação para suas famílias, embasadas
laços naturais, por afinidade ou por vontade numa convivência, meramente fática. Isto
expressa, independentemente de orientação porque, antes da Lei do Divórcio, havia
apenas o chamado desquite, que não acabava
sexual, ressaltando Lourival Serejo (2014) que
com o vínculo matrimonial, permanecendo
essa é a primeira lei que admite a existência de os envolvidos no estado civil de casados, im-
uma família homoafetiva. pedidos, portanto, de constituir formalmente
A Lei da Adoção (Lei no 12.003/2009) traz uma outra família. [...] Essa alternativa ao
o conceito de família extensa como aquela que casamento já estava enraizada de tal maneira
em nossa cultura que a introdução do divór-
se estende para além da unidade pais e filhos
cio não conseguiu mais reduzir o número
ou da unidade do casal, formada por parentes de concubinatos, uma vez que a cobrança
próximos com os quais a criança ou adoles- de altos emolumentos para o processo de
cente convive e mantém vínculos de afinidade habilitação para o casamento e a mentalidade
social permissiva formaram um terreno fértil
e afetividade.
para a sua proliferação.”
Prossegue o citado autor apontando a Lei
no 12.424/2011, sobre o Programa Minha Casa, A plurissignificação da família também foi
Minha Vida, que criou o conceito de grupo o substrato teórico a permitir a equiparação
familiar como a unidade nuclear composta por das uniões de casais homoafetivos à categoria
um ou mais indivíduos que contribuem com o da união estável, que, por expressa disposição
seu rendimento ou têm suas despesas por ela legal, possui natureza heterossexual (§ 3o do
atendidas e abrange todas as espécies reconhe- artigo 226 da Constituição Federal).

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No julgamento da Arguição de Preceito Fundamental no 132 (BRASIL,
2011b), o Supremo Tribunal Federal entendeu que o sexo das pessoas não
se presta como fator de desigualação jurídica, salvo disposição constitu-
cional expressa ou implícita em sentido contrário, pois o inciso IV do art.
3o da Constituição Federal proíbe o preconceito, por colidir frontalmente
com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”.
Entendeu ainda que o silêncio normativo da Carta Magna a respeito
do concreto uso do sexo dos indivíduos atrai a aplicação da “norma geral
negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou
obrigado, está juridicamente permitido”. Assim, reconheceu o direito à
preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da
pessoa humana”, equacionando-o ao direito à autoestima no mais eleva-
do ponto da consciência do indivíduo e o direito à busca da felicidade.
Afinal, continua o Supremo, a proibição do preconceito evolui em
entendimento para a proclamação do direito à liberdade sexual, e o con-
creto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas
naturais. Logo, o uso empírico da sexualidade nos planos da intimidade
e da privacidade é constitucionalmente tutelado.
Assim resta pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, no exercício
do seu papel institucional de guardar a Constituição e efetivar a concre-
tização dos direitos fundamentais:

“O Supremo Tribunal Federal – apoiando-se em valiosa hermenêutica


construtiva e invocando princípios essenciais (como os da dignidade
da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade,
do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da feli-
cidade) – reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à
orientação sexual, havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legi-
timidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar,
atribuindo-lhe, em conseqüência, verdadeiro estatuto de cidadania, em
ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais,
relevantes conseqüências no plano do Direito, notadamente no campo
previdenciário, e, também, na esfera das relações sociais e familiares. – A
extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à
união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se
pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da
igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postu-
lado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade,
os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido
de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1o,
III, e art. 3o, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir
suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do
mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. – Toda pessoa
tem o direito fundamental de constituir família, independentemente de
sua orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultante
da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os
mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem

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acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas.
A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO AFETO COMO UM DOS
FUNDAMENTOS DA FAMÍLIA MODERNA. – O reconhecimento do
afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um
novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito
de família. Doutrina. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BUSCA
DA FELICIDADE. – O postulado da dignidade da pessoa humana, que
representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF,
art. 1o, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte
que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em
nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que
se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada
pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. – O princípio
constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do
núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana,
assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expan-
são dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria
teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas
cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar
direitos e franquias individuais. – Assiste, por isso mesmo, a todos, sem
qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado
constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-
-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.
Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana.
Positivação desse princípio no plano do direito comparado. A FUNÇÃO
CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A
PROTEÇÃO DAS MINORIAS. – A proteção das minorias e dos grupos
vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena legiti-
mação material do Estado Democrático de Direito. – Incumbe, por isso
mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de
guarda da Constituição (o que lhe confere “o monopólio da última pala-
vra” em matéria de interpretação constitucional), desempenhar função
contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias
contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que ninguém se
sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-
-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental
do Estado. Precedentes. Doutrina” (BRASIL, 2011a).

A equiparação do relacionamento estável homoafetivo à qualidade de


união estável, longe de representar mera abstração teórica, tem o condão
de produzir inúmeros efeitos concretos, que perpassam pelas diversas
esferas da vida pública e privada, como a possibilidade de percebimento
de pensão alimentícia e benefícios previdenciários, inclusão do compa-
nheiro dependente na Declaração de Imposto de Renda, possibilidade
de adoção de crianças e adolescentes, entre outros.
Este julgamento, por certo, representa uma das maiores defesas da
família como espaço de promoção de afeto e dignidade, a despeito de
limitações jurídicas ou institucionais que não correspondam à dinâmica
da vida real.

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Como outro exemplo prático dessa modificação, pode-se também
citar o alargamento da definição de bem de família pela jurisprudência,
com o escopo de proteger os núcleos familiares formados por parentes
colaterais e até mesmo por pessoas solteiras, demonstrando a ampliação
da garantia aos direitos fundamentais dos indivíduos, ainda que não
previsto expressamente em lei:

“PROCESSUAL. EXECUÇÃO – IMPENHORABILIDADE. IMÓVEL –


RESIDÊNCIA, DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO. LEI 8.009/90. – A
interpretação teleológica do Art. 1o, da Lei 8.009/90, revela que a norma
não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção
de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se
assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar
o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. – É
impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1o da Lei 8.009/90,
o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário” (BRASIL, 2003).

“EXECUÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. AO IMÓVEL QUE SERVE DE MO-


RADA ÀS EMBARGANTES, IRMÃS E SOLTEIRAS, ESTENDE-SE A
IMPENHORABILIDADE DE QUE TRATA A LEI 8.009/90” (BRASIL,
1995).

Em um segundo aspecto, o estabelecimento do afeto como princi-


pal elemento formador de uma família tem permitido uma verdadeira
revolução nas relações de filiação, ao quebrantar o primado do critério
biológico em prol do vínculo socioafetivo que tenha sido estabelecido
entre o suposto genitor e a criança ou adolescente com o qual convive.
Tribunais de todo o país, diante de ações negatórias de paternidade,
têm entendido pela manutenção do registro civil da criança ou adoles-
cente mesmo quando o exame de DNA atesta a inexistência de relação
consanguínea entre o infante e o pai que deseja eximir-se da paternidade,
sempre que os julgadores vislumbram o estabelecimento de vínculos
psicológicos de afeto e consideração entre aqueles.
Desta forma, qualquer pretensão de anular registros civis em virtude
da descoberta de ausência de vínculo consanguíneo esbarra na impossibi-
lidade de se desconstituir vínculos afetivos já estabelecidos, sob pena de
violar o melhor interesse da criança ou do adolescente de ter garantido
o direito fundamental à convivência familiar.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que:

“... em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da


Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade
depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem
biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação,
fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convi-

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vência familiar. Vale dizer que a pretensão relação de afeto, cuidado, assistência moral,
voltada à impugnação da paternidade não patrimonial e respeito, construída ao longo
pode prosperar, quando fundada apenas na dos anos. 6. Se é o próprio filho quem busca
origem genética, mas em aberto conflito com o reconhecimento do vínculo biológico com
a paternidade socioafetiva” (BRASIL, 2012). outrem, porque durante toda a sua vida foi
induzido a acreditar em uma verdade que lhe
Recentemente, o Superior Tribunal de Jus- foi imposta por aqueles que o registraram,
não é razoável que se lhe imponha a preva-
tiça desenvolveu ainda mais a potencialidade
lência da paternidade socioafetiva, a fim de
da paternidade socioafetiva ao estabelecer que impedir sua pretensão. 7. O reconhecimento
nem mesmo este vínculo poderia impedir a do estado de filiação constitui direito per-
busca pela identidade genética do interessado, sonalíssimo, indisponível e imprescritível,
o qual pode passar a conviver com uma situação que pode ser exercitado, portanto, sem
qualquer restrição, em face dos pais ou seus
de multiparentalidade como expressão máxima
herdeiros. 8. Ainda que haja a consequência
do seu direito à origem genética, corolário dos patrimonial advinda do reconhecimento do
direitos da personalidade: vínculo jurídico de parentesco, ela não pode
ser invocada como argumento para negar o
direito do recorrido à sua ancestralidade.
“FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL E PROCESSO
Afinal, todo o embasamento relativo à pos-
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
sibilidade de investigação da paternidade, na
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.
hipótese, está no valor supremo da dignidade
VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE
da pessoa humana e no direito do recorrido à
SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE GENÉ-
sua identidade genética. 9. Recurso especial
TICA. ANCESTRALIDADE. ARTIGOS
desprovido” (BRASIL, 2013).
ANALISADOS: ARTS. 326 DO CPC E
ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação
Assim, permitir o reconhecimento da
de investigação de paternidade ajuizada em
25.04.2002. Recurso especial concluso ao Ga- paternidade socioafetiva e da própria multi-
binete em 16/03/2012. 2. Discussão relativa parentalidade é homenagear o livre exercício
à possibilidade do vínculo socioafetivo com da afetividade de acordo com a livre razão dos
o pai registrário impedir o reconhecimento indivíduos, sem obrigá-los a chancelar seus in-
da paternidade biológica. 3. Inexiste ofensa
teresses individuais pela atuação conformativa
ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de
origem pronuncia-se de forma clara e pre- do Poder Público. É permitir o desenvolvimento
cisa sobre a questão posta nos autos. 4. A da dignidade, do respeito e da consideração
maternidade/paternidade socioafetiva tem mútuos de forma livre e consciente, ainda que a
seu reconhecimento jurídico decorrente
experiência pessoal não se adeque ao até então
da relação jurídica de afeto, marcadamente
nos casos em que, sem nenhum vínculo propagado como modelo oficial.
biológico, os pais criam uma criança por Todos os julgados acima citados demons-
escolha própria, destinando-lhe todo o tram como o Poder Judiciário, investido da
amor, ternura e cuidados inerentes à relação
função de garantir a ordem e a paz social, tem
pai-filho. 5. A prevalência da paternidade/
maternidade socioafetiva frente à biológica diligenciado para resguardar direitos e deveres
tem como principal fundamento o interesse diante da inércia ou indefinição do Poder Legis-
do próprio menor, ou seja, visa garantir di- lativo, que nem sempre consegue acompanhar
reitos aos filhos face às pretensões negatórias pari passu as demandas da dinâmica da vida
de paternidade, quando é inequívoco (i) o
conhecimento da verdade biológica pelos
social.
pais que assim o declararam no registro Em suma, todas essas transformações, que
de nascimento e (ii) a existência de uma mudaram radicalmente a forma de ver e de

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pensar em família no Brasil, atendem ao que Portanto, a educação das mulheres contri-
Amartya Sen tem denominado “desenvolvimen- buiu para ampliar seus horizontes e difundir
to como expansão de liberdades”. os conhecimentos sobre planejamento familiar,
Para Sen (2000), o sucesso do desenvolvi- pois, como Sen (2000) registra, mulheres ins-
mento de um país não deve ser medido somente truídas tendem a gozar de mais liberdade para
em aspectos quantitativos como PIB e renda per exercer sua condição de agente nas decisões
capita, mas também a partir de aspectos quali- familiares, inclusive nas questões relacionadas
tativos como o nível de liberdades substantivas à fecundidade e à gestação de filhos.
que se garantem aos cidadãos. Afinal, como reflete Sen na obra “A idéia
Assim, país desenvolvido seria não só aquele de Justiça” (2011), ser mais inteligente pode
que apresenta bons indicadores de desenvolvi- nos dar a capacidade de pensar de forma mais
mento econômico e social, mas também aquele clara sobre nossas metas, objetivos e valores,
que se esforça para identificar e combater os fa- além de ajudar na compreensão não só do inte-
tores que sejam fontes de privação de liberdades resse próprio, mas também de como a vida dos
individuais (SEN, 2000). outros pode ser fortemente afetada por nossas
Analisando como as mulheres passaram próprias ações.
historicamente a se apoderar da condição de Com esse sentir, a repersonalização das re-
agentes, ou seja, passaram a ser vistas pelos lações familiares ocorrida no Brasil, agregando
homens e por elas próprias como agentes ati- ao conceito e ao tratamento jurídico da família
vos de mudança, promotoras dinâmicas das os desdobramentos materiais da aplicação de
transformações sociais, Amartya Sen analisa princípios como o da dignidade da pessoa
em “Desenvolvimento como Liberdade” (2000) humana, da afetividade e da solidariedade, no
o impacto desse papel feminino na vida de to- contexto cada vez mais amplo de liberdade de
das as pessoas – homens e mulheres, crianças agir segundo a própria razão, representa impor-
e adultos. tante aspecto do desenvolvimento da sociedade
Citando o estudo estatístico de Murthi, Guio brasileira, que não pode ser desconsiderado.
e Drèze sobre a Índia, Sen (2000) retrata como
a alfabetização feminina influenciou de forma 4. Conclusões
determinante a redução da mortalidade das
crianças de até cinco anos de idade, mais até do A quebra do modelo único de família, o
que as medidas de alfabetização masculina ou reconhecimento dos filhos sem distinção de
redução geral da pobreza como instrumentos origem, o rompimento da chefia conjugal, a
para reduzir a mortalidade infantil. legalização de uniões homoafetivas, a permissão
E o acesso das mulheres à educação (não só de multiparentalidade são mudanças essenciais
mulheres indianas, como também asiáticas e não só para a evolução da sociedade como para
africanas, conforme estudado por Sen) também a evolução da própria mentalidade humana,
provocou a redução das taxas de fecundidade. estando o Brasil na vanguarda da garantia de
Isso porque os efeitos adversos de uma elevada muitos direitos fundamentais no âmbito da
taxa de natalidade incluem a negação de liberda- família.
des substanciais, devido a gestações frequentes e Por todas essas transformações, tal como
do trabalho incessante de criar os filhos; logo, di- trabalhadas no presente texto, não há que se
minuem o bem-estar das mulheres (SEN, 2000). falar hoje em um Direito de Família, resgatando

84 Revista de Informação Legislativa


a noção tradicional de família como conceito singular. Doutrinadores
como Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias e Rolf Madale-
no têm preferido denominar este ramo do Direito Civil de Direito das
Famílias, para fazer jus às conquistas no reconhecimento do conceito
plurisubstantivo de família e despertar sempre a atenção para a expansão
das liberdades individuais no seio da unidade fundamental à sociedade.
No presente artigo, buscou-se analisar de que forma o conceito de
família foi evoluindo com o tempo e os fatores políticos, sociais e jurí-
dicos de cada época. Isso porque a família é fato social, alimentando-se
diretamente da dinâmica das relações privadas, o que não pode ser des-
considerado pelos Poderes Públicos que lhe prestam assistência.
Buscou-se pontuar também o que contribuiu para o surgimento
do fenômeno da repersonalização das relações familiares e o que isso
significou para a transformação social e jurídica da família brasileira,
principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Essas análises foram promovidas com o escopo de validar a conclusão
de, contemporaneamente, não cogitar mais ao Poder Público impedir o
pleno exercício da dignidade, do afeto e da liberdade dos cidadãos em con-
duzirem suas opções de vida e constituição de família, seja para impedir
o reconhecimento de famílias compostas de maneiras não tradicionais,
como as famílias homoafetivas e anaparentais, seja para impedir que o
conceito de família permaneça fechado e restritivo, como nos casos de
pedido de inclusão de paternidade socioafetiva, mesmo sem a exclusão
da paternidade biológica.
Portanto, podemos compreender o estágio atual de exercício cada
vez mais pleno das liberdades individuais dentro das famílias brasileiras
como um importante fator de ponderação sobre o bom desenvolvimento
do país, particularmente pela assistência positiva que tem sido garantida
pelo Poder Judiciário pela eventuais omissões legislativas.
Afinal, a velocidade da dinâmica social nem sempre é acompanhada
da necessária velocidade na atividade legiferante, o que tem sido sauda-
velmente contornado pela atuação pontual da Justiça, como nos casos
apontados no presente trabalho.

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