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FACULDADE DE SÃO BENTO


THIAGO SÁVIO DE SOUSA NOGUEIRA

PSYCHOMACHIA DE PRUDÊNCIO:
Introdução ao poema sobre a luta dos Vícios e das Virtudes no interior
do Home e tradução do poema (texto latino e tradução)

São Paulo
2015

Revista Pandora Brasil - Edição Nº 86 - Setembro de 2017 - ISSN 2175-3318


Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
1

THIAGO SÁVIO DE SOUSA NOGUEIRA

PSYCHOMACHIA DE PRUDÊNCIO:
Introdução ao poema sobre a luta dos Vícios e das Virtudes no interior
do Home e tradução do poema (texto latino e tradução)

Monografia apresentada à banca


Examinadora da Faculdade de Filosofia de
São Bento de São Paulo como exigência
parcial para obtenção de Licenciatura
Plena em Filosofia, sob a orientação do
Prof. Dr. Jorge luís Rodrigues Gutiérrez.

São Paulo
2015

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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THIAGO SÁVIO DE SOUSA NOGUEIRA

PSYCHOMACHIA DE PRUDÊNCIO:
Introdução ao poema sobre a luta dos Vícios e das Virtudes no interior do Home e
tradução do poema (texto latino e tradução)

Trabalho de Conclusão de curso apresentado


ao Departamento de filosofia da Faculdade de
São Bento de São Paulo, sob orientação do
Prof. Dr. Jorge Luis Rodrigues Gutiérrez, como
exigência parcial para obtenção de título de
Licenciatura Plena em Filosofia.

Trabalho julgado e aprovado pelos docentes


Responsáveis em ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof. Orientador: Dr. Jorge Luis Rodrigues Gutiérrez
Faculdade de São Bento de São Paulo

__________________________________________________
Leitor 1: Prof. Dr. Bruno Fregni Basseto
Faculdade de São Bento de São Paulo

________________________________________________
Leitor 2: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
Faculdade de São Bento de São Paulo
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Aos meus pais e ao Mosteiro de São Bento


de Garanhuns, cujos generosos esforços
permitiram-me chegar a este escopo.

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AGRADECIMENTOS

Sou profundamente grato ao reverendo Prior do Mosteiro de São Bento de


Garanhuns, Dom João Batista dos Santos Andrade, OSB, à Dom subprior Basílio
Araújo de Lima, OSB, por acreditarem em minhas pobres capacidades e incentivado
a todo momento nas superações e dificuldades de minha vida espiritual e acadêmica.
Minha gratidão ao reverendíssimo senhor abade Dom Mathias Tolentino Braga, OSB
e a toda comunidade monástica do Mosteiro de São Bento de São Paulo, por
possibilitarem a graduação de filosofia.

Pelo apoio, atenção, contribuição e amizade agradeço sinceramente aos que


ajudaram diretamente neste trabalho: Prof. Jorge Luis Gutiérrez pela orientação, Prof.
Prof. Bruno Basseto pela ajuda na tradução do poema em português, Dom Adriano
Bellini, OSB por uma versão italiana do poema, Dom Filipe Friguis, OSB pela paciência
na correção do Trabalho.

Enfim, aos irmãos e amigos que me apoiaram desde o início com o tema desta
monografia, minhas orações de pobre.

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TODAS AS VEZES QUE NO MEIO DE PENSAMENTOS PERTUBADOS


NASCE UMA REVOLTA, E UMA LUTA DE PAIXÕES ATORMENTA A ALMA; QUAL
O REDUTO ENTÃO PARA SALVAGUARDA DA LIBERDADE, QUE EXÉRCITO
RESISTE COM MELHORES TROPAS AO ALVOROÇO DE DESEJOS NO
CORAÇÃO?

Prudêncio

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RESUMO

A Psychomachia de Prudêncio é uma epopeia, na qual vícios e virtudes


antropomorfizados se digladiam pelo domínio da alma humana. É neste contexto de
uma literatura moral e espiritual que desenvolvemos uma breve apresentação das
batalhas entre estes opositores. Elas são apresentadas em sete cenas sequenciais,
de igual desfecho, mas de diversos procedimentos, tendo como objetivo a vitória da
paz nesta rebelião interior.
Palavras-chaves: Prudêncio, Vícios, Virtudes, alma, batalha interior.

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Sumário

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8
2 Prudêncio e a sua época literária ....................................................................... 11
2. 1 Vida................................................................................................................ 11
2. 2 Literatura Pysicomachia................................................................................. 13
2. 3 O título Psychomachia .................................................................................... 14
2. 4 Psychomachia e o Maniqueísmo. .................................................................. 16
3 Estrutura da Psychomachia ................................................................................ 18
3. 1 Prefácio.......................................................................................................... 18
3. 2 As batalhas .................................................................................................... 21
3.2.1 O primeiro duelo: a fé (Fides) versus a adoração pagã (veterum Cultura
Deorum) ............................................................................................................. 22
3.2.2 O segundo duelo: Castidade (Pudicícia) versus Libido (Lascívia) ........... 24
3.2.3 O terceiro duelo: Paciência versus Ira..................................................... 26
3.2.4 O quarto duelo: Soberba versus Humildade e Esperança ........................ 29
3.2.5 O Quinto duelo: A Imoderação versus Temperança ................................. 31
3.2.6 O sexto duelo: Avareza versus Razão e Generosidade ............................ 34
3. 3 A Paz com suas vicissitudes e a construção do Templo ............................... 37
4 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 39
5 PSYCHOMAQUIA: TEXTO LATINO E TRADUÇÃO ............................................ 40
6 Bibliografia.......................................................................................................... 104

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1 INTRODUÇÃO

A presente monografia tem o intuito de apresentar e introduzir um estudo ao


poema Psycomachia de Aurelius Prudentius Clemens, uma obra de proselitismo
cristão, na qual o autor procura ressaltar os benefícios da ética cristã, buscando atrair
a atenção em uma retórica pagã. Trata-se assim, do primeiro poema exclusivamente
alegórico bíblico.

Estudar a Psychomaquia de Prudêncio foi uma ideia que surgiu a partir do


desejo de pesquisar sobre os vícios e as virtudes, em particular durante um seminário
sobre as virtudes nas aulas de metodologia do ensino de filosofia ministrado pelo
professor Dr. Jorge Luís Rodrigues Gutiérrez. Por se tratar de um texto clássico
poético e latino do século IV, não encontramos nenhuma tradução publicada aqui no
Brasil. Foi na esperança de torna-lo conhecido que; com ajuda do Professor Dr. Bruno
Fregni Bassetto, conseguimos uma tradução, apesar das grandes dificuldades em
traduzir um texto clássico e sobre tudo poético. Ao estudar a Psichomachia
descobrimos que durante toda a Idade Média o poema assumiu grande importância,
repercutindo-se de múltiplas formas seja no pensamento filosófico-religioso sobre as
virtudes, seja na arte, sobre tudo na literatura e na arquitetura. Ainda que menos
valorizada e desconhecida tenha sido em data mais recente. Nosso trabalho surge
como uma experiência neste sentido. Na consciência de ser uma tentativa Parcial e
alterada, limitado a cerca de uma singela apresentação da obra. Pois, um dos maiores
problemas para a realização deste trabalho foi justamente a consulta de bibliografia,
sempre muito escassa.

A relação entre o Bem e o Mal, o Bom e o Ruim é uma questão constantemente


refletida na história do pensamento humano. No entanto, no decorrer dos séculos, os
filósofos da religião foi quem especialmente lidou com essas reflexões. Muitas são as
religiões nas quais buscam a compreensão do dualismo existente no interior do
homem, sobre tudo a ligação desta dualidade em relação a moral ou a arte de viver.
Numa época de perturbações e choques culturais entre a antiga religião Romana e a
nova religião Cristã, a obra de Aurélio Prudêncio de alguma forma se torna uma

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literatura ético-religiosa capaz de constituir um modelo fundamental para entendermos


a dualidade que ocorre no interior do homem.

Através de um discurso dualista, em que os vícios e as virtudes estão


constantemente a defrontar-se, Prudêncio pretende exortar os seus leitores a um
exame interior, de forma a que elimine as tendências maléficas da alma. A
Psychomachia relata uma batalha até a morte entre duas fileiras de entidades não-
humanas, que o autor designa como Vitia (monstra, portenta, furiae, morbi, pestes) e
Virtus (virgines, reginae, magistrae) todos levam nomes abstratos. Enfrentam-se em
sete duelos de comprimento e complexidade crescente. A estrutura do duelo são
sempre a mesma: os ataques dos Vícios são defendidos pelas Virtudes que restaura
a verdade dogmática. Finalmente reina a Paz alcançada e selada pela construção de
um templo, onde espera a ascensão ao trono da sabedoria.

Nessa perspectiva, a partir dos acontecimentos da vida Prudêncio e suas obras


literárias e obedecendo à sequência da narrativa do poema, o trabalho será
estruturado em dois capítulos e uma tradução portuguesa do poema junto ao texto
latino para análise. Na primeira parte, intitulada Prudêncio e a sua época literária
procurar-se-á expor a história do escritor Cristão e sua literatura dentre elas a obra
que dispomos a estudar, analisando o título grego que o poeta consagrou a sua obra.
A segunda parte do trabalho, intitulada estrutura da Psychomachia, pretende mostrar
como o poeta desenvolveu seu pensamento, dividimos esta explanação em três
momentos. No primeiro momento, discorre sobre o pequeno prefácio que compõe esta
obra, procuraremos mostrar que: existe uma relação com o corpo do poema em que
está integrado, ele antecipa assim o conteúdo de seu pensamento que quer
desenvolver. Uma breve leitura do prefácio pode extrair um resumo da obra. No
segundo momento, os 6 embates propriamente dito entre os Vícios e as Virtudes,
procuramos analisar de forma sucinta cada batalha tentando levar a um significado e
pôr em evidencias as fontes bíblicas e patrísticas, sem as quais não é possível
compreender o plano discursivo e muito menos apreender a mensagem neste contida.
No terceiro momento, procurar-se-á relatar a surpresa do último embate, este já sub
pace, como veremos o poeta estabelecerá a paz tão almejada pelo ser humano e
construirá um templo para a sabedoria.

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Enfim, o texto latino que nos desposemos para a leitura foi extraído da Migne,
localizada no tomo 60, da coleção da biblioteca do Mosteiro de São Bento de São
Paulo. Para os comentários nos apoiamos em três teses: uma italiana por Paola
Franchi, tese para um doutorado em Filosofia. Uma segunda em Inglês por Louis B.
Snider, tese para um mestrado em artes. E a terceira em português por Ana
Alexandrina Alves de Sousa mestrado em letras pela universidade de Lisboa. Outras
fontes secundarias de pesquisas indicaremos nas referências bibliográficas.

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2 Prudêncio e a sua época literária

2. 1 Vida

Considerado o maior poeta em verso da literatura cristã antiga, pouco se sabe


acerca da vida de Aurelius Prudentius Clemens. Todas as informações de que
dispomos provêm do Praefatio que precede o conjunto da sua obra poética, publicada
em 405 com a idade de 57 anos, provavelmente perto de sua morte. Cheia de
melancolia ainda horaciana, a introdução em versos que procede esta obra, estiliza,
sob forma de confissões em miniatura. Nascido provavelmente em Calagurris
(Calahorra, no alto Ebro) na Espanha Tarraconese em 348, o poeta pertencente à
aristocracia provincial hispano-romana e faz carreira na esteira do imperador Teodósio
(379-395) de Cuacuca. Esta região fora romanizada com escassa religiosidade pagã,
mas influenciada de grandes intelectuais convertidos ao cristianismo.1 É neste
contexto intelectual que Prudêncio se apaixona pelo estudo da retórica, chega a ser
advogado arrivista, governador de província e termina sua carreira na alta função de
conselheiro privado do imperador, talvez até a morte deste em 395.

Arrependido da vida mundana, por volta de 398-399, aos quarenta anos, o


poeta regressou aos seus domínios, na Península Hispânica, onde nascera,
determinado a consagrar-se a Deus e no intuito de elevar sua alma, e expiar, na
pureza da arte dedicada à fé, sua antiga vida de erros. Sua conversão à vida perfeita
o conduz então às vias do ascetismo e da grande reflexão da vida humana. “Que
minha alma pecadora companha hinos ao longo dos dias e não passe uma noite sem
cantar ao Senhor; que combata as heresias, manifeste a fé católica”.2 Mas, na
verdade, todo seu projeto se enraíza na rica experiência de seus predecessores, os

1 Marcus Minuncius Felix, século II Aprox. Foi um escritor e advogado romano. Convertido ao
cristianismo famoso pelo “Octavius” um diálogo entre um pagão e um cristão.
Tertuliano, 160, Cartago, foi um prolífico autor das primeiras frases do Cristianismo, apologeta cristão
e um polemista contra a heresia.
Árnobio de Sica, morto em 330, ele refuta a idolatria pagã como sendo cheia de contradições e
claramente imoral.
Lactâncio, tinha a intenção de mostrar a futilidade das crenças pagãs e estabelecer a verdade do
cristianismo.
2 Cathemerion, introdução.

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bispos poetas Hilário de Poitiers e Ambrósio de Milão. Sua poesia culta, obra de um
leigo de cultura ampla e refinada, encontra-se a formação e o gosto clássico de um
“homem das musas” que não conhece apenas Virgílio e Horácio, mas também os
poetas da época flávia.

Ele compôs cinco de suas obras durante o período que abrange os anos 398-
400. O Cathemerinon (Canto cotidiano) inclui doze hinos de caráter lírico em um modo
de orações diárias que lidam com a origem do homem e do mundo, a imortalidade da
alma, a origem do mal e da natureza divina. A base da Apotheosis (Apoteose), em um
caráter didático, é a divinização da natureza humana de Cristo, que deve ser imitado
pelos homens. Em Hamartigenia (A origem do mal) de caráter didático-moralizante, é
a origem do pecado e do mal que destrói a natureza divina da alma humana. Deste
primeiro período também estão os primeiros sete hinos Peristephanon, obra lírica
dedicada aos mártires que com seu sacrifício ganharam sua imortalidade.

Prudêncio viajou em 401 a Roma escreve Contra Symmachum (Contra


Simaco), que rejeita a conveniência de substituir o Senado em um altar da deusa
Victória (retirado em 382 por ordem de Graciano) o que significou o triunfo da facção
cristã contra a postura de Simaco, que tentava restaurar a adoração dos deuses
latinos. Em 404 Prudêncio volta para a Espanha, onde escreveu a última música do
Peristephanon, e começou a preparar a edição de suas obras completas, o que, para
além do referido, incluem o Praefatio em que revisa os fatos de sua vida e propõe a
se dedicar seus últimos anos à salvação cristã de sua alma através da poesia
religiosa, posteriormente los Títuli Historiarum o Dittochaeon, quarenta e nove
estrofes cercada de poesia epigramática retratando cenas bíblicas seqüenciados
cronologicamente, concebidas como registro para os murais de uma basílica em
Roma, e De opusculis suis Prudentius, um epílogo que exalta sua condição como
poeta cristão.

O poeta bebeu tanto de obras cristãs (Bíblia, St. Ambrósio, São Paulo e as
histórias dos Mártires) como das fontes clássicas (Horácio, Virgílio, Juvenal),
aumentando assim a mistura de culto popular e cristianizando elementos da
Antiguidade Clássica, utilizando-os para compor seus tratados poéticos destinados a
defender as heresias cristãs.

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2. 2 Literatura Pysicomachia

Prudêncio, funde a literatura exclusivamente litúrgica com a literatura bíblica e


profana. Esta atitude leva a que a poesia deixe de ter um fim em si mesma, e
simultaneamente deixe de ser apenas um meio de transmitir uma mensagem religiosa,
fazendo uma literatura como via de conversão e reflexão moral. Assim, o poeta utiliza
formas clássicas para transmitir a mensagem cristã com o espírito da epopeia.

As instabilidades históricas deste conturbado período levam a que


sobrevivessem poucos textos que testemunhem o interesse com que os poemas de
Prudêncio foram recebidos. Encontraremos a literatura prudentina no século IX entre
os autores prediletos. Durante a idade média se estudavam nas escolas os poemas
de Prudêncio, deles se destacando a Psychomaquia, como o podemos atestar as
inúmeras citações extraídas deste poema, que remontam ao século VII e se
prolongam até ao século XIV e a inúmeras glosas que lemos nos manuscritos de
Prudêncio.3 O grande número de manuscritos de Prudêncio, entre os quais se
destacam aqueles que apenas contem a Psycomachia, confirma o interesse e a
admiração suscitados pela poesia de Prudêncio e em particular pelo poema que
estamos a analisar. Esse poema teve uma influência fundamental na literatura
medieval, tomando conta de páginas de catecismos, obras espirituais e narrativas
morais.

Calcula-se que tenha escrito a Psychomachia em fins do século IV, princípios


do século V da nossa era, depois de se afastar da corte do imperador Teodósio. A
obra nos desorienta por sua alegoria. É uma serie homérica de duelos entre vícios e
virtudes personificados, vestidos de heróis e heroínas de uma Eneida, que lembraria
uma “opera”, ou um auto sacramental. Escrita sob influência da poesia hexamétrica
clássica, que articulam com a mensagem bíblica e a tradição patrística. Trata-se,
indubitavelmente, de uma obra de proselitismo cristão, na qual o autor busca ressaltar
os benefícios da conversão ao modo de vida cristão, buscando atrair a atenção para
os valores cristãos em uma retórica pagã. Os temas homéricos e virgilianos são
míticos; enquanto os prudentinos são bíblicos e alegóricos. Seu discurso abusa de

3 Cf. M. Lavarenne. 1948, p. 25.


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analogias e alegorias como recursos poéticos e didáticos, visando à conversão dos


gentios.

2. 3 O título Psychomachia

O vocábulo grego usado pelo poeta, que aliás, usa em todos os poemas de
suas obras, refere-se a um combate (μάχη) travado na alma (ψυχή) entre forças
benignas e malignas, dos quais ficcionalmente tanto uma como outra podem sair
vitoriosas. “Imóvel no meio do combate; contemplava os combates incertos, as feridas
e os órgãos vitais trespassados por duros dardos, fixando os olhos, permanecia
tranquila”.4 A psicomaquia constitui não só o modelo fundamental para esta dualidade
mas também para sua expressão alegórica mais exuberante. Descrevendo a batalha
entre opositores, personificações de vícios e virtudes, são apresentadas sete cenas
sequenciais, de igual desfecho mas de diversos procedimentos, tendo como objetivo
a vitória nessa rebelião interior: a Fides versus Veterum Cultura Deorum; a Pudicitia
versus Sodomita Libido; a Patientia versus Ira; a Mens Humilis et Spes versus
Superbia et Fraus; a Sobrietas versus Luxuria; A Ratio et Operatio versus Avaritia; e
a concordia et fides versus Discordia cognomento Haeresis. Para M. Smith a palavra
ψυχή pode ter um significado de “vida”, pois, pode esta luta ser de uma alma para a
vida eterna, bem como a luta de uma alma neste mundo para a vida eterna, ou ainda
a luta de uma alma neste mundo para a clareza da alta perfeição do cristão.5
O título do texto coloca-nos em dificuldades nunca totalmente identificados: a
versão mais óbvia e fácil "a batalha da alma" está competindo rótulos, alguns
intérpretes seculares interpretam como "guerra para a alma" ou "em torno da alma".
Outros defendem que este significa “combate na alma” opondo-se a “combate da
alma”. Preferimos aqui apoiar-se na linha de pensamento que traduz como “combate
da alma” pois, a alma aparece na prece inicial com um papel ativo: mens armata.

Expõe, rei nosso, com que exército a mente armada consiga


afastar as culpas do fundo de nosso peito,
sempre que surgir dentro de nossos sentidos

4Psych. 110
5 M. Smith, 1976, p 114 “ a Psychomachia can be a soul´s struggle for eternal life, as well as a soul´s
struggle in this world for the clarity of Chistian self-perfection. The two are obviosily one and the same”.
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a revolta e o embate das doenças debilite a alma,


para que então se oponham, qual melhor mão, uma escolta
para manter a liberdade ou uma linha de batalha
contra as confusas fúrias entre os sentimentos.(Psych 5-11)

Ou seja, todas as vezes que no meio de nossos pensamentos perturbados


gera-nos uma revolta, e nesta luta de paixões atormenta a nossa alma, e é ela que
então age com liberdade com as melhores tropas ao alvoroço de desejos de nossos
pensamentos. Assim, a alma é simultaneamente o agente e o espaço do conflito, para
se opor aos vícios a alma vai buscar força a Cristo; as virtudes nascem, assim, da
graça de Deus:

Pois, ótimo guia, não expuseste os cristícolas, privos das grandes


virtudes e desprovidos de nervos, aos vícios devastadores.
Tu mesmo ordenas combater os destacamentos saudáveis
no corpo sitiado; tu mesmo dás armas aos melhores,
e a habilidade para as artes, com que, poderoso na luta
contra os enganos do coração, por ti batalhe e vença.(Psych. 12-17)

Fica evidente assim que os conflitos narrados ocorrem dentro da alma,


procurando vícios ou virtudes assenhorar-se dela. “Sempre que surgir dentro de nossos
sentidos a revolta e o embate das doenças debilite a alma” (Psych 7-8); “Guerras
terríveis fervem, agitam-se rodeadas de ossos; ruge também a natureza não simples
do homem com as armas em discórdia, pois as vísceras, plasmadas do barro,
pressionam a alma” (Psych 902-905) quando se fala em bella osibus inclusa, localizam-
se as guerras no amago do ser humano, ou seja, na alma reclusa no corpo. Desse
encarceramento no corpo resultam limitações que originam os conflitos, sejam eles
consequência das tendências pecaminosas do corpo ou mesmo dos resultados das
paixões que afetam a alma. Por exemplo, a imoderação é um pecado de natureza
diferente da avareza: um tem a ver com o corpo, enquanto a outra é uma manifestação
de uma tendência do ser humano. Esta relação entre duas forças opostas, seriam
substâncias particulares? Seriam como pregava o maniqueísmo, dois reinos distintos e
co-eternos?

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2. 4 Psychomachia e o Maniqueísmo.

Prudêncio está no século IV e V de nossa era, e em meio ao pluralismo de


culturas e filosofias. Dentre tantas questões é constantemente refletido no pensamento
humano: o bem e o mal. Quem especialmente lidou com essa reflexão foram os
sistemas religiosos. Muitas são as religiões nas quais a busca pela compreensão da
origem e da existência do bem e do mal ocupam um lugar importante. O maniqueísmo,
seita gnóstico-cristã que ensinava a existência de dois princípios eternos, ou seja, Deus
e a matéria se afrontava em uma batalha perene entre si.
O Maniqueísmo trata de uma seita criada por Mani. Seus discípulos preferiram
chama-lo de Maniqueo, quando começou a pregar sua doutrina na Grécia no século III
da era cristã. Mani aparentava ser um homem inteligente e culto, conhecedor das
ciências comuns na Babilônia e no Irã, músico, matemático, pintor e geógrafo, além de
dominar conhecimentos de astronomia e medicina. Não tendo acesso à fontes próprias
dos maniqueus, tudo que sabemos sobre sua doutrina, sabemos por meio do que
escreveram seus “inimigos” e comentadores. Segundo Santo Agostinho, o
maniqueísmo defendia a existência de dois princípios diversos e contrários entre si, os
dois eternos e co-eternos. Seguindo outras heresias antigas, sustentavam a existência
de duas naturezas e substâncias, a saber: uma do bem e outra do mal. Diziam que as
almas boas, as que crêem que deviam liberar da mescla das almas más, são da mesma
natureza de Deus. Em consequência, confessam que o mundo foi feito pela mistura do
bem e do mal resultante da luta entre as duas naturezas. Assim, afirmam que a
purgação e a liberação do bem por parte do mal é feita pela força de Deus, não só no
mundo e todos os seus elementos, mas também nos eleitos por meio de alimentos que
consomem. Atribuem a origem dos pecados à substância inimiga. Estando esta,
segundo eles, misturada nos homens, a carne não é obra de Deus, mas de um espírito
mal que é coeterno e contrário a Deus. E que por isso o homem possui duas almas,
uma boa e outra má.
Segundo M. Smith, Prudêncio evita o exagero maniqueísta que leva ao extremo
a dualidade alma / corpo, pois a intenção do cristão convertido não é o contato com o
corpo em si, mas, a concupiscência em relação ao corpo6. Portanto falar da distinção

6 M. Smith, Op. Cit., p 145 “ what the will of the converted Christian wants to avoid is not contact with
the body per se, but cupidinous contact with the body”.
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de bem e de mal não é um pensamento maniqueísta. Pensamento maniqueísta é dizer


que o mal é uma substância, ou seja, o bem é um ente e o mal é um ente. Assim temos
um princípio bom e um princípio mal. Quando o princípio bom prevalece somos bons e
quando o princípio mal prevalece somos maus. Deste modo a filosofia maniqueísta
afirma que o mal é um ente. Outra grande divergência na teoria maniqueísta em relação
a Psychomachia é em relação ao bem, pois a doutrina maniqueísta afirma que a parte
boa é o divino, ou seja, o bem em nós é Deus. Desde o início do poema, o autor deixa
em evidencia que a alma é algo distinto de Deus, e o que expeli as culpas são os
recessos do nosso coração. Ou seja, toda batalha travada na alma são frutos dos
nossos sentidos e por sua vez Deus arma o espírito com “artes” excelentes para
combater para Ele (Deus) com poder os “caprichos” do coração. “tu mesmo dás armas
aos melhores, e a habilidade para as artes, com que, poderoso na luta contra os
enganos do coração” (Psych 15-17).
Portanto, mais que uma força benéfica e maléfica, o poema aqui analisado
concentra mais uma atitude do agir humano, do que uma análise metafísico-ontológica;
moral e físico. Trata-se de um poema que fala sobre as virtudes. Embora seu título não
deixe claro. É sobre uma força que age, ou mesmo que pode agir na alma que será
chamada de virtude ou vício. Como defende M. Smith, a intenção de Prudêncio de fato
é a relação da concupiscência na carne, ou seja, uma espécie de inimigo interior que
afeta a tranquilidade da alma gerando uma paixão desordenada de prazeres nos
sentidos. No fundo este prazer não pode ser definido como o mal, ou seja não é mau
em si. O que define como mal é sua desordem e imoderação. E como relata no poema
vemos que esta desordem viciosa nunca é solitária, arrasta consigo outras. Assim, é
dessa concupiscência que liga a alma ao corpo por laços tão violentos que o poeta
cristão vai decorrer em seu poema-tratado.

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3 Estrutura da Psychomachia

Prudêncio arquitetou um plano complexo na estrutura da Psychomachia. Ao


dar uma análise superficial na estrutura do poema, encontraremos uma divisão de
elementos, dando a perceber que o número de entidades que nele se encontram
permitem defender que o desenvolvimento não se fez ao acaso. O poeta ordenou um
plano cuidadoso a extensão e a divisão das partes. Na estrutura perceberemos três
momentos distintos: o prefácio narrativo-alegórico do conteúdo do poema na figura do
patriarca Abraão; os combates entre os Vícios e as Virtudes; a paz com as suas
vicissitudes.

3. 1 Prefácio

É comum nas obras doutrinais de Prudêncio abrirem-se com um Prefatio, não


poderia ser diferente com a Psychomachia. Fundamentado no Antigo Testamento, o
corpo do poema épico entre vícios e virtudes, é precedido por uma narrativa, cujo
protagonista é Abraão. Algumas cenas da vida do “Pai da Fé” ou “Primeiro entre os
crentes”, como é conhecido no livro do Gênesis, são retiradas e disposta em parábola
narrativa dotada de um significado simbólico mesmo não seguindo uma ordem
histórica-cronológica. Abraão ajudado por servos de sua casa, socorre seu sobrinho
Ló, libertando-o do cativeiro de Reis pagãos, e recebe em troca por sua boa ação a
gravidez de Sara, sua esposa já avançada em idade. Recebe também um alimento
especial por Melquisedeque e uma visita de três anjos à sua cabana. Para esta
ilustração, Prudêncio usa ferramentas clássicas de exegese patrística. A história de
Abraão representa e antecipa o desenrolar da luta entre vícios e virtudes, entre
inspirações divinas e inspirações malignas, tanto no interior do homem como em sua
história.
É interessante que desde o prefácio, o poeta cristão deixa claro, que os
combates às forças maléficas são vencidos com a ajuda de Deus. “Mais ainda,
empunha a espada e, cheio de Deus, vence os reis orgulhosos em fuga e onerados
pelo peso do botim, esmaga os feridos, quebra as correntes e libera as pilhagem”
(Prefácio 26 a 29). Abraão vence a batalha com o auxílio de Deus e recebe um prêmio
que é a geração de um herdeiro, apontando assim que cada cristão é chamado a
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engendrar-se nesta batalha, confiado na força de Deus, para obter uma recompensa,
uma geração. Há uma verdadeira guerra no nosso interior, e nós devemos ter um
espírito de guerreiro como teve Abraão, para impedir que as paixões desordenadas
tomem posse de nossas almas.
Como se nota, a questão de pôr uma história bíblica não é só uma mensagem
de caráter religioso pietista, mas, uma estrutura narrativa de pensamento que
Prudêncio quer desenvolver na poesia. Portanto, o prefácio relaciona-se também com
o corpo do poema em que está integrado, muitos dos episódios da batalha que irá
ocorrer na alma estão contidas no prefácio. Por exemplo, pode-se notar, por um lado,
os inimigos de Ló, e por outro, Abraão e seus 3187 escravos nascidos em casa, uma
representação dos vícios e das virtudes respectivamente.
Com a idade avançada, a fé inabalável, o papel exemplar do patriarca é
apontado como um caminho inicial para todo homem que deseja abraçar a religião
cristã; a ideia de fé, expressa seja como um adjetivo ou uma metáfora, é colocado em
importância absoluta, de acordo com a arquitetura geral do poema que vê a Fides
como primeira heroína a entrar em campo e última a deixar a cena. Deste modo, o
poeta já põe a centralidade do tema da fé. Na representação da luta e na vitória contra
gentes profanae, como condição indispensável para receber o prêmio da “geração”, o
texto revela seu valor simbólico. A história exemplar de Abraão no prefácio não
consiste em ações puramente materiais como se conhece no livro do Genesis, mas,
um trabalho espiritual-moral, de uma guerra contra os “monstros do coração”, em que
vitia é definido portenta: conluctanctia contra / viribus infestis liceat portenta notare
(19-20). Aqui no prefácio ainda é bastante obscuro, mas a associação cordis servientis
é clara: a escravidão é na filosofia cristã o símbolo imediato do pecado, que por outro
lado, a liberdade está na redenção dada em Jesus Cristo. Tendo assim apresentado
um exemplo de batalha interior na vida de Abraão, o poeta aludiu um caminho moral
simbolizado em sua história.

Sendo assim, ao desenvolver uma História com um fim de evidenciar um ponto


fundamental de sua alegoria, Prudêncio desenvolve sua própria versão na História de

7Os primeiros pais foram conhecidos por suas interpretações místicas dos números. Em grego, o
número 318 é TIH que é o símbolo de Cristo. Por causa de sua forma o T significa a cruz. IH são as
duas primeiras letras da forma grega de Jesus. A interpretação, portanto, de Abraão e seus servos
torna-se: Abraão, a alma, com a ajuda de 318 servos, Cristo, conquista todas as paixões. (Lavarenne,
1933 pp 210).
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Abraão. A história contada por duas fazes distintas da vida de Abraão, a saber, a
expedição militar para libertar seu sobrinho Lot, incluindo um encontro com o
sacerdote e rei Melquisedeque e a segunda o nascimento de Isaac, dividida em dois
momentos: da visita de três diferentes anjos e da maternidade de Sara. O texto
apresentado por Prudêncio é a união de dois episódios em uma relação de causa-
efeito, lembrando um texto patrístico, interpretado como um caminho moral.

Essa narrativa foi escrita como uma figura


como nossa vida se refaz com um passo correto:
é preciso vigiar em armas dos corações fieis
e cada uma das partes de nosso corpo
que, dominada, venha a servir à triste concupiscência,
a ser liberada em casa para as forças reprimidas.
(Prefácio Psych. 50-54)

Na conclusão do prefácio, a presença de Cristo que é Sabedoria para "encher"


a alma após a expulsão dos pecados é evidenciada. Ele que é verdadeiro sacerdote,
nascido do pai excelso e inefável, que nos oferece o verdadeiro alimento aos felizes
vencedores, e que nos honrará com a visita da trindade na pequena choupana dos de
corações puros. Apesar de não haver correspondência exata, o padrão de
pensamento do poeta é muito semelhante a ideia patrística que vê em Isaac a figura
de cristo (assim como um filho único e sacrificado). Se seguimos esta mesma linha de
pensamento podemos concluir que, a aquisição das virtudes é preparatória para esta
finalidade, de recerbemos o Cristo, tal como no final do poema no cenário da
construção do templo, as virtudes são transformadas em joias que adornam o edifício,
para torná-lo digno de tão grande convidado.

Depois da guerra, resta uma só obra ao trabalho magnífico, ó chefes, que


afinal o herdeiro pacificador do reino belicoso, inofensivo sucessor também
de palácio armado, Salomão instituiu, uma vez que as tropas esfumaram o
reino do pai agitado com sangue quente [...] Ditas essas palavras, a rainha,
com passos firmes, desceu e a companheira Concórdia de obra tão grande
construirá o novo templo com o fundamento lançado. [...] Ali não há pedra de
construção, mas perfurações no solo e com muita arte um enfeite lavrado liga
a entrada em arco luzidio, e uma só pedra rodeia o vestíbulo de entrada.
(psych 804, 837)

Enfim, em questão de coerência como dissemos acima em que o prefácio


relaciona-se também com o corpo do poema em que está integrado, ele antecipa
assim o conteúdo de seu pensamento que quer desenvolver. Logo, não há razões
para afastá-lo no ponto fundamental que é o desfeche de seu pensamento; o prefácio
e o poema não podem propor um final divergente para a “Batalha da Alma” ou no que
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a análise até agora tem mostrado “a batalha da alma pela presença de Deus”, uma
batalha no coração humano para expulsar as más inclinações e ganhar como
recompensa a presença de Cristo. A figura de Cristo destaca-se no prefácio e no texto
do poema que inclusive começa e terminam com uma prece a Cristo: no início, o
poema substitui a invocação às Musas tão comum para os gregos pela invocação a
Cristo.

3. 2 As batalhas

Em uma espécie de narrativa bélica, os combates que se travam na alma só


terão sua paz depois de terminada a guerra. Tendo como fundo a filosofia cristã de
que a alma deve eliminar e rejeitar todas as tendências contrárias à sua natureza. O
principal aspecto reside na procura e no esforço para alcançar a “paz interior”, através
de uma vivencia íntima e individual com Deus. O processo é bem antigo: conhece-te
a ti mesmo. Essa longa batalha implica um sério exercício de reflexão, de clareza
pessoal, capaz de discernir, por entre os diversos afetos vivenciado em nosso
quotidiano, um caminho árduo para distinguir a verdade da virtude e o dolo do vício.

Serão formados verdadeiros exércitos de virtudes confrontando-se com


exércitos de vícios. Nestes exércitos é notado tanto do lado das virtudes quanto dos
vícios a existência de chefes (duces). Na narrativa o poeta põe combates singulares,
por vezes auxiliados por um outro, e despreza quase completamente os confrontos
entre os soldados que compõem um e outro exército, cada vez que uma virtude e um
vício determinados se destacam no campo de batalha. Mesmo em um cenário bélico,
chama a atenção o fato em que algumas virtudes se apresentam desarmadas e se
sevem de pedras ou das próprias mãos para aniquilar o inimigo. A fé, a temperança,
a generosidade, desprovidas de equipamento bélico, enfrentam, respectivamente, a
idolatria, a imoderação e a avareza. A fé, quando surge pela primeira vez, destrói a
idolatria com um golpe desferido com a mão sobre a cabeça inimiga e com os pés
esmaga-lhe os olhos. A temperança, desprovida de dardos, arranca um pedaço de
rocha que arremessa à imoderação. Usa a força gigantesca de seus braços a
generosidade para estrangular a avareza. Algumas apresentam-se, pelo contrário,
bem protegidas, munidas do equipamento bélico necessário, como a Pudicía e a

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Paciência; esta última, vale destacar que nem precisa de arsenal, sua própria natureza
suprime o vício que lhe opõe.

A sinceridade dramática, que se expressa em toda a piedade de uma “Eneida”


sobre a tragédia dos acontecimentos de seu povo - transforma-se em invocação
proemial, que por um lado dá uma emoção e uma gravidade excepcional ao ataque,
por outro lado, temos também uma divinização (neste caso Cristo, cujo nome está na
posição inicial) um papel muito mais relevante do que a das Musas inspiradoras: o
poeta invoca não apenas como um suporte na criação artística, mas como um redentor
em sentido integral.

Em segundo lugar, existe uma passagem do particular para o universal: já não


são mais troianos e suas dificuldades, no sentido de alguns percalços, mas a
humanidade inteira e seus sofrimentos existenciais (que é o objeto de sua obra)
“Cristo, que tens sempre piedade do pesado infortúnio dos homens” (pshc 68). A
menção da "compaixão" de Cristo traz também, inevitavelmente, a associação com a
história bíblica da salvação, começando com a própria Encarnação o Deus que se faz
homem e sofre junto com os homens a fragilidade de sua existência. Assim, a história
épica que será contada compreende a totalidade da vida humana e é uma associação
da tragédia do homem grego com a proposta do Cristianismo do Deus que se fez
homem para redimí-lo.

3.2.1 O primeiro duelo: a fé (Fides) versus a adoração pagã (veterum Cultura


Deorum)

A primeira a dirigir-se para a batalha é a fé, agitada, fazendo ruídos, com ombros
desnudos, sem cortar seus cabelos e com os braços ao ar, ela tem uma estatura mais
elevada e se apresenta seguida por mil mártires, com coroas de flores e vestidos com
púrpura. Quase uma série de explosões que enfatiza a energia e o momento da
agressividade da personagem. Imediatamente após aparecer a Fides, caracterizado
pela força e impulso de guerreiro; ela atinge a Cultura Veterum Deorum com um só
golpe a deixando agonizar; não há muitas palavras, este combate é puramente
imagem e gestos. O discurso direto, é claro, mas é relevante notar que não existe o
uso de armas, deixando em evidencia que no início da batalha interior são as forças
pessoais que devem ser postas em batalha, ou seja, é uma batalha puramente
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humana. Esta disposição livre e da vontade humana lembra-nos um combate de


gladiadores, mais precisamente uma espécie de luta greco-romana ou mais radical
ainda, uma luta livre.

Os primeiros vícios a entrar em campo são os menos perigosos; pois o declínio


do paganismo parece já expresso na época do poeta, a cultura pagã aparece quase
inofensiva, incapaz de conter o triunfo do cristianismo e destinada apenas para a
morte - não sem provocar aversão para as formas de angústias, como mostrado na
segunda etapa do duelo. No entanto, apesar dessa simplicidade não falta os dois
elementos básicos da ligação figural proposta por Prudêncio como a Bíblia e a relação
com os eventos atuais de sua época, a um escondido em particular no cabelo sem
cortes da Fides, que remonta o herói Sansão e sua força, o outro explicitado no triunfo
final das multidões de mártires aparecendo repentinamente no campo, aludindo à
multidão de mártires cristão que receberam a coroa em virtude de sua fé. Sendo
assim, a fé é a rainha dos mártires, pois é para ela que suas testemunhas depuseram
as suas vidas.

A ausência de armas da fé, remete-se para a Filosofia Cristã, que oferece ao


homem uma força espiritual dada pelo Espírito Santo. O homem novo que tem a
virtude da fé, não deve pensar como falar, nem no que haverá de dizer, pois, o espirito
de Deus inspirará no que haverá de fazer. Sendo assim, o Cristão que tem a fé não
precisa de oratória para vencer, logo, esta virtude não necessita de armas de guerra
para derrotar seu opositor. Aqui apesar da época não ter distintamente as virtudes
infusas ou teologais da fé, esperança e caridade, já avistamos um certo passo de
adiantamento da distinção das virtudes no cristianismo. Ou seja, virtudes dadas por
Deus, diferente das virtudes morais que são pelo esforço humano. Futuramente a
tradição Cristã distinguirá as virtudes, umas que terão a Deus por objeto material e
outras que tem por objeto um bem honesto distinto de Deus, e por motivo da própria
honestidade desse objeto, favorecerem a perpetuarem essa união com Deus,
regulando tão bem as ações que, a respeito das batalhas que se encontram dentro de
nós, tenderemos para o fim último que é Deus.

A fé é posta como uma virtude cristã. Do mesmo modo como ela é representado
por Abraão no prefácio, ela aqui também é um fenômeno social, que vem destruir o
paganismo e suas práticas. O amor da glória e a ânsia de se envolver em novos

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confrontos fazem desta personagem uma figura heróica em todos os aspectos. Mas,
amor ao louvor não é um motivo digno de virtude de fé. Entretanto, é preciso lembrar
que Prudêncio está conservando em seu poema grande parte dos antigos
instrumentos clássicos, e os grandes heróis lutam para o louvor. Observemos como
esses sentimentos são expressos através de metáforas em um calor ferventíssimo
que caracterizam a fé como uma verdadeira paixão, demostrando assim que a
Psychomachia não deixa de lado as leituras estóicas como um choque entre as
paixões que perturbam o coração e a racionalidade que os detém em vigilância.

Portanto, a luta da fé vem em primeiro lugar porque é ela quem prepara o cristão
para outras virtudes. Seu único conflito com a adoração dos deuses antigos breve e
decisivo – é a luta mais curta no poema. Não há declamatio nem qualquer sinal de
fraqueza nesta donzela que é "a rainha de todas as virtudes". Assim, a batalha entre
a fé e o culto antigo não pode ser entendido como uma mera retórica. Prudêncio
vivenciou-a quando ainda era jovem, esforçando-se para mantê-la forte. Viu-a
diariamente entrar em campo contra o vício; ele mesmo experimentou a fé na batalha
consigo mesmo com o antigo culto. Assim, não se pode ler a Psychomachia com
cinismo sofisticado e esperar para se divertir, como em um conto. O poeta vê nessa
guerra interior uma verdade, que provoca nos vícios grandes desolações.

3.2.2 O segundo duelo: Castidade (Pudicícia) versus Libido (Lascívia)

O segundo duelo, mantendo o estilo da primeira batalha, começa a introduzir


elementos que se tornará típicos dos futuros episódios da Psychomachia. O confronto
entre a virtude Pudicícia e do vício Libido é dividido em mais movimentos, um gesto
de ataque contra um gesto de defesa. No Panteão romano a Pudicícia é uma
divindade para a proteção das mães.8 Representando assim, a submissão e a
fidelidade dentro do matrimônio. Nesta segunda batalha travada entre a Castidade e
a libido que é a Paixão Sodomense, o vício lança labaredas de fogo sobre a virgem
casta, esta que luta inspirada pelo mundo celeste e à sombra da lei fere a luxuria com
uma espada, que a lava nas águas do rio Jordão, purificando-a em um banho fluvial.
Castidade e Luxuria, são os dois grandes adversários no mundo antigo, e não poderia

8 Cf. Peter R., 1965


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estarem fora dessa batalha interior. Prudêncio possivelmente escolheu estes opostos
logo após a luta da Fé porque esta virtude com seu correspondente vício, são
universalmente conhecidos a estarem em um constante conflito na alma humana, e
acreditamos que de fato é a segunda batalha no interior dos homens.

A castidade é chamada de virgem (Virgo); seu inimigo é distinto pelo título de


prostituta (meretrix). A personagem Libido é bastante complexa, não tanto por seu
significado, mas, a imagem em que ela é construída. Para Prudêncio o conceito de
Libido é negativo recorrente a uma associação de imaginação e a um léxico específico
(quase a mesma do patrístico que tem uma reflexão abundante sobre o assunto), ou
seja, por um lado, a ideia do “fogo da sedução” que tenta ludibriar a castidade com
uma tocha de fogo e enxofre. Por outro lado, em uma leitura bíblica, Sodoma é a
cidade destruída pelos elementos, fogo e enxofre.

A intenção da Libido é de fato manchar o olhar da pudicícia, a explicação


frequente é que ela procura os olhos pois são o veículo por excelência da paixão do
amor: não só falamos do olho em relação à moralidade do corpo, mas o jogo de
imagem luz e trevas, próprio de uma fantasia de algo não verdadeiro. A referência à
moral corrupta dos sodomitas e sua destruição pelo fogo e enxofre como diz no livro
dos Gênesis, são símbolos do calor das paixões desordenadas dos sodomitas. Apesar
de não termos uma descrição física deste vicio, alguns dos epítetos que o poeta lhes
atribui são bastante expressivos pois relacionam-se como a personifica9. A ação
descontrolada da luxuria, que lembra as fúrias na literatura antiga, é contrastada com
a calma da castidade, que tem um comportamento constante.

Todos os vícios da Psychomachia são turbulentos, mantendo-se em um


turbilhão contínuo; enquanto as Virtudes suavemente acolhem seus ataques e
facilmente conquistam a batalha sem perturbação. Essa luta na narrativa é breve, mas
o discurso prolongado que se segue é um dos mais longos do poema, na boca da
Castidade, Prudêncio desenvolve um tema muito discutido na filosofia Cristã, a
redenção do homem. O que Prudêncio desejava trazer em evidencia era o fato que a

9 Apenas indicamos os epítetos que consideramos estarem relacionados com a índole desses entes.
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Luxuria uma vez tinha sido morta por Judith na pessoa de Holofernes, ganhou vida
novamente10.

A outra figura que aparece neste discurso da castidade é Maria mãe de Jesus,
uma figura histórica da castidade virginal. Prudêncio aponta alguns atributos de
incapacidade de Judith para destruir completamente a Luxúria talvez pelo fato de que
ela não era virgem, mas viúva de Manassés. Porém, como aqui é uma guerra interior
do homem pagão com as virtudes do homem Cristão, a tradição Cristã encara a
virgindade como um estado mais perfeito e o poeta traz a força e a capacidade da
virtude de Maria, a Virgem, em superar completamente a Luxúria. E com isto a
efetivação da redenção do homem com o nascimento de Cristo por meio de uma
virgem, a luxúria realmente conheceu seu castigo eterno.

A perola do discurso da castidade é a expressão mais veemente na


Psychomachia. No lugar da mitologia, com o qual a poesia clássica antiga está repleta,
o escritor cristão usa das histórias da bíblia cristã para ilustrar suas exposições. Ao
fazer isso ele desmama os homens da mitologia pagã que na época provou prejudicial
para neófitos cristãos, e os saciou por assim dizer, alimentando seus intelectos com
os contos saudáveis da Sagrada Escritura. Prudêncio deixa nesta batalha uma linha
de pensamento que aponta um vício capaz de levar a morte da alma, ou seja, o poeta
considera, a lascívia um dos principais pecados que leva a morte da alma. Depois da
adoração pagã nenhum outro vicio arrasta tantos homens em pecado mortal, como a
luxuria. “Tu, principal caminho para a morte, tu, porta da destruição, conspurcando os
corpos, mergulhas as almas nos infernos” (psyc 89-90).

3.2.3 O terceiro duelo: Paciência versus Ira

Paciência e Ira agora ocupam a briga, Prudêncio inaugura uma nova forma de
duelo, a violência corporal em uma espécie de gladiadores tão comum nos dois
primeiros duelos, vai dar um lugar ao duelo de oposições distantes, sob um aspecto
de auto aniquilação. Agora o vício e a virtude não estão em contato físico e agressivo.
Nos primeiros versos desta batalha o poeta nos dá uma imagem excelente da virtude
paciência. Contrastando o semblante da Paciência com a Ira.

10Na realidade Holofernes foi punido por ter imponderado com povo de Deus. Prudêncio parece pensar
que Judith o matou porque ele havia tentado sua virtude.
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Eis que em pé estava a recatada Paciência com aspecto grave,


imóvel por entre linhas de batalha e tumultos vários,
fitava os ferimentos e as passagens de vida entre os dardos agudos,
com os olhos fixos e prosseguia com lentidão.
À distância, a Ira enfurecida, fervente com um ricto espumante,
difundindo raios cor de sangue com laivos de fel,
a fim de provocar o alheio à guerra com armas e com a voz
e impaciente com a lentidão, ataca com lança, deblatera,
sacudindo os eriçados penachos do alto do capacete. (Psyc 109-117)

Há uma irresistibilidade agradável na personificação da Paciência de modo que


nos atrai e até mesmo nos inclina à imitação desta virtude. Parece haver razões
sapienciais em ensinar a virtude da paciência logo no início da luta interior da alma,
uma vez que o homem é um ser de sangue rápido e quente. As primeiras palavras de
um vício no poema foram caracteristicamente sarcásticas e mordazes, arma tão
comum para um homem irritado. Os discursos neste embate são breves, e mais
estimulantes do que as longas exposições da castidade. Agora pode-se ver ama
versatilidade com que Prudêncio lida com os vários conflitos da psychomachia,
evitando a monotonia, apesar da mesmice do incidente e a não muito grandes
variedades de detalhes entre as batalhas. As palavras orgulhosas do vício são
retratadas tirando vantagem da virtude da Paciência ridicularizando-a como se não
tivesse força ou armas para se defender quando atacada. Há mais drama, neste
encontro, do que nos dois primeiros.

Por outro lado, a virtude da paciência manifestava o seu valor na resistência


passiva, de modo a não matar o inimigo com suas próprias mãos. Prudêncio
apresenta a paciência com aspecto grave - Gravis – e cai exatamente entre as
conotações desse tipo humano que, por sua vez, é a qualidade tradicional da moral
vir bonus em latim clássico, esse conceito complexo, oscilando entre seriedade e
ponderação, entre a integridade moral e a fortaleza. Estar em um lugar e não se
mover, lenta, calma e tranquila são os gestos que expressam a essência da paciência.
Como veremos ela não é estática sempre, pois moverá também após o seu duelo,
caminhando através das fileiras, mas - provavelmente - para ir ladear a alguma outra
virtude, isto é, a se estabelecer em uma nova posição nas batalhas posteriores.

Poderíamos também pensar esta atitude de ficar em pé imóvel no meio do


combate, com um modelo do novo homem pregado pela filosofia cristã, o homem firme
em sua fé, descrevendo a atitude dos mártires em julgamento ou tortura que

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pacientissimamente suportam as acusações e torturas sem deixarem esmorecer sua


firmeza na fé. No entanto, algo interessante o poeta cristão coloca, quase que
despercebido em um olhar não muito clínico na passagem deste embate. Ele chama
o vicio de bárbaro “ Evidentemente, a bárbara guerreira havia exaurido” (Psych. 133).
Prudêncio salienta o fato de que os vícios são estranhos à alma, e que são as virtudes
os habitantes legítimos e nestes combates estão apenas a proteger seus interesses11.

A Ira morre devido à sua própria violência, golpeada em seu crânio: “A própria
loucura é inimiga de si mesma e enfurecendo-se perece e a Ira rubra morre por suas
armas” (Psy 160-161). Desta forma, o vício é eliminado pelo próprio vicio. O Orgulho
e a Ira estão intimamente interligados, estão em relação; cada um destrói a si mesmo,
com seus próprios recursos. Na Psychomachia a Ira comete suicídio com a mesma
arma com a qual ela teria enfrentado seu inimigo, o orgulho encontra a morte nas
mãos de um aliado, porque o seu espírito turbulento impede a humildade a tomar a
iniciativa no combate. O poeta ainda afirma, que nenhuma virtude acomete uma luta
de incerto resultado sem a virtude da paciência, pois está desprotegida aquela a quem
a paciência não dá firmeza, ou seja, a intrépida paciência é a única a associar-se a
todas as virtudes como companheira e a prestar-lhes o seu auxilio. Na luta incerta não
entra virtude alguma sem esta virtude; está, pois, desamparada aquela que a
paciência não encoraja.

Singular companheira associa-se a todas as virtudes


e a poderosa Paciência aporta seu auxílio.
Virtude alguma inicia um ataque duvidoso sem esta virtude,
pois torna-se viúva aquela à que a Paciência não der firmeza.
(Psych 174-178)

Portanto, Prudêncio, em certo sentido torna a Paciência o assistente das outras


virtudes, expressa um princípio com um tom de vida espiritual: o bem é construído na
contemplação e é pela lentidão e calma que vem aceitar pacientemente todas as
adversidades como o plano da Providência, um plano que não pode se contradizer.
Podemos também destacar a nomeação desta virtude como uma "deusa” “Illum diva
iubet tandem requiescere ab omni”. As virtudes são repetidamente caracterizadas
como uma espécie de semideusas, ou seres de outro modo superiores de natureza
espiritual. Embora esta palavra semideus não seja coerente com o Cristianismo, talvez

11 Orgulho, como veremos, parece-nos ser a única exceção.


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pensamos a sobreposição do papel da Paciência com a de Deus, que é acentuada na


Bíblia em relação da paciência de Deus para com os homens.

3.2.4 O quarto duelo: Soberba versus Humildade e Esperança

Há na estrutura das três batalhas anteriores uma certa distinção das próximas
batalhas e distingue-se quer por serem as Virtudes as primeiras entidades nomeadas,
quer também por esta pequena tríade: Fé, Pudicícia e Paciência, reunirem as lutas
singulares entre duas entidades apenas. É a partir do quarto embate que temos como
características designar primeiramente os vícios e uma extensão dos combates. Este
desenvolvimento significa, a nosso ver, não que o poeta considere mais grave um
homem ser avaro do que colérico, mas que as próximas batalhas os vícios, soberba,
imoderação e avareza, são mais complexos e por isso se podem tornar mais perigoso
ao homem12.

Inicia-se, então, a quarta batalha, que contrapõe a Soberba e a humildade. Esta


última é tão frágil que necessita do auxílio da Esperança, depois unisse a ela, a
indigente Justiça, a pobretona Honra e a seca sobriedade. O quarto duelo sinaliza
uma mudança decisiva na representação do confronto entre Vicio e Virtudes. O duelo
entre Orgulho e Mens Humilis, é muito mais extensa e complexa: enquanto ainda
pertencente ao estágio que aqui chamarei intermediário da batalha da alma. Esta
guerra é uma espécie de preparação para as tumultuosas batalhas do quinto e sexto
embate13. Neste sentido, não é por acaso que ele centraliza o tema do poema, no
meio do quarto confronto.

A humildade é reconhecida também como uma rainha, mas no esforço de


descrever as características desta virtude, retraindo-se Prudêncio constrói uma virtude
tímida, quase antipática, que certamente não era sua intenção uma vez que a
humildade é uma das virtudes mais louvada pelos Cristãos.

olhando a inimiga formação em cunha, a que a Mente Humilde,


rainha sem dúvida, mas carente de auxílio externo
e não suficientemente confiada no próprio aparelhamento,
forçara para a guerra com poucos soldados e armas reduzidas.
Aliara a si a esperança como sócia, dona da abundância

12 Cf SOUSA, Ana Alexandrina Alves, 1992.


13 Nugent 1980, p 35.
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em reino rico, quando respeitada e erguida do chão. (Psych 197-202)

O aparecimento de soberba marca uma reviravolta em comparação com duelos


anteriores, o que será então mantido durante o resto do poema. É praticamente o
domínio do Vício que abafa a humildade, o vício ganha uma relevante preponderância
quase que absoluta em um número largo de versos14. A descrição do desenvolvimento
deste vício é ampla e abrangente, rico em traços ou gestos significativos; pensamos
aqui como a obra está ligada a personificação, o motivo desta largueza e dimensão
quase que glamorosa faz parte de fato com a descrição do vício, porque a aparência
é parte da essência desse vicio, autoafirmação, tanto visual e espacial, e até mesmo
verbal são, de fato, suas características específicas para sua luta. A primeira etapa da
apresentação, que oferece um olhar sobre o seu valor global (sendo um cavalo, galope
desenfreado no campo, querendo construir tropas) já expressa de forma eficaz a sua
característica fundamental: a vontade do poder.

O conceito de orgulho, sobre a natureza desse pecado, como o curso do duelo


mostrará claramente é a autoafirmação construída em sistema ao ponto de negar a
autoridade divina: a essência da opção do adversário e rebelião contra Deus,
semelhante a oposição de Adão, foi pelo orgulho de Adão que o pecado adentrou no
templo do homem, assim, foi na adesão do primeiro homem que este vício tomou parte
de todos os seres humanos. O longo discurso do vício dedica à celebração da
expulsão do Éden, ou seja, a queda do homem e sua inclinação ao pecado; e não
surpreendentemente poderíamos notar em seu discurso a origem do mal. O orgulho
torna-se como um veneno que corre nas veias do homem comum desde o nascimento.

Sem dúvida, ó povo jocoso, nas horas natais


abraçamos o homem todo e os membros aquecidos pela mãe,
espalhamos a força dos valores pelos membros do novo
membro e reinamos sobre todos os de coração rude.
Que lugar vos era dado então em nossa morada,
quando os domínios cresciam também com a mesma força
para as autoridades autóctones? Os já nascidos sob uma luz,
casa e donos, crescemos durante iguais anos,
donde uma criatura nova, abandonando os limites
cercados do paraíso, espalhou-se pelo mundo vasto,
o respeitável Adão, ainda nu, assumiu vestes de peles,
caso não tivesse seguido nossos mandamentos. (psych 216-227)

Esta afirmação não deixa dúvidas sobre a identidade do pensamento da


Psychomachia pela qual Prudêncio adere à teoria dos "demônios do vício”, segundo,

14 132 versos.
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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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tais entidades penetram fisicamente em diversas partes da natureza corrompida do


homem, além disso, o encontro entre Deus e a alma tem uma dimensão espacial, ela
se configura como uma visita de Deus no corpo-templo do homem15. Em certa medida,
o epílogo, traz a ênfase sobre o espírito de contraste com a carne, mas o interesse do
poeta é claro, a ideia de que o conflito ocorre dentro do corpo e suas partes em que
tem a alma como campo de batalha. Enfim, a arrogante autoconfiança de orgulho é
bem desenhada em seu discurso de desdém a virtude, mas, o desprezo dos soberbos
para os humildes é mais artisticamente retratado. Com efeito, apesar de a humildade
ter a Esperança como auxilio na oposição à Soberba, a causa primeira que conduz à
morte do vício, consiste no fosso escavado por outro vício, a Fraude, e no qual a
Soberba cai inadivertidamente. Oposto a união das Virtudes, o poeta lembra o perigo
de um Vício ser auxiliado por outro, pois não conseguindo ajudar mutualmente, um
contribui para a danação total.16

3.2.5 O Quinto duelo: A Imoderação versus Temperança

Entra em batalha vinda do ocidente a imoderação, vacilando entre os vinhos e


os perfumes, já ébria, seguida por vários guerreiros, que se deixam seduzir por seus
encantos, seu hálito sedutor e veneno que imputa aos olhos. É neste cenário sedutor
que inicia a quinta batalha da alma. Em um primeiro momento apenas a Temperança
se opõe ao Vício desordenado. Pois, todo exército das virtudes fora completamente
seduzido e, ficando inoperante perante a Imoderação. Por ser um Vício ligado ao
excesso, como corrobora seu epíteto de lasciva, a única a opor-se é a virtude que
naturalmente não pode ser seduzida pelo excesso; a Temperança. A imoderação é o
único vício que, ao comportar-se da forma que lhe é própria, quase chega a dominar
as Virtudes sem precisar de recorrer a armas. A atitude do Vício, exatamente porque
contraria a situação de guerra em que as Virtudes se encontravam, constitui um perigo
acrescido: ela proporciona, embora falsamente, a almejada paz, situação que as
Virtudes procuram atingir.

O decorrer do poema lembra-nos os momentos em que o homem, encantado


com a imoderação não apercebe da escravidão a que se obriga, movido pelas suas

15 Cf. comentário do prefácio.


16 Cf SOUSA, Ana Alexandrina Alves, 1992 pp 62
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ambições. A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de


nossos prazeres, em vez de seus escravos. Nesta luta encontramos uma veemente
crítica ao mau uso dos cincos sentidos que dá origem aos excessos: o excesso
domina todas as nossas manifestações vitais. O intemperante é um escravo, mais
subjugado ainda por transportar em toda parte seu amo consigo. Prisioneiro de seu
corpo, prisioneiro de seus desejos ou de seus hábitos, prisioneiro de sua força ou de
sua fraqueza.17 Uma das características inatas do ser humano é justamente fugir da
labuta e procurar facilidades.

O exército de virtudes quase que se entregando e querendo servir a imoderação,


é salvo pelo discurso da sobriedade, pois nesta batalha dentro da alma apenas um
exército pode comandar. O discurso de admoestação para a guerra, intencionando
fornecer aos guerreiros a razão justa da batalha a que foram convocadas, relatado de
forma direta,

Eis que eu, a Sobriedade, aos preparados para concordar


abro o caminho para todas as Virtudes, para que a má conselheira
Luxúria, rodeada de muito agregado, pague suas penas
com sua legião sob Cristo Juiz.” (psych 403-406)

No discurso da Temperança, é apontado que também os bons guerreiros podem


errar, agindo desregradamente, não se manifestando sempre reto na sua conduta.
Esta alusão a bons guerreiros que vacilam nas suas atitudes em ocasiões de guerra
é articulada com o momento da narrativa que está a viver, em que as virtudes quase
se deixam vencer pela imoderação, o poeta, pela boca do discurso da temperança, se
apoia novamente na autoridade bíblica. A temperança retrata Saul e Jónatas,18
mostrando que homens de virtudes podem errar.

terrível traição; caso se arrependa, o erro não chega a prejudicar.


Pesou a Jônatas ter violado o jejum imposto com o doce favo
do rei; e mal saboreado o gosto do mel, enquanto o suave prazer
do poder encanta o jovem e viola os juramentos sagrados. (psych 396-400)

No caso de Saul, ao apropriar-se de despojos que lhe estavam proibidos e ao


poupar o rei quando fora ordenado por Samuel que o matasse. No caso de Jônatas,
ao ceder à tentação de comer mel, quando seu pai tinha imposto o jejum 19. Um outro

17 Comte-Sponville André, 1999.


18 I reis, 14,43 e 15, 3.
19 Nota-se todavia que Jónatas desconhecia a ordem do pai.

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exemplo foi o desejo desordenado de reinar de seu pai Absalão. Portanto, é de fato
um vício sutil, de fácil dominação no homem, o próprio Davi, rei exemplar, pode ser
visto como um guerreiro não se manifestando sempre reto na sua conduta. É fato que,
na história humana o homem sempre se mostrou variante na retidão de sua conduta,
o que parece, que o poeta nos lembra destes momentos de decaída e de vacilo. É só
quando o homem se desperta das paixões desordenadas que tende a lutar com mais
vigor. Assim, é quando nos libertamos das paixões desordenadas causada pela
imoderação que o homem se encontra consigo mesmo, e reconhece sua verdadeira
natureza livre.

É interessante ainda notar um elemento não muito claro para uma linguagem
Cristã. A sobriedade arremessando uma enorme pedra que provinha de um rochedo
vai ser guiada pelo acaso. Prudêncio atribui ao acaso algo que seria de esperar a um
cristão a atribuição da Providencia.

A Sobriedade acresce à caída uma ferida mortal,


atirando do lado do rochedo uma pedra de moinho.
Depois que o acaso conferiu à porta-bandeira esse golpe,
dardos por mão alguma mas adorno de gestor da guerra,
a fatalidade ativa a pedra, de modo a quebrar o respiradouro
do meio do rosto e juntar os lábios ao palato furado.
(psych 417-422)

Diante da Cruz de Cristo, a pompa se vê despojada de seu fausto; a petulância


desaparece; a voluptuosidade cai em desgraça. Novamente é o exemplo de Cristo
que demonstra a aniquilação total dos vícios, o exemplo de homem que passou por
toda esta batalha para ensinar-nos como devemos lutar. Depois de vencida a
Imoderação a Temperança, com grande capacidade para refrear apetites e paixões,
abstém-se do botim e abandona os despojos de guerra que os vícios tinham deixado
cair.

Dispersa pela morte do chefe, foge com agitado pavor


o desordenado exército. Por primeiro, o Gracejo e a Petulância
largamos címbalos, pois jogavam a guerra com tais armas
dedicando-se aos ferimentos ao som do sistro.
O fugitivo Amor dá as costas, pálido pelo próprio medo,
abandona, deixando-os após seus passos, os dardos
untados de veneno, o arco caído dos ombros e a aljava deslizante.
A Pompa, ostentadora de vão esplendor, despe-se, desnudada,
do rico e inútil manto; desfeitas arrastam-se as grinaldas
da Elegância e desprende-se o ouro do pescoço e da cabeça
e a Discórdia contrariante agita joias.
O Prazer não se envergonha de ir com os pés arranhados através
de espinheiros pontudos, porque uma força maior obriga
a suportar a fuga acerba; o medo do perigo endurece as delicadas
plantas dos pés para a caminhada dolorosa.
Por onde e em qualquer situação que a tropa fugitiva dirija os

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apressados passos, restam os prejuízos: agulhas de cabelo, faixas,


fitas, fivelas, véus, corpinhos, diademas e colares.(Psych 432-449)

3.2.6 O sexto duelo: Avareza versus Razão e Generosidade

Esta parece ser a única entrada estritamente natural de um vício no campo.


Como vimos, na morte da Imoderação e toda sua comitiva de vícios, muitos artigos
ricos foram abandonados; A Avareza, vendo uma oportunidade de ganho, sai
recolhendo tudo e pondo em suas vestes cheias de pregas e com grandes bolsos, de
forma a ter onde guardar os produtos de suas rapinas; e, como se não lhe fosse
suficiente, leva ainda nas mãos cofres que vai tornando-se pesados pelo excesso.

Diz-se que a Avareza, cingida no amplo ventre, com mão adunca,


agarrara tudo quanto o Luxo voraz deixara de precioso, buscando
com a grande boca aberta ledas trapaças e juntando grãos de ouro velho
entre os montinhos de areia. Não bastou ter enchido as grandes bolsas;
gosta de acumular o iníquo lucro do crime e ampliar com furtos
os cofres cheios, que ela encobre com a esquerda e tapa os lados
com esquisito tapume; de fato, a rápida direita agarra os objetos
e com os furtos exercita as unhas rígidas.(Psych 454-463)

Sua descrição é de uma matrona de males, amamentado seus filhos com leite
negro. Gera a Preocupação, a Fome, o Medo, a Ansiedade, o Perjúrio, o Temor, a
Corrupção, a Falácia, a Ficção, a Insônia a Ruindade. O sexto e último combate que
a alma deverá enfrentar será o Vício da Avareza e a Virtude que comandará este
embate será a Generosidade, entendida como as boas obras, ou seja, o
empreendimento de atos de beneficência, a caridade. A Avareza é acompanhada por
um extenso séquito de vícios, atrai os homens gerando a discórdia civil. Pelas nações
gera tal mortandade e é a vencedora do universo (orbe), ou seja, para o poeta a
Avareza havia vencido e dominado o universo, imperando sobre o mundo e trazendo
a calamidade.

Tais desgraças espalhava por entre os povos a Avareza,


dona do universo, derrubando centenas de milhares de homens
com diversos golpes: a este, retirada a luz e com olhos vasados,
cego como na escuridão da noite, permite andar errante e ir
de encontro a muitos óbices sem perceber o perigo com uma
bengala.(Psych 480-485)

Para enganar as virtudes, a Avareza se transforma em Frugalidade, com uma


aparência honesta. A dissimulação e o fingimento constituem características
importantes da nova entidade que saqueia procurando transmitir impressão de que
não o faz. Prudêncio faz uma longa explanação deste Vício devastador, talvez porque,
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por um lado, ele compactua com os outros vícios, quando o poeta fala dos disfarces
deste Vício, diz que sente raiva e fúria junto a si. Por outro lado, ao mostrar a Avareza
com paciência de virtude, o poeta pretende fazer ver que este vício pode dominar o
homem, estando ele persuadido ou querendo ele persuadir os homens que nas suas
atitudes não se manifesta pecaminoso, mas apenas um defensor da frugalidade. Ou
seja, capaz de ostentar uma aparência virtuosa e até mesmo de se comparar de forma
aparentemente piedosa, camuflando intenções perversas.

No discurso da Avareza, o poeta põe em sua boca, as personagens bíblicas,


Judas Iscariotes e Acar. O Vício mostra-se consciente da falta em que aqueles
incorreram e regozija-se pela atitude pecaminosa de Acar e de Judas e por este motivo
serem levados à morte. Acar é sentenciado à morte, porque, dominado pela cobiça,
se apropriara de objetos votados por Deus ao interdito; Judas vendeu Cristo por trinta
moedas, e, com esse lucro comprou um campo, onde morreu. Como um projeto
delineado, o texto da Psychomachia em toda sua estrutura, deixa claro os exemplos
históricos de atitude do humano levado pelo Vício, no caso aqui por se tratar de um
texto cristão, os exemplos da Psychomachia em sua grande parte foram retirados da
bíblia.

A avareza ao disfarçar-se de frugalidade torna difícil a oposição das virtudes,


incapazes de compreenderem o que se passa. Porém, é a Razão que colocando de
permeio o escudo impede a Avareza de ferir e derrotar o exército de virtudes através
do dolo, a Razão é o instrumento que os Cristãos usam com mais eficácia para se
defenderem contra os pagãos. Sua defesa vem do fato de que ela é capaz de perceber
a mentira e a ilusão. A razão, no poema, tem fortalecido os cristãos contra a Avareza
e defendendo do poder deste vício que o torna totalmente ineficaz. Podemos quase
ouvir a Razão propondo seu argumento mais forte para aqueles que são preenchidos
com pensamentos do sobrenatural e estão bem dispostos a aceitar a sua lógica: "Que
aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e sofrerem a morte de sua alma”?

a Razão, poderosa pelas armas, única sempre sócia


da tribo Levítica, tivesse anteposto o escudo e protegido
seus ilustres alunos contra o ataque das tétrica inimiga.
Seguros ficam todos por obra da Razão, ficam inumes
de toda confusão e fortes de espírito; mal atingindo a flor
da pele, levemente fere a poucos o dardo da Avareza.(Psych 502-507)

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Depois de um momento de confusão, é graças ao discurso da Generosidade que


as virtudes compreendem como constituir os dois polos em conflito: o bem e o mal. A
generosidade situada no meio do campo de batalha, livre de seus fardos e despojada
de roupas, que já se tinha apiedado dos desvalidos e nus, rica de fé, brandos gritos
terríveis e usa a força imensa de seus braços, pois tem as mãos largas como atributo
de sua natureza e rompe a garganta da Avareza, até deixá-la seca e sem sangue. É
interessante que a avareza é morta pelo seu contrário, é reduzida a escassez. A
causa, portanto, que conduz a Avareza à morte consiste no aparecimento da
Generosidade, esta, ao vê-la, sente de imediato que está prestes a morrer e estática
nada faz em evitar a aproximação da virtude. Uma vez vencida toda sua comitiva
Medo e Fadiga, Maldade e Falácia, Violência foram expulsas, pois quem reinou foi a
tão almejada paz. É impossível desenvolver aqui, o pensamento do poeta enquanto a
expulsão dos Vícios. Para onde iria? Qual o seu destino? O que podemos pensar é
que, como vimos os combates tiveram seu lugar na alma, uma vez derrotados, o poeta
talvez faz menção da saída do espaço metafísico da alma, ou seja desaparecem da
alma, ficando nela ou reinando as virtudes.

O desfecho do último duelo, nos remete a cena do jovem rico que deseja a vida
eterna, ou seja, que almeja a vida espiritual. Apesar do poeta não mencionar esta
passagem bíblica, onde um jovem aproxima-se de Jesus e faz uma pergunta: Bom
mestre, que farei para herdar a vida eterna?20 Como se sabe este jovem já tinha
observado todos os mandamentos de sincero coração, ou seja, já tinha combatido
consigo mesmo todas tendências contrárias à sua fé. Porém, lhe faltava uma única
coisa para que enfim, pudesse almejar o que desejava, deixar tudo que tinha em
excesso e dar aos pobres. Prudêncio pode não ter mencionado o exemplo do jovem
rico, porém o epílogo da batalha da alma, é o mesmo do pensamento cristão para
uma conversão definitiva. O tema do abandonar o excesso como causa final da
adesão à vida cristã parece ser o duelo mais conturbado que a alma pode enfrentar.

20 Cf. Marcos 10,17.


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3. 3 A Paz com suas vicissitudes e a construção do Templo

Poderíamos pensar em um desfeche pacífico, após a alma ter chegado a um


estado onde reina a paz. É a concórdia que por sua vez dá um sinal de que a guerra
é findada. O espaço se transforma, tem um lugar diferente e de caráter festivo,
juntamente difere as atividades das Virtudes, despojadas de elementos bélicos, dava-
se lugar a música e cânticos. Sem dúvida o poeta já aponta um espaço comum aos
Cristãos, pois, a celebração para os Cristãos era feita justamente neste ambiente de
confraternização, músicas e cânticos.
Porém, em meio aos cânticos e tambores, a Discórdia de forma astuciosa
infiltrou-se entre as virtudes, como se fosse um aliado, ocultava um punhal embaixo
de suas vestes. Este último embate poderíamos ter incluso como uma sétima batalha,
porém, a própria forma como as virtudes intervém este mal é singular. Já ocorre sub
pace e é a Fé que novamente inicia sua ação, é dela que sai o primeiro golpe mortal
sobre a inimiga, e todas as Virtudes intervém, trespassando a Discórdia com a sua
própria arma. Desde o início de nossa explanação falamos, em uma batalha do
homem virtuoso Cristão contra as práticas viciosas e decadentes dos pagãos,
deixamos esta batalha distintas das outras, pois, acreditamos que o poeta se refere a
um vício ou um mal que o cristão pode levar consigo para a vida cristã. Prova disso,
é que a Discórdia vai ser chamada de heresia. Ora, estamos no século V e o maior
evento que perturbava a paz dos Cristãos eram as Heresias e que de fato se tornara
uma discórdia entre os Cristãos. Portanto, aqui se trata não de uma apologia Cristã
contra os costumes pagãos, mas um acontecimento histórico entre os Cristãos.
Esta parte do poema, nos leva para um ambiente de solidariedade entre as
virtudes, aimportancia da ajuda mútua em tempo de guerra, como mostra o poeta,
também deve-se ter em tempo de paz. A fé, a guerreira do primeiro e do derradeiro
embate, manifesta solidariedade. Decorrido os discursos da Fé e da concórdia, com
o mesmo objetivo de exemplos Bíblicos, Prudêncio da ênfase para duas grandes
virtudes à vida humana: a Paz e a Concórdia. É neste contexto de Paz e Concordia
que o ser humano constrói um templo, um lugar preparado para receber a Sabedoria.

A edificação do templo tem seu lugar na alma, do mesmo modo como se deu no
espaço da batalha. É depois da fé ter vencido que ela própria vai dirigir a construção.
É um templo interior, uma vez o corpo do homem purificadodos vícios torna-se templo
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de Deus.21 Assim, fazendo referência ao templo de Salomão a fé com seu discurso


arquiteta o templo. Será uma morada que receba Cristo. Ele que é Sabedoria para
preencher a alma após a expulsão dos pecados. Depois de uma luta com os apetites
do corpo e da alma o cristão pode emfim construir seu paraíso que tem Deus por sua
morada. A Psychomachia termina, portanto, com uma estrutura idêntica à cidade
celeste, descrita no livro do Apocalipse. A construção principal que condiciona todas
as construções espirituais.
Assim, cabe ao homem ficar atento e vigilante com as forças más e impuras que
a todo instante tendem a infligir a alma. Este é o ser humano esboçado por nosso
poeta, que passa toda sua existência em opção livre por certos comportamentos, e
dependendo de sua resposta de fé e de confiança no auxílio de Deus, poderá no fim
vencer toda batalha e receber como prêmio a habitação eterna de Deus.
A luz e as trevas lutam com disposições diferentes
e a dupla substância anima forças distintas,
até que Cristo Deus venha em auxílio,
ponha ordem em todas as gemas das virtudes na sede sacra,
e, onde o pecado havia reinado, estabelecendo
os áureos átrios sagrados, teça os ornamentos
da alma pela prova dos costumes, pelos quais a rica Sabedoria,
satisfeita no honroso trono, reine para sempre.( Psych 908-915)

21 I Cor. 3, 16; II Cor. 6, 16


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4 CONCLUSÃO

Prudêncio, na Psychomaquia, consegue conjugar os valores da cultura clássica


chamada pagã com a mensagem Cristã de que a alma deve rejeitar todas as
tendências pecaminosas. Através de um pensamento bélico violento a batalha travada
na alma seria então, frutos dos nossos sentidos. O poeta pretendeu exortar os seus
leitores a um exame interior, de forma que expelisse da alma qualquer tendência
provocada por sentidos desordenados. Por sua vez, Deus dotaria o espírito com
“artes” excelentes para combater, a qual chamamos de virtudes.

Como vimos a representação destas forças desordenadas, chamadas de


Vícios, não são de modo algum mal em sim mesmo. São forças que nascem
naturalmente no interior do homem, fruto de suas escolhas. Portanto o Vício seria uma
espécie de inimigo interior que afeta a tranquilidade da alma gerando uma paixão
desordenada de prazeres causando grandes calamidades de desordem e imoderação
nas ações dos homens. Assim, como relata no poema vemos que esta desordem
viciosa nunca é solitária, arrasta consigo outras, ocasionando uma confusão no
homem em relação a distinção do bem e do mal. O principal aspecto apresentado
nesta obra reside na procura e no esforço para alcançar a “paz interior”, através de
uma vivência íntima e individual com Deus. Podemos concluir também, que nesta
batalha solitária e interior o processo que o homem deve trilhar é bem antigo: conhece-
te a ti mesmo. Esse longo percurso implica um sério exercício de reflexão e de
meditação, capaz de discernir, por meios das batalhas dos sentidos quotidiano, um
caminho que distinga a verdade da virtude do engano do Vício.

Portanto, a mensagem do poema foi bem clara: que fique o homem atento aos
seus desejos e desordens internas, que busque viver de modo harmonioso com sua
natureza. No caso do poema este modo natural de equilíbrio e de conquistar a paz
interior é o Cristianismo, ou seja, o modo de vida cristã traz em si a opção por certos
comportamentos que leva o homem a agir harmoniosamente e garantirem a paz e a
sabedoria interior.

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5 PSYCHOMAQUIA: TEXTO LATINO E TRADUÇÃO

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5 PSYCHOMAQUIA: TEXTO LATINO E TRADUÇÃO

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PRAEFATIO

Senex fidelis prima credendi uia


Abram, beati seminis serus pater,
adiecta cuius nomen auxit syllaba,
Abram parenti dictus, Abraham Deo,
5 senile pignus qui dicauit uictimae,
docens ad aram cum litare quis uelit,
quod dulce cordi, quod pium, quod unicum
deo libenter offerendum credito,
pugnare nosmet cum profanis gentibus
10 suasit, suumque suasor exemplum dedit,
nec ante prolem coniugalem gignere
deo placentem, matre uirtute editam,
quam strage multa bellicosus spiritus
portenta cordis seruientis uicerit.
15 uictum feroces forte reges ceperant
Loth inmorantem criminosis urbibus
Sodomae et Gomorrae, quas fouebat aduena
pollens honore patruelis gloriae.
Abram sinistris excitatus nuntiis
20 audit propinquum sorte captum bellica
seruire duris barbarorum uinculis:

armat trecentos terque senos uernulas,


pergant ut hostis terga euntis caedere.
quem gaza diues ac triumphus nobilis
25 captis tenebant inpeditum copiis.
quin ipse ferrum stringit et plenus deo
reges superbos mole praedarum graues
pellit fugatos, sauciatos proterit,
frangit catenas et rapinam liberat:
30 aurum, puellas, paruulos, monilia,

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Prefácio

Fiel ancião, caminho inicial de todo crer,


Abrão, pai tardio de uma feliz descendência,
a cujo nome foi acrescida uma sílaba,
dito Abrão para o pai, Abraão para Deus,
5 o qual conferiu à vítima um aval tardio,
ensinando, quando alguém quiser sacrificar junto ao altar,
o que ao coração é doce, é pio e a coisa única
a ser oferecida ao Deus confiável com alegria,
que nos sugere lutarmos com povos sem Deus
10 e o mesmo conselheiro deu seu exemplo;
e não gerasse o filho legítimo
por vontade de Deus, nascido da mãe pela virtude,
antes que o espírito guerreiro superasse com grande ruina
os portentos de um coração obediente.
15 Sem dúvida, reis cruéis haviam levado Ló vencido,
então morador nas cidades pecadoras Sodoma e Gomorra,
às quais o estrangeiro valioso favorecia
como possuidor da grande honra da glória do primo.
Abrão ouviu, comovido pelas notícias funestas,
20 que o parente, aprisionado pela má sorte da guerra,
era escravo nos rígidos grilhões dos bárbaros:
põe em armas trezentos e dezoito homens dentre seus escravos
que partem para atacar a retaguarda do inimigo em movimento.
Um rico tesouro e uma nobre vitória mantinham o inimigo
25 sitiado com as tropas capturadas.
Mais ainda, empunha a espada e, cheio de Deus, vence
os reis orgulhosos em fuga e onerados
pelo peso do botim, esmaga os feridos,
quebra as correntes e libera a pilhagem:

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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30 ouro, moças, crianças, joias,


greges equarum, uasa, uestem, buculas.
Loth ipse ruptis expeditus nexibus
attrita bacis colla liber erigit.
Abram triumphi dissipator hostici
35 redit recepta prole fratris inclytus
ne quam fidelis sanguinis prosapiam
uis pessimorum possideret principum.
adhuc recentem caede de tanta uirum
donat sacerdos ferculis caelestibus,
40 dei sacerdos, rex et idem praepotens,
origo cuius fonte inenarrabili
secreta nullum prodit auctorem sui,
Melchisedech, qua stirpe, quis maioribus
ignotus, uni cognitus tantum deo.
45 mox et triformis angelorum trinitas
senis reuisit hospitis mapalia,
et iam uietam Sarra in aluum fertilis
munus iuuentae mater exsanguis stupet,
herede guadens, et cachinni paenitens.
50 haec ad figuram praenotata est linea,
quam nostra recto uita resculpat pede:
uigilandum in armis pectorum fidelium,
omnemque nostri portionem corporis,
quae capta foedae seruiat libidini,
55 domi coactis liberandam uiribus;
nos esse large uernularum diuites,
si quid trecenti bis nouenis additis
possint figura nouerimus mystica.
mox ipse Christus, qui sacerdos uerus est,
60 parente inenarrabili atque uno satus,
cibum beatis offerens uictoribus
paruam pudici cordis intrabit casam,
monstrans honorem trinitatis hospitae
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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
45

manadas de éguas, vasos, roupas e novilhas.


O próprio Ló, desvencilhado das amarras cortadas,
libertado, reergue as cabeças esfregando-as com azeite.
Abrão, destruidor da vitória inimiga,
35 regressa glorioso com a prole do irmão,
para que a força dos piores chefes não possuísse
essa descendência de sangue nobre.
Ainda agora o sacerdote presenteia o homem,
apenas saído de tão grande batalha, com iguarias celestes,
40 o sacerdote de Deus, rei e também muito poderoso,
cuja origem é de fonte totalmente desconhecida.
Nenhum autor desvenda-lhe os segredos,
Melquisedec: de que ascendência, alguém de antepassados
desconhecidos, tudo sabido unicamente por Deus.
45 Em seguida, um grupo de três diferentes anjos
visitou novamente a cabana do velho hospedeiro;
e já espanta a provecta Sara, tornada de ventre fértil,
o encargo de proceder como mãe mesmo exangue,
feliz com o herdeiro e desculpando-se da risada.
50 Essa narrativa foi escrita como uma figura
como nossa vida se refaz com um passo correto:
é preciso vigiar em armas dos corações fieis
e cada uma das partes de nosso corpo
que, dominada, venha a servir à triste concupiscência,
55 a ser liberada em casa para as forças reprimidas.
Somos largamente ricos em servos novos,
caso tenham força os trezentos e dezoito adicionados
e desvendarmos a figura mística.
Logo o próprio Cristo, que é o sacerdote verdadeiro,
60 nascido de mãe única e inenarrável,
oferecendo um alimento aos felizes vencedores,
entrará na pequena choupana dos de coração puro,
demonstrando a honra da Trindade hospedada.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
46

animam deinde spiritus conplexibus


65 pie maritam, prolis expertem diu,
faciet perenni fertilem de semine,
tunc sera dotem possidens puerpera
herede digno patris inplebit domum.

*****

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
47

Tornará então fértil, com semente perene, a alma


65 piamente unida pelos laços do espírito,
mesmo longamente sem prole;
então a mãe tardia, tendo o dom,
encherá a casa do pai com um herdeiro digno.

*****

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
48

Christe, graues hominum semper miserate labores,


qui patria uirtute cluis propriaque, sed una,
(unum namque deum colimus de nomine utroque,
non tamen et solum, quia tu deus ex patre, Christe)
5 dissere, rex noster, quo milite pellere culpas
mens armata queat nostri de pectoris antro,
exoritur quotiens turbatis sensibus intus
seditio atque animam morborum rixa fatigat,
quod tunc praesidium pro libertate tuenda
10 quaeue acies furiis inter praecordia mixtis
obsistat meliore manu. nec enim, bone ductor,
magnarum virtutum inopes neruisque carentes
Christicolas uitiis populantibus exposuisti.
ipse salutiferas obsesso in corpore turmas
15 depugnare iubes, ipse excellentibus armas
artibus ingenium, quibus ad ludibria cordis
oppugnanda potens tibi dimicet et tibi uincat.
uincendi praesens ratio est, si comminus ipsas
uirtutum facies et conluctantia contra
20 uiribus infestis liceat portenta notare.
prima petit campum dubia sub sorte duelli
pugnatura Fides, agresti turbida cultu,
nuda umeros, intonsa comas, exerta lacertos;
namque repentinus laudis calor ad noua feruens
25 proelia nec telis meminit nec tegmine cingi,
pectore sed fidens ualido membrisque retectis
prouocat insani frangenda pericula belli.
ecce lacessentem conlatis uiribus audet
prima ferire Fidem Veterum Cultura Deorum.
30 illa hostile caput phalerataque tempora uittis
altior insurgens labefactat, et ora cruore
de pecudum satiata solo adplicat et pede calcat

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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Cristo, sempre apiedado dos pesados trabalhos dos homens,


que purificas por força do pai e pela tua, embora única,
(pois veneramos a um só Deus sob os dois nomes,
mas não isolado, porque, Cristo, tu és Deus nascido do Pai.)
5 Expõe, rei nosso, com que exército a mente armada consiga
afastar as culpas do fundo de nosso peito,
sempre que surgir dentro de nossos sentidos
a revolta e o embate das doenças debilite a alma,
para que então se oponham, qual melhor mão, uma escolta
10 para manter a liberdade ou uma linha de batalha
contra as confusas fúrias entre os sentimentos.
Pois, ótimo guia, não expuseste os cristícolas, privos das grandes
virtudes e desprovidos de nervos, aos vícios devastadores.
Tu mesmo ordenas combater os destacamentos saudáveis
15 no corpo sitiado; tu mesmo dás armas aos melhores,
e a habilidade para as artes, com que, poderoso na luta
contra os enganos do coração, por ti batalhe e vença.
O objetivo atual é o de vencer, caso se possa perceber logo
as próprias faces das virtudes e, ao contrário, os portentos
20 coadjuvados pelas forças inimigas iminentes.
Em primeiro lugar, pede campo a Fé, que lutará
sob a dúbia sorte do duelo, perturbada por um culto primevo,
com os ombros nus, cabeleira não aparada e musculatura à vista;
E de fato o súbito calor do aplauso a torna impelida a novos
25 combates e não se lembra de cingir as armas de ataque e defesa;
mas, fiando-se no coração corajoso e nos membros descobertos,
se expõe aos perigos destruidores de uma guerra insana.
Eis que a primeira a ousar ferir a provocante fé,
com as forças reunidas, é a veneração dos antigos deuses.
30 A fé faz cair a cabeça hostil e as têmporas enfeitadas com fitas,
elevando-se mais ato e força no chão a boca saciada
com o sangue de animais e calca com os pés os olhos

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50

elisos in morte oculos, animamque malignam


fracta intercepti commercia gutturis artant,
35 difficilemque obitum suspiria longa fatigant.
exultat uictrix legio, quam mille coactam
martyribus regina Fides animarat in hostem.
nunc fortes socios parta pro laude coronat
floribus ardentique iubet uestirier ostro.
40 exim gramineo in campo concurrere prompta
uirgo Pudicitia speciosis fulget in armis,
quam patrias succincta faces Sodomita Libido
adgreditur piceamque ardenti sulpure pinum
ingerit in faciem pudibundaque lumina flammis
45 adpetit, et taetro temptat subfundere fumo.
sed dextram furiae flagrantis et ignea dirae
tela lupae saxo ferit inperterrita uirgo,
excussasque sacro taedas depellit ab ore.
tunc exarmatae iugulum meretricis adacto
50 transfigit gladio; calidos uomit illa uapores
sanguine concretos caenoso; spiritus inde
sordidus exhalans uicinas polluit auras.
"hoc habet," exclamat uictrix regina, "supremus
hic tibi finis erit, semper prostrata iacebis,
55 nec iam mortiferas audebis spargere flammas
in famulos famulasue dei, quibus intima casti
uena animi sola feruet de lampade Christi.
tene, o uexatrix hominum, potuisse resumptis
uiribus extincti capitis recalescere flatu,
60 Assyrium postquam thalamum ceruix Olofernis
caesa cupidineo madefactum sanguine lauit,
gemmantemque torum moechi ducis aspera Iudith
spreuit et incestos conpescuit ense furores,
famosum mulier referens ex hoste tropaeum
65 non trepidante manu uindex mea caelitus audax!

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
51

apagados na morte e os intercâmbios interrompidos


da garganta fechada sufocam a alma maligna,
35 e os longos suspiros retardam a difícil morte.
Exulta a legião vitoriosa, a qual, impelida por mil mártires,
a rainha Fé havia incentivado contra o inimigo.
Agora ela coroa os corajosos companheiros, por louvor merecido,
com flores e manda sejam vestidos com fulgurante púrpura.
40 Em seguida, no campo relvoso se apresenta bem visível
a virgem Pudicícia e brilha com armas refulgentes,
a qual a Libido Sodomita, armada com os furores pátrios,
agride e introduz na boca um negro facho aceso de enxofre,
busca atingir com chamas os olhos pudicos
45 e tenta submergi-los em densa fumaça repugnante.
Todavia, a destemida Virgem fere com uma pedra
a mão direita da fúria inflamada e as armas da loba feroz
e expele da boca santa os pedaços da madeira do facho.
Traspassa então a garganta da meretriz desarmada
50 com a espada afiada: aquela vomita quentes vapores
espessos com sangue lamacento; depois, ao exalar
o espírito imundo, polui os ares ao redor.
‘É isso’, exclama a rainha vitoriosa, ‘este será
teu derradeiro destino, permanecerás sempre prostrada
55 e já não ousarás espalhar tuas chamas mortíferas
contra os servos e as servas de Deus, cujo cerne íntimo
de um espírito casto só se acende com a lâmpada de Cristo.
Fique sabendo, ó destruidora dos homens, se fosse possível
com forças renovadas reaquecer com o sopro da vida
60 uma cabeça cortada: depois que a cerviz decepada de Holofernes
lavou o leito assírio molhado com o sangue cupidíneo;
a rude Judite desprezou o leito recamado de gemas preciosas
do general adúltero, eliminando com a espada ardores obscenos;
e a mulher traz do inimigo o famoso troféu tomado
65 com mão firme, minha vingadora divinamente audaz!

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52

at fortasse parum fortis matrona sub umbra


legis adhuc pugnans, dum tempora nostra figurat,
uera quibus uirtus terrena in corpora fluxit
grande per infirmos caput excisura ministros.
70 numquid et intactae post partum uirginis ullum
fas tibi iam superest? post partum uirginis, ex quo
corporis humani naturam pristina origo
deseruit carnemque nouam uis ardua seuit,
atque innupta deum concepit femina Christum,
75 mortali de matre hominem, sed cum patre numen.
inde omnis iam diua caro est quae concipit illum
naturamque dei consortis foedere sumit.
Verbum quippe caro factum non destitit esse
quod fuerat, Verbum, dum carnis glutinat usum,
80 maiestate quidem non degenerante per usum
carnis, sed miseros ad nobiliora trahente.
ille manet quod semper erat, quod non erat esse
incipiens: nos quod fuimus iam non sumus, aucti
nascendo in melius: mihi contulit et sibi mansit.
85 nec deus ex nostris minuit sua, sed sua nostris
dum tribuit nosmet dona ad caelestia uexit.
dona haec sunt, quod uicta iaces, lutulenta Libido,
nec mea post Mariam potis es perfringere iura.
tu princeps ad mortis iter, tu ianua leti,
90 corpora conmaculans animas in tartara mergis.
abde caput tristi, iam frigida pestis, abysso;
occide, prostibulum; manes pete, claudere Auerno,
inque tenebrosum noctis detrudere fundum.
te uoluant subter uada flammea, te uada nigra
95 sulpureusque rotet per stagna sonantia uertex,
nec iam Christicolas, furiarum maxima, temptes,
ut purgata suo seruentur corpora regi."
dixerat haec et laeta Libidinis interfectae
morte Pudicitia gladium Iordanis in undis
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53

Mas uma matrona talvez menos corajosa, ainda lutando


sob a égide da lei, enquanto molda nossos tempos,
a cujos corpos terrenos fez fluir a virtude verdadeira,
cortará a grande cabeça através de fracos servidores.
70 Acaso depois do parto da virgem intacta algum direito
ainda te restou? Depois do parto da virgem, depois do qual
a antiga origem se apartou da natureza do corpo humano,
uma força vigorosa lhe conferiu uma nova carne
e uma mulher solteira concebeu Cristo Deus,
75 homem de mãe mortal, mas Deus com o Pai.
Por isso, toda carne é já divina e a que o concebeu
assume por aliança a natureza do Deus conatural.
De fato, o Verbo feito carne não deixou de ser
o que havia sido, o Verbo, enquanto junta o uso da carne,
80 embora sem diminuição da majestade pelo uso da carne,
mas ainda eleva os pobres a condições mais elevadas.
Permanece ele o que sempre foi, começando a ser
o que era: o que não éramos nós já não somos, elevados
ao nascermos para o melhor: sublimou-me e ficou o mesmo.
85 Deus nada perdeu de seu assumindo do nosso, enquanto deu
a nós algo de seu, nos conduziu às dádivas celestiais.
São essas dádivas, pelas quais foste vencida, Libido torpe,
não mais podes, depois de Maria, quebrar meus direitos.
Tu, principal caminho para a morte, tu, porta da destruição,
90 conspurcando os corpos, mergulhas as almas nos infernos.
Mergulha a cabeça, já regelada peste, no abismo infeliz;
Suma, prostíbulo; peça aos Manes fechar-te no Averno
e precipitar no fundo mais tenebroso da noite!
Façam-se rolar sob as águas cor de fogo e negras
95 e o turbilhão sulfuroso te faça girar pelos pântanos ruidosos,
e já não ataques, maior de todas as fúrias, os cristícolas
para que conservem para seu rei os corpos purificados.
Isso dissera e ainda a Pudicícia alegre com a morte da Libido
assassinada lavou nas águas do Jordão a espada manchada,
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100 abluit infectum, sanies cui rore rubenti


haeserat et nitidum macularat uulnere ferrum.
expiat ergo aciem fluuiali docta lauacro
uictricem uictrix, abolens baptismate labem
hostilis iuguli; nec iam contenta piatum
105 condere uaginae gladium, ne tecta rubigo
occupet ablutum scabrosa sorde nitorem,
catholico in templo diuini fontis ad aram
consecrat, aeterna splendens ubi luce coruscet.
110 ecce modesta graui stabat Patientia uultu
per medias inmota acies uariosque tumultus,
uulneraque et rigidis uitalia peruia pilis
spectabat defixa oculos et lenta manebat.
hanc procul Ira tumens, spumanti feruida rictu,
115 sanguinea intorquens subfuso lumina felle,
ut belli exsortem teloque et uoce lacessit,
inpatiensque morae conto petit, increpat ore,
hirsutas quatiens galeato in uertice cristas.
"en tibi Martis," ait, "spectatrix libera nostri,
120 excipe mortiferum securo pectore ferrum,
nec doleas, quia turpe tibi gemuisse dolorem."
sic ait, et stridens sequitur conuicia pinus
per teneros crispata notos, et certa sub ipsum
defertur stomachum rectoque inliditur ictu,
125 sed resilit duro loricae excussa repulsu.
prouida nam Virtus conserto adamante trilicem
induerat thoraca umeris squamosaque ferri
texta per intortos conmiserat undique neruos.
inde quieta manet Patientia, fortis ad omnes
130 telorum nimbos et non penetrabile durans.
nec mota est iaculo monstri sine more furentis,
opperiens propriis perituram uiribus Iram.
scilicet indomitos postquam stomachando lacertos

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100 à qual aderira a nódoa do orvalho vermelho


e havia maculado o ferro brilhante.
Daí que a sábia vencedora limpa a arma vitoriosa
com a lavagem fluvial, eliminando pelo batismo a nódoa
da garganta inimiga; e não satisfeita com repor a espada
105 vingadora na bainha, para que a ferrugem oculta
não ofusque o lavado brilho com imundície sarnenta,
consagra-a junto ao altar no templo católico da fonte divina,
onde esplendorosa brilhe na luz eterna.
Eis que em pé estava a recatada Paciência com aspecto grave,
110 imóvel por entre linhas de batalha e tumultos vários,
fitava os ferimentos e as passagens de vida entre os dardos agudos,
com os olhos fixos e prosseguia com lentidão.
À distância, a Ira enfurecida, fervente com um ricto espumante,
difundindo raios cor de sangue com laivos de fel,
115 a fim de provocar o alheio à guerra com armas e com a voz
e impaciente com a lentidão, ataca com lança, deblatera,
sacudindo os eriçados penachos do alto do capacete.
“Eia tu, livre espectadora do nosso Marte,” - diz –
“recebe no peito aberto o ferro mortífero,
120 e não lamentes que a dor te fez gemer covardemente.”
Assim falou e a lança sibilante acompanha os insultos
encrespados pelos ventos brandos e certeira atinge
o próprio estômago e atinge num embate certeiro,
mas não penetra, repelida pela dura resistência da couraça.
125 Pois a previdente Virtude vestira o tríplice tecido de diamante
entrelaçado, a armadura escamosa nos ombros e feita de ferro
e por toda parte os unira por meio de fios retorcidos.
Por isso, a Paciência permanece tranquila, corajosa perante
todas as nuvens de dardos e continua de modo impenetrável.
130 Nem é abalada pelo dardo do furioso monstro sem moral,
aguardando com as próprias forças a condenada Ira.
Evidentemente, a bárbara guerreira havia exaurido
os indômitos braços, depois de muita irritação, e frustrada
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nube superuacuam lassauerat inrita dextram,


135 cum uentosa leui cecidissent tela uolatu,
iactibus et uacuis hastilia fracta iacerent,
uertitur ad capulum manus inproba et ense corusco
conisa in plagam dextra sublimis ab aure
erigitur mediumque ferit librata cerebrum.
140 aerea sed cocto cassis formata metallo
tinnitum percussa refert aciemque retundit
dura resultantem, frangit quoque uena rebellis
inlisum chalybem, dum cedere nescia cassos
excipit adsultus ferienti et tuta resistit.
145 Ira, ubi truncati mucronis fragmina uidit
et procul in partes ensem crepuisse minutas,
iam capulum retinente manu sine pondere ferri,
mentis inops ebur infelix decorisque pudendi
perfida signa abicit monumentaque tristia longe
150 spernit, et ad proprium succenditur effera letum.
missile de multis, quae frustra sparserat, unum
puluere de campi peruersos sumit in usus:
rasile figit humi lignum ac se cuspide uersa
perfodit et calido pulmonem uulnere transit.
155 quam super adsistens Patientia "uicimus," inquit,
"exultans Vitium solita uirtute, sine ullo
sanguinis ac uitae discrimine; lex habet istud
nostra genus belli, furias omnemque malorum
militiam et rabidas tolerando extinguere uires.
160 ipsa sibi est hostis uesania seque furendo
interimit moriturque suis Ira ignea telis."
haec effata secat medias inpune cohortes
egregio comitata uiro; nam proximus Iob
haeserat inuictae dura inter bella magistrae,
165 fronte seuerus adhuc et multo funere anhelus,
sed iam clausa truci subridens ulcera uultu,
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cansara sua destra impotente com a nuvem de dardos,


135 já que os dardos aéreos teriam caído como um voo breve,
as hastes das armas inimigas quebradas pelos tiros e erros,
a mão ignóbil volta-se para o cabo da arma e, apoiada
na espada brilhante, a direita alçada para a região acima
do ouvido e pesada fere o meio da cabeça.
140 Mas o capacete heril, feito de metal fundido, atingido
produz um tinido e resistente rebate e quebra a lâmina;
também o veio rebelde fragmenta o aço rebatido,
enquanto, negando-se a ceder, recebe os inúteis
assaltos do machucador e resiste com segurança.
145 A Ira, logo que viu os pedaços da arma quebrada
e ao longe que a espada se fragmentara em pequenos pedaços,
já o cabo, seguro na mão, sem o peso do ferro,
pobre de inteligência, estéril estátua de marfim, descarta
os abjetos sinais de enfeites indecorosos e afasta para longe
150 os tristes penhores e feroz se atira para a própria ruina.
Uma arma de arremesso, dentre as muitas que espalhara em vão,
do pó do campo adota para usos perversos:
escolhe do chão um madeiro roliço e, com a ponta voltada para si,
se trespassa e atravessa o pulmão num golpe violento.
155 Assistindo de cima, diz a Paciência: “Vencemos,
exultando o Vício com a força usual, sem distinção alguma
de sangue e de vida; nossa lei tem esse tipo de guerra:
extinguir, suportando, os flagelos e todo o exército
dos males e as forças enfurecidas.
160 A própria loucura é inimiga de si mesma e enfurecendo-se
perece e a Ira rubra morre por suas armas.”
Isso feito, divide ao meio impunemente as coortes,
acompanhada por um eminente varão; de fato o Jó próximo
aderira à mestra invicta no meio de duras guerras,
165 ainda com fisionomia severa e ofegante com muitas mortes,
mas já saradas as feridas, sorrindo na fisionomia fechada

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perque cicatricum numerum sudata recensens


millia pugnarum, sua praemia, dedecus hostis.
illum diua iubet tandem requiescere ab omni
170 armorum strepitu, captis et perdita quaeque
multiplicare opibus, nec iam peritura referre.
ipsa globos legionum et concurrentia rumpit
agmina, uulniferos gradiens intacta per imbres.
omnibus una comes uirtutibus adsociatur,
175 auxiliumque suum fortis Patientia miscet.
nulla anceps luctamen init uirtute sine ista
uirtus, nam uidua est quam non Patientia firmat.
forte per effusas inflata Superbia turmas
effreni uolitabat equo, quem pelle leonis
180 texerat et ualidos uillis onerauerat armos,
quo se fulta iubis iactantius illa ferinis
inferret tumido despectans agmina fastu.
turritum tortis caput adcumularat in altum
crinibus, extructos augeret ut addita cirros
185 congeries celsumque apicem frons ardua ferret.
carbasea ex umeris summo collecta coibat
palla sinu teretem nectens a pectore nodum.
a ceruice fluens tenui uelamine limbus
concipit infestas textis turgentibus auras.
190 nec minus instabili sonipes feritate superbit,
inpatiens madidis frenarier ora lupatis.
huc illuc frendens obuertit terga, negata
libertate fugae, pressisque tumescit habenis.
hoc sese ostentans habitu uentosa uirago
195 inter utramque aciem supereminet et phaleratum
circumflectit equum, uultuque et uoce minatur
aduersum spectans cuneum, quem milite raro
et paupertinis ad bella coegerat armis
Mens Humilis, regina quidem, sed egens alieni
200 auxilii proprio nec sat confisa paratu.
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e pelo número de cicatrizes enumerando as milhares de lutas


suadas, seus prêmios e desonra do inimigo.
A diva afinal ordena que ele descanse de qualquer
170 estrépito das armas e multiplique todo bem perdido
com os bens capturados, dizendo que já não os perderá.
Ela mesma confunde os agrupamentos das legiões e as chegantes
linhas de batalha, caminhando intacta por entre chuva mortífera.
Singular companheira associa-se a todas as virtudes
175 e a poderosa Paciência aporta seu auxílio.
Virtude alguma inicia um ataque duvidoso sem esta virtude,
pois torna-se viúva aquela à que a Paciência não der firmeza.
Casualmente, a inchada Soberba perambulava por entre numerosas
tropas num cavalo sem freios, que tecera com pele de leão
180 e cujos fortes flancos havia coberto com pelos,
pelo qual ela, com mais jactância, apoiada nas crinas selvagens,
apresentaria elevada vaidade sob as vistas do exército.
Como uma torre, acumulara no alto da cabeça crinas entrelaçadas,
erguendo o feito, para que a alta fronte atingisse o pico elevado
185 com o acréscimo de um monte de caracóis anelados.
Vestia um amplo vestido de linho, preso no côncavo do ombro,
ligando um delicado enlace a partir do peito;
da nuca deslizava um debrum de leve cobertura,
produzindo cintilações perigosas nos tecidos inflados de ar.
190 Com igual ferocidade instável se eleva o rumor das patas do cavalo,
impaciente por ter a boca travada pelos freios molhados.
Mordendo os freios, revira o traseiro para todo lado, sendo-lhe
negada a liberdade de fuga, distende as rédeas apertadas.
Com essa indumentária se mostra a aérea virago
195 e se destaca entre as duas linhas de batalha, faz o cavalo
enfeitado correr ao redor e ameaça com o semblante e a voz,
olhando a inimiga formação em cunha, a que a Mente Humilde,
rainha sem dúvida, mas carente de auxílio externo
e não suficientemente confiada no próprio aparelhamento,
200 forçara para a guerra com poucos soldados e armas reduzidas.
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Spem sibi collegam coniunxerat, edita cuius


et suspensa ab humo est opulentia diuite regno.
ergo Humilem postquam male sana Superbia Mentem
uilibus instructam nullo ostentamine telis
205 aspicit, in uocem dictis se effundit amaris:
"non pudet, o miseri, plebeio milite claros
adtemptare duces ferroque lacessere gentem
insignem titulis, ueteres cui bellica uirtus
diuitias peperit, laetos et gramine colles
210 imperio calcare dedit? nunc aduena nudus
nititur antiquos, si fas est, pellere reges!
en qui nostra suis in praedam cedere dextris
sceptra uolunt! en qui nostras sulcare nouales
aruaque capta manu popularier hospite aratro
215 contendunt, duros et pellere Marte colonos!
nempe, o ridiculum uulgus, natalibus horis
totum hominem et calidos a matre amplectimur artus,
uimque potestatum per membra recentis alumni
spargimus, et rudibus dominamur in ossibus omnes.
220 quis locus in nostra tunc uobis sede dabatur,
congenitis cum regna simul dicionibus aequo
robore crescebant? nati iam luce sub una
et domus et domini paribus adoleuimus annis,
ex quo plasma nouum de consaepto paradisi
225 limite progrediens amplum transfugit in orbem,
pellitosque habitus sumpsit uenerabilis Adam,
nudus adhuc, ni nostra foret praecepta secutus.
quisnam iste ignotis hostis nunc surgit ab oris
inportunus, iners, infelix, degener, amens,
230 qui sibi tam serum ius uindicat, hactenus exul?
nimirum uacuae credentur friuola famae,
quae miseros optare iubet quandoque futuri
spem fortasse boni, lenta ut solacia mollem

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
61

Aliara a si a esperança como sócia, dona da abundância


em reino rico, quando respeitada e erguida do chão.
Portanto, depois que a insana Soberba viu a Mente Humilde
dotada de armas depreciadas e sem nenhum aparato,
205 derramou-se verbalmente com palavras amargas:
“Não é vergonhoso, ó infelizes, para o soldado plebeu aderir
a comandantes famosos e provocar com armas um povo
insigne pelos títulos, antigos aos quais a capacidade bélica
gerou riquezas e permitiu pisar as férteis colinas de pasto
210 com o poder? Agora o peregrino despido
tenta rechaçar os antigos reis, se for de justiça!
Eis que eles querem que nossos cetros passem como presa
para as mãos deles. Eis que lutam por sulcar nossos campos
e à mão devastar as searas com arado alheio,
215 e desalojar por Marte os calosos colonos!
Sem dúvida, ó povo jocoso, nas horas natais
abraçamos o homem todo e os membros aquecidos pela mãe,
espalhamos a força dos valores pelos membros do novo
membro e reinamos sobre todos os de coração rude.
220 Que lugar vos era dado então em nossa morada,
quando os domínios cresciam também com a mesma força
para as autoridades autóctones? Os já nascidos sob uma luz,
casa e donos, crescemos durante iguais anos,
donde uma criatura nova, abandonando os limites
225 cercados do paraíso, espalhou-se pelo mundo vasto,
o respeitável Adão, ainda nu, assumiu vestes de peles,
caso não tivesse seguido nossos mandamentos.
Que inimigo é esse que agora surge de regiões ignoradas,
intratável, tímido, improdutivo, degenerado e demente,
230 que reivindica para si um direito tardio, agora exilado?
Sem dúvida supõem-se as frivolidades da fama inócua,
que manda os infelizes escolherem um dia a esperança
de um possível bem futuro, para que breves alívios afaguem

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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desidiam pigro rerum meditamine palpent.


235 quidni illos spes palpet iners, quos puluere in isto
tirones Bellona truci non excitat aere,
inbellesque animos uirtus tepefacta resoluit?
anne Pudicitiae gelidum iecur utile bello est?
an tenerum Pietatis opus sudatur in armis?
240 quam pudet, o Mauors et uirtus conscia, talem
contra stare aciem ferroque lacessere nugas,
et cum uirgineis dextram conferre choreis,
Iustitia est ubi semper egens et pauper Honestas,
arida Sobrietas, albo Ieiunia uultu,
245 sanguine uix tenui Pudor interfusus, aperta
Simplicitas et ad omne patens sine tegmine uulnus,
et prostrata in humum nec libera iudice sese
Mens Humilis, quam degenerem trepidatio prodit!
faxo ego, sub pedibus stipularum more teratur
250 inualida ista manus; neque enim perfringere duris
dignamur gladiis, algenti et sanguine ferrum
inbuere fragilique uiros foedare triumpho."
talia uociferans rapidum calcaribus urget
cornipedem laxisque uolat temeraria frenis,
255 hostem humilem cupiens inpulsu umbonis equini
sternere deiectamque supercalcare ruinam.
sed cadit in foueam praeceps, quam callida forte
Fraus interciso subfoderat aequore furtim,
Fraus detestandis Vitiorum e pestibus una,
260 fallendi uersuta opifex, quae praescia belli
planitiem scrobibus uitiauerat insidiosis
hostili de parte latens, ut fossa ruentes
exciperet cuneos atque agmina mersa uoraret;
ac ne fallacem puteum deprendere posset
265 cauta acies, uirgis adopertas texerat oras,
et superinposito simularat caespite campum.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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a doce inércia com a meditação preguiçosa das coisas.


235 Por que a esperança estéril não os acaricia, a cujos recrutas
neste pó Belona não arrasta com sua aparência selvagem
e a virtude avivada libera os espíritos não guerreiros?
Acaso o fígado gelado da Pudicícia é útil para a guerra?
Porventura a delicada obra da Piedade se cansa com armas?
240 O quanto causa pejo, ó Marte e força cúmplice, posicionar-se
contra tal linha de batalha e provocar nulidades com ferro;
e juntar a direita com as virginais danças em coro,
a Justiça está onde estão a Honestidade pobre e carente,
a seca Sobriedade, a Abstinência de rosto pálido,
245 o Pudor mal tingido de sangue ralo, a transparente
Simplicidade e aberta a todas as chagas sem ataduras;
e a Mente Humilde, prostrada contra o chão nem libertada
por um juiz, a qual a desordem torna desonrada!
Eu farei que esta tropa sem força seja triturada sob os pés
250 como a palha; pois não nos rebaixamos a moê-la
com as rígidas espadas, nem embeber as armas
em sangue frio e os homens sejam manchados por frágil vitória.”
Berrando tais coisas, açula o veloz cornípede com as esporas
e, temerária, voa com os freios soltos, pretendendo
255 arrasar o reduzido inimigo com o impulso da massa cavalar
e pisotear os destroços espalhados pelo chão.
Mas cai, de cabeça, no fosso que a solerte Fraude por acaso
cavara furtivo na planície intermediante,
a Fraude, por odiar em conjunto os prejuízos dos vícios,
260 exímia executora de enganos que, presciente da guerra,
minara a planície com fossos perigosos,
ocultos do lado do inimigo, de modo que caindo neles
ficasse à mercê da formação em cunha e trucidasse as alas caídas;
e, para que a tropa sagaz não pudesse perceber o poço traiçoeiro,
265 havia entretecido com ramos as bordas ocultas
disfarçara o terreno com terra relvada superposta.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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at regina humilis, quamuis ignara, manebat


ulteriore loco nec adhuc ad Fraudis opertum
uenerat aut foueae calcarat furta malignae.
270 hunc eques illa dolum, dum fertur praepete cursu,
incidit, et caecum subito patefecit hiatum.
prona ruentis equi ceruice inuoluitur, ac sub
pectoris inpressu fracta inter crura rotatur.
at Virtus placidi moderaminis, ut leuitatem
275 prospicit obtritam monstri sub morte iacentis,
intendit gressum mediocriter, os quoque parce
erigit et comi moderatur gaudia uultu.
cunctanti Spes fida comes succurrit et offert
ultorem gladium laudisque inspirat amorem.
280 illa cruentatam correptis crinibus hostem
protrahit et faciem laeua reuocante supinat,
tunc caput orantis flexa ceruice resectum
eripit ac madido suspendit colla capillo.
extinctum Vitium sancto Spes increpat ore:
285 "desine grande loqui; frangit deus omne superbum,
magna cadunt, inflata crepant, tumefacta premuntur.
disce supercilium deponere, disce cauere
ante pedes foueam, quisquis sublime minaris.
peruulgata uiget nostri sententia Christi
290 scandere celsa humiles et ad ima redire feroces.
uidimus horrendum membris animisque Goliam
inualida cecidisse manu: puerilis in illum
dextera fundali torsit stridore lapillum
traiectamque cauo penetrauit uulnere frontem.
295 ille minax, rigidus, iactans, truculentus, amarus,
dum tumet indomitum, dum formidabile feruet,
dum sese ostentat, clipeo dum territat auras,
expertus pueri quid possint ludicra parui
subcubuit teneris bellator turbidus annis.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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Todavia, a rainha humilde, embora desconhecedora, permanecia


no lado oposto e ainda não chegara ao lugar coberto da Fraude
ou pisara nas artimanhas do fosso ameaçador.
270 Aquela e o cavalo, pois já em corrida frenética,
caíram na armadilha e de repente revelou o abismo cego.
É envolvida pelo pescoço do cavalo ao cair e, sob pressão
do peito, é sufocada entre os ossos quebrados.
Mas a Virtude de tranquila moderação, assim que vê a frivolidade
275 esmagada sob a morte do monstro caído,
adianta um passo com lentidão, levanta também um pouco o rosto
e modera a satisfação através da fisionomia afável.
A Esperança, companheira fiel socorre a hesitante
e oferece a satisfação vingadora e inspira o amor do louvor.
280 Ela arrasta a inimiga ensanguentada pelos rijos cabelos
e com a esquerda retraída levanta a face;
então arranca a cabeça cortada da pedinte na nuca dobrada
e a levanta do pescoço pelos cabelos molhados.
A Esperança, com boca sagrada recrimina o Vício derrotado:
285 “Deixa de falar grandezas; Deus quebra todo soberbo,
o que é grande despenca, o inchado estoura, o intumescido se espreme.
Aprende a baixar o sobrolho, aprende a recear a armadilha
diante dos pés, sejas quem for que ameaças das alturas.
Vigora a bem conhecida declaração de nosso Cristo
290 que os humildes se alçam às alturas e os altivos voltam ao fundo.
Vimos o Golias, terrível pelos membros e pelas intenções,
tombar por uma frágil mão: a direita do menino girou
aquela pedrinha com zumbido de funda
e penetrou na fronte atravessada num ferimento profundo.
295 Aquele, ameaçador, endurecido, vaidoso, truculento e amargo,
enquanto indômito se infla, enquanto medonho se agita,
enquanto se mostra, enquanto amedronta os ares com o escudo,
o guerreiro confuso, conhecedor do que poderiam as brincadeiras
de um menininho de poucos anos, acabou por sucumbir.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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300 me tunc ille puer uirtutis pube secutus


florentes animos sursum in mea regna tetendit,
seruatur quia certa mihi domus omnipotentis
sub pedibus domini, meque ad sublime uocantem
uictores caesa culparum labe capessunt."
305 dixit, et auratis praestringens aëra pinnis
in caelum se uirgo rapit. mirantur euntem
Virtutes tolluntque animos in uota uolentes
ire simul, ni bella duces terrena retardent.
confligunt Vitiis seque ad sua praemia seruant.
310 uenerat occiduis mundi de finibus hostis
Luxuria, extinctae iamdudum prodiga famae,
delibuta comas, oculis uaga, languida uoce,
perdita deliciis, uitae cui causa uoluptas,
elumbem mollire animum, petulanter amoenas
315 haurire inlecebras et fractos soluere sensus.
ac tunc peruigilem ructabat marcida cenam,
sub lucem quia forte iacens ad fercula raucos
audierat lituos, atque inde tepentia linquens
pocula lapsanti per uina et balsama gressu
320 ebria calcatis ad bellum floribus ibat.
non tamen illa pedes, sed curru inuecta uenusto
saucia mirantum capiebat corda uirorum.
o noua pugnandi species! non ales harundo
neruum pulsa fugit, nec stridula lancea torto
325 emicat amento, frameam nec dextra minatur;
sed uiolas lasciua iacit foliisque rosarum
dimicat et calathos inimica per agmina fundit.
inde eblanditis Virtutibus halitus inlex
inspirat tenerum labefacta per ossa uenenum,
330 et male dulcis odor domat ora et pectora et arma
ferratosque toros obliso robore mulcet.
deiciunt animos ceu uicti et spicula ponunt,

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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300 Então aquele menino me seguiu, adulto em virtude,


rumou para meu reino, para o alto, com vivas disposições,
é ele preservado, porque tenho morada certa sob os pés
do Senhor onipotente e, invocando-me para o sublime,
os vencedores para lá vão, eliminada a mancha das culpas.”
305 Assim falou; e, tocando de leve os ares com as penas douradas,
a virgem se arrebatou para o céu. As Virtudes admiram a que parte
e reprimem o ímpeto de irem também, mostrando desejos,
caso as guerras terrenas não retivessem as dirigentes.
Combatem contra os Vícios e se preservam para suas recompensas.
310 Viera dos limites ocidentais do mundo a inimiga
Luxúria, há muito fértil em renome já desaparecido,
com cabeleira untada, olhos vagos, voz lânguida,
desgarrada pelas delícias, para quem o motivo da vida é o prazer,
quer amolecer o espírito fraco, ousadamente usufruir dos atrativos
315 prazerosos e destruir os sentidos já enfraquecidos.
Daí, porém, derrubada digeria a ceia sem dormir,
porque deitada talvez tenha ouvido com pouca luz para as iguarias
as surdas trombetas, e depois abandoando as tépidas bebidas
com passos vacilantes pelos vinhos e pelo bálsamo
320 ia ébria para a guerra, pisoteando flores.
Contudo, não ia a pé, mas transportada por um carro elegante,
prendia os corações feridos dos homens admiradores.
Ó novo tipo de combate! Uma alada flecha tangida
não recusa o arco, nem a ruidosa lança sai brilhando
325 com correia retorcida, nem a direita faz promessa à frâmea;
mas lasciva atira violetas e luta com pétalas de rosa
e as espalha em cestinhos pelas linhas inimigas.
Depois inspira num sopro maligno às Virtudes elogiadas
um veneno sutil através dos ossos já enfraquecidos,
330 e um perfume sutilmente doce doma a face, o peito e armas
e suaviza os leitos de ferro com peças torneadas de carvalho.
Como se vencidos, derrubam os espíritos e põem pontas agudas,

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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turpiter, heu, dextris languentibus obstupefacti


dum currum uaria gemmarum luce micantem
335 mirantur, dum bratteolis crepitantia lora
et solido ex auro pretiosi ponderis axem
defixis inhiant obtutibus et radiorum
argento albentem seriem, quam summa rotarum
flexura electri pallentis continet orbe.
340 et iam cuncta acies in deditionis amorem
sponte sua uersis transibat perfida signis
Luxuriae seruire uolens dominaeque fluentis
iura pati et laxa ganearum lege teneri.
ingemuit tam triste nefas fortissima Virtus
345 Sobrietas, dextro socios decedere cornu
inuictamque manum quondam sine caede perire.
uexillum sublime crucis, quod in agmine primo
dux bona praetulerat, defixa cuspide sistit,
instauratque leuem dictis mordacibus alam
350 exstimulans animos nunc probris, nunc prece mixta:
"quis furor insanas agitat caligine mentes?
quo ruitis? cui colla datis? quae uincula tandem,
pro pudor, armigeris amor est perferre lacertis,
lilia luteolis interlucentia sertis
355 et ferrugineo uernantes flore coronas?
his placet adsuetas bello iam tradere palmas
nexibus, his rigidas nodis innectier ulnas,
ut mitra caesariem cohibens aurata uirilem
conbibat infusum croceo religamine nardum,
360 post inscripta oleo frontis signacula, per quae
unguentum regale datum est et chrisma perenne,
ut tener incessus uestigia syrmate uerrat
sericaque infractis fluitent ut pallia membris,
post inmortalem tunicam quam pollice docto
365 texuit alma Fides, dans inpenetrabile tegmen

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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torpemente, ai!, às débeis mãos direitas, enquanto estupefatos


admiram o carro refulgente com os diversos brilhos das gemas,
335 enquanto cobiçam, com olhar fixo, as rédeas estalantes
com lâminas de ouro, o eixo de ouro maciço de grande valor
e a série alvacenta de prata dos raios, que a curvatura externa
das rodas retém no círculo de electro amarelado.
340 E já todo o exército, na vontade da rendição,
espontaneamente passava pérfida sem as insígnias,
querendo servir à Luxúria, aceitar os direitos da dona movente
e ser dominado pela frouxa lei da orgia.
Lamentou tão triste desvio a vigorosa Virtude
345 da Sobriedade por perder os companheiros na ala esquerda
e o esquadrão, outrora invicto, perecer sem luta.
Ergueu o estandarte sublime da cruz, que a hábil comandante
carregara na linha de frente, mas sem a extremidade,
e, com palavras duras, estabelece uma rápida ala,
350 incitando os ânimos ora com censura ora com pedido:
“Que desvario perturba com trevas as mentes doidas?
Para onde estais indo? A quem ofereceis o pescoço? Afinal, que elos,
ah pudor!, existe amor em levar, nos braços armados,
lírios refulgentes em grinaldas amareladas
355 e coroas primaveris de flores cor de ferrugem?
A tais ligações agrada entregar à guerra as palmas usuais,
com esses laços conectar os braços firmes,
para que a mitra dourada, retendo a viril cabeleira,
beba também o nardo infuso pela faixa de vivo amarelo,
360 após inscritas com óleo as marcas da fronte, pelas quais
são dados o unguento real e a unção perene,
de modo que os traços do leve andar se varram pela longa veste
e os mantos de seda esvoacem pelos membros debilitados;
e depois a túnica imortal, que a benigna Fé teceu com dedos ágeis,
365 dando proteção impenetrável aos peitos lavados, e havia imposto

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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pectoribus lotis, dederat quibus ipsa renasci,


inde ad nocturnas epulas, ubi cantharus ingens
despuit effusi spumantia damna Falerni
in mensam cyathis stillantibus, uda ubi multo
370 fulcra mero ueterique toreumata rore rigantur?
excidit ergo animis eremi sitis, excidit ille
fons patribus de rupe datus, quem mystica uirga
elicuit scissi salientem uertice saxi?
angelicusne cibus prima in tentoria uestris
375 fluxit auis, quem nunc sero felicior aeuo
uespertinus edit populus de corpore Christi?
his uos inbutos dapibus iam crapula turpis
Luxuriae ad madidum rapit inportuna lupanar,
quosque uiros non Ira fremens, non idola bello
380 cedere conpulerant, saltatrix ebria flexit!
state, precor, uestri memores, memores quoque Christi
quae sit uestra tribus, quae gloria, quis deus et rex,
quis dominus meminisse decet. uos nobile Iudae
germen ad usque dei genetricem, qua deus ipse
385 esset homo, procerum uenistis sanguine longo.
excitet egregias mentes celeberrima Dauid
gloria continuis bellorum exercita curis,
excitet et Samuel, spolium qui diuite ab hoste
adtrectare uetat nec uictum uiuere regem
390 incircumcisum patitur, ne praeda superstes
uictorem placidum recidiua in proelia poscat.
parcere iam capto crimen putat ille tyranno,
at uobis contra uinci et subcumbere uotum est.
paeniteat, per si qua mouet reuerentia summi
395 numinis, hoc tam dulce malum uoluisse nefanda
proditione sequi; si paenitet, haud nocet error.
paenituit Ionatham ieiunia sobria dulci
conuiolasse fauo sceptri mellisque sapore

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
71

àqueles que haviam renascido por ela mesma;


em seguida, para o banquete noturno, em que um enorme cântaro
rejeita cuspindo os danos espumantes do falerno derramado
na mesa com taças reguladas, molhada, cujas bases são regadas
370 com muito vinho puro e os vasos de ouro com orvalho velho?
Portanto, desaparece dos espíritos a sede do deserto, some aquela
fonte da rocha dada aos pais, que o místico bastão fez brotar
jorrando do alto da rocha fendida?
Porventura o alimento angélico fluiu para as primeiras tendas
375 de vossos avôs, que agora, em época tardia, com mais vantagem
o povo do lado ocidental come do corpo de Cristo?
A vós, cheios com essas iguarias, a torpe bebedeira da Luxúria
cruel arrasta ao perfumado lupanar;
e a esses homens nem a Ira violenta nem os ídolos impeliram
380 a ceder à guerra, todavia uma bailarina ébria os dobrou!
Parei, por favor, lembrando-vos de vós mesmos e também de Cristo,
de qual é a vossa tribo, qual é a glória, quem é Deus e rei;
convém ter sempre lembrado quem é o senhor.
E vós, nobre estirpe de Judá, proviestes de sangue antigo
385 até a mãe de Deus, da qual o próprio Deus se tornou homem.
Incentive as melhores mentes a celebérrima glória de Davi,
aumentada com as preocupações das guerras
e Samuel, que veta apropriar-se do botim do inimigo rico
nem permite que um rei vencido continue incircunciso,
390 para que o dominado sobrevivente não venha a provocar
o vencedor em paz para novas guerras.
Ele considera crime poupar o tirano já prisioneiro,
mas para vós o desejo expresso é ser vencido e morrer.
Arrependa-se, caso for levado por alguma reverência da suma
395 divindade, de ter querido seguir esse tão doce mal com uma
terrível traição; caso se arrependa, o erro não chega a prejudicar.
Pesou a Jônatas ter violado o jejum
imposto com o doce favo

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72

heu male gustato, regni dum blanda uoluptas


400 oblectat iuuenem iurataque sacra resoluit.
sed quis paenituit, nec sors lacrimabilis illa est,
nec tinguit patrias sententia saeua secures.
en ego Sobrietas, si conspirare paratis,
pando uiam cunctis Virtutibus, ut malesuada
405 Luxuries, multo stipata satellite, poenas
cum legione sua Christo sub iudice pendat."
sic effata crucem domini feruentibus offert
obuia quadriiugis, lignum uenerabile in ipsos
intentans frenos. quod ut expauere feroces
410 cornibus obpansis et summa fronte coruscum,
uertunt praecipitem caeca formidine fusi
per praerupta fugam. fertur resupina reductis
nequiquam loris auriga comamque madentem
puluere foedatur. tunc et uertigo rotarum
415 inplicat excussam dominam; nam prona sub axem
labitur et lacero tardat sufflamine currum.
addit Sobrietas uulnus letale iacenti,
coniciens silicem rupis de parte molarem.
hunc uexilliferae quoniam fors obtulit ictum
420 spicula nulla manu sed belli insigne gerenti,
casus agit saxum, medii spiramen ut oris
frangeret, et recauo misceret labra palato.
dentibus introrsum resolutis lingua resectam
dilaniata gulam frustis cum sanguinis inplet.
425 insolitis dapibus crudescit guttur, et ossa
conliquefacta uorans reuomit quas hauserat offas.
"ebibe iam proprium post pocula multa cruorem,"
uirgo ait increpitans, "sint haec tibi fercula tandem
tristia praeteriti nimiis pro dulcibus aeui.
430 lasciuas uitae inlecebras gustatus amarae
mortis et horrifico sapor ultimus asperat haustu."

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
73

do rei; e mal saboreado o gosto do mel, enquanto o suave prazer


400 do poder encanta o jovem e viola os juramentos sagrados.
Mas ele se arrependeu, aquela sorte não é lacrimável
nem manchou as armas da pátria com palavras cruéis.
Eis que eu, a Sobriedade, aos preparados para concordar
abro o caminho para todas as Virtudes, para que a má conselheira
405 Luxúria, rodeada de muito agregado, pague suas penas
com sua legião sob Cristo Juiz.”
Tendo assim falado, apresenta a cruz do Senhor frente
às furiosas quadrigas, dirigindo o venerável lenho
contra os próprios cavaleiros. Esse rebrilho para espantar
410 os ferozes com os penachos flutuantes e fronte alçada, que
iniciam uma fuga precipitada, tomados de medo cego,
através dos escarpados. Conta-se que a condutora caída,
as rédeas em vão puxadas,
suja com o pó a cabeleira perfumada.
415 Então também o turbilhão das rodas atinge a dona arremessada,
pois é lançada à frente sob o eixo e retém o carro com o calço rasgado.
A Sobriedade acresce à caída uma ferida mortal,
atirando do lado do rochedo uma pedra de moinho.
Depois que o acaso conferiu à porta-bandeira esse golpe,
420 dardos por mão alguma mas adorno de gestor da guerra,
a fatalidade ativa a pedra, de modo a quebrar o respiradouro
do meio do rosto e juntar os lábios ao palato furado.
Com os dentes virados para dentro, a língua retalhada
enche a garganta com pelotas de sangue.
425 A garganta derrama sangue pelas insólitas iguarias e, engolindo
ossos fragmentados, vomita os alimentos antes ingeridos.
“Bebe agora, depois de muitos copos, o próprio sangue”
- diz a virgem censurante – “estes te sejam afinal os pratos
insossos pelos doces demais de uma época passada.
430 O saboreio de amarga morte e o último gosto por um trago horrível
tornem desagradáveis os lascivos encantos da vida.”

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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caede ducis dispersa fugit trepidante pauore


nugatrix acies. Iocus et Petulantia primi
cymbala proiciunt; bellum nam talibus armis
435 ludebant resono meditantes uulnera sistro.
dat tergum fugitiuus Amor, lita tela ueneno
et lapsum ex umeris arcum pharetramque cadentem
pallidus ipse metu sua post uestigia linquit.
Pompa, ostentatrix uani splendoris, inani
440 exuitur nudata peplo; discissa trahuntur
serta Venustatis collique ac uerticis aurum
soluitur, et gemmas Discordia dissona turbat.
non piget adtritis pedibus per acuta frutecta
ire Voluptatem, quoniam uis maior acerbam
445 conpellit tolerare fugam; formido pericli
praedurat teneras iter ad cruciabile plantas.
qua se cumque fugax trepidis fert cursibus agmen,
damna iacent, crinalis acus, redimicula, uittae,
fibula, flammeolum, strophium, diadema, monile.
450 his se Sobrietas et totus Sobrietatis
abstinet exuuiis miles damnataque castis
scandala proculcat pedibus, nec fronte seueros
coniuente oculos praedarum ad gaudia flectit.
fertur Auaritia gremio praecincta capaci,
455 quidquid Luxus edax pretiosum liquerat, unca
corripuisse manu, pulchra in ludibria uasto
ore inhians aurique legens fragmenta caduci
inter harenarum cumulos. nec sufficit amplos
inpleuisse sinus; iuuat infercire cruminis
460 turpe lucrum et grauidos furtis distendere fiscos,
quos laeua celante tegit laterisque sinistri
uelat opermento; uelox nam dextra rapinas
abradit spoliisque ungues exercet aënos.
Cura, Famis, Metus, Anxietas, Periuria, Pallor,

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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dispersa pela morte do chefe, foge com agitado pavor


o desordenado exército. Por primeiro, o Gracejo e a petulância
largamos címbalos, pois jogavam a guerra com tais armas
435 dedicando-se aos ferimentos ao som do sistro.
O fugitivo Amor dá as costas, pálido pelo próprio medo,
abandona, deixando-os após seus passos, os dardos
untados de veneno, o arco caído dos ombros e a aljava deslizante.
A Pompa, ostentadora de vão esplendor, despe-se, desnudada,
440 do rico e inútil manto; desfeitas arrastam-se as grinaldas
da Elegância e desprende-se o ouro do pescoço e da cabeça
e a Discórdia contrariante agita joias.
O Prazer não se envergonha de ir com os pés arranhados através
de espinheiros pontudos, porque uma força maior obriga
445 a suportar a fuga acerba; o medo do perigo endurece as delicadas
plantas dos pés para a caminhada dolorosa.
Por onde e em qualquer situação que a tropa fugitiva dirija os
apressados passos, restam os prejuízos: agulhas de cabelo, faixas,
fitas, fivelas, véus, corpinhos, diademas e colares.
450 Desses despojos a Sobriedade e todo soldado da Sobriedade
se abstêm e calcam com os pés limpos esses malditos atrativos,
nem volta para o prazer do botim
os duros olhos na fronte cerrada.
Diz-se que a Avareza, cingida no amplo ventre, com mão adunca,
455 agarrara tudo quanto o Luxo voraz deixara de precioso, buscando
com a grande boca aberta ledas trapaças
e juntando grãos de ouro velho
entre os montinhos de areia.
Não bastou ter enchido as grandes bolsas;
460 gosta de acumular o iníquo lucro do crime e ampliar com furtos
os cofres cheios, que ela encobre com a esquerda e tapa os lados
com esquisito tapume; de fato, a rápida direita agarra os objetos
e com os furtos exercita as unhas rígidas.
Preocupação, Fome, Medo, Ansiedade, Perjúrio, Palidez,

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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465 Corruptela, Dolus, Commenta, Insomnia, Sordes,


Eumenides uariae monstri comitatus aguntur.
nec minus interea rabidorum more luporum
Crimina persultant toto grassantia campo,
matris Auaritiae nigro de lacte creata.
470 si fratris galeam fuluis radiare ceraunis
germanus uidit conmilito, non timet ensem
exerere atque caput socio mucrone ferire,
de consanguineo rapturus uertice gemmas.
filius extinctum belli sub sorte cadauer
475 aspexit si forte patris, fulgentia bullis
cingula et exuuias gaudet rapuisse cruentas:
cognatam Ciuilis agit Discordia praedam,
nec parcit propriis Amor insatiatus Habendi
pigneribus spoliatque suos Famis inpia natos.
480 talia per populos edebat funera uictrix
orbis Auaritia, sternens centena uirorum
millia uulneribus uariis: hunc lumine adempto
effossisque oculis uelut in caligine noctis
caecum errare sinit perque offensacula multa
485 ire, nec oppositum baculo temptare periclum.
porro alium capit intuitu fallitque uidentem,
insigne ostentans aliquid, quod dum petit ille,
excipitur telo incautus cordisque sub ipso
saucius occulto ferrum suspirat adactum.
490 multos praecipitans in aperta incendia cogit
nec patitur uitare focos, quibus aestuat aurum,
quod petit arsurus pariter speculator auarus.
omne hominum rapit illa genus, mortalia cuncta
occupat interitu, neque est uiolentius ullum
495 terrarum Vitium, quod tantis cladibus aeuum
mundani inuoluat populi damnetque gehennae.
quin ipsos temptare manu, si credere dignum est,

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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465 Corrupção, Dolo, Ficções, Insônia, Imundície e


as Benevolentes se portam como o séquito do monstro multiforme.
Nesse ínterim, não menos que segundo o costume de lobos furiosos,
os Crimes pululam, grassando pelo campo inteiro,
criados com o negro leite da mãe Avareza.
470 Se o irmão vê o capacete do irmão, companheiro de armas,
brilhar como gemas de trovão, não receia usar a espada
e ferir a cabeça do companheiro com o dardo,
para roubar depois as gemas do consanguíneo mais próximo.
Se o filho acaso ver o cadáver frio do pai
475 em vista da guerra, alegra-se por pegar
os cintos de botões brilhantes e os despojos cruentos:
a Discórdia Civil faz de um parente sua presa,
nem o Amor insaciado de Ter poupa as próprias garantias
e a impiedosa Fome deserda seus próprios filhos.
480 Tais desgraças espalhava por entre os povos a Avareza,
dona do universo, derrubando centenas de milhares de homens
com diversos golpes: a este, retirada a luz e com olhos vasados,
cego como na escuridão da noite,
permite andar errante e ir
485 de encontro a muitos óbices sem perceber o perigo com uma bengala.
Adiante, percebe um outro por intuição e engana aquele que vê,
mostrando algo valioso; enquanto aquele o pede,
o incauto é recebido com uma arma e ferido, no secreto
do coração, opta pelo ferro fincado.
490 E não consente em evitar as chamas,
pelas quais anseia o ouro,
pelo qual o avarento especulador também deseja vir a arder.
Avareza arrasta todo tipo dos homens, domina pela ruina
todos os mortais e não existe nenhum Vício mais violento
495 na terra, que envolva com tamanhas desgraças o tempo
dos povos do mundo e os condene à geena.
Ainda mais, ousou tentar por atos, se isso for digno de fé,

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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ausa sacerdotes domini, qui proelia forte


ductores primam ante aciem pro laude gerebant
500 uirtutum, magnoque inplebant classica flatu.
et fors innocuo tinxisset sanguine ferrum,
ni Ratio armipotens, gentis Leuitidis una
semper fida comes, clipeum obiectasset et atrae
hostis ab incursu claros texisset alumnos.
505 stant tuti Rationis ope, stant turbine ab omni
inmunes fortesque animi; uix in cute summa
praestringens paucos tenui de uulnere laedit
cuspis Auaritiae. stupuit Luis inproba castis
heroum iugulis longe sua tela repelli;
510 ingemit et dictis ardens furialibus infit:
"uincimur, heu, segnes nec nostra potentia perfert
uim solitam, languet uiolentia saeua nocendi,
sueuerat inuictis quae uiribus omnia ubique
rumpere corda hominum; nec enim tam ferrea quemquam
515 durauit natura uirum, cuius rigor aera
sperneret aut nostro foret inpenetrabilis auro.
ingenium omne neci dedimus; tenera, aspera, dura,
docta, indocta simul, bruta et sapientia, nec non
casta, incesta meae patuerunt pectora dextrae.
520 sola igitur rapui quidquid Styx abdit auaris
gurgitibus. nobis ditissima Tartara debent
quos retinent populos. quod uoluunt saecula nostrum est,
quod miscet mundus, uesana negotia, nostrum.
qui fit praeualidas quod pollens gloria uires
525 deserit et cassos ludit fortuna lacertos?
sordet Christicolis rutilantis fulua monetae
effigies, sordent argenti emblemata, et omnis
thensaurus nigrante oculis uilescit honore.
quid sibi docta uolunt fastidia? nonne triumphum
530 egimus e Scarioth, magnus qui discipulorum

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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os próprios sacerdotes de Deus, que talvez chefiassem


à frente da vanguarda os combates, agiam em louvor
500 das virtudes e tocavam as trombetas com grande entusiasmo.
E se o acaso tivesse tingido o ferro com sangue,
nem a Razão, poderosa pelas armas, única sempre sócia
da tribo Levítica, tivesse anteposto o escudo e protegido
seus ilustres alunos contra o ataque das tétrica inimiga.
505 Seguros ficam todos por obra da Razão, ficam inumes
de toda confusão e fortes de espírito; mal atingindo a flor
da pele, levemente fere a poucos o dardo da Avareza.
A Peste ímproba se admira de que seus dardos sejam afastados
para longe das gargantas dos heróis;
510 Lamenta e furiosa começa a dizer palavras enfurecidas:
“Pena! somos vencidas; nosso poder enfraquecido já não
revela a força costumeira, definha a cruel violência para prejudicar,
que se acostumara com forças invencidas a quebrar por toda parte
todos os corações dos homens; pois a natureza tão dura não fortaleceu
515 homem algum, cujo rigor desprezasse esse ambiente
ou fosse impenetrável ao nosso ouro.
Empregamos toda nossa capacidade na morte violenta;
minha direita abriu os corações tenros, ásperos, duros,
cultos e também incultos, rudes e sábios e ainda os castos e os incestuosos
520 Portanto, só eu roubei tudo aquilo que Estige conseguiu esconder
nos abismos avarentos. A nós devem os riquíssimos infernos
esses povos que eles conservam. O que os séculos querem é nosso,
o que o mundo confunde, os negócios loucos são nossos.
Quem torna muito vigorosas as forças que a poderosa glória
525 abandona e a fortuna que escarnece dos braços inúteis?
A efígie amarela da moeda brilhante emporcalha os cristãos,
são sujos os emblemas de prata e todo tesouro se torna vil
aos olhos por sua homenagem enegrecedora.
O que significam as arrogâncias cultas? Porventura não
530 triunfamos com o Escariotes, que foi grande entre os discípulos

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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et conuiua dei, dum fallit foedere mensae


haudquaquam ignarum dextramque parabside iungit,
incidit in nostrum flammante cupidine telum,
infamem mercatus agrum de sanguine amici
535 numinis, obliso luiturus iugera collo?
uiderat et Iericho propria inter funera quantum
posset nostra manus, cum uictor concidit Achar.
caedibus insignis murali et strage superbus
subcubuit capto uictis ex hostibus auro,
540 dum uetitis insigne legens anathema fauillis
maesta ruinarum spolia insatiabilis haurit.
non illum generosa tribus, non plebis auitae
iuuit Iuda parens, Christo quandoque propinquo
nobilis et tali felix patriarcha nepote.
545 quis placet exemplum generis, placeat quoque forma
exitii: sit poena eadem, quibus et genus unum est.
quid moror aut Iudae populares aut populares
sacricolae summi (summus nam fertur Aaron)
fallere fraude aliqua Martis congressibus inpar?
550 nil refert armis contingat palma dolisue."
dixerat et toruam faciem furialiaque arma
exuit inque habitum sese transformat honestum;
fit Virtus specie uultuque et ueste seuera
quam memorant Frugi, parce cui uiuere cordi est
555 et seruare suum; tamquam nil raptet auare,
artis adumbratae meruit ceu sedula laudem.
huius se specie mendax Bellona coaptat,
non ut auara lues, sed Virtus parca putetur;
nec non et tenero pietatis tegmine crines
560 obtegit anguinos, ut candida palla latentem
dissimulet rabiem diroque obtenta furori,
quod rapere et clepere est auideque abscondere parta,
natorum curam dulci sub nomine iactet.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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e os convivas de Deus, enquanto se esconde na reunião da mesa,


de nenhum modo desconhecedor põe a direita no prato,
cai em nossa armadilha por acesa cobiça,
negociando o ignominioso campo com o sangue da divindade
535 amiga, pagará a eira com o pescoço sufocado?
Havia visto também em Jericó, nos próprios funerais,
o quanto poderia nossa mão, quando o vencedor Acar tombou.
Conhecido por destruições e orgulhoso por derrubar muralhas,
sucumbiu ao ouro tirado dos inimigos vencidos,
540 enquanto insaciável esgota a triste presa das ruinas, colhendo
a conhecida maldição das cinzas dos mortos.
Não o socorrem a tribo nobre nem Judá, pai do povo ancestral,
pois que é nobre pela proximidade de Cristo
e patriarca fecundo devido a esse neto.
545 A quem agrada o original da raça, agrade também a forma
da queda: haja o mesmo castigo para os da mesma raça.
Por que hesito em enganar ou os familiares de Judá
ou os familiares do sumo sacrícola (pois o sumo se diz Aarão)
com alguma tapeação por igual às reuniões de Marte?
550 Sem relação com se a palma couber às armas ou ao dolo.”
Falou e despiu-se do torvo semblante e das armas sinistras
e se transforma com uma roupagem honesta;
torna-se severa a Virtude em aparência, face e vestes,
a quem os frugais lembram, poupa ao que tem viver no coração
555 e manter o que é seu; mas também nada tira de modo avarento,
operosa mereceu assim o elogio da arte fictícia.
Sob essa aparência se adapta a mentirosa Belona,
não para que seja julgada peste avara, mas sóbria Virtude;
também não esconde os cabelos de cobra com um tapume
560 de terna compaixão, para dissimular com uma branca mantilha
o ódio latente e por estar possuída de grande furor,
porque resolveu pilhar, roubar e esconder com avidez,
coloque sob um nome suave a preocupação com os filhos.

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talibus inludens male credula corda uirorum


565 fallit imaginibus, monstrumque ferale sequuntur
dum credunt Virtutis opus; capit inpia Erinys
consensu faciles manicisque tenacibus artat.
attonitis ducibus perturbatisque maniplis
nutabat Virtutum acies errore biformis
570 portenti, ignorans quid amicum credat in illo
quidue hostile notet: letum uersatile et anceps
lubricat incertos dubia sub imagine uisus,
cum subito in medium frendens Operatio campum
prosilit auxilio sociis, pugnamque capessit
575 militiae postrema gradu, sed sola duello
inpositura manum, ne quid iam triste supersit.
omne onus ex umeris reiecerat, omnibus ibat
nudata induuiis multo et se fasce leuarat,
olim diuitiis grauibusque oppressa talentis,
580 libera nunc miserando inopum, quos larga benigne
fouerat effundens patrium bene prodiga censum.
iam loculos ditata fidem spectabat inanes,
aeternam numerans redituro faenore summam.
horruit inuictae Virtutis fulmen et inpos
585 mentis Auaritia stupefactis sensibus haesit
certa mori: nam quae fraudis uia restet, ut ipsa
calcatrix mundi mundanis uicta fatiscat
inlecebris spretoque iterum sese inplicet auro?
inuadit trepidam Virtus fortissima duris
590 ulnarum nodis, obliso et gutture frangit
exsanguem siccamque gulam; conpressa ligantur
uincla lacertorum sub mentum et faucibus artis
extorquent animam, nullo quae uulnere rapta
palpitat atque aditu spiraminis intercepto
595 inclusam patitur uenarum carcere mortem.
illa reluctanti genibusque et calcibus instans

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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Iludindo com tais imagens, engana com maldade os corações


565 crédulos dos homens, e seguem o monstro bestial,
acreditando ser uma obra da Virtude; a ímpia Erínis prende
os fáceis de convencer e os acorrenta com resistentes grilhões.
Aos desorientados chefes e aos perturbados esquadrões
o exército das virtudes apontava com o erro do monstro biforme,
570 ignorando o que considerar nele como amigo e notar
os olhos desatentos sob aquela imagem imprecisa.
Então, de repente irrompe no meio do campo
a viva Operação com ajuda aos companheiros
e assume a luta na retaguarda
575 da milícia, mas sozinha imporia a mão no duelo,
a fim de que nada sobre daquilo que já era triste.
Todo o peso caíra dos ombros; ia desnuda
de toda vestimenta e se aliviara de muita carga,
antes onerada com riquezas e oprimida por pesadas moedas,
580 agora livre pela compaixão dos carentes, aos quais favorecera
generosa com bondade, distribuindo pródiga os bens pátrios.
Agora, satisfeita, olhava as bolsas vazias com confiança,
contando a eterna quantia com os juros vindouros.
Faz arrepiar o raio da Virtude invicta e desorientada
585 a Avareza hesita com os sentidos aturdidos
certa que vai morrer: pois que caminho de fraude ainda resta
para que a mesma desprezadora do mundo, vencida, se canse
dos atrativos mundanos e se rededique ao desprezado ouro?
A Virtude fortíssima ataca a vacilante nas duas saliências
590 dos braços e, apertando o pescoço, quebra
a garganta seca e sem sangue; os laços apertados dos braços
são ligados sob o queixo e com a garganta comprimida
expelem a alma, que palpita livre de todo ferimento
mas, com a entrada da respiração tapada,
595 sofre a morte inevitável pelo fechamento das veias.
Aquela ameaçando a relutante com joelhos e calcanhares

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perfodit et costas atque ilia rumpit anhela,


mox spolia exstincto de corpore diripit, auri
sordida frusta rudis nec adhuc fornace recoctam
600 materiam, tineis etiam marsuppia crebris
exesa et uirides obducta aerugine nummos
dispergit seruata diu uictrix et egenis
dissipat ac tenues captiuo munere donat.
tunc circumfusam uultu exultante coronam
605 respiciens alacris media inter milia clamat:
"soluite procinctum, iusti, et discedite ab armis!
causa mali tanti iacet interfecta; lucrandi
ingluuie pereunte licet requiescere sanctis.
summa quies nil uelle super quam postulet usus
610 debitus, ut simplex alimonia uestis et una
infirmos tegat ac recreet mediocriter artus
expletumque modum naturae non trahat extra.
intressurus iter peram ne tollito, neue
de tunicae alterius gestamine prouidus ito,
615 nec te sollicitet res crastina, ne cibus aluo
defuerit: redeunt escae cum sole diurnae.
nonne uides ut nulla auium cras cogitet ac se
pascendam, praestante deo, non anxia credat?
confidunt uolucres uictum non defore uiles,
620 passeribusque subest modico uenalibus asse
indubitata fides dominum curare potentem
ne pereant. tu, cura dei, facies quoque Christi,
addubitas ne te tuus umquam deserat auctor?
ne trepidate, homines; uitae dator et dator escae est.
625 quaerite luciferum caelesti dogmate pastum,
qui spem multiplicans alat inuitiabilis aeui,
corporis inmemores: memor est qui condidit illud
subpeditare cibos atque indiga membra fouere."
his dictis curae emotae, Metus et Labor et Vis

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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a transpassa e ofegante quebra-lhe as costelas e as ilhargas;


logo arranca do corpo morto o produto dos saques, do ouro
a sórdida matéria vã ainda bruta e não refinada na fornalha,
600 afetada por diversos insetos na bolsa
e reduzida a verdes moedinhas
pelo azinhavre: a vencedora dissipa, tendo conservado bastante,
e a distribui aos carentes e doa pequenas partes do presente cativo.
Então, olhando a coroa quebrada, com a face exultante.
605 satisfeita exclama por entre milhares:
“Abandonai o equipamento de guerra, ó justos, deixai as armas!
Está morta a causa de tão grande mal; é justo que
os santos descansem da avidez moribunda de lucrar.
O supremo descanso nada queira além do que exija o uso
610 adequado, como o alimento simples, a roupa que também
cubra os doentes e restaure suficientemente os membros
e não extrapole o modelo total da natureza.
Ao iniciar a caminhada não se peque uma sacola, nem
se vá provido de uma muda de outra túnica,
615 nem te importune a preocupação do dia seguinte se vier a faltar
alimento no estômago: os alimentos de cada dia voltam com o sol.
Acaso não vês que ave alguma pensa no amanhã, e não fica
ansiosa para se alimentar, com a ajuda de Deus?
As aves desimportantes confiam que o alimento não lhes faltará;
620 Acha-se nos passarinhos, vendáveis por um módico asse,
uma fé nunca duvidosa que um senhor poderoso cuida
para que não pereçam. Tu, preocupação de Deus e face de Cristo,
duvidas que o teu criador venha um dia a te abandonar?
Não vos agiteis, homens; o doador da vida o é também da comida.
625 Buscai o alimento cheio de brilho no preceito celestial,
que, multiplicando a esperança do século convidativo, a alimente,
esquecidos do corpo: lembra-se dele, quem o formou,
de lhe fornecer os alimentos e socorrer os membros necessitados.”
Ditas essas palavras pela guardiã comovida, o Medo, o Esforço,

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630 et Scelus et placitae fidei Fraus infitiatrix


depulsae uertere solum. Pax inde fugatis
hostibus alma abigit bellum, discingitur omnis
terror et auulsis exfibulat ilia zonis.
uestis ad usque pedes descendens defluit imos,
635 temperat et rapidum priuata modestia gressum.
cornicinum curua aera silent, placabilis inplet
uaginam gladius, sedato et puluere campi
suda redit facies liquidae sine nube diei,
purpuream uideas caeli clarescere lucem.
640 agmina casta super uultum sensere Tonantis
adridere hilares pulso certamine turmae,
et Christum gaudere suis uictoribus arce
aetheris ac patrium famulis aperire profundum.
dat signum felix Concordia reddere castris
645 uictrices aquilas atque in tentoria cogi.
numquam tanta fuit species nec par decus ulli
militiae, cum dispositis bifida agmina longe
duceret ordinibus peditum psallente caterua,
ast alia de parte equitum resonantibus hymnis.
650 non aliter cecinit respectans uictor hiantem
Istrahel rabiem ponti post terga minacis,
cum iam progrediens calcaret litora sicco
ulteriora pede, stridensque per extima calcis
mons rueret pendentis aquae nigrosque relapso
655 gurgite Nilicolas fundo deprenderet imo,
ac refluente sinu iam redderet unda natatum
piscibus et nudas praeceps operiret harenas.
pulsauit resono modulantia tympana plectro
turba dei celebrans mirum ac memorabile saeclis
660 omnipotentis opus, liquidas inter freta ripas
fluctibus incisis et subsistente procella
crescere suspensosque globos potuisse teneri.

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630 a Violência, o Crime e a Fraude recusadora da confiança acordada,


expulsos, mudaram de lugar. Daí a santa Paz, postos em fuga
os inimigos, afastou a guerra; todo terror é extinto por ela
e desfivela as cinturas, arrancando os cintos de guerra.
Faz descer até à ponta dos pés as vestes,
635 regula ainda o passo rápido com singular modéstia.
Silenciam os sons turbulentos dos corneteiros, a espada
aplacada preenche a bainha e com o pó do campo assentado
torna seca a aparência do dia límpido sem nuvem,
assim que possas ver surgir a purpúrea luz do céu.
640 As tropas limpas percebem acima a face do Tonante
e sorriem os risonhos esquadrões com o combate afastado,
e Cristo alegrar-se com seus vencedores no castelo
do céu e abrir aos fâmulos a profundeza da pátria.
A feliz Concórdia dá o sinal para que voltem ao acampamento
645 as águias vitoriosas e se recolham às tendas.
Nunca houve tão grande beleza nem glória igual
em alguma milícia, quando conduziu o duplo exército
para longe, em disposições acertadas, com a tropa cantante
da infantaria e, do outro lado, com os soantes hinos da cavalaria.
650 Não cantou de outro modo o vencedor
Israel, vendo atrás a raiva
furiosa do mar ameaçador às suas costas,
quando, avançando, já pisava com pés secos a margem oposta
e a montanha ruidosa da água pendente, desde o mais profundo,
655 desabava e, desfeita a garganta, submergia os negros Nilícolas
na parte mais profunda e, com refluxo da passagem, a água já restituía
a natação aos peixes e violentamente recobria as areias nuas.
A multidão tocou com a palheta ressoante os tímpanos musicais,
celebrando a obra admirável e memorável pelos séculos
660 de Deus onipotente, que pôde conter e crescer as margens de água
entre a via estreita, cortadas as águas e cessada a tempestade,
e conservar a multidão acima de tudo.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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sic expugnata Vitiorum gente resultant


mystica dulcimodis Virtutum carmina psalmis.
665 uentum erat ad fauces portae castrensis, ubi artum
liminis introitum bifori dant cardine claustra.
nascitur hic inopina mali lacrimabilis astu
tempestas, placidae turbatrix inuida pacis,
quae tantum subita uexaret clade triumphum.
670 inter confertos cuneos Concordia forte
dum stipata pedem iam tutis moenibus infert,
excipit occultum Vitii latitantis ab ictu
mucronem laeuo in latere, squalentia quamuis
texta catenato ferri subtegmine corpus
675 ambirent sutis et acumen uulneris hamis
respuerent, rigidis nec fila tenacia nodis
inpactum sinerent penetrare in uiscera telum.
rara tamen chalybem tenui transmittere puncto
commissura dedit, qua sese extrema politae
680 squama ligat tunicae sinus et sibi conserit oras.
intulit hoc uulnus pugnatrix subdola uictae
partis et incautis uictoribus insidiata est.
nam pulsa culparum acie Discordia nostros
intrarat cuneos sociam mentita figuram.
685 scissa procul palla structum et serpente flagellum
multiplici media camporum in strage iacebant.
ipsa redimitos olea frondente capillos
ostentans festis respondet laeta choreis.
sed sicam sub ueste tegit, te, maxima Virtus,
690 te solam tanto e numero, Concordia, tristi
fraude petens. sed non uitalia rumpere sacri
corporis est licitum, summo tenus extima tactu
laesa cutis tenuem signauit sanguine riuum.
exclamat Virtus subito turbata: "quid hoc est?
695 quae manus hic inimica latet, quae prospera nostra

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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Assim, vencida a raça dos Vícios, ressoam


os místicos poemas das Virtudes com salmos suaves.
665 Havia-se chegado à entrada da porta castrense, onde os interiores dão,
Por dobradiças usáveis dos dois lados, uma passagem estreita já no limiar.
Nasce aqui uma lamentável tempestade pela astúcia do mal,
a perturbadora invejosa da paz tranquila,
apenas para empanar o triunfo com derrota inesperada.
670 Entre as densas formações em cunha, a Concórdia,
talvez mesmo protegida, introduz o pé nas seguras muralhas,
recebe um dardo oculto
por golpe do Vício latente
no lado esquerdo, embora telas interligadas de ferro
675 como subveste envolvessem o corpo e a ponta do dardo
foi repelida pelos ganchos fechados e os fios resistentes
com nós rígidos não permitiram ao dardo penetrar nas vísceras.
Contudo, uma rara ligação permitiu conferir num leve ponto,
pela qual se junta a última placa da túnica polida do peitoral
680 e junta em si mesma todas as outras bordas.
A lutadora ardilosa da parte vencida causou esse ferimento
e armou cilada aos vencedores incautos.
De fato, excluída da linha dos males, a Discórdia penetrara
em nossas formações sob o disfarce de figura amiga.
685 Longe, a mantilha rasgada e a correia retorcida jaziam,
como serpente, no meio dos campos em pedaços.
A mesma, ostentando os cabelos ornados como oliveira
frondosa, alegre responde com festivos troqueus.
Mas sob a veste esconde um punhal, a ti, Virtude máxima,
690 a ti só entre grande número, Concórdia, atacando
numa triste traição. Mas não é justo rasgar órgãos vitais
do corpo santo, até com o leve contato, a pele ferida de leve
revelou um tênue filete de sangue.
A Virtude, repentinamente perturbada, exclama: “Que é isso?
695 Que mão inimiga aqui se esconde, que fere nossa boa sorte

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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uulnerat et ferrum tanta inter gaudia uibrat?


quid iuuat indomitos bello sedasse Furores
et sanctum Vitiis pereuntibus omne receptum,
si Virtus sub pace cadit?" trepida agmina maestos
700 conuertere oculos: stillabat uulneris index
ferrata de ueste cruor, mox et pauor hostem
comminus adstantem prodit; nam pallor in ore
conscius audacis facti dat signa reatus
et deprensa tremunt languens manus et color albens.
705 circumstat propere strictis mucronibus omnis
Virtutum legio exquirens feruente tumultu
et genus et nomen, patriam sectamque, deumque
quem colat et missu cuiatis uenerit. illa
exsanguis turbante metu: "Discordia dicor,
710 cognomento Heresis; deus est mihi discolor," inquit,
"nunc minor, aut maior, modo duplex et modo simplex,
cum placet, aërius et de phantasmate uisus,
aut innata anima est quoties uolo ludere numen;
praeceptor Belia mihi, domus et plaga mundus."
715 non tulit ulterius capti blasphemia monstri
Virtutum regina Fides, sed uerba loquentis
inpedit et uocis claudit spiramina pilo,
pollutam rigida transfigens cuspide linguam.
carpitur innumeris feralis bestia dextris;
720 frustatim sibi quisque rapit quod spargat in auras
quod canibus donet, coruis quod edacibus ultro
offerat, inmundis caeno exhalante cloacis
quod trudat, monstris quod mandet habere marinis.
discissum foedis animalibus omne cadauer
725 diuiditur, ruptis Heresis perit horrida membris.
conpositis igitur rerum morumque secundis
in commune bonis, tranquillae plebis ad unum
sensibus in tuta valli statione locatis

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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e maneja o ferro no meio de tão grande alegria?


Que adianta ter acalmado pela guerra os violentos Furores
e, mortos os Vícios, termos um refúgio todo santo,
se a Virtude desaba em tempo de paz?” As tropas inquietas
700 volvem os olhos tristes: a marca da ferida destilava sangue
da roupagem de ferro e logo o pavor entrega o inimigo
que estava perto; pois, a palidez no rosto, reveladora
do feito audacioso, mostra os sinais do crime
e surpreendida e abatida, as mãos tremem e perde a cor.
705 Rapidamente, toda a legião da Virtude acorre com as armas
prontas, perguntando, em agitada confusão,
o gênero, o nome, a pátria, o modo de vida,
o deus a quem cultua e a mando de quem tenha vindo.
E aquela, exangue pelo medo perturbador:
710 “Sou chamada de Discórdia e Heresia por cognome; para mim
Deus não tem cor” – diz – “ agora menor, já menor, ora duplo
e ora simples, como agradar, visão sublime ou de fantasma
ou é um espírito inato, sempre que quero zombar da divindade;
meu preceptor é Belial, casa e território o mundo.”
715 Não suportou mais além as blasfêmias do monstro cativo
A Fé, rainha das Virtudes, mas impede as palavras da falante
e tapa com um dardo os órgãos de sua voz,
traspassando-lhe a poluída língua com rígida haste.
A fera é atacada por inúmeros funerários hábeis;
720 aos pedaços cada um arranca o que leve pelo espaço,
o que dê aos cães, o que mais além ofereça aos corvos vorazes,
o que empurre para as imundas goelas cheirando a imundície,
o que envie como posse aos monstros marinhos.
Todo o cadáver estraçalhado é dividido pelos feios bichos,
725 e a terrível Heresia morre com os membros arrancados.
Então, postos os bens secundários
das coisas e dos costumes
no comum, em unanimidade do povo pacífico

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struitur media castrorum sede tribunal


728-9 editiore loco, tumulus quem uerti
730 exstruitur media castrorum sede tribunal
editiore loco, tumulus quem uertice acuto
excitat in speculam, subiecta unde omnia late
liber inoffenso circum inspicit aëre uisus.
hunc sincera Fides simul et Concordia, sacro
735 foedere iuratae Christi sub amore sorores,
conscendunt apicem; mox et sublime tribunal
par sanctum carumque sibi supereminet aequo
iure potestatis, consistunt aggere summo
conspicuae populosque iubent adstare frequentes.
740 concurrunt alacres castris ex omnibus omnes,
nulla latet pars Mentis iners, quae corporis ullo
intercepta sinu per conceptacula sese
degeneri languore tegat, tentoria apertis
cuncta patent uelis, reserantur carbasa, ne quis
745 marceat obscuro stertens habitator operto.
auribus intentis expectant contio, quidnam
uictores post bella uocet Concordia princeps,
quam uelit atque Fides Virtutibus addere legem.
erumpit prima in uocem Concordia tali
750 adloquio: "cumulata quidem iam gloria uobis,
o patris, o domini fidissima pignera Christi,
contigit: extincta est multo certamine saeua
barbaries, sanctae quae circumsaepserat urbis
indigenas, ferroque uiros flammaque premebat.
755 publica sed requies priuatis rure foroque
constat amicitiis: scissura domestica turbat
rem populi, titubatque foris quod dissidet intus.
ergo cauete, uiri, ne sit sententia discors
Sensibus in nostris, ne secta exotica tectis
760 nascatur conflata odiis, quia fissa uoluntas

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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e voltados as ideias para um seguro lugar da trincheira,


730 forma-se o tribunal no centro do acampamento,
em lugar mais elevado, eminência que, pelo vértice fechado,
evoca um observatório, de onde uma visão livre ao derredor
divisa ao largo tudo lá embaixo sem impedimento.
Para esse pico, a Fé sincera junto com a Concórdia, irmãs
735 juradas sob o amor de Cristo por sagrada aliança,
sobem; e logo o respeitável tribunal igualmente santo e caro
assume a si mesmo o igual direito do poder; imponentes
colocam-se no ponto mais alto e mandam aos povos
que se aproximem em grande número.
740 Alegres acorrem todos de todos os acampamentos,
Nenhuma parte da Mente se esconde ociosa, que impedida
por alguma prega do corpo e pequenos conceitos,se feche
devido a algum torpor degenerado, todas as tendas se abrem
com as cortinas afastadas; abrem-se as cortinas de linho
745 para que nenhum morador definhe, dormindo recluso no escuro.
Com os ouvidos atentos, a assembleia aguarda quais vencedores
a dirigente Concórdia chamará depois da guerra,
que lei também a Fé quererá acrescentar às Virtudes.
Ouve-se primeiramente a voz da Concórdia com esta alocução:
750 “De fato já vos coube a concedida glória, ó penhores
fidelíssimos do pai e do Cristo Senhor: foi apagada
com muito combate a cruel barbárie,
que cercara os habitantes da cidade santa
e que oprimia os homens pelo ferro e pelo fogo.
755 Contudo, a tranquilidade pública está no campo e no fórum
pelas amizades pessoais: a cisão doméstica conturba
a situação do povo e torna vacilante fora o que discorda dentro.
Por isso, cuidai, homens, que a afirmação não seja discordante
de nossos pensamentos, para que uma seita exótica não nasça
760 cheia de ódios ocultos, porque uma vontade dividida

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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confundit uariis arcana biformia fibris.


quod sapimus coniungat amor; quod uiuimus uno
conspiret studio: nil dissociabile firmum est.
utque homini atque deo medius interuenit Iesus,
765 qui sociat mortale patri, ne carnea distent
Spiritui aeterno sitque ut deus unus utrumque,
sic, quidquid gerimus mentisque et corporis actu,
spiritus unimodis texat conpagibus unus.
pax plenum Virtutis opus, pax summa laborum,
770 pax belli exacti pretium est pretiumque pericli.
sidera pace uigent, consistunt terrea pace.
nil placitum sine pace deo: non munus ad aram
cum cupias offerre probat, si turbida fratrem
mens inpacati sub pectoris oderit antro,
775 nec, si flammicomis Christi pro nomine martyr
ignibus insilias seruans inamabile uotum
bile sub obliqua, pretiosam proderit Iesu
inpendisse animam, meriti quia clausula pax est.
non inflata tumet, non inuidet aemula fratri,
780 omnia perpetitur patiens atque omnia credit,
nunquam laesa dolet, cuncta offensacula donat,
occasum lucis uenia praecurrere gestit,
anxia ne stabilem linquat sol conscius iram.
quisque litare deo mactatis uult holocaustis,
785 offerat in primis pacem: nulla hostia Christo
dulcior: hoc solo sancta ad donaria uultum
munere conuertens liquido oblectatur odore.
sed tamen et niueis tradit deus ipse columbis
pinnatum tenera plumarum ueste colubrum
790 rimante ingenio docte internoscere mixtum
innocuis auibus; latet et lupus ore cruento
lacteolam mentitus ouem sub uellere molli,
cruda per agninos exercens funera rictus.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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confunde segredos biformes em vários aspectos.


Que o amor una o que degustamos e o que vivemos, se junte
por um só esforço: nada é firme se for divisível.
Jesus mediador interveio entre o homem e Deus,
765 o qual associa o mortal ao pai, para que a carne não
se distancie do Espírito eterno e que seja Deus um e o outro,
assim, o que quer que façamos por ato da mente e do corpo
um só espírito o teça com junturas da mesma espécie.
A paz é a obra completa da Virtude, a paz é o ápice dos trabalhos,
770 a paz é o preço da guerra travadas e o preço do perigo.
Os astros existem em paz, as coisas terrenas subsistem em paz.
Nada é agradável a Deus sem a paz: não aprova a oferenda ao altar,
quando desejares oferecê-la, se a mente agitada odiar o irmão
sob o vazio de um peito sem paz; também não,
775 se mártir pelo nome de Cristo te atiras às chamas de cabelos de fogo,
mantendo um desejo sem amor com bílis atravessada,
seria útil a Jesus que tivesse consagrado a alma preciosa,
porque a conclusão do trabalho feito é a paz.
Não exulta por vaidade, rival não inveja o irmão,
780 paciente, tudo suporta e acredita em tudo,
ferida, nunca se lamenta, perdoa todas as pequenas ofensas,
ansiosa por preceder com o perdão o ocaso da luz,
anseia que o sol desapareça sabedor de uma raiva existente.
Quem quiser sacrificar a Deus holocaustos abatidos,
785 ofereça primeiramente a paz: sacrifício algum é para Cristo
mais doce: por só essa oferta, volve sua face aos donativos
sagrados, encanta-se com o perfume fluido.
Ainda mais, o próprio Deus dá também às brancas pombas
uma serpente emplumada qual delicada veste de penas,
790 cabendo à perícia do examinador distinguir a combinação
de aves inofensivas; também o lobo esconde a boca sanguinária,
enganando a ovelha branca como o leite sob o fofo velocino,
causando mortes cruéis através de rictos próprios das ovelhas.

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hac sese occultat Photinus et Arrius arte,


795 inmanes feritate lupi. discrimina produnt
nostra recensque cruor, quamuis de corpore summo,
quid possit furtiua manus." gemitum dedit omnis
Virtutum populus casu concussus acerbo.
tum generosa Fides haec subdidit: "immo secundis
800 in rebus cesset gemitus. Concordia laesa est,
sed defensa Fides: quin et Concordia sospes,
germanam comitata Fidem, sua uulnera ridet.
haec mea sola salus, nihil hac mihi triste recepta.
unum opus egregio restat post bella labori,
805 o proceres, regni quod tandem pacifer heres
belligeri, armatae successor inermus et aulae,
instituit Solomon, quoniam genitoris anheli
fumarat calido regum de sanguine dextra.
sanguine nam terso templum fundatur et ara
810 ponitur auratis Christi domus ardua tectis.
tunc Hierusalem templo inlustrata quietum
suscepit iam diua deum, circumuaga postquam
sedit marmoreis fundata altaribus arca.
surgat et in nostris templum uenerabile castris,
815 omnipotens cuius sanctorum sancta reuisat.
nam quid terrigenas ferro pepulisse phalangas
Culparum prodest, hominis si Filius arce
aetheris inlapsus purgati corporis urbem
intret inornatam templi splendentis egenus?
820 hactenus alternis sudatum est comminus armis:
munia nunc agitet tacitae toga candida pacis,
atque sacris sedem properet discincta iuuentus."
haec ubi dicta dedit, gradibus regina superbis
desiluit tantique operis Concordia consors
825 metatura nouum iacto fundamine templum.
aurea planitiem spatiis percurrit harundo

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Com essa artimanha se ocultam Fotino e Arrio,


795 desumanos com a ferocidade do lobo. Revelam-no nossas
diferenças e o sangue recente, embora do corpo supremo,
o que podem mãos traiçoeiras.” Emitiu um gemido
todo povo das Virtudes, abalado pelo amargo acontecido.
Então a generosa Fé acrescentou o seguinte: “Que cesse
800 o gemido mesmo em condições favoráveis. A Concórdia foi ferida,
mas a Fé foi defendida: Ainda mais a Concórdia também sã e salva,
acompanhando a irmã Fé, se ri de seus ferimentos.
Esta é minha felicidade única, pela qual nada de triste recebi.
Depois da guerra, resta uma só obra ao trabalho magnífico,
805 ó chefes, que afinal o herdeiro pacificador do reino
belicoso, inofensivo sucessor também de palácio armado,
Salomão instituiu, uma vez que as tropas esfumaram
o reino do pai agitado com sangue quente.
Pois com o sangue enxugado fundam-se templo e altar
810 e se monta a casa elevada de Cristo com teto dourado.
Então Jerusalém, enobrecida pelo templo, recebe o Deus
pacífico na antes divagante arca e depois se estabelece
em firmes fundamentos de altares de mármore.
Que surja também em nossos acampamentos um templo santo,
815 cujo Onipotente revisite o santo dos santos.
De fato que adianta ter repelido as falanges
terrenas das Culpas pelo ferro,
se o Filho do homem, vindo do palácio do céu, de corpo
refeito, adentrasse a cidade tosca privado de um templo magnífico?
820 Até agora, lutou-se com suor num corpo a corpo com armas
alternadas: agora a toga branca da paz implícita agite as muralhas,
que a sacra juventude desarmada ocupe logo o local.”
Ditas essas palavras, a rainha, com passos firmes,
desceu e a companheira Concórdia de obra tão grande
825 construirá o novo tempo com o fundamento lançado.
O bastão dourado percorre a planícies nos espaços

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dimensis, quadrent ut quattuor undique frontes,


ne commissuris distantibus angulus inpar
argutam mutilet per dissona semetra normam.
830 Aurorae de parte tribus plaga lucida portis
inlustrata patet, triplex aperitur ad austrum
portarum numerus, tris occidualibus offert
ianua trina fores, totiens aquilonis ad axem
panditur alta domus. nullum illic structile saxum,
835 sed caua per solidum multoque forata dolatu
gemma relucenti limen conplectitur arcu,
uestibulumque lapis penetrabile concipit unus.
portarum summis inscripta in postibus auro
nomina apostolici fulgent bis sena senatus.
840 Spiritus his titulis arcana recondita mentis
ambit et electos uocat in praecordia sensus;
quaque hominis natura uiget, quam corpore toto
quadrua uis animat, trinis ingressibus aram
cordis adit castisque colit sacraria uotis;
845 seu pueros sol primus agat, seu feruor ephebos
incendat nimius, seu consummabilis aeui
perficiat lux plena uiros, siue algida borrae
aetas decrepitam uocet ad pia sacra senectam,
occurrit trinum quadrina ad compita nomen,
850 quod bene discipulis disponit rex duodenis.
quin etiam totidem gemmarum insignia textis
parietibus distincta micant, animasque colorum
uiuentes liquido lux euomit alta profundo.
ingens chrysolitus, natiuo interlitus auro,
855 hinc sibi sapphirum sociauerat, inde beryllum,
distantesque nitor medius uariabat honores.
hic chalcedon hebes perfunditur ex hyacinthi
lumine uicino; nam forte cyanea propter
stagna lapis cohibens ostro fulgebat aquoso.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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medidos, para que se esquadrem todas as quatro fachadas


e o ângulo ímpar, pelas junturas distanciadas,
não distorça a disposição sutil com assimetrias dissonantes.
830 Do lado da Aurora, o luminoso espaço é dotado de três portas,
para o austro abre-se um tríplice número de portas,
uma saída dispõe de três portas do lado ocidental,
e a imponente construção se estende seguindo o eixo
do norte com o mesmo número de acessos.
835 Ali não há pedra de construção, mas perfurações no solo
e com muita arte um enfeite lavrado liga a entrada em arco luzidio,
e uma só pedra rodeia o vestíbulo de entrada.
No alto das portas, nas ombreiras, brilham os nomes
inscritos em ouro, duas vezes seis, do senado apostólico.
840 O Espírito, nesses títulos, rodeia os segredos arcanos da mente
e evoca os sentimentos escolhidos para o coração;
prospere aquela natureza do homem, a qual a quádrupla força
dá vida, acessa o altar do coração pelas três entradas
e cultua as coisas sagradas pelos votos sacros;
845 quer o primeiro sol forme os meninos, quer o entusiasmo
incentive demais os moços, quer a luz plena aperfeiçoe
os homens de idade avançada, quer a fria idade boreal chame
a alquebrada velhice para as pias sacralidades,
parecem os nomes três vezes quatro na encruzilhada,
850 e aquilo que o rei bem dispôs aos doze discípulos.
Mas também outros tantos nobres sinais de preciosidades
brilham nas paredes bem construídas e a luz de cima
derrama expressões vivas das cores como um líquido denso.
Um enorme topázio, rajado com ouro puro
855 aqui se juntara a uma safira, ali a um berilo
e o brilho resultante variava a beleza à distância.
Aqui uma opaca calcedônia é atravessada pela luz
de um jacinto próximo; assim, talvez, a pedra azul-marinho
refulgisse por causa dos lagos, retendo a púrpura aquosa.

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860 sardonicem pingunt amethystina, pingit iaspis


sardium iuxta adpositum pulcherque topazon.
has inter species smaragdina gramine uerno
prata uirent uoluitque uagos lux herbida fluctus.
te quoque conspicuum structura interserit, ardens
865 chrysoprase, et sidus saxis stellantibus addit.
stridebat grauidis funalis machina uinclis
inmensas rapiens alta ad fastigia gemmas.
at domus interior septem subnixa columnis
crystalli algentis uitrea de rupe recisis
870 construitur, quarum tegit edita calculus albens
in conum caesus capita et sinuamine subter
subductus conchae in speciem, quod mille talentis
margaritum ingens, opibusque et censibus hastae
addictis, animosa Fides mercata pararat.
875 hoc residet solio pollens Sapientia et omne
consilium regni celsa disponit ab aula,
tutandique hominis leges sub corde retractat.
in manibus dominae sceptrum non arte politum
sed ligno uiuum uiridi est, quod stirpe reciso,
880 quamuis nullus alat terreni caespitis umor,
fronde tamen uiret incolumi, tum sanguine tinctis
intertexta rosis candentia lilia miscet
nescia marcenti florem submittere collo.
huius forma fuit sceptri gestamen Aaron
885 floriferum, sicco quod germina cortice trudens
explicuit tenerum spe pubescente decorem
inque nouos subito tumuit uirga arida fetus.
reddimus aeternas, indulgentissime doctor,
grates, Christe, tibi, meritosque sacramus honores
890 ore pio; nam cor uitiorum stercore sordet.
tu nos corporei latebrosa pericula operti
luctantisque animae uoluisti agnoscere casus.

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860 Pedras da cor da ametista pintam a sardônica, jaspe colore


o sárdonix justaposto, além de um belo topázio.
Entre essas belezas, os prados esmeraldinos vicejam
com grama primaveril e o brilho vegetal provoca ondas vagas.
A ti também, fulgente crisópraso, o conjunto incluiu em destaque
865 e acrescentou o esplendor de pedras da cor das estrelas.
O aparelho de cordas rangia nas apertadas amarras,
carregando as gemas imensas para as altas cumeeiras.
Mas a casa é construída apoiada por dentro em sete colunas
de cristal frio, talhadas na rocha vítrea, cujos cimos mais altos
870 uma pedra branca protege,
cortada em cone e posta por baixo
em espiral com aparência de concha,
que a zelosa Fé preparara negociando, maior que mil talentos de pérolas,
e adicionados à riqueza e aos bens da causa.
875 Nesse trono senta-se a poderosa Sabedoria e do ponto elevado
dispõe todo o conselho do reino e corrige, do fundo do coração,
as leis de proteção do homem.
Nas mãos da senhora, há um cetro não tratado com arte,
mas vivo de madeira verde, que com o caule cortado,
880 embora não o alimentasse a umidade de uma porção de terra,
verdeja com copa viçosa, ainda com rosas tintas de sangue
entremeia cândidos lírios entrelaçados,
recusando deixar crescer uma flor de caule murcho.
Dessa forma de cetro foi a liteira florífera de Aarão,
885 que, cortando os renovos do caule seco,
expôs a delicada glória, com a esperança despontando,
e do ramo seco brotaram de repente rebentos novos.
A ti, Cristo, mestre indulgentíssimo, rendemos graças
e a ti consagramos as honras merecidas
890 com voz piedosa; de fato, o coração dos vícios é emporcalhado.
Tu quiseste que nós conhecêssemos os perigos ocultos
de um lugar corpóreo fechado e a queda de uma alma lutadora.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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nouimus ancipites nebuloso in pectore sensus


sudare alternis conflictibus, et uariato
895 pugnarum euentu nunc indole crescere dextra,
nunc inclinatis uirtutibus ad iuga uitae
deteriora trahi seseque addicere noxis
turpibus et propriae iacturam ferre salutis.
o quotiens animam, uitiorum peste repulsa,
900 sensimus incaluisse deo! quotiens tepefactum
caeleste ingenium post gaudia candida taetro
cessisse stomacho! feruent bella horrida, feruent
ossibus inclusa, fremit et discordibus armis
non simplex natura hominis; nam uiscera limo
905 effigiata premunt animam, contra ille sereno
editus adflatu nigrantis carcere cordis
aestuat, et sordes arta inter uincla recusat.
spiritibus pugnant uariis lux atque tenebrae,
distantesque animat duplex substantia uires,
910 donec praesidio Christus deus adsit et omnes
uirtutum gemmas conponat sede piata,
atque, ubi peccatum regnauerat, aurea templi
atria constituens texat spectamine morum
ornamenta animae, quibus oblectata decoro
915 aeternum solio diues Sapientia regnet.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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Perplexos, aprendemos, com o coração nebuloso, a fazer suar


os sentidos nos conflitos alternados e, no encadeamento das lutas
895 ora crescer na tendência correta, ora ser arrastado para imposições
menos boas da vida pelas virtudes declinantes
e entregar-se a delitos vergonhosos
e pôr em jogo a própria salvação. Oh!, quantas vezes percebemos
que a alma se aqueceu para Deus, depois de repelida a peste dos vícios!
900 Quantas vezes percebemos que a natureza
aquecida pelo céu caiu em horrível mau humor
depois de alegrias inocentes! Guerras terríveis fervem, agitam-se
rodeadas de ossos; ruge também a natureza não simples do homem
com as armas em discórdia, pois as vísceras, plasmadas do barro,
905 pressionam a alma; ao contrário, aquele alto referve com sopro
calmo na prisão do coração enegrecido
e repele a imundície entre correntes apertadas.
A luz e as trevas lutam com disposições diferentes
e a dupla substância anima forças distintas,
910 até que Cristo Deus venha em auxílio,
ponha ordem em todas as gemas das virtudes na sede sacra,
e, onde o pecado havia reinado, estabelecendo
os áureos átrios sagrados, teça os ornamentos
da alma pela prova dos costumes, pelos quais a rica Sabedoria,
915 satisfeita no honroso trono, reine para sempre.

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Psychomachia de Prudêncio – Estudo, tradução e texto latino
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6 Bibliografia

ALVES DE SOUSA, Ana Alexandra, A Psychomachia de Prudêncio: Epopeia alegorica.


Estudo do texto e tradução. Lisboa, 1992.
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
ETTORE, Bignone. História de la litteratura latina. Ed. Editorial losada, buenos aires 1952
FRANCHI, Paola. La battaglia interiore. Prova di commento alla Psychomachia di Prudenzio.
Wien, 2013
LAVARENNE, M. Etude sur la langue du poete Prudence. Paris, 1933.
MARQUES GONÇALVES, Ana Teresa. Cânones Retóricos Cristãos e pagãos: Prudencio e
as batalhas entre vícios e virtudes na alma humana. Revista territórios & Fronteiras, Cuiabá,
vol. 6, n.1, jan,-jun., 2013
NUGENT, S. G. Vice end virtue in allegory: reading Prudentius « Psychomachia ». Diss.
Cornell University, 1980.
PETER R., Pudicitia, in Roscher W. H., Lexicon der griechischen und römischen Mythologie,
Hildesheim 1965 (Leipzig 1909-15), vol. 3/2, col. 3273-77.
PRUDENTIUS, Aurelii Prudentii opera omnia accurante J. P Migne, tomo 60 colunas 10-596.
Paris, 1862.
PRUDENZIO, Aurelio Clemente, Psychomachia: la lotta dei vizi e dele virtù, a cura di Bruno
Basile. Roma, Corocci editore, 2007.
IDEM, Prudence. Psychomachie. Contre Symaque texte établi et traduit par M. Lavarenne,
vol. 3. Paris, 1948.
SMITH, M. Prudentius psychomachia. A reexamination. Princeton, New Jersey, 1976.
SNIDER, Louis B. The psychomachia of Prudentius: Introduction, text, prose translation, and
commentary, Chicago, 1938.

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