Literatura Afro-Feminista
Literatura Afro-Feminista
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Por isso, apesar de também sofrer preconceitos, o homem negro e a mulher branca não
possuem a sensibilidade para escrever sobre o que é ser mulher negra em nossa sociedade.
Sueli Carneiro, negra brasileira, também aborda essa questão em seu artigo
“Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de uma
perspectiva de gênero” (S/D), e ao refletir sobre a militância da mulher negra, propõe um
feminismo negro, pois percebe que a resistência da mulher negra se difere da mulher
branca:
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou
historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres,
de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte
de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca
reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas
como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que
trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas,
como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não
entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres
deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente
de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis
sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas
domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo
exportação. (CARNEIRO, S/D, ...)
Por meio dessas afirmações, podemos perceber o perfil dessas mulheres e assim
compreendermos melhor a sua escrita. Mulheres que, desprovidas do rótulo de frágeis,
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sempre tiveram que sair às ruas e trabalhar para prover o seu sustento e o de sua família,
pois na maioria das vezes, essas não possuem o marido, cabendo a elas essa função,
rompendo com a tradição patriarcal europeia e retomando a tradição matriarcal africana.
Mulheres que tiveram, desde a escravidão, seus direitos negados, como o direito à
maternidade, pois naquela época, seus filhos eram posse do senhor de escravos e seu peito
era para alimentar os filhos dele e não os seus. Hoje, a maioria das mulheres negras ainda
precisa deixar seus filhos para cuidar dos filhos das patroas. Outro direito ainda refutado
é a posse do próprio corpo, que durante anos serviu ora de “fábrica de novos
escravizados” ora de objeto de satisfação sexual do senhor e que por isso, ainda é exposto
ou violado. Basta vermos os corpos quase nus que se exibem, com certa naturalidade, na
TV e a taxa de mulheres negras estupradas no Brasil.
A literatura afro – feminina , além de, denunciar essa situação pela qual ainda
estão submetidas às mulheres negras, revela quem é esta mulher, que está em constante
busca por seus direitos, desde aqueles considerados os mais básicos, como o direito ao
pão, à moradia, ao trabalho e até aqueles considerados mais “complexos” como o direito
à fala, à maternidade, ao corpo, à sexualidade, ao estudo, à afro-brasilidade, à
ancestralidade, à religiosidade, à memória, à poesia, à família, ao amor. São textos que
possuem a marca da escrevivência, ou seja, escrita da existência. A escrita é fruto de suas
experiências de vida. É resultado daquilo que viveu, viu ou ouviu. É um texto que se
posiciona, não é neutro. Tem cor, sexo, posição social. Cito Conceição Evaristo:
Sendo as mulheres invizibilizadas, não só pelas páginas da história
oficial, mas também pela literatura, e quando se tornam objetos da
segunda, na maioria das vezes, surgem ficcionalizadas a partir de
estereótipos vários, para as escritoras negras cabem vários cuidados.
Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do poder falo-
cêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus
literário brasileiro imagens de uma auto-representação. Surge a fala de
um corpo que não é apenas descrito mas antes de tudo vivido. A
escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as
desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade
teima em querer inferiorizada, mulher e negra. (EVARISTO, 2005, p.
205, grifo da autora).
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mares negros, e assume o seu reinado em Benguela1 e em terras brasileiras. Rompe com
as Ritas Bahianas e Tietas, e, assumindo o movimento da escrita, apresenta a sociedade
as verdadeiras mulheres negras, seus sentimentos, suas lutas, paixões, conquistas e
reivindicações.
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Referência ao poema “Coração tição” de Ana Cruz. E... feito de Luz. 1997, p.31.
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Neste sentido, quando lemos os textos das jovens autoras, podemos enxergar em seus
escritos um misto de passado e presente, ou seja, sabemos que o contexto atual é diferente
do antigo, que fora marcado por seus ativismos negros e feministas, mas, apesar disso, a
literatura atual “expressa algumas das mesmas preocupações e questionamentos de
justiça, direitos iguais, desigualdade econômica e cidadania daquela época formativa de
conscientização.” O que, na realidade, podemos dizer que diferencia esses textos
(precursores e contemporâneos) é justamente o enfoque do “grito” dessas mulheres, isto
é, o que busca a escritora negra atual? O que ela reivindica?
Se olharmos para trás e observarmos a obra de Carolina Maria de Jesus, escritora
que ficou conhecida em todo mundo em 1960, com publicação de Quarto de despejo,
perceberemos uma literatura marcada por profunda dor e agonia, um discurso agressivo,
“evidência do desespero e sensação de aprisionamento que, as duras penas, a narradora
procura descrever. Trata-se de uma literatura de realismo social que se inspira na
paisagem local da favela, da fome rural, dos espaços urbanos de privação e crime. ”
(DUKE, 2016, p.19). O contexto de extrema falta vivido pela pioneira Carolina Maria de
Jesus, justificava um discurso duro, brutal, revelando e denunciando as situações
precárias da população que vivia às margens, como os favelados, crianças e as mulheres
negras. Sua reivindicação era por alimento, pelo exercício da cidadania, pela voz e
libertação. A escrita para Carolina é uma questão de sobrevivência. Primeiramente,
sobrevivência psíquica e depois, com o sucesso de suas obras, sobrevivência material.
Carolina escrevia para passar a fome, escrevia para liberar a raiva, escrevia para
descansar, escrevia para se conhecer, enfim escrevia para viver:
Escrever para Carolina era uma necessidade vital. Não uma fuga da
realidade, cujo lado mais cru ela descreve e enfrenta com galhardia, mas
um refúgio, um amparo. Como se pudesse, por um momento tronar-se
independente da favela. Escrever é, ainda, meio de se conciliar consigo
mesma e talvez entender melhor o que lhe vai na alma. Manter emoções
à distância e melhor dominá-las. Para afrontar a discriminação e a fome,
a escrita, salto criativo, oferecia um bálsamo. (...) Escrever para superar
a fome, escrever para suportar a opressão e a indignidade. Escrever para
tentar sair da imobilidade. (...) No registro puramente psicológico,
escrever era para Carolina uma fonte de prazer, da ordem da
sublimação. Canalizando sua energia para essa atividade tão criativa e
valorizada socialmente, estruturava-se psiquicamente, reelaborava a
experiência traumática e talvez superasse. Daí o caráter vital dessa
atividade. (CASTRO; MACHADO, 2007, p. 108)
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No poema de Evaristo, o eu lírico traça o percurso das vozes das suas ancestrais, através
das estrofes do poema, que ecoaram desde o navio negreiro, depois nas favelas, nas
cozinhas alheias até chegar na sua voz, que embora acesse a escrita, ainda ecoa versos
perplexos, com rimas de sangue e fome. Ou seja, ainda que a escrita fosse possível, era
difícil, assim como foi para Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Por fim, no
último verso, quando o eu lírico fala da voz da sua filha, aponta que esta “recolhe em si
todas as vozes, recolhe em si, as vozes mudas, caladas, engasgadas nas gargantas. A voz
de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz da minha
filha se fará ouvir a ressonância, o eco da vida - liberdade.” No último verso de Conceição
podemos ver a escrita de Cristiane Sobral, que hoje, pode falar, graças ao caminho já
aberto por suas precursoras.
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Considerações finais
Referências
CASTRO, Eliana de Moura; MACHADO, Marília Novais de Mata. Muito bem,
Carolina!: biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/ Arte, 2007.
CRUZ, Ana. E... feito de Luz. Niterói: Ykenga Editorial Ltda: 1997.
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_______. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza
Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane. (Orgs.) Mulheres no mundo: etnia,
marginalidade e diáspora. João Pessoa: Idéia Editora Ltda, 2005. p. 201-212.
NEVES, José Eugênio das. “Esmeralda Ribeiro e Lima Barreto: um diálogo sem
segredos”. Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. (Londrina) 17-b
(dez) 49-59, 2009.
SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. Brasília: OI POEMA, 2010.
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