TROPER, Michel. Uma Teoria Realista Da Interpretação PDF
TROPER, Michel. Uma Teoria Realista Da Interpretação PDF
TROPER, Michel. Uma Teoria Realista Da Interpretação PDF
Michel Troper**
RESUMO
Trata-se de artigo que propõe uma teoria realista da interpre-
tação, caracterizada como aquela que vê na interpretação uma
função da vontade e não do conhecimento, tendo por objeto
os enunciados ou os fatos (e não as normas) e que confere
ao intérprete um poder específico, residente na validade da
interpretação por ele dada. O autor discorre, ainda, acerca de
outros elementos deste modelo de interpretação, tais como:
fundamento, produto e agente (e respectiva liberdade).
PALAVRAS-CHAVE: Teoria realista da interpretação. Ca-
racterísticas. Elementos.
*
Texto traduzido por Valeschka e Silva Braga, Mestre em Direito Público pela UFPE, titular do Mas-
ter II e doutoranda da Universidade Paris I – Panthéon-Sorbonne, professora da Faculdade Chritus,
Advogada da União.
**
Professor da Universidade Paris X – Nanterre. Autor de diversos livros e artigos jurídicos, dos quais se
destacam como referência doutrinária freqüente: Pour une théorie juridique de l’Etat. Presses universitaires de
France (PUF), 1994; La philosophie du droit. Paris: PUF, 2003; La séparation des pouvoirs et l’histoire constitutio-
nnelle française. Paris: LGDJ, 1980; La théorie du droit, le droit, l’État. Paris: PUF, 2001.
A sua obra na França é tão valorizada que, em dezembro de 2002, foi realizada uma Jornada de Estudos em sua
homenagem, sob a organização do Instituto Michel-Villey (fundado em prol da cultura jurídica et da filosofia
do Direito). Mais recentemente, a ele foi dedicado um livro entitulado “L’architecture du droit. Mélanges en
l’honneur de Michel Troper» (Paris: Economica, 2006) cujo número de páginas ultrapassa o milhar.
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NT
Sobre o mesmo tema e do mesmo autor do presente artigo, leia: TROPER, Michel. L’élaboration du droit:
la jurisprudence. Revue administrative, Paris, numéro spécial 3, p. 86-87, dez. 2000.
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2 O objeto da interpretação
Se o significado não preexiste à interpretação e se ele é dela apenas o
produto então, contrariamente ao que pensam numerosos autores e mesmo
Kelsen, o objeto da interpretação não pode ser uma norma jurídica. Se uma lei
contém a fórmula é proibido p, a expressão p pode designar, em conformidade
com o sentido que se lhe atribui, várias ações diferentes p1, p2... pn, de tal
forma a lei não contém uma norma mas, de acordo com a interpretação que é
dada, possui várias normas potenciais diferentes: é proibido p1, é proibido p2.....é
proibido pn. É o intérprete que escolhe entre estas diferentes normas. A norma
assim não é dotada de significados. Ela mesma é um significado e não pode,
por conseguinte, ser interpretada porque é evidentemente absurdo procurar
determinar o significado de um significado.
2.1 O texto
O texto deve sempre ser objeto de uma interpretação e não apenas se ele
é obscuro. De acordo com um adágio conhecido, “in claris cessat interpretatio”
ou “in claris non est interpretandum”, o que é claro não tem necessidade a ser
interpretado. Mas esta idéia confronta-se com várias objeções. Em primeiro
lugar, se a interpretação é uma decisão, então pode também incidir acerca do
caráter claro ou obscuro do texto. Uma autoridade que goza do poder de dar uma
interpretação autêntica pode perfeitamente declarar que texto é obscuro para
justificar que ela o interpreta ou, pelo contrário, que é claro de maneira a afirmar
que ele tem tal significado, sem precisar reconhecer que ela o interpreta. Cita-se
como exemplo a postura tomada pelo juiz administrativo francês, em relação a
certos atos, para evitar referir-se a uma outra autoridade. Em segundo lugar, o
adágio contradiz a visão tradicional da interpretação. Ainda que se admita que
interpretar é conhecer um sentido que já existe, não se pode afirmar que um
texto é claro sem estar a reconhecer que se conhece o seu significado, portanto,
que ele já está interpretado. Por conseguinte, mesmo os textos reconhecidos
como límpidos já foram interpretados.
Sendo assim, se a interpretação recai sobre um texto, todo texto deve
sempre ser interpretado, não sendo necessário reduzir a interpretação unicamen-
te à determinação do conteúdo do texto, daquilo que ele prescreve. Por outras
palavras, não nos ligamos apenas às suas disposições, mas se pode interpretar
também o seu estatuto.
A idéia segundo a qual é possível interpretar o estatuto do texto decorre
de um conceito amplo de interpretação. Se coletarmos uma pedra, podemos nos
questionar se se trata de um objeto natural ou de um produto manufaturado,
como um instrumento pré-histórico ou um fragmento de alvenaria. Em Direito,
antes de determinar o sentido de uma disposição, a percepção que ela enuncia,
devemos fixar se efetivamente se trata de uma disposição jurídica e que ela tem
efetivamente o significado de uma norma. Se é realmente uma disposição jurí-
dica, devemos determinar a qual nível ela pertence. Assim, antes de determinar
o que significa a palavra “igualdade” no texto da Declaração [de Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789] ou aquilo que se designa no Preâmbulo de 1946NT
a expressão “Princípios Fundamentais reconhecidos pelas leis da República”, o
Conselho Constitucional deve estabelecer que estes textos são juridicamente
obrigatórios e quais têm um valor constitucional.
NT
A ele faz referência o atual texto constitucional de 1958. Em virtude desta menção, o Preâmbulo da Cons-
tituição de 1946 foi incorporado ao chamado Bloco de Constitucionalidade [Sobre esta noção, cf. LIMA,
Francisco Gérson Marques de. Bloco de constitucionalidade: os sistemas francês e espanhol. Revista Opinião
Jurídica, Fortaleza, a. II, n. 3, p. 103-111, 2004.1] através da clássica decisão do Conselho Constitucional de
16 de julho de 1971, sobre a liberdade de associação (de n. 71-44 DC, sobre matéria constitucional).
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acordo com a teoria kelseniana da hierarquia das normas, uma norma é válida
quando foi posta em conformidade com uma norma superior. Mas se aceitarmos
os elementos da teoria da interpretação acima esquematizada, um enunciado
tem o significado de uma norma, não devido à sua conformidade a uma norma
superior, mas pelo fato de ter sido interpretado por uma autoridade habilitada,
significando que certa conduta deve ser tomada. É, por conseguinte, o processo
de aplicação – e não a conformidade com a norma superior – que leva a identi-
ficar um enunciado como tendo o significado objetivo de uma norma jurídica.
Esta idéia permite, então, evitar duas das dificuldades com as quais choca-se a
Teoria Pura do Direito. NT
A primeira refere-se à norma fundamental. De acordo com Kelsen,
dado que cada norma encontra o fundamento da sua validade numa norma
superior, a Constituição é o fundamento de validade final de todas as normas
que pertencem à ordem jurídica. Mas, como não há norma positiva acima da
Constituição, esta não pode ser válida, por conseguinte, não pode ser identifi-
cada como norma jurídica da mesma maneira que todas as outras normas. No
entanto, se não for identificada como norma jurídica, não é apta a fundar a
validade das normas inferiores. Por conseguinte, é necessário, imperativamente,
se se propõe a considerar as normas jurídicas como válidas, pressupor que a
Constituição é válida. Este pressuposto é a norma fundamental. Kelsen chega
a contestar a maioria das objeções que lhe foram opostas, sublinhando que ele
mesmo não pressupõe realmente a existência de uma norma fundamental, que
esta norma não existe, mas que é apenas uma hipótese lógica-transcendente, que
fazem todos os juristas de maneira espontânea e que a Teoria Pura do Direito
revela simplesmente a sua consciência. O raciocínio de Kelsen é perfeitamente
admissível, mas não preenche inteiramente a função que a Teoria Pura atribui-
lhe: permite compreender porque os juristas têm as normas como válidas, mas
não porque o são real ou objetivamente.
A teoria realista da interpretação permite evitar esta dificuldade. Se é
o intérprete que determina a significação da norma contida num enunciado,
então a pergunta “porque a norma é válida, porque ela pertence à ordem jurí-
dica?”, é suficiente responder: porque ela foi produzida durante o processo de
interpretação.
A segunda dificuldade é epistemológica e somente se pode tratá-la por
alusão. Se a validade for percebida como um relatório de conformidade entre
os significados, então as proposições de Direito, pelas quais a Ciência do Di-
reito descreve normas válidas, não descrevem fatos empíricos. Os positivistas
encontram-se então confrontados a uma tarefa terrível: construir uma Ciência
do Direito sobre o modelo das ciências empíricas, embora ela não tenha por
NT
Caso o leitor queira se aprofundar acerca das críticas proferidas por Troper contra a Teoria kelseniana,
cf. principalmente: TROPER, Michel. Pour une théorie juridique de l’Etat, cit., p. 45-90; Id. Ross, Kelsen et la
validité. Droit et société, Paris, n. 50, p. 43-57, jan. 2002 ; DAVID, Marcel. Positivisme juridique et souveraineté
du peuple selon Michel Troper. Revue du Droit public, Paris, n. 4, p. 965-993, agosto 1997.
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2.2 Os fatos
Se o sentido não está presente no enunciado antes da interpretação, é
porque o enunciado não está “naturalmente” dotado de sentido. Este sentido
apenas lhe é atribuído pela interpretação. Mas pode-se também atribui-lo a
qualquer fato que também não seja naturalmente portador de sentidos. É, aliás,
o que se produz em pelo menos dois casos.
O primeiro caso é o do costume. De acordo com a definição habitual,
o costume é uma prática repetida, decorrente de um sentimento do caráter
obrigatório desta prática. É, por conseguinte, um fato. Mas, como um fato não
pode ser produtor de Direito, é necessário, primeiro, que uma norma prescre-
va que se deve conformar-se ao costume. Em segundo lugar, necessita-se que
uma autoridade habilitada declare que tal prática reiterada, admitida com um
sentimento de obrigação, consiste num costume e que ela apresente, assim, o
significado de uma norma à qual é necessário conformar-se.
A interpretação porta aqui sobre a via secundária de um silogismo (é
necessário conformar-se ao costume; ora, isto é um costume, por conseguin-
te...). A especificidade desta operação consiste no fato de que ela transforma
um fato em norma.
Na verdade, a cada vez que a interpretação envolve a via secundária
do silogismo, ela não transforma um fato em Direito mas pode substituir-se
à interpretação de um texto. É o que se produz com a qualificação jurídica.
Veja-se o caso do famoso acórdão Gomel. Nos termos da lei, a Administração
pode recusar uma licença para construir se o edifício projetado prejudica a
perspectiva de um monumento. Para apreciar se uma recusa de tal gênero é
legal, o juiz pode determinar o significado da expressão “perspectiva de um
monumento” ou pesquisar se tal lugar possui ou não uma perspectiva mo-
numental. Se o magistrado toma a segunda via, aparentemente ele não terá
interpretado o texto, mas apenas qualificado o fato. A operação apresenta-se
como uma subsunção: dado que existe uma classe, é suficiente pesquisar se
um objeto apresenta os critérios relativos a esta classe para poder lhe atribuir a
qualificação. Mas, na realidade, somente existe contencioso porque não existe
uma lista dos critérios de enquadramento em uma classe, em outros termos,
não há realmente uma definição. A afirmativa, feita pelo juiz, de que um dado
lugar apresenta ou não uma perspectiva monumental não pode, evidentemente,
resultar da simples observação do tal lugar e constitui, sim, uma definição da
perspectiva monumental.
3 O poder do intérprete
Dado que a interpretação é uma operação da vontade e envolve igual-
mente fatos e enunciados, ela deve ser compreendida como o exercício de um
poder considerável. Analisar este poder é determinar o seu fundamento, a sua
sede, as normas que ele permite produzir e os limites nos quais ele se exerce.
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seu conteúdo, nem mesmo dos métodos pelos quais é justificada. O fato de uma
autoridade ter recorrido a tal ou tal método de interpretação não tem qualquer
incidência na validade. Isto não diz respeito à distinção conhecida entre context
of justification e context of discovery, ou seja, na realidade, a decisão pode ter sido
tomada por razões muito diferentes das que são invocadas para justificá-la. A
ordem jurídica, com efeito, liga as consequências não ao método invocado ou
realmente empregado, mas apenas ao exercício, por uma autoridade habilitada,
da competência que lhe foi conferida. Quem é então esta autoridade? Quem
deve ser considerado como um intérprete autêntico?
NT
Possibilidade prevista no artigo 16, que enuncia:
“Quando as instituições da República, a independência da Nação, a integridade do seu território ou a execução
os seus compromissos internacionais são ameaçadas de maneira grave e imediata, e o regular funcionamento
dos poderes públicos constitucionais for interrompido, o Presidente da República tomará as medidas exigidas
por estas circunstâncias, após consulta oficial do Primeiro Ministro, dos Presidentes das assembléias [Assem-
bléia Nacional e Senado] bem como o do Conselho Constitucional.
Ele informa à Nação as medidas tomadas através de uma mensagem.
Estas medidas devem ser inspiradas pela vontade de assegurar aos poderes públicos constitucionais, nos menores
prazos, os meios para realizar as suas missões. O Conselho Constitucional deve ser sobre elas consultado.
O Parlamento reune-se regularmente.
A Assembléia Nacional não pode ser dissolvida durante o exercício dos poderes excepcionais.”
NT
A Constituição Francesa prevê, em seu art. 38, a possibilidade de autorização dada pelo Parlamento ao
governo, através de um mecanismo denominado habilitação, para editar normas jurídicas. Estas normas são
denominadas ordonnances (ou ordenações). Eis a redação do referido dispositivo constitucional:
“Art. 38. O Governo pode, para a execução de seu programa, solicitar ao Parlamento a autorização de tomar,
pela expedição de ordenações, durante um prazo limitado, medidas que são normalmente do domínio da lei.
As ordenações são adotadas pelo Conselho de Ministros, após parecer do Conselho de Estado. Elas entram
em vigor desde a sua publicação, mas caducam se o projeto de lei de ratificação não for proposto perante o
Parlamento antes da data fixadas pela lei de habilitação.
Após a expiração do prazo mencionado na primeira alínea do presente artigo, as ordenações somente podem
ser modificadas pela lei, nas matérias que são do domínio legislativo.»
NT
CCf. art. 68 da Constituição Francesa de 1958: « O Presidente da República é responsável pelos atos reali-
zados no exercício das suas funções apenas em caso de alta traição. Ele somente pode ser acusado pelas duas
Assembléias, através de votação idêntica ao escrutínio público, obtida a maioria absoluta dos seus membros;
ele é julgado pela Alta Corte de Justiça.”
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1
Exposição inédita realizada no Seminário do Centro de Filosofia do Direito da Universidade Paris II.
2
Este poder de interpretação do Presidente da República também não foi ignorado pelos autores políticos e
pelos juristas. Assim, Alain Peyrefitte suscita esta observação do ministro de Broglie ao Conselho de Ministros
feita em 19 de setembro de 1962, a propósito da revisão da Constituição através do artigo 11: “Ninguém
falou do poder de interpretação da Constituição do Presidente da República. É um poder fundamental e, pelo
menos implicitamente, incluído na Constituição. É precisamente nos casos em que os juristas estão divididos
entre si que o Presidente da República dever usar este poder. Ele tem os meios para fazê-lo, recorrendo ao
povo soberano, de acordo com o direito que lhe é reconhecido expressamente. Ele constata as discussões
entre os juristas. Ele expõe o seu sentimento, e o povo resolve.” De acordo com A. Peyrefitte, de Gaulle não
apresentou qualquer resposta (PEYREFITTE, Alain. C’était de Gaulle. Paris: Fayard, 1994, p. 230).
3
Citado por GRAY, J. The nature and sources of the law. 2. ed. 1927, p. 102. Retomado por KELSEN, Hans.
General theory of law and state. New-York: Russell & Russell, 1945, reed. 1961, tradução francesa: Théorie
générale du droit et de l’Etat. Paris: LGDJ, 1997, p. 152 da edição americana.
4
BECHILLON, Denys de. L’ordre de la hiérarchie des normes et la théorie réaliste de l’interprétation – ré-
flexions critiques. Revue de la Recherche Juridique, p. 247, 1994-1. E a réplica de Michel Troper, na mesma
revista, página 267.
5
Esta objeção foi notadamente formulada por Denys de Bechillon, no artigo citado e pelo decano Georges
Vedel na exposição mencionada na nota 1.
6
SEARLE, J. R. Les actes de langage. Paris: Hermann, 1972, sobretudo p. 72.
7
MEUNIER, J. Le pouvoir du Conseil constitutionnel: essai d’analyse stratégique. Paris: LGDJ, 1994.
ABSTRACT
This paper proposes a realistic theory of interpretation,
distinguished by the idea that interpretation is an activity
related to will and not to knowledge and which has as
a subject facts and propositions, not the rules, granting
the exegete a specific power residing on the validity of
the interpretation presented. The author also discourses
about other elements of this model of interpretation, such
as ground, product and agent, including agent freedom.
RÉSUMÉ
Il s’agit d’un article qui propose une théorie réaliste de
l’interprétation, caractérisée par son regard spécifique sur
l’interprétation, vue comme une fonction de la volonté et
non pas de la connaissance, ayant pour objet des énoncés
ou des faits (et non pas des normes) et qui confère à
l’interprète un pouvoir spécifique, fondé sur la validité
de son interprétation. Aussi, l’auteur énonce d’autres
éléments d’un tel modèle d’interprétation: ses fondements,
son produit et son agent (ainsi que la liberté de celui-ci).