A Invenção Republicana - Renato Lessa
A Invenção Republicana - Renato Lessa
A Invenção Republicana - Renato Lessa
A ideia de entropia, entendida como a associação entre estado de anarquia e elevado grau de
incerteza, se manifesta a partir da ruptura dos canais de integração entre polis, demos e governo,
definidos pela ordem imperial. O caráter entrópico da ruptura foi exponenciado pela legislação
errática republicana, que, ao tentar superar o vazio institucional provocado pela queda do Império,
produziu ainda mais incerteza. O abandono dos critérios monárquicos de organização do espaço
público inaugurou um período de dilatada incerteza política. Assim, a República Oligárquica, a
partir da política dos governadores, não se constituiu como contraponto negativo a ordem imperial.
Sua produção prática e retórica exigiu a expiação de seu passado imediato e pôde até mesmo
incorporar em sua elaboração institucional padrões e valores políticos já existentes no modelo
imperial.
A primeira equipe governamental republicana, que compôs o governo provisório chefiado
por Deodoro, era heterogênea, de origem e propósitos, além de ter como característica comum uma
total inexperiência na administração pública, a exceção de Rui Barbosa e Quintino Bocaiuva.
O componente caótico dos anos entrópicos teve, ainda, como ingrediente nada desprezível, o
comportamento do estamento militar. Presentes nos governos por meios dos Presidentes e dos
ministros Benjamin Constant e Eduardo Wandenkolk, os militares passaram a viver uma inédita
situação de hiperpolitização. Egressos de um regime que lhes confinava uma identidade
estritamente profissional, passam a realizar seu papel como dotado de missão de realizar com
pureza a verdadeira República. Invariavelmente, essa busca de verdade se traduzia em petições ao
presidente no sentido de perpetuar a ditadura e afastar da política a legião de casacas. De modo mais
direto, a onda de intervenções do governo central nas políticas estaduais contou com a significativa
participação militar, em postos oficiais e extra-oficiais por meio do Clube Militar.
O registro na retórica oficial da importância militar apareceu no decreto de reforma do
ensino militar, elaborado por Constant, positivista dissidente. O objetivo central é reconhecer a
missão altamente civilizatória, eminentemente moral e humanitária que de futuro está destinada aos
exércitos sul-americanos. O soldado é apresentado como cidadão armado, corporificação da honra
nacional.
Até o governo de Prudente de Moraes, a presença disruptiva dos militares é constante,
caracterizando o padrão desestabilizador apontado por JMC, sem que, no final, o estamento tenha
sido capaz de elaborar e implementar um projeto de controle exclusivo do regime, que lhe
permitisse colocar em prática a tão sonhada exclusão dos casacas. O drama do Governo Provisório,
então, circunscrevia os seguintes problemas: a baixa institucionalização dos mecanismos de
governo, a anarquia estadual decorrente dos impasses da opção federalista e, por fim, a
hiperpolitização dos militares.
A convocação da Constituinte trouxe problemas parecidos com aqueles de 1824: o conflito
de soberania entre Executivo e Legislativo. O relator do projeto da Constituição, Rui Barbosa, teve
de balancear duas correntes doutrinárias: o hiperfederalismo e o federalismo domesticado.
Partidário da descentralização administrativa desde os tempos de Monarquia, Rui Barbosa passa a
identificar na superexcitação mórbida dos hiperfederalistas a porta de entrada para a barbárie
caudilhesca composta de uma hobbesiana competição de potentados locais.
Aos Estados, foram-lhe dadas competências residuais:
Art 68 - Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios
em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.
Art 6º - O Governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo:
1 º ) para repelir invasão estrangeira, ou de um Estado em outro;
2 º ) para manter a forma republicana federativa;
3 º ) para restabelecer a ordem e a tranqüilidade nos Estados, à requisição dos respectivos
Governos;
4 º ) para assegurar a execução das leis e sentenças federais.
A Constituição de 1891 certamente foi incapaz de definir com precisão um pacto político
suficiente para instituir os novos limites da comunidade política e suas relações internas. Ainda
assim, as opções assumidas em 1891 seriam fundamentais para configurar os impasses que a
República teria que processar. A estabilidade republicana, consolidada a partir do governo Campos
Sales, dependeu de uma tradução mais tangível da Constituição. Procurou-se operar nos silêncios da
lei.
São esses os principais ingredientes da República constitucional: opção federalista, com
presidencialismo; atribuições dilatadas do Legislativo; imprecisão nas relações políticas entre União
e estados; maior concentração de rendas e tributos nos estados e asfixia dos municípios. As Forças
Armadas foram declaradas obedientes dentro dos limites da lei, dotadas, pois, de prerrogativas de
interpretar e decidir a respeito da eventual legalidade da desobediência. À entropia, soma-se o
conflito entre o Executivo, agora dotado de limites legais, mas nostálgico de suas ilimitadas
atribuições iniciais, e o Legislativo quase unanimemente de oposição. O quadro agravou-se com a
tentativa de Deodoro de dissolver o Congresso e instaurar uma ditadura, o que levou à sua renúncia.
Ao assumir, Floriano intervém em quase todos os estados, o que não aplacou a instabilidade. A
durabilidade do governo de Floriano veio, paradoxalmente, dos conflitos que teve de enfrentar: a
Segunda Revolta de Armada e a Revolução Federalista, ambas em 1893. A clássica imagem do
inimigo externo, no caso apresentada como a ameaça monarquista, permitiu uma união entre
facções do Exército e o apoio do PRP em torno do governo. O preço pago foi a relutante aceitação
de eleições presidenciais para 1894. Assim, os anos entrópicos foram marcados por indefinição.
A virtude da república está nos estados, mais potentes do que a rua do Ouvidor ou d que os
quartéis. A eles está garantida a intocabilidade pela Constituição de 1891. A eles caberá o
enquadramento do demos sem preocupações formalistas a respeito da legalidade de seus
procedimentos. Ilegalidades locais serão a condição necessária para a legalidade republicana. Assim
imaginou Campos Sales: vícios privados, virtudes públicas.
Antes de considerar os problemas que esse esquema tinha, é necessário reconhecer uma das
virtudes do modelo. Uma vez aplicado no governo Campos Sales, ele caracterizou as rotinas
políticas do regime republicano até 1930. A sucessão de Campos Sales, por exemplo foi inaugurada
na nova ortodoxia. O nome de Rodrigues Alves foi legitimado por consultas do Presidente aos
chefes estaduais. Campos Sales justificou a indicação pela necessidade de dar continuidade a sua
obra de administração. A sucessão manifestou a plena aplicação do modelo: procedimentos e
valores apareceram como reciprocamente adequados. A maximização dos custos da oposição fez
que durante a Primeira República só tenham ocorrido três eleições presidenciais competitivas
(1910, 1922, 1930) num total de 8.
Conclusão
O golpe republicano abriu caminho para uma década de enorme incerteza política, na qual
os canais de integração entre polis, demos e governo ficaram abertos ao acaso e astúcia. O pacto
constitucional de 1891 paradoxalmente injetou mais incerteza nesses anos caóticos. A autonomia
radical dos Estados e do Legislativo, dotado inclusive do atributo e se autofabricar, contracenam
com a definição de um Executivo forte e politicamente irresponsável. O governo Prudente de
Moraes exibe exemplarmente este padrão de dificuldades, pela contínua tensão entre Executivo e
Legislativo e pela possibilidade de geração e operação de um ator coletivo – o PRF – fora do
controle do governo central.
O governo Campos Sales toma como referência negativa não o Império, mas, sim, os anos
entrópicos da Primeira República. O resultado foi uma combinação entre uma retórica
construtivista, presente na obsessão regeneradora de um governo de “pura administração”, e o
reconhecimento de uma distribuição natural de poder entre as oligarquias estaduais. O dilema de
Campos Sales pode ser descrito da seguinte forma: os oligarcas locais eram os atores mais
apropriados para a definição de um pacto circunstancial, capaz de definir regras mínimas de
governabilidade. Mas isso não garantia que fossem atores aptos a desempenhar as funções
pedagógicas e altruísticas, definidas na parte substantiva de seu modelo. A adesão dos oligarcas à
política dos estados foi pragmática, visto que congelou a competição regional, permitindo a
eternização do poder das facções que naquele momento possuíam vantagens comparativas.
Os problemas do modelo começam a surgir a partir de duas contingências: o surgimento de
dissidências oligárquicas dotadas de recursos suficientes para persistir na oposição e a disparidade
entre suas premissas procedural e substantiva.
O primeiro problema aparece nas sucessões presidenciais de 1910 (Campanha Civilista),
1922 (Reação Republicana) e 1930 (Aliança Liberal). Nos três momentos, importantes segmentos
do condomínio oligárquico foram, por distintas razões, preteridos. Em todos eles, o comportamento
dos atores dissidentes seguiu padrão semelhante: acenar para o demos, com vagas promessas de
regeneração do regime, como mecanismo de obtenção de posições mais competitivas na polis.
O segundo problema torna o modelo Campos Sales aparentado da esquizofrenia. Enquanto
os procedimentos legalizam o comportamento egoísta, interessado e extralegal das oligarquias no
tratamento de suas parcelas do demos, os valores de Campos Sales desenham uma política nacional
voltada para a pura administração, na qual a ideia tradicional de competição política aparece como
inessencial e nefasta.