Laudemio Ic PDF
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- 02 - 16
Direito Civil
Doutor e Bacharel em Direito pela USP. Professor da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Professor de
cursos preparatórios para carreiras jurídicas, do curso sobre Método de Estudo, ministrado há mais de 15
anos, e de diversas matérias no Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Coordenador da EPD, ESA e VFK. Juiz
de Direito em São Paulo desde 1993. [email protected]
Sumário:
1. Introdução
2. As espécies de laudêmio
3. A natureza jurídica do laudêmio
4. A natureza jurídica da Igreja Católica
5. Conclusão
Bibliografia
Resumo:
O presente artigo trata do laudêmio no direito real de enfiteuse, expondo sua natureza jurídica e
demonstrando a legitimidade de sua cobrança pela Igreja Católica até os nossos dias.
Abstract:
The present paper investigates the recognition fee (laudemium) applicable in cases of ground-rent
(emphyteusis) alienation, with a view to establishing its legal nature and the legitimacy of its
collection by the Catholic Church even in contemporary times.
1. Introdução
Um tema que intriga a muitos operadores do Direito, notadamente militantes do mundo notarial e
registral, é a cobrança do laudêmio pela Igreja Católica até os dias de hoje. É sabido que a enfiteuse,
que tem como um de seus efeitos a cobrança do laudêmio, está “extinta” no Brasil, 1 ou seja, está
proibida a constituição de novas enfiteuses privadas, sendo de se considerar que o instituto já estava
em desuso desde seu nascedouro, remanescendo apenas as existentes por força do direito adquirido.
Para melhor compreensão dessa prestação pecuniária é relevante a retomada dos contornos do
instituto. A enfiteuse é o direito real sobre coisa alheia que permite a seu titular o mais amplo
exercício de poderes inerentes à propriedade. 2 Trata-se de ato jurídico inter vivos (contrato) ou de
última vontade (testamento), onde o proprietário atribuiu a outrem o domínio do seu imóvel,
pagando o adquirente, designado enfiteuta (proprietário útil), uma pensão ou foro anual, certo e
invariável, ao senhorio direto.
Em muito a enfiteuse se aproxima da superfície e da locação. Para muitos, a superfície vem a ocupar
um espaço antes destinado à enfiteuse, muito embora institutos com finalidades totalmente
diferentes, na medida em que a enfiteuse é instituto gerador de renda, conforme já mencionado, e a
superfície, instituto cumpridor de função social. Assim como o locador, o senhorio direto é
proprietário, e o enfiteuta, assim como o locatário, é aquele que usufruirá dessa propriedade.
Enquanto a locação é um mero contrato, a enfiteuse é um direito real perpétuo, podendo o enfiteuta
alienar o domínio útil da propriedade, não tendo tal poder o locatário.
Apresentados breves esclarecimentos acerca da enfiteuse, tem-se que o laudêmio é o valor devido
quando o enfiteuta, aquele que detém o domínio útil da propriedade, aliena-o por meio de venda ou
dação em pagamento, no caso de o proprietário ter renunciado ao direito de preferência à
consolidação do domínio.
Deriva, portanto, de uma relação contratual, voluntária, necessariamente anterior ao Código Civil
vigente (que vedou a constituição de novas enfiteuses ou subenfiteuses por meio do art. 2.038,
caput 4), o que, como se verá, afasta a natureza tributária. Tem-se, assim, que o laudêmio tem
natureza civil.3
Não é raro que se cometam equívocos, inclusive da parte de operadores do Direito, quanto à
natureza jurídica do laudêmio. Seja sob a espécie taxa, seja sob a espécie imposto, 5 muitos
defendem hoje sua natureza jurídica tributária. Não obstante, se de fato tributo fosse, por que razão
seria legítima sua cobrança pela Igreja Católica no Brasil, não componente do Estado e, portanto,
não detentora do poder de tributar?
2. As espécies de laudêmio
De acordo com o que nos expõe Alexandre Sansone Pacheco, 6 há duas espécies de laudêmio: aquela
paga quando do resgate do aforamento e aquela paga quando da transferência onerosa inter vivos
de direitos enfitêuticos.
Na primeira hipótese, a prestação é devida quando do exercício, pelo enfiteuta, de seu direito ao
resgate do foro. Após 10 anos da constituição da enfiteuse, o enfiteuta, aquele detentor do domínio
útil sobre propriedade de terceiro, mediante pagamento de um laudêmio, equivalente a 2,5% (dois e
meio por cento) sobre o valor atual da propriedade plena e de 10 pensões anuais, pode extinguir a
enfiteuse, consolidando, para si, a plenitude do domínio. Esta espécie de laudêmio reina em livros e
manuais na medida em que, na prática, está em total desuso por força do enfiteuta ter os mesmos
poderes do proprietário pleno.
Na segunda hipótese, a prestação é devida quando o enfiteuta, tendo o senhorio direto renunciado
ao direito de preferência de consolidar o domínio sobre sua propriedade, transfere onerosamente
seus direitos enfitêuticos a outrem. Essa situação é a usual na medida em que tabeliães e
registradores controlam o seu recolhimento.
Essas duas espécies subdividem-se, cada uma, conforme a natureza pública ou privada dos bens e
dos titulares do direito de propriedade. Enquanto o laudêmio sobre bens privados é pago
diretamente ao senhorio direto, que expedirá alvará certificando a quitação dessa obrigação, o
laudêmio sobre bens públicos é pago através de um Documento de Arrecadação para Receitas
Federais (ou Estaduais).
Fosse real a natureza tributária do laudêmio, e assim regido pelo Código Tributário Nacional, ele
deveria apresentar as características dos tributos elencadas no art. 3.º da Lei 5.172/1966 (CTN). Desse
modo, para que seja possível dizer que o laudêmio é tributo, ele precisa ser uma “prestação
pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção
de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
O laudêmio é sim uma prestação pecuniária, isto é, dinheiro. Nos termos da legislação aplicável,
corresponde a 2,5% ou 5% (quando não fixado valor diverso no título de aforamento) do preço de
alienação do domínio útil sobre uma propriedade.
Apenas o laudêmio tem sim uma característica tributária, na medida em que não é sanção por ato
ilícito, porque corresponde a uma compensação pela renúncia ao exercício ao direito de preferência
do senhorio direto de consolidar o domínio sobre sua propriedade.
Além do fato de o laudêmio não apresentar todas as características inerentes aos tributos postas no
Código Tributário Nacional, a própria legislação tributária vigente, de maneira expressa,
dogmatizou sua natureza não tributária. Dispõe o § 2.º do art. 39 da Lei 4.320/1964 no sentido de que
débitos de laudêmio compõem a Dívida Ativa não Tributária:
“(...) Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os
provenientes de (...) laudêmios (...).”
Aos olhos do Direito Financeiro, então, tudo aquilo que é arrecadado a título de laudêmio pela
Fazenda Pública consiste em receita patrimonial originária, isto é, rendimentos auferidos pelo
Estado a partir de uso de seus próprios recursos patrimoniais.
Mas se é verdadeiro que tanto pessoas jurídicas, de direito público e privado, quanto pessoas físicas
podem perceber laudêmio, qual é a natureza, que já sabemos não ser tributária, dessa prestação?
Essa prestação existe como forma de compensar o não exercício do direito de opção do senhorio
direto de consolidação do domínio. Daí surge o seguinte questionamento: seria o laudêmio espécie
de compensação?
Nota-se que o laudêmio passa a ser exigível um mês após o momento em que, tendo sido dada
ciência ao senhorio direto da intenção de alienar o domínio direto sobre sua propriedade, e tendo
este silenciado ou renunciado a seu direito de opção, o enfiteuta transfere por meio de venda ou
dação em pagamento o domínio direto sobre a propriedade. Trata-se, pois, da contraprestação à
renúncia ao direito de opção, consistente na preferência para adquirir o domínio útil pelo preço e
condições ofertados ao enfiteuta por terceiro. Ora, trata-se, então de obrigação decorrente de
preferência!
A preferência é o “direito de ser preferido em igualdade de condições com terceiro”, 12 que pode ser
estabelecida por meio de contrato ou dispositivo de lei. No caso da preferência do senhorio direto de
reaver o domínio direto sobre sua propriedade, trata-se de preferência legal.
Ora, uma vez esclarecido que a natureza jurídica do laudêmio é civil, mais especificamente, de
preferência, resta saber se a Igreja Católica poderia, na conformidade da lei, figurar como senhorio
direto em enfiteuse, isto é, se poderia ser proprietária de bem imóvel no Brasil e constituir sobre ele
enfiteuse, e, assim, cobrar laudêmio no caso de o enfiteuta alienar onerosamente o domínio direto
sobre propriedade sua. Consequentemente constituir sobre ele enfiteuse e constituir sobre ele
laudêmio no caso de alienação onerosa do domínio direto do imóvel enfitêutico.
Para ser proprietária de imóvel, ou seja, para de alguma forma adquirir imóvel, precisa a Igreja
estar apta a adquirir direitos, ser capaz de celebrar negócio jurídico. Essa capacidade é inerente às
pessoas, conforme o art. 1.º do CC/2002 vigente. Pergunta-se: a Igreja Católica no Brasil é pessoa?
Passemos, pois, à análise da natureza jurídica da Igreja Católica e, consequentemente, de seus bens,
verificando a possibilidade de esta constituir enfiteuses e, em relação a elas, eventualmente cobrar
laudêmio, e identificando a forma de pagamento dessa prestação.
Conforme já exposto, caso o laudêmio fosse tributo, só poderia ser exigido por pessoa jurídica de
direito público competente, nos termos do art. 119 do CTN. Ainda que já tenha restado demonstrado
que essa prestação não se trata de tributo, é pertinente a análise da natureza jurídica da Igreja
Católica, com o intuito de verificarmos se poderia ela ser titular de direito real sobre coisa alheia.
A priori, poderíamos imaginar a Igreja Católica no Brasil como mera entidade religiosa, antiga figura
da associação que foi desmembrada no sistema vigente. As entidades religiosas existentes no País
constam do rol do art. 44 do CC/2002 vigente como pessoas jurídicas de direito privado. Enquadram-
se como entidades religiosas as Instituições Eclesiásticas da Igreja Católica no País, tais como a
Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou
Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações
Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros
Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.
Assim sendo, cada uma dessas Instituições, para adquirir personalidade jurídica, cumpre as
formalidades da Lei, postas no caput do art. 45 do CC/2002, quais sejam, a elaboração de ato
constitutivo, que deve ser escrito, podendo revestir-se de forma pública ou particular, e a respectiva
inscrição no registro competente. 13
Ocorre que, diversamente dessas Instituições, a própria Igreja Católica, que tem poder de criar,
modificar e extinguir qualquer uma dessas Instituições, 14 não é objeto de ato constitutivo no País, o
qual, por conseguinte, não consta de nenhum registro público. Isso implica a inexistência da pessoa
jurídica de direito privado Igreja Católica. Seria, então, a Igreja Católica pessoa jurídica de direito
público interno, nos termos do ordenamento brasileiro atual?
As pessoas jurídicas de direito público interno são exclusivamente aquelas arroladas no art. 41 do
CC/2002, quais sejam: a União; os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; os Municípios; as
autarquias, inclusive as associações públicas, e as demais entidades de caráter público criadas por
lei. Parte da doutrina, representada por Cunha Gonçalves e Darcy Arruda Miranda, defende que a
Igreja Católica é pessoa jurídica de direito público interno, regida pela lei canônica, estatuto
supremo da Igreja, que não poderia deixar de ser reconhecido. 15 Além desse “estatuto supremo”, há
alguns anos conta a Igreja Católica com Estatuto Jurídico no Brasil, promulgado por meio do Dec.
7.107, de 11.02.2010. Esse entendimento é corroborado por meio do conteúdo do caput do art. 3.º
desse Estatuto, verbis:
Poder-se-ia argumentar ainda no sentido de a Igreja Católica ser pessoa jurídica de direito público
externo. A doutrina majoritária hoje, não obstante, defende que a Santa Sé, e não a Igreja Católica
propriamente, se enquadra nessa espécie de pessoa. Nesse sentido, Francisco Resek, 16 que coloca
que “é amplo o reconhecimento de que a Santa Sé, apesar de não se identificar com os Estados
comuns, possui, por legado histórico, personalidade jurídica de direito internacional”. 17
Dessa forma, como pessoa jurídica de direito público interno, a Igreja Católica pode, nos termos da
lei que rege a enfiteuse, qual seja, o Código Civil anterior, 18 figurar como senhorio direto em
enfiteuses constituídas anteriormente à vigência do atual Código Civil e, não tendo utilizado seu
direito de preferência relativo à consolidação da posse, no caso de se operar transferência onerosa
de domínio útil de propriedade sua, terá direito de receber laudêmio, a ser pago, controversamente,
conforme aquele devido sobre a transferência onerosa dos direitos enfitêuticos sobre bens privados.
5. Conclusão
Diante desse quadro, em se adotando a posição de que a Igreja Católica é pessoa jurídica de direito
privado, sujeitar-se-ia ao art. 2.038 do CC/2002 e ser-lhe-ia defeso cobrar laudêmio ou prestações
análogas. 19
Bibliografia
DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
LEITE, Gisele. Enfiteuse, um direito real em vias de extinção. Recanto das Letras. Textos Jurídicos.
Disponível em: [www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/440044]. Acesso em: 13.01.2015.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. Rio de Janeiro: Renovar,
2000. vol. 1.
PACHECO, Alexandre Sansone, As prestações cobradas pela União na exploração do uso de seus bens
imóveis sob a perspectiva do Direito Tributário. Dissertação de Mestrado em Direito Tributário. São
Paulo, PUC, 2008.
VARELA, Antunes. Das obrigações em geral. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1997. vol. 2.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011. vol. 5.
WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 10. ed. São Paulo: Ed. RT, 1995.
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